o inferno como componente iconográfico do juízo final bizantino
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O inferno como componente iconográfico do Juízo Final bizantino
MARIANA PINCINATO QUADROS DE SOUZA1
No seio do cristianismo, até os dias atuais, habita a promessa de uma retribuição
futura aos atos – bons ou maus – praticados pelos homens durante a vida terrena. Para o
cristão medieval anterior ao século XII, ou seja, para o cristão que viveu na época que
antecede a instituição do Purgatório como local de expiação dos pecados, tal recompensa se
daria no Além, um espaço-tempo composto por duas localidades distintas: o Paraíso, destino
dos justos, e o Inferno, lugar de suplício aos pecadores, o qual agrega a concepção de pecado
e o imaginário das torturas sem fim.
O temor ao inferno tinha um papel de grande relevância na sociedade medieval.
Porém, seria perigoso, como afirma Jérôme Baschet, “tomar o medo do inferno como algo
óbvio. Devemos, ao contrário, medir os limites e analisar o seu funcionamento” 2
(BASCHET, 2014: 1).
Nesse contexto, o presente artigo discute as fontes e os caminhos da concepção
iconográfica do inferno encontrado, particularmente, nas primeiras representações bizantinas
do Juízo Final (século X), e sua influência em obras posteriores.
A importância do tema do Juízo Final para a cultura cristã é refletida nas numerosas
manifestações artísticas produzidas ao longo dos séculos. Segundo a concepção cristã, tratar-
se-ia do julgamento derradeiro por Cristo, do momento em que os justos, os eleitos, seriam
separados dos maus, os condenados. Esta ideia do retorno do Cristo ao fim dos tempos, com o
objetivo de julgar a humanidade, remonta às origens do cristianismo. Sua fundamentação se
encontra na tradição religiosa judaica, da qual herda a concepção de tempo linear, ou seja, o
tempo em movimento retilíneo com uma sucessão contínua de eventos irrepetíveis e
irreversíveis. Dessa forma, a história que se inicia na criação do mundo, o Genesis, se dirige
implacavelmente ao fim. Como esclarece Georges Duby:
Para o cristianismo, a História é orientada. O mundo possui uma idade. Deus, em
um determinado momento, o criou (…). Alguns textos, aqueles da Escritura Santa,
permitem calcular as datas, aquela da criação, aquela da encarnação, portanto
1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo (USP). Orientação: Prof.ª Dra. Maria Cristina Correia Leandro Pereira. 2 “... le danger serait, ici, de prendre la peur de l’enfer pour une évidence. Il convient au contraire d’en mesurer
les limites et d’en analyser le fonctionnement”. Tradução própria.
1
discernir os ritmos da História. Estes mesmos textos (…), os Evangelhos, o
Apocalipse, anunciam que o mundo um dia acabará (DUBY, 1980: 46).
A Parusia3, ou seja, a segunda vinda do Senhor para o dia do julgamento, é
mencionada em diversos trechos da Bíblia4. Segundo essas passagens, não apenas os vivos,
mas também os mortos ressuscitarão para serem novamente julgados. Tal acontecimento
também é citado no Credo de Niceia de 325, ao afirmar que Cristo “está sentado à direita do
Pai, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos” 5. Essa crença é de extrema importância
para o desenvolvimento de nossos argumentos neste artigo.
O julgamento da pessoa, segundo os preceitos cristãos, dar-se-ia em dois momentos
distintos: na hora da morte e, novamente, no dia do Juízo Final. Institui-se, nesse intervalo,
um complexo processo judicial. Quando os autores cristãos, entre os séculos II e IV, se
puseram a refletir sobre as circunstâncias das almas entre a morte individual e o Juízo Final,
considerando a hipótese de que, talvez, alguns pecadores poderiam ter suas almas salvas
durante esse período, através de uma provação, foi plantada a semente de uma ideia que
criaria, no século XII, o Purgatório (LE GOFF, 1995: 17).
Santo Agostinho, no século V, deixa muito clara essa ideia de duplo julgamento e
possível salvação da alma em segunda instância. Na Cidade de Deus, disserta:
Realmente peca o homem que, por ignorância ou por injustiça, faz a outrem algo de
mal; mas quem não peca é Deus, que permite que tal aconteça por um justo, embora
oculto, desígnio. Mas uns sofrem as penas temporais apenas nesta vida, outros
depois da morte, outros tanto agora como então - todavia, sempre antes desse juízo,
o último e mais severo, é que as sofrerão. Porém, nem todos aqueles que, depois da
morte, sofrerem penas temporais, cairão nas penas eternas que virão após esse
juízo – porque a alguns o que não foi remido neste século, remido será no século
futuro, isto é, não serão punidos, como já acima declaramos, com o suplício eterno
do século futuro (AGOSTINHO, 2000: 2175).
3 Parusia, em grego clássico Παρουσία, em latim adventus, significava “estar presente” ou “chegar”. A partir do
século III a.C. passou a designar a chegada do Imperador romano a uma cidade ou província, implicando
também o início de um novo período para aquela localidade. Os primeiros cristãos absorveram o termo,
adaptando-o, porém, à sua própria doutrina: Parusia será quando o Cristo retornar a esse mundo, no fim dos
séculos, iniciando um novo tempo (QUÍRICO, 2009: 63). 4 Como em Mateus 16, 27: “Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai com seus anjos, e então
recompensará a cada um, segundo suas obras”. 5 “Tertia die resurrexit a mortuis, ascendit ad coelos, sedet ad dextram Dei Patris omnipotentis, inde venturus
est iudicare vivos et mortuos, Credo in Spiritum Sanctum, sanctam Ecclesian catholicam, sanctorum
communionem, remissionem peccatorum, carnis resurrectionem, et vitam aeternam” (QUÍRICO, 2009: 23).
2
De acordo com o historiador italiano Valentino Pace, teria existido no Oriente, no
período anterior à crise iconoclasta, ou seja, anterior ao século VIII, um “modelo bizantino
clássico” de representação do Juízo Final, como veremos logo a seguir. Porém, não há
exemplos remanescentes dessa época. Os primeiros exemplos conservados são do século X e
mostram que a organização dos temas constitutivos desse modelo ainda não tinha sido
normalizada e, sobretudo, ainda não apresentava o rigor que caracteriza as obras posteriores.
Utilizaremos como base de referência desse presumido “modelo bizantino” a
miniatura do Manuscrito Grego 74 da Biblioteca Nacional da França. Produzido em
Constantinopla na segunda metade do século XI, é também conhecido como manuscrito de
Stoudios, por sua fatura ter ocorrido no mosteiro homônimo.
Juízo Final. Manuscrito grego 74, BNF, fol. 51 v.
Apesar de não haver registro de obras idênticas, algumas evidências em comum entre
algumas produções contemporâneas nos sugerem a utilização desse “modelo” pré-
estabelecido, cujas características são (ANGHEBEN, 2002: 105-134):
a) Todas as obras são separadas em registros, que variam de três a cinco, de acordo
com o espaço disponível;
b) Nos registros superiores está a Deesis (do grego δέησις – oração, súplica),
representação tradicional bizantina do Cristo Juiz, este flanqueado pela Virgem
Maria e São João Batista, junto com os apóstolos e os anjos;
3
c) Sob o Cristo, aparece a Etimasia (do grego ἑτοιμασία – preparação), representação
do trono vazio, à espera da Segunda Vinda de Cristo, geralmente flanqueado por
anjos e por Adão e Eva prosternados;
d) À esquerda e à direita da imagem é representada a ressureição dos mortos, que
parecem sair por duas aberturas;
e) À direita do Cristo Juiz se encontra o grupo dos eleitos, distribuídos em um ou
dois registros;
f) À esquerda do Cristo Juiz se encontra o grupo dos condenados, dentro de um lago
de fogo, que é alimentado por um rio flamejante cuja fonte está sob os pés do
Cristo;
g) Nesse lago, encontram-se também dois anjos e Hades, sentado sobre uma criatura
monstruosa e com uma criança no colo;
h) O registro inferior, enfim, é ocupado à direita pelo paraíso, à esquerda pelos
compartimentos infernais; em frente à porta do paraíso se encontram São Pedro e
um anjo, e depois da porta estão a Virgem Maria, São Dimas e Abraão; nos
compartimentos infernais, os condenados são submetidos a diferentes tipos de
tormentos.
i) A pesagem das ações, ou Psicostasia, situa-se entre o inferno e o paraíso e é feita
por um anjo que porta uma balança, o qual é perturbado pela intervenção de um ou
mais demônios.
Deixando de lado os demais elementos iconográficos, debruçar-nos-emos sobre as
representações infernais, as quais são constituídas por duas partes: o lago de fogo e os
compartimentos infernais. Basearemos nossa discussão na hipótese do historiador da arte
Marcello Angheben (2002: 122-127), como veremos adiante, o qual afirma haver uma grande
possibilidade de cada registro infernal se referir a um destino distinto, dependendo do tipo do
julgamento: o julgamento imediato, ou seja, feito após a morte da pessoa, e o último
julgamento, feito por Cristo no dia do Juízo Final.
É conveniente, a princípio, destacarmos as diferentes localidades infernais contidas na
documentação escrita. Esta contém, muito provavelmente, as fontes nas quais os
iluminadores, pintores, escultores e mosaístas se inspiraram para conceber as imagens do
Além cristão.
4
Na Patrologia Grega, encontramos o mais antigo comentário grego patrístico sobre o
livro bíblico do Apocalipse, escrito por André de Cesareia, teólogo grego do século VI e bispo
de Cesareia, atual cidade de Kayseri, na Capadócia. No período antecedente à crise
iconoclasta (séculos VI - VII), o autor já afirmava que existiam vários locais de tormento, cuja
intensidade era proporcional à gravidade da infração. Ao serem enviadas para o inferno, as
almas dos réprobos, após o primeiro julgamento pós-morte, não sofriam fisicamente as
sanções que lhes eram impostas. Apenas se reencontrariam com seus corpos e sofreriam os
castigos, então, na própria carne, após a ressurreição e o Juízo Final (CESAREIA; In:
MIGNE, 1886: 423B). Não está claro, no entanto, nos textos de André de Cesareia, se a
existência de dois tipos de pena implicaria na existência de dois lugares infernais distintos. O
autor ainda afirma, em seus comentários, que a morte e o inferno serão lançados num lago de
fogo ao fim dos tempos.
Éfrem da Síria6, em seus sermões sobre o fim dos tempos, vai um pouco mais longe ao
afirmar que, após a ressurreição dos mortos, as moradas infernais serão completamente
esvaziadas e que o fogo inextinguível, que fluirá em frente ao Juiz, cobrirá toda a terra, como
no dilúvio (NISIBE; In: MOBARAK e ASSEMANI, 1743: 148 D e 149 B-C). A imagem do
dilúvio de fogo já estava presente na tradição apocalíptica judaica. No Livro de Henoch, um
dos mais antigos testemunhos desse estilo literário, composto provavelmente entre os séculos
II e I a.C., encontramos referências a essa imagem. Mais precisamente na primeira parte, no
Livro da Assunção, Henoch descreve: “E cheguei a um rio de fogo do qual o fogo corre como
água e se derrama no alto mar...” (Cap. XVII) (LE GOFF, 1995: 49).
Os apocalipses cristãos, colocados por escrito entre os séculos I e II, fazem parte do
conjunto de textos chamados apócrifos pela Igreja cristã latina, ou seja, não estão entre os
documentos oficiais, ditos autênticos da doutrina, com exceção do livro atribuído a São João.
Esse caráter apócrifo só lhes seria atribuído pelo Concílio de Cartago, em 397, e também pelo
Concílio de Trento, já no século XVI. Assim, muitos deles tiveram alguma influência durante
a Idade Média, seja por não serem considerados apócrifos ainda, seja por sua circulação
clandestina, afastados dos textos canônicos. Dentre esses livros, dois deles se destacam pelas
imagens na construção do Além.
6 Teólogo do século IV, nascido em Nísibis e autor de uma grande variedade de hinos, poemas e sermões. Por
suas obras, foi declarado Doutor da Igreja pelo papa Bento XV, em 1920. É considerado um dos mais
importantes padres da Igreja na tradição siríaca.
5
O Apocalipse de Pedro, composto no final do século I e influenciado pelos apocalipses
judeus e pela escatologia popular grega, apresenta o fogo: “E alguns estavam pendurados pela
língua, eram os caluniadores, e por baixo deles havia fogo que flamejava e os torturava” (Cap.
XXII); “E outros homens e mulheres estavam em pé, com chamas até o meio do corpo” (Cap.
XXVII) (LE GOFF, 1995: 52-53).
Juízo Final. Detalhe do inferno.
Igreja de Castória (Καστορια – Monastério de Panagia Mavriotissa) ao norte da Grécia (séc. XI).
O Apocalipse de Paulo, elaborado no Egito em meados do século III, é a primeira
versão a diferenciar um inferno superior de um inferno inferior. Ao alcançar o inferno
superior, São Paulo diz que “lá viu as almas daqueles que aguardavam a misericórdia de
Deus” (LE GOFF, 1995: 55). A parte mais longa do relato é dedicada à descrição das penas
do inferno, fornecendo informações mais precisas, identificando e classificando os
condenados. São Paulo descreve árvores de fogo de onde pendem os pecadores e um forno
ardente com chamas de sete cores, onde outros são torturados. Vê os sete castigos para as
almas dos condenados: o frio, o calor, a fome, a sede, os vermes, o mau cheiro e o fumo, além
da roda de fogo onde ardem ao mesmo tempo mil almas, entre muitos outros (LE GOFF,
1995: 55).
6
Juízo Final. Detalhe do Inferno.
Marfim ítalo-bizantino, nº 24-1926, Victoria and Albert Museum, Londres.
Retomando a construção iconográfica do inferno bizantino, o componente do lago de
fogo é geralmente ocupado por um personagem, cuja identidade é frequentemente relacionada
a Satã, o que pode ser justificado na medida em que ele está condenado a ser lançado no lago
de fogo, como descrito no Apocalipse de São João (Ap. 20, 10). No entanto, inscrições podem
igualmente o designar como sendo Hades7. O personagem que cavalga um monstro é, com
efeito, desprovido de asas, enquanto todos os demônios, na qualidade de anjos caídos, são
alados. Ele possui a barba e os cabelos longos das divindades pagãs, o que é mais adequado
para a figura de Hades. Entendemos, portanto, que a presença de Hades neste lago de fogo
pode traduzir em imagens as parábolas do Apocalipse: no fim dos tempos, o inferno,
juntamente com os danados, será imerso no lago de fogo.
As pinturas de Karsi kilise (1212), na Capadócia, podem nos confirmar essa leitura.
Este programa iconográfico do Juízo Final apresenta três temas do registro inferior, composto
aqui por alvéolos correspondentes aos compartimentos, se agrupando a uma figura que
cavalga um monstro. Esta junção pode significar que este inferno não faz parte de um
contexto no fim dos tempos, mas de uma continuação do julgamento imediato. A figura
cavalgando o monstro – identificada aqui como Hades – não foi imersa no lago de fogo: ela
trona em um espaço mergulhado na escuridão. O autor teria mudado, portanto, a iconografia
tradicional do inferno bizantino, a fim de mostrar o inferno em seu tempo atual, antes de ser
submergido definitivamente no lago de fogo (ANGHEBEN, 2002: 124).
Juízo Final. Detalhe da figura de Hades. Juízo Final. Detalhe do Inferno.
Mosaico da Catedral de Santa Afresco de Karsi Kilise
7 Este tema foi desenvolvido em PINCINATO, Mariana. O inferno e a figuração de Hades como o Demônio
no mundo bizantino. Anais do V Encontro Nacional de Estudos da Imagem [e do] II Encontro Internacional de
Estudos da Imagem [livro eletrônico] / Angelita Marques Visalli, André Luiz Marcondes Pelegrinelli, Pamela
Wanessa Godoi (orgs.). Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2015, Vol. 11, p. 207 - 216.
7
Maria Assunta, Torcello, séc. XI Capadócia, 1212
Nas representações bizantinas clássicas do inferno, logo abaixo do registro do lago de
fogo, encontramos o inferno inferior. Neste lugar, os condenados sofrem abusos
diferenciados, alocados entre compartimentos que se assemelham a cavernas. No ícone nº 151
do Mosteiro de Santa Catarina, no Sinai, produzido em meados do século XII, as inscrições
permitem uma melhor compreensão desses compartimentos infernais específicos. Neles
encontramos: “o ganancioso”, “os esqueletos”, “o tártaro”, “o ranger de dentes” e “a
escuridão do inferno” (ANGHEBEN, 2002: 123). Entre as denominações, há duas que se
encaixam bem às imagens: aos “esqueletos” correspondem os crânios habitados pelos vermes;
quanto ao “avarento”, é evocado pela figura de Epulon, o mau rico da parábola de Lázaro8.
Juízo Final. Detalhe dos compartimentos infernais.
Ícone nº 151 do Mosteiro de Santa Catarina, Sinai, séc. XII.
Os compartimentos infernais das primeiras representações do Juízo Final no oriente
parecem ter um acesso independente. Segundo Marcello Angheben,
8 Lucas 16:19-31. Nesta parábola, havia um homem rico, chamado Epulon, que se vestia de púrpura e de linho
fino e vivia no luxo todos os dias. Diante do seu portão ficava um mendigo chamado Lázaro, coberto de chagas;
este ansiava comer o que caía da mesa do rico. Até os cães vinham lamber suas feridas. Chegou o dia em que o
mendigo morreu, e os anjos o levaram para junto de Abraão. O rico também morreu e foi sepultado. No Hades,
onde estava sendo atormentado, ele olhou para cima e viu Abraão de longe, com Lázaro ao seu lado. Então,
chamou-o: “Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo na água e
refresque a minha língua, porque estou sofrendo muito neste fogo”. Mas Abraão respondeu: “Filho, lembre-se de
que durante a sua vida você recebeu coisas boas, enquanto Lázaro recebeu coisas más. Agora, porém, ele está
sendo consolado aqui e você está em sofrimento. E, além disso, entre vocês e nós há um grande abismo, de
forma que os que desejam passar do nosso lado para o seu, ou do seu lado para o nosso, não conseguem”. Epulon
respondeu: “Então eu te suplico, Pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos. Deixa que ele
os avise, a fim de que eles não venham também para este lugar de tormento”. Abraão respondeu: “Eles têm
Moisés e os Profetas; que os ouçam”.
8
no manuscrito constantinopolitano, as sombras que aparecem sobre a tira de solo,
somente entre o cortejo dos eleitos e as moradas infernais, assim como as manchas
escuras que figuram entre essas sombras e a pesagem das ações, deixam a entender
a presença de uma abertura e, sem dúvidas, das chamas que escapam por ela. Este
acesso vertical convém perfeitamente às residências infernais, na medida em que
receberam a aparência de cavernas e se situam ligeiramente mais abaixo em
relação ao paraíso (ANGHEBEN, 2002: 125) 9.
Detalhe da entrada para os compartimentos infernais. Manuscrito grego 74, BNF, fol. 51 v.
Há, portanto, dois lugares infernais distintos, representados em dois registros, cada um
com seu acesso próprio e nenhuma comunicação aparente entre si. Por isso consideramos que
esses lugares correspondem, respectivamente, a um “inferno de espera”, destinado às almas
separadas no julgamento imediatamente após a morte, e ao “inferno definitivo”, referente ao
momento da Segunda Parusia e que agrupa, no lago de fogo, os demônios, os condenados e a
figura de Hades representando o inferno permanente.
Outros registros escritos nos auxiliam a corroborar com essa hipótese. Retomando o
livro de Henoch, um dos apocalipses judaicos, no capítulo XXII, encontramos a ideia dos
lugares do além e das categorias de mortos que estão à espera. Ao perguntar ao anjo Rafael
onde é a morada das almas dos mortos antes do julgamento, Henoch é levado até uma
montanha. Havia nela cavidades profundas. O anjo lhe explica: “Estas cavidades são feitas
para nelas se reunirem os filhos das almas dos mortos... Para deixá-los lá morar até o dia do
seu julgamento e até o momento que lhes foi fixado; e esse longo tempo durará até o grande
julgamento”. Havia quatro cavidades, uma para cada categoria de mortos. A primeira, junto a
uma fonte de água luminosa, acolhia os mártires e justos. A segunda abrigava outros justos
que ficam à sombra, mas que receberão as recompensas eternas no julgamento final. A
terceira recebia os pecadores que serão condenados no fim dos tempos. A quarta era destinada
9 “Dans le manuscrit constantinopolitain, les ombres apparaissant sur la bande de sol, uniquement entre le
cortège des élus et les chambres infernales, ainsi que les taches sombres figurant entre ces ombres et la pesée des
actions laissent deviner la présence d’une ouverture et, sans doute, des flammes qui s’en échappent . Cet accès
vertical convient parfaitement aux demeures infernales, dans la mesure où elles ont reçu l’apparence de caverns
et se situent légèrement em contrebas par rapport au paradis”. Tradução própria.
9
aos pecadores que sofreram algum tipo de provação em vida ou foram assassinados por outros
pecadores. Estes serão menos castigados no Juízo Final (LE GOFF, 1995: 49-50).
No Apocalipse de Paulo (16), as almas separadas, no julgamento imediato, são
submetidas a tormentos no inferno de espera. O autor transcreve as palavras de Deus sobre a
alma de um reprovado: “Que ela seja entregue ao anjo Tartarouchos, nomeado para os
tormentos, e que ele a envie para as trevas exteriores, onde há choro e ranger de dentes: que
ela permaneça lá até o grande dia do julgamento” (ANGHEBEN, 2002: 125-126)10.
Encontramos também, no Apocalipse da Virgem, os diferentes lugares infernais.
Conduzida por São Miguel Arcanjo, ela cruza sucessivamente as trevas, o rio de fogo, os
vermes devoradores, o lago de fogo, etc. Nessa geografia infernal, encontramos uma parte dos
lugares enumerados também por Éfrem da Síria, com a diferença que aqui esses lugares são
habitados pelas almas em espera. Nesse apocalipse, o arcanjo descreve igualmente um rio
negro, que chama de “fogo exterior”, no qual queimam os judeus. Em Torcello11, um dos
compartimentos infernais é preto e atravessado por ondulações. Existe, então, a possibilidade
de essa imagem ser uma transposição desta descrição (ANGHEBEN, 2002: 126).
Juízo Final de Torcello. Detalhe do Inferno. Catedral de Santa Maria Assunta, séc. XII.
A presença de Epulon, o mau rico, entre os condenados nos revela um paralelo com a
presença do pobre Lázaro, entre os eleitos. Da mesma maneira que Lázaro foi enviado a um
paraíso de espera, o mau rico foi colocado em um inferno temporário, onde não sofre
10 “Qu’elle soit remise à l’ange Tartarouchos, celui qui est préposé aux tourments, et qu’il l’envoie dans les
ténèbres du dehors, là où sont les pleurs et les grincements de dents: qu’elle y demeure jusqu’au grand jour du
jugement”. Tradução própria. 11 O mosaico do Juízo Final de Torcello está na contrafachada da Catedral de Santa Maria Assunta. Apesar de
essa obra situar-se em uma ilha da Península Itálica, na Laguna de Veneza, sua constituição é claramente
baseada nos modelos provindos do Império Bizantino.
10
corporalmente. A figura de Epulon, no entanto, não aparece sistematicamente no inferno
inferior. Aqui, é o evangelho de Stoudios que constitui a exceção. O mau rico, figura
facilmente reconhecível por sua atitude, se insere no lago de fogo, e não em um dos
compartimentos inferiores. Contudo, aparece em uma área periférica e inteiramente nu, longe
dos anjos que repelem os condenados contra Hades. Em Torcello e nos ícones do Sinai, a
figura do mau rico aparece em primeiro plano, em um dos compartimentos da esquerda.
Portanto, apesar dos indícios, a posição de Epulon não é suficiente para fazer do inferno
inferior o que precede o fim dos tempos (ANGHEBEN, 2002: 127).
Detalhe de Epulon no lago de fogo. Manuscrito grego 74, BNF, fol. 51 v.
Existem, contudo, outros argumentos que vão ao sentido dessa leitura. Em primeiro
lugar, as naturezas dos tormentos diferem substancialmente entre um registro e outro. No lago
de fogo, as almas pecadoras são maltratadas pelos demônios, enquanto nos compartimentos
eles não estão presentes. Os únicos demônios que figuram nesse registro, porém fora dos
compartimentos, são os que tentam pender a balança do julgamento para seu lado. É o que
podemos ver no evangeliário de Stoudios e nos ícones do Sinai, pois em Torcello a pesagem
foi feita acima da porta da basílica.
A segunda diferença, seguramente a mais evidente, diz respeito à aparência física dos
condenados. Nos compartimentos infernais, eles são muito diferentes dos ressuscitados. São
reduzidos à forma esquelética, como diz igualmente a inscrição do Sinai e, sobretudo, seus
ossos parecem ter sido separados. Os outros condenados nos compartimentos, que não
aparecem desmembrados, estão inteiramente nus. No lago de fogo, ao contrário, os
condenados apresentam integridade corporal, que seria consequência da ressurreição no fim
dos tempos. Encontram-se vestidos e, assim como os eleitos, eles reencontraram sua posição
social, a qual permite reconhecer os reis, os bispos, os monges, etc. (ANGHEBEN, 2002:
127).
11
No componente iconográfico aqui estudado, destacamos a divisão feita no espaço
infernal pelos autores bizantinos, nas representações do Juízo Final. Esta divisão vai de
encontro com o pensamento cristão oriental da época, formado, sobretudo, pelas fontes
escritas em circulação desde as origens do cristianismo. Nos séculos X e XI, portanto, já
estava presente a ideia de um segundo julgamento post mortem e, sendo assim, um lugar no
Além, destinado a estas almas à espera do julgamento derradeiro, feita por Cristo no fim dos
tempos. O que classificamos como “inferno de espera” seria a base de um pensamento que, no
século XII, culminaria na instituição do Purgatório como terceiro lugar no Além cristão, entre
o Paraíso e o Inferno.
Referências Bibliográficas
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