o flautista de hamelin - edições sm na medida em que fornece à criança meios para decodificar as...
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O flautista de HamelinRobert Browning
Ilustrações Antonella ToffoloTradução Marcos BagnoTemas abordados Poesia romântica inglesa • Arte e sociedade • Música e magia
GUIA DE LEITURA
PARA O PROFESSOR
PARA QUE POESIA? POESIA PARA QUEM?
Em um mundo acelerado pela informação, a poesia para crianças, sem deixar de
divertir, constitui valioso caminho de conhecimento e autoexpressão.
A descoberta dos recursos expressivos da linguagem é uma
conquista importantíssima no processo de aquisição e desenvol-
vimento das capacidades verbais da criança. Ao longo desse pro-
cesso, o contato com o texto poético constitui marco importante,
na medida em que fornece à criança meios para decodificar as
diferentes estratégias discursivas que povoam, desde sempre, seu
mundo em expansão.
O papel desempenhado pelo texto poético em sala de aula
liga-se ao fato de ele pôr a própria linguagem em questão,
libertando-a dos automatismos. Por essa razão, uma poesia
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“E então me pareceu que um eco etéreo(mais doce que uma harpa, que um saltério)dizia: ‘Rejubilem-se, roedores!O mundo agora é só uma cantina!Venham provar sem fim os seus sabores,roer, moer, sorver a papa fina,jantar, almoço e ceia vespertina!’.E, como se um barril de puro melbrilhasse feito um sol à minha frentee me chamasse: ‘Rompe-me, sou teu!’,me vi dentro do Weser de repente...”.
Nos idos de abril de 1842, o poeta inglês Robert Browning, para divertir e confortar um menino adoentado, filho de um amigo, decide pôr em versos a antiga fábula alemã do Flautista de Hamelin, recolhida pelos Irmãos Grimm. Nasce assim uma pequena obra-prima: uma históriaencantadora, mágica e cheia de música, irresistível como as notas com que o Flautista hipnotiza ratos e crianças.Uma edição refinada, traduzida pelo poeta e linguista Marcos Bagno e acompanhada das dramáticas xilogravuras de Antonella Toffolo, queevocam o movimento Blaue Reiter e o expressionismo alemão.
O Flautista deHAMELIN
R o b e r t B r o w n i n g
tradução Marcos Bagnoilustrações Antonella Toffolo
ALB_O FLAUTISTA DE HAMELIN_CAPA_LA.indd 1 2/17/12 7:25 PM
O autOr Robert Browning, poeta e dramaturgo inglês, nasceu em 7 de maio de 1812, em Camberwell, região sudeste de Londres, e morreu em Veneza, em 12 de dezembro de 1889. Chegou a se preparar para a carreira diplomática, da qual logo desistiu para se dedicar à literatura. Casou-se com a também poeta Elizabeth Barrett (1806-1861) e mudou-se para a Itália, onde passou a maior parte da vida. Entre as suas obras mais conhecidas estão os poemas “Paracelsus” (1835) e “Sordello” (1840), a série de peças Bells and Pomegranates (1841-1846), a coletânea de versos Men and Women (1855) e “The Ring and the Book” (1868-1869), longo poema com mais de 20 mil versos.
a ilustradOra Antonella Toffolo nasceu em Milão, em 1961. Cartunista formada pela Escola de Quadrinhos de Milão, trabalha como ilustradora em jornais e editoras de livros. Atuando em associação com coletivos de quadrinistas (como Struwwelpeter e i Cani), publicou seu primeiro livro em 2005, obra que foi finalista do prêmio Comicon Micheluzzi. Em 2007, o Museu da Resistência de Bolonha dedicou à ela uma mostra e a Associazione Nazionale Amici del Fummetto e dell´Illustrazione (Anafi) lhe conferiu o Prêmio Albertarelli. O flautista de Hamelin é seu primeiro livro juvenil.
O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
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“para crianças” não cumprirá seu papel enquanto subestimar
a inteligência do leitor, recorrendo a noções simplistas, a bana-
lizações de forma e conteúdo, a diminutivos pueris. Concor-
rendo com a velocidade do desenho animado, do vídeo e da
internet, a poesia deve ser capaz de recuperar o sabor dos jogos
e das brincadeiras, atentar para temas, experiências e sentimen-
tos que compõem o universo cada vez mais heterogêneo do jovem
leitor, estimulando-o a indagar, a criar e a refletir.
No século XVIII, o filósofo iluminista francês Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778) protestou contra a visão da criança como
adulto em miniatura. A infância, então, passou a ser considerada
uma etapa essencial do desenvolvimento, da qual dependia a emer-
gência do cidadão apto a participar plenamente da vida coletiva.
No mundo contemporâneo, a sociedade da informação e do
mercado impõe a adultização precoce da criança. A poesia re-
presenta nesse contexto um espaço protegido em que é possível
recuperar o sentido lúdico da experiência com a palavra, bem
como fomentar uma abordagem alternativa a sua instrumentali-
zação. Fruto de grande liberdade criativa, a poesia incrementa a
potência fabuladora da criança. Mergulhando-a no frescor da lín-
gua, ela ajuda a formar leitores ativos, mais habilitados a enfrentar
a prosa do mundo.
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
FORMAS E TEMAS
Com O flautista de Hamelin (1842), o inglês Robert Browning
(1812-1899) transforma em poema a tradicional fábula sobre o
flautista misterioso que livra a cidade alemã de Hamelin de uma
infestação de ratos. Um dos registros mais conhecidos da fábula
é o dos irmãos Grimm, de 1816, mas as origens da história, ba-
seada em diversas lendas medievais e fatos históricos, são bem
anteriores: as versões mais antigas datam do século XIII.
O flautista de Hamelin tornou-se, assim, referência para a cida-
de alemã – hoje em dia, é sua principal atração turística. Ao longo
do tempo, tentou-se fixar datas e locais precisos para os eventos
narrados na lenda, buscando dar-lhes mais veracidade. Em seu
texto, os irmãos Grimm mencionam uma controvérsia sobre a
data “real” do desaparecimento das crianças, que costuma ser re-
ferida como 26 de junho de 1284, embora também apareça em
alguns registros históricos de Hamelin a menção ao 22 de junho.
Uma moeda teria sido cunhada em memória do trágico aconte-
cimento, sinalizado por meio de diversas inscrições em lugares
públicos: nas paredes da prefeitura; nos portões da cidade; nos
vitrais de uma igreja. Uma dessas inscrições teria sobrevivido ao
longo do tempo, com o seguinte texto: “No ano 1284, no dia de
João e Paulo, 26 de junho, um flautista vestindo roupas de muitas
cores abduziu 130 crianças, nascidas em Hamelin e perdidas em
Calvery, nas proximidades de Koppen”.
É muito difícil, após tantos séculos e tantas versões, separar ver-
dade documental e imaginação na história desse flautista. O que
importa notar, contudo, é a extraordinária permanência da fábula,
o modo como foi sendo apropriada e recontada com o passar do
tempo. De todas as versões conhecidas, a de Browning tornou-se
célebre por sua originalidade na recriação da narrativa.
Tal originalidade evidencia-se em vários aspectos, a co-
meçar pelo reconto em versos. Valendo-se da liberdade for-
mal e temática instaurada pelo Romantismo, ele escreveu
um poema sem esquema rígido de estrofes, cujo número de
versos varia, com regularidade na presença da rima e na mé-
trica, quase sempre tendendo ao decassílabo na tradução de
Marcos Bagno (octassílabo no original inglês). Além disso,
Browning explorou especialmente a musicalidade do poema, o
que vem a calhar em uma fábula protagonizada por um flautista.
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
Esse é outro aspecto caro à poesia romântica, podendo ser ob-
servado em trechos como o da marcha dos ratos, com suas as-
sonâncias e aliterações: “[...] ratões, ratinhos, ratos rotos, ratos/
robustos, ratos ruivos, ruços ratos,/ velhos grisalhos, pândegos
gaiatos,/ pais, mães, avós, avôs, gêmeos, padrinhos,/ torcendo
rabos, roçando focinhos [...]” (VII).
Quanto ao conteúdo, Browning inova com a fala de persona-
gens que sobrevivem aos dois eventos principais da história: o
afogamento dos ratos e o sumiço das crianças. Os discursos do
rato e do menino manco são fundamentais para o entendimento
do sentido crítico do texto.
Por fim, ele também tira partido da ambivalência entre o len-
dário e o verídico ao criar um narrador poético que conta os “fa-
tos” em primeira pessoa. Apesar de já distante da época em que
ocorreu a história (“há bem quinhentos anos”), o narrador conta
com a vivacidade e o frescor de quem a tivesse testemunhado, até
mesmo advertindo seu ouvinte sobre a moral da fábula: “Assim,
guri, paguemos sempre à vista,/ especialmente a um credor flau-
tista!/ Se solfejou e deu cabo dos ratos,/ vamos cumprir à risca o
nosso trato!” (XV).
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
MAIS DE PERTO
A cruzAdA dAs criAnçAs
Um dos principais eventos históricos a que a fábula do flau-
tista parece aludir é a “Cruzada das Crianças”, ocorrida em
1212. Em verdade, foram duas as cruzadas infantis nesse ano,
nas quais milhares de crianças teriam sido conduzidas até
Jerusalém por um menino pastor. Reza a lenda que elas teriam
peregrinado até o mar Mediterrâneo esperando que este se abris-
se a sua passagem, como o mar Vermelho se abrira para Moisés
e os demais judeus em fuga do Egito, no episódio bíblico. O des-
tino dessas crianças, porém, à diferença do dos judeus no Êxo-
do, teria sido trágico: poucas lograram voltar para casa, sendo a
maioria raptada por traficantes e vendida como escrava.
RUMO AO SANTO SEPULCROAs cruzadas da Idade Média, que aconteceram entre os séculos
XI e XIII, foram campanhas militares conduzidas por nobres
cristãos da Europa Ocidental em direção ao Oriente Médio, com
o objetivo de restaurar o domínio cristão sobre a “Terra Santa”
(o que corresponde hoje a Israel e aos territórios palestinos sob
sua ocupação). A cidade de Jerusalém e toda a região estavam
então sob o controle dos turcos muçulmanos. As cruzadas eram
também uma espécie de peregrinação, cujos motivos religiosos
eram inseparáveis das razões políticas e econômicas.
Sem embargo, somente no século XX seria esclarecida a base
histórica por trás do lendário sobre as cruzadas infantis. Histo-
riadores demonstraram que a palavra pueri (“crianças”, em la-
tim), frequente nas crônicas, era um modo pejorativo de refe-
rir-se a camponeses muito pobres ou em situação de servidão.
Eram comuns, no século XIII, bandos de camponeses sem terra,
mendigos e doentes que vagavam em constantes migrações pela
Europa, deslocados ao sabor das crises socioeconômicas do pe-
ríodo. Assim, é provável que as cruzadas infantis tenham se ori-
ginado do trânsito dessas pessoas.
MAis referênciAs bíblicAs
A versão de Robert Browning para a fábula do flautista de
Hamelin acentua o mistério sobre o destino das crianças, mas su-
gere um final feliz para elas, ao contrário das lendas sobre as cru-
zadas infantis. Pela fala do menino manco, temos pistas de que
as crianças teriam chegado, enfim, à Terra Prometida, onde não
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
existem sofrimento nem servidão, onde a natureza é perfeita. O
menino lamenta não ter conseguido acompanhar o flautista e as
outras crianças, contando um pouco do que vislumbrou: um “país
de sonho”, onde “abelhas já nasciam sem ferrões,/ cavalos tinham
asas de falcões/ e cães venciam corças na corrida”. Na terra onde
tais coisas são possíveis, o menino certamente seria capaz de se
“endireitar e andar de pé”. Contudo, justamente por causa de sua
deficiência, ele perde para sempre essa oportunidade: “Manco fi-
quei, sem nunca mais ouvir/ falar daquela terra, se existir...” (XIII).
O personagem do menino manco lembra novamente Moisés,
que, depois de vagar quarenta anos pelo deserto como líder do
povo judeu, apenas vislumbra Canaã, morrendo antes de nela en-
trar. Da mesma forma, a passagem através do monte Koppelberg
e o afogamento dos ratos no Weser evocam a já mencionada tra-
vessia do mar Vermelho (assemelhando-se o destino dos ratos ao
dos soldados do faraó, sobre os quais se fecham as águas do mar
após a fuga dos judeus). Por outro lado, também o flautista se
equipara a Moisés, abrindo a montanha com sua flauta como o
profeta judeu dividiu as águas com seu cajado.
Tanto na narrativa bíblica como no poema de Browning há
oposição entre virtude e vício, pureza e corrupção. A história,
como a maioria das fábulas, encerra, pois, uma lição moral. Para
ilustrá-la, o poeta utiliza, aliás, uma citação bíblica: “Os ricos
entrarão no céu somente/ quando um camelo enfiar-se numa
agulha!” (XIV). A sentença encontra-se no evangelho de Mateus,
num trecho sobre o perigo das riquezas: “é mais fácil um camelo
entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Rei-
no de Deus” (19, 24). Os puros e virtuosos, como as crianças, são
recompensados com o paraíso, mas os avaros e gulosos, como os
governantes da cidade e os ratos, são punidos.
O CAMELO E A AGULHASegundo o filólogo Deonísio da Silva (A vida íntima das
frases. São Paulo: Novo Século, 2009), a imagem algo surrealista
se deveria a um erro de tradução da vulgata de São Jerônimo,
que teria confundido a palavra grega “kamilos” (corda grossa)
com “kamelos” (camelo). Assim, a frase original falava em passar
uma corda pelo buraco da agulha. Outra hipótese refere a
existência de uma porta estreita à entrada de Jerusalém chamada
“olho da agulha”. Por ela um camelo poderia passar desde que
baixasse a cabeça, em sinal de humildade, e se despojasse de
boa parte da carga, em sinal de desapego.
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
Exceção à regra são o rato que, apesar de mau como os outros,
se salva do afogamento e o menino manco, que, apesar de bom,
é privado da Terra Prometida. Isso porque ambos devem dar tes-
temunho do que ocorreu, revelando, com suas falas, o sentido da
magia do flautista: cada qual será recompensado de acordo com
seu desejo.
Arte e MArginAlidAde
Desde o momento de sua chegada, o flautista é mal recebido
e malvisto pela elite de Hamelin. Sua entrada repentina causa
espanto a todos, em primeiro lugar pela aparência excêntrica: ca-
belos soltos, rosto sem barba, roupa colorida. O casaco amarelo
e vermelho é a principal característica física do personagem, por
meio da qual ele se apresenta: “sou o Flautista do Manto Malha-
do”. Sua figura parece livre e alegre, destoando completamente
dos membros do Conselho e do Prefeito de “pança mole”. Ainda
assim, é recebido como uma aparição: “‘Parece até que vejo’,
alguém falou,/ ‘sair da sepultura o meu avô.../ É o Dia do Juízo
que chegou?’” (V). Aos olhos dos burgueses, o flautista aparece
como uma “estranhíssima figura”, cujas roupas são “vestes esqui-
sitas”, um “traje tão fora de moda”.
Depois de declarar seu ofício, o flautista passa a ser visto ainda
com mais desconfiança. Afinal, ele não é um simples extermina-
dor de pragas, mas um mestre “em musicais ciências/ que nunca
nenhum homem dominou.” Ou seja: é um músico cuja arte pode
comandar “tudo o que vive embaixo deste céu,/ e voa, e nada, e
corre, e foge em bando./ Ninguém igual a mim jamais nasceu!”
(VI). A associação entre arte e magia (os poderes encantatórios
da música) apenas reforça a má impressão causada pela excen-
tricidade do artista. Até o mero gesto de dedilhar o instrumento
parece suspeito ao povo de Hamelin, como se o músico fosse
uma espécie de viciado que não consegue ficar longe da droga:
“E quem estava ali pôde notar/ os dedos do mancebo a se esfre-
gar,/ como se lhes fizesse grande falta/ tamborilar naquela flauta
à toda” (VI).
Não bastasse isso, os governantes corruptos da cidade, para
quem só importa a riqueza, ainda estranham a modesta quan-
tia exigida pelo flautista como remuneração por seus serviços,
prometendo-lhe, sem intenção de pagar, um valor muito maior
do que o pedido: “‘Só mil? Cinquenta mil!’, diz em falsete/ o coro
de Prefeito e Gabinete” (VI).
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
A visão negativa sobre o artista e seu ofício é um dos aspectos
críticos do poema, que pode ter certo enraizamento na biografia
do poeta. Browning sofreu para se estabelecer no mundo literá-
rio inglês, suas publicações foram muitas vezes mal recebidas,
pela crítica e pelo público, e o reconhecimento do mérito de sua
obra, embora duradouro, foi tardio.
Ao mesmo tempo, Browning expressa a visão romântica
do artista como ser único, inspirado, superior. Era bastante
comum, no Romantismo, a valorização e idealização de per-
sonagens excêntricos, marginalizados pela sociedade. Nesse
ponto, é interessante notar o contraste entre a nobreza e a
elegância do flautista e os modos rudes e grosseiros da elite
política e econômica de Hamelin. O flautista é como um aris-
tocrata; conhece reis, xás e sultões, que o tratam da melhor
forma possível, apesar de ele ser um “flautista pobre”. Os no-
bres a quem o flautista serve reconhecem seu valor, respeitam
sua arte. Ele é esperado para jantar na casa do Califa de Bagdá,
em gratidão pelos serviços ali prestados: “Com ele nada tive a
barganhar,/ não creiam, pois, que aceito seu vintém!/ Se ou-
sarem me tratar com vil desdém,/ um outro som hão de me
ouvir tocar!” (X).
Já os gananciosos políticos de Hamelin usam o orçamento
público em proveito próprio, por isso as contas da cidade es-
tão sempre no vermelho: “Mil florins! O Prefeito ficou roxo/
e todo o Gabinete tremeu, frouxo./ Pois os lautos banquetes
do conselho/ causavam largos rombos nas finanças:/ vinhos
do Porto, champanhes de França...” (VIII). Sua semelhança
com os ratos pode ser novamente notada: ambos preocupam-
-se apenas em encher a própria barriga, ferindo os outros se
necessário. São também mentirosos, cínicos e covardes. Assim
que se veem livres da praga, não hesitam em expor todo o des-
prezo pelo flautista, chegando ao cúmulo de oferecer-lhe al-
guns tostões para comprar uma bebida, em vez do pagamento
acordado: “Pagar tal soma ao músico chinfrim,/ trajado de
ridículo arlequim?/ ‘Pensando bem’, falou rindo o Prefeito,/
‘no rio nossa praga se afogou,/ mas não negamos que é nosso
dever/ oferecer-lhe algo de beber/ e um capital no bolso, mais
que nada./ Porém, sobre a quantia mencionada,/ o amigo sabe,
foi uma piada/ que nosso humilde cofre não sustenta./ Que gra-
ça! Mil florins? Tome cinquenta!’” (VIII). A oferta imoral atesta
a visão que se tem do artista: um marginal, vagabundo, que
não precisa mais do que uma bebida, já que não tem profissão
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
“respeitável” nem residência fixa. Nas palavras do Prefeito, o
flautista é um “cigano preguiçoso arruaceiro,/ em trajes de bu-
fão mais esquisito!” (XI).
ÓCIO SEM DIGNIDADEO preconceito contra os artistas ecoa também em outras
fábulas. Um dos mais famosos exemplos é “A cigarra e a formiga”,
fábula atribuída a Esopo (Grécia, século VI a.C.), recontada pelo
francês Jean de La Fontaine (1621-1695). Na história, a cigarra
passa o verão a cantar enquanto a formiga trabalha. Quando
chega o inverno, a cigarra pede comida à formiga, mas esta
recusa, punindo a cigarra por sua atitude, que é julgada como
preguiçosa.
No entanto, toda a arrogância do Prefeito
vai por água abaixo quando o flautista decide
se vingar, sequestrando as crianças da cidade.
Apesar de os políticos reconhecerem que de-
veriam ter pagado pelo serviço, que o seques-
tro ocorreu “por cupidez”, o músico será visto
como alguém que se vingou de forma injusta
e cruel. O vitral da igreja, construído depois
da tragédia, enfatizará “o drama das crianças
abduzidas”. Do ponto de vista dos habitantes
de Hamelin, pouco importa o depoimento do
menino manco, mostrando que as crianças
ficaram bem, tendo alcançado o paraíso ter-
restre. O sequestro serve apenas para reforçar
a hostilidade contra os artistas e justificar seu
banimento: “E, pra fixar melhor toda a lem-
brança,/ o último percurso das crianças/ foi
batizado Rua do Flautista,/ sempre fechada a
músicos e artistas” (XIV).
O grOtescO e O ExpressiOnisMO
Outro ponto alto do poema de Browning é
a construção dos personagens, caracterizados
muitas vezes de maneira cômica e grotesca.
Browning coloca em relevo os traços positivos do flautista, ao
passo que os governantes de Hamelin são impiedosamente re-
tratados com todos seus defeitos. É o caso do Prefeito, sujeito
“nanico”, com “uma barriga enorme, feia e torta”, que só pensa
em comer e enriquecer.
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
O GROTESCO E O SUBLIMEO grotesco era um estilo caro aos escritores do Romantismo.
Em um dos principais textos sobre a estética romântica, o “Prefácio
de Cromwell”, o francês Victor Hugo (1802-1885) defende o
grotesco como a característica principal do Romantismo. Ele seria
a outra face do belo e do sublime. O estilo grotesco trabalha com
elementos como o exagero, a deformidade, a feiura, o ridículo,
buscando em geral um efeito cômico.
As gravuras de Antonella Toffolo acompanham as intenções
do poeta. Quando os governantes recusam-se a pagar o flautista,
vemos uma ilustração comparando o Prefeito a um rato carre-
gando um saco de dinheiro. Toffolo também distorce o rosto dos
habitantes de Hamelin para mostrar o horror e a aflição ante a
infestação dos roedores, representados em tamanho ampliado,
como se vê nas partes I e II. Logo percebemos que o objetivo
da artista não é alcançar o realismo ou a verossimilhança, mas
acentuar determinadas características da cena ou dos persona-
gens para enfatizar algum sentimento ou ideia, à maneira ex-
pressionista.
A VANGUARDA EXPRESSIONISTAO Expressionismo foi um movimento artístico de vanguarda,
que nasceu na Alemanha, na virada do século XX, e durou
aproximadamente até os anos 1920 (embora, em sentido lato,
defina uma tendência permanente da arte). Surgido inicialmente
como uma reação ao Realismo impressionista, tal movimento
propõe uma arte mais pessoal e intuitiva, com predomínio da
visão interior do artista sobre os estímulos externos. Angústia,
senso trágico e violência são alguns traços dessa estética.
O aspecto frequentemente sombrio da arte expressionista
deve muito ao período em que floresceu, marcado pelo cresci-
mento intenso e rápido das cidades e pela miséria e destruição
da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A vitalidade e o oti-
mismo que estiveram na origem do movimento seriam estilha-
çados pela experiência da guerra. O lado atraente da modernida-
de também perderia encanto para os efeitos desumanizadores e
alienantes da vida urbana.
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
VERSO E REVERSO
A partir do amplo universo de referências presentes na poesia
de Robert Browning, o professor pode alimentar as discussões
suscitadas durante a leitura dos poemas por meio de algumas
atividades, como as que sugerimos a seguir.
dO cOntO AO pOeMA Vimos que o poema de Robert Browning é mais uma re-
criação da antiga lenda sobre o flautista de Hamelin. Para a
análise das particularidades desta versão poética, será pro-
dutivo compará-la com outros registros da lenda. Um dos
mais significativos é o dos irmãos Grimm, já que foi um dos
grandes responsáveis pela chegada da fábula até nós. Após a
leitura de ambos os textos, o professor pode conduzir uma
análise comparativa entre a fábula dos Grimm e o poema de
Browning, levantando semelhanças e diferenças formais e te-
máticas. Pode-se notar, entre outros aspectos, o caráter sóbrio
do texto dos irmãos Grimm, que a princípio se empenham mais
em registrar o modo como a história é recontada pela tradição
oral alemã do que em inventar elementos ou reinterpretar a
lenda. Todavia, encontram-se aí as bases para a inventividade
de Browning. O poeta inglês criou a personagem essencial do
menino manco, mas já havia, na fábula dos Grimm, três crian-
ças que ficaram para trás: uma cega, outra surda e uma que
voltou para buscar seu casaco. Embora não tenham uma fala
significativa, como a do menino manco, sua presença misterio-
sa provavelmente inspirou a criação de Browning. Outro termo
interessante de comparação é a caracterização do flautista: mais
soturna no texto dos irmãos Grimm, mais alegre e positiva no
poema romântico.
AtuAlizAçãO dA fábulA
A corrupção dos governantes de Hamelin é um dos ele-
mentos que conferem atualidade ao poema de Browning. Já o
lugar do artista em nosso mundo parece ter mudado em rela-
ção ao que se vê no livro; no entanto, a primazia do mercado
sobre a própria criação não seria ainda um modo de controle
e desvalorização do artista independente? Essas são apenas
duas questões, entre outras, que podem servir de mote a uma
atividade de criação. A ideia é pensar que mudanças a história
sofreria caso se passasse nos dias de hoje. A discussão pode ser
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
um ponto de partida estimulante para que os alunos, depois
de analisado o texto, elaborem a própria versão de O flautista
de Hamelin. Cada aluno deve reescrever a lenda, modifican-
do-a a seu modo.
pesquisA históricA
Outra proposta de criação é realizar o caminho inverso da
atividade anterior: em vez de trazer a história para os dias atuais,
os alunos tentam imaginar que outras fontes e fatos teriam
contribuído para a criação do lendário sobre o flautista de
Hamelin. A atividade envolve a pesquisa das referências me-
dievais aí em jogo, como a Cruzada das Crianças. Ela também
propicia uma reflexão sobre o vaivém entre fato e ficção na lite-
ratura e na própria construção do relato histórico, que sempre
conta com o recurso da imaginação para preencher as lacunas
da informação histórica.
A partir da pesquisa e da discussão, os alunos produzem no-
vas histórias relacionadas à fábula do flautista. Admite-se aqui
o trabalho com diversos gêneros: o depoimento em primeira
pessoa, o relato objetivo em terceira pessoa, a carta etc. Ou-
tras formas, não discursivas ou não verbais, também podem ser
exploradas como documentos de época: ilustrações (como os
vitrais da igreja mostrando o sequestro das crianças), moedas,
inscrições, objetos etc.
OUTRAS VIAGENS(Sugestões de livros e filme)
LIVROS
pArA O prOfessOr
• GUINSBURG, Jacó (org.). O Expressionismo. São Paulo:
Perspectiva, 2002. (Coleção Stylus).
Conjunto de ensaios sobre as diversas modalidades de ma-
nifestação da estética expressionista na pintura, na literatu-
ra, na música e nas demais artes.
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O flautista de Hamelin RobeRt bRowning
Elaboração do guia Chantal Castelli, doutora em teoria literária e literatura Comparada pela FaCuldade de FilosoFia, letras e CiênCias humanas da universidade de são paulo; rEvisão marCia menin.
• SCHWOB, Marcel. A Cruzada das Crianças/ Vidas imaginá-
rias. Trad. Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2011.
A edição traz duas obras de Schwob (1867-1905), ambas
originais de 1896. Em A Cruzada das Crianças, o escritor
francês escreve os relatos de oito personagens que teriam
de algum modo participado da cruzada, cada qual com
um ponto de vista diferente sobre o evento. Schwob segue
o princípio da lenda, em que se misturam ficção e histó-
ria, já que reescreve e reinterpreta o material histórico
das próprias lendas, recolhido em crônicas medievais.
pArA O AlunO
• GRIMM, Jacob e William. Contos de Grimm. Trad. Heloisa
Jahn. São Paulo: Cia. das Letrinhas, 1996.
Versão dos contos recolhidos pelos irmãos Grimm, incluin-
do a fábula sobre o flautista de Hamelin.
• TAVARES, Bráulio. O flautista misterioso e os ratos de Hamelin.
São Paulo: Editora 34, 2006.
Nessa edição, o poeta Bráulio Tavares reconta a fábula no
formato bem brasileiro e popular do cordel, dando à his-
tória um novo tom. O poema é complementado por dois
textos, um sobre as origens da lenda sobre o flautista e outro
sobre a literatura de cordel.
• ANTOINE-ANDERSEN, Véronique. Arte para compreender
o mundo. São Paulo: Edições SM, 2007.
Nesse compêndio com informações diversificadas sobre o valor
da arte como instrumento de interpretação do mundo, há uma
bonita seção dedicada à arte expressionista, com reproduções de
telas da pintora brasileira Anita Malfatti (1889-1964) e do pintor
norueguês Edvard Munch (1863-1944).
FILME• A lenda da flauta mágica (The Pied Piper). Reino Unido/
EUA, 1972. Direção: Jacques Démy. Colorido. 90 min.
Elenco: Donald Pleasence, Donovan, Jack Wild e John
Hurt, entre outros. Filme musical rodado na Alemanha. No
papel do flautista, um ícone da música folk, Donovan, que
tenta salvar uma cidadezinha infestada pela Peste Negra.