o fim de um ciclo

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O agregador da advocacia 16 Julho de 2011 www.advocatus.pt Privatizações eduardo Paz Ferreira Sócio da Paz Ferreira e Associados, que fundou em 2006. Advogado desde 1977, foi também fundador da Sousa Franco, Paz Ferreira & Associados. É professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa O fim de um ciclo Irá encerrar-se um ciclo que se iniciou com a vaga de nacionalizações de 1975, decididas essencialmente por razões políticas e ideológicas e que ocorreu, já então, em contraciclo com aquelas que começavam a ser as concepções de política económica dominantes Pede-me a Advocatus que co- mente o programa de privatiza- ções constantes do Memorando de Entendimento acordado cele- brado entre o Governo Português (apoiado pelo PSD e pelo CDS/PP, então na oposição) e que se irá traduzir na venda acelerada (e ca- lendarizada) da quase totalidade do sector empresarial do Estado. Irá, por essa via, encerrar-se um ciclo que se iniciou com a vaga de nacionalizações de 1975, de- cididas essencialmente por razões políticas e ideológicas e que ocor- reu, já então, em contraciclo com aquelas que começavam a ser as concepções de política económi- ca dominantes. Ultrapassados os factores de rigi- dez, impostos pela Constituição de 1976, através da leitura libe- ralizante, patrocinada pelo Tribu- nal Constitucional e aprofundada pelas revisões constitucionais, o sector empresarial do Estado foi objecto de uma profunda reformu- lação, quer no sentido da sua con- tracção, quer no da clarificação das regras jurídicas aplicáveis. Perdeu, assim, este tema muito do dramatismo que durante décadas o rodeou, ainda que alguns con- tinuassem a encarar a actividade económica do Estado como um indesejado resquício dos tempos revolucionários e outros vissem nele um instrumento adequado a assegurar um modelo de Estado Social de tipo europeu, com pre- sença do Estado em sectores eco- nómicos que essencialmente se reconduzem à noção de serviços de interesse económico geral. O processo, que se iniciará em breve, irá romper os equilíbrios que se vinham mantendo, corpo- rizando uma opção de fundo em que as privatizações se apresen- tam, simultaneamente, como um instrumento para a obtenção de receitas públicas e como uma peça fundamental para a passa- gem para um modelo de socieda- de liberal. Não caberia no espaço deste artigo uma avaliação profunda do significado do Memorando de Entendimento, que constitui, aliás, uma matéria de natureza profundamente política, mas em relação à qual qualquer toma- da de posição é essencialmente uma questão de cidadania. Nem por isso se pode pretender que o Direito assuma uma pura fun- ção instrumental, em que os seus praticantes apenas se preocupem com questões técnicas. Para quem estuda o Direito e a Economia Portuguesa desde há algumas décadas a forma e o tempo dessas privatizações não podem ser considerados com os mais adequados. Por um lado, torna-se claro que as privatizações, a levar a cabo praticamente em simultâneo, exi- girão um esforço financeiro muito elevado e que muito dificilmente poderá ser encarado pelos grupos empresariais portugueses, con- frontados, ainda por cima, com a impossibilidade prática de recor- rerem a financiamento bancário para o efeito. Torna-se, por outro, claro que a conjuntura económica actual não é de molde a potenciar um interes- se relevante mesmo do exterior, com os empresários a conside- rarem um horizonte de recessão económica no país e a serem con- frontados com crescentes fantas- mas quanto ao futuro das econo- mias europeias. Dir-se-á, ainda, que a privatização de algumas empresas profunda- mente deficitárias poderá exigir uma injecção de capitais públicos totalmente inoportuna e também que, mesmo privatizadas, estas empresas, na sua generalidade prestadores de serviços de inte- resse económico geral, continua- rão a ser destinatárias de signifi- cativos fundos públicos. A decisão está tomada e assumi- da. Foi subscrita por quem tinha legitimidade para o fazer e, aquilo que importará aos profissionais do Direito neste momento é conseguir encontrar as soluções mais justas e adequadas do ponto de vista do interesse colectivo, com uma preocupação fundamental com as transferências. O acompanha- mento adequado dos processos de venda, como consultores dos potenciais interessados, oferecerá também espaço para conseguir uma optimização do bem-estar social, assegurando que se trata de procedimentos clean and fair. “As privatizações exigirão um esforço financeiro muito elevado e que muito dificilmente poderá ser encarado pelos grupos empresariais portugueses, confrontados com a impossibilidade prática de recorrerem a financiamento bancário” “A conjuntura económica actual não é de molde a potenciar um interesse relevante mesmo do exterior, com os empresários a considerarem um horizonte de recessão económica no país e a serem confrontados com crescentes fantasmas quanto ao futuro das economias europeias”

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O fim de um ciclo

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Page 1: O fim de um ciclo

O agregador da advocacia16 Julho de 2011

www.advocatus.ptPrivatizações

eduardo Paz Ferreira

Sócio da Paz Ferreira e Associados, que fundou em 2006. Advogado desde 1977,

foi também fundador da Sousa Franco, Paz Ferreira & Associados. É professor catedrático da Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa

O fim de um cicloIrá encerrar-se um ciclo que se iniciou com a vaga de nacionalizações de 1975, decididas essencialmente por razões políticas e ideológicas e que ocorreu, já então, em contraciclo com aquelas que começavam a ser as concepções de política económica dominantes

Pede-me a Advocatus que co-mente o programa de privatiza-ções constantes do Memorando de Entendimento acordado cele-brado entre o Governo Português (apoiado pelo PSD e pelo CDS/PP, então na oposição) e que se irá traduzir na venda acelerada (e ca-lendarizada) da quase totalidade do sector empresarial do Estado.Irá, por essa via, encerrar-se um ciclo que se iniciou com a vaga de nacionalizações de 1975, de-cididas essencialmente por razões políticas e ideológicas e que ocor-reu, já então, em contraciclo com aquelas que começavam a ser as concepções de política económi-ca dominantes.Ultrapassados os factores de rigi-dez, impostos pela Constituição de 1976, através da leitura libe-ralizante, patrocinada pelo Tribu-nal Constitucional e aprofundada pelas revisões constitucionais, o sector empresarial do Estado foi objecto de uma profunda reformu-lação, quer no sentido da sua con-tracção, quer no da clarificação das regras jurídicas aplicáveis.Perdeu, assim, este tema muito do dramatismo que durante décadas o rodeou, ainda que alguns con-tinuassem a encarar a actividade económica do Estado como um indesejado resquício dos tempos revolucionários e outros vissem nele um instrumento adequado a assegurar um modelo de Estado Social de tipo europeu, com pre-sença do Estado em sectores eco-nómicos que essencialmente se reconduzem à noção de serviços de interesse económico geral.O processo, que se iniciará em breve, irá romper os equilíbrios que se vinham mantendo, corpo-rizando uma opção de fundo em que as privatizações se apresen-tam, simultaneamente, como um

instrumento para a obtenção de receitas públicas e como uma peça fundamental para a passa-gem para um modelo de socieda-de liberal.Não caberia no espaço deste artigo uma avaliação profunda do significado do Memorando de Entendimento, que constitui, aliás, uma matéria de natureza profundamente política, mas em relação à qual qualquer toma-da de posição é essencialmente uma questão de cidadania. Nem por isso se pode pretender que o Direito assuma uma pura fun-ção instrumental, em que os seus praticantes apenas se preocupem com questões técnicas. Para quem estuda o Direito e a Economia Portuguesa desde há algumas décadas a forma e o tempo dessas privatizações não podem ser considerados com os mais adequados.Por um lado, torna-se claro que as privatizações, a levar a cabo praticamente em simultâneo, exi-girão um esforço financeiro muito elevado e que muito dificilmente poderá ser encarado pelos grupos empresariais portugueses, con-frontados, ainda por cima, com a impossibilidade prática de recor-rerem a financiamento bancário para o efeito.Torna-se, por outro, claro que a conjuntura económica actual não é de molde a potenciar um interes-se relevante mesmo do exterior, com os empresários a conside-rarem um horizonte de recessão económica no país e a serem con-frontados com crescentes fantas-mas quanto ao futuro das econo-mias europeias.Dir-se-á, ainda, que a privatização de algumas empresas profunda-mente deficitárias poderá exigir uma injecção de capitais públicos

totalmente inoportuna e também que, mesmo privatizadas, estas empresas, na sua generalidade prestadores de serviços de inte-resse económico geral, continua-rão a ser destinatárias de signifi-cativos fundos públicos.A decisão está tomada e assumi-da. Foi subscrita por quem tinha legitimidade para o fazer e, aquilo que importará aos profissionais do Direito neste momento é conseguir encontrar as soluções mais justas e adequadas do ponto de vista do interesse colectivo, com uma preocupação fundamental com as transferências. O acompanha-mento adequado dos processos de venda, como consultores dos potenciais interessados, oferecerá também espaço para conseguir uma optimização do bem-estar social, assegurando que se trata de procedimentos clean and fair.

“As privatizações exigirão um esforço

financeiro muito elevado e que muito dificilmente poderá ser encarado pelos

grupos empresariais portugueses,

confrontados com a impossibilidade

prática de recorrerem a financiamento

bancário”

“A conjuntura económica actual não é de molde a potenciar um interesse relevante

mesmo do exterior, com os empresários a considerarem um

horizonte de recessão económica no país e

a serem confrontados com crescentes

fantasmas quanto ao futuro das economias

europeias”