o jantar clarice lispector - anállise

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O JANTAR, CLARICE LISPECTOR Saulo Lopes de Sousa 1 1 A PAIXÃO SEGUNDO CLARICE LISPECTOR O primeiro grande impacto que Clarice Lispector causa no leitor é o de perspectiva. A autora tinha o talento de deslocar o olhar do leitor para um novo ângulo, do qual os fatos ganham uma dimensão inusitada, intensa, absoluta e transcendente. De seu olhar meticuloso e hipersensível, o ínfimo parece cósmico; o silêncio, o mais agudo dos gritos. Lispector se interessa por processos interiores e pela revolução que esses processos promovem nas relações do ser consigo mesmo e com o mundo. Suas personagens estão sempre às voltas com o cotidiano; de repente, algo as faz estremecerem, desequilibrarem-se. O que move esse desequilíbrio é a revelação súbita de algo fundamental, que permanecia, até então, adormecido nelas mesmas. As personagens são, então, compelidas a uma dolorosa viagem que fatalmente resultará numa transformação íntima radical. A paixão é um dado fundamental nesse processo de epifania – paixão nos seus vários sentidos: de “sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão”; de sofrimento; de amor ardente. 1 Graduado em Letras/Literatura pela Universidade Estadual do Maranhão – Campus Imperatriz. Professor de Língua Portuguesa no Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão – Campus Imperatriz. Pesquisador do GELITI – Grupo de Estudos Literários e Imagéticos – do CESI/UEMA. E-mail: [email protected]

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O JANTAR, CLARICE LISPECTORSaulo Lopes de Sousa[footnoteRef:2] [2: Graduado em Letras/Literatura pela Universidade Estadual do Maranho Campus Imperatriz. Professor de Lngua Portuguesa no Instituto de Educao, Cincia e Tecnologia do Maranho Campus Imperatriz. Pesquisador do GELITI Grupo de Estudos Literrios e Imagticos do CESI/UEMA. E-mail: [email protected] ]

1 A PAIXO SEGUNDO CLARICE LISPECTORO primeiro grande impacto que Clarice Lispector causa no leitor o de perspectiva. A autora tinha o talento de deslocar o olhar do leitor para um novo ngulo, do qual os fatos ganham uma dimenso inusitada, intensa, absoluta e transcendente. De seu olhar meticuloso e hipersensvel, o nfimo parece csmico; o silncio, o mais agudo dos gritos.Lispector se interessa por processos interiores e pela revoluo que esses processos promovem nas relaes do ser consigo mesmo e com o mundo. Suas personagens esto sempre s voltas com o cotidiano; de repente, algo as faz estremecerem, desequilibrarem-se. O que move esse desequilbrio a revelao sbita de algo fundamental, que permanecia, at ento, adormecido nelas mesmas. As personagens so, ento, compelidas a uma dolorosa viagem que fatalmente resultar numa transformao ntima radical. A paixo um dado fundamental nesse processo de epifania paixo nos seus vrios sentidos: de sentimento ou emoo levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se lucidez e razo; de sofrimento; de amor ardente.As personagens de Lispector vivem em estado de sensibilidade e de urgncia. Sentimentos de solido, de abandono, de culpa, de jbilo e o auto-enfrentamento, que as pe em contato com o mal, com a inveja que trazem em si, so colocados sob uma lupa e ganham dimenses astronmicas para que possam ser dissecados e analisados pela autora.O narrador em primeira pessoa desnuda-se; o de terceira pessoa desnuda a personagem, e o fazem com a compaixo de quem domina a cincia da dor, de quem j desceu ou est descendo aos prprios infernos. Clarice, por meio de seu olhar diabolicamente penetrante, revela o que h de realmente vivo sob a superfcie do cotidiano.O conto O jantar, incluso no livro Laos de Famlia, diferente de outros textos da autora, apresenta o foco narrativo centrado numa figura masculina. Esse homem, cujo nome no explicitado, observa com minuciosidade intensa um velho fazer sua refeio (jantar), ambos num restaurante. medida que olha os pormenores da figura envelhecida, reflete sobre seus prprios limites e os rejeita. Na verdade, no um mero jantar que ele vislumbra, e sim um espetculo do vigor primitivo diante do mais primordial ato da existncia: alimentar-se. Metaforicamente, percebe-se isso na mo pesada e cabeluda do ancio perscrutando os diferentes manjares. O homem observa detalhadamente o velho a comer. Ambos no se conheciam. A brusquido e a dureza do velho chamaram a ateno do homem, que lhe espreitava cada gesto. At que o homem, extasiado, e sentindo certa nusea, percebeu no velho uma lgrima. Ento, no tocou mais no prato, enquanto o senhor idoso terminou a sua refeio, comeu a sobremesa, pagou a conta, deixou uma gorjeta para o garom e atravessou o salo, luminoso, desaparecendo.

2 O JANTAR CARNE, SANGUE, TEMPO E DILACERAMENTONos textos clariceanos, a reflexo se sobrepe ao. Clarice no se preocupa com a construo de um enredo tradicionalmente estruturado, com comeo, meio e fim. Ela mesma declarou: os meus livros no se preocupam com os fatos em sim, porque para mim o importante a repercusso dos fatos no indivduo. Por isso, os mesmos negam a importncia e o andamento do enredo, cedendo lugar aos ares perturbadores das inquietaes ntimas dos personagens.No conto O jantar, as inflamaes desse olhar do narrador em sua profunda alma centram-se nos aspectos epifnicos da obra. Sendo assim, o vis temtico dessa obra o tempo, o devorador da vida humana na sua impiedosa voracidade.

2.1 A viso o monstro do tempoUm senhor de avanada idade, (...) alto, corpulento, de cabelos brancos, sobrancelhas espessas e mos potentes (LISPECTOR, 1998, p.76) adentra num restaurante e l faz sua refeio noturna. A viso desse senhor chama a ateno de outro homem (narrador-personagem) que j se encontrava no local, e o mesmo passa a observ-lo com obsessivo interesse. Antes, detinha-se na observao de uma mulher magra de chapu. Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros. (LISPECTOR, 1998, p.76).Esses aspectos monstruosos em que se manifesta o homem velho a representao do prprio tempo. Percebe-se, pelas suas caractersticas, que o tempo o nico monstro que o homem ainda no conseguiu vencer, justamente porque num dedo [h] um anel de sua fora (LISPECTOR, 1998, p.76), ou seja, a humanidade ainda no foi capaz de romper esse ciclo temporal e, assim, vislumbrar o sonho da imortalidade. O tempo amplo e slido (LISPECTOR, 1998, p.76), algo maior que o ser humano e, tambm, conscientemente sentido, algo do qual no se pode fugir.O velho, como tratado pelo narrador, em pleno exerccio alimentar, oscila em momentos de equilbrio e fora, fragilidade e desmoronamento. Mastiga, vislumbra, come e se edifica, depois para e mergulha no vazio e na agonia. Olhei para o meu prato. Quando fitei-o de novo, ele estava em plena glria do jantar, mastigando de boca aberta, passando a lngua pelos dentes, com o olhar fixo na luz do teto. Eu j ia cortar a carne de novo, quando o vi parar inteiramente. (LISPECTOR, 1998, p.77) medida que avana em sua investigao ocular, o narrador vai perdendo-se na viso que vislumbra, deixando-se, ainda que inconscientemente, envolver e participar tambm do banquete daquele senhor: Eu que j comia devagar, um pouco nauseado sem saber por que, participando tambm no sabia de qu. (LISPECTOR, 1998, p.77). Nesse momento, o narrador comea a ter um tmido e ntimo mal-estar, isto , a sua conscincia de que est atrelado fatalidade do tempo, de no poder escapar ao destino em que toda a humanidade est amarrada. Ele tambm se sente partcipe de algo que no o sabe ao certo. Na verdade, o narrador comea a entender que ele, assim como o homem, o prato principal na mesa do tempo; ele a refeio que diariamente o tempo consome. A cada dia, nos tirado um pouco de vida, pelo fato de se estar dentro desse ciclo imprimido pelo tempo. Por isso, o homem devorado aos poucos, como a carne que o velho senhor gordo saboreia no restaurante.Esse mal-estar sentido pelo narrador (nusea), em Clarice, configura-se como sintoma iluminante da epifania. O processo de epifania pode ser descrito como a apreenso intuitiva da realidade por meio de algo geralmente simples e inesperado. Mais frente, esse aspecto ser trabalhado com mais profundidade.

2.2 A lgrima do tempo vulnerabilidadeEm certo momento do jantar, o narrador observa que o velho aparentou engasgar-se, vendo-o estremecer por inteiro, a levar o guardanapo aos olhos e comprimi-los com brutalidade: A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoo, pois quando ele pde continuar fez um gesto terrvel de esforo para engolir e passou o guardanapo pela testa. (LISPECTOR, 1998, p.78). Aps esse episdio, imageticamente angustiante, o narrador percebe que algo escorre do rosto do velho: eu vi. Vi a lgrima. (LISPECTOR, 1998, p.78). Essa lgrima, como se pensaria, no se refere a um estado emocional, ligada a algum sentimentalismo. Portanto, sua incidncia involuntria, resultado do sufocamento por uma congesto alimentar. Sendo assim, a lgrima alegoriza a vulnerabilidade do tempo, devido interferncia da ao humana em driblar dos ditames do destino. Mas essa tentativa, por mais investida que seja, sempre esbarrar no impedimento, posto que as rdeas que o tempo nos impe so inquebrantveis. Essa certeza ntida no pensamento do narrador: (...) eu prprio, com o aperto insuportvel na garganta, furioso, quebrado em submisso. (LISPECTOR, 1998, p.78).Tinha-se o narrador, antes da chegada do senhor velho, no restaurante, fazendo sua refeio. A partir do momento em que este adentra o recinto e inicia a degustao de seu prato, o homem observador interrompe bruscamente seu jantar, desistindo da comida: Eu no podia mais, a carne no meu prato era crua, eu que no podia mais. Porm, ele ele comia. (LISPECTOR, 1998, p.78). O narrador observa em seu prato a carne com aspecto cru. Aqui, percebe-se resqucio de vida na carne, uma vez que ela estava crua. A carne, quanto metonmia do homem, do humano, alude ao fato de o tempo devorar a (viva) carne crua da humanidade. Ele, narrador, j no pode mais comungar dessa constatao por demais abaladora; ele se v impotente diante da verdade descoberta: o tempo que consome a vida, nas paulatinas garfadas da carne humana. Nesse instante, o processo epifnico ganha maior proporo, avolumando-se num estado de xtase revelador.

2.3 A nusea a epifania do tempo sentidoVeio mesa do velho gordo um garom, trazendo-lhe outra garrafa de vinho, que vertia vinho vermelho na taa (...) (LISPECTOR, 1998, p.78). Agora, um novo elemento includo na refeio do homem: Ele agora misturava carne os goles de vinho na grande boca e os dentes postios mastigavam pesados enquanto eu espreitava em vo. Nada mais acontecia. (LISPECTOR, 1998, p.79). O vinho que acrescido carne, no prato do homem, representa o prprio sangue humano, numa referncia Santa Ceia do Senhor, na qual o corpo e o sangue de Cristo so oferecidos em favor da redeno da humanidade. Neste caso, tais smbolos assumem um sentido inverso: o corpo e o sangue so consumidos como forma de aniquilamento, de extino do ser. So o corpo e sangue do prprio narrador voyer (e por extenso do homem), a metfora da vida humana servida numa badeja ao tempo, velho comedor de crianas (LISPECTOR, 1998, p.80).A nusea clariceana, em si, o grande centro do relato: Meus olhos ardem e a claridade alta, persistente. Estou tomado pelo xtase arfante da nusea. Tudo me parece grande e perigoso (LISPECTOR, 1998, p. 79). Sobre esse mal-estar, Benedito Nunes explana:Manifestando-se como um mal-estar sbito e injustificvel que do corpo se apodera e do corpo se transmite conscincia, por uma espcie de captao mgica emocional, a nusea (mais primitiva do que a angstia e como espordica) revela, sob a forma de um fascnio da coisa, a contingncia do sujeito humano e o absurdo do ser que o circunda (NUNES, 1989, p. 117).Torna-se perceptvel o nauseado estado do intermediador, ampliado e reforado pelos silncios e "brancos" presentes, e, sobretudo, sentidos nas "sombras" de cada ao da narrativa. A princpio, na figura do "velho" que est a comer, existem momentos de edificao e queda. Runa demonstrada, por vezes, em reaes violentas; em outras, por silncio sepulcral. Com o narrador-personagem h somente o aniquilamento lento e gradual. Influenciado pela observao do "velho", sente-se fascinado e ao mesmo tempo dilacerado, mas no consegue se levantar como ele. A viso do velho (tempo) devorando a carne (o homem), para o narrador algo fascinante. Em todo o caso, tambm se torna algo aterrador, visto que ele tambm faz parte desse processo, no lhe sendo permitido fugir da ao predadora do tempo.Ele terminou. (LISPECTOR, 1998, p.79). O velho (tempo), aps o banquete, sente-se saciado. Aparentemente fraco, o tempo ainda tem toda potencialidade para continuar sua incansvel refeio humana. Ningum est eximido de ser apunhalado e tornar-se o prximo prato a ser servido. Todos fazem parte do cardpio; resta saber quando sero servidos. E contra isso, no h nada que se possa fazer: Ele parece mais fraco, embora ainda enorme e ainda capaz de apunhalar qualquer um de ns. Sem que eu possa fazer nada. (LISPECTOR, 1998, p.80).Ao final da observao e do ato, o narrador no consegue nem ao menos terminar o almoo. Nesse instante, o estado de clarividncia, denominado tambm por epifania, toma conta da personagem.Mas eu sou homem ainda. Quando me traram ou assassinaram, quando algum foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer eu no como. No sou ainda esta potncia, esta construo, esta runa. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue (LISPECTOR, 1998, p. 80-81).Esse instante de iluminao para o personagem a sua grande revelao. Ciente da doura da velhice que o tempo carrega, ele percebe-se ainda como um homem, ou seja, ele ainda tem tempo para desfrutar dos sabores que a vida lhe proporciona. Ele no a carne do prato. A sua conscincia de que ainda no chegada a hora de fazer parte da refeio do tempo. A justificativa que d para no comer diz respeito confluncia da morte com o tempo, este caminho pelo qual o homem se envereda, inevitavelmente, ruma quela. A certeza da morte, desconhecida, majestosa, cruel e cega. (LISPECTOR, 1998, p.80) causa encanto e pavor no sujeito, a ponto de inibi-lo a alimentar-se. Comer a carne pactuar com os desgnios do tempo e o narrador no se sente preparado para isso. Ele ainda no esta potncia, esta construo, esta runa, no tem capacidade para suportar essa verdade, apesar de t-la conhecido.Ento, ciente de sua fragilidade quanto aos ditames do tempo esmagador, ele nega aceitar a condio na qual est preso, no comunga do farto banquete do tempo, mesmo sendo o cordeiro imolado, prestes a ser degustado. 3 CONCLUSO Clarice consegue atravs de sua eficaz tcnica, nos dizer o indizvel, ou melhor, atravs dos seus roteiros "triviais", das suas aparentes histrias comuns, dos silncios e choques, nos fazer sentir o que no pode ser dito somente atravs de palavras. Numa espcie de realidade adivinhada, a autora expe a precariedade e a clandestinidade da conscincia e da existncia, entre as aleluias e as agonias do ser.No conto O jantar, o narrador sente-se fascinado com o episdio, at ento indito. Ver um senhor gordo devorando um pedao de carne, com voracidade e gosto, despertou-lhe a viso para o novo em meio ao trivial. Porm, aps percorrer um profundo estado de revelao, encontra-se dilacerado pela viso antagnica do velho, como se fosse a sua prpria carne que o senhor retalhava no prato. Assim tambm, o tempo nos retalha diariamente. Sem que se perceba, nos tirado um pedao de carne, uma parte de vida, um flego de esperana, uma alegria, um amigo, um sonho, enfim. O velho e gordo monstro do tempo sacia-se, mas nunca por completo. Estar sempre espreita de mais carne, ceifando a vida humana. Cabe ao homem preparar-se para quando chegar sua hora de ser servido assado ou cru, ao molho branco ou pardo. REFERNCIASLISPECTOR, Clarice. O jantar. In: LISPECTOR, Clarice. Laos de Famlia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. So Paulo: tica, 1989.