o fracasso versão minicurso · o fracasso eu não faço ... ele expropriou para a crítica...
TRANSCRIPT
1
OfracassoEunãofaçoconferências,mastenhoumensinamento.JL(1975)Comooambar,quepreservaamoscaparanadasaberdoseuvoo.JL(1969)
Desleituras
Vamoscomeçarinterrogando"oquequerdizerler",porqueseháalgono
qualodiscursopsicanalíticomudoutudooqueexistiaantesdele,istoéanoção
de leitura. Como já nascemosdentrodoperíodohistóricodapsicanálise, não
podemos ter ideia do que era ler antes de Freud. Poderia ter dito que a
psicanálisemudoumesmoéoconceitodeverdade,masestaéumaviarepisada
equesólevaaclichêsvaziosemrelaçãoaosquaisnãoconsigoesconderminha
impaciência. Existem vários autores, mais ou menos conhecidos e mais ou
menospertodapsicanálise,quetrabalharamaquestãodaleituradeummodo
magnífico,mashojequerorecuperarparanósumconceito inventadoporum
crítico americano de literatura, para elaborar uma teoria da poesia. Digo
"recuperar"porqueeleinventouesteconceitoporterentendido,comopoucos,
anovidadefreudiananotratamentodorelato.FalodeHaroldBloomedeseu
conceitodedesleitura(misreading).
Ele expropriou para a crítica literária a teoria de Freud sobre as
"lembrançasencobridoras"esobreo"romancefamiliar",eassimjogouumaluz
novasobreosconceitosoriginaisdeFreud.Istoéprecisamenteoquedesleitura
quer dizer. Consultem seus livros "A angústia de influência" e "Mapa da
desleitura". O crítico postula que há leitores fracos e leitores fortes. Estes
últimos não lêem, "deslêem" (misread), porque a leitura, no sentido forte do
termo,operacomoum"romancefamiliar"–nosentidodeFreud–,ouseja,como
a reescrita de um outro texto. Os poetas, porque se trata de uma teoria da
2
poesia, os poetas deslêemuns aos outros, ao fazerem seus poemas.De outro
modo,umpoemaéumatode leitura,nãoumobjeto.Umpoema"lê"poemas
anteriores, de outros poetas ou do mesmo poeta como outro. Não existem
textosisolados,apenasrelaçõesentretextos.Etaisrelaçõessãojáatoscríticos.
Acrítica,ouseja,aleitura,podenãosernecessariamenteumaavaliaçãomasé
sempreumadecisão,eoquesedecideéosignificado.Destemodo,todapoesia
seriacríticaemverso,bemcomotodacrítica,poesiaemprosa.
Borges transforma o próprioKafka emumprecursor deBorges, o que
por tabelaprovaa tesede "Kafka e seusprecursores"—queéuma teoriada
usurpaçãodaorígem.Umtextoliterárioseriasempreumembateentreoautor
eseusprecursores,lidosporeleemseuprópriotexto,alterandodestemodoo
pontodeorigem.O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu labor modifica nossaconcepção do passado, como haverá de modificar o futuro. Nesta correlaçãonada interessaa identidadeouapluralidadedoshomens.OprimeiroKafkadeBetrachtungémenosprecursordoKafkadosmitossombriosoudasinstituiçõesatrozesqueBrowningouLordDunsany.1
DepoisdeKafka,dizateseborgiana,osmaisdiversosautoresanteriores
aele(comoZenãodeElea,23séculosantes)podemconsiderar-sekafkianos,e
viram seus precursores. É muito importante que não se perca de vista que
Borges não apenas não desaparece nesta operação, como possibilita uma
apreciaçãodeKafkacompletamentenova,mudandodestemodotodaacrítica
doescritortchecoqueexistiaatéentão.
É frequente um leitor forte virar um revisionista. Como a palavra
"revisão" indica, está em jogo ali um redirecionamento levando a uma
reestimação ou reavaliação de textos que, com frequencia, se propõe a ser
corretiva. Haveria ali um ideal de leitura verdadeira e uma pretensão a
restaurarumaverdadequejáestarianoescritomesmoequeoleitorconsidera 1Borges J.L. O.C. vol II, p.89. Bs As: Emecé, 1996.Betrachtungé de 1912, Browning
escreveem1889eLordDunsany,em1878.
3
extraviada,semperceberqueestaverdadetextualestariasendoproduzidapela
sualeituraque,nessesentido,seriaumaverdadeiraescrita.Oleitorfortedeslêo
outroparafundarasuaprópriaescritura2.
Espero que se reconheça nesta descrição o modo de Freud ler (criar)
seusprecursores,assimcomotambémoFreuddeLacan.Mas tambémdesejo
acrescentar a esta lista o LacandeMiller. Este último é um leitor nãomenos
fortequeosoutrosdois,comumadiferença:aobramillerianacomportacomo
estratégiaapagaro leitor eoautor, a serviço de uma política de reescritada
obra do precursor. Voltaremos a isso, quando falarmos do programa "Lacan
Elucidado".
Exemplos de desleitura não faltam. Menciono alguns ao léu, como
ilustração apenas. O "complexo de Édipo" é uma desleitura de Sófocles; a
energêticadapulsão,dafísicadeHelmholtz;abiografiadeLeonardodaVincié
deslida em prol da invenção do conceito de "mãe fálica" e de sublimação; a
"pulsãodemorte"éumadesleiturafreudianadeEmpédocles,deSchopenhauer
edeWeissmann.JáoconceitodeTycheeathomatonéumadesleituralacaniana
da "pulsão demorte" freudiana e da física de Aristóteles, para embasar uma
teorianovadosignificante.Oaprès-coup,queseriaofundamentodestaúltima,
deslêaNachträglichkeitfreudiana,quenemchegaaserumconceito,parafazê-
lacabernumateoriadalinguagemalheiaaFreud.Omesmoseaplicaàleitura
dosignodeSaussure,queprivilegiaosignificantesobreosignificadoeàleitura
da condensação freudiana e do complexo de Édipo a partir da metáfora. O
conceito de gozo é uma radical desleitura da pulsão freudiana, para retirar a
psicanálisedobiologicismoreinante(sobreessafalaremoslongamentesemana
próxima).Poroutro lado,ocogitocartesianoédeslidomedianteoWoeswar,
soll ichwerden freudiano,para elaboraruma teoriadoato.EKant épostode
ponta-cabeça, alavancadoporSade,para tematizara lógicada fantasia.Enão
2NosentidodeBarthes.
4
mencionocasosdadesleituramillerianadeLacanporquevoutrabalharalguns
comcuidadonapróximaaula.
OretornoaFreud
Onomegenéricodadesleitura lacanianaéoassimchamado"retornoa
Freud", que consiste, pasmem, no projeto geral de virar Freud pelo avesso,
comoumaluva..."A psicanálise pelo avesso", acreditei que deveria intitular este seminário.Nãocreiam que este título deva nada à atualidade, que se crê na situação de pôrbastantescoisasdepernasproar[serefereaoMaio francêseàcontra-cultura].Dareisóumaprovadisso.Numtextodatadode1966,concretamente,uma das introduções que fiz no momento de concretar a coletânea dos meusEscritos e que o escandem, um artigo chamado "De nossos antecedentes",observo,nap.68,quemeudiscurso sedefineporpegar o projeto freudianopeloavesso.19693...ededarumanovavolta(re-tour)sobreseusconceitos,parafazercom
que apareçamasmolasda sua estrutura (é a aplicaçãoda topologia à leitura
crítica: o corte revela a propriedade de uma superfície, nomomento em que
estadesaparece,depoisdasegundavolta).Nãoé,demodoalgum,umavoltaaos
fundamentos ou um regresso às origens deturpadas ou esquecidas de um
freudismo mais puro, mas um profundo questionamento. Lacan relê os
conceitosfreudianosinvertendoaordemdasrazões.NãoseguimosaFreud,oacompanhamos.19554
E...
3Oavessodapsicanálise.4Oeunateoriadapsicanálise
5
[tampouco]vamoscontraFreud,nosservimosdele.19755
Onde"servir-se"significaapoiar-seneleparaescreveralgonovo.TentodaraostermosfreudianosasuafunçãoLeia-se:emFreudmesmoestafunçãonãopodereconhecer-se.
Tentodaraostermosfreudianosasuafunção,namedidaemquesetratanadamenosquedeumainversãodosprincípiosmesmosdoquestionamento.É isso que chamei inverter a ordem das razões. Ler, por exemplo, a
segundatópicaàluzdaprimeira.Estaúltimaforneceasrazõesparaentendera
que cronologicamente lhe segue, que nesse sentido não apenas não seria
nenhumprogressoteóricocomopoderiaserumaregressão.Demodogeral,se
faznecessáriodirigiraFreudasperguntasopostasquetudomundolhefaz.Dito de outro modo –o que não quer dizer que se diga o mesmo–, estácomprometida neste esforço a exigênciamesma que condiciona a passagem aestequestionamentorenovado.Estaexigênciamínimaéaseguinte:trata-sedefazerpsicanalistas.A razão de ser deste questionamento crítico não é meramente
universitária,jáquesetratadeformarpsicanalistas.SegueLacan:Aquele questionamento não poderia formular-se sem uma recolocação dosujeitoemsuaposiçãoautêntica:essaquefazdepender,desdeaorígem,osujeitodosignificante.19686
Sem subverter a concepção que temos do que um sujeito é –o que
implica,nemmaisnemmenos,emrompercomaontologiaquesustentanosso
pensamentocomum,equenosvemdesdeAristóteles,viaKant–,nãopodemos
refazerestequestionamentodeFreud7.
5RSI6DeumOutroaooutro.7cf."Subversãodosujeito":"Danossaposiçãodesujeitosomossempreresponsáveis".
6
O fimdomeu ensino, pois bem, seria fazer psicanalistas à altura dessa funçãoquesechamasujeito.8
Ele não ensina uma teoria, mas um método de fazer analistas. E não
feitos de qualquer modo, já que se trata de analistas que façam jús ao
significante.Essafunçãoquesechama"sujeito"éprecisamenteoqueseobtêm
depois de uma reviravolta das relações de cada analista com o saber. Para
tanto,precisamosdeumateoriadalinguagemtotalmentenova.Ametamorfose
pessoal, que qualquer análise bem levada produz, não basta: espera-se uma
modificaçãonaconcepçãodoquesaberesentidosão,paraqueateorianãoseja
letra morta. Esta seria a reforma do entendimento necessária (e prévia) à
formaçãodeumpsicanalistapropriamentedito.Acontecequeosinteressados
lutamcontra...Eumeesforceiemdemonstrarcomoseespecificao inconsciente freudiano.Aospoucos,osuniversitáriostinhamconseguidodigeriroqueFreud,poroutraparte,commuita habilidade, tinha se esforçado em tornar-lhes comestível, digerível.Freudmesmoseprestouaissoaoquererconvencer.Era a política freudiana: que a sua disciplina fosse reconhecida pela
ciênciaepelasociedadebempensantedeViena,primeiroepelomundo,depois.
Freudsequeriadigestivo,Lacan,indigesto.Omaislouco,veremos,équeduas
políticas opostas tiveram o mesmo desfecho, porque Lacan terminou tão
digerido(ecagado)quantoFreudofoi.Mas,continuemos:O sentido do retorno a Freud émostraroquehádedecisivonoqueFreuddescobriu,equefaziaentrarnojogodeummodocompletamenteinesperado,jáqueeraaprimeiravezqueseviasurgiralgoquenãotinhaestritamentenadaavercomoquealguémtivesseditoantes.OinconscientedeFreudéaincidênciadealgocompletamentenovo.19749
Dávergonhaterquedizê-lo,masseforalgo"completamentenovo",não
podeseromesmodesempreenãodeveriasertratadocomotal.Pareceóbvio,
819679LacanJ.Otriunfodareligião.1974
7
maspretendodemonstrarcomo,onossodesentendimentocomLacancomeça
quandoforçamosoqueeledizparacabernosnossospreconceitosteóricos.E
fazemosissoaopontodeeliminartudoque,notextodele,nãoencaixanoquejá
entendiamosouesperávamosquedisesse.Terminamosentendendoocontrário
doqueelenospropõe,porquefizemosentrar,semsaber,amaioriadasvezes,
osconceitosqueelesubvertenascategoriasusuais.Masissojáaconteciaentre
seudiscípulosdiretos,efoioqueolevouadiagnosticarumaresistênciadelesà
suaprópria formação.Aquise tratadapalavra"inconsciente":enganadorana
medida em que carrega consigo toda a concepção ontológica da qual Lacan
tentalivrarapsicanálise.Seformosmantê-la,precisamosimplodirseusentido
comum.10É espantoso que ninguém tenha comentado jamais o modo como
atormentaaolongode20anosesteconceito.Meu desígnio énunca repetir a mesma coisa,não dizer o que já é sensocomum.196711
Aquiháduasadvertências,uma,comoacabeidedizer,parasuspendero
que acreditamos entender, quando nos fala de coisas como "sujeito", "real",
"corpo" ou "gozo" (para citar as pior entendidas). A outra, para lembrarmos
que,quando ficamos convictosde termosencontradoadefinição canônicade
tal conceito de Lacan, seria bom ter emmente que, a próxima volta daquele
conceitonodiscursodeletalvezqueiradizeralgocompletamentediferente.
Exemplos?Em1964,oVorstellungsrepräsentanzdeFreuderaoS2;em
1968, o S1. Em 1958, a enunciação é o andar de cima do grafo; em 1969, o
andardebaixo.Ademandaeraimagináriaeconsciente,em1955;em1960era
simbólica e inconsciente. Durante 16 anos o Outro, com "o" maiúsculo,
designava o simbólico e, com "o" minúsculo, o imaginário, no seminário de
10Cf.Osquatroconceitos:"oestatutodoicsééticoenãoôntico"e"aanalistafazparte
doconceitodeinconsciente."11LacanJ.Meuensino,Rio:Zahar,2005,p.14.
8
1968,issoseinverte.Isto,semcontarasmileumareformulaçõesdeconceitos
como"real"ou"sujeito".Assimquepercebiaterviradounanimidade,tercaído
noconsenso,nolugarcomum–mesmoesobretudonolugarcomumlacaniano–,
mudava. E tratava de induzir nos discípulos, pacientes e leitores a mesma
disposição.Nãoconseguiu.Esabianãoterconseguido,comoveremos.
Há, contudo, algo mais aqui, o próprio "inconsciente freudiano", bem
entendido, seria algo que se produz como uma novidade permanente. Os
discursosdosnossos analisantesdeveriamser tratados comocompletamente
originais. Cairmos na mesmice já seria estarmos às voltas com a inércia da
repetiçãoecomuminconscientefechado.Houveumaépoca,nadécadade80,
emque foi teorizado isto comoa existênciadedois inconscientes:um lúdico,
inconsequenteefrívolo,exemplificadopelossonhos,oschisteseosatosfalhos
e outro sério, grave e pesado, que seria o inconsciente do sintoma,
perfeitamente inercial e morto. Este último foi o núcleo do que depois foi
teorizadocomo"gozo".Conceitoque,domodocomoestáhoje,jánãotemnada
delacaniano.Napróximaaulavoufundamentarestaafirmaçãoextrema.
DuMoreira,queémúsico,mefezobservarqueestalógicanãoselimitaà
psicanálise.Emmúsicatemosamesmaoposição.Maisespecificamente,emjazz,
ao menos seria a opinião de Pat Metheny na década de 90, criticando os
músicosfascinadosemreproduziradinfinitumoestiloretrôdosanos60ou70:Devodizer queaqualidadede ser diferente valemuitomais paramimdoqueparamuitosoutros.Quandoescutoalguémquesoacomooutrapessoa,meioquedesligo. Paramim a individualidade ou aomenos, a tentativa de vir com algooriginalequenãoestejareferenciadoaistoouaquilo,émuitoimportante.É aessênciamesmadoquealinguagemdojazzimplicaearesponsabilidadedoartista.
E era também a opinião de Wim Wenders, quando veio falar em São
Paulo12, de que os cineastas que se orgulhavam de poder fazer um filme
12Masp,10/10/10.
9
"padrãoHollywood",nãotinhamparaelenenhuminteresse.Elesósevoltava
paraumdiretorquefaziaalgooriginal,mesmoquefossebemsimples.
OestilodeLacanéopsicanalista
Numdosvolumesdoseucursodeantifilosofia13,AlainBadiounotaalgo
sobreosantifilósofos(Lacanseriaoúltimodeles,nãooúnico),quemechamou
poderosamenteaatenção,porcoincidircomumacaraterísticaminha.Eupenso
contra.Penso"contra",nomesmosentidoemquesedizdealguémqueseapoia
contra uma parede. E parece que um antifilósofo também é um pensador
adversário. Cada um deles se opunha a algo ou a alguém específico. Pascal
argumentavacontraoslibertinos.RousseausedirigeaosmalvadosIluministas
–aos homens sem coração, como Voltaire ouHume. JáNietzsche falava para
homens livres, aqueles que não temumamoral de escravos. Kierkegaard, do
seulado,pensapara,porecontraamulher.EohomemaquemLacansedirige
éopsicanalista.Lacanfalaepensa"contra"opsicanalista.
O espantoso é, observa Badiou, que nenhum adversário da psicanálise
teriaacoragemdedizermetadedoqueLacanproferecontraosanalistas.Eo
dizemtodosostonsdodiapasão.Quesãohomensperdidos,aosquaiseledeve
reconduzirparaocaminhocerto,comoumpastor.Quenãosãoconfiáveis.Que
viram as costas ao seu próprio ato, do qual tem horror. Que ignoram ou
desprezam aquilo de que depende a sua própria formação (se refere à
matemáticaeàlógica).Quenãoentenderamnadadoqueelevemlhesdizendo
há20anos.Quefalaparaasparedes.Queestácompletamentesó,clamandono
deserto.E,lastbutnotleast,queestáalipara...envergonhá-los!
Sobreestavergonhafalaremosnopróximosábado,porquedizrespeitoà
ontologia: é vergonhoso que os psicanalistas formados por ele continuem 13L'antiphilosophie.Paris:Fayard,2013.
10
sustentando a ontologia de sempre. É o que lhe faz dizer que os analistas
continuamadormir.Aontologiaseriaosonhodoqualnãoconseguiufazê-los
acordar.Preferemapílulaazulàvermelha14.
Issotudoparadizerquese"oestiloéohomemaquemnosdirigimos[a
quil'ons'adresse]"15,nãorestadúvidaque,nocasodeLacan,éopsicanalista.
Sempre.Acrescento que esses analistas que o são apenas por serem objeto -objeto doanalisante-,acontecedeeumedirigiraeles[il arriveque jem'adresseàeux],nãoqueeulhesfale,masquefalodeles16:nãofossemaisqueparaperturbá-los.17eufalavaparapessoasaquemaquilointeressavadiretamente,pessoasprecisasque se chamam psicanalistas. Aquilo dizia respeito à experiência mais diretadeles, mais cotidiana,mais urgente. Era expressamente feito para eles,nuncaforafeitoparaninguémmais"18
A exasperação frente ao desejo de continuar adormecido está
provavelmente detrás das invectivasmenos contra os analistas que contra o
analista. Já esta declaração, proferida no final da vida, transparece apenas
decepção:Não espero nada das pessoas e alguma coisa do funcionamento. Portanto émister inovarporqueestaEscola,euaerreiaoter fracassado emproduzirapartirdelaanalistasqueestivessemàaltura.19
Ofuncionamento,diferentedeFreud,nãoéodispositivomasomatema,
falaremosdissoaseguir.Jáoquedizdoseuprópriofracassonãotemamenor
ambigüidade: a Escola Freudiana de Paris fracassou em fazer psicanalistas
dignosdonome.Nãoépouco. 14Cf.TheMatrix.Outravergonhaéafaltadecoragem(ie.oato)15LacanJ.Escritos."Aberturadestacoletânea"16Odiscursodoanalista,genitivoobjetivo.17Television,Paris:Seuil,1974.p.1018LacanJ.Meuensino,op.cit.p.64.1915dejaneirode1980
11
aresistênciadoanalista
Ofracassoearesistênciaestãointimamenteligados.Ligadosapontode
poderem ser inscritos na superficie única de uma contrabanda. Começamos
falando de Fracasso e terminamos falando de resistência, sem mudar de
assunto.
OprimeiríssimoLacan(1951)diz20que"averdade[queFreudassumiua
responsabilidade de nos fazer ouvir] inspira um temor crescente nos
praticantesqueperpetuamsuatécnica."Assim é que os vemos [...] refugiar-se sob as asas de um psicologismo que,coisificando o ser humano, chegaria a malefícios perante os quais os docientificismofísicojanãopassariamdeninharias.21
Existemdoisobstáculoscomosquaisvemchocar-seapsicanálise,ambos
reconhecidos por Freud: um, inerente aos tratamentos mesmos e outro,
relativo à aceitação da "nova ciência" pela sociedade. Este último, pensava
Freud,devia-seaosopapoqueadescobertadoinconscienteteriaimpingidona
face da humanidade. Diagnóstico com o qual Lacan não concorda, como
veremos. O outro, cujo nome genêrico é "resistência", foi tematizado por
primeira vez no "caso Dora", mediante o conceito de transferência. Lacan
propõedefiniratransferêncianegativanopaciente"comosendoumaoperação
doanalistaquea interpreta."22E concluiafirmandoquea "transferência tem
sempre omesmo sentido, de indicar osmomentos de errância e também de
orientação do analista23, o mesmo valor de nos convocar à ordem de nosso
20Escritosp.216.21idemibid.22ibid.p.217.23Noveanosmaistardechamaráistodeacting-out(cf.seminárioX)
12
papel:umnão-agirpositivo,comvistasàortodramatizaçãodasubjetividadedo
paciente."24RelembroaosleitoresdeLacanestasvelhariasporqueédaquique
seoriginaanoçãodequenãoháoutraresistênciaempsicanálise,anãoserado
analista.
Esta fórmula, comoquase todas,virouumclichêrepetidoatéanausea,
cujosentidoinicialseperdeu,numtãovagoquantopersistentesentimentode
culpabilidade, que toma os analistas lacanianos da certeza de que eles são
responsáveis por tudo de ruim que acontece durante os tratamentos –por
incompetência,evidentemente.Estes impassesdapráticaclínicaestão ligados
ao"temorcrescentenospraticantes"frenteàverdadequeseuatodesencadeia.
Leia-se:"nãoqueremsabernadadisso".Depoisdiráqueoanalistatemhorror
doseuato25.
Quanto ao outro obstâculo, dizia que Lacan põe em dúvida a ideia de
Freud de que as resistências à psicanálise procedem do fato de que ela
atentariacontraonarcisismodaspessoas.Oquenãopassa,seria"asubversão
[que a psicanálise produz] na estrutura do saber." 26 Por isso chama o
inconscientede "saber insabido" (savoir insu), um saber quenão se sabe a si
próprio –edoqual todospreferemsedesincumbir.Aqualidade acéfaladeste
saber (não seria o saber de alguém, já que é o saber sempre do Outro) lhe
parece semelhante à das matemáticas. E por isso alinha a resistência dos
analistas contra seu ensino com a resistência de todo mundo a aprender
matemática.Oessencialdeambasdisciplinasestariadoladodaescritaformale
lógica,queencadeialetrascomrigor,masquesãorefractáriasatodaformade
intuição. Há um modo de funcionar do significante do qual não queremos
inteirar-nosequeserevelanasnossasdificuldadesaaprenderciênciasexatas,
24ibid. p. 225. "a ortodramatização da subjetividade do paciente"... em português: a
postaematocorretadasubjetividadedopaciente.251975.26LacanJ.1972.Jeparleauxmurs.
13
etambémnosimpedeoacessoaodiscursopsicanalítico–lacanianstyle:aopé
da letra e sem concessões para o saber-sabido. Em suma, Freud teria dado
ensejoaumarevoluçãonaepistemologia,mastodos lheviraramascostas.Não
me parece à toa que diga isto na mesma conferência em que declara estar
falandoparaasparedes.
Preparando esta aula me lembrei de algo que li em 1973 e do qual
guardeiapenasumapequenafrase–porquedorestonãoentendinada.Retirei
essa frase de um livro que é hoje uma raridade, a tese de doutorado em
psicologiadeAnikaRifflet-Lemaire,de1969.Ointeressedolivronãosedeveao
conteúdo,foramescritascoisasmuitomelhoresqueesta,masaofatodesera
primeira teseuniversitáriadedicadaàobradeLacan,edeeste ter-lheescrito
um prólogo. A frase que lembrei está nomencionado prólogo –um pretexto,
aliás, para discorrer sobre o fracasso da psicanálise frente à religião, a
universidade e a psicologia. Está no prólogo, digo, mas fora dele, porque se
trata da epígrafe, que Lacan inventou e colocou ali para indicar como queria
quefosseentendidooquesegue.Estaepígrafe,comoqueporcoincidência,foi
excluídadaversãooficialestabelecida,republicadapelaSeuil,naFrançaepela
Zahar,noBrasil,sobonomeOutrosEscritos.Dizoseguinte:Comooambar,quepreservaamoscaparanadasaberdoseuvoo
Sefosseumhaikuoescreveriamosassim:oambarpreservaamoscaparanadasaberdoseuvoo
Umrápidocomentário.Depoisiremosmaisdevagar.
Antes de mais nada, sabem o que é o ambar? É uma resina vegetal
fossilizada, acinzentada ou amarelada. Assistiram Jurassic Park? Trata da
clonagemdeumdinossauro,apartirdosangueabsorvidoporumpernilongo
14
jurássico que o picou, conservado intato no interior de uma substância
transparenteeduracomopedra.Issoéoambar.Jámoscaémosca.
Como uma pedra não sabe nem pode querer saber coisa alguma,
devemos concluir que se trata de uma metáfora. O que, por sinal, fica
confirmado pelo "como" que Lacan pós na frente: "como o ambar". O ambar,
queprendee fixao inseto, impossibilitadode semexer, substitui aodiscurso
universitário e, veremos mais tarde, aos próprios psicanalistas. A mosca, ao
trabalhovivoecambiantedopsicanalista,transformadoemobraacabadapela
teseuniversitária.Cristalizada,amoscaestarásempreali,poréminerte,como
nummuseu.Deixadeescapolir,dedesenhararabescosnoarejánãoincomoda
ninguémcomoRaulSeixasqueriae,aoparecer,Lacantambém.
Então,seoinconsciente,eodiscursodeLacan,podemserconotadospor
aquelamoscaquepousaapenasuminstanteeédifícildepegar,issosedevea
que estruturalmente resiste a ser captado pelo eu. Todos temos com o
inconscientefreudianoumarelaçãode"nãoquerosabernadad'isso(quepensa
emmimsemmim)".Oquemelevaaoúltimocomentáriosobreametáforado
ambar,quenadaquersaberdovoodamosca.Oqueestádenotadoaliéquea
postura escolar, docente e dicente, frente ao inconsciente é a de "não querer
nemsaber".Ora,eospsicanalistas,seráqueelesqueremsaber?Esperar-se-ia
quesim.Porém,Lacanafirmaquenão.Elestampoucoqueremsaber...
Vejamosoquedizaosromanosnaconferênciade1967,"Apsicanálise,
razãodeumfracasso":"Funçãoécampodapalavraeda linguagem", tais foramos termos: funçãodapalavra,campodalinguagem.Tratava-sedeinterrogarapráticaerenovaroestatutodoinconsciente.Como este sucesso [do livro Escritos] me vale a atenção da assembleiapresente, isso torna paradoxal que me apresente frente a ela a título defracasso.
15
Digamos que me consagrei à reforma do entendimento, que impõe umatarefaemrelaçãoàqualoatoécomprometeroutrosnela.Engajar os discípulos na reforma do entendimento –veremos a que se
refereessaexpressão–seriaumato.
Por pouco que esmoreça o ato, é o analista quem vira o verdadeiropsicanalisado, conforme se dará conta disso tão seguramente quanto maispertoseencontrardeestaràalturadasuatarefa.
Vamosanalisarcomcuidadoestaúltimafrase,aprimeiravista,bastante
obscura. Primeiro, a "reforma do entendimento" a que Lacan diz ter se
consagrado é seu ensino, aquele que visava "interrogar a prática e renovar o
estatutodoinconsciente".Lembremque,nestaépoca,Lacantinhaasuaprópria
Escolaeacabaradeproporumanovamodalidadedeseleçãodospsicanalistas,
denominada "o passe", muito resistida pelos membros. Mas, por que chama
assimaseuensino?
O "Tratado da reforma do entendimento e da melhor via a seguir para
chegaraoverdadeiroconhecimentodascoisas",éocompridotítulodolivroque
escreveu Spinoza em 1661. Era uma introdução aométodo, oumelhor, uma
"propedeutica", ou seja, o conjunto de conhecimentos necessários para
preparar o estudo de uma matéria, ciência ou disciplina27. Mas, para poder
fazer isso,paraencontraro caminhodaspedrasna teoria, énecessárioantes
aprender a pensar direito. Trata-se de aprender a aprender. A reforma do
entendimento é um ato de ensinamento, porque ométodo só se aprende no
exercíciomesmo,juntocomoautor.Esteseriaobomsentidode"exemplo",de
27ApropedeuticapsicanalíticadeLacanémuitodiversadadeFreud.Paraesteeraa
arqueologia,ahistóriadosmitosedasreligiões,afilosofianecessáriasparaaformaçãodeumpsicanalista. Para Lacan, a lógica, a topologia, a lingüística e a antifilosofia (cf. Peut-être aVincennes,1974).
16
"façamcomoeu"oude"sigaolíder".Apropostaseriaverificarnosanalistasa
subversãodosujeito,assimnateoriacomonaclínica.
Entretanto, surpreendentemente, Lacan diz que quando isto falha,
quandoatransmissãofracassa,ficamosàsvoltasnãocomumpsicanalistamas
com um psicanalisado. Ou seja, não basta com ter feito análise para ser um
psicanalista. Ainda que a psicanálise passe de fato através da experiência de
umaanálise, issonãogarantequepassededireito.Deumaanálisenãoresulta
um analista mas um psicanalisado. E ainda que um psicanalisado possa dar
contadoatoanalítico,elenãoéaindaumpsicananalista–digoissonomesmo
sentidoemqueObiWanCanobidiria:"youdidwell,butyou'renotaJediyet"–
"você cumpriu com a missão, mas ainda não é um Jedi". Para chegar a jedi
(Lacannãooschama"jedis"mas"analistasdaEscola"),precisaterpassadopor
aquelareformadoseuespírito.Reformaqueomestreéobrigadoaaceitarque
nãoaconteceu.
Restaperguntar-se, comele, oque seriamesmoumpsicanalista.Est-ce
que il'y a du psychanalyste?, pergunta, com aquele famoso partitivo francês,
impossívelde traduzir.Pergunta seháanalista,nomesmosentidoemque se
inquereseaindahávinhonagarrafaoupãonamesa.Estáclaroquenãoestá
garantidoquehajaanalistapelosimples fatodepessoas teremseanalisadoe
exercitaremométodopsicanalítico.O exercício clínico está longe de garantir
quehaja"aquelacoisa"quesedenomina"analista".Edissonãosededuzquese
esteja afirmando que os praticantes sejam ruins, ou que lhes falte análise ou
supervisão, ou qualquer coisa do gênero. Apenas quer dizer que conseguem
realizarumatodoqualnãofazemamenor ideiadecomoopera.Conduzema
experiência analítica perfeitamente, os pacientes se curam, falam em
congressos,participamdeinstituições,masnãosabemaonderadicaaeficácia
dasuaação.Nessesentido,nãohaveriapsicanalista"àalturadasuafunção",já
queestafunçãoseproduzesetransmiteatravésdeumateoriaconsistente,não
17
pelapráticaintuitiva.AtransmissãopelamerapráticafoiopontoaondeFreud
teriadeixadoospsicanalistasofalecer.Lacanqueriairalém.
Em suma, estou reformulando, mediante o conceito de resistência do
analista, as duas resistências que Freud definira: contra a descoberta do
inconscienteemgeral,dasociedadeecontraadescobertadoinconscienteem
particular, de cada qual durante as sessões. A segunda seria a resistência
transferencial,motivodassupervisões:aoutrafacedo"nãoquerosabernada
disso". A dupla conceitual "transferência / contratransferência" não fala de
outracoisa,masnãoéumateoriaquepermitaresolverosimpassesclínicos.A
reformulação lacaniana, entretanto, não é recebida facilmente."Os analistas
resistemàquilodequedependeasuaprópriaformação",dizLacanem1969,e
serefereàlógicaeàmatemática,nãoao"complexodeÉdipo".
Aoutraresistência,adasociedadecontraapsicanáliseemgeral,decorre
daanterior:poucossuportamacompletasubversãodanoçãodeconhecimento,
aopontodeaceitardebomgradoaexistênciadeumsaberquedeterminaseus
destinosàsuarevelia.Nãosabemdisso,maspoderiamsaber.Onomedarevista
daEscolaFreudianadeParis,era,precisamente,Scilicet,emlatim,"istoé"(sim,
comoaconcorrentedaVeja)emfrancês:c'est-àdire.Nãoeraumaconstatação
de aonde a Escola tinha chegado,mas um voto de aonde poderia ir: a saber
algumacoisasobreoatoanalítico.Naépoca,Lacanaindatinhaesperançasna
transmissão...
OtextodeRomacontinuaassim:Sigoentãoaregrado jogo, comoFreud fez, enão tenhocomomesurpreenderpelofracassodosmeusesforçosempôrumfimàdetençãodopensamentopsicanalítico.28
28"Apsicanálise,Razãodeumfracasso",op.cit.
18
A regra do jogo a que ele se refere foi apostar todas as fichas ao
dispositivo.Osanalistasfreudianossãocomomaquinistasdeumtrem:podem
conduzir a locomotiva, mas não fazem amenor ideia de como ela está feita.
ObservemqueLacanpensaqueopensamentopsicanalíticoestáparado,comoa
locomotivanaestação...em1967!Areformadoentendimento,destinadaapô-
loemmovimento,fracassou.
Oinconsciente,alémdeserumfatoinéditonahistória,secaracterizapor
ser uma novidade permanente para cada um –a formação do inconsciente é
sempre inesperada. Lacan pretendia reproduzir o efeito surpresa em seu
próprio discurso no seminário. Mas aquela mímica do inconsciente resulta
intragávelparaosanalistasqueoseguem.Suatendênciaédeteromovimento,
batercomomata-moscasefixaramoscalacaniananumpontoqualquerdoseu
ensino.ComLacanparado,fazemsistema,obraedeclaram:"esteéLacan!"Jáo
própriodizquepersevera(daumsemináriodenominado"mais,ainda"),masos
lacanianosparamdesegui-lo.
[...]E toda tentativa de pôr [no pensamento psicanalítico] alguma coerência, eprincipalmentepormimdelevaraliamesmaperguntacomaqualinterrogooatomesmo, determina emalguns, que euacreditei decididos a seguir-me, umaresistênciabastanteesquisita.29
OsdiscípulosmaispróximosnãoqueremsaberdoqueLacan lhes traz.
Insistemempensarcomasvelhascategoriasdesempre.Pensoqueo famoso
"nãocederdodesejo"–do"desejodeanalista"–,seriasimplesmentenãodeixar
apetecacair.Acompanharanovidadepermanente,tantonodiscursodeLacan
como no discurso do analisante. O tédio, aliás, é o que acontece quando o
inconsciente se fecha e não é mais reaberto pelo analista. O tédio é a
subjetivaçãododesconhecimento(méconnaisance)doeu,resultadapaixãode
ignorância e do "não quero saber nada disso". Nesse momento, ninguem
29"Apsicanálise,Razãodeumfracasso",op.cit.
19
aprendenada,nemda teorianemdopróprio inconsciente.Estamosnoreme-
reme. É quando o analista dorme na poltrona. Estagnação das análises, e da
doutrinatambém.
Aquestãoé,oqueprovocaestaresistênciaque faz fracassara reforma
doentendimento?Ospreconceitosteóricosesubjetivosdecadaum.Aéticado
desejo, tematizada em 1960, seria o convite a continuar a insistir na
interrogaçãodosprópriosimpasses,tantonateoriacomonaclínica.Aprendera
aprenderdopróprio"nãoqueronemsaber", comoLacanmesmo fazia. Porque
ele não era uma exceção, sofria da mesma paixão de ignorância de todo o
mundo.Adiferençaéquepretendeavançarporalimesmo:
Medeicontaquemeujeitodeavançareradaordemdeum"nãoquerosabernadadisso".Aqui há um "não quero saber nada disso" pessoal, que diz respeito ao
saberinconscientequemeconcerneedoqualeumeafastodefensivamente,na
medidaemquemeagarroaosentidodaminharepresentação,domeueu.Há
também, como disse, um "não quer saber nada disso" relativo à teoria
necessária para abordar o ato, queme daria acesso ao primeiro. Ambos são
solidáriosporquetemamesmaestrutura.Lacannãofazdiferençaentreume
outro, por isso seu discurso é tão difícil de seguir. Resistimos a ele com a
mesmaresistênciaqueopomosareconhecerossignificantesmestresdanossa
vida.
Há também entre vocês, na grandemassa dos que estão aqui, um "não querosabernadadisso".Mas,aquestãoé:seráomesmo?Vosso"nãoquerosaber"decerto saber que vos é transmitido em retalhos, será igual aomeu? Nãoacredito.Éprecisamenteporsuporemquepartodeumoutrolugarnaquele"nãoquerosabernadadisso",quevocêsseencontramligadosamim.
20
O"saberquevosétransmitidoemretalhos"éodoseminário.Cadaum
dos ouvintes receberá aquilo, ou não, de acordo ao seu próprio tempo para
compreender,depoisdevencerasincertezaseasresistênciacontraeledevidas
aoeu30.Seconseguir.Demodoque,seforocasodequeeusópossoestaraqui,emrelaçãoavocês,naposiçãodeanalisantedomeu "nãoquero sabernadadisso",daquiaquevocêsalcancemomesmolugar,haverámuitochãoapercorrer.31
Ele ensina em posição de "analisante do [seu] não quero saber nada
disso". Os discípulos aprendem, quando aprendem, de modo indireto.
Aprendemdoqueeleseensinaasipróprio,seguindocomabsolutafidelidade
osencadeamentoslógicosdoqueestátentandoelaborar.Earesistênciaqueo
discursodeLacanprovocaseriadamesmacepaqueoinconscientemesmo,já
queemrelaçãoaambossedesencadeianossa"paixãodaignorância".
Por isso dissolvo. [diz o ultimíssimo, "dissolvo a Escola por terfracassadoemfazeranalistasàalturadasuafunção"]Enãoreclamodosditos"membrosdaEscola"–antespelocontrário,lhessougrato,portersidopor eles ensinado, onde eu, da minha parte fracassei, quer dizer, meatrapalhei.32
Vocês vêem, Lacan aprendeu dos discípulos. Foram estes que não
aprenderamnadadele. Istoúltimopodenosservircomo introduçãoa "Lacan
Elucidado".Quandotentoexplicaralgoeumalunonãoentende,assumoque,na
dificuldade emme fazer entender, estão asminhas próprias questões. É isso
que eu aprendo dele. Comentei aquilo em outro lugar, quando fiz notar a
diferençaentreobrasileiríssimo"entendeu?",eo"¿meexplico?",argentino.No
30Dica:omodeloteóricoparaentenderaresistênciaéoartigosobreotempológico.
Algumdiavoufazerumaapresentaçãodisso.311973,Mais,ainda.321980,Dissolução.Ibid.
21
primeiro, o ônus da burrice está no interlocutor; no segundo, no próprio
locutor.Éticasdiferentesdacomunicação.
Mas há algomais. Entre asmil e uma figuras através das quais Lacan
interrogaoanalista,umadelaséAristóteles...Aristóteles extraiu alguma coisa [dos sofistas], que aliás permaneceucompletamentesemefeitosobreaquelesaquemsedirigia.Assimparaelecomoparamim.Com os psicanalistas já bem instalados, o que conto não fedenemcheira.33
Aqui temosalgo interessante.Assimcomooensino filosóficodePlatão
eraoral,odeAristóteleseraescrito.OproblemaéqueosDiálogos,doprimeiro,
se conservaram e os livros do segundo se perderam, quase todos. O que nos
chegou,viaAndrónicodeRodas,sãonotasdealunoseditadas,comoaprimeira
versãodoCursodeSaussure.Só sabemos o que Aristóteles disse pelo que conservaram alguns discípulosdaquela época. Os discípulos repetemo que omestre disse,mas a condição deque omestre saiba o que diz. Porém, quem julga isso senão seus própriosdiscípulos?Portanto,sãoelesquesabem.34
Nãoédifícilimaginarqueaquiomestrefaladasuaprópriasituação.Os
alunosentendemoqueforeéaquiloquepassaaconstarcomooqueomestre
disse.No casodeAristóteles, Lacan imagina, o subversivo enovedosodo seu
ensinoseperdeuesórestouo lugarcomum,obomsenso,queseriaoqueos
alunos captaram do que ele escreveu. Ou seja, ele, como Aristóteles, não
consegue afetar (lembrem do "eu quero envergonhá-los") aqueles a quem se
dirige.AestratégiadeLacanparadiferenciar-sedeAristótelesfoi implodirou
explodir o senso comum; tornar inconsistente o conhecimento estabelecido.
Incluindo-se, insisto, o conhecimento lacaniano estabelecido. Ainda "o ambar
quepreservaamoscaparanadasaberdoseuvoo". Isso tornaabsolutamente
33Meuensino,op.cit.34"OsonhodeAristóteles",1978,ConferêncianaUnesco.
22
paradoxaloprogramadeestabelecimentodasuaobraoralquedeuno"Lacan
Elucidado".
Então,oproblemaera:oqueapsicanáliseensinaecomoensiná-lo.Como
aprenderdopróprio inconscienteecomotransmitiroque foiaprendido?Em
algumlugar,creioquenaapresentaçãodosEscritos,terminadizendoqueoque
setransmite,emúltimainstância,éumestilo.Bem,umestilohádeseromodo
particulardefracassardecadaum.
Foiconvencionadoemchamarsucessoàalgaravia,istoéàquiloquereuneumamultidão. Foi convencionado isso pelo público. Mas para nós, analistas, talsucesso não tem nada a ver com o que nos interessa; esse sucesso é algototalmente diferente do que seria o nosso, quero dizer o êxito ao que nosreferimos quando falamos daquilo que estamos destinados a registrar, ouseja,o fracasso.O fracasso é o que opomos ao sucesso. Porém, o sucesso queassim supomos –estamos obrigados a supô-lo, já queo que nos caracterizacostumasero fracasso:esobreissosabemosbastante–,essesucesso,pois,queénossopolosupostoenquantopartimosdofracasso,essesucessoñaotemnadaavercomnenhumêxito,comnenhumaconsagraçãodotipodeumaaglomeraçãocomoesta. Osucessoparanósselimitaaoquechamareioresultado.
Acabeide leraaberturadoCongressodaEscolaFreudianadeParis,em
Roma, em 31 de outubro de 1974. Notem duas coisas, uma, a popularidade
escondeeobstaculizaoverdadeiroobjetivodatarefadeumanalistaqueseria
"registrarofracasso".Apsicanálisepartiriadofracasso,diria,dosintomacomo
fracasso,enoregistrodissoestariaoêxitopossíveldeumaanálise.Elechama
isso de "resultado". Em segundo lugar, quando exemplifica o que quer dizer
comresultado,serefereatextos,àproduçãoteóricaquerespondeaseuensino.
"Resultadospositivoséquandoalgosesustenta,comoesseescritoqueacabei
de citar.35" Em momento algum se ocupa de resultados terapêuticos, mas
35Trata-sedeumdosraroselogiosfeitosaumtrabalhodealguémquenemsequeré
seu discípulo (mesmo caso do elogio feito ao livro de Nancy e Lacoue-Labarthe no anoanterior)
23
podemosassumirque seumaanálise se sustenta, o fazpela sua lógica, como
um texto. Digo isto para aqueles que acham que a cura não interessa aos
lacanianos.
fracassodatransmissão/transmissãodofracasso
Neste ponto se perfila uma diferença fundamental entre o fracasso da
transmissão e a transmissão do fracasso. Não digo "a transmissão de um
fracasso",nocaso,odopróprioLacan,senãodofracassodapsicanálisemesma.
Seriaalgoassimcomoatransmissãodoimpossíveldetransmitir,menoscomo
uminsucessopessoalquecomoumaimpossibilidadeinerenteàtransmissãoe
àformaçãomesmasdopsicanalistaenquantotal.
Haveria algo da psicanálisemesma que fracassa, que não poderia não
fracassar.Algonodiscursoanalíticonãopassa,etalveznuncachegueapassar.
Lembremqueéoúnicoquenãoseriadasignificação,emqueS1nãoalcançaS2.
Mas,mesmodentrodocampodasignificação,seriabomlembrarqueateoria
da linguagem de Lacan toma o próprio errar o referente dos significantes, a
falhamesmaemcapturarseuobjeto,comooobjetodalinguagem.Querodizer
que o fracasso (échec) como tal seria o objeto da linguagem36. E o fracasso
mesmotambémseriaoobjetodapsicanálise.
Meperguntoseconstatarestaimpossibilidadeinerenteanossodiscurso
não forçou Lacan a fazer a mesma escolha de Freud: alguma confiança ao
36BorgesJ.L.O.C.vol.2."Elotrotigre".Borgespensanumtigre.Sedácontaqueeste
tigrepensadoestáfeitoapenasdepalavraseprocuraumterceiro,quefosseoverdadeiro,odecarneeosso.Ysedácontaquesóencontraráotigrecomoconceito."Masalgo/Meimpõeestaaventuraindefinida,/Insensataeantiga,epersevero/Emprocurarpelotempodatarde/Ooutrotigre,oquenãoestánoverso."
24
funcionamento,nenhumaaospsicanalistas37.Adiferençaéque,aliondeFreud
entendia como "funcionamento" o dispositivo: as regras técnicas e
deontológicasquesedevemseguir,depreferênciasempensar,Lacanentendeo
matema, a via do matema, o que é inteiramente diferente, porque Einstein
podiaacreditaremDeustudoqueelequisesse,masamatemáticadateoriada
relatividade tem uma lógica interna própria que não cessa de provar a sua
eficácia,comoapossibilidadedamediçãodasondasgravitacionaisdemonstra
oitenta anos depois. Em todo caso, acho que as esperanças no matema são
menos as esperanças em encontrar fórmulas matemáticas psicanalíticas
(porquesefosseissoLacanseriamaisoumenoscomoFreud,queesperavada
biologia a confirmação futura da existência da pulsão; ele as esperaria da
formalização), menos isso, digo, que um rigor formal no pensamento dos
discípulos.
Paramim, o realmente espantoso é que este diagnóstico do estado da
arte, feito em 1967, tenha sido lido e ignorado por todas as gerações de
lacanianosatéhoje.
Aconferênciaromanaquevenhocitandoterminaassim:Quandoapsicanálise tenha rendidoas suasarmas frenteaosbecos sem saída,cadavezmais frequentes,danossacivilização, serãoretomadas,porquem?,asindicaçõesdosmeusEscritos.
Em suma, a psicanálise terá claudicado e seus Escritos, caído no
esquecimento. Sete anos depois, dirá que a religião triunfará e a psicanálise
fracassará,seráumsintomasocialsuperado.Lembro,aindaumavez,queeste
pessimismo aboluto quanto ao futuro da psicanálise e esta decepção no que
37Lição de 15 de janeiro de 1980: je n'attend rien des personnes et quelquechose du
fonctionnement.Doncil fautbienquej'innovepuisquecetteécolejel'ai loupéd'avoirechouéàproduiredesanalystesd'icellequisoientàlahauter.
25
tange aos psicanalistas coincide com o topo do seu sucesso pessoal,
institucional e mediático. Lacan era um superstar em 1967. Dois anos antes,
numaintervençãonocongressodasuaEscolaemLaGrandeMotte, tinhadito
paraseusformandos:Por exemplo,eu fracassei poucomais oumenosem tudo o que podia esperarobterdeumarevigorizaçãodapsicanálisefrancesa38.
E,bempertodofim,comoitentaanosenenhumarazãoparaapostarno
futuro,dirá:Falosemamenoresperançademefazerouvir,especialmente.(198039)
oexemplar(oinimitável)
Relendo a terceira conferência de Roma, encontrei uma exortação
dirigidaaoauditório francoitalianoque resume, aomesmo tempo,oestilode
Lacan e sua postura ética a ser transmitida aos analistas. Me refiro ao
impagável:Façamcomoeu,nãomeimitem!
197440
Aexterioridadedoanalistaemrelaçãoaodiscursodoseuanalisante,que
seriaprópriadequalqueranálise–nomínimoporqueelenão fechaosentido
queodiscursodopacientesugeria–,aparecereproduzidanasuaestratégiade
ensino,esetraduz,naprática,pelasuamarginalidadeeexclusãopermanentes
de qualquer classe conceitual, mesmo e sobretudo as que elemesmo criava.
Essaseriaaparte"façamcomoeu".
381965.39"Dissolução"40LacanJ."Latroisième"inAutresEcrits.Paris:Seuil,2014.
26
Porém, esperava-se que cada um fizesse isso a partir da sua própria
relaçãoao inconsciente, istoé, conformeseumodoparticular.Ouseja,devem
inventar-se um estilo particular. Esta seria a parte: "não me imitem." A
mudançaperpétua,oineditismosemfim,seriaseumodo,talvez,denãoceder
jamais em fazer com que o leitor fosse obrigado a ler seu texto como um
psicanalistadevelerodiscursodoseuanalisante.Tudoapontanessadireção:
pôr a advertência na entrada dos Escritos de que eles não são decifráveis, a
menosqueoleitorponhaalgodesinaleitura;abrircomosemináriosobre"A
Carta Roubada", fora da ordem cronológica, a coletânea de textos, com a
indicacãoexpressadequetudooqueseguedeveserlidocomesteensaiocomo
chavedeleitura:estaéumadicapreciosadeleitura:tudoestásemprenacara,
nãohánadaoculto.Sevocêsnãoenxergaméporqueprocuramoutracoisa41.
Nãoexagero,percebamaestratégia,parapodermosdeduzirapolítica:algunsqueestavam[nomeuseminário]desdeoinício,[testemunharãoque]nãohouveumúnicodessescursosquefosserepetido.Ou,"[aosoutros,quenãomeacompanharamdurantetodosestesanos]estáforadequestãodar-lhesinclusiveumaideiadaquiloqueensino,seoqueacabodedizeréverdade,asaber,quenuncamerepeti.
Aquinãosetratadequererseroriginalaqualquerpreço,masdeseguiro
movimento mesmo do que pretende mostrar, enquanto se esforça por
demonstrá-lo,asaber,oinconsciente.Querodizer,ademonstraçãopretendeser
more geometrico, formalizada, lógica, precisa, mas amostração só pode ser
paradoxal e em constante ruptura, comoo inconscientemesmo, que, embora
sigasuasprópriasrazões,revela-secriandocaosnarepresentaçãoorganizada
quetemosdenósmesmos.Nessesentido,oestilosuigenerisalusivo,equívoco,
41A propósito de "A carta roubada": vocês seriam como o rei, como a polícia e
finalmente,comoopróprioministro.EDupin,queseriaopróprioLacan,nãocainessaporquesaidocircuito,devolvendoacartaaquemdedireitoerecebendoporissoseushonorários.
27
barroco, paradoxal seria um modo de ensinar mediante uma estratégica
"imitaçãodoinconsciente"–assimcomosedizdavidadealguémquefoiuma
"imitaçãodeCristo".
Muitobem,pelosresultados,podemosconcluirqueestaestratégiaerrou
a política de fio a pavio, já que deu na constituição de um idioma chamado
lacanêseumatransmissãopífiadaclínica,apoiadanaimitaçãodasanedotasdo
que dizem que Ele fazia com seus pacientes (muitos deles tornados
"apóstolos").Umamigodeuummurronoseuanalista,quandoestelheenfioua
mão no bolso, para tirar dele o dinheiro com o qual devia pagar a sessão. A
respostaescandalizadadoterapeutaagredidofoi:"masLacanfaziaassim!"Ou
seja,ofrutodofamosoensinamentopeloexemploterminousendoummodode
pareceranalista baseadonapapagaiada, noqualpassouaparte "façamcomo
eu" e foi esquecida a parte "não me imitem". Se do lado freudiano restou o
"froidexplica",doladolacanianosobrouo"lacanfazia".Istoreflete,aliás,osdois
impassesemespelhodofreudismoedolacanismocomo"linhas"psicanalíticas.
Se,paraofreudismo,asregrastécnicassãosacrosantas,aprendidasnaanálise,
nãopornadadenominadadidática,enateoriaqualquerumpodeopinaroque
bem entender, que será publicado no Psychoanalytic Quarterly; para o
lacanismo, a teoria é sagrada e intocável, visto que se origina na palavra
revelada,mas,napráticaanythinggoes,valetudo,jáqueoanalistaseautoriza
porsimesmo(comoensinaestamesma"palavrarevelada")...
Emtodocaso,mancadaounão,qualseriaoembasamentoteóricodetal
estratégia?Sabemosquearelaçãodecadanovosignificantecomoconjuntode
todos os outros é semprede exterioridade, devido a queum significante não
podeaomesmotempopertenceraumaclasseenomeá-la.SuspeitoqueLacan
teria tentado fazer com que sempre a sua enunciação estivesse defasada em
28
relaçãoaoconjuntodosseusenunciadosteóricos.Nuncaseriapossívelpinçar
Lacanàclassefechadadoqueeledisseontem.Aideiaeradequetantoatrama
dos seus conceitos como seu modo de entramá-los não pudessem ser
encerrados em uma totalidade harmônica, e apresentados como doutrina ao
modouniversitário.Estaseriaalógicadaquelainsistênciaemnãorepetir-see
dizersemprealgodiferente:nãoeraparaestarnamoda,masaocontrário,para
sepôrforademodasemcessar.Estarsempremarginalaocorpoteóricodasua
própriadoutrinaterminasendopropostocomoumaética,eseriaamesmaque
cabeaoanalistaenquantoanalistadodiscursodosneuróticos.
Deummodogeral, esteensinoestava feitodeenunciados teóricosque
eramconstantementereconsideradoserefeitos,aopontoqueparapararcom
estaderiva,aortodoxiaestabeleceuqueapenasoúltimoseriaobom.Daínos
dizemqueexisteumprimeiroLacan,superadoporumsegundo,umterceiroe
um "ultimíssimo", que seria oúnico a se considerar.Aultimaversãode cada
conceito é a que vale, as outras estariam caducas. Como alguns aqui sabem,
discordo, penso que cada período leva ao limite um ponto teórico e a
formalização que o sustenta, e o período seguinte se apoia neste ponto de
chegada, que é também um ponto de impasse, para deslocar, subverter ou
recolocar o conceito em uma nova leitura que inclui ao mesmo tempo que
superaaanterior...
Amarginalidadepraticadanateoria,podemosconjecturar,oeratambém
emrelaçãoatodosaquelesqueoseguiameacreditavamnoquedizia.Lacanse
posicionava sempre em exclusão interna tanto em relação à teoria como em
relação à sua Escola e seus discípulos, o que só podia acarretar problemas
institucionais de todo o tipo. No mínimo, pela ciumeira que esse constante
furtar-seprovoca.Sim,estoufalandodaestratégiahistéricadecausarodesejo
do Outro, ou vocês duvidam da histeria de Lacan? Era, em todo caso, uma
29
políticaassumidadeensinar,enãoépornadaqueobservaqueodiscursoda
ciência temquase amesmaestruturaqueodahistérica (adoraria saberqual
seriaadiferença,nuncadescobri).Sempreinsistiuemsituar-se,desdeoinício,
naposiçãodeexceção.Éomais-umeomenos-um.Adotaparasiasfigurasde
ÉdipoemColona,abandonadopor todos,pornãocederummilímetrodoseu
desejo,deAntígona,emparedadavivapelasuairredutíveladesãoaumacausa,
deFiloctetes, traído,roubadodofalo(asuaespada),eabandonadonumailha
desertapeloscompanheiros.
Desde o "fundo sozinho, como sempre estive em relação à causa
psicanalítica", até a dissolução, passando pelo comentário de que Joyce
almejavadar trabalhoaos críticosdurante300anos, emboraelenãoousasse
sonhartãoalto,podemosconjecturarqueLacanquisparasiomesmodestino
deSadeoudeKafka(querodizer,oqueelesmanifestaramquerer,nãooquede
fatotiveram).Queasuaobradesaparecessecomele,vistoquenãotinhamais
como renová-la depois de morrer. Um pouco no espírito de après moi, le
deluge42, talvez.Nesse caso, l'échec,o insucesso, o fiasco, le ratage, a falha,a
mancada, le manque, a falta, a carência, o desencontro, le non rapport, o
insucesso,oesquecimento,l'oubli,assimcomoseumodelotopológico:letrou,o
furoelacoupure,acortadura,tambémaqueda,lachute,seriamossignificantes
doseudesejo.Cabe,portanto,perguntarseLacannãooteriaqueridoassim.Seo
fracasso não faz parte da lógica do seu ensinamento levada até as últimas
consequencias43.
Freudensinavacomoprofessor,precisamenteporquequeriaconvencer.
Aclarezadidáticaeraasuapolíticadetransmissão.Oquefaziacomoanalista,
eraoutracoisaenãocoincidiacomomododeensinarateoriadoquefazia.Já
no caso de Lacan, quando diz ensinar como analisante,haveria que entender 42LuisXV43LacanJ.SeminárioXI:"Nãohácausasenãodoquemanca[cloche]"
30
issoaomenosdetrêsmodosdiferentes:primeiro,ensinaoqueelemesmonão
sabe; segundo, em vez de dizer o que faz, faz o que diz –não se limita a
descreverofuncionamentodoinconsciente,mostracomofuncionadefato(são
os equívocos, os neologismos, os paradoxos, as anfibologias, as frases
indecidíveis, etc.) e, terceiro, impede qualquer fechamento numa totalidade
conceitual.
Aquiestariamimplícitasastrêsposiçõesquemencioneiantesreferentes
à tarefa de analisar-se: a do psicanalista, a do "psicanalisante" (neologismo
lacanianoqueveioparaficar)eadopsicanalisado.Opsicanalistaseriaoagente
da tarefa do seu paciente, que põe seu inconsciente a trabalho. Como este
último não é passivo: ele se analisa com seu analista, assim como se diz de
alguemqueescrevecomumacaneta,Lacandescartaotermo"psicanalisando",
que se refere literalmente a quem sofre passivamente a análise do outro, e
propõedenominarospacientesde "analisantes".Mas, transformaralguémde
pacienteemanalisanteé tarefadeanalista;umanalisantenãovemdado. Jáo
psicanalisadoseriaaquelequedeummodoououtrodeuumfimàsuaanálise.
A vulgata nos fez acreditar que o "psicanalista" é necessariamente um
"psicanalisado", porquea condiçãonecessária (eparaalguns, suficiente)para
seranalistaése ter feitoumaanálise.Muitobem,Lacanachaquenão,eaqui
começam as mais sérias resistências contra o ensino lacaniano. Para ele,
psicanalistaéquemconseguesustentarumdiscursonovo,semprenovo,diga-
se,nomeiodosoutrosdiscursosdasociedade.Odiscursodoanalistaéaquele
que estrategicamente consegue interrogar qualquer outro discurso, sem se
fecharelepróprioemnenhumasignificação (se se fechasse,deixariade sero
discursodopsicanalista).Jáopsicanalisanteseriaaquelequenãocedenoseu
desejo de interpelar a sua própria "paixão de ignorância", seu próprio "não
quero saber nada disso". Que ele consiga sustentar tal desejo graças ao seu
analista,ou,commuitafrequencia,apesardele,nãotiranenhumméritoàtarefa
31
analisante.Jáopsicanalisado,longedesersinônimodepsicanalistaésinônimo
de local de resistência. O psicanalisado esqueceu a subversão da relação ao
saberqueseoperounelegraçasaoatoanalíticoacontecidoquandoseanalisou.
PorissoLacaninventouacategoriade"analistasdaEscola":eramtodososque,
comoele,sedispunhamatirardoesquecimentooatoanalíticoacontecido.
É com esta referência ao que foi esquecido que passamos ao principal
resultadodofracassodeLacanqueéoprograma"LacanElucidado",soboqual
se formou amaioria dos que aqui estão. E aqui proponhoum intervalo, para
quepossamvoltaràtonaprarespirar.
LacanElucidado
Vamosresumiroessencialdopercorridoatéagora.
Em 1967, quando tudo fazia pensar que o lacanismo era um sucesso
mundial, Lacan anuncia seu fracasso em fazer passar a psicanálise para a
geraçãoseguinte.Soacomoumfracassopessoal,um"fracassei".Poroutrolado,
pareceestardiagnosticandoquehá,napsicanálisemesma,algo impossívelde
transmitir. Sugeri que deviamos pensar a diferença entre o fracasso da
transmissãoeatransmissãodofracasso.Nestesegundocaso,oqueestariaem
jogo seria fazer passar o sintoma de cada análise. Mas, ao mesmo tempo, a
psicanálise mesma pode considerar-se um sintoma em relação ao resto da
sociedade,ouseja,algoquefracassa."Eésóatítulodesintomaquesobreviverá
ounão[àreligião]"44OpalpitedeLacanéquenãosobreviverá.
O seu fracasso pessoal e o da psicanálisemesma se confundem. Neste
sentido, estaria repetindo, a seu modo, a falência de Freud, que tampouco
consiguiufazerpassarapsicanáliseparaageraçãoseguinte.Distosededuzque
algonapsicanálisemesmaseriaintransmissível.Oseuexercícioproduziriauma 44Conferênciadeimprensa,1974.
32
resistência impossível de ser reduzida. E temos confirmadas duas das três
impossibilidades de que Freud já falara: analisar e ensinar. A terceira diz
respeitoaoincurável,oquenãopodesereliminadodosintoma.
Comodisse,oimpressionanteéqueestediagnósticodeLacantenhasido
ignoradotantopelosseusdiscípulosdiretos,comopelageraçãoqueseformou
com eles. A partir da terceira geração, aconteceu um fenômeno novo: o
esquecimento daquele fracasso foi ele próprio esquecido. Os analistas
esqueceramquehaviaumfracassoignorado.Eestamosfrenteaumasituação
semelhante à quedescreveuHeidegger em relação àmetafísica ocidental: ela
teriaintegralmentesidoconstituídasobreumesquecimento:odiscursosobreo
ser dos pressocráticos. E o mais grave era que os filósofos nem tão sequer
sabiamquehaviaalgoesquecido.Esqueceramoesquecimento,cujosrastrosele
pretendiaseguir,paralevantarovéusobreoesquecimentooriginário.Tratava-
sedebuscaraverdadedametafísica.Comoapalavragregapara "verdade"é
Aletheia (literalmente: des-esquecer) ela dava nome ao projeto filosófico
heideggeriano.Façonotar, também,queapalavraapokalypsisquerdizerdes-
cobrimento, tirar o véu, e por extensão "revelação". Menciono isso porque a
procura da verdade está em geral associada a esta significação: a verdade é
apocalíptica45. Não tenho certeza de como chamar tal esquecimento de um
esquecimentonocasoquenosocupa,masguardemcomigoahipótesedeque
talvezsetratedeumaoperaçãoderecalque,cujaformaseria"nãoquerosaber
nadadisso".EsteesquecimentodoesquecimentodoensinodeLacanaconteceu
emtrêstempos.
O primeiro tempo, o do esquecimento da essência da psicanálise,
aconteceu quando declara seu fracasso. Naquela época Lacan foi sendo
45AindaThematrix.
33
abandonado pela maioria dos analistas da primeira geração. Com as suas
saídas,eapósasconhecidasfundações,cisõeserefundações,omestrevirouo
gurúdasegundageração,adenão-analistas,issoéimportante.Oabandonodos
clínicos fez com que Lacan se voltasse para os filósofos e os teóricos, com a
esperançadequeoajudassemalevaratermoo"projetomatema":ummodode
transmissão formalizado. Os psicanalistas por direito adquirido tinham-no
decepcionado. "Me recuso a passar a vocês a carta forçada da clínica", dirá
naquelaépocaaumgrupodeestudantesdefilosofia.A"cartaforçada"éacarta
quevocêpegadobaralhoqueomágico teofereceparapegar.Você crêestar
escolhendo livremente, mas na verdade está tomando a carta que o mágico
desejavaentregar-te.Eporqueaclínicaseriauma"cartaforçada"?Porqueos
clínicossesentemdispensadosde teorizara lógicadoque fazemeacreditam
queaclínicaseexplicaasimesma.
Este foi o segundo tempo, oda apostanos leitores, porqueapostarnos
não analistas era apostarnos leitores.Isso foi repetidoquaseno fim, quando
veio pela primeira e única vez a américa latina. Antes de vir para Venezuela
disse, emParis, a títulodedespedida: "vouconhecermeus lacanoamericanos,
aquelesquenuncameviramnemouviramdevivavoz.Ouvidizerque láeles
me lêem. Quero saber o que acontece quando meu corpo não faz obstâculo
àquiloqueensino."Oqueveioaseguirébemconhecidoeconstituioterceiro
tempo,odoesquecimentodoesquecimento.
Tinha começado esta fala apresentando o conceito de desleitura e
sugerindo que os grandes psicanalistas são consistentes desleitores. Quero
terminarcomentandoadesleituramilleriana,quenosconcerne,namedidaem
queéporelaquepassaoensino(doensino)deLacanhoje.OmododeMiller
desler éooposto doqueBloomdenominaapophrades, o retornodosmortos.
Nesteúltimocaso,tudosepassacomoseosegundopoetahouvesse,elemesmo,
34
escrito a obra característica do seu precursor, cuja figura paradigmática é
Pierre Menard, autor del Quijote, de Borges.Miller, ao contrário, não apenas
negaasimesmocomoleitoreasuaobracomoleitura,comotambémpossuio
poderinédito—devidoasuacondiçãojurídicadeexecutortestamentárioede
estabelecedor designado do texto lacaniano—de reescrever o texto mesmo
assinadoJL,apartirdoseupróprioatodeexegeseapagadocomotal.Emoutras
palavras, quem compra a versão Seuilde O Seminárionão está lendo JLmas
JAM, e não sabe. Podem constatar isso a qualquer momento, referindo-se à
única edição dos seminários não adulterada que existe e que está no site
staferla.free.fr,ou,àprimorosaediçãocrítica,aúnicaqueexiste,doseminário,
realizada por Ricardo Rodriguez Ponte, e que está, incompleta porque ele
morreu,infelizmente,emlacanterafreudiana.com.arEstaúltima,emcastelhano.
Emportuguêsnãoexistenadasemelhante,haveriaquefazê-lo.
"LacanElucidado",então,comodevemsaber,éonomedacoletâneade
conferênciasministradasporMillernoBrasilentre1981e1995.Descrevemo
projeto colonialdeclaradode explicarLacanaosbugres.OovodaAssociação
Mundial foi posto por estas bandas, antes de ser chocado em Paris, fato que
encheu de orgulho ao delegado colonial local, me lembro. O fato é que o
sintagma "Lacan Elucidado" virou o nome de um programa. O programa
sistemático de correção do ensino lacaniano para fazer desaparecer a
orientação anti-ontológica e anti-biologicista que o caracteriza. Sobre isso
falaremos longamente semana que vem. Dito programa foi depois batizado
como"OrientaçãoLacaniana",quasetodososeguem.
"LacanElucidado"éummanifestoiluminista.Declaraaadesãoexplícitaà
Aufklärung,àilustração.Entretanto,oqueestáemjogoémenosjogarluzsobre
a obscuridade barroca do estilo do mestre que reescrever-lhe o ensino.
Simplificar,decidiro indecidido(apostandoaquenãoé indecidível),eliminar
35
as ambigüidades, simplificar o discurso com miras a constituir uma Summa
Lacaniana. Esse é o programa milleriano e tudo isso foi feito sob o total
beneplácito de Lacan. Fato comprovado que impõe a pergunta que fiz mais
cedo:"foiissoqueLacanqueria,ousetratoudeumcálculoquedeuerrado?"
Miller não apenas é um leitor fortissimo como também é um autor de
raro talento.Aobramilleriana,assimcomoestásendoconstruída, fundauma
ortodoxia lacaniana e estabelece um Lacan-padrão-mundial, uma Lacanian
StandardEdition. Mas, se JAMé o aufklärer, o "explicador", o exegetamór, é
porqueLacanlhedeuestafunção.Note-sequeseeleprecisaesclareceroqueo
outro queria dizer, isto é sinal de que este último não o diz. E não exagero,
porque aqui está ipsis literis, na primeira página deTélévision, o começo de
tudo.Sãoduasnotinhasdenadapublicadassobotítulode"Advertência",antes
datranscriçãodestaconferênciatelevisadadeLacande1972:
"Pediàquelequevosrespondiaquepeneirasseoqueeuentendiadoqueelemedizia.Oquefoiescolhidoficanasmargensàguisademanuductio."J-AMiller,Natalde1973."Aquelequemeinterrogatambémsabeler-me"JL
Parecepouco,duasnotas,quasenada,mas,naminhaopinião,aquiestá
decididoemseuespíritooprograma"LacanElucidado",eseladoodestinodo
denominado"meuensino",nomeadamente,seufracassoeseuesquecimento.
Aprimeiranotadiz:"[Eu,Miller,]pediàquelequevosrespondia[ouseja,
Lacan] que peneirasse o que eu entendia do que ele me dizia." Trata-se do
seguinte:onormalianoescreveudezperguntasqueopsicanalistarespondeude
improviso frente a uma câmera. Depois da desgravação e transcrição, Miller
mandouaLacananotaçõesdoqueele,Miller, tinhaentendidodaquele jargão
todo,eomestreselecionoualgumasdelas,que foram impressasnasmargens
36
dotextoprincipal,atítulodeexplicação.Atítulodemanuductio,comoescreve
Miller.
E o que é um manuductio? Literalmente: "conduzir-te pela mão", é o
corrimão.Refere-seàmãozinhacomo índiceextendidoaplicadanasmargens
dos textos medievais, para indicar as glosas, as anotações marginais, os
comentáriosexegéticos,quenãodeviamserconfundidoscomoescritooriginal.
Os cartórios ainda as usam para indicar o lugar da firma verdadeira. Por
extensão,éocorrimãoqueteconduzpelamãoparaaverdade.Oindexdaigreja
éummanuductio.Éa indicação(aindaodedoíndice)doquesedeve leredo
quesedeveentenderdaquiloqueseleu,assimcomoaespecificaçãodoquenão
sedeve leredoquenãosedeveentenderdoque foi lido.Eu fizumtrabalho
sobre as exegeses doCânticodosCânticosao longo dos anos que ilustra bem
esteprocedimento.ÉaoperaçãodaInquisição.
Asegundanotinha,publicadaembaixodaprimeira,estáassinadaJLediz,
domodomais singelo: "aquele queme interroga", Miller, no caso, detrás da
câmera fazendoasperguntasemoff queele ia respondendo, "aquelequeme
interroga",então,"tambémsabeler-me".Podemosconsideraraprimeiracomo
umpedidodeautorizaçãoaoOutro,easegunda,comoarespostadesteúltimo
referendando a demanda recebida. As duas notas tem exatamente a mesma
estruturaqueasduasoraçõesdofamosoparadoxo:
"Aoraçãoquesegueéfalsa"
"Aoraçãoqueantecedeéverdadeira"
E aí temos anunciado, com esta mãozinha virtual nas margens desse
textolacaniano,oiníciodoqueseráoprograma"LacanElucidado".Istofoiem
1973.Opassoseguintefoioprogressoquevaidoeletambémsabeler-mea"Tu
37
esoúnicoquesabesler-me",chanceladopeloofício,assinadoemcartório,um
ano mais tarde, nomeando o futuro genro como executor de toda a obra
publicávelsobaassinaturaJL.Emtodocaso,énaquelasduasnotinhasdoano
anteriorqueseconstituialendaeacatástrofedolacanismo.
O que se seguiu foi caracterizado por Jorge Jinkis como "a maior
operaçãoderecalquedahistóriadapsicanálise."Paranãocairnaesparrelada
extrapolação,alaZizek,dosconceitosdonossocampo,haveriaquetratarcom
cuidadoestaideiadeumrecalquedaenunciaçãodeLacan,cujoagenteseriao
discursodeMiller.Comodizia,proponhopensá-lonomesmosentidoemque
Heidegger diagnosticava um esquecimento primeiro, duplicado por um
segundoesquecimentoque apagaos rastrosdo anterior. E se isto épensável
paraametafísicaocidentaldesdePlatão,porquenãooseriaparaapsicanálise
comoumtodo?
Lacan teria tentado recuperar o conceito e a função do significante,
neutralizadopor umahermenêutica do tipo "o charuto é o falo", habitual em
Freudenosfreudianos,semconseguir.Aclínicadainterpretaçãoterialevadoa
melhor sobre a clínicado ato. Este seria oprimeiroesquecimento.O segundo,
estaria na obra de JAM, cujo curso, um verdadeiro campeão de audiência,
representa aquele sucesso mediático qualificado por Lacan de fracasso da
transmissão.Omillerismoéumamonumentalcatedralemobraserigidasobre
asruinasdoprecursor.Eesteseriaosegundoesquecimento,queselaasorteda
enunciaçãodeLacan.
Comodisseantes,concordocomLacanemqueMillerolêcomoninguém.
Éumleitorforte,setemalgum.Porissomesmo,mostraralógicadeseuatode
desleitura é uma tarefa imprescindível e urgente, porque Miller apagou as
pegadas intencionalmente. Se der tempo, vou demonstrar isso na próxima
reunião,lendoumaauladocursodeMillerde2011,denominadaDaontologiaà
38
ôntica, na qual, demodomagistral, acompanha o ensino de Lacanparipassu
paraconcluirocontráriodoqueLacandissenostextosaqueeleserefere.Éum
verdadeiropassedemágicae,comodisse,éumaobraprima.
Miller temumprogramacuidadosamentepensadopara resituardeum
modonaturalistaumlacanismofilosoficamentefenomenológico,perfeitamente
adequadoaosentidocomum.Aliás,épor issoque temtantosucesso.Sucesso
prognosticado por Lacan.Mas, não cabe pensar que ele foi secretamente seu
artífice? Em relação a isso, eu tenho duas hipóteses, ambas improváveis e
perfeitamenteindemonstráveis.Umairianadireçãode"Lacanoquisassim",a
suaformaseria,parafraseandoRobertoCarlos:"jáqueestátudoperdido,que
tudoomaisváproinferno".Ouseja,comodisseantes,talcomoSadeoucomo
Kafkanofinaldesuasvidas,Lacanteriaqueridoqueseulegadofosseapagadoe
extinto, e o agente desta extinção teria sido, sem saber, seu herdeiro. Outra
possibilidadeseriaconsideraroódiodesteúltimopelopesodaherançaqueo
enverga.Quemelhorvingançaque fazer comoodiabo,dequemdizemquea
suamaiorfaçanhafoiconvencertodomundoquenãoexiste?Millernãoexiste
(ele disse isso a Lacan, quando este sugeriu que "Os quatro conceitos",
estabelecido, fosse assinado por ambos: "eu não passo do seu transcritor, a
minhapresençanãocontaparanada...éapenasolugardepassagemdevossa
palavra"...). Tratar-se-ia apenas de Lacan... elucidado. Em outras palavras,
purgado de lacanismo. Não temos café descafeinado, cerveja sem alcool,
cigarros semnicotina e sucos sem açucar? Pois bem,Miller nos entrega uma
psicanáliselacanianadeslacanizada.
Deixo então este assunto em forma de pergunta, e passo a um último
comentário, com o qual termino. Acabei de ler uma biografia de São João da
Cruz, poetamístico espanhol do século xvi, que Lacan cita em "Mais, ainda",
elogiosamente,juntocomMestreErkhart,SorJuanaInésdelacruz(biografada
39
por Octavio Paz) e a famosa Santa Teresa D'avila (em relação à qual devo
observardepassagemque,concluirqueasantagoza,analizandoaestátuade
Bernini,meparecetãoprocedentequantoafirmarquealguéméfelizolhandoa
fotodoperfildeFacebook).
San Juan de la Cruz, então, trata-se de introduzir seus textos entre os
escritosdaquelesmísticosque,segundoLacan,sãooquehádemelhorparase
ler—eacrescentaquehaveriaqueincluirseusprópriosEscritos:emsériecom
asobrasmísticas,atenção,nãocomNielsBohr.Eimediatamentediz:"vocêsvão
pensarque..." Lacandiz:"vocêsvãopensarque..." Eoquêvãopensarvocês?
queacreditoemDeus!Não!,acreditonogozodamulher,noqueeleédemais
(enplus)emrelaçãoaofalo..."etc.Acitaçãoéconhecida,eaprofissãodefédo
velhomestrenogozofemininotambém.
Antesdeprosseguir, valenotarqueos tais escritosmaravilhososde se
ler,segundoLacan,sãoacoisamaisenfadonha,maischataquetenteiencarar
navida.NãotenhocertezaseeleserefereaostratadosemprosadeSãoJoão,
que são comentários explicativos intermináveis, redundantes, dos seus
próprios textos místicos, ou às alegorias poéticas, que seriam os escritos da
experiênciamísticaemsi.Sejacomofor,trata-sedeumaliteraturaentediante
deumgrautalqueperseverarnelaresultaumatodedevoçãouniversitária,ao
menosparamim.
Emtodocaso,nãofalodosescritosmísticospelotemadogozo,quenão
vemaocasoagora,masporqueobiógrafodeSãoJoãoescreveumacoisaque
captouminhaatenção.Dizqueomonge,enquantoescreviaeeralido,foiquase
mandadoparaafogueiraváriasvezescomoherege,peloefeitoperturbadorque
a descrição da experiênciamística fazia nos leitores,mormentemembros da
igreja e alguns doutores leigos, incluindo-se os inquisidores, que queriam
excomungá-lo e, como disse, queimá-lo. E então... foi canonizado! E ali,
finalmenteoneutralizaram,poistodomundopassouarezar-lheenuncamais
40
foi lido.Não sei se Lacan estavaounão apardessesdetalhes,masnaminha
opinião,SãoJoãodaCruzéafiguraquemelhorpoderiarepresentarodestino
da obra escrita de Lacan, que também foi canonizado (esse seria o "Lacan
Elucidado")paraserrezadoenuncamaislido.Nessesentido,diriaqueaaposta
comumquenosuneseriaadecisãodepararderezar-lheevoltaralê-lo.
Obrigado.