o historiador avestruz - ciro

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Ciro discute o papel do historiador na atualidade

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  • O "Historiador-avestruz", a Nova Histria Cultural e o ensino de Histria

    Entrevista com o Professor Ciro Flamarion Cardoso

    (Histria Agora n1 - Revista de Histria do Tempo Presente - 2007)

    HISTRIA AGORA - O senhor tem criticado o "historiador-avestruz" em seus recentes artigos e livro. O que ? Podemos super-lo?

    Ciro Flamarion Cardoso - O que chamo historiador-avestruz o que, vivendo o momento atual como no pode evitar de fazer, prefere no enxergar os seus problemas mais prementes e concentrar-se em temticas que no tm a ver em forma direta com tais problemas. Note-se que esta ocultao de problemas reais sempre ocorreu, por exemplo, no discurso poltico, cujos invariantes derivam daquilo que no pode ser dito. Por exemplo, no discurso dos ltimos governos brasileiros possvel ler freqentemente que a previdncia social (em funo de tendncias demogrficas) e o funcionalismo pblico engolem uma parte grande demais dos recursos nacionais disponveis; mas no to freqente achar em falas de homens pblicos a constatao de que tais recursos disponveis so o magro resto que sobra depois, por exemplo, do servio da dvida externa; ou de que, no Brasil, a parte sonegada dos impostos bem maior do que a parte paga. Isto assim porque, dada a sua base social real e os seus meios efetivos de ao, os governos tm pretendido diminuir os recursos para a previdncia social e recortar o funcionalismo pblico, mas no se acham capazes ou interessados em modificar a fundo a questo da dvida externa, ou em atacar frontalmente o problema da evaso de impostos. Entretanto, o discurso da Histria e das outras cincias sociais, em pases como o nosso, soa ser extremamente crtico do status quo e dos poderes vigentes e, no, conformista, como hoje muitas vezes , de jure ou de facto (ou seja, militantemente ou por dfaut). Acho que a superao do historiador-avestruz ter a ver com o ressurgimento de um horizonte de discurso portador de esperanas sociais mais amplas do que meras causas parcializadas (feminismo, ecologismo, etc.); e com o fato de que o prprio pequeno mundo dos historiadores seja crescentemente afetado negativamente pelas tendncias do capitalismo contemporneo, em especial em pases como o nosso. No por acaso, o assunto preferido hoje em dia nos debates de comunidades universitrias que deveriam ter interesses acadmicos gira em torno de dinheiro, exatamente porque tal dinheiro anda escasso e mais disputado do que no passado (na forma de bolsas e recursos para as pesquisas).

    HA - Pode o historiador desprezar os fatores econmicos?

    CFC - Poder, pode, como boa parte da produo atual mostra. No deveria, no entanto, j que isso s faz empobrecer as suas anlises.

    HA - O senhor acha que o comportamento do historiador-avestruz contribuiu para o distanciamento entre a academia e a sociedade?

    CFC - Sem dvida. Um historiador que nada tem a dizer como historiador sobre os maiores debates que atravessam a sua sociedade est escrevendo s para a minoria que o l.

  • HA - O senhor acha que a internet e a mdia so meios possveis para superar esse distanciamento?

    CFC - So, do mesmo modo que a imprensa tradicional, as revistas acadmicas e a publicao de livros. Ou seja, tanto os meios de comunicao mais antigos quanto os mais atuais. verdade, porm, que a universidade (e a escola em geral), neste ponto como em outros, est muito defasada relativamente s caractersticas mais marcantes do mundo contemporneo. Seria importante, nos cursos de graduao de Histria, prever nos currculos e efetuar na prtica um treinamento dos estudantes no uso adequado e criativo dos meios de comunicao desenvolvidos no seio da assim chamada revoluo informacional. Para tanto, seria preciso superar srias deficincias, de equipamento para comear: relativamente fcil hoje em dia, em muitas universidades, mediante projetos de pesquisa que partam de unidades que contenham, por exemplo, ps-graduaes renomadas, conseguir computadores; muito mais difcil conseguir verbas para sua manuteno adequada e seus posteriores upgradings. Quanto ao aluno, no uso da Internet, fcil que seja sufocado por uma enorme quantidade de trash, de informao de baixo nvel e pouco til, ou que leve mais tempo do que seria necessrio para achar e compilar o que de fato lhe deve interessar, caso no disponha de treinamento sobre como us-la bem, por exemplo, em pesquisas de Histria. Bem utilizada, ela recurso da maior relevncia. Para dar exemplos em minha rea mais direta de atuao, a Histria Antiga: possvel acompanhar pela Internet o andamento de escavaes efetuadas por universidades e outros rgos acadmicos e seus agentes em muitas partes do mundo; e, para os que estudem certos temas (cristianismo antigo, por exemplo), pode-se baixar gratuitamente da Internet praticamente toda a documentao primria necessria.

    HA - Quais foram as circunstncias que levaram a Nova Historia Cultural a ser uma das correntes predominantes entre os historiadores atualmente?

    CFC - No tenho problema algum com a ampliao das temticas de estudo pelos historiadores. Acho timo que se tenham desenvolvido muitos temas de Histria Cultural no examinados no passado, bem como o conhecimento dos materiais documentais necessrios a seu estudo, bem como dos mtodos para trat-los. O que me incomoda uma Nova Histria Cultural que, to unilateralmente quanto o cientificismo que critica, deseje ser uma alternativa Histria estrutural e social que anteriormente se praticava (sem dvida, tambm ela com distores e exclusivismos desnecessrios). Acho que o crescimento da Nova Histria Cultural nas modalidades em que se deu (isto , como uam histria das representaes coletivas que pretende substituir a histria econmico-social baseada nas estruturas), deveu-se a um processo multiforme em vrios nveis, de fato ainda mal estudado no detalhe e em saus vinculaes internas principais. Para exemplificar, so elementos de tal processo: o fato de que os historiadores marxistas e aqueles que eram prximos s tendncias dos Annales da primeira e da segunda gerao (ou seja, de at aproximadamente 1969) ignoraram ou subestimaram certas problemticas que eram de interesse social, as quais ento foram desenvolvidas por tendncias antagnicas historiografia marxista e dos Annales daquelas geraes; o desencanto de uma gerao, em especial europia, que durante vrias dcadas acreditara na revoluo social como possibilidade e que, frustrada em suas expectativas, tornou-se ctica (ou mesmo cnica) ou, em casos extremos, virou a casaca, quando estava no auge de sua influncia e portanto de sua credibilidade acadmica, arrastando consigo muitas outras pessoas. A grande ideologia do capitalismo contemporneo no , porm, o ps-modernismo mas, sim, o neoconservadorismo neoliberal, o assim chamado pensamento nico, que parte do princpio de que no existam alternativas ao prprio capitalismo em sua fase atual e tende

  • a ignorar os que pensam de outro modo como proferidores de puro nonsense. Em Histria, apresenta o problema adicional de ser absolutamente anacronstico (ou seja, analisa diferentes sociedades e perodos como se as regras impostas pelo FMI fossem boas em si, independentemente do tempo e do espao: ora, qualquer anlise, mesmo perfunctria, da Histria Econmica dos pases centrais mostrar uma realidade completamente diferente).

    HA - Quais so os limites da (nova) histria cultural e porque o senhor acredita que ela "tem prazo de durao"?

    CFC - Remeto ao que disse anteriormente sobre a Nova Histria Cultural. Quanto aos componentes dela, o que creio que alguns so mais consistentes do que outros e, portanto, tero maiores possibilidades de durar como campos de pesquisa. Em minha opinio, na sua maior parte, os estudos sobre o quotidiano ou sobre o corpo, por exemplo, se bem que no todos, caracterizam-se por um interesse dos mais limitados. O que acho que tem prazo de durao no , em si, uma Histria Cultural, mas sim, queuma modalidade dela enxergue a si mesma como uma alternativa e, portanto, deseje eliminar e substituir uma Histria social atenta s estruturas e longa durao. Esta ltima opinio, por sua vez, decorre de eu acreditar que nenhum dos problemas sociais, filosficos e outros suscitados pela Modernidade tenha sido solucionado at agora.

    HA - O tempo presente um campo razoavelmente novo para os historiadores. Quais so em sua opinio os desafios, a relevncia e os problemas desta nova aventura de Clio?

    CFC - O interesse pela Histria Imediata ou do tempo presente no assim to novo! A professora Maria Yedda Linhares, por exemplo, ressalta com razo que tal interesse j norteava em boa medida a Ctedra de Histria Moderna e Contempornea que ela dirigia, como catedrtica, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atualmente, IFCS da UFRJ). Eu mesmo, como estudante de professores dessa ctedra, pesquisei em 1965, no final da graduao de Histria, ao escolher, na ocasio, especializar-me em Histria Contempornea, orientado pelo professor Francisco Falcon, o tema ento candente e ainda em desenvolvimento da descolonizao no ex-Congo belga, com seus mltiplos conflitos e reviravoltas, ligados em boa parte aos interesses e intervenes do capitalismo internacional (e da ONU, a ele vinculada em boa parte) naquela regio. As razes invocadas no passado contra a prtica da Histria Imediata em especial, que preciso deixar passar algum tempo para que esfriem as paixes e se possa ser imparcial; ou que a documentao necessria em parte no esteja acessvel para o passado imediato devido a razes de Estado refletiam uma Histria que acreditava no mito da imparcialidade e dava importncia exagerada ou, mais exatamente, unilateral documentao e s temticas polticas (estatais, militares, diplomticas); de qualquer modo, limitada ou no por segredos estatais, a documentao sobre o passado imediato infinitamente mais rica e variada do que aquela de que possamos dispor, por exemplo, para qualquer perodo ou assunto de Histria Antiga, Medieval ou Moderna! Alm de ser muito mais fcil para qualquer um de ns entender o passado mais recente do que outro mais antigo, por estar muito mais prximo do presente que vivemos em suas caractersticas especficas. Outra bobagem que se dizia dcadas atrs era que ao historiador compete como objeto o estudo do passado, sendo o presente a provncia das cincias sociais. Na verdade, o historiador, a meu ver, estuda as sociedades humanas (passadas ou presentes) no tempo e, por tal razo, traz aos estudos da Histria Imediata uma perspectiva bem-vinda por ser diferente da dos outros cientistas sociais: em especial, o historiador tem uma sensibilidade maior para o processo de transformao em sua fluidez; no sente to

  • fortemente a tentao de recortar o tempo em momentos imveis comparados entre si (em funo, por exemplo, de dados dos censos).

    HA - As cincias de modo geral vm sofrendo o impacto de uma crescente especializao. Quais os impactos deste processo no campo historiogrfico?

    CFC - A especializao ao mesmo tempo impossvel de evitar e, quando extrema, um problema muito srio. Como professor de ps-graduao, estou cansado de encontrar estudantes que sabem tudo ou quase sobre um tema delimitado, bem como conhecem a fundo as fontes para estud-lo, e, ao mesmo tempo, no o sabem contextuar bem porque no dispem, minimamente, de cultura histrica. Como pode, por exemplo, algum que estuda o Brasil colonial ignorar profundamente a Histria de Portugal nos Tempos Modernos e, mais em geral, a Histria da Europa e a da frica naqueles sculos, para no mencionar a da Amrica Pr-Colombiana (ou a das sociedades indgenas sob os regimes coloniais)? Por acaso ser da opinio de que achar dentro do Brasil colonial todo o necessrio s explicaes adequadas daquilo que constata? Uma das razes da especializao excessiva o aumento muito grande de pesquisadores em Histria: cada um deve achar o seu nicho e precisa ser original. O problema aumentado por uma formao de Graduao muitas vezes inadequada e j marcada, ela tambm, pela especializao perversa. H professores que, na Graduao, do cursos que s versam sobre suas prprias teses ou outras pesquisas pessoais, mesmo ao se tratar de disciplinas que deveriam ser gerais em suas ementas (e at so, nas especificaes, no obedecidas, dos currculos). Isto um verdadeiro crime contra os estudantes! E h programas de Graduao to unilateralmente orientados, terica e metodologicamente mas tambm nas temticas que desenvolvem, que, nas bancas de seleo para mestrado e doutorado, ao ler uma ou duas frases de uma prova escrita ou de um projeto, reconhece-se imediatamente de que curso de Histria procede um dado candidato... Assim, existem aspectos do problema que so inerentes a como se desenvolveram os estudos de Histria, em especial depois da segunda guerra mundial (e, no Brasil, desde a generalizao das ps-graduaes em Histria a partir da dcada de 1970), e outros, mais fceis de corrigir, que decorrem de distores devidas comodidade de docentes que no desejam gastar muito tempo preparando suas aulas nas disciplinas de Graduao. Pau neles, digo eu!

    HA - Quais so suas expectativas em relao a nova gerao de historiadores que so frutos da predominncia da Nova Histria Cultural?

    CFC - As novas geraes com freqncia se revoltam, em funo das condies especficas (sociais, institucionais ou outras) que encontrem na atuao profissional, contra a formao que receberam na universidade. Uma vez percebidas as inadequaes ou insuficincias de tal formao para agir na realidade como a percebem, tratam de treinar-se no que for necessrio para conseguir desempenhar suas atividades dos modos que julguem adequados. Assim, o fato de ser passageiramente predominantes na Graduao as temticas e opinies da Nova Histria Cultural de nada servir, chegado o momento (social) de sua superao entre os historiadores brasileiros. verdade, porm, que pases culturalmente dependentes como o nosso: 1) devido falta de massa crtica suficiente, apresentam modas mais monolticas (num pas como a Frana, por exemplo, uma tendncia muito predominante de qualquer modo no chegar nem mesmo a dominar a metade de um campo de estudos, que dir 80 ou 90% dele!); 2) demoram mais a entrar nas novas modas e, tambm, a sair delas uma vez que entraram.