o homem de barro

6
O Homem de Barro Quando criança, minha mãe me contava histórias até eu fechar os olhos, fingindo dormir. Uma delas, a minha preferida, era sobre o homem de barro. Seus olhos eram feitos de pedra polida e seu coração da mais dura argila. As mãos ressecadas pelo sol e os pés desgastados, misturavam-se ao pó da terra. Uma nuvem de poeira cobria-lhe os rastros, enquanto vagava pelo mundo a procura de seu pai, um velho comerciante, que um dia, o encontrara abandonado, ainda criança à sua porta, enrolada em trapos. Ele o acolheu como um filho, até que vieram os sábios e o levaram antes mesmo que pudesse lhe dar um nome. O comerciante chorou por dias e noites, pois vivera sua vida sempre sozinho. Ele não se importava com a aparência do menino e o amou como se fosse seu pai. Prometera a sim mesmo que um dia iria encontrá-lo e trazê-lo para casa, mas os sábios o levaram para muito longe, trancafiando-o numa torre. Com seus martelos e foices e olhos curiosos, avançaram contra a pequena massa granulosa arrancando-lhe as mãos e os pés. Não satisfeitos, cortaram seu corpo em pedacinhos e jogaram fora seus olhos. Durante anos, o barro disforme foi estudado pelos sábios. Dividindo-o em pequenas partes, observaram sua composição, mas, nada puderam dizer sobre a origem de sua existência, assim, juntaram seus membros e o deixaram à beira da estrada. Veio então a chuva e amoleceu o barro. Pelo caminho, passava um artesão que vendo a disforme massa esparramada, deu-lhe uma nova forma. Depois, vieram algumas crianças saltitantes com doces nas mãos e no orifício de seus olhos puseram duas balas de mel. Quando se foram o homem de barro seguiu seu caminho, pois não podia morrer. Ao chegar à entrada de uma vila, leu escrito no pórtico de uma grande construção, O Templo. Ele aprendera a ler com seu pai e também a observar o céu. O velho comerciante acreditava poder ler o futuro nas nuvens. A porta estava aberta. Ao entrar no lugar sentiu pela primeira vez um estranho temor. Ali existiam outros como ele. Homens e mulheres de barro, só que imóveis, presos a uma base de granito. Ao chegar mais perto, reparou suas formas, tão simétricas e precisas, como se fossem humanos, como a face de seu pai. Aos seres imóveis pôs-se a perguntar: - Vocês são como eu, de argila e pó, contudo, não se parecem comigo. O que vocês são? Como resposta ouvia apenas o eco de sua voz. - Vocês podem me ouvir? – Gritou.

Upload: sam

Post on 06-Jun-2015

650 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: O Homem de Barro

O Homem de Barro

Quando criança, minha mãe me contava histórias até eu fechar os olhos,

fingindo dormir. Uma delas, a minha preferida, era sobre o homem de barro.

Seus olhos eram feitos de pedra polida e seu coração da mais dura argila. As

mãos ressecadas pelo sol e os pés desgastados, misturavam-se ao pó da terra. Uma

nuvem de poeira cobria-lhe os rastros, enquanto vagava pelo mundo a procura de seu

pai, um velho comerciante, que um dia, o encontrara abandonado, ainda criança à sua

porta, enrolada em trapos. Ele o acolheu como um filho, até que vieram os sábios e o

levaram antes mesmo que pudesse lhe dar um nome. O comerciante chorou por dias e

noites, pois vivera sua vida sempre sozinho. Ele não se importava com a aparência do

menino e o amou como se fosse seu pai. Prometera a sim mesmo que um dia iria

encontrá-lo e trazê-lo para casa, mas os sábios o levaram para muito longe,

trancafiando-o numa torre. Com seus martelos e foices e olhos curiosos, avançaram

contra a pequena massa granulosa arrancando-lhe as mãos e os pés. Não satisfeitos,

cortaram seu corpo em pedacinhos e jogaram fora seus olhos. Durante anos, o barro

disforme foi estudado pelos sábios. Dividindo-o em pequenas partes, observaram sua

composição, mas, nada puderam dizer sobre a origem de sua existência, assim,

juntaram seus membros e o deixaram à beira da estrada.

Veio então a chuva e amoleceu o barro. Pelo caminho, passava um artesão que

vendo a disforme massa esparramada, deu-lhe uma nova forma. Depois, vieram

algumas crianças saltitantes com doces nas mãos e no orifício de seus olhos puseram

duas balas de mel. Quando se foram o homem de barro seguiu seu caminho, pois não

podia morrer.

Ao chegar à entrada de uma vila, leu escrito no pórtico de uma grande

construção, O Templo. Ele aprendera a ler com seu pai e também a observar o céu. O

velho comerciante acreditava poder ler o futuro nas nuvens. A porta estava aberta. Ao

entrar no lugar sentiu pela primeira vez um estranho temor. Ali existiam outros como

ele. Homens e mulheres de barro, só que imóveis, presos a uma base de granito. Ao

chegar mais perto, reparou suas formas, tão simétricas e precisas, como se fossem

humanos, como a face de seu pai. Aos seres imóveis pôs-se a perguntar:

- Vocês são como eu, de argila e pó, contudo, não se parecem comigo. O que vocês

são?

Como resposta ouvia apenas o eco de sua voz.

- Vocês podem me ouvir? – Gritou.

Page 2: O Homem de Barro

E assim ficou por horas, sentado, confuso, tendo por companhia, velhas

estátuas mudas, até que as balas em seus olhos se umedeceram. Ao ouvir o lamento,

logo se aproximou um sacerdote que ao vê-lo pôs se a gritar:

- Ele está vivo! Está vivo!

As pessoas saíram de suas casas e correram ao templo para ver o que

acontecia. O sacerdote ajoelhado diante da disforme massa que falava. Logo, o lugar

se encheu. Milhares de pessoas vinham de todas as partes para contemplarem o ídolo

que se movia. O sacerdote viu nisso um bom negócio e uma bela lajota azulejada

comprou, elevando o homem de barro acima do altar. Camponeses traziam suas

oferendas, frutas, raízes e vinho. E também os ricos mercadores, ouro, incenso e mirra.

E passaram a adorá-lo. Foi então, que numa tarde nebulosa, houve um terremoto. As

colunas do templo caíram, soterrando assim, os adoradores. E em meio às pedras e

escombros, se levantou quase que despedaçado, o homem de barro. Cobrindo-se com

um manto, partiu de volta ao seu caminho.

Na manhã seguinte ao descer por uma planície, vê logo abaixo, um poço e

sentada à sua beirada uma linda jovem. Ele se achegou até ela, escondendo a face e

perguntou:

- Você saberia me dizer o caminho para casa?

A jovem continuou dando águas aos cavalos, fingindo não notar-lhe.

- Estou falando com você moça! - Ele a puxou pelo braço.

- Me solte seu monstro! Papai! - E correu gritando até sua tenda.

Ela era filha de um poderoso feiticeiro que apressadamente deixou sua tenda.

O homem de barro então, contou que precisava de sua ajuda, estava perdido e

procurava por seu pai. O feiticeiro, deslumbrando com a estranha criatura, prometeu-

lhe ajudar, em troca de um pequeno favor.

- Vejo que não é animal ou homem, todavia, sendo um mineral, fala e move como um

de nós. Quem lhe ensinou sobre o bem e o mal pode dar vida a outras formas? –

Perguntou o feiticeiro.

- Eu não sei.

- Eu lhe ajudo encontrar seu pai, mas antes, quero que volte comigo, desejo muito

conhecer a sua história.

O feiticeiro era o conselheiro de uma rainha muito má, e retornou ao castelo,

levando-o consigo. Ao cruzar pelos enormes portões que guardavam a cidade, o

Page 3: O Homem de Barro

homem de barro sentiu uma nova sensação. A mistura de mil sabores chegando às

suas narinas. Era o cheiro das tendas perfumadas, dos óleos aromáticos vendidos em

cântaros coloridos, do jardim de alfazema de frente a fonte, dos temperos e raízes

trazidos pelas carruagens de mercadores. Também viu as pessoas apressadas,

correndo de um lado para o outro, como se estivessem fugindo ou talvez, buscando

por algo.

- Porque todos correm desse jeito? – Perguntou ao feiticeiro.

- Eles estão indo comprar suas máscaras para o baile.

Haveria uma festa no palácio e a rainha mandara convidar os comerciantes mais ricos

e os nobres mais poderosos. Em seus aposentos o feiticeiro a aconselhou assim:

- Essa tarde em minha tenda, recebi uma visita majestade, uma dádiva dos céus que

vencerá todos os nossos inimigos. Uma criatura feita de barro, imortal, que carrega

dentro de si um poderoso feitiço, levando-o a se mover e a falar tal como um de nós.

Quando assim o fizer, desatar o fio que o prende àquele corpo, observar a sua

essência, então, poderemos construir milhares como ele. Um exército de soldados de

argila.

Para o tão esperado baile, o homem de barro fora vestido tal qual um nobre. Para

esconder o seu rosto, a jovem filha do feiticeiro lhe deu uma máscara curtida em

couro.

- Com que estou parecido? – Indagou à jovem.

- Um bufão! Um engraçado bufão de pedra. – E riram juntos pela primeira vez.

O homem de barro sentiu uma estranha alegria. Ali, naquele enorme salão de dança,

enquanto os pares se rodopiavam ao som de flautas e atabaques, pôde sentir como os

demais. Não existia a indiferença que sempre lhe perseguiu. E ao passear por um

corredor carpetado, de frente a uma grande moldura, parou.

- O que você está vendo? – Perguntou-lhe uma mulher que chegava sutilmente.

- Uma estátua semelhante a mim. – Respondeu, imóvel.

- Talvez, porque seja realmente você.

Ele nunca havia se visto num espelho e ao tirar sua máscara a rainha não estava mais

lá. De repente, a tristeza que ele conhecia muito bem voltara, só que agora misturada

a um descontentamento que nunca havia sentindo, era a desesperança tomando conta

de seu coração. Ele saiu correndo, deixando para trás sua máscara de bufão. Em seu

quarto, escondido de todos, pensou que jamais encontraria seu pai e mesmo que o

fizesse, ele talvez jamais pudesse lhe tirar essa dor que crescia em seu íntimo. Assim,

decidiu-se ir embora, longe daquele baile de máscaras.

Page 4: O Homem de Barro

Quando a jovem retornou ao seu quarto, viu as roupas espalhadas pelo chão e

antes que o medo da dúvida lhe assolasse, juntou suas coisas e partiu atrás do homem

de barro. O feiticeiro ao saber da fuga se enfureceu de tal modo, que ajuntara um

pequeno contingente de soldados à procura dos dois. Ele clamava aos seus deuses

para que tivessem misericórdia de sua filha, pois acreditava que o homem de barro lhe

pudesse fazer algum mal.

- Vou desfazê-lo em pedaços! Depois de descobrir sua essência, o colocarei dentro um

pote e misturando alguns elementos à sua substância, darei vida a qualquer coisa

inanimada. – Disse o feiticeiro à rainha antes de partir.

Sentado à beira da fonte, o homem de barro contemplava tristemente o reflexo

distorcido de seus olhos.

- Sabia que viria para cá. – A filha do feiticeiro se achegou calmamente.

- Eu não sei quem sou. – Ele disse, condoído.

- Nem todos sabem isso.

- E quem sabe afinal?!

- Eu não sei lhe dizer. Vim aqui para ter a chance de me desculpar com você.

- Como sabia que me encontraria aqui? Você me seguiu?

- Não. Onde mais estaria? Não sei lhe dizer sobre os planos de meu pai, mas

desconfiaria deles em seu lugar.

- Porque ele mentiria pra mim?

- Porque você é bom. Sua forma pode ser diferente, mas por dentro, tem um coração

como o meu.

Sentada ao seu lado a jovem estendeu a mão e lhe tocou o peito.

- Não disse, posso senti-lo dentro de você. Isso é o que o torna como eu.

A tristeza companheira dera lugar a um gostoso arrepio que lhe subia pelas costas,

trazendo à memória todas as coisas boas que vivera: a alegria dos garotos rabiscando

com giz de cera o contorno dos seus olhos, a suave mão do artesão delineando uma

nova forma a seu corpo, o sorriso dos pobres camponeses no mercado, as cores lívidas

dos trajes dos nobres, tudo isso emaranhado a um novo sentimento, o amor.

Ao segurar suas mãos, um temível grito evocou-lhe à razão.

- Não toque nela, seu monstro de pedra!

Page 5: O Homem de Barro

O feiticeiro chegara com seus cavaleiros e ordenando que o amarrassem, partiram de

volta ao castelo. Em seu calabouço, mergulhado em trevas, o homem de barro desistiu

de todos os seus sonhos. Seu pai, sua casa, suas dúvidas inquietantes, tudo fora

acorrentado àquelas inquebráveis correntes que prendiam seu corpo ao esquife de

chumbo fundido. No redemoinho de emoções, o semblante da bela jovem se

sobressaía às demais figuras. Ele só queria vê-la, sentir novamente suas mãos quentes

sobre seu peito, mas o feiticeiro chegou primeiro, e com ele a perversa rainha.

- Diga-me, como pretende extrair algo de bom dessa criatura desprezível? – Perguntou

a rainha ao feiticeiro.

- Não pretendo majestade, mas se me permite explicar.

Ele então lhe contou que ao conseguir a matéria-prima primordial e eliminar suas

impurezas, separando o mercúrio e o enxofre, depois os reunindo por intermédio do

sal e fixando os elementos voláteis, poderia libertar o espírito por meio da matéria e a

própria matéria por meio do espírito.

- Vossa majestade já viu uma estrela se formar dentro de um frasco de vidro?

Ele lhe ensinou como capturar um feixe de luz do sol, condensando e o alimentando

com fogo.

- A terra fica embaixo enquanto o espírito sobe.

O homem de barro fechou seus olhos de mel e pela primeira vez sonhou, enquanto o

fogo consumia seu corpo e inflamáveis solventes enegreciam seus membros.

- Primeiro é preciso purificar a matéria imunda, majestade.

O agente da dissolução, um líquido escaldante mistura-se ao mercúrio.

- Nessa etapa, adiciona-se mais ouro para tornar o agente transformador mais ativo.

Após três dias teremos a vida conservada nesse pote fechado.

E lhe mostrou o frasco que ao terceiro dia estava cheio com um fluido transparente

como o orvalho, leve como o ar, denso como nuvens, a dissolução do ser que não se

extingue, a substância do qual é feito todo o universo, o retalho do céu, um pedaço de

éter.

...

-Mas mamãe, como termina a história?

Page 6: O Homem de Barro

Diz a lenda que a bela jovem, numa noite, entrou no velho calabouço onde estava

guardado o pote contendo o homem de barro e o roubou antes que seu pai

construísse o exército de homens de barro. Ela então correu até o poço onde o

conhecera e abriu a tampa, lançando-o à água. Quem bebesse dessa água jamais

morreria.

- Amanhã quero ouvir mais mamãe, boa noite.

Boa noite Joshua.