o guardador de segredos
DESCRIPTION
Clique para ampliarLeia um trecho em pdfComposto majoritariamente por textos escritos nesta primeira década do século, O guardador de segredos é dividido em três partes. Na primeira, "Poesia e segredo", Arrigucci renova sua aguda capacidade analítica na leitura cerrada de textos poéticos brasileiros. Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade dividem espaço com nomes menos canônicos como Roberto Piva e Sebastião Uchoa Leite. Em seguida, em "Prosa do sertão e da cidade", a ficção de João Guimarães Rosa baliza a rota interpretativa percorrida na abordagem de narradores como Rachel de Queiroz e Dyonelio Machado, assim como Juan Rulfo e Jorge Luis Borges. Na última parte, o autor analisa sua própria trajetória intelectual numa entrevista e em ensaios esclarecedores. Integrante de uma geração privilegiada pelo convívio com mestres como Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, Arrigucci revela nos textos sobre seus colegas e mestres a paixão pela experiência da literatura. Um texto magistral sobre o cinema de Alfred Hitchcock fecha o volume, reafirmando a amplitude da constelação de interesses que caracteriza a carreira intelectual de um dos críticos literários mais destacados do país.TRANSCRIPT
ARRIGUCCI, Davi. O guardador de segredos. SP: Companhia das letras, 2010
Ares de “ironia romântica e melancolia” em Drummond
O caso de Drummond, no entanto, é mais complicado. Sua concepção do poético exige a reflexão como mediação necessária para o encontro da poesia. Ora, essa modalidade de pensamento que é a reflexão tem uma origem romântica. Os pré-românticos alemães é que desenvolveram esse tipo de pensamento reflexivo, que nasce como uma fantasia do Eu sobre o Eu, como uma forma de pensar sobre o pensar. É um pensar sem fim que lembra o sonho, mediante o qual fundaram suas principais concepções. O dobrar-se do Eu sobre si mesmo, tal como o leitor se depara na obra drummondiana, parece evocar, então, a meditação romântica centrada em si mesma, no próprio coração onde se acha o inalcançável da reflexão. A fórmula “O meu coração é maior que o mundo” exprime essa tendência do pensamento para o infinito e o que não se pode alcançar, a vastidão impreenchível do coração em que se perde o pensamento.
Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homensque correm atrás de mulheres.A tarde talvez fosse azul,não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada.
O homem atrás do bigodeé sério, simples e forte.Quase não conversa.Tem poucos, raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu não era Deus,se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundose eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.
Carlos Drummond de Andrade ANDRADE, C. D. Poesia até agora. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1948.
A cada uma das sete estrofes, temos uma face nova e surpreendente, sem que se perceba de imediato a coerência do conjunto p.12
O motivo das pernas contrasta com o tema meditativo do coração, introduzido pelo verso longo da terceira estrofe. Esse coração interrogativo pergunta pelo que não tem resposta. O homem sério que de repente aparece em meio à bagunça dos desejos lembra a cara parada de outro cômico, Buster Keaton. Atrás de tudo, na defensiva, ele é uma espécie de raisonneur da comédia clássica, personagem que se interroga sobre o sentido das coisas e faz as vezes do autor, constituindo um notável contraponto à desabalada corrida atrás das pernas. Ele corresponde ao coração interrogativo, como uma outra face do Eu; por meio dele, percebe-se como o poema vai se armando como a imagem projetiva do sujeito, como a cena urbana em que pululam os desejos em desacordo é, como em “Sentimental”, um meio para a reflexão do Eu sobre o seu próprio sentimento de estar no mundo. O “Poema de sete faces” encarna o drama da expressão desse sentimento, cujo centro, o coração, fornece o caminho da reflexão e o princípio de coerência estrutural: por essa via, as múltiplas faces se articulam na unidade.p.13
Essa relação particular e complexa com seu mundo, na qual a realidade do sujeito como que se reencontra fora, é o que o define e está latente em sua atitude de provocação, que é também de defensiva, como esturro de onça acuada. P.28
Cerâmica
Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.
Sem uso,Ela nos espia do aparador.
Sujeito e objeto – romantismo
Por esse vínculo explícito com Mário de Andrade se revela, na verdade, a herança mais profunda e importante de Piva: a da tradição romântica da meditação andarilha e da “poesia
itinerante”,3 a que a cidade grande, desde Baudelaire, veio servir de quadro ideal no momento de constituição da modernidade, substituindo a paisagem natural pela nova paisagem urbana. O caráter peculiar dessa modalidade de poesia que os românticos inventaram é precisamente a ligação entre corpo e mente num mesmo movimento que, por sua vez, propicia uma fusão particular entre sujeito e objeto, de modo que o espaço se interioriza à medida que se envolve nos rodopios da reflexão, ao mesmo tempo que por vezes se antropomorfiza e serve de correlato objetivo para as emoções da interioridade. Mário praticou essa modalidade de poesia ao longo de toda a sua obra, em que são frequentes os poemas com caminhadas noturnas, “marcadas pela inquietação e mesmo a angústia”, como notou Antonio Candido.4