o guardador de segredos

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ARRIGUCCI, Davi. O guardador de segredos. SP: Companhia das letras, 2010 Ares de “ironia romântica e melancolia” em Drummond O caso de Drummond, no entanto, é mais complicado. Sua concepção do poético exige a reflexão como mediação necessária para o encontro da poesia. Ora, essa modalidade de pensamento que é a reflexão tem uma origem romântica. Os pré-românticos alemães é que desenvolveram esse tipo de pensamento reflexivo, que nasce como uma fantasia do Eu sobre o Eu, como uma forma de pensar sobre o pensar. É um pensar sem fim que lembra o sonho, mediante o qual fundaram suas principais concepções. O dobrar-se do Eu sobre si mesmo, tal como o leitor se depara na obra drummondiana, parece evocar, então, a meditação romântica centrada em si mesma, no próprio coração onde se acha o inalcançável da reflexão. A fórmula “O meu coração é maior que o mundo” exprime essa tendência do pensamento para o infinito e o que não se pode alcançar, a vastidão impreenchível do coração em que se perde o pensamento. Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode

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Clique para ampliarLeia um trecho em pdfComposto majoritariamente por textos escritos nesta primeira década do século, O guardador de segredos é dividido em três partes. Na primeira, "Poesia e segredo", Arrigucci renova sua aguda capacidade analítica na leitura cerrada de textos poéticos brasileiros. Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade dividem espaço com nomes menos canônicos como Roberto Piva e Sebastião Uchoa Leite. Em seguida, em "Prosa do sertão e da cidade", a ficção de João Guimarães Rosa baliza a rota interpretativa percorrida na abordagem de narradores como Rachel de Queiroz e Dyonelio Machado, assim como Juan Rulfo e Jorge Luis Borges. Na última parte, o autor analisa sua própria trajetória intelectual numa entrevista e em ensaios esclarecedores. Integrante de uma geração privilegiada pelo convívio com mestres como Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, Arrigucci revela nos textos sobre seus colegas e mestres a paixão pela experiência da literatura. Um texto magistral sobre o cinema de Alfred Hitchcock fecha o volume, reafirmando a amplitude da constelação de interesses que caracteriza a carreira intelectual de um dos críticos literários mais destacados do país.

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Page 1: O guardador de segredos

ARRIGUCCI, Davi. O guardador de segredos. SP: Companhia das letras, 2010

Ares de “ironia romântica e melancolia” em Drummond

O caso de Drummond, no entanto, é mais complicado. Sua concepção do poético exige a reflexão como mediação necessária para o encontro da poesia. Ora, essa modalidade de pensamento que é a reflexão tem uma origem romântica. Os pré-românticos alemães é que desenvolveram esse tipo de pensamento reflexivo, que nasce como uma fantasia do Eu sobre o Eu, como uma forma de pensar sobre o pensar. É um pensar sem fim que lembra o sonho, mediante o qual fundaram suas principais concepções. O dobrar-se do Eu sobre si mesmo, tal como o leitor se depara na obra drummondiana, parece evocar, então, a meditação romântica centrada em si mesma, no próprio coração onde se acha o inalcançável da reflexão. A fórmula “O meu coração é maior que o mundo” exprime essa tendência do pensamento para o infinito e o que não se pode alcançar, a vastidão impreenchível do coração em que se perde o pensamento.

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homensque correm atrás de mulheres.A tarde talvez fosse azul,não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada.

O homem atrás do bigodeé sério, simples e forte.Quase não conversa.Tem poucos, raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu não era Deus,se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundose eu me chamasse Raimundo

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seria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade ANDRADE, C. D. Poesia até agora. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1948.

A cada uma das sete estrofes, temos uma face nova e surpreendente, sem que se perceba de imediato a coerência do conjunto p.12

O motivo das pernas contrasta com o tema meditativo do coração, introduzido pelo verso longo da terceira estrofe. Esse coração interrogativo pergunta pelo que não tem resposta. O homem sério que de repente aparece em meio à bagunça dos desejos lembra a cara parada de outro cômico, Buster Keaton. Atrás de tudo, na defensiva, ele é uma espécie de raisonneur da comédia clássica, personagem que se interroga sobre o sentido das coisas e faz as vezes do autor, constituindo um notável contraponto à desabalada corrida atrás das pernas. Ele corresponde ao coração interrogativo, como uma outra face do Eu; por meio dele, percebe-se como o poema vai se armando como a imagem projetiva do sujeito, como a cena urbana em que pululam os desejos em desacordo é, como em “Sentimental”, um meio para a reflexão do Eu sobre o seu próprio sentimento de estar no mundo. O “Poema de sete faces” encarna o drama da expressão desse sentimento, cujo centro, o coração, fornece o caminho da reflexão e o princípio de coerência estrutural: por essa via, as múltiplas faces se articulam na unidade.p.13

Essa relação particular e complexa com seu mundo, na qual a realidade do sujeito como que se reencontra fora, é o que o define e está latente em sua atitude de provocação, que é também de defensiva, como esturro de onça acuada. P.28

Cerâmica

Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

Sem uso,Ela nos espia do aparador.

Sujeito e objeto – romantismo

Por esse vínculo explícito com Mário de Andrade se revela, na verdade, a herança mais profunda e importante de Piva: a da tradição romântica da meditação andarilha e da “poesia

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itinerante”,3 a que a cidade grande, desde Baudelaire, veio servir de quadro ideal no momento de constituição da modernidade, substituindo a paisagem natural pela nova paisagem urbana. O caráter peculiar dessa modalidade de poesia que os românticos inventaram é precisamente a ligação entre corpo e mente num mesmo movimento que, por sua vez, propicia uma fusão particular entre sujeito e objeto, de modo que o espaço se interioriza à medida que se envolve nos rodopios da reflexão, ao mesmo tempo que por vezes se antropomorfiza e serve de correlato objetivo para as emoções da interioridade. Mário praticou essa modalidade de poesia ao longo de toda a sua obra, em que são frequentes os poemas com caminhadas noturnas, “marcadas pela inquietação e mesmo a angústia”, como notou Antonio Candido.4