o judiciário e o discurso dos direitos humanos

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Publicado em versão impressa pela Editora Universitária da UFPE, como parte do PROCAD UFAL-UFPE-UFPB financiado pela CAPES.

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O JUDICIÁRIO E O DISCURSO DOS DIREITOS HUMANOS

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O JUDICIÁRIO E O DISCURSO DOS DIREITOS HUMANOS

ARTUR STAMFORD DA SILVA ORGANIZADOR

Recife – 2011

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TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos e vídeográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusão de qualquer parte da obra em qualquer programa juscibernético. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração.

Créditos:

Capa:

Carolina Leal

Ilustração: “Kuilt Texture” de John Wisbey – (www.sxc.hu)

Responsabilidade pelo conteúdo e Redação: O Autor do Capítulo

Formatacção:

Artur Stamford da Silva

Impressão e acabamento: EDUFPE

Catalogação na fonte:

Bibliotecária Joselly de Barros Gonçalves, CRB4-1748

J92

O judiciário e o discurso dos direitos humanos / Artur

Stamford da Silva, organizador. – Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2011.

324 p. Vários autores. Inclui referências. ISBN 978-85-7315-945-5 (broch.) 1. Poder judiciário. 2. Hermenêutica (Direito). 3. Direitos humanos. 4. Função judicial. 5. Juízes – Decisões. I. Silva, Artur Stamford da (Org.). 347 CDD (22.ed.) UFPE (BC2011-135)

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Aos autores

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“Eis, Poeta, vosso pecado: o muito amor às teorias em um mundo teórico, a voz concisa e contida, a congruência da fala - expressada sempre direta – sempre em fuga ao sonho, o estilo roto, o-passado-o-presente-e-o-futuro sempre separados: a ilusão de conhecer todos os estados pré-noturnos ...”

César Leal (Der triumph der wasser und andere gedichte. München, 2002. O triunfo das águas e outros poemas. Recife: Bargaço, 2008, p. 51.

“A guerra tem suas leis e eu as cumpri Com a força de quem sabe o que convém, Por isso, perdoai, nobres Senhores Se em fogo eu cobri tantos Engenhos”

César Leal (André Vidal de Negreiros. In: Os heróis. Recife: Bargaço, 1996, p. 51.

“O texto excede a dimensão propriamente verbal: na forma escrita, ele compõe imagem (o que a tipografia manifesta), na forma oral, é um elemento num fluxo de comunicação (gestos, entonações, roupas ...): a orquestra em que cada um toca sua parte”

Dominique Maingueneau (Doze conceitos em análise de discurso. São Paulo: Parábola, 2010, p. 14)

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AGRADECIMENTOS

A Carolina Leal, pela paciência cotidiana e diária às minhas idiossincrasias e pelo apoio dia-a-dia a cada decisão sobre minha continuidade na profissão acadêmica.

Escrever agradecimentos é assumir os riscos de esquecimento

e de promover uma listagem hierárquica, sempre indevida. A alternativa para reduzir tais riscos foi inicar por instituições e, quando possível, aplicar ordem alfabética.

Assim, inicio agradecendo cada um dos autores, por sua

disponibilidade à integração em detrimento à infantilidade da disputa acadêmica, profissionalismo raro na academia atual; bem como pela paciência face às minhas insistentes mensagens eletrônicas.

Denuncio meu roubo à ideia da profa. Dra. Luciana Grassano,

Diretora do CCJ-UFPE, ao afirmar que a grande listagem nos agradecimentos sinaliza que a obra é fruto de ações e esforços coletivos. Agradeço à professora a sempre disposição em apoiar as iniciativas acadêmicas dos que fazem o Moinho Jurídico (Mostruário de Observação Social do Direito): Artur Stamford da Silva, Gustavo Ferreira Santos e João Paulo Allain Teixeira.

À CAPES, por estimular a formação de equipes nacionais de

pesquisa através do programa PROCAD. À UFPE especialmente à EdUFPE em nome da Diretora Maria

José de Matos Luna, por sua sensibilidade e estímulo ao debate dos direitos humanos e força na publicação deste livro, bem como a Adriana Rosa e Sérgio Siqueira, pelas constantes respostas, informações sem as quais este livro não teria sido possível.

A todos os administradores de Centros Acadêmicos,

Departamentos e Programas de Pós-Graduação, por não

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inviabilizarem o PROCAD UFAL/UFPB/UFPE nem o PROCAD UFSC/UNIVALI/UNICAP.

A André Barreto, Camila Laurentino e Marcelle Penha pelo

pronto apoio na realização do Evento, sem o qual eu não teria assumido tal empreitada, bem como pela paciência e disponibilidade por manter e dar vida ao Moinho Jurídico.

Aos responsáveis por formular e tomar todas as providências

burocráticas necessárias junto à CAPES para existir o PROCAD UFAL/UFPB/UFPE:

Eduardo Rabenhost, por sua dedicação durante a confecção

do Projeto, auxílio na composição da equipe da UFPB e disponibilidade em unir docentes-pesquisadores;

George Salomão, por sua dedicação e capacidade de

organização dos documentos durante a constituição do PROCAD UFAL/UFPB/UFPE e disponibilidade em unir docentes-pesquisadores;

Gustavo Ferreira Santos, pela iniciativa, estímulo e dedicação

na confecção do Projeto do PROCAD, além da capacidade de integrar os docentes da equipe da UFPE.

A Adrualdo Catão, por assumir a coordenação geral do

PROCAD UFAL/UFPB e UFPE bem como a equipe da UFAL. A Enoque Feitosa por Coordenar a equipe da UFPB. A Cecília Caballero, por sua amizade e consideração, bem

como pelo desprendimento e Coordenação do PROCAD UFSC/UNIVALI/UNICAP.

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APRESENTAÇÃO

O Judiciário e o Discurso dos Direitos Humanos é o nome

atribuído ao PROCAD UFAL/UFPB e UFPE, título que tornou viável integrar pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito das referidas IFES justo pela pluralidade temática que suporta. Essa pluralidade, contudo, não se confunde com infinitude nem ausência de limites, com se pode constatar da leitura de cada capítulo deste livro, cuja interligação está na reflexão sobre o Poder Judiciário, a decisão jurídica e direitos humanos.

Por ser título do PROCAD, tornou-se título do evento realizado no período de 23 a 25 de novembro de 2011, nas dependências da Faculdade de Direito do Recife, Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco.

A pluralidade suportada, inclusive, tornou viável a união do PROCAD UFAL/UFPB/UFPE com o PROCAD UFSC/UNIVALI/UNICAP, pois ambos se ocupam em unir pesquisadores dedicados à reflexão sobre direitos humanos e a decisão jurídica.

A escolha pela seguência das contribuições foi estabelecida visualizando equilibrar reflexões consideradas mais abstratas daqueleas mais empíricas, além da proximidade temática das contribuições dos autores.

Após leitura dos textos, selecionamos três pontos focais: Decisão Jurídica, hermenêutica e direitos humanos; Eficácia do direito e direitos humanos; Transconstitucionalismo e direitos humanos. Assim justifico a sequência dos artigos.

Iniciar por textos que abordam a questão da intepretação teve lugar dada a abastração teórica contida no debate. Todavia, essa abstração é seguida de textos dedicados a aplicações do direito. Por fim, a sequência de textos dedicados ao transconstitucionalismo fecham o livro evidenciando o quanto a dimensão jurídica dos direitos humanos não se reduz a questões regionais.

Assim, o livro se inicia com os textos que trazem reflexões hermenêuticas, como no caso do giro linguístico com Wittgenstein e

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sua relação com Pontes de Miranda, a pragmática tal como no realismo jurídico e sua contribuição para pensar os direitos humanos e considerações linguísticas de prisma metafórico para tratar a constitucionalização do direito privado.

Do texto dedicado à perspectiva marxista aplicada aos dirietos humanos seguimos para as pesquisas que explroaram decisões jurídicas como no caso do capítulo sobre direito à habitação adequada, a questão do direito à comunicação, a licitude da prova ilícita e a abordagem de decisões do tribunal europeu e da conrte interamericana de direitos humanos.

Como tema seguinte estão os textos dedicados ao transnacionalismo quando tem lugar a questão da justiça transicional, os diálogos institucionais e a democracia, o pluralismo constitucional e as demandas transnacionais.

Assim, entendemos que o presente livro realiza a função de trazer à público reflexões sobre os mais variados olhares relacionado aos direitos humanos e a decisão jurídica.

Recife, 25 de agosto de 2011.

Artur Stamford da Silva

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SUMÁRIO O GIRO LINGUÍSTICO DE WITTGENSTEIN E SUA INFLUÊNCIA NA FILOSOFIA DO DIREITO DE PONTES DE MIRANDA (Adrualdo Catão) ......................................................................................... 15 PARA UMA CRÍTICA DO REALISMO JURÍDICO AMERICANO À FUNDAMENTAÇÃO JUSNATURALISTA DOS DIREITOS HUMANOS (Lorena Freitas) ......................................................................43 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E MITOLOGIAS DA LEGISLAÇÃO: CÓDIGO CIVIL VERSUS CONSTITUIÇÃO? (Torquato de Casro Jr.) ...............................................59 DIREITOS HUMANOS: ENTRE PROMESSA FORMAL E As DEMANDAs POR SUA CONCRETIZAÇÃO (um ensaio de interpretação marxista) (Enoque Feitosa) ……………………………….67 JUDICIÁRIO E COMUNICAÇÃO: O PROBLEMA DA RESTRICAO AO DISCURSO DO ÓDIO (Gustavo Ferreira Santos e outros) ................81 A LICITUDE DA PROVA ILÍCITA. O PARADOXO E A DECISÃO JURÍDICA (Artur Stamford da Silva e Marcelle Penha) .............................93 DIREITO À HABITAÇÃO ADEQUADA: O DESAFIO DA EFETIVIDADE E O DISCURSO NO JUDICIÁRIO (George Sarmento) ……………………………………………………..…133 NORMAS E DECISÕES DO TRIBUNAL EUROPEU E DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (Jayme Benvenuto e Rodrigo Deodato de Souza Silva) ………..……………….………………163 PLURALISMO CONSTITUCIONAL E ESPAÇOS TRANSNACIONAIS (Luiz Magno Jr. e Cecília Caballero Lois) …...…………………………………………….………..187 DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA CONSTITUCIONAL TRANSICIONAL (Bruno Galindo) ……………………………………..221 O FENÔMENO DOS “NOVOS” DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS DEMANDAS TRANSNACIONAIS (Marcos Leite Garcia e Paulo Márcio Cruz) …………………………………...…………………………………265 DIÁLOGOS INSTITUCIONAIS E DEMOCRACIA (Cecília Caballero Lois e Rafael Costa e Silva) …………………………………………………...…303

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O GIRO LINGUÍSTICO DE WITTGENSTEIN E SUA INFLUÊNCIA NA FILOSOFIA DO DIREITO DE PONTES DE MIRANDA

Adrualdo de Lima Catão1 Pretende-se, nesse trabalho, apresentar a filosofia do primeiro

Wittgenstein, contida no Tratado Lógico-Filosófico, como a filosofia que serve de base para uma formulação representacionista das descrições fáticas presente no pensamento de Pontes de Miranda. Nesse sentido, no âmbito da Teoria do Direito, a filosofia do Tratado Lógico-Filosófico pode servir para fundamentar uma visão representacionista da verdade, como a encontrada em Pontes de Miranda na sua distinção entre incidência e aplicação do Direito.

Nesse sentido, Wittgenstein aparece aqui como representante do movimento filosófico conhecido como “neopositivismo lógico” ou “positivismo lógico”. A base comum das ideias trazidas pelo neopositivismo são aquelas encontradas em filósofos como Bertrand Russel e G. E. Moore, além de Rudolf Carnap, Morits Schlick e do próprio Ludwig Wittgenstein.2

Esse movimento vem desencadear o que a tradição filosófica chamou de “giro linguístico”. Essa expressão faz referência à importância da linguagem para os neopositivistas. Os filósofos neopositivistas acreditam que os problemas filosóficos devem ser dissolvidos por uma espécie de reforma da linguagem. 3

1Mestre e Doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela UFPE. Professor de Filosofia do Direito e Ética na graduação e no mestrado da Faculdade de Direito de Alagoas/UFAL. Coordenador do Mestrado em Direito da FDA/UFAL. 2 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 37. 3 RORTY, Richard. “Introduction”. RORTY, Richard. (org.) The linguistic turn: essays in philosophical methods. Chicago and London: University of Chicago Press, 1992, p. 1-39.

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Parte-se da noção de que a Filosofia tem uma função específica: definir os limites do que tem sentido, ou seja, do que pode ser dito, como nos diz Morits Schlick:

A Filosofia é uma atividade, não uma ciência, mas esta atividade, obviamente, trabalha em todas as ciências continuadamente, porque antes que as ciências possam descobrir a verdade ou falsidade de uma proposição elas têm que chegar ao sentido primeiro. E às vezes no curso do seu trabalho elas são surpreendidas ao descobrir, pelos resultados contraditórios a que chegaram, que estavam usando palavras sem um perfeito e claro sentido, e terão que voltar à atividade filosófica de clarificação (...)4.

Para o neopositivismo lógico, a atividade filosófica seria essencialmente meta-científica, servindo como conjunto de critérios para análise das proposições da linguagem científica, definindo seus limites e possibilidades. Tais critérios deveriam ser encontrados num ambiente linguístico puro, livre de ambiguidades e valorações. Esse ambiente seria, por excelência, aquele das ciências puras, da Lógica e da Matemática.

Para o neopositivismo, a Filosofia seria então a Lógica das ciências. Mas, ao contrário dos metafísicos, que se concentraram no que estaria por trás do objeto analisado empiricamente (a essência, a coisa-em-si), os filósofos analíticos da linguagem deveriam se concentrar no que está antes dos objetos analisados empiricamente, tomando a própria linguagem da ciência como objeto da Filosofia. E o

4 No Original: “Philosophy is an activity, not a science, but this activity, of course, is at work in every single science continually, because before the sciences can discover the truth or falsity of a proposition they have do get at the meaning first. And sometimes in the course of their work they are surprised to find, by the contradictory results at which they arrived, that they have been using words without a perfect clear meaning, and then they will have to turn to the philosophical activity of clarification (…)”.”. SCHLICK, Morits. “The future of philosophy”. RORTY, Richard. (org.) The linguistic turn: essays in philosophical methods. Chicago and London: University of Chicago Press, 1992. p. 43-53.

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ponto de vista a partir do qual a ciência deverá ser analisada deve ser o ponto de vista lógico.5

A Lógica formal seria, pois, o campo próprio da Filosofia, exatamente porque seria por meio da Lógica que os problemas metafísicos seriam demonstrados como proposições sem sentido, e, portanto, proposições de fora do âmbito científico. A unificação da ciência seria dada por meio da Lógica.6 Como destaca Pontes de Miranda, a corrente do neopositivismo lógico se refere a uma Lógica estritamente objetiva.7

Nesse sentido, o Tratado Lógico-Filosófico é um marco na filosofia analítica e representa bem a tentativa de se definir e traçar os limites da linguagem, abordando a proposição com sentido como uma relação lógica entre linguagem e mundo.

A questão fundamental do Tractatus é o porquê de as proposições fazerem sentido e, portanto, poderem ser verdadeiras ou falsas. A resposta estaria na relação que existe entre a estrutura lógica da proposição e a estrutura lógica do mundo. Para dar essa resposta faz-se necessária uma Filosofia da pureza lógica, excluindo as ambiguidades que fazem surgir os problemas filosóficos e que atrapalham o rigor científico.

É nesse sentido que, para Wittgenstein, a “proposição atômica” seria uma figuração, um retrato do mundo, justamente porque “constitui um fato que possui algo em comum com o fato atômico afigurado. Esse ‘algo em comum’ nada mais é do que a

5 CARNAP, Rudolf. “On the character of philosophical problems”. RORTY, Richard. (org.) The linguistic turn: essays in philosophical methods. Chicago and London: University of Chicago Press, 1992, p. 54-62. 6MENEZES, Djacir. “Pontes de Miranda e o Neo-positivismo Lógico”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 175. 7 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 4, 2005, p. 47.

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forma da afiguração, ou seja, a estrutura ou forma lógica comum a ambos”.8

Isso é uma decorrência lógica do sucesso das ciências e, portanto, da existência de proposições verdadeiras. Se as proposições podem ser verificadas (ser verdadeiras ou falsas), isso implica a existência de uma isomorfia entre a proposição e mundo. De outra forma, não faria sentido a proposição. A isomorfia é, de certa maneira, uma pressuposição lógica.

Assim sendo, a “forma lógica da afiguração” desempenha um papel essencial, sendo ela a condição transcendental de possibilidade da linguagem e, portanto, do próprio mundo. A forma da afiguração é resultado de um raciocínio filosófico que pressupõe “um rigoroso paralelismo entre a proposição e o fato por ela descrito”, característica de uma filosofia representacionista. 9

A Lógica, portanto, explica a questão fundamental do sentido da proposição. Para o Tractatus, é a lógica da linguagem que nos mostra a lógica do mundo. Wittgenstein, no Tractatus, não procura a natureza da proposição no mundo mesmo ou na realidade empírica, mas sim, no exame da lógica da própria linguagem.

Por conseguinte, as condições de possibilidade da existência do mundo só podem ser decorrentes das condições de possibilidade da própria linguagem, definidas pela análise da forma lógica da proposição, que determina a figuração, e concede os critérios para definir o que tem e o que não tem sentido.

Trata-se de um isomorfismo escondido, pois, como pressuposto, não pode ser investigado pela filosofia do neopositivismo, configurando-se no limite a que a Filosofia deve chegar. A única coisa que a Filosofia poderia fazer, segundo Wittgenstein, é mostrar a forma lógica da linguagem que é isomórfica

8 PINTO, Paulo Roberto Margutti. Iniciação ao silêncio: uma análise do Tractatus de Wittgenstein como forma de argumentação. São Paulo: Loyola, 1998, p. 192; WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, § 4.01. 9 PINTO, Paulo Roberto Margutti. Iniciação ao silêncio: uma análise do Tractatus de Wittgenstein como forma de argumentação. São Paulo: Loyola, 1998, p. 157.

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à forma lógica do mundo. Essa isomorfia é mostrada ao apontar a proposição com sentido.

É daí que surge a noção de imagem. A forma lógica da linguagem é mostrada e, ao mesmo tempo, serve como critério para definir os limites do que tem sentido. Antes de se perguntar sobre o valor de verdade da proposição, precisa-se, portanto, que ela obedeça à forma lógica, qual seja, a de designar um estado de coisas possível. Daí Wittgenstein afirmar que proposição é “uma imagem da realidade, (...) um modelo de realidade tal qual a pensamos”. Ao mesmo tempo, “o sentido da proposição é a sua concordância ou sua não-concordância com as possibilidades da existência e da não-existência de estados de coisas”. 10

Nesse sentido, uma proposição, antes de ser falsa ou verdadeira, deve ser, logicamente, um modelo referencial. Deve manifestar o isomorfismo entre a linguagem e a realidade. No Tractatus, um fato ou estado de coisas não pode ser identificado como uma simples lista de seus componentes. É a estrutura, o modo como tais componentes se conectam que identifica o fato ou estado de coisas.

Consequentemente, o método correto em Filosofia seria somente dizer aquilo que pode ser denotado, portanto, aquilo que pode, logicamente, ter seu valor de verdade aferido. Segundo Wittgenstein, somente as proposições das ciências naturais, que não são parte da Filosofia, denotam algo. Assim, quando alguém quer dizer uma proposição da metafísica, deve o filósofo simplesmente mostrar-lhe que na sua proposição existem sinais sem denotação. 11

Deve-se, destarte, ressaltar o fato de que a proposição pode ter sentido, mas não ser verdadeira (não ter significado), ou seja, nenhuma proposição pode ser a priori verdadeira. Por isso Wittgenstein afirma: “À proposição pertence tudo o que pertence à

10 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, § 4.01 e 4.2. 11 Idem, § 6.53.

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projeção, mas não o que é projetado. (...) Na proposição está contida a forma, mas não o conteúdo do seu sentido”.12

Desse modo, somente seria possível reconhecer o valor de verdade a priori de uma proposição, se fosse possível reconhecer, nela mesma, a existência do estado de coisas por ela designado. Para Wittgenstein, isso não é o que ocorre. Não poder reconhecer o valor de verdade de uma proposição a priori significa que a verdade ou falsidade é a sua correspondência com um estado de coisas, existente ou não, a depender da análise empírica. Somente após a análise empírica pode-se saber se uma proposição é falsa ou verdadeira.

Por isso a visão de que a proposição com sentido só pode ser considerada verdadeira se designar um estado de coisas subsistente, confere à filosofia do Tratado Lógico Filosófico um caráter nitidamente representacionista. Isso porque os limites da verdade são dados pela análise da existência (ou inexistência) real do estado de coisas referenciado, num vínculo estabelecido pela definição ostensiva. 13

É desta forma que a atribuição de um valor de verdade a uma proposição se dá numa relação de correspondência entre a proposição e o que efetivamente existe ou não existe. 14 Mesmo no caso de enunciados complexos, como as teorias científicas, por exemplo, a questão da verdade se reduz à análise de cada proposição que compõe o sistema teórico, sempre numa relação de correspondência com a realidade, que vai definir seu valor de verdade. Por isso que, para os neopositivistas, dizer a verdade é o mesmo que representar. 15

O neopositivismo é um movimento contemporâneo a Pontes de Miranda e pode servir para exacerbar a distinção entre incidência e aplicação do Direito na sua Teoria do Fato Jurídico. O representacionismo, analisado pelo ponto de vista pontesiano,

12 Idem, § 3.13. 13 GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 97. 14 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, § 4.062. 15 RORTY, Richard. Objectivity, Relativism, and Truth. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. p. 04.

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aparece aliado a um empirismo de conteúdo eminentemente sociológico, propondo uma filosofia científica do Direito, que possa explicitar o fenômeno jurídico.16

Nos próximos pontos do trabalho, serão analisadas as possíveis ligações entre o neopositivismo wittgensteiniano e a Teoria do Fato Jurídico de Pontes de Miranda.

2. O neopositivismo no pensamento de Pontes de Miranda: o papel da lógica e da matemática na Filosofia do Direito

Como visto no ponto anterior, o neopositivismo representa a tentativa da filosofia analítica de definir e traçar os limites da linguagem científica, o que resulta numa postura claramente representacionista. Essa postura já está presente no pensamento pontesiano, deixando importantes frutos na sua fase posterior, quando elabora a Teoria do Fato Jurídico.

No Tratado de Direito Privado, Pontes de Miranda divide os fatos em simples ou complexos. Aos simples, compara o conceito de fato atômico de Wittgenstein. Para Pontes de Miranda, seria o fato simples aquele que “tem seu lugar e seu momento, ainda que nem sempre se possam precisar, ou sequer deles ter-se conhecimento exato (e.g., morte em viagem, por naufrágio ou queda de avião)”. 17

A princípio, a comparação serve para demonstrar a presença de uma espécie de representacionismo na teoria pontesiana, ou seja, a ideia de que às proposições correspondem fatos:

As proposições jurídicas não são diferentes das outras proposições: empregam-se conceitos, para que se possa assegurar que, ocorrendo a, se terá a’. Seria impossível chegar-se até aí, sem que aos conceitos jurídicos não

16 FERREIRA, Pinto. “Pontes de Miranda. O normativismo e o antinormativismo na filosofia do Direito”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 100. 17 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller. Tomo 1, 1999, p. 70.

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correspondessem fatos da vida, ainda quando estes fatos da vida sejam criados pelo pensamento humano. 18

Essa visão, presente na Teoria do Fato Jurídico, está baseada na ênfase dada por Pontes de Miranda ao naturalismo científico, colocando o Direito no campo dos fatos e destacando a necessidade do método científico como formalização e quantificação. É com base nesta ideia de quantificação, já presente em seus primeiros trabalhos, que a sua Teoria Geral do Direito assume um caráter nitidamente lógico.

O neopositivismo lógico acompanhou o pensamento de Pontes de Miranda desde o início de sua carreira. São notáveis, pois, as influências do neopositivismo lógico no pensamento pontesiano. A visão da verdade como representação da realidade está claramente expressa na ideia de incidência infalível da norma jurídica, noção que aparece na sua Teoria do Fato Jurídico e que será explicitada no próximo ponto.

Isso porque é possível dividir o pensamento de Pontes de Miranda em dois períodos. O primeiro é aquele em que ele está mais preocupado com o caráter sociológico do Direito e com uma postura epistemológica. Em seus trabalhos iniciais, destaca-se o Sistema de Ciência Positiva do Direito, uma obra sobre a metodologia de uma Ciência do Direito positivista e sociológica, além de Problemas Fundamentais do Conhecimento, que é uma obra de cunho filosófico.

Uma segunda fase seria o da elaboração de suas obras de dogmática jurídica, sendo o Tratado de Direito Privado a sua obra principal, com 60 volumes. Nessa fase, as preocupações com a Teoria do Direito ainda o acompanham, e as obras de dogmática jurídica vêm sempre formuladas com argumentos ligados à definição de uma Teoria Geral do Direito. A sua Teoria do Fato Jurídico pertence a essa fase, e ainda encontramos nela o logicismo e o representacionismo

18 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller. Tomo 1, 1999, p. 13.

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que o aproxima do neopositivismo lógico. Seu sociologismo também influenciou a visão analítica do fato jurídico. 19

Lourival Vilanova aponta uma ruptura mais enfática entre essas duas fases, ao afirmar que muitos dos conceitos que Pontes de Miranda formula na Teoria do Fato Jurídico não teriam sido obtidos sociologicamente, o que mostraria uma falta de preocupação em seguir a metodologia positivista e sociológica preconizada no Sistema de Ciência Positiva do Direito:

Sem dúvida, a vastíssima sistematização de Pontes de Miranda, na dogmática civil, processual, constitucional, no Direito privado e no Direito público não confirma os postulados filosóficos do ‘Sistema de Ciência Positiva do Direito’. Nem confirma suas ideias básicas contidas nos ‘Capítulos Finais’ apostos na reedição cincoentenária de

1972. 20

Efetivamente, analisando-se os trabalhos dogmáticos de Pontes de Miranda, pouco se encontra de análise empírica ou sociológica do Direito. Suas análises em dogmática jurídica são todas centradas nos institutos jurídicos conforme definidos legal ou historicamente, o que demonstraria uma guinada no seu pensamento.

Não se pode negar que a narrativa teórica é abundante nesta fase, mas efetivamente ela se concentra numa Teoria do Direito formal ou analítica. Muito se encontra, portanto, de abstração, quantificação e logicismo. No início do prefácio do Tratado de Direito Privado, Pontes de Miranda afirma desde logo:

Os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, compostos de proposições que se referem a situações da vida, criadas pelos interesses mais diversos. Essas proposições, regras

19 BASTOS, Aurélio Wander. “Pontes de Miranda: a Escola do Recife e o Direito moderno”. Revista do Curso de Direito. V. 21. N. 2. Fortaleza. Jul./dez. 1980, p. 218. 20VILANOVA, Lourival. “A teoria do Direito em Pontes de Miranda”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 327.

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jurídicas, prevêem (ou vêem) que tais situações ocorrem, e incidem sobre elas como se as marcassem.21

A despeito da posição de Lourival Vilanova, são os resultados lógicos da Teoria do Fato Jurídico que interessam a esse trabalho. A alusão à Lógica e à Matemática como instrumentos de formalização e quantificação do mundo é constante tanto na primeira quanto na segunda fase. Em Pontes de Miranda, simplificar o real é a tarefa fundamental do que ele chama de “órgãos superiores de adaptação humana”. 22

Nesse sentido, muitos comentaristas de sua obra apontam com veemência a importância do neopositivismo lógico no pensamento de Pontes de Miranda, e ela pode ser encontrada tanto na primeira quanto na segunda fase de seu pensamento.

Djacir Menezes afirma: Estas notas buscam caracterizar, através da obra prima de Pontes de Miranda (e de outras cujas passagens pertinentes medram no terreno especulativo) o neo-positivismo lógico e os principais mentores do chamado Círculo de Viena (Wiener Kreis). A conclusão a que chego após tantos anos de estudo de suas obras é a de que Pontes ali encontrou a influência marcante de seu espírito, que lhe daria o perfil preciso no plano das mais altas indagações. E as afinidades profundas que o vincularam àquela “agência” de pensadores eram, sem dúvida, tipicamente, a constância de seus estudos de matemática e física, particularmente da Teoria da Relatividade. 23

Vê-se que, num aspecto mais geral, a aproximação com o neopositivismo lógico reflete as preocupações de Pontes de Miranda que estão ligadas a uma crença na objetividade do mundo científico. Essa objetividade está ligada à possibilidade de clarificação

21 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller. Tomo 1, 1999, p. 13. 22 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 3, 2005, p. 22. 23MENEZES, Djacir. “Pontes de Miranda e o Neo-positivismo Lógico”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 173.

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encontrada na Lógica. Ao tentar explicitar os planos do mundo do Direito, Pontes de Miranda mostra os fatos e as relações jurídicas dentro de um sistema lógico. A própria Teoria do Fato Jurídico é uma proposta analítica, que explicita a forma do fenômeno que Pontes de Miranda chama de “juridicização”. 24

Como argumento histórico contextual, pode-se provar a aproximação de Pontes de Miranda com o neopositivismo demonstrando-se que ele vivenciou o ambiente neopositivista em sua época, soprados a partir da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e dos desdobramentos da Escola do Recife.

Para Lourival Vilanova, seu espírito matemático caracterizaria uma antecipação ao neopositivismo lógico, já que sua obra é datada de 1922 com o Sistema de Ciência Positiva do Direito:

Antecipava-se. Sua obra é de 1922. Sete anos antes do Círculo de Viena, recusava qualquer espécie de metafísica, cujos enunciados careciam de base empírica; inadmitia os juízos-de-valor como juízos susceptíveis de valores veritativos, uma vez que os valores não tinham outra objetividade que a de servirem aos processos sociais de adaptação – conceito central em sua sociologia geral; recusava o Direito natural, pois qualquer tipo de compõem-se de regras de conduta provindas de fontes que o sistema positivo determinava, rechaçava a distinção entre ciências naturais e ciências culturais, e entre estas, as ciências descritivas e as ciências normativas; aceitou o determinismo probabilístico. 25

Todas as características descritas acima por Lourival Vilanova são pontos em comum, presentes na filosofia pontesiana e, em geral, no pensamento neopositivista, por isso ele fala em

24 DUTRA, Pedro. “Aspectos polêmicos e a contradição fundamental em Pontes de Miranda”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 89. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “Pontes de Miranda: sistema e causalidade”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 95. 25VILANOVA, Lourival. “A teoria do Direito em Pontes de Miranda”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 327.

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antecipação. Mas Pontes de Miranda aproximou-se de forma definitiva do neopositivismo somente em 1937, com O Problema Fundamental do Conhecimento, onde, inclusive, aparecem as referências explícitas a Wittgenstein.

É nessa obra que Pontes de Miranda faz um elogio ao trabalho de Wittgenstein, ao afirmar que a “vinda de Russel, Wittgenstein, Reichanbach, Rudolf Carnap e outros, após Mach, completa, sociologicamente, a linha que se esboçava para a renovação da Filosofia no sentido de não mais se sobrepor à ciência”. 26

Na mesma linha do pensamento wittgensteiniano, a Filosofia em O Problema fundamental do conhecimento é nada mais que epistemologia, não descobre novos objetos, mas explica a sintaxe da linguagem científica. A Filosofia “deve clarear, esclarecer. É preciso que não desmonte ou monte a obra tranqüila da ciência”. 27

É ainda nessa obra que ele apresenta sua “Teoria dos Jetos”. Ela afirma que a possibilidade da relação entre sujeito e objeto demonstra que há algo em comum entre os dois termos, que precisa ser revelado, e esse algo não pode ser o objeto mesmo nem o sujeito isoladamente considerado. 28

A preocupação em definir a possibilidade de encontrar uma objetividade não sujeita à distorção leva, nesse sentido, a uma espécie de fenomenologia:

a Teoria do Conhecimento poderia, para abreviar, limitar-se a descrever a atemporalização dos jetos. Quando vejo dois livros, tanto “os livros”, quanto “os dois” são temporais: o jeto que extraio ainda conserva a temporalidade no instante em que termino a extração e só a perde quando, possuído pela consciência, dele se parte com as suas propriedades e a sua lei íntima de expansão. Esta passagem do temporal para o atemporal

26 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. O problema fundamental do conhecimento. Campinas: Bookseller. 2005, p. 229. 27Idem, p. 52. 28 Idem, p. 28.

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é o momento de apreensão do jeto como dotado de identidade permanente. Aqui, o jeto já está sem hífen.29

O –jeto (com hífen) ainda é, portanto, temporal. Somente quando a abstração é completa, temos o jeto (sem hífen). O que ele afirma é que quando se abstrai algo do objeto, tudo o que resta é o jeto. A extração do jeto é, portanto, o conhecimento. A apreensão do abstrato é a apreensão do jeto e a extração do jeto só é possível exatamente porque podemos reencontrá-lo novamente em outra situação de tempo, quando cessa a atemporalidade.

É nesse sentido que Pontes de Miranda afirma: “A sua multiplicidade é que está para ele mais do que as cópias à prensa estão para a página escrita”. A temporalização do jeto, após abstraído, equivale a uma volta aos fatos, uma concretização. 30

Pontes de Miranda propõe, portanto, que se ponham entre parêntesis os prefixos dos termos sujeito e objeto. Esse “por entre parêntesis” demonstra que a relação inicial sujeito-objeto tem sempre várias possibilidades. O sujeito pode estar diante de outro objeto, o objeto poderia estar diante de outro sujeito, ou de sujeitos vários, como na verificação intersubjetiva, além da verificação que ocorre em mais de um objeto.

O conhecer, nesse sentido, não altera o objeto, mas altera o pensamento, ou o espírito, pois ele é incapaz de criar jetos somente seus. Numa ênfase empírica, para Pontes de Miranda, jetos se fazem “com partes, felpas, de objeto, ou de outros jetos”.31 Isto nega a possibilidade kantiana de juízos a priori, além de rejeitar o relativismo. Por isso, não se pode concluir que o objeto não exista por si diante do pensamento. 32

Em manifestação sobre o mundo empírico, Pontes de Miranda afirma:

a sensação não é recepção de estado do órgão que foi excitado, não é tomada de consciência do estado de

29 Idem, p. 193-194. 30Idem, p. 195. 31Idem, p. 212. 32Idem, p. 78.

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excitação do órgão. Quando ouço a nota “ré”, não ouço ou meus ouvidos, nem um estado deles, ouço a nota “ré”. Depois, mercê da ciência, saberei que a vibração do ar é que constitui os estímulos da sensação de som. 33

Resulta desta postura a independência entre o cognoscente e o conhecido. Para Pontes de Miranda a consciência é condição do conhecimento, mas não a condição da realidade física ou psíquica. É por isto que a identidade do conhecido é decorrente da identidade dos jetos.

Assim é que o conhecer é, para o pensamento pontesiano, o poder formular proposição verdadeira ou verificável. Nesse sentido, a decisão sobre a verdade ou falsidade de uma proposição é dada pela análise da experiência, numa definição identificada claramente com a proposta wittgensteiniana: “Para que seja verdadeira ou falsa a proposição, é preciso que uma experiência decida. Experiência nos dois sentidos: a de que se parte, a que se preparou (experimentação)”34.

Esse representacionismo aparece ainda quando Pontes de Miranda menciona que existe “entre as situações físicas, de um lado, e entre as psíquicas, do outro, certa coerência, certa conexão, que traça as duas paralelas”35.

Essa forma de ver a proposição aparece ainda nas suas considerações sobre a linguagem, quando afirma que é “pela escolha de sinais combinados que se consegue designar a maior parte dos seres e das relações, das qualidades e das quantidades”36 . Deduz-se daí que a designação dos fatos aparece na forma de uma representação, à semelhança da teoria pictórica wittgensteiniana.

Por fim, como forma de demonstrar a importância que uma ciência pura tem na filosofia pontesiana, e, portanto, mais um

33Idem, p. 66. 34Idem, p. 280. 35 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 4, 2005, p. 16. 36Idem, p. 136.

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elemento de identificação entre sua filosofia e o neopositivismo, cabe mostrar sua opinião sobre o ensino universitário:

nos meus sonhos irrealizados (só tenho realizado os sonhos que só dependem de mim), vejo a Universidade longe do bulício do Rio de Janeiro, pura cidade universitária de cimento armado, sem prenoções que embaracem a inteligência, e onde um espírito diretor de um fundamental idealismo, aliado a um sentimento de justiça intelectual levado ao requinte, se ocupassem da formação das almas sãs e esclarecidas. Aí, numa cidade só do estudante e do professor, formar-se-iam os cidadãos, os dirigentes do país.37

Aqui se percebe a importância da pureza do conhecimento em Pontes de Miranda, o que demonstra a identificação do seu pensamento filosófico com as premissas do neopositivismo. Isto influenciará sua importante Teoria do Fato Jurídico e marcará a distinção entre incidência e aplicação do Direito.

3. O cientificismo e a visão sociológica do Direito em Pontes de Miranda: o Direito como fato e a postura representacionista

Outro aspecto importante de sua obra é o sociologismo e sua concepção de ciência. De um lado porque enfatiza a importância da noção de fato para seu pensamento e, de outro, porque continua a mostrar a importância da objetividade para sua Teoria do Direito, o que vai gerar efeitos na elaboração de sua Teoria do Fato Jurídico.

Para Pontes de Miranda, Direito existe onde há espaço social. Direito é fato e não ato de vontade.38 O Direito, como fenômeno social, é processo de adaptação ou de corrigenda dos defeitos de adaptação à vida social e, “seja sob a forma de costume,

37 Entrevista de Pontes de Miranda concedida em DANTAS, San Tiago. “Visita a Pontes de Miranda”. As novidades literárias. Rio de Janeiro. Ano 1, N. 4, 1930, p. 8. 38 ALVES, Vilson Rodrigues. “Pontes de Miranda”. RUNIFO, Almir Gasquez; CARVALHOS, Jaques de. (Org.) Grandes juristas brasileiros. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 280.

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seja a da lei, lapidado pela Doutrina, só tem um porto seguro: a

Sociologia”. 39 Por isto, para Pontes de Miranda, o objeto da Ciência do

Direito não são as normas postas, que, no pensamento pontesiano, seriam dados variáveis de acordo com a vontade. O objeto da Ciência do Direito são as relações sociais. Como fatos, as relações sociais não são criadas por nenhum ato de vontade. Analogamente, “a lei da queda dos corpos não deixa de ser exata e científica, se perturbo com elementos estranhos a descida de certo objeto”. 40

Pontes de Miranda retira do Direito o elemento volitivo. A regra jurídica41, em Pontes de Miranda não é um dever-ser, mas um ser. O dever-ser é volitivo, mas o Direito é cognitivo e, portanto, a lei pode até não corresponder à realidade social, o que seria a prova de que a lei não corresponderia à verdadeira regra jurídica, aquela que só pode ser extraída da realidade social.

Nas próprias palavras de Pontes de Miranda, “A regra jurídica já é fato do mundo, tal como existe e persiste no pensamento dos homens”. 42 Ou seja, a regra jurídica não é fruto da vontade dos homens. Isso quer dizer que as normas jurídicas podem até ser consideradas fatos psíquicos, mas não subjetivos. Por isso, o processo para “extrair cientificamente as normas” não é uma escolha arbitrária ou análise da escolha de uma autoridade. O processo científico é feito pela pesquisa das relações “que são as realidades sociais, de modo que se possa saber o que é e o que deve ser considerado geral”. 43

39 GUSMÃO, Paulo Dourado de. “As idéias do jovem Pontes de Miranda”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 123. 40 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 3, 2005, p. 26-27. 41 Normalmente, na obra de Pontes de Miranda os termos “regra jurídica” e “norma jurídica” aparecem como sinônimos. 42 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 2, 2005, p. 134. 43Idem, p. 107.

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Uma Ciência Positiva do Direito seria justamente aquela que deixasse de lado os métodos retóricos e valorativos. Esses métodos tratam o Direito como simples convencimento e, portanto, negligenciam a busca pela norma jurídica em favor de uma argumentação moral ou retórica.

De outro lado, essa Ciência Positiva também precisa deixar de lado os métodos simplesmente dedutivistas, sejam aqueles presentes nas visões legalistas, sejam as posturas conceituais (como a da Jurisprudência dos Conceitos), para aceitar o método das ciências da natureza, principalmente a física e a biologia, além da Lógica e da Matemática, que muito podem servir ao Direito.

Apesar das críticas ao dedutivismo, é importante ressaltar que Pontes de Miranda não deixa de lado a importância da dedução no conhecimento e na aplicação do Direito. Nesse sentido, ele afirma: “Os dogmas da plenitude lógica do Direito, do estrito positivismo jurídico (no sentido técnico de tal expressão) e da criabilidade intelectual, racionalista, do Direito, correspondem a momentos históricos da vida política”. 44

Todavia, para Pontes de Miranda, o processo de dedução só ocorre após o necessário processo de indução, que revela a regra jurídica pela observação dos fatos sociais, não havendo que se falar numa dedução direta do texto legal. 45

Com isto, Pontes de Miranda quer dar a devida importância à positividade da Ciência do Direito e à objetividade do seu método. Somente a objetividade do método científico (dados de observação e estatística) pode garantir o Direito contra o arbítrio tanto do Judiciário quanto do legislador, deixando de lado uma exegese de textos que pode levar à subjetividade e à irracionalidade, e recorrendo à pesquisa das relações sociais.46

Essa visão do Direito interfere na sua postura sobre a dicotomia filosófica ser/dever ser. Sendo o Direito um conjunto de

44Idem, p. 249 e 255. 45Idem, p. 149. 46Idem, p. 224.

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relações sociais e não de leis criadas por autoridades, o dever ser não é a característica da norma jurídica em sua essência. O dever ser surge somente depois do conhecimento da norma, após o processo de indução, mas não é determinante do surgimento da norma jurídica. Essa visão une sob a mesma essência o Direito moderno e o costumeiro, pois ambos têm em comum a normatividade que decorre das relações sociais.

Sendo o dever ser um aspecto não essencial do Direito, Pontes de Miranda afirma que, no conhecimento jurídico, nós “devemos conformar-nos com o indicativo; o imperativo virá posteriormente, depois de constituído o saber e associado à premissa no imperativo, para que possa ser no imperativo a conclusão”. 47

Essa também é uma crítica explícita à postura Kelseniana, notadamente quando Pontes de Miranda afirma ser intolerável a redução da Ciência do Direito a uma teoria pura, que seria somente uma teoria do Direito possível ou até, de qualquer Direito possível, resultando num relativismo.

Importante frisar que Pontes de Miranda não nega que existam atos de vontade no Direito. O que ele quer dizer é que esses atos de vontade (atos normativos) não são o Direito, pois só o refletem de forma imperfeita. E quando não o refletem minimamente, acontece da linguagem normativa se perder em ineficácia social ou num arbítrio da autoridade. Dessa forma, o dever ser é independente do ser, como em Hans Kelsen, mas não são esferas absolutamente instransponíveis.

O que ocorre é que o Direito não depende da autoridade e do seu ato de vontade, mas sim dos fatos sociais. Por isso, para o sociologismo pontesiano a Ciência do Direito não desce ao mundo do normativo, que é o conteúdo das regras jurídicas. Ela deve buscar o

que leva às normas: as relações sociais. 48 Isto quer dizer que a Ciência Positiva do Direito é

considerada uma ciência causal não finalista, pelo que as regras do

47 Idem, p. 40. 48 Idem, p. 372.

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Direito, que estão nas relações sociais, não podem ser alteradas pela vontade, mas somente mediante outras forças. A tensão que se estabelece é aquela entre a ideia de Direito como adaptação e a ideia de Direito como corretivo dos defeitos de adaptação.

Pontes de Miranda explica que cada parte da relação social consegue seus fins dentro da relação jurídica, “por mais curto caminho e tempo, com menor perda de energia e menor esforço do que fora da relação jurídica”.49 Isso explica a importância do Direito para a adaptação humana.

O Direito é, assim, uma forma de adaptação que visa a minorar, pela garantia, os efeitos e causas de certos defeitos de adaptação. Neste sentido, já que o Direito não se manifesta na vontade de uma autoridade, ele só pode se manifestar numa adequação objetiva de fenômenos. E essa adequação se manifesta espontaneamente nos costumes, sendo as relações jurídicas fatos sociais também no sentido de que tendem a promover a adaptação, sem, no entanto, nenhum caráter teleológico ou finalístico.

Termina, portanto, por conciliar, de certa forma, o ser e o dever ser. Não haveria diferença essencial – além da incidência – entre norma jurídica e lei científica, pois ambas são encontradas no fato. Evidentemente, Pontes de Miranda admite uma diferença prática, qual seja: a lei jurídica pode ser utilizada para formular um imperativo, como acontece com a elaboração das leis no Direito moderno.

Ademais, mesmo após a formulação de imperativos, a incidência da norma jurídica ocorre independentemente do ser humano, pois é fato da natureza. Assim, a regra jurídica, de certa forma, existe antes mesmo de ser formulada pela linguagem competente do Estado:

é o estabelecimento de regras de conduta, cuja incidência é independente da adesão daqueles a que a incidência da regra possa interessar, que faz do Direito um processo

49 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “Pontes de Miranda: sistema e causalidade”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 96.

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de adaptação social. A regra jurídica é um enunciado e aquilo que se realiza no enunciado. 50

Não havendo essencialidade na ideia de sanção ou de coerção, a corrigenda dos processos de adaptação é o que aparece como elemento coercitivo do Direito na teoria pontesiana, ressaltando-se a sua visão sociologista, positivista e naturalista do Direito. 51

Importante mencionar ainda que, diante de uma teoria sociológica, o Direito em Pontes de Miranda é processo social de adaptação, perdendo em importância o ambiente processual de decisão, ou seja, o processo judicial. A definição da Ciência do Direito prescinde do processo e da sanção, justamente porque a regra jurídica independe da aplicação humana como ato de vontade:

a época mais importante da norma é a da aplicação psicológica, econômica etc., e não a da adequação técnica aos casos concretos. Mais vale a lei, que nunca se invocou, mas a que, na prática dos atos diários, obedeceram os homens, que aquela outra, constantemente suscitada, que não conseguiu, sem a intervenção do Estado, disciplinar os atos humanos. 52

Diante disto, a aplicação da lei por uma decisão judicial não é atestado de eficácia social. Muito menos se poderia dizer que a existência de uma lei confirmaria a existência de uma regra jurídica. Ademais, regras jurídicas que nunca foram trazidas a juízo podem ser de “profunda e constante aplicação pacífica”. 53

Não se quer, com essa explanação, especificamente defender essa posição de Pontes de Miranda sobre a ciência ou sobre o Direito como processo de adaptação social. Na verdade, essa constatação serve para contextualizar o pensamento de Pontes de Miranda sobre

50 Idem, p. 96. 51 FERREIRA, Pinto. “Pontes de Miranda. O normativismo e o antinormativismo na filosofia do Direito”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 100. 52 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 2, 2005, p. 107. 53Idem, p. 135.

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o fato jurídico. O sociologismo pontesiano servirá de base para a noção de incidência como fato e a consequente separação entre incidência e aplicação do Direito, que será analisada no próximo ponto do trabalho.

4. Considerações finais: a distinção epistemológica entre incidência normativa e aplicação do Direito em Pontes de Miranda

O primeiro aspecto que se deve observar é a característica formal da Teoria do Fato Jurídico, que está presente na própria origem desse tipo de teorização, como afirma Torquato Castro Júnior:

a literatura privatista tedesca, na tradição da jurisprudência dos conceitos, elaborou a “teoria do fato jurídico” sob um prisma eminentemente formal. Essa literatura influenciou de modo marcante o pensamento de Pontes de Miranda. Tratou-se, efetivamente, na pandectística, da elaboração de um núcleo de pressupostos teóricos e imagens metafóricas que, mais tarde, viria a se incorporar à fundação da “teoria geral do direito”, como disciplina autônoma e “positiva”.54

A Teoria do Fato Jurídico, obra já da fase postesiana ligada ao Direito dogmático, é, assim, uma teoria analítica, que visa a expor as estruturas formais do fenômeno jurídico. Segundo a teoria, o fenômeno jurídico pode ser formalizado como uma relação entre o fato concreto (suporte fático) e a regra jurídica (abstrata).

A norma jurídica teria estrutura bimembre. De um lado está o “suporte fático”, também chamado pela tradição da Teoria Geral do Direito de “hipótese de incidência” ou de “antecedente”. Do outro lado está o que Pontes de Miranda chama de “preceito”, que prevê a consequência normativa para a ocorrência concreta do fato previsto no suporte fático.

O antecedente é “o descritor de possível situação fática do mundo (natural ou social, social jurisdicizada, inclusive), cuja ocorrência na realidade verifica o descrito na hipótese”. Sem o

54 CASTRO JÚNIOR, Torquato. “abordagem pragmática da teoria das nulidades na dogmática do direito privado”. Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI – Manaus. Fundação Boiteux: Florianópolis. Nov. 2006, p. 2. Disponível em <www.conpedi.org> Acesso em 18/5/2009.

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suporte fático ou antecedente, a regra é incompleta. Suporte fático é previsão abstrata do que será, após a incidência, fato jurídico. 55

O suporte fático, nas palavras de Marcos Bernardes de Mello é “algo (= fato, evento ou conduta) que poderá ocorrer no mundo e que, por ter sido considerado relevante, tornou-se objeto da normatividade jurídica”.56 Quando estes fatos ocorrem de forma concreta no “mundo dos fatos”, a norma incide e, portanto, traz para o “mundo do direito” aquele conjunto de fatos que ocorreram, qualificando-os como fatos jurídicos. Fato jurídico é, portanto, o fato ou complexo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica. 57

Os fatos previstos no suporte fático podem ser de qualquer natureza, cabendo à regra jurídica operar sua função classificadora, distribuindo os fatos relevantes e os fatos irrelevantes para o Direito. Tal separação é operada pelo próprio Direito, a partir do conteúdo da regra jurídica.

Os tipos de fatos dividem-se em dois: os pertencentes ao mundo jurídico e os pertencentes ao mundo não-jurídico que Pontes de Miranda chama simplesmente de “mundo dos fatos”. O mundo, sendo o total de fatos, inclui os fatos jurídicos. O ser humano faz, com o Direito, modelos de fatos (suporte fático), para que “o quadro jurídico descreva o mundo jurídico, engastando-o no mundo total”, por isto o Direito adjetiva os fatos para torná-los fatos jurídicos. 58

O fato da incidência se dá quando o suporte fático é , ou seja, quando ocorrem aqueles fatos essenciais à incidência e o fato ingressa

55 VILANOVA, Lourival. As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 96 e VILANOVA, Lourival. “A teoria do Direito em Pontes de Miranda”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 326. 56 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 35. 57 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito privado. Tomo I. Campinas: Bookseller, 2002, p. 126. 58 “Tanto as regras jurídicas, como os fatos, surgem no espaço-tempo”. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller. Tomo 1, 1999, p. 52 e 65.

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no plano da existência. Ocorrendo os fatos previstos pela norma como essenciais à sua incidência, tem-se que ocorreu o fático suficiente e, destarte, a norma incide.

Somente após a incidência, pode-se falar em fato jurídico e, então, em eficácia jurídica:

é preciso, portanto, considerar que há a eficácia da norma jurídica (chamada eficácia legal), de que resulta o fato jurídico, e a eficácia jurídica, que decorre do fato jurídico já existente. Não é possível, destarte, falar de eficácia jurídica (Direitos, deveres e demais categorias eficaciais) antes de ocorrida a eficácia legal. 59

A parte de fundamental interesse do presente trabalho na Teoria do Fato Jurídico de Pontes de Miranda é a definição do momento em que ocorre a incidência normativa. Tal fenômeno se refere à ocorrência dos fatos previstos hipoteticamente pela norma jurídica. 60

O problema é o que segue: a incidência seria a constatação por parte do sujeito cognoscente da ocorrência do suporte fático concreto, ou seria um fato objetivo que ocorre independentemente da aferição humana? Trata-se, pois, de um questionamento, sobretudo, epistemológico.

Na metáfora pontesiana, incidir significa “bater, golpear (caedere), gravar, cair sobre, de modo que, no mundo do pensamento humano, o fato ou os fatos recebem o carimbo da regra jurídica, e se tornam jurídicos”.61 A incidência seria, pois, uma correspondência entre fatos previstos pela norma e fatos ocorridos no mundo.

Mas quando é que os fatos ocorrem no mundo? Quando Pontes de Miranda fala em fatos, alude simplesmente “a algo que ocorreu, ou ocorre, ou vai ocorrer. O mundo mesmo, em que vemos

59 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 57. 60 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de Direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 96. 61 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 2, 2005, p. 287.

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acontecerem os fatos, é a soma de todos os fatos que ocorreram e o campo em que os fatos futuros vão se dar”. 62

É por isso que a incidência sobre os fatos que a regra jurídica prevê, ocorre independentemente da sua aplicação. Ele depende simplesmente da ocorrência dos fatos por ela previstos. Os fatos ocorrem no mundo e a incidência os capta como uma pressuposição lógica. Essa noção leva à ideia de que a incidência é infalível e que pode não ser aferida pela aplicação do Direito, feita pelos órgãos competentes.

A incidência é a característica intrínseca da norma jurídica no pensamento pontesiano quanto aos fatos jurídicos. Para ele, a norma jurídica não descreve os fatos como a lei física. A norma jurídica é lei que se impõe aos fatos, que incide.63

É nesse sentido que, para Pontes de Miranda, as palavras designam o real, donde se compreender que a incidência é exatamente a correspondência entre a norma e o mundo real por ela previsto. Diante disso, a incidência não é apenas provável ou dependente da inteligência humana, pois se o homem tivesse dado margem à não incidência, o ordenamento seria não lógico. Não se deve confundir,

pois, incidência com aplicação do Direito. 64 Por isso, para Pontes de Miranda, depois que a incidência

ocorre é que será cabível perguntar pela aplicação do Direito. Dessa forma, o processo serve para o atendimento à incidência. Assim, a “incidência é servida, para seu atendimento menos imperfeito possível, pela tutela jurídica, a que corresponde a pretensão à tutela

62 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller. Tomo 1, 1999, p. 49. 63 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 2, 2005, p. 287. 64 CHAGAS, Wilson. “Notas sobre Pontes de Miranda”. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Ano III, N. 10, Porto Alegre, 1968, p. 14.

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jurídica, em suas múltiplas classes de aplicação das regras jurídicas”.65

A norma jurídica teria, pois, três aspectos importantes a serem analisados. Em primeiro lugar, no que se refere à sua incidência, é infalível. Ela é fato do pensamento, que aqui significa pertencer aos domínios da Lógica. Em segundo lugar, temos a questão da obediência, que pode ou não ocorrer, apesar da incidência. E em terceiro lugar, quando da não ocorrência da obediência à norma temos o desencadear da sua aplicação pelos órgãos estatais. Esse ponto se refere à prevenção à resistência à aplicação da norma, que, como a obediência, também não é infalível. 66

A incidência, portanto, não pode ser negada. É fenômeno lógico, que se passa no pensamento, mas não é simplesmente subjetiva. Sendo fenômeno lógico, não pode ser afastada. A incidência da regra jurídica não falha, o que falha é o atendimento a ela e a sua aplicação. Dessa maneira, Pontes de Miranda afirma: “Assim, como 2 + 2 = 4, assim o menor, que atinge x anos de idade, pode concluir contrato de trabalho, pode votar, e pode ser chamado ao serviço militar”. 67

A incidência é um fato lógico que cria o mundo jurídico, com consequências que não se atêm apenas ao mundo jurídico. Por isso não se pode vincular a teoria das provas diretamente à Teoria do Fato Jurídico e à noção de incidência. Ademais, como veremos em capítulo específico, toda prova sobre fatos no Direito é sobre fatos que ocorreram e provocaram a incidência da regra jurídica.

O Direito Processual é apresentado em Pontes de Miranda como uma necessidade prática diante da ineficiência das ações de direito material. Trata-se de reconhecer que a incidência, como fato,

65 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito privado. Tomo I. Campinas: Bookseller, 2002, p. 59. 66 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “Pontes de Miranda: sistema e causalidade”. Conferências do III congresso brasileiro de filosofia do Direito: em homenagem a Pontes de Miranda. João Pessoa: Edições Grafset, Jun. 1988, p. 97. 67 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 2, 2005, p. 295.

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nem sempre é respeitada pelos homens, fazendo-se necessária a eficiência dos órgãos estatais para aplicar o Direito. É importante que o Direito que incidiu se realize. Por isso a “jurisdição não é mais, nos

nossos dias, do que instrumento para que se respeite a incidência.” 68 Fica evidente a natureza epistemológica da separação entre

incidência e aplicação do Direito em Pontes de Miranda. Não se pode vincular a aplicação, efêmera e contingente, à verdade da ocorrência dos fatos no mundo e sua correspondência com a norma jurídica:

a causação, que o mundo jurídico prevê, é infalível, enquanto a regra jurídica existe: não é possível obstar-se à realização das suas conseqüências; e a aplicação injusta da regra jurídica, ou porque se não haja aplicado a regra jurídica, com a interpretação que se esperava, ou porque não se tenha bem classificado o suporte fático, não desfaz aquele determinismo: é o resultado da necessidade prática de se resolverem os litígios, ou as dúvidas, ainda que falivelmente; isto é, da necessidade de se julgarem os desatendimentos à incidência.69

Essa “necessidade prática” não pode estar desvinculada da ocorrência de um fato, senão seria uma constituição de um fato, o que, obviamente, levaria a um relativismo no Direito. De acordo com a visão pontesiana, uma determinada conclusão quanto aos fatos a que tenha chegado o processo judicial não será necessariamente correspondente ao fato que tenha efetivamente ocorrido no mundo dos fatos.

A incidência, portanto, não erra. Quem pode errar é o aplicador do Direito. Daí a diferença entre aplicação e incidência. A aplicação é a atuação do Estado que serve a fazer valer a incidência. Ademais, como vimos, nem sempre a aplicação é necessária, dada a espontaneidade da realização do Direito.

É de se destacar que a noção de incidência está intimamente ligada à visão sociológica do Direito, proposta por Pontes de Miranda. Os homens mais respeitam do que desrespeitam as leis e as

68Idem, p. 320. 69 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller. Tomo 1, 1999, p. 65.

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sanções são menos frequentes que as observâncias das regras. Trata-se de uma constatação fática que demonstra que a aplicação do Direito por órgãos estatais é acidental e não essencial ao Direito. A incidência distinta da aplicação do Direito teria, portanto, comprovação fática, lógica e epistemológica. 70

70 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de ciência positiva do direito. Campinas: Bookseller. Tomo 2, 2005, p. 287.

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PARA UMA CRÍTICA DO REALISMO JURÍDICO AMERICANO À FUNDAMENTAÇÃO JUSNATURALISTA DOS DIREITOS HUMANOS

Lorena Freitas1

Partindo das categorias trabalhadas pelo realismo jurídico norte-americano, urge destacar que a questão dos direitos humanos não é matéria direta das discussões neste referencial teórico. O caráter ensaístico a que ora se propõe está exatamente na seara inferencial das ilações que o artigo desenvolve a partir do debate jusrealista para projetar uma possível crítica aos direitos humanos no que pese seu embasamento numa perspectiva jusnaturalista.

A justificativa desta proposta de trazer o realismo para referendar a crítica está na própria máxima pragmática, principalmente por considerar que o movimento realista deita suas raízes no pragmatismo filosófico e ambos têm uma concepção metodológica para pensar os fatos. Enquanto o pragmatismo filosófico se coloca como um método cuja máxima estaria em perceber as consequências práticas para se perceber um objeto; no caso do realismo, e parafraseando James2, o pragmatismo jurídico seria um método para assentar as metafísicas discussões jurídicas, concepções ensimesmadas quanto ao direito, que de outra forma se estenderiam infinitamente.

Esta crítica jamesiana pode ser direcionada para a imutabilidade e transcendência que como pilares incondicionados caracterizam o direito natural. Dessa forma, ainda que a paráfrase

1 Professora Adjunta I UFPB – Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas. Lidera Grupo de Pesquisa Realismo Jurídico e Direitos Humanos. 2 Com a devida vênia pela repetição: “The pragmatical method is primarily a method of settling metaphysical disputes that otherwise might be interminable”. JAMES, William. Pragmatism. Philosophical classics. New York: Dover, 1995, p.18.

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citada acentue a dimensão teórica de se pensar o direito, ou em outras palavras, ligue-se à compreensão do direito em si, todavia, a preocupação do realismo jurídico não foi objetivamente trabalhar no âmbito da teoria do direito, mas efetivamente contribuir com a prática jurídica, contribuição esta que chega aos nossos olhos pela mão da literatura jurídica em obras como The path of the law e The nature of judicial process entre outras.

Logo, o realismo jurídico americano se fez sentir a partir da prática de juízes como Oliver Wendell Holmes Jr. e Benjamin Nathan Cardozo (respectivamente autores das obras acima citadas), que partiram dos casos concretos para perceber que direito é o que os juízes dizem que o é.

Falar de um pragmatismo jurídico como a herança da filosofia pragmática para o realismo norte-americano implica em apresentar seus pressupostos ou ainda seus fundamentos. Estes são, pois, as lições de lógica trazidas por Peirce e Dewey e as preocupações psicologistas de James. Estas lições formataram o ceticismo realista que se concretiza - como aqui trazemos na forma de hipótese - na rejeição a toda e qualquer forma de jusnaturalismo.

Por questão de delimitação do objeto, este artigo se restringe à lição da lógica abdutiva peirceana como matriz para a feição do ceticismo realista quanto à tomada de decisão. É na explicação acerca da tomada de decisão que delimitamos a fundamentação jusnaturalista.

Por obséquio, o artigo não pode escapulir destas duas preocupações (parâmetro lógico do arcabouço pragmático do realismo jurídico e a crítica realista no que ela se direciona ao fundamento jusnaturalista dos direitos humanos) que se apresentam nos respectivos tópicos segundo e terceiro. Esta discussão do jusnaturalismo, por seu turno, tem por supedâneo a ilustração trazida pela tragédia Antígona de Sófocles, no tocante à identificação do direito natural.

Não há uma conclusão em definitivo, razão pela qual o ponto quarto, exatamente em respeito ao caráter ensaístico (conforme o

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sentido que Adorno confere ao termo3) do artigo, traz conjecturas possíveis no sentido da hipótese que este artigo problematiza, qual seja: Pode-se considerar que o ceticismo lógico que caracteriza o realismo jurídico se concretiza numa rejeição ao jusnaturalismo ao mesmo tempo que ratifica sua filiação ao juspositivismo e se afasta da crítica de irracionalista?

2. A lógica pragmática para uma crítica jusrealista

A tese básica defendida pelo realismo é que direito é o que os juízes dizem que é direito, no sentido de que a decisão é tomada aprioristicamente, i.e., primeiro decide-se, depois, busca-se fundamento normativo para justificar a decisão tomada (a posteriori). Esta concepção revela uma crítica do realismo à desconsideração do caráter probabilístico da tomada da decisão como da natureza do direito, nesse diapasão pode-se ver uma crítica à rejeição da abdução como forma possível de se inferir o caminho do raciocínio jurídico na tomada de decisão.

O processo da ratio decidendi é expressão da abdução na medida em que o direito não trabalha com verdades, mas com o verossímel (ou seja, aquilo que tem aparência de verdade), ainda que dogmaticamente se fale em verdade real e verdade formal.

Quando o artigo 458 do Código de Processo Civil traz os requisitos essenciais da sentença ilustra o arranjo lógico da decisão:

Art. 458, CPC: São requisitos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do

3 Para Adorno, o ensaio não trabalha com a regra do jogo da ciência e da teoria organizada, mas com a premissa de que a ordem das coisas seria a mesma das ideias, daí esta forma não perseguir uma construção fechada na medida em que não quer captar o eterno, preferindo o transitório. Naquilo em que é enfaticamente ensaio, o pensamento se libera da ideia tradicional de verdade. ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: Cohn, Gabriel (org). Theodor Adorno. São Paulo: Ática, 1986, p. 174-176.

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processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.

Assim, parece crer que a lógica da tomada de decisão ou

raciocínio judiciário seja um silogismo não-categórico, pelo que o caso é subsumido à norma. A estrutura que se constrói para pensar esta subsunção poderia ser assim desenhada tendo a decisão judicial como um silogismo lógico, isto é, presentes uma premissa maior na norma, a menor no fato e a conclusão com a decisão.

A rigor, com a decisão temos a expressão de uma forma ou um meio de expressar o raciocínio dedutivo, ou ainda, de se expressar dedutivamente, mas que não significa que a ratio decidendi se construiu nesse parâmetro silogístico.

Sobre esta forma de conceber o raciocínio judiciário, adverte, todavia, Philippe Thiry que esta maneira (silogística) de encará-lo não deve iludir-nos, posto que é interessante na medida em que permite uma representação coerente da decisão, mas não é garantia de objetividade. Se assim fosse, o trabalho do juiz não seria senão dizer um direito que transcenderia e se imporia a ele como ao argüido. 4

4 THIRY, Philippe. Noções de lógica. Lisboa: Edições 70, 1996, p. 121. A partir da crítica de Thiry, pode-se dizer que é mais provável uma lógica informal do tipo lógica default já que a decisão final se assenta em um número outros de premissas conhecidas e não expressas por fins persuasivos (entimema), bem como por outras desconhecidas (lógica default). Esta última tem pretensão de representar, além das inferências dedutivas da lógica de predicados clássica, um tipo de inferência não-dedutiva muito comum no nosso raciocínio ordinário. Essa inferência encontra-se por exemplo no raciocínio do examinando numa banca quando diz: “há uma citação do autor tal, logo a citação está na tese”. Há um razoável número de raciocínios menores para chegar àquela conclusão, ex: há a crença de que a citação existe, o examinando verificou se havia algum motivo para concluir que a citação foi retirada e não encontrou, assim conclui que a citação está na tese. Mas apesar de tudo isso a citação não está na tese e a conclusão está errada, logo seu raciocínio não é dedutivo, pois a conclusão foi inferida a partir de um conjunto de crenças incompleto. Se novos fatos chegassem ao seu conhecimento, como por exemplo, alguém ter trocado de

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A proposta do método abdutivo para o direito encontra-se inserida no contexto da descoberta, considerando a distinção entre o contexto de descoberta e o contexto de justificação5. O termo abdução, categoria central da lógica peirceana, vem do Grego (apagogé) e do latim (reductio). O próprio filósofo pragmatista admite que a inferência abdutiva já aparece em Aristóteles nos Analíticos Anteriores – Livro II, capítulo XXV - ao tratar da redução.

Neste sentido, e com base em James ao dizer que pragmatismo é um novo nome para velhas idéias (título de sua principal obra – série de conferências), vê-se que Peirce não cria uma nova forma de inferência ao tratar da abdução, mas cria um nome novo para se referir e enfatizar esta forma de raciocínio que já aparece em Aristóteles6, mas que tendeu a ser menosprezado pela cultura ocidental em detrimento do silogismo indutivo e do silogismo propriamente dito (dedutivo).

Peirce vem estimar o raciocínio probabilístico dando-lhe o status de ser a forma própria de raciocínio no campo do conhecimento científico no sentido de que lança hipóteses novas e revela-se pela

lugar a versão final com a versão anterior ou a eliminação de um parágrafo ter eliminado uma nota de rodapé que estava no seu interior. “[o] raciocínio foi baseado em uma regra não-monotônica, já que o acréscimo de informação àquelas que se tinha inicialmente o impediria de concluir coisas que ele antes concluía inocentemente”. A regra não-monotônica que determina o raciocínio recebe o nome de lógica default. IMAGUIRE, Guido; BARROSO, Cícero. Lógica: os jogos da razão. Fortaleza: UFC, 2006, p. 309-314. 5 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: Teorias da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2003, p.22. 6 Peirce[falando d]as três espécies de argumentos que assinalei em 1867 [dedução, indução e abdução – em: Illustrations of the logic of science], suponho, com efeito que já vêm nos Primeiros Analíticos de Aristóteles, se bem que a ilegibilidade do manuscrito, e a emenda feita pelo editor estúpido [Apellicon], tenham alterado por completo o sentido do capítulo da Abdução. De qualquer modo, mesmo que a minha conjectura esteja errada, e o texto deva ser entendido como está, o fato é que Aristóteles nesse capítulo tateava o modo de inferência que denomino pela palavra inusitada de Abdução – somente usada em lógica para traduzir apagogé desse texto. PEIRCE, Charles Sanders. Conferências sobre pragmatismo. Conferência V – As três espécies de excelência. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 41.

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criatividade, ou melhor, aproveitando a criatividade como forma de inferenciar.

Peirce classifica as formas de inferência da seguinte maneira: a) dedutiva ou analítica, e b) sintética, esta podendo ser por indução ou por abdução.7 Exemplificativamente, como citou Peirce: “Suponha que eu entre numa sala e lá se encontre certo número de sacolas contendo diferentes tipos de feijão. Sobre a mesa há um punhado de feijões brancos; e após procurar descubro que uma das sacolas contém apenas feijões brancos”.

1 - Todos os feijões desta sacola são brancos Dedução 2 – Estes feijões são desta sacola 3 – Estes feijões são brancos 2 – Estes feijões são desta sacola Indução 3 – Estes feijões são brancos 1 - Todos os feijões desta sacola são brancos 1 - Todos os feijões desta sacola são brancos Abdução 3 – Estes feijões são brancos 2 – Estes feijões são desta sacola

A abdução ou redução ou apagogé é o processo que forma hipóteses explicativas, daí ser o único que introduz idéias novas diferentemente da dedução e indução. 8 Aristóteles trata da redução em dois momentos no Órganon (valendo ressaltar que em tais aparições a redução é trazida como objetos distintos). Inicialmente

7 PEIRCE, Charles Sanders. Dedução, indução e hipótese. In: Ilustrações da lógica da ciência. São Paulo: Idéias e letras, 2008, p. 172. 8 Peirce, above all other logicians in his time, emphasized the role of hypothesis in scientific method, calling the construction of such possible explanations of puzzling phenomena by the name Abduction, which he added to the conventional forms of reasoning known as deduction and induction, thus giving us three types of inference. Cf. PEIRCE, Charles Sanders. Selected writings. New York: Dover, 1966, p. 230, 368.

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refere-se à redução ao absurdo (reductio ad impossibile)9 que não é a forma que inspirou Peirce a tratar da abdução; posteriormente10 traz a redução (ou apagogé, cujo termo significa condução, encaminhamento. A redução conduz a uma aproximação do conhecimento, mas não implica em conhecimento).

Em Aristóteles temos apagogé11:

a) “quando fica evidente que o primeiro termo se aplica ao médio, mas é incerto que o médio se aplica ao último termo, ainda que esta relação seja não menos provável ou até mais provável do que a conclusão”;

Se usarmos os números 1, 2 e 3 que propositadamente inserimos acima, temos que: a) Fica evidente que “Todos os feijões desta sacola são brancos” (como está em 1); e, fica evidente que “Estes feijões são brancos” (como consta em 3); mas é incerto que “Estes feijões são desta sacola!” (como se conclui em 2).

b) e noutra figura, Aristóteles se refere à existência da abdução quando há uma séria de hipóteses intermediárias entre termo médio e conclusão, hipóteses estas ainda que não formalmente demonstrativas, sugerem a plausibilidade da conclusão (uma vez que em todos estes casos o efeito é nos aproximar mais do conhecimento). Se estas hipóteses intermediárias forem razoavelmente óbvias elas poderiam ser suprimidas persuasivamente o que daria uma forma entimemática, mas não eliminaria as diferenças de conteúdo entre entimema e abdução, em razão.12

9 ARISTÓTELES. Órganon. Analíticos Anteriores, Livro I, 45a22 – 46a1; Analíticos Anteriores, Livro II, 65b1 - 66a1. São Paulo: EDIPRO, 2005. 10 ARISTÓTELES. Órganon. Analíticos Anteriores, Livro II, 69a 20-37. São Paulo: EDIPRO, 2005. 11 ARISTÓTELES. Órganon. Analíticos Anteriores, Livro II, 69a 20-37. São Paulo: EDIPRO, 2005. 12Ainda que não seja objeto deste artigo, não se pode deixar de mencionar a questão que se ergue: Seria a abdução uma forma de entimema? O entimema é um silogismo retórico que consiste de poucas proposições, ou seja, menos do que a quantidade necessária. É um silogismo normal, pois caso qualquer dessas proposições seja um

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O sentido da alínea “a” é o que mais se aproxima da forma como a abdução vem pela mão de Peirce para o pragmatismo, e, na medida em que o pragmatismo inspira o realismo jurídico, novamente com toda sorte de problematizações, trazemos como conjectura possível a percepção de que: a crítica que o realismo faz à tomada de decisão é expressão desta dimensão lógica!

Quando Cardozo fala acerca dos elementos usados pela Corte para compor uma decisão particular, diz que:

alguns princípios, ainda que não ditos, inarticulados e subconscientes, têm regulado esta infusão 13. Pode não ter sido o mesmo princípio para todos os juízes em todos os tempos. Porém, a escolha tem sido não a submissão ao decreto do fato; as considerações e motivos que determinam a escolha ficam freqüentemente obscuros, ao largo das análises. 14

Com tal idéia de Cardozo, a dedução lógica como meio para explicar a decisão resta criticada. Há uma variedade probabilística que envoltam a escolha na tomada de decisão. O decidido vai ser dogmaticamente apresentado, todavia, o ponto de partido não foi exclusivo na norma, há, nas palavras de Cardozo, alguns elementos subconscientes.15

No mesmo sentido, Karl Llewelyn diz que os mais significativos aspectos da relação entre direito e sociedade estão no campo do comportamento e como comportamento, por seu turno,

fato familiar, não há necessidade de mencioná-la, os ouvintes a acrescentarão por conta própria. 13 Cardozo describes the judicial decision as a strange compound which is brewed daily in the caldron of the courts. CARDOZO, Benjamin Nathan. The nature of judicial process. New York: Dover, 2005, p. 6. 14 CARDOZO, Benjamin Nathan. The nature of judicial process. New York: Dover, 2005, p. 7. 15 CARDOZO, Benjamin Nathan. The nature of judicial process. New York: Dover, 2005, p. 163.

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refletem influências de outros comportamentos, e por que não dizer de elementos psicológicos.16

Oliver Wendel Holmes, no artigo The Path of the Law, expôs o seu ponto de vista, segundo o qual a tarefa da ciência do direito estaria em prever o que os tribunais farão. São suas palavras:

as pessoas querem saber sob que circunstâncias e até que ponto correrão o risco de ir contra o que é tão mais forte que elas mesmas, e, portanto, torna-se um objetivo descobrir quando esse perigo deve ser temido. O objeto do nosso estudo, então, é previsão, a previsão da incidência da força pública através do instrumento dos tribunais... As profecias do que os tribunais farão, de fato, e nada de mais pretensioso, são o que quero designar como Direito.17

De conformidade com essa linha de pensamento, Holmes não vê nos conceitos de direito e dever outra coisa senão previsão, profecia, Diz ele que um dever jurídico seria a previsão de que, se um homem fizer ou se abstiver de fazer certa coisa, ele terá de sofrer, de algum modo, uma conseqüência imposta por um tribunal. O direito jurídico seria a previsão de que, se um homem se comportasse dessa ou daquela maneira, ou se se encontrasse em determinada situação, experimentaria um benefício atribuído por um tribunal.18

O desenvolvimento teórico do realismo de Jerome Frank é uma crítica à doutrina da segurança e certeza do direito, sustentada pela dogmática tradicional. Para Frank, o único direito certo é o

16 “The most significant (I do not say only significant) aspects of the relations of law and society lie in the field of behavior, and that words take on important either because and insofar as they are behavior , or because and insofar as they demonstrably reflect or influence other behavior”. LLEWELLYN, Karl. A realistic jurisprudence: the next step. In: FISHER, William; HORWITZ, Morton; REED, Thomas. American legal realism. New York: Oxford University, p. 1993, p. 56. 17 HOLMES, Oliver Wendell. The path of the law. In: FISHER, William; HORWITZ, Morton; REED, Thomas (edt.). American Legal realism. New York: Oxford University Press, 1993, p. 16. 18 HOLMES JR, Oliver Wendell. The path of the law. In: FISHER, William; HORWITZ, Morton; REED, Thomas (edt.). American Legal realism. New York: Oxford University Press, 1993, p. 15-16.

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revelado na sentença, a qual depende da dieta do juiz.19 Frank acaba sendo o mais radical quanto à forma e quanto ao conteúdo de sua crítica.

A partir destas considerações se revela a perspectiva realista contrária ao dogmatismo no direito e não à dogmática em si. Tal crítica reflete no campo do direito uma das preocupações centrais do pragmatismo filosófico, qual seja seu caráter relativista quanto à concepção dos fatos, sem que isso o leve nem a um solipsismo e nem a um ceticismo extremado quanto à existência de um mundo externo.

Tal relativismo vai denotar um ceticismo, mas não um irracionalismo quanto à forma de conceber a atividade judicial. São céticos os realistas por abandonarem pressupostos - pilares incondicionados - para pensar o fundamento do direito e, nesse sentido, há uma crítica contundente a toda forma de jusnaturalismo. Todavia, como convictos juspositivistas, os realistas também não recaem nem no legalismo da Escola de Exegese nem no decisionismo20, pois que, ao considerarem que direito é o que os juízes dizem que é direito não abandonam o parâmetro normativo21, ou seja, não se afastam da inegabilidade dos pontos de partida, ou em termos do common law, da adesão ao precedente.

19 FRANK, Jerome. Law and the modern mind. New York: Transaction Pub, 2009, p.51 e 52. No mesmo sentido de Cardozo, considera que “psychological forces, including personal biases buried so deep in the unconscious that the judge was unaware of their existence, might influence the decision”. 20 Rorty chega a se referir à rejeição aos dualismos como uma pretensão característica do pragmatismo concentrada em desmascará-los. Diz: “a moviment which has specialized in debunking dualisms and in dissolving traditional problems created by these dualisms”. Cf. MARGOLIS, Joseph. Reinventing Pragmatism: American Philisiphy at the end f the twentieth century. New York: Cornell University press, 2002, p. 17. 21 “Adherence to precedent must then be the rule rather than the exception if litigants are to faith in the even-handed administration of justice in the courts”. CARDOZO, Benjamin Nathan. The nature of judicial process. New York: Dover, 2005, p. 121-122; “The true view, as I submit is that the law is what the Judges declare; that statutes, precedents, the opinions of learned experts, customs and morality are the sources of the law”. GRAY, John Chipman. The nature and sources of the law. In: FISHER, William; HORWITZ, Morton; REED, Thomas (edt.). American Legal realism. New York: Oxford University Press, 1993, p. 34-38.

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3. O referencial jusnaturalista de legitimação dos direitos humanos como alvo do ceticismo realista

A discussão sobre os direitos humanos é comumente envolta em algumas questões que antes prejudicam em vez de contribuir para seu desenvolvimento. Para citar dois fatores, temos a institucionalização dos direitos humanos na medida que passa a fazer parte da burocracia da administração pública na forma de secretarias e ministérios que, quiçá, têm clareza do objeto que representam e cuja política pública estaria perfeitamente contemplada em outras tantas pastas. De forma tal que talvez só se justifique pela necessidade de criar novos cargos etc. O segundo fator pode ser visto na carta de intenções, ou melhor dizendo, de boas intenções no que se transformou boa parte dos debates acadêmicos acerca dos direitos humanos.

Desde já, ressalte-se, que o conteúdo crítico aqui esboçado não tem por escopo a desconsideração dos direitos humanos. Não se pode negar as garantias conquistadas sob tal rubrica. A questão, todavia, restringe-se ao fato gerador dessas conseqüências entre outras, ilustradas no parágrafo anterior. O fato gerador mencionado é no sentido da fundamentação jusnaturalista que embasa os direitos humanos.

Mesmo que a pretensão não seja especificar a linha de continuidade de implicância do direito natural nos vários aspectos que evidenciam a inefetividade dos direitos humanos, até porque o realismo jurídico não teorizou neste sentido, mas inevitável é adentrar nessa seara no tocante à aproximação do direito natural com os direitos humanos.

Se pegarmos estes livros manualescos que tratam dos direitos humanos, ainda que não esteja objetivamente clara22 a identidade do

22 Um exemplo de explicação que não tergiversa acerca da fundamentação jusnaturalista desses direitos segue: “Os ddhh são aquelas cláusulas mínimas para que o homem viva em sociedade com dignidade. […] Desde os primórdios da

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seu conteúdo jusnaturalístico, mas é nesse ínterim que guarda fundamentação primeira, principalmente se considerarmos que a dicotomia jusnaturalismo x juspositivismo padece no seu nascedouro de uma certa primazia do natural sobre o positivo.

Retomando a tragédia Antígona, com as mortes dos filhos de Édipo, o trono é passado para Creonte, irmão de Jocasta. O novo rei promulgou então um decreto pelo qual proibia que se prestassem honras fúnebres a quem atentou contra o Estado, pois assim considerava inimigo de Tebas.

Todavia, Antígona considerava dever sagrado, imposto pelos deuses e leis não-escritas, dar sepultura ao morto, no caso seu irmão Polinices. Com base nisto descumpre o ditame real e dá sepulto ao corpo do irmão para satisfazer a obrigação religiosa. 23

Em Antígona, o coro entoa um hino à grandeza do homem, criador das artes, domador das forças da natureza e que chega à concepção da força do direito entendendo-o como o maior de todos os bens. Podemos perceber, no ritmo do coro, o orgulho proteteico que domina este momento. Mas, com peculiar ironia trágica, no momento em que o coro celebra o direito e o Estado, proclamando o castigo a todo aquele que desrespeita a lei, Antígona – a que quis ser livre – é agrilhoada.24

civilização humana sempre se verificou a existência de um rol básico de direitos que exigiam especial proteção. A fundamentação desses direitos era embasado no aspecto religioso. No século XVI e XVII se constrói , a partir da doutrina do direito natural, a doutrina dos direitos humanos, […] A laicização do direito natural é fruto da razão humana ou razão natural que surge como novo fundamento dos direitos humanos em lugar do embasamento religioso”. Cf. SIQUEIRA Jr.,Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Machado. Direitos humanos e cidadania.3.ed. São Paulo: RT, 2010, pp. 32-33. 23 Antígona diz: “Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou, nem a justiça com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceu para os homens. Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram [...]”.SÓFOCLES. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: M&PM, 2006, p. 35. 24 JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 315, 334.

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Uma das intepretações mais conhecidas e citadas nos estudos acerca do teatro de Sófocles é a de Hegel, para quem, nessa peça, se opõem o interesse familiar, na figura de Antígona e, na de Creonte, a prosperidade comunitária.25 É neste sentido da interpretação de Hegel e dadas nossas preocupações no jurídico que elencamos como tema central esse conflito de normas.

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, traz Antígona para fazer alusão à separação da esfera privada – Antígona – da esfera pública, o Estado, Creonte. Nele Antígona representaria o mundo antigo onde os interesses privados invadem a esfera pública, ao passo que Creonte estaria representando o estado Moderno com a sua abstração e racionalidade legal.

Esfera privada e Estado vivem em tensão permanente: ninguém exprimiu com mais intensidade tal oposição do que Sófocles. Creonte encarna a noção geral e abstrata e impessoal da luta contra essa realidade. Já Antígona, ao sepultar Polinices contra as ordenações postas, atrai sobre a si a cólera de quem não age de moto próprio mas representando a suposta vontade geral que o Estado pretende representar.26

Interessantemente, é a jovem que remete para o passado e é ele, o velho tio, que aponta para o futuro, para a racionalidade da lei da Polis, com toda a sua imperfeição e insegurança, mas é a da cidade, da legalidade, da exterioridade e não da moralidade, da razão e não do coração27

Tal dicotomia é, pois entre o direito natural e o direito positivo. Faz-se notar que a expressão lei natural não aparece no texto, pois, muito embora já houvesse em Atenas, no século V, uma

25HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da história. 2.ed. Brasília: UnB, 1999, p. 39. 26 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 141-142. 27 ROSENFIELD, Kathrin H. Méritos e Falhas da Estética hegeliana. In: Revista eletrônica de estudos hegelianos. Ano 2, n.3, revista semestral da Sociedade Hegel no Brasil, dez. 2005. Disponível em < http://www.hegelbrasil.org/rev03o.htm>. Acesso em: 21 nov. 2007.

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polêmica alimentada apelos sofistas opondo lei (nomos) e natureza (physis), a expressão lei natural só vai aparecer no século IV.28

Para expressar o direito natural, o texto traz expressões como leis não escritas, dos deuses, perenes, do reino dos mortos. Para aludir ao direito positivo são usadas: leis do soberano, leis, decreto, edito.

Discutindo a evolução do conceito de nomos entre os gregos, este inicialmente tinha caráter religioso - fosse ou não escrito. Designava ritos, regras morais, ordem do mundo imposta pelos deuses. Considerando as leis da pólis, portanto as leis positivas, relativamente às leis não escritas. Alguns autores dão a essas leis naturais, ao tempo de Sófocles, conteúdo mais moral do que religioso. Tal amplitude favoreceu a uma certa identificação das mesmas com as leis comuns dos gregos que eram algumas práticas reconheciadas pelos gregos como deveres que ultrapassavam as fronteiras da polis, ex. poupar prisioneiros e suplicantes, ser fiel ao juramento, respeitar hóspedes e, também, enterrar os mortos. Práticas estas que em geral tinham origem religiosa.29

A postura de Creonte se faz inflexível, pois se Polinices era um traidor aos olhos de Tebas, por que não deixar que fosse sepultado fora dos muros da cidade? Assim, o rei alcançaria seus objetivos e Tebas seria poupada da ira dos deuses. O fato está nele, Creonte, que cuida para que o rito não seja cumprido, e, uma vez cumprido, cuida para que seja ineficaz e ordena que seja desfeito. Antígona age em sentido contrário: ela cumpre o rito.30

Antígona, ao responder a Creonte pelos seus atos, fundamenta-se e apela para as leis eternas e inquebrantáveis dos deuses, acima dos homens. Esta concepção de fundamento do direito

28 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 52. 29 ROSENFIELD, Kathrin H. Méritos e Falhas da Estética hegeliana. In: Revista eletrônica de estudos hegelianos. Ano 2, n.3, revista semestral da Sociedade Hegel no Brasil, dez. 2005. Disponível em < http://www.hegelbrasil.org/rev03o.htm>. Acesso em: 21 nov. 2007. 30 Idem.

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na vontade divina há muito que deixou de ser paradigma dominante. Assim, pensar a figura de Creonte é percebê-lo muito mais próximo da atualidade do que Antígona.

A partir desta ilustração dicotômica encenada nesta tragédia, o quadro evolutivo na direção do direito moderno ou dogmaticamente organizado se fez valer “positivando” o direito natural. Tal positivação se deu na prática com a incorporação, nas cartas constitucionais e demais normatizações, daqueles reclames transcendentes e imutáveis caracteríticos dos valores idealizados pelo jusnaturalismo.

Contudo, não obstante a realidade atual jurídica (por extrema cautela de não incorrer em generalizações, leia-se ainda, ocidental) de um direito estruturado e caracterizado pela inegabilidade dos pontos de partida e da proibição do non liquet, não obstante isso, ao se examinar mais detidamente a argumentação que tenta legitimar ou ratificar os direitos humanos incorre, como recurso extremo numa desesperada tentativa de salvar os direitos humanos (e por que não dizer o próprio direito), na mais inequívoca argumentação jusnaturalista. Esta que se camufla nas ilusões referenciais dos juristas quando definem direito como a busca da justiça e pensam nos direitos humanos como a lanterna dos afogados na firme esperança de salvação da humanidade pelo direito.

Como já o disse Tércio Sampaio no subtítulo do seu manual de IED, direito é técnica, decisão e dominação. Nesta esteira que não deixa de ter um viés realista (em termos gerais, isto é, em oposição a uma concepção idealizada da forma jurídica, posto que estes autores não são da tradição do realismo jurídico), Douzinas radicaliza ao dizer que os direitos humanos tornaram-se o credo das classes médias e que toda vez que um pobre, ou oprimido, ou torturado emprega a linguagem do direito – porque não existe nehuma outra disponível atualmente – para protestar, resistir, lutar, essa pessoa recorre e se

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conecta a mais honrada metafísica, moralidade e política do mundo ocidental.31

4. Ensaio de uma conclusão

O realismo jurídico não vem discutir a questão dos direitos humanos. Se considerarmos genericamente que o fim dos direitos são os humanos, ou que nos direitos humanos o homem se encontra como tal32, podemos só assim ligar a preocupação acerca do direito no geral dos realistas como uma contribuição apta para pensar também os direitos humanos em particular.

Porém o principal que se ergue como desdobramento final é que, se a influência da lógica peirceana vem arejar a compreensão crítica acerca da tomada de decisão, inspirando o que podemos falar como um ceticismo jusrealista, e se tal ceticismo em vez de negar os pilares juspositivistas antes o ratificam (razão primeira para se afastar a alusão a um irracionalismo da tomada de decisão sob perspectiva dos realistas), então se poderia englobar na rejeição realista aos dualismos a rejeição ao jusnaturalismo pela abstração que imprime ao direito como tendo valor transcendente e imutável.

Da mesma forma que os pragmatistas identificam o prejuízo das discussões que se perdem na pura e infindável metafísica ao se distanciarem da experiência e continuidade da vida, o grande prejuízo identificado pelos realistas estaria nas ilusões referenciais que embotam a compreensão do direito e, consequentemente também, dos direitos humanos.

31 DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Trad. Luzia Araújo. São Leopoldo: UNISINOS, 2009, pp. 16-17. 32 Sobre isto que poderia se falar como a subjetividade nos direitos humanos, Douzinas diz que Os direitos humanos controem seres humanos. Sou humano porque o Outro me reconhece como tal, o que, em termos institucionais, significa que sou reconhecido como um detentor de direitos humanos. DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Trad. Luzia Araújo. São Leopoldo: UNISINOS, 2009, p. 42.

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CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E MITOLOGIAS DA LEGISLAÇÃO: CÓDIGO CIVIL VERSUS CONSTITUIÇÃO?

Torquato Castro Jr.1

A antropologia, a sociologia e a história dos conceitos jurídicos deparam-se inevitavelmente com metáforas, que compõem em grande número o imaginário e a pedagogia dos juristas. Talvez se possa dizer que tais metáforas funcionam como “catalisadores semânticos”; quer dizer, elas parecem funcionar encurtando o tempo ou o esforço necessário para a compreensão de uma idéia ou de um conceito jurídico. Isso, certamente, ajuda a explicar seu largo emprego como recurso pedagógico pela doutrina. Entretanto, sempre resta algo de impreciso nas figuras de linguagem, talvez algo de verdadeiramente inefável, que incomoda os rigores de epistemologias de inspiração mais cartesiana, rigorosa nas idéias claras e distintas. Dir-se-á são “apenas” metáforas.

Em certo sentido, um saber rigoroso deve prescindir das metáforas. Não é desprovida de sentido a recusa de Luhmann em abordar diretamente o tema “fontes do direito”. Ele disse que se tratava de uma metáfora “antiga” e “bela”, mas que seria inadequada para exame, por não alcançar a expectativa conceitual hodierna de uma teorização científica propriamente dita.2

Na presente comunicação, se buscam enfocar metáforas de espaço, topologias metafóricas, a que recorrem os doutrinadores do direito civil, quando buscam expressar sua visão e compreensão do fenômeno chamado por eles mesmos de “constitucionalização do direito civil”. Com elas os autores buscam construir e fixar o significado, direto e indireto (“simbólico”), dos textos das leis cíveis e,

1 Mestre UFPE e doutor pela PUC-SP. Professor Adjunto da UFPE. 2 Luhmann (....)

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particularmente, da Constituição, qual o “valor” desses textos, para usar a expressão eleita por Ivo Dantas.3

O surgimento em Roma de uma cultura na qual as palavras escritas ganham influxo decisivo na prática do direito exigiu aptidão para argumentar sob a pressão da literalidade do comando jurídico escrito. A aptidão de fixar comandos jurídicos exigiu assim essa “canonização” de determinadas seqüências de letras, de certas fórmulas jurídicas, a qual, desde os inícios, manifestou-se por meio da adesão obstinada ao sentido literal expresso no texto, isto é, à sagrada expressão da lei.

Tais são imagens, que se constroem para a cabal configuração do “sentido normativo” e da “sacralidade” dos textos legais, condicionando e dimensionando simultaneamente as expectativas em torno deles. Afinal, a lei impera.

A teoria jurídica privatista dá conta da “constitucionalização do direito privado” à sua maneira, constitutivamente. É essa “explicação” que se torna observável desde as perspectivas teóricas da história, da sociologia e da antropologia.

1. Cultura jurídica da escrita

Parte necessária do fenômeno que se pretende observar, i.e. do chamado “direito civil constitucional”, tal como ele é hoje compreendido na tradição romanista, dirá respeito ao convívio dos juristas com a tecnologia da escrita e sua adaptação retórica (e antropológica) a ela.

A cultura jurídica romanista é fundamentalmente uma cultura da escrita.4 Pode-se afirmar isso na medida mesmo em que se pode

3 Dantas (....) 4 MEDER, Stephan (2005: 40-41): „(...) in Rom etwas ganz Neues zu entwickeln beginnt, nähmlich eine Rechtskultur, die zunehmend durch Denkformen der Schriflichkeit bestimmt wird. Das hartnäckige Festhalten der Römer am Gesetzeswortlaut ist Ausdruck ihres Strebens, die Zwölf Tafeln in den Rang eines kanonischen Textes zu erheben.“

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afirmar que “conhecer o direito” é, de modo muito peculiar, conhecer certos textos escritos com sua interpretação dominante. E é também, antropologicamente, um comportamento análogo à religião, uma religião da escrita e pela escrita. Parece adequada, a propósito, a caracterização da teoria jurídica como teologia política, proposta por Carl Schmitt5. Acrescente-se: uma teologia política numa cultura jurídica da escrita, justamente pela forma sacralizada com que contempla os textos legislados. Ademais as relações históricas entre os métodos de interpretação das escrituras sagradas do monoteísmo de origem e derivação judaica são notórias e ostensivas, além de amplamente estudada.

Nos inícios dessa cultura jurídica da escrita, em Roma, a sacralização da decisão expressa no texto escrito manifestou-se por meio da adesão obstinada ao sentido literal, para constituir a sagrada expressão da lei. Mas já aos romanos mesmos logo se lhes tornaria crível que, ao lado da letra da lei, haveria a interpretatio sempre inarredável, incontornável.

Na opinião de Pompônio6, por exemplo, a interpretação da lei não poderia ser considerada como direito ao lado das Doze Tábuas, mas deveria estar compreendida no conceito mesmo de “direito civil”. Também Gaio considerava uma decisão que não se contenha na literalidade da lei como lícita e legítima, se for e por ter sido obtida na atividade interpretativa dos magistrados e doutos, como se tivesse sido introduzida pelas letras da lei mesma. 7

5 Schmitt (2004) 6 Corpus Juris : DIGESTO, 1.2.2.5: His legisbus latis, coepit, ut naturaliter evenire solet, ut interpretatio desideraret prudentium autoritate necessariam esse disputationem fori. Haec disputatio, et hoc jus, quod sine scripto venit, compositum a prudentibus, propria parte aliqua non appelatur, ut caeterae partes juris sui nominibus designantur, datis propriis nominibus caeteris partibus: sed communi nomine appellatur jus civile 7 Corpus Juris: INSTITUTAS, 165: non quia nominatim in ea lege de hac tutela caveatur, sed quia perinde accepta est per interpretationen, atque si verbis legis introducta esset.

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2. Legislação, textos e saber jurídico

A cultura jurídica romanista hodierna, que é quiçá menos romana do que judaico-cristã no modo como concebe a vinculatividade dos textos, não se limita, por outro lado, a ser um modo de conviver com leis, mas também, e muito decisivamente, de conviver com textos doutrinários. Embora os ensinamentos orais tenham espaço no ensino do direito, os textos doutrinários são a ferramenta mais importante para construir a “ciência do direito”.

Assim, quando se pensa nas condições de realização desse saber, que se designa “ciência do direito”, tem-se sempre presente o horizonte da escrita e, por conseqüência, o da história, nos seus elementos constitutivos mais elementares. Esse ponto de vista que absorve o passado no presente por meio de textos era veementemente o da Escola Histórica do Direito, no Séc. XIX, especialmente pela pena de Savigny.

A doutrina jurídica, ou seja, a ciência do direito, a certa altura da história da cultura jurídica romanista, i.e. pelo menos desde a compilação de Justiniano, Séc. VI, funde-se com a lei, passando a integrá-la. O Digesto, livro segundo entre os que compõem o Corpus Juris Civilis, é “jurisprudência”, nos dois sentidos que nosso Português permite divisar, como repertório e como saber decisionais. A formação da ciência jurídica européia a partir do Séc. XII é também a história da recepção do Corpus Juris.

A fusão entre ciência do direito e legislação se pode dizer verdadeira até hoje, visto o que ocorre com certas leis, as que tendem ao formato de “código”, ou de “sistema”, como o Código Civil brasileiro e a própria Constituição Federal.

3. Guerra entre legisladores e juízes

Entre as promessas emancipatórias da modernidade, podia-se inscrever a expectativa de que a lei, assumindo essa forma sistêmica de “códigos”, pudesse traduzir ostensivamente todo o direito exigível, relativamente a certa área do saber jurídico, revelando-o por

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meio de formulações gerais de caráter cogente, que assim se tornariam acessíveis à compreensão de todos. A promessa certamente não se cumpriu; porém, os códigos sobreviveram, não sem perdas, a essa frustração que, vista de hoje, era todavia tão claramente previsível. E se não se espera mais que esgotem o direito, leis de caráter sistêmico, conceituais e relativas a certa generalidade de problemas continuam a ser elaboradas, em nível nacional e, principalmente, nos novos regramentos de mercado e comércio internacionais.

Por detrás desses eventos históricos, pode-se querer inscrever uma “guerra”, metafórica claro, mas também inegavelmente efetiva, entre legisladores e juízes. Uma guerra possibilitada e encoberta pela escritura da lei.8

Esse conflito está metaforicamente encoberto, na doutrina, como um conflito de “fontes”. A “guerra” de “fontes” parece hoje resolvida totalmente em favor da lei e em desfavor do costume judiciário. A ascensão da lei à condição de única fonte não foi, antes pelo contrário, refratária à “ciência do direito”, a qual, como se disse, já vinha sendo, desde Justiniano, absorvida pelo legislar (ou, ao menos, por algumas leis, talvez as mais importantes, as leis sistêmicas).

Hoje em dia, quando a guerra entre lei e costume parece ter chegado a uma clara vitória da lei, ela pode estar ainda disfarçada, sob uma retórica que ao mesmo tempo a esconde e conserva, nas nada simples relações entre direito dos juízes e vinculatividade da lei. Como relata Hans Hattenhauer, o “direito de juízes” entrou no lugar do direito costumeiro infrator da lei como construção do direito legitimada pela interpretação constitucional contra legem. Segundo Hattenhauer, as velhas inimigas consuetudo e lex jazem no campo de combate esgotadas e têm que constatar, surpresas, que, em vez delas um outro poder fora vencedor da batalha. Esse poder vencedor, o “direito de juízes” (Richterrecht), se legitima pela suposta cientificidade de seu conteúdo.

8 SAAR et al. 2005, 128.

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Há hoje entre os chamados neoconstitucionalistas a expectativa de que a Constituição, uma lei sistêmica, obra de legislação, possa ser compreendida como contendo um determinado e determinável fundamento de todo direito exigível, o qual a ciência do direito, a doutrina constitucionalista, ajudaria a reconhecer. Esse direito objetivamente posto na Constituição, por meio do chamado “controle de constitucionalidade” (judicial review), tem o condão de “empoderar” os juízes, de um modo único, no controle do legislador ordinário e do legislador constituinte derivado. Transformando-o materialmente numa espécie de contra-legislador.

A análise das narrativas da dogmática civilista constitucionalista quanto ao tema que Konrad Hesse denominou de “força normativa da constituição”, com efeito, revela novas metáforas e antecipa novas frustrações.

A fórmula proposta, porém, procura conciliar. Assim, para Tepedino (in Conrado et al. 2009: 39), “o sistema jurídico há de fazer convergir a atividade interpretativa e legislativa na aplicação direito, sendo aberto justamente para que se possa incluir todos os vetores condicionantes da sociedade, inclusive aqueles que atuam na cultura dos magistrados, na construção da solução do caso concreto”. A fórmula, como se vê, recupera a argumentação de Gaio, referida acima, o que corrobora a idéia de que se trata de uma nova forma para uma velha estratégia.

4. A “revolução copernicana” da civilística constitucionalista

O assim chamado “direito civil constitucional” pode ser definido como uma orientação hermenêutica, que tem ganhado difusão e prestigio doutrinário no Brasil, mormente desde o advento do texto constitucional de 1988, metaforicamente denominado “Constituição Cidadã”.

Erigiu-se então um discurso cujas bases metodológicas consistem na dúplice tarefa de desprestigiar o direito legislado nos

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códigos em favor de uma retórica da potencialização da eficácia do texto constitucional.

Segundo essa doutrina, sairia “do centro” do ordenamento jurídico o direito codificado e ocuparia esse “espaço” o texto constitucional. Isso seria comparável a passar a compreender o sol e não a terra como centro do mundo. O problema parece estar em não se perceber a relatividade dessas assertivas. O sistema jurídico não tem centro. Aliás toda topologia que se lhe queira atribuir será inescapavelmente metafórica, embora nem por isso menos relevante.

Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes (1991: 67): Diante da nova Constituição e da proliferação dos chamados microssistemas, como, por exemplo, a Lei de Direito Autoral, e recentemente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Locações, é forçoso reconhecer que o Código Civil não mais se encontra no centro das relações de Direito Privado. Tal pólo foi deslocado, a partir da consciência da unidade do sistema e do respeito à hierarquia das fontes, para a Constituição, base única dos princípios fundamentais do ordenamento.

Ora, se tomada literalmente a assertiva acima, então ter-se-ia que a Constituição não era base única e se tornou, quando o código civil perdeu forças, perdeu “centralidade”.

Para Fachin, na mesma linha, a Constituição teria “emprestado força” a distintos institutos de direito privado (in Conrado et al., 2009: 22).

De novo a idéia, que não pode ser tomada literalmente, de que o fato de estar escrito no texto constitucional torna a função social um princípio qualitativamente diferente do que era até então.

A “revolução copernicana” da civilística constitucionalista tem um sentido mítico fundamental, relacionado à cumulatividade do saber jurídico e do direito de juízes e juristas, que se projeta na composição de uma topografia imaginária da legislação.

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A importância da Constituição para a interpretação e desenvolvimento (judicial) do direito privado é inegável. Porém, a constituição atende a funções político-retóricas diversas daquelas da codificação civil. A Constituição é escrita com estilo diverso do código civil, emprega palavras bem menos semanticamente determinadas do que o Código Civil e persegue outros fins. São duas formas diversas da técnica de legislar, distintas formas de pensamento e tradições.

Como afirmou expressamente Fachin (in Conrado et al., 2009: 21), por detrás desses esforços de figuração há “uma grande vontade política”. Segundo ele, “de tornar a Carta Magna da jovem nação brasileira em algo mais do que a Constituição de papel de Ferdinand Lassale”.

Referências

CONRADO, Marcelo; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo (2009). Direito Privado e Constituição. Ensaio para uma Recomposição Valorativa da Pessoa e do Patrimônio. Curitiba.

Corpus Juris Civilis (1881) – Academicum Parisiense (1881). Paris.

LUHMANN, Niklas (2010). Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main

MEDER, Stephan (2005). Rechtsgeschichte (2005). Köln, Weimar, Wien.

MÜLLER, Friedrich (1986). Richterrecht“. Berlin.

SAAR, Stephan Chr. et al (2005). Recht als Erbe und Aufgabe – Heinz Holzhauer zum 21. April. Berlin.

SCHMITT, Carl (2004). Politische Theologie. Berlin.

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DIREITOS HUMANOS: ENTRE PROMESSA FORMAL E AS DEMANDAS POR SUA CONCRETIZAÇÃO (um ensaio de interpretação marxista)

Enoque Feitosa1

A questão da interdisciplinaridade é, desde algum tempo, uma postura pedagógica que dá conta dos novos (e antigos) problemas nos mais variados campos do saber. No direito, pelos motivos que serão examinados neste trabalho, é um problema crucial, notadamente em face do ensimesmamento que, via de regra, caracteriza a atividade dos chamados “juristas práticos” e que, por algum tempo, foi erigido (e, de certa forma, ainda o é) quase que como um tabu da chamada dogmática jurídica.

Não é gratuito que o projeto de depuração da teoria do direito, visando “garantir um conhecimento apenas dirigido ao âmbito jurídico, excluindo tudo quanto não pertença ao seu objeto e libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhes seriam estranhos” (KELSEN, 2003, p.1) - para poder, com tal 'depuração', ser ciência e não, conforme seu formulador, Kelsen, “política do direito” - ainda hoje tem um peso imenso na consciência e no “senso comum teórico dos juristas” - conceito operacional que aponta a dimensão ideológica das, assim chamadas, “verdades jurídicas” (WARAT, 1994, p. 13).

Para o saber tecnicista – felizmente já de algum tempo perdendo espaço no debate jurídico – todo olhar ou crítica externa ao direito não teria a dignidade de uma ciência (ao menos, de uma ciência do direito), sendo tão só ideologia e jamais equiparado à crítica interna, cujo mérito consistiria em lidar com os institutos dogmáticos, aceitando-os como dados prévios, isto é, pressupostos

1 Doutor em Direito e Doutor em Filosofia; Professor Efetivo da UFPB; Coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas da mesma instituição, onde lidera o grupo de pesquisa sobre “Marxismo e direitos humanos”.

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indiscutíveis para poder examinar a forma jurídica e, assim, mais apta a instaurar uma compreensão exata do seu objeto.

Os estudos mais qualificados sempre buscaram se diferenciar dessa divisão hierárquica simplória entre teoria do direito versus teoria sobre o direito. Para tais autores –e por todos eles menciono Bobbio - se não havia em Marx uma teoria do direito, isto não era uma objeção para não refletir sobre suas contribuições ao universo de compreensão do jurídico, visto que suas observações sobre o direito, isto é, uma teoria sobre o direito implicava numa “teoria sociológica do direito in nuce” (BOBBIO, 2006, p. 207 e 219).

O que se ignora, em quaisquer das formas com que a crítica se apresente - ou a do senso comum jurídico ou as mais competentes -, é que Marx, defendendo a extinção, (que é um processo gradativo e, por isso, se diferencia de supressão, que é imediato) da forma jurídica, não teria por que elaborar uma teoria do direito e sim empreender a formulação da superação dessa esfera parcial da sociabilidade humana.

Por isso, tratar o direito, que é, claramente, uma relação social, só se concebe encarando-o como fenômeno político, histórico, societal e, conseqüentemente, vendo seu ensino e aprendizado como uma prática em constante diálogo com outros saberes.

Para tanto, a primeira tarefa, no que concerne ao ensino jurídico, é criticar modelos que o idealizam, afastam da vida social e tentam caracterizar o direito como uma esfera acima das classes, neutra e supostamente desinteressada quanto aos conflitos humanos com os quais lida, evidenciando-as ou enquanto perspectiva ingênua ou como mera abordagem/discurso ideológico claramente interessado em difundir uma imagem invertida do que de fato é a forma jurídica.

A objeção, geralmente levantada, que o direito é neutro em razão do princípio da imparcialidade do juiz é uma falácia visto que não se confunde uma coisa com outra. O exame racional de qualquer problema pede ponderação e não neutralidade visto que ninguém, para julgar, abdica de crenças, formação e outros valores como quem muda de roupa. Como lembra Marx, é tola e absurda a pretensão de que o juiz seja imparcial, quando o legislador não o é. Para ele, a

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imparcialidade é só a forma, nunca o conteúdo do direito. Ademais, nunca é ocioso lembrar, toda forma é sempre forma de um conteúdo (MARX, 1987, p. 281-292).

Ora, com a crescente afirmação do que se chama cultura dos direitos humanos ganhou relevância: a) A inserção de tal problemática num conjunto de políticas públicas que visem promovê-los; b) as demandas dos mais diversos setores da sociedade por sua concretização - visto que não basta a existência formal de direitos para que eles possam gozar de eficácia; c) a necessidade de dialogarmos mesmo com as visões que criticam alguns dos fundamentos dos desses direitos, notadamente com aquela que promove uma crítica radical às visões particularistas e individualistas acerca dos mesmos. Daí a importância da crítica de Marx.

No caso dos programas de pós-graduação, quer lato, quer stricto senso, é de se notar que, embora presente uma compreensão multidisciplinar, faz-se ainda - e cada vez mais - necessário que se intensifique a interação dos diversos saberes, mesclando saber jurídico com conhecimento social, cultural e político.

Entretanto, já que haveria um consenso razoável entre os que defendem essa concepção, digamos, mais arejada do ensino jurídico, é preciso se dar um passo adiante no sentido de também lidarmos, sem preconceitos, com os estudos que criticam a concepção liberal-individualista dos direitos humanos. Isto pelo fato de que, quando se busca debater sua concretização muitas vezes o consenso supramencionado se esvai por razões que se examinarão no próximo ponto, a principal delas é que tais direitos, como o direito em geral, é uma construção histórica, social, dependente do espaço, do tempo e da cultura.

Para tanto é que se propõe, a partir daqui, abordar a crítica marxista à concepção de direitos humanos oriunda das revoluções burguesas do século XIX, que, em razão da correlação política então existente, erigiu sua concepção de tais direitos enquanto garantias do indivíduo egoísta e em contradição permanente com os interesses da sociedade.

Essa discussão, igualmente, avulta em importância pelo fato - nem sempre percebido pelos que formulam modelos para uma teoria

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sobre fundamentação / justificação dos direitos humanos - de que a única forma de negar o caráter contextual, temporal, relativos, enfim, dos mesmos, obrigaria, teoricamente, a afirmá-los como dotados de um fundamento prévio, independente da história e acima dos humanos, portanto resgatando uma concepção jusnaturalista, que, como todo essencialismo, pode fundamentar tanto o bem quanto as piores atrocidades.

Ademais, essa visão essencialista, na qual o modelo jusnaturalista se insere, independentemente das boas intenções de seus formuladores, imobiliza a luta pela transformação das relações sociais, das quais a forma jurídica é uma das expressões, na medida em que têm em comum o fato de defender um fundamento anterior e superior para o direito existente, com o que se desobrigaria da tarefa de se auto-justificar.

É nesse âmbito que está situada a preocupação deste trabalho, qual seja, a crítica marxista ao jurídico, situando-o como fenômeno histórico e, portanto, na qual subjaz uma objeção as idéias de um fundamento supra-positivo para o direito.

1. A crítica marxista à visão liberal acerca dos direitos humanos no âmbito de sua crítica geral à forma jurídica.

Em razão da crítica contundente que fez, já num dos textos do chamado período “jovem” - momento da produção teórica de Marx sobre a qual é comum afirmar-se que era marcada por forte crença no direito e na racionalidade moderna, recém-vitoriosa, e que, na demarcação althusseriana iria até a 'Ideologia Alemã”, escrita em torno de 1845 – costuma se dizer que aí tínhamos um Marx filosófico, tolerante e democrata, em oposição ao “velho Marx”, ontologicamente rígido e dogmático.

Não notam esses críticos mal-avisados que é o Marx jovem e filosófico que produz - no texto “A questão Judaica” - a critica mais dura à concepção liberal e individualista sobre os direitos humanos. Direitos estes que ele caracteriza enquanto “outra coisa senão os direitos do membro da sociedade burguesa, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade” (MARX, 2009, p. 63).

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Sabemos que Marx encetou uma crítica de princípio à forma jurídica. Mas, o que isto significaria? Uma renúncia ou recusa a qualquer reivindicação acerca do direito? A resposta a esta questão é pela negativa, visto que, pelas partes de sua obra onde trata de questões jurídicas, notadamente, nos textos da primeira fase, fica patente sua consciência acerca da importância das reivindicações democráticas, portanto no campo onde existem e atuam relações de Estado e de poder (até pelas raízes etimológicas e históricas do termo “democracia”) e, conseqüentemente, de direito.

E sua crítica ao direito burguês, direito moderno por excelência, do qual a reivindicação ao direito de propriedade privada é expressão, não se situa apenas em “A questão Judaica”, embora este seja o texto mais citado da polêmica. Essa crítica se encontra presente em “A sagrada família”, uma polêmica contra Bruno Bauer e consortes, em que segue a polêmica iniciada na “Questão Judaica”, acerca do direito; nos “Grundrisse”, quando em várias partes se reflete sobre a liberdade e igualdade na sociedade burguesa; em “O capital”, quando discute a mercadoria, mostrando o direito como terreno de regulação do intercâmbio de equivalentes e na “Crítica ao Programa de Gotha”, onde caracteriza todo direito como direito da desigualdade (MARX, 2003, p. 44, 113-115, 128, 202, 214; 1989 - 1º volume, p. 184, 249, 419, 431; 1987 - 1º volume, p. 61-62, 77, 79, 80, 83-84, 224, 226 ss.; 1977 p. 223-224), mas cuja análise não se fará aqui por que fugiria ao objeto da exposição e por ter o autor do presente artigo a ter empreendido em obra mais extensa e, por isso, adequada ao detalhamento da visão geral de Marx sobre o direito e não apenas sobre os direitos humanos (FEITOSA, 2008, passim).

O objetivo aqui é mais pontual: trata-se da tese específica segundo a qual se deve desenvolver interdisciplinaridade inclusive com as concepções que criticam os direitos humanos, notadamente aquela crítica que quer aprofundá-los, radicalizá-los. Assim, e já em prosseguimento, é preciso que se diga que, se há em Marx uma crítica de princípio essa crítica se dirige à forma jurídica enquanto tal.

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A declaração dos direitos do homem e do cidadão, aprovada pela Convenção Nacional, em 1793 e afixada no lugar de suas reuniões, o documento mais radical para àquela época e que prescrevia em seus dois primeiros artigos que os homens [era essa a fórmula de então] tinham direito, naturais (sic) e imprescritíveis, a igualdade, liberdade, segurança e propriedade - estão, óbvio, subsumidos na crítica de Marx ao direito e, a rigor não deveria ser novidade e nem causar espanto, ele a ter submetido a uma, para usar um termo caro aos chamados pós-modernos, desconstrução.

Mas, Marx nunca identificou sua crítica com a atitude dos conservadores e restauracionistas que criticavam a declaração não pelo que ela tinha de limites e sim pela expressão, que ela era clara, da ascensão burguesa e da derrota da aristocracia feudal, a exemplo de Burke que considerava a declaração francesa insípida e a via enquanto fragmentos de papel exaltando supostos direitos do homem. Para ele, natural era, literalmente, “o respeito ao rei e o temor a deus” (BURKE, 1982, 196).

Num outro campo, a crítica aos direitos humanos enquanto expressão da exaltação ao individualismo liberal então em ascensão era - e é - um chamamento à superação desses limites através da afirmação do humano enquanto ser coletivo e que só se afirma no coletivo, o qual, por sua vez é espaço de expressão, e não de tolhimento, de sua individualidade.

A visão liberal-individualista tenta, insistentemente, limitar as reivindicações dos direitos humanos ao terreno das garantias individuais, excluindo delas qualquer elemento da chamada “questão social”, no que resultam os direitos humanos em meras garantias formais, sem efetividade, e a serem imoladas eternamente no altar da vida real, que garante liberdade de opinião, direito de ir e vir, direito de propriedade e tanto mais, aos que não tem espaços midiáticos para opinar, não tem como sobreviver, quanto mais ir e vir e não devem aspirar outro tipo algum de propriedade.

Embora incompreendida e / ou distorcida, da crítica de Marx aos direitos humanos, pode-se perfeitamente - para demarcar-se dos

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que limitam as reivindicações sobre direitos humanos aos direitos individuais – lembrar-se da lição de Constant que, para criticar Rousseau, pediu licença e fez questão de ficar distante de filósofos reacionários que, por razões de classe disfarçadas de divergência intelectual, combatiam o grande genebrino.

É parafraseando Constant, que essa crítica, cujo referencial teórico é o de Marx, procura se situar, “evitando a companhia de detratores e quando parecer concordar com eles em qualquer ponto, desconfia de si mesma e que, para tranqüilizar-se de, aparentemente, compartilhar de qualquer das opiniões deles, quer repudiar o mais possível essa pretensa colaboração” (CONTANT, 1985, s / p.), visto que a crítica encetada pelo pensador de Trièr essa crítica fazia-se necessária na medida em que fornecia (e ainda fornece) os elementos para se compreender a barbárie da sociedade burguesa (LOSURDO, 2006, p. 182).

Se olhada pelo contexto da negativa de fundamentos anteriores e superiores para o direito, a crítica aos direitos humanos proporciona consistência a uma reflexão acerca desses direitos, no sentido de possibilitar sua concretização para as amplas maiorias excluídas. E isso pelo fato muitas vezes ocultado de que a forma jurídica, em regra, atua numa dupla direção: a) universalizando apenas no âmbito formal os direitos para as maiorias e, b) consagrando direitos individuais que, na maioria dos casos, só uma minoria, dotada de poder econômico, desfruta, notadamente no que concerne a apropriação privada.

Ora, a idéia, tipicamente jusnaturalista - de que haveria certos direitos superiores e anteriores a qualquer ordem jurídica – pode, aparentemente, fornecer um fundamento aos direitos humanos, mas deixa de fora uma questão: quem define esse “fundamento”?

Por outro lado esse modelo não nos livra, ao contrário, pode nos conduzir, a intolerância visto que estabelece um critério claramente eurocêntrico pelo qual as sociedades diferentes da nossa - indígena, islâmica, africana, afegã, iraquiana, iraniana, palestina etc. - ao não respeitarem os direitos humanos (ou o que nossa cultura e

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nossa tradição entendem enquanto tal) seriam passíveis de punições e enquadramento, gerando o paradoxo pelo qual a violência seria meio garantidor da implantação de ... direitos humanos!

Enfrentar e tentar formular uma resposta, entre outras, passa a ser o objetivo neste artigo, muito mais para um ensaio, no sentido que Adorno confere ao termo (ADORNO, 2003, p. 71) visto trabalhar num nível muito mais reflexivo e oferecer problemas e questões, do que respostas fechadas.

2. A crítica de Marx ao direito e a necessidade de um ceticismo esclarecido perante as “ilusões referenciais dos juristas”

Marx, ainda que tivesse como objetivo político tardio a eliminação da forma jurídica enquanto manifestação de uma realidade alienada, nunca negou sua operacionalidade e inevitabilidade histórica nas sociedades marcadas pela luta de classes. Para ele, por “coerção externa” não se deve entender apenas a coerção estatal - baionetas e polícia - e sim as condições de vida material. As primeiras, longe de constituírem o fundamento da sociedade, são apenas exteriorizações da sua própria divisão (MARX, ENGELS, 2007, p. 462).

Ao criticar a concepção de direito de Hegel, Marx assinala que os erros deste advêm do fato de que:

concebe [Hegel] as atividades estatais abstratamente, (...) e, por isso, em oposição à individualidade particular, esquecendo que tanto essa individualidade como as funções estatais são funções humanas. [...] Ele esquece que a essência da personalidade “particular” é a sua qualidade social e que funções estatais são modos de existência e de atividade das qualidades sociais (MARX, 2005, p. 42).

Perceber esses elementos ideológicos que permeiam o âmbito jurídico (e que visam justificar, em última instância, a manutenção do status quo) não significa necessariamente adesão a uma atitude de

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negação imediata do direito, com a conseqüente paralisia em relação à luta política concreta que se deve travar até a sua superação.

Assim, pode-se começar a antever que o fundamento da concepção marxista acerca do âmbito jurídico, que aqui se defende, apóia-se num marco teórico que privilegia a ação humana enquanto práxis social e nela inclui o jurídico como categoria inserida na história, o que desloca qualquer idéia do direito como algo inerente ao ser humano.

Ora, a própria admissão do direito de propriedade como inerente ao ser humano, e não como resultado de um movimento histórico que, ao tempo em que abolia as relações feudais, criou outra forma de relação submissa (mais adequada ao novo paradigma da liberdade): o trabalho assalariado e venda das capacidades de cada um como se fosse uma mercadoria.

Marx evidenciou essa antinomia da inserção do direito de propriedade como um dos principais direitos humanos, oponível erga omnes, para aqui se usar uma expressão cara aos juristas, quando chamou atenção para o fato de que:

se se entende que toda transgressão contra a propriedade é um roubo, não seria um roubo toda apropriação privada? Acaso minha propriedade privada não exclui a todo terceiro desta propriedade? Com isso, não lesiono, por sua conseqüência, o direito de propriedade dele? (2005, p. 19, 30, 39).

E diga-se desde logo que a crítica de Marx ao direito, e ao sentido de parte da teorização que dele se faz, tem como fundamento considerá-lo como manifestação de uma forma de vida alienada, onde o direito e o Estado que lhe garante são apenas modos particulares de expressão do movimento da produção e da alienação que dela resulta (MARX, 2005, 106, 130).

E é este o aspecto fundamental da análise marxista, que aqui toma um aspecto concreto do âmbito jurídico: o seu uso enquanto discurso de justificação do poder e da solução controlada de conflitos

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que seu exercício permite, equilibrando coerção e consentimento (FEITOSA, 2008, p. 397 ss.).

Óbvio que ao construir essa crítica à concepção burguesa de direitos humanos, Marx, em nosso ver, visava inviabilizar o discurso liberal, notadamente na justificação do direito de propriedade (MARX, 2004, p. 106), cujo centro é a apropriação privada dos meios de produção, e que é a fonte fundamental das desigualdades sociais.

Com isso, o sustentáculo de boa parte das idéias que fazem parte do senso comum jurídico e do compêndio de ilusões que ele constitui estaria solapado pela base.

No entanto, os que cindem, de um lado, a crítica à forma injusta de organização da sociedade, e a separam da concepção idealista que têm sobre o jurídico, acabam por se tornarem presa dessa visão parcial e acrítica do direito não conseguindo superar esse compêndio de ilusões que constituem o chamado senso comum teórico dos juristas.

E não conseguem pelo motivo de que ou estão presas a ilusões referenciais, aderindo às crenças acerca do suposto caráter neutro do fenômeno jurídico ou ainda, esperando do direito uma racionalidade essencialista e previamente constituída, que a forma jurídica, como estrutura de justificação de decisões que visam neutralizar expectativas nem sempre prontas a serem atendidas, não pode oferecer, ao invés de ver razão e vontade, no direito, como conceitos que são manipulados com fins estratégicos e persuasivos (KAHN, 2001, p. 22-23).

Essas “ilusões de referência” também se sustentam em termos vagos e genéricos, truísmos pouco discutidos e em favor dos quais há pouca simpatia de vê-los questionados, a exemplo da expressão “direito legítimo”.

Parafraseando Marx pode se afirmar acerca do direito: os juristas nada mais fazem que a justificação do direito quando também importa entendê-lo em suas condicionantes sociais, o que cria as condições de pugnar por sua transformação.

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Mas, para realizar tal intento há que se ter, em relação ao âmbito jurídico uma única atitude científica possível (embora os juristas reivindiquem para o seu saber um status de ciência, eles quase que não adotam a atitude que aqui se propõe): um ceticismo esclarecido, ou mais simplesmente, um ceticismo metódico, o qual consiste em duvidar das obviedades e verdades “estabelecidas” e sagradas quanto ao direito, notadamente aquelas ditas eternas e imutáveis e que, não por coincidência, têm um papel regressivo, como, por exemplo, a justificação do direito de propriedade como parte dos direitos humanos, sem se dar conta, ou ocultando que, esse direito “erga omnes”, que opõe o direito de seu titular contra todos os demais, isto é, contra toda sociedade, acaba por negar o direito da maioria em favor de uma minoria.

Essa perspectiva, em algum nível, cética, acerca do direito comparece de forma clara nos realistas americanos – notadamente em Holmes (HOLMES, 1955, p. 63), para quem o direito dirige-se apenas ao bad man – e nos seus herdeiros teóricos da chamada teoria jurídica crítica, do qual Paul Kahn, Duncan Kennedy e Mark Kelman são representantes destacados de sua mainstream.

Como assinala o segundo dos mencionados, engrossando os argumentos em favor do ceticismo no que concerne a uma (improvável) objetividade em matéria de direito e moral, desde o momento em que considerações valorativas integram o trabalho de decidir, o ideal de uma estrita aplicação do direito resta comprometido em algum nível (KENNEDY, 2010, p. 34, 44, 64, 73).

3. Conclusão: caráter classista do direito como discurso de justificação: a tensão entre coerção, consentimento e a concretização dos direitos humanos

Ora, na análise marxista do direito o que chama atenção é que, diferentemente das diversas formas de compreensão do jurídico - umas afirmando o direito como resultante de valores “intrínsecos”, pré-estabelecidos, a-históricos, acima e além de qualquer direito, situado antes mesmo e independente das necessidades concretas

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desse mundo – ela o vê como parte do movimento real da história humana e não enquanto dogmas elaborados de forma cerebrina, ou seja, afastada da vida social.

A célebre afirmação de Marx, pela qual “não há história do direito” (MARX, ENGELS, 2007, p. 75 e 330-331), poderia ser, equivocada ou interessadamente, esgrimida para negar o caráter histórico do fenômeno jurídico. Mas ela, para quem fundou o materialismo histórico, ou: a) é tomada como uma simples anotação para idéias a serem posteriormente desenvolvidas visto que, na mesma obra, Marx e Engels esboçam uma ... história do direito, ou, b) seria inteligível, na obra que funda o método histórico de Marx, no sentido de afirmar que não há história do direito, por que o direito está subsumido à história da luta de classes.

Uma concepção historicamente situada, do direito - como assinalou Marx acerca do conjunto da atividade social -, só adquire potencial heurístico se e na medida em que reconhecer os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto as já existentes como as resultantes de sua ação, pressupostos constatáveis, portanto, por via empírica, o que não quer dizer que não possam ser abstraídos por necessidades metódicas (MARX, ENGELS, 2007, p. 86-87).

Assim, compreender o fenômeno jurídico demanda perceber que o ponto de partida não pode se limitar ao indivíduo isolado, ou seja, o sujeito imaginado pela concepção liberal das revoluções burguesas do século XIX, e sim o ser social porque o direito contemporâneo não pode olhar para trás e prescindir desses novos contextos.

Ver o sujeito de direito como indivíduo – é assim na concepção liberal – e não como resultado histórico, constitui-se num erro metodológico de imaginar uma suposta produção desse indivíduo fora da coletividade.

Não se constitui numa sólida compreensão do âmbito jurídico àquelas que ignoram (ou ocultam) como as diversas formas de relações de produção criam suas próprias formas de relações jurídicas e que, por via reflexa, também ignoram a possibilidade de o direito se expressar como direito da força e mais: que tal forma não apenas se

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coaduna com um Estado de Direito como não lhe é conflitiva (MARX, 1978, p. 107).

O fato de, no âmbito da produção acadêmica sobre teoria geral, sociologia e filosofia do direito, e, por que não, no ensino dos direitos humanos, não se ter utilizado todas as possibilidades do pensamento marxista e cuja exceção mais notável para esse diálogo, ainda que não se valha de todas as categorias, são os “critical legal studies” (KELMAN, 1987, pp. 2, 9-10, 84, 91, 11-112, 198-199, 223-225, 242, 248-249, 253-254, 300-302), aponta para a necessidade de que, também no nosso campo de estudos e de prática tais derivações sejam exploradas ao máximo, sem posições preconcebidas, mas também sem preconceitos que busquem legitimar o banimento nas faculdades de direito de uma das vertentes mais expressivas de nossa cultura.

Trata-se de um erro se, em função de dogmas prévios, deixar-se de aproveitar, como o faz a economia, a sociologia e outros campos do saber - as contribuições de tal pensamento para um outro olhar sobre o direito.

E, já em vias de conclusão, é preciso que se diga que não foi só no período da juventude de Marx que houve a preocupação de fundamentação do direito.

Portanto, em todas as ocasiões em que foi chamado a discutir os problemas que envolviam, em seu dizer, interesses materiais e em situações que demandavam o uso do raciocínio judicial, ele combinou a desmistificação da forma jurídica com uma refinada justificação interna, isto é, como teoria do direito e não teoria sobre o direito. Mas não caiu na armadilha da teoria do direito que apenas se auto-justificasse.

O que nos conduz ao problema final (e este é um ponto essencial): O que o direito busca justificar?

Se a resposta consistisse em afirmar que o direito visa justificar suas próprias decisões, ela levaria a um paradoxo pelo qual ao direito incumbiria justificar o que já está decidido!

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E ainda que parcialmente o direito faça isso - justifique o já determinado (o que não constitui exatamente uma visão otimista do direito, ao menos para os que nele têm crenças em demasia) - é preciso que se diga que ele justifica o poder, que assim se torna legítimo e, portanto, justifica a dominação, algo que em sede de conclusão da presente exposição, a ideologia jurídica não admite, disfarçando o direito sob ideais vagos e genéricos como justiça, bem comum e paz social, valores a-históricos e cujo papel é apenas de justificação política-ideológica da forma jurídica.

A luta pelos direitos humanos é a luta por sua concretização, é a luta para garantir os instrumentos de promoção da sociabilidade e não do isolamento e do egoísmo. Ser livre é ser plenamente senhor de si e isso só é possível em sociedade que promova a vida em plenitude. A liberdade é uma palavra muito nobre para, em seu nome, se sancionar o egoísmo. Como Marx assinalou com agudeza, ninguém luta contra a liberdade em geral, no máximo se luta contra a liberdade dos outros a fim de se garantir um modelo egoístico de sociedade. E é em razão disso que a experiência humana vivenciou os mais diversos tipos de liberdade, só que algumas como prerrogativas particulares2. Trata-se, portanto, de ampliá-las ao máximo, tornando-as não meras declarações formais e sim parte da vida concreta da sociedade humana, que só se emancipará plenamente quando não mais houver poucos com muito e muitos com nada.

2 MARX, Karl. O debate da Dieta prussiana sobre a censura (Gazeta Renana, 12/05/1842). In: Liberdade de imprensa. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 10

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JUDICIÁRIO E COMUNICAÇÃO: O PROBLEMA DA RESTRICAO AO DISCURSO DO ÓDIO1

Gustavo Ferreira Santos2 Diego José Sousa Lemos3

Geisyane Barbosa do Prado4 Marcos Eurico Freitas Lira5

Patrícia Ávila Cintra6

Não devemos nunca nos esquecer do potencial opressivo do Estado, nunca; mas, ao mesmo tempo, devemos contemplar a possibilidade de que o Estado usará seus consideráveis poderes para promover objetivos que se situam no coração de uma sociedade democrática – igualdade e talvez a própria liberdade de expressão. OWEN FISS

Não há direito absoluto. Essa afirmação pode ser creditada à mais influente versão na atualidade da teoria dos direitos fundamentais, que trabalha com conceitos como ponderação de interesses, eficácia horizontal de direitos, núcleo essencial, entre outros. Trata-se uma forma sistematizada de abordar a questão dos direitos fundamentais

1 O presente texto foi elaborado no âmbito do Projeto “A regulação constitucional da comunicação social em uma democracia constitucional”, aprovado no CNPq (2010-2013) 2 Professor Adjunto da Faculdade de Direito do Recife – UFPE, Professor Adjunto da Universidade Católica de Pernambuco, Pesquisador do Moinho Jurídico (UFPE) e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. 3 Aluno do Curso de Direito da UFPE e bolsista do PIBIC UFPE-CNPq, 2010-2011, orientado pelo Prof. Dr. Gustavo Ferreira Santos. 4 Aluna do Curso de Direito da UFPE e bolsista do Projeto BIA-FACEPE, 2010-2011, orientada pelo Prof. Dr. Gustavo Ferreira Santos. 5 Aluno do Curso de Direito da UFPE e bolsista do Projeto BIA-FACEPE,, 2010-2011, orientado pelo Prof. Dr. Gustavo Ferreira Santos. 6 Aluna do Curso de Direito da UFPE e bolsista do PIBIC UFPE-CNPq, 2010-2011, orientada pelo Prof. Dr. Gustavo Ferreira Santos.

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bastante aceita na academia e na jurisdição constitucional. No entanto, no Brasil, ainda temos certa dificuldade de trabalhar com essa relatividade dos direitos quando falamos em comunicação e envolvemos a liberdade de expressão.

Evidentemente, traumáticas experiências de governos autoritários nos fazem desconfiar do Estado, quando ele se propõe a regular temas em torno da comunicação social. Também o debate é prejudicado por não termos fóruns públicos de discussão no rádio e na televisão, que são praticamente dominados por emissoras comerciais. Empresas de comunicação temem qualquer regulação e acabam por atacar qualquer iniciativa, independentemente das razões, dos objetivos envolvidos.

No entanto, há vários campos que podem exigir a ponderação entre liberdade de expressão e outros direitos fundamentais. Um deles, que pouco sofre contestação, é o da proteção dos direitos à honra. Grandes democracias inseridas na tradição do constitucionalismo convivem com legislações que definem atos como injuria, calúnia e difamação como crimes. Também pouco são questionadas as proteções aos direitos individuais à privacidade, à intimidade e à imagem, apesar das imensas polêmicas quanto ao seu alcance.

Neste artigo, queremos discutir a proteção à liberdade de expressão a partir da restrição ao discurso do ódio. Trata-se, ao nosso entender, de uma questão que envolve a restrição a determinados discursos em defesa de outras formas de discurso. É a própria liberdade de expressão que pode ser indicada como valor que está sendo protegido quando o Estado legisla restringindo ou quando o Judiciário controla a emissão de mensagens de incitação ao ódio.

1. Definindo a liberdade de expressão

A liberdade de expressão pode ser entendido como a liberdade de emitir mensagens, por quaisquer meios. Com Jônatas Machado, entendemos o direito à liberdade de expressão como o

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“direito mãe a partir do qual as demais liberdades comunicativas foram sendo gradativamente autonomizadas”7. Assim, para o mesmo autor, o termo liberdade de expressão pode ser tomado em sentido amplo, abrangendo outras liberdades como, por exemplo, liberdade de imprensa, liberdade de informação e liberdade de radiodifusão, ou pode ser apreendida em sentido estrito, significando liberdade de opinião.

No art. 5o, IX, a Constituição Federal consagra que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”

A liberdade de expressão, no sistema norte-americano, é um tema bastante polêmico, gerador de opiniões controversas em relação a sua (des)regulação: alguns acreditam que a intervenção estatal é uma violação à autonomia discursiva dos indivíduos; outros interpretam a “mão-estatal” como protetora e garantidora não somente da liberdade, mas também de outros valores e direitos. É perceptível, através de um exame da história norte-americana, que prevalece a primeira posição, a qual defende que o Estado se abstenha do exercício regulador das liberdades. Essa reação por parte da sociedade é fruto de uma posição mais liberal adotada pelo País, quando se trata da liberdade de seus cidadãos.

No entanto, privilegiar a livre manifestação do pensamento em detrimento de outros valores, não significa dizer que ela é destituída de qualquer limite. Segundo Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, “a liberdade de expressão americana reconhece certos limites, não é absoluta, podendo sofrer restrições quando entrar em conflito com outros direitos constitucionalmente assegurados”.8

7 Liberdade de programação televisiva: notas sobre seus limites constitucionais negativos, p. 104. 8 Meyer-Pflug, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.2009, pg.139.

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2. O discurso do ódio: caracterização e parâmetros no direito comparado

2.1. Definindo o discurso do ódio

Um dos temas controvertidos em matéria de regulação da comunicação pelo Estado é o combate ao chamado discurso do ódio. Trata-se de um discurso de conteúdo ofensivo a indivíduos ou grupos, por seu tom racista ou preconceituoso. Com esse discurso, indivíduos e grupos são tratados como inferiores e a sua importância na vida da sociedade é desprezada.

Nas palavras de Owen Fiss, “o discurso de incitação ao ódio é regulado pelo Estado fundamentando-se na teoria de que tal expressão denigre o valor e merecimento de suas vítimas e dos grupos aos quais pertencem” 9. O discurso do ódio é apresentado pelo autor citado como um dos exemplos do que ele chama de “efeito silenciador do discurso”.

Um rápido olhar para a jurisprudência de supremas cortes e tribunais constitucionais, demonstrará que não há uma uniformidade de tratamento quanto ao tema.

Para alguns, trata-se simplesmente de uma forma específica de discurso, sendo, portanto, protegida pela Constituição. Alertam que os instrumentos de repressão a esse discurso trazem riscos para o processo democrático o seu controle visaria proteger. Luis Díez Picazo afirma que “a repressão das expressões de ódio, por melhores que sejam as razões que possam justificá-la, contêm sempre o risco de calar as opiniões que nao são politicamente corretas e, portanto, privar de espaço os heterodoxos e os dissidentes”10.

Para outros, o discurso é apenas um meio de ofender direitos fundamentais de outro ou de outros, sendo necessário um agir estatal voltado ao equilíbrio entre direitos, que passará pela punição do autor do discurso.

9 A Ironia da Liberdade de Expressão, p. 40. 10 Apud GUTIÉRREZ DAVID Ma Estrella, ALCOLEA DÍAZ, Gema. El “discurso del odio” y la libertad de expresión en el Estado democrático.

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2.2. Paradigmas nas jurisprudências da Suprema Corte norte-americana e do Tribunal Constitucional alemão

Winfried Brugger num artigo voltado a comparar o tratamento do Discurso do Ódio na Alemanha e nos Estados Unidos questionou qual seria o tratamento, nos respectivos países, para uma pessoa que, em local público, levantasse um cartaz e emitisse o seguinte discurso:

acordem, massas dormentes! Anuncio-lhes três mensagens, e vocês farão bem em tomar conhecimento delas e concordar com elas. A primeira mensagem é: o nosso presidente é um porco. Para que vocês compreendam o que quero dizer, pintei dois quadros no meu cartaz. No primeiro vocês vêem o nosso presidente representado como um porco, que copula com outro porco; conforme vocês verão sem dificuldade, o segundo porco veste uma toga de juiz. O outro quadro para ilustrar a minha mensagem mostra o presidente num WC em uma pose erótica com sua mãe. A segunda mensagem é: todos os nossos soldados são assassinos! A terceira mensagem afirma: vamos acabar com a invasão e o desnaturamento do nosso pais por esses estrangeiros criminosos, que ameaçam a nossa liberdade e propriedade e nos inundam com drogas! 11.

Proferidas tais palavras, como afirma Winfried Brugger, nas escadarias do Capitólio em Washington, provavelmente o caso seria tido como juridicamente irrelevante, considerando que o discurso do ódio é visto como mais uma forma de discurso, sendo, dessa forma, protegido pela Primeira Emenda e só passa a ser tutelado pelo Estado quando se torna algo materialmente danoso para outrem: “Chamamentos gerais a agir são protegidos pela Primeira Emenda desde que não exista o concreto e iminente perigo de um ato ilícito ser praticado.” 12.

11 Proteção ou Proibição do Discurso do Ódio? Uma controvérsia entre a Alemanha e os EUA, p. 181. 12 Idem, p. 131.

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O Discurso do Ódio nos EUA é amparado pela idéia de liberdade de expressão que, para os norte-americanos, de forte tradição individualista, tem preferência sobre outros valores também importantes para a sociedade:

a jurisprudência constitucional americana foi expandindo e fortalecendo a proteção do free speech, que é hoje certamente o mais valorizado e protegido direito fundamental no sistema jurídico dos Estados Unidos, sendo considerado uma “liberdade preferencial”, à qual se atribuiu um peso superior na ponderação com outros direitos, como privacidade, reputação e igualdade.13

Assim, goza a liberdade de expressão de uma relativa preferência frente a outros valores consagrados constitucionalmente: “a liberdade de expressão no direito americano se erigiu à condição de um verdadeiro símbolo cultural”14 Essa “preferência” é assegurada pela Suprema Corte ao observar as suas inúmeras decisões a respeito desse assunto. Um importante caso foi o de “Brandenburg vs. Ohio”15, no qual a Corte foi favorável à proteção da liberdade de expressão de um cidadão que, numa manifestação da ku klux kan, proferiu idéias a favor do racismo. Ela alegou que tal atitude não deu causa a um perigo real. Assim, o Estado deveria permanecer neutro em relação ao conteúdo do discurso.16

Outro caso interessante foi o “National Socialist Party vs Skokie”17, no qual a Suprema Corte entendeu que estava protegida

13 SARMENTO, Daniel. Liberdade de expressão, pluralismo e o papel promocional do Estado. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, nº. 16, maio-junho-julho-agosto, 2007, p. 4. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 05 mar. 2011. 14 Meyer-Pflug, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio, p.133. 15 410 U.S 444 de 1969 16 CHEMERINSKY, Erwin. Striking a balance on hate speech. Trial. vol. 39. N. 7. Jul. 2003, p. 78(2) 17 432 U.S 43 de 1997

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no conteúdo da liberdade de expressão a realização de uma passeata neonazista em um reduto de judeu.

Caso as mesmas palavras fossem proferidas nas escadarias do Reichstag alemão, o tratamento do caso não seria o mesmo. Na Alemanha há atos normativos infraconstitucionais definindo como crimes essas ofensas gerais a pessoas e grupos e a jurisdição constitucional já decidiu favoravelmente à compatibilidade entre tal legislação e a Constituição.

Winfried Brugger resume assim as três forma de honra protegidas pelo direito penal alemão e que podem levar à punição de quem as viole: (i) o status pessoal de cada indivíduo, havendo sua violação quando em agressões verbais que negam a alguém a condição humana, geralmente trabalhando idéias de superioridade e de inferioridade; (ii) as condições mínimas de convívio social, violadas quando atribuídas falhas de caráter a alguém; (iii) o status social, a reputação, sendo sua violação decorrente da atribuição a alguém de um fato desonroso ou criminoso. No direito norte-americano, apenas esse terceiro tipo – que no nosso sistema corresponde aos crimes de difamação e de calúnia – é considerado legítimo.

Essas diferenças de tratamento entre os dois países levam, assim, a respostas distintas do Direito para cada mensagem do exemplo imaginado por Winfried Brugger18.

Em relação à primeira mensagem, o sistema norte-americano entenderia que se trata de uma critica política legítima, abarcada no âmbito de proteção da liberdade de expressão e que tal valor prevaleceria sobre o direito do presidente ao respeito. Em caso concreto no qual a revista Hustler representou um pastor copulando com sua mãe, a Suprema Corte entendeu que isso seria uma critica, um juízo de valor, possível quando tratamos de pessoas públicas. Na Alemanha, houve um caso concreto muito parecido com o exemplo

18 Nos próximos parágrafos vamos trabalhar argumentos do texto Proteção ou Proibição do Discurso do Ódio? Uma controvérsia entre a Alemanha e os EUA.

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(Caso Franz Josef Strauss – BverGE 75, 369), quando um político foi representado em uma caricatura como um porco copulando com outro porco, vestido de magistrado, tendo o tribunal constitucional entendido como injuriosa a mensagem, não abrangida pela liberdade de expressão.

Quanto à segunda mensagem, ele diz se tratar de discussão sobre a possibilidade de punição de uma ofensa coletiva. Nos Estados Unidos, apenas ofensas dirigidas a indivíduos específicos e que se constituam em atribuição de fato podem ser passiveis de punição. Já na Alemanha, houve um caso concreto no qual o acusado disse que “soldados são assassinos”, o que entendeu ser possível punir uma ofensa coletiva, mas, para isso, o grupo atingido deveria ser identificado. Assim, na Alemanha seria possível punir o autor da mensagem fictícia, já que dirigira a mensagem aos soldados alemães.

Pelas mesmas razões já aduzidas sobre os EUA, não seria possível naquele país a punição do autor da terceira mensagem. Na Alemanha, no entanto, apenas relatos objetivos de criminalidade de estrangeiros poderiam ser emitidos, mas não discursos que incitem a população em relação a tais estrangeiros.

Na sua visão, podem ser indicadas várias razões para tais diferenças entre os dois países, elencando ele quatro, a saber: (i) os norte-americanos acreditam que apresentadas todas as idéias, as boas prevalecerão sobre as ruins, existindo na Alemanha um sentimento no sentido contrario; (ii) os norte-americanos não passaram apenas por experiências negativas, mas também por positivas, quando minorias usaram palavras duras para afirmar sua posição (ex: Guerra do Vietnam e movimentos dos direitos civis), vendo a Alemanha apenas as conseqüências negativas; (iii) os norte-americanos são muito mais desconfiados em relação ao Estado do que os alemães; (iv) os norte-americanos enfatizam mais o aspecto “discurso”, enquanto os alemães mais o elemento “ódio”.

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3. O discurso do ódio no Brasil

3.1. A repressão ao discurso do ódio no Brasil: parâmetros legislativos

A Constituição da República Federativa do Brasil, no art. 5o, XLII, determina que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”

O Pacto de Direitos Civis e Políticos – um dos mais importantes instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos, editado em 1966 e ratificado no Brasil em (Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992) – tratou do tema determinando, em seu art. 20, que “será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência”. A liberdade de expressão foi consagrada no mesmo documento, em seu art. 19.

Com o objetivo de concretizar o dispositivo constitucional que trata do racismo, foi editada, no ano seguinte à promulgação da Constituição, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Essa lei torna crime um conjunto de condutas discriminatórias.

Em 1997, foi editada a Lei nº 9.459, que alterou o Decreto-Lei n. 2.848, DE 7 de dezembro de 1940, o Código Penal, para incluir uma injúria que “consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem”. Mais do que uma norma para concretizar a Constituição, parece ser norma que protege atos racistas, já que se trata de crime afiançável.

Está na pauta do Congresso Nacional projeto de lei que inclui no rol protegido a orientação sexual. Curiosamente, a discussão sobre tal mudança legislativa tem levantado questionamentos baseados na liberdade de expressão não suscitados em relação a outros temas tratados na legislação.

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3.2. O discurso do ódio no Judiciário brasileiro: o “Caso Siegfried Ellwanger”

Não há um acumulo grande no Brasil de demandas judiciais envolvendo a constitucionalidade ou não dos instrumentos legais que punem o discurso do ódio. Mas pode ser visto como o leading case no Supremo Tribunal Federal o chamado caso Siegfried Ellwanger.

O citado indivíduo, na qualidade de escritor e sócio da empresa “Revisão Editora Ltda”, dedicou-se à publicação de livros anti-semitas e que se dedicavam à negativa da existência do Holocausto. Dentre os livros, de sua autoria e da autoria de outras pessoas, são citados na decisão os seguintes: “Holocausto – Judeu ou Alemão? Nos Bastidores da Mentira do Século” (de Siegfried Ellwanger); “O Judeu Internacional” (de Henry Ford); “A História Secreta do Brasil”, “Brasil Colônia de Banqueiros” e “Os Protocolos dos Sábios de Sião” (os três de autoria de Gustavo Barroso); “Hitler – Culpado ou Inocente?” (de Sérgio Oliveira) e “Os Conquistadores do Mundo – os verdadeiros criminosos de guerra” (de Louis Marschalko).1

Ele havia sido acusado pelo Ministério Público e condenado pelo Poder Judiciário por crime de racismo. Assim, ele apresentou pedido de Habeas Corpus junto ao Supremo Tribunal Federal, que o denegou por 8 votos a 3 (HC 82424) .

Para o Supremo Tribunal Federal, as obras tinham o objetivo de “incitar e induzir a discriminação racial, semeando em seus leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica”. 1

Em sua defesa, o citado autor alegou, dentre outros argumentos, que a condenação pela publicação feria o direito fundamental à liberdade de expressão.

O posicionamento majoritário no Supremo Tribunal Federal foi no sentido da constitucionalidade da legislação contraria ao racismo. Inicialmente, afastou todos os argumentos que envolviam a definição de raça, entendendo que o conceito se desprendeu de sua

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origem biologista e deve ser tomado como um fato histórico/cultural. Assim, o nazismo tem um discurso de superioridade de raças, o que justifica entender que tal discurso é racista.

Entendeu o STF que a Liberdade de expressão não pode ser tomada como absoluta, em especial quando o sistema constitucional determina, como no nosso caso, que determinam ao Estado a punição do racismo, o que é também presente em compromissos internacionais. Na Ementa, é dito que “O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal”, não podendo o direito à “liberdade de expressão” ser interpretada como um "direito à incitação ao racismo".

Conclusões

A Constituição brasileira consagra um conjunto de preceitos sobre a comunicação, não sendo essa atividade impactada apenas por normas protetivas de liberdades, mas, também, por princípios e regras consagradores de outros direitos, que lançam ao intérprete o desafio da justificação que não exclua previamente qualquer dos direitos envolvidos.

O problema da punição do chamado “discurso do ódio” é um bom exemplo do desafio que têm os intérpretes da Constituição. Estão envolvidas a genérica proteção à liberdade de expressão e o dever constitucionalmente consagrado de punir os atos de racismo.

Com a citada decisão do Caso Siegfried Ellwanger, podemos dizer que o posicionamento do STF está mais próximo do posicionamento do Tribunal Constitucional alemão, consagrando a possibilidade de punição, na legislação infraconstitucional, de ofensas genéricas a grupos sociais. No entanto, não há garantias de que toda legislação futura repressora do discurso do ódio seja declarada inconstitucional por tais argumentos.

Um dos ministros vencidos, Min. Carlos Ayres de Britto, entendia que não havia ali nos livros editados pelo autor propriamente racismo. Defendeu estar abrangido o autor pela

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liberdade de expressão e demonstrou um entendimento sobre tal liberdade muito mais próximo daquele acima narrado como o adotado pela Suprema Corte dos EUA.

Nos últimos anos, o citado ministro tem sido voz influente na Corte quando se trata de discutir a liberdade de expressão e, em matéria jornalística19, expressou entendimento no sentido de ser a liberdade de expressão entendido como “direito absoluto”, o que contraria todo o conjunto de conceitos da teoria dos direitos fundamentais que o STF vem professando, que inclui princípios como normas e o principio da proporcionalidade como instrumento de solução de colisão de direitos.

19 'Não há liberdade de imprensa pela metade', diz Ayres Britto O Estado de S. Paulo - 31/07/2011.

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A LICITUDE DA PROVA ILÍCITA. O PARADOXO E A DECISÃO JURÍDICA1.

Artur Stamford da Silva2

Marcelle Araújo Penha3

Quando se pesquisa decisão jurídica pautado pela observação da produção de sentido do direito da sociedade, temas centrais da teoria do direito têm lugar. Em tempos da positividade do direito, por exemplo, a validez é “um símbolo que circula no sistema e que enlaça operações para uma reutilização recorrente” (LUHMANN, 2005, p. 277), ou ainda, validez é a autopoiesis das comunicações do sistema jurídico (LUHMANN, 2005, p. 155). Essa concepção de validez nos leva a questionar a viabilidade de se atribuir à ambiguidade e à vagueza da linguagem a pluralidade e a divergência de decisões, pois uma decisão “absurda” não pode ser atribuída necessariamente à ambiguidade nem à vagueza, tão pouco ao poder arbitrário de decisão do julgador. Esses simplismos de cunho opinativo não contribuem a uma teoria da decisão jurídica. A decisão absurda mais pode ser explicada como mudança estrutural do sistema jurídico da sociedade que falha interpretativa, má aplicação de métodos de interpretação ou jogos de poder ou de linguagem. Atribuir a uma decisão a qualidade de absurda é mais uma questão de opinião quanto às divergências política e/ou econômica e/ou religiosa e/ou científica. O sistema jurídico mesmo comporta, suporta e cria sua

1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil. 2 Professor Adjunto 4 da UFPE, CCJ, da Faculdade de Direito do Recife, do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Inovação Terapêutica. Integrante do Mostruário de Observação Social do Direito (Moinho Jurídico). Pesquisador do CNPq – PQ, nível 2. Vice-Presidente da ABraSD (Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito). 3 Graduanda em Direito pela UFPE, ex-bolsista de PIBIC UFPE-CNPq, atual bolsista de PIBIC pela FACEPE.

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própria indeterminação, pois para viver, para seguir funcionando desenvolve competência de suportar boa dose de decisões erradas e, até mesmo, absurdas4.

É sob este mote teórico que pautamos nossas reflexões sobre como o direito brasileiro, especificamente o Supremo Tribunal Federal, vivencia o paradoxo da licitude da prova ilícita.

Quanto ao prisma científico, sem desenvolvermos a controvérsia, localizamos na dogmática processual contemporânea o tema da admissibilidade de prova ilícita para julgar casos jurídicos. Referimo-nos à licitude da prova ilícita, ou seja, àquela prova produzida, obtida e introduzida num processo judicial por meios legislativamente previstos como não lícitos.

Uma perspectiva doutrinária considera que cabe ao magistrado a decisão sobre a lide independentemente de como lhe chegam as provas, resultante ou não de procedimento lícito. Essa tese foi paulatinamente afastada com o Estado Democrático de Direito e a consequente constitucionalização dos direitos fundamentais. Prosperou, em lugar desta, a visão que, partindo do pressuposto da unidade da ordem jurídica, considera paradoxal, portanto inadmissível, o próprio Estado incorrer em ilícito para fazer valer o direito. Nossa questão é justamente o paradoxo da licitude da prova ilícita para condenar narcotraficantes, crimes de corrupção, colarinho branco, lavagem de dinheiro, sequestro.

A Constituição Brasileira de 1988 adere a essa segunda corrente doutrinária é o que consideramos ante ao seu artigo 5°,

4 Refimo-nos às formulas de contingência dos sistemas de comunicação. “Um sistema que processa suas operações internas mediante informações, sempre tem em vista outras possibilidades. No caso do sistema jurídico, esta orientação por contingência se reforça na medida em que o sistema se encontra já imerso numa maior positivação do direito. Porque, com ela, fica concebido que todas as normas jurídicas e todas as decisões, todas as causas e argumentos poderiam tomar - também, outra forma – sem com isso negar que o que acontece, acontece como aconteceu” (LUHMANN, 2005, p. 158).

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inciso LVI: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

O tema atinge âmbito internacional e sua complexidade aumenta ainda mais quando surgem casos de prova que, ainda que produzida licitamente, é derivada de uma prova obtida de maneira ilícita, como no caso de um carregamento de drogas encontrado em razão de uma interceptação telefônica ilegalmente instaurada. Aplicada em 1920, no caso Silverthorne Lumber Co. v. United States, 251 EUA 3855, a “Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada” (Fruits of the Poisonous Tree Theory) logo foi desenvolvida pela ci6encia jurídica. A leitura é que uma prova mesmo lícita, se relacionada a uma outra prova obtida por procedimentos ilícitos sofre um “efeito à distância” portanto é tão ilícita quanto a originária, trata-se da metáfora que os frutos de uma árvore envenenada são contaminados independentes de estarem bons. Essa ideia chega aos tribunais brasileiros e se torna dominante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. De acordo com esse argumento, uma prova, a despeito de ter sido produzida licitamente, torna-se ilícita se afetada, por repercussão causal, por prova obtida ilicitamente. Trata-se da ilicitude por derivação ou ilicitude originária. Essa perspectiva teórica leva à alteração do Código de Processo Penal Brasileiro (Decreto-Lei n. 3.689/1941) pela Lei no. 11.690/2008, porquanto foi alterado o art. 157 positivando legislativamente a Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada.

Essa teoria, todavia, perdeu espaço para a teoria, de origem germânica, da “proporcionalidade”, da “razoabilidade”. Nesta, a ponta-se a necessidade de produzir um equilíbrio entre direitos individuais (p. ex., o direito à intimidade) e interesses da sociedade (p. ex., viver sem violência). Aqui, defende-se que não se deve rejeitar “automaticamente” uma prova por ter sido ilicitamente obtida, produzida: cabe ponderar se o direito individual lesado é proporcional ao interesse coletivo a ser prejudicado pela rejeição da prova. Esse argumento, no Supremo Tribunal Federal brasileiro,

5 Ver: http://supreme.justia.com/us/251/385/case.html

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aliou-se a discursos de combate à corrupção e ao crime organizado. Assim, ressurge, no seio do Estado Democrático de Direito, o embate sobre a admissibilidade de utilização de provas obtidas por meios ilícitos.

Nosso objetivo é equacionar como os tribunais estão produzindo o sentido jurídico de licitude da prova ilícita, porquanto um sistema jurídico não deve conter paradoxos. Não nos ocupamos em defender ou negar essa ou aquela teoria nem sair em defesa ou crítica pejorativa a essa ou aquela decisão, apenas nos dedicamos a observar como o STF está vivenciando o paradoxo da licitude da prova ilícita, para o que delimitamos o corpus da pesquisa às provas de interceptações telefônicas, cuja ilicitude advém da violação do art. 5°, XII, da Constituição Federal: “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Tal inciso da constituição foi regulamentado pela lei 9.296/1996, a partir da qual os tribunais brasileiros construíram diversos fatores de ilicitude de interceptações telefônicas, como falta de autorização judicial prévia, incompetência do juiz que autorizou a diligência, ausência de transcrição nos autos das gravações realizadas, violação do prazo máximo previsto em lei para a duração da interceptação etc..

Esse estudo encontra sua importância na circunstância de que as interceptações telefônicas configuram hoje um importante instrumento do poder público para combater a criminalidade organizada, em especial nos delitos de tráfico de drogas e corrupção. Diante disso, observamos a formação autopoiética do sentido de licitude da prova processual, portanto, a autorreferência e a heterorreferência da licitude da prova ilícita em casos de combate a tais criminalidades. É o que podemos afirmar ao identificar que tais argumentos foram constituindo, integrando o sistema do direito da sociedade, ou seja, foram dando forma comunicativa à licitude das interceptações telefônicas a cada decisão jurídica tomadas pelos tribunais. Para explicar como tais argumentos, enquanto operações

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do sistema do direito cujas informações aludem ao entorno do sistema jurídico, contribuem para a formação de sentido de conceitos jurídicos – no caso, prova ilícita –, aplicamos a teoria da sociedade com sistema de comunicação, de Niklas Luhmann. Nossa leitura e a maneira como aplicamos a referida teoria será objeto do primeiro capítulo. Seguindo da exposição da metodologia aplicada e das observações que desenvolvemos.

1. O Luhmann que usamos nas pesquisas

Partimos da concepção que teoria não tem qualquer relação ou função com prescrever ou descrever, assim é por aplicarmos a ideia que sociedade é um sistema de comunicação, como em Luhmann, do que resulta acatarmos a concepção de que “no conceito de comunicação está incluído o pressuposto de uma autorreferência reflexiva da comunicação. A comunicação comunica que o comunicado pode corrigir ou discutir para traz, o que quer dizer o que foi dito; deixa interpretar-se, pois, mediante a comunicação se vai do crível ou não crível [...] ao desenvolver-se surgem as normas e as disputas, as exigências de tato, ou o ignorar contra fático com oqual a comunicação se desintoxica das moléstias ocasionadas” (LUHMANN, 2007, p. 3-4). Com essa concepção de teoria e comunicação, optamos por considerar que teoria é algo que usamos para fazer pesquisas e não algo a ser objeto de adoração. Com isso, distinguimos pesquisa de religião e, portanto, insistimos que, para evitar afirmações descabidas sobre a teoria social de Niklas Luhmann, é indispensável antes de tudo reconhecer e se informar sobre o aporte gnosiológico usado pelo autor (STAMFORD DA SILVA, 2009, p. 113).

Para informações sobre a vida e a obra de Niklas Luhmann (1927-1998), bem como sua importância para a teoria social, consultar na internet6.

6 Na internet indicamos ver: STICHWEH, Rudolf. Niklas Luhmann. Disponível em: http://www.unilu.ch/files/stw_niklas-luhmann-blackwell-companion-to-major-

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Quanto à dimensão da obra, Pierre Guibentif (1993, p. 13-49) identifica três períodos no pensamento de Luhmann, autor de 60 livros e 377 artigos científicos7. No primeiro período estão as publicações datadas de 1963 a 1966, quando o autor se dedica à teoria das organizações. O segundo período (1976 a 1981), ainda que Luhmann tenha publicado sobre diversos assuntos, a identidade deste período está no pensamento sociológico, é quando são publicados os livros: confiança (1968), racionalidade (1968), poder (1975), Política (1970), religião (1977), educação (1979), legitimação pelo procedimento (1979), direito (1972), a diferenciação do direito (1981). No terceiro período, Luhmann desenvolve sua teoria da sociedade. Com início em 1981, é em 1984 que Luhmann lança o primeiro livro de sua teoria da sociedade: soziale systeme. Como o próprio autor escreve, este livro é uma introdução à sua Teoria da Sociedade (LUHMANN, 2007, p. 1), nele se encontra a base conceitual de sua teoria. Aqui, pautaremos nossas reflexões nas obras desta terceira fase.

Publicados em alemão, pela Suhrkamp Verlag e, em castelhano - cujas traduções foram coordenadas por Javier Torres Nafarrate (México) e Darío Rodríguez Mansilla (Chile) - pela Universidad Iberoamericana, a teoria da sociedade de Luhmann é composta por nove livros. Em 1984, com ojá escrevemos, foi publicado soziale systeme (Sistemas Sociales, em castelhano publicado em 1991); 1988, Die Wirtschaft der Gesellschaft (Economia da sociedade, sem tradução); 1990, Die Wissenschaft der Gesellschaft (La ciencia de la sociedad, 1996); 1993, Das Recht der Gesellschaft (El derecho de la sociedad, 2005); 1995, Die Kunst der Gesellschaft (La arte de la sociedad, 2005); 1997, Die Gesellschaft der Gesellschaft (La sociedad de la sociedad, 2007); 1998, Die Politik der Gesellschaft (La

social-theorists.pdf; BECHMANN, Gotthard & STEHR, Nico. Niklas Luhmann. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v13n2/v13n2a10.pdf.; HORNUNG, Bernd. Nilkas Luhmann 1927-1998. Obituary written for the ISA. RC51_Sociocybernetcs. Disponível em: http://mgterp.freeyellow.com/academic/luh-obit_rc51.html. 7 Para visualizar um listado dos 377 artigos publicados por Luhmann: http://www.maroki.de/pub/sociology/luhmann/mr_luhba.html.

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política de la sociedad, 2004, na Coleção Teoría Social, 2009); 1998, Die Religion der Gesellschaft (La religión de la sociedad, 2009); 2002, Das Erziehungssystem der Gesellschaft (Sistema educacional de la sociedad, 2009). Publicados pósmorte, os livros organização, política, religião e sistema educacional são compostos pelos manuscritos deixados por Luhmann, pois, os sinais de esgotamento dada sua enfermidade, levaram o autor a decidir abandonar esses quatro livros e seguir para concluir o livro “A sociedade da sociedade”, como explica Nafarrate (2009, p. 15).

Ainda que superficial, essa exposição da dimensão da obra de Luhmann é suficiente para fornecer noção dos riscos que é classificar o autor segundo os modelos da teoria social. Indubitavelmente um teórico sistêmico, como o próprio autor fez questão de afirmar como em frases: “olho a sociologia como um sistema dentro de um sistema” (LUHMANN, 1983, p. 991). Ainda nessa mesma obra, após explorar o problema do fechamento e da abertura sistêmica, afirma:

é interessante ver como Parsons foi capaz de lidar com as sugestões provenientes da biologia, da psicanálise, da linguística e da cibernética dentro de seu próprio modelo teórico. Não há outro exemplo deste tipo, todavia o declínio do parsonianismo significa, para a sociologia, perda desse saldo do fechamento da sociologia para uma abertura teórica interdisciplinar. Reviver os clássicos pode ser de nenhuma ajuda para sair dessa perda. Pelo contrário, piora a situação. Essa perda fornece o fechamento sem teoria e, portanto, sem abertura. Precisamos de uma teoria geral capaz de combinar o fechamento auto-referencial, necessário para nossa disciplina, com uma sensibilidade para obter informações e capacidade vicária, aprendizagem de segunda mão. Medida em que eu posso ver, a teoria dos sistemas é a única séria candidata para realizar essa sociologia da sociedade (LUHMANN, 1983, p. 992).

Assim, adjetivos como estruturalista, funcionalista e alternativas como estrutural-funcionalista, funcional-estruturalista não vestem, desde 1981, a teoria da sociedade de Niklas Luhmann, ainda que ele mesmo tenha se denominado funcional-estruturalista para distinguir sua teoria da teoria dos sistemas de Talcott Parsons

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(KING, THORNHILL, 2005, p. 9-11; RODRÍGUEZ, 2005, p. XII). Uma alternativa é qualificar Luhmann como um teórico sistêmico cibernético (LOSANO, 2002, p. 254-257; 273-278) ou como teórico da reflexão (LOPES Jr., 2004, p. 23).

A complexidade em qualificar Luhmann aumenta quando se sabe que o autor aplica ideias desenvolvidas nas conferências promovidas pela Josiah Macy Jr. Foundation8 desde o início de sua vida acadêmica, como se pode constatar com a publicação, em 1966, do livro Recht und automation in der öffentlichen verwaltung. Eine verwaltungswissenschaftliche untersunchung (Lei e automação na administração pública. Um exame da ciência da administração) (LOSANO, 2002, p. 254; PINTOS, 1997, p. 126-132). A Fundação Macy, dedicada à educação em saúde, apoiou a realização dos dez encontros inicialmente intitulados "mecanismos de feedback e sistemas circular causal em sistemas biológicos e sociais", os quais ficaram conhecidos como Macy Conference e, posteriormente, como cybernetics. Foram dez conferências9 realizadas de 1942 a 19510, nas quais se reuniram pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento. Dessas conferências resultou a cybernetics [do latin gubernator (dirigente, governador), do grego, kybernan (dirigir, pilotar)], cibernética foi empregada por Norbert Wiener em sua conferência na reunião de 1948: Circular Causal and Feedback Mechanisms in Biological and Social Systems. Em 1950, as reuniões passaram a se chamar: “Cybernetics: Circular Causal and Feedback Mechanisms in Biological and Social Systems” (WIENER, 1965, p. 25).

Nas conferências da Macy Fundation, participaram os matemáticos John von Neumann e Norbert Wiener, o engenheiro

8 Essa afirmação se sustenta, inclusive, ao lermos: “por alguns anos o trabalho de Luhmann’s foi objeto de discussão no grupo da Sociocybernetic integrante da ISA (International Sociological Association), ver: BRIER, BAECKER e THYSSEN, 2007, p. 5-10. 9 Para noções do que foram as dez reuniões do grupo The Macy Conference, visitar: http://www.asc-cybernetics.org/foundations/history.htm. 10 Uma lista dos participante das Macy Conference é encontrada no site: http://www.asc-cybernetics.org/foundations/history/MacyPeople.htm

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eletrônico Heinz von Foerster, o psiquiatra W. Ross Ashby, os antropólogos Margaret Mead, Gregory Bateson, o sociólogo Paul Lazarsfeld, o psicólogo Kurt Lewin, os linguistas Roman Jakobson e Charles Morris, para citar apenas aqueles citados diretamente por Luhmann. Aproveitamos para lembrar que Bateson e Margareth Mead integraram a Escola de Palo Alto conhecida como Invisible College (Colégio Invisível) e pelo interacionismo simbólico.

Ainda que a palavra cibernética tenha estreita relação com governo, direção, controle, tal como cunhada na Macy Conference, cibernética é uma teoria da comunicação que parte da causalidade circular, não da causalidade linear nem da circularidade tautológica, como se pode constatar com a visão construtivista - no sentido usado por Heinz von Foerster, Gregory Bateson e Humberto Maturana – de ordem cibernética por aplicar ideias como circularidade criativa, a teoria reflexiva, a autopoiesis11.

11 Sobre a relação de Niklas Luhmann com a Macy Conferences, vejam as seguintes informações retiradas do site http://www.asc-cybernetics.org/foundations/timeline.htm: 1940 - Jakob von Uexküll publica seu livro Bedeutungslehre, originando a biossemiótica; 1940-41 - Benjamin Whorf publica três trabalhos nos quais apresenta sua tese de a língua e a cultura estarem intimamente interligadas, assim como as estruturas de linguagem ao pensamento; 1941 – O psiquiatra Andras Angyal publica “Fundamentos para uma ciência da personalidade”, uma introdução a conceitos sistêmicos como heteronomia contra homonomia, "biosfera’ para subsumir tanto o indivíduo como o meio ambiente, e as relações triádicas inerentes aos sistemas 1942 – A palavra 'robótica' aparece pela primeira com Isaac Asimov 1942 – é realizada a primeira reunião Macy Conference sob o tema 'inibição cerebral'. Entre os presentes estavam Gregory Bateson, Warren McCulloch, Margaret Mead, Lawrence Frank, Lawrence Kubie, e Arturo Rosenblueth. Rosenbluth apresenta suas ideias sobre "mecanismos teleológicos', 'causalidade circular' e 'feedback'. Desta se realizam outras nove conferências em New York, sob o título de "mecanismos de feedback e sistemas circular causal em sistemas biológicos e sociais". Estas conferências se tornam o berço da cibernética como campo de pesquisa; 1946 - Norbert Wiener apresenta, no encontro das conferências The Macy, o termo "cibernética", em sua palestra "mecanismos de feedback e Sistemas Circular Causal em Sistemas Biológicos e Social";

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Termos como sistema, evolução, autopoiesis, fechamento estrutural e anti-humanismo são suficientes para animar críticas pejorativas sobre a teoria social de Luhmann. No entanto, uma forma de evitar conclusões apressadas e repetições de informações na prática do “ouvi dizer” é, ao mesmo tempo em que fizer referência a

1947 – O ecologista GE Hutchinson apresenta um documento intitulado "Sistemas circulares causais em ecologia", na Macy Conference de 1946, ligando a ecologia às novas construções teóricas que estavam prestes a serem rotuladas de "cibernética". W. Ross Ashby ao apresentar o tema "Princípios do sistema de auto-organização dinâmica" introduz o termo "auto-organização" para a linguagem cibernética; 1947 - Em seu artigo "Ciência e complexidade", Warren Weaver descreve uma taxonomia para a complexidade do sistema; 1947 - Norbert Wiener publica o livro seminal Cibernética; 1968 - Cyberenetics volta sua atenção para si mesma (via a atenção para "a cibernética da cibernética"), nasce a segunda ordem cibernética; 1968 - Ludwig von Bertalanffy publica Teoria Geral de Sistemas; 1969 - Heinz von Foerster publica Análise e Síntese de Processos Cognitivos e Sistemas; 1969 - G. Spencer Brown publica a primeira edição de seu Leis da Forma; 1969-1970 - Humberto Maturana da Universidade de Illinois Laboratory 'Computer Biológica; 1970 - Humberto Maturana publica: "Neurofisiologia da Cognição"; 1973 - Maturana e Varela introduzir o termo "autopoiesis"; 1975 - Maturana e Varela publicam: Sistemas autopoiéticos: A Caracterização da Organização Viver como BCL Research Report 1975 – Niklas Luhmann publica artigo defendendo a teoria dos sistemas autorreferenciais (na coleção: Soziologische Aufklärung 2) 1976 - Paul Watzlawick publica seu livro sobre epistemologia construtivista: Como Real é Real? 1976-1980 - Ernst von Glasersfeld publica uma série de artigos relacionados com o construtivismo radical de Piaget e da cibernética; 1977 – Niklas Luhmann publica o artigo “diferenciação da sociedade”, no Canadian Journal of Sociology; 1978 - Maturana publica o jornal "Biology of language: the epistemology of reality"; 1980 - Maturana e Varela publicam: Autopoiesis e Cognição: A Realização dos Vivos; 1980 – Niklas Luhmann fala sobre a autopoiesis dos sistemas sociais, em palestra. 1982 - Heinz von Foerster publica: Sistemas de observação - um compêndio de seus papéis no construtivismo e cibernética de segunda ordem; 1982 - Niklas Luhmann publica o artigo "A sociedade mundial como sistema social", no qual ele apresenta sua análise dos sistemas sociais como uma rede autopoiética composta por comunicações.

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essas informações, atrelá-las a termos como: diferenciação, forma de dois lados, cibernética, memory function, re-entry, circularidade reflexiva, construtivismo, observação de segunda ordem, dupla contingência.

Para evitar afirmações e conclusões sem leitura, ao menos de parte da obra de Luhmann, é suficiente não esquecer que Luhmann desenvolve sua teoria recorrendo, simultaneamente, à teoria da forma, à teoria da diferenciação, à teoria da evolução e à teoria da comunicação, sempre pautado pela visão construtivista (LUHMANN, 2007, p. 3). Luhmann não simplesmente recorre a tais aportes teóricos, ele os reconstrói adaptando-os à sua teoria da sociedade. A teoria da diferenciação, de origem matemática, é usada por Luhmann para desenvolver as diferenciações meio/forma, sistema/entorno e as tantas outras presentes em sua teoria, como a diferenciação entre o sistema mecânico (físico), sistema biológico (vida biofísica), sistema psíquico (mente, consciência) e o sistema social (comunicação). Neste último se distinguem os sistemas parciais economia, ciência, direito, política, arte, religião, educação. Quanto à teoria da evolução, a pauta seletiva natural desde Darwin, de origem biológica, Luhmann aplica à sociedade para afirmar e incluir a constante mutação do social. No caso da teoria da comunicação, tal como desenvolvida pela visão cibernética (LUHMANN, 2007, p. 40), ela está presente na concepção luhmanniana ao tratar do paradoxo do sentido, bem como da improbabilidade da comunicação, a qual é tornada provável devido aos meios de comunicação simbolicamente generalizados. A autopoiesis, também de origem biológica, tal como desenvolvida por Maturana e Varela tão pouco é simplesmente transposta à teoria da sociedade, antes, Luhmann recorta ideias e as equaciona para sua explicação do social. Tudo isso está pautado pelo construtivismo de base cibernética, não o construtivismo radical, inclusive a proposta de inclusão da circularidade reflexiva à circularidade causal, o que leva o autor a propor que se questione “como é possível a vida em sociedade” e não, “o que é a sociedade”. Nas palavras do autor:

desde o princípio, a teoria da sociedade esteve assumida como publicação formada por três partes: um capítulo de

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introdução à teoria dos sistemas, uma exposição do sistema chamado ‘sociedade’, e uma terceira parte onde se mostrariam os principais sistemas funcionais da sociedade. O conceito básico se manteve, porém a extensão teve que ser corrigida diversas vezes. No ano de 1984 publiquei o capítulo de Introdução na forma de livro com o título: Sistemas sociais: delineamentos para uma teoria geral. Basicamente se tratava de trasladar o conceito de operação referencial à teoria dos sistemas sociais. Nada do essencial mudou nisso, ainda que progressos no campo da teoria geral dos sistemas e da teoria construtivista do conhecimento ofereceram a oportunidade para se tentar novos desenvolvimentos. Algumas dessas oportunidades estão presentes na série de livros Ilustração sociológica (Soziologische Aufklärung), outras ficaram plasmadas em forma de manuscrito, e outras aparecem publicadas na primeira parte deste livro (LUHMANN, 2007, p. 1).

O Luhmann, portanto, que utilizamos em nossas pesquisas é aquele que vê a “Sociedade como teoria dos sistemas autorreferenciais e autopoiéticos de comunicação” (DOBARRO, 1997, p. 3-39), o Luhmann da sociedade como sistema de sentido comunicacional (STAMFORD DA SILVA, 2009, p. 113-137).

O que Luhmann considera um sistema? Para o autor, a formação de um sistema é possível devido à diferenciação sistema entorno. Antes, iniciemos com a distinção meio/forma. A partida é que observamos e, ao observar realizamos distinções. Distinção é, como retirado desde Heinz von Foerster e George Spencer Brown, uma forma de dois lados, pois ao comunicar um dos lados da forma, o outro vem suposto simultaneamente, pois nenhum dos lados é algo em si mesmo. Ambos integram a diferença, assim, ao comunicar, o que realizamos é uma operação de seleção, da qual resulta um dos lados ser considerado interno e o outro externo, todavia essa operação requer uma temporalidade, assim, o lado externo pode vir a se atualizar em virtude de vir a ser indicado pelo observador como, desta vez, lado interno (LUHMANN, 2007, p. 40-41). Voltando à distinção meio/forma, sem meio, não há forma e sem forma não há meio. Numa frase: ao comunicar realizamos operações de distinção

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que são constituídas de dois lados: o lado positivo, aquele selecionado para comunicar; e o lado negativo, aquele, temporalmente afastado, numa determinada comunicação.

A distinção meio/forma é, assim, responsável por explicar com se formam os sistemas sociais, os sistemas comunicativos da sociedade, ou ainda, como determinadas espécies de comunicações se desenvolvem no meio de sentido ao ponto de vir a formar sistema, portanto uma unidade comunicacional. A comunicação se desenvolve no meio sentido, o qual viabiliza a constituição de formas (sistemas sociais). O sentido, assim, é um meio que se torna forma.

Partindo dessa diferença, uma forma é o assinalamento de uma distinção, cujos elementos estão acoplados de maneira firme. Meio (ambiente) é, portanto, o que possibilita a criação de formas (sistemas), o que implica que meio e forma estão acoplados. Ocorre que esse acoplamento pode se dar de maneira firme (formando sistema) ou de maneira frouxa (irritando o sistema) (LUHMANN, 2007, p. 151-152).

Assim, compreende-se sistema não enquanto objeto (LUHMANN, 2007, p. 40), mas como distinção: sistema é a diferença entre sistema e seu entorno (LUHMANN, 2010, p. 88). No caso do direito, o sistema do direito é forma constituída pela diferenciação de seu meio (entorno). Com isso, o sistema do direito é autônomo me sua operacionalização, em seu funcionamento ao mesmo tempo em que é constituído pelo sistema sociedade. Daí o autor falar em Direito da Sociedade. Isso porque, apesar de a sociedade ser em si uma forma diferenciada a partir do meio, pode-se observar a distinção meio/forma em diferentes níveis: assim, o sistema constitui para seu próprio meio.

Os sistemas, como compreendidos pelo marco teórico adotado, operam autopoieticamente, em função de que produzem autonomamente as próprias formas de que se utilizam. Para que isso seja possível, o sistema só opera no lado interno da forma sistema/entorno, que é o próprio sistema, não havendo no plano das operações específicas do sistema qualquer contato com o entorno

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(LUHMANN, 2010, p. 102-103). É que, uma vez constituídos, os sistemas desenvolvem operações e mecanismos capazes de reprodutivamente seguir funcionando. É o que Luhmann chama de clausura operativa ou fechamento operacional, a partir do qual se infere que uma operação do sistema pode apenas se articular com outra.

E, para melhor delimitar a concepção de sistema jurídico utilizada, cabe situá-lo entre os sistemas sociais, cuja operação base é a comunicação. Assim, o sistema do direito da sociedade é constituído pelas comunicações que se ocupam em dar forma à diferenciação lícito/ilícito (código binário de referência do direito).

Assim, a presente pesquisa possui como objeto a produção do sentido de lícito e ilícito, especificamente na questão das provas por interceptação telefônica, partindo da concepção do direito enquanto sistema comunicacional autopoiético.

2. Informes metodológicos

Como em toda pesquisa, aqui também é indispensável apresentar a perspectiva epistemológica, portanto a questão do observador. Pesquisar como o direito está sendo produzido, vivido socialmente através de decisões jurídicas não dispensa esse tema.

Aplicando mais uma vez a teoria da distinção, Luhmann distingue operação de observação, é que operação é a produção de diferenciação resultante de um acontecimento prático, o que permite considerar que as operações do sistema jurídico se dedicam ao processamento de informações, ou seja, a “transformar permanentemente umas informações em outras para que sirvam a outras operações. A reprodução de redundância acompanha como uma sombra este processo” (LUHMANN, 2007, p. 418). Observar é também uma operação do sistema, todavia, operação que produz um novo estado no sistema, de maneira que aporta algo à autopoiesis do sistema. Assim, consideramos que a decisão jurídica é uma observação do sistema jurídico sobre si mesmo, uma vez que a

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decisão jurídica é improvável porquanto estrutura (forma de sentido) do direito da sociedade.

Sendo autopoiético, o sistema jurídico produz e reproduz sua unidade (estruturas e limites), seu código binário lícito/ilícito. Se é assim, a decisão jurídica não é uma questão de legislação (política) nem de interpretação de texto legislativo (motivação, interesse ou poder um juiz ou tribunal), nem mesmo uma questão de cultura jurídica (comunidade jurídica), mas sim uma operação de observação de primeira ordem do sistema jurídico. Assim é porque a “unidade do sistema não se pode representar no sistema como meta que deve ser alcançada, como estado final. Orientações sobre uma meta determinada podem existir no sistema, porém só como episódios: por exemplo, processos individuais que culminam em uma lei ou em uma decisão de um tribunal” (LUHMANN, 2007, p. 237). Com isso, legislação e jurisprudência são informações que podem ou não vir a ser processadas no sistema jurídico e, não, já decisão jurídica. Se é assim, a infinidade informações que se pode utilizar num processo judicial é selecionada pelo próprio sistema jurídico ao proceder sua observação. Um advogado, um promotor, um procurador, um magistrado realizam observações de segunda ordem, pois utilizam as informações do sistema jurídico em suas argumentações.

Com essa concepção de observação, temos que, por mais imprevisível que seja a decisão jurídica que será tornada, é o próprio sistema do direito que, autopoieticamente, promove a operação necessária e não um ator jurídico aplicando sua por competência interpretativa e/ou argumentativa. Trata-se da “teoria do fechamento operacional e da tese de que os sistemas autopoiéticos têm que estar previamente adaptados para poder utilizar seu potencial evolutivo” (LUHMANN, 2007, p. 91). Cabe, no entanto, distinguir informação de redundância. “Informação é um valor surpresa de notícias, dado um reduzido (o ilimitado) número de outras possibilidades. A redundância resulta (circularmente) de que a informação precedente se deve tomar em conta na operação dos sistemas autopoiéticos” (LUHMANN, 2005, p. 416). Redundância é a consistência comunicativa do sistema, sua capacidade de tratar detalhadamente

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informações (LUHMANN, 2005, p. 43), é, pois, recursões autoconstruídas. Uma teoria normativa não suportaria essa alternativa explicativa.

Com essas distinções, trabalhamos a decisão jurídica sob a ótica que “o problema está em que a comunicação não pode controlar o que simultaneamente acontece no instante do ato de compreendê-la, por isso, ela está sentenciada a sacar sempre conclusões a partir de seu próprio passado, de suas redundâncias, de suas recursões autoconstituídas” (LUHMANN, 2005, p. 51). Acontece que a ativação do processo comunicativo é uma questão de autovalidação dos meios de sentido, pois “os meios de comunicação simbolicamente generalizados – como toda comunicação – só podem utilizar o presente para franquear a diferença entre generalização e especificação (condensação e confirmação). Isto só pode acontecer mediante a guia de expectativas que o mesmo médium produz e reproduz” (LUHMANN, 2005, p. 310).

Aqui tem lugar a proposta de afastamento da lógica causal para lidar com uma explicação da decisão jurídica, inclusive porque não há período em que não foi tomada uma decisão absurda. Esse afastamento da causalidade se dá pela concepção que as seleções “são respostas às perturbações e reestabelecimento de um estado de tranquilidade sistêmico” (LUHMANN, 2005, p. 394), o que implica, com a ideia de redundância, a superação da busca por identificar os “inimigos” da sociedade (da paz social) e do direito (das decisões justas).

Não se trata de naturalismo nem de a redundância em noldes da mão invisível que norteia o mercado, como na teoria econômica de Adam Smith, no livro “A riqueza das nações”. Redundância está concebida como reflexividade, ocmo circularidade reflexiva, não tautologia nem causalidade, por isso redundância implica uma teoria do observador, não uma teoria do autor, do criador, do produtor, do inventor do direito da sociedade. A redundância não dispensa a observação por ela se mostrar invisível, ela é o terceiro excluído no processo decisório. Nas palavras de Luhmann: “desde o ponto de

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vista da coordenação, a redundância seria a ‘mão invisível’ do sistema [...] Em todas as operações tem que se distinguir a seleção propositiva (intendierte) do sistema da reprodução não-propositiva da redundância do sistema. Uma operação que assinale este duplo aspecto não seria reconhecida como operação que pertence ao sistema e que reproduz a rede recursiva de enlace de operações no sistema” (LUHMANN, 2005, p. 419). Com isso, distingue-se a observação de primeira e de segunda ordem, portanto observação de argumentação.

O sistema ao mesmo tempo que observa, ele é observado. Ocorre que observar sistemas é observar o que o sistema já observou (teoria dos sistemas que observam), por isso é observação de segunda ordem. Interpretar ou argumentar, portanto, não é realizar observação de algo (objeto, coisa, ideia, informação, pessoa, mente, consciência, imaginário, razão, símbolo, fenômeno), mas observar como esse algo já foi observado pelo sistema mesmo. Nas palavras de Luhmann:

o observador é definido pelo esquema que dá lugar às suas observações, isto é, pelas distinções que utiliza. No conceito de observador estão contidas as noções tradicionais de sujeito e ideias – ou conceitos. E a autologia que está na base da metodologia do observador de segunda ordem – a saber, o reconhecimento de que se trata tão só de observação – garante o fechamento cognitivo deste manejo de complexidade: não há nem é necessário recorrer a garantias externas (LUHMANN, 2005, p. 107).

Pensemos em termos cotidianos. Quando falamos algo, utilizamos determinado idioma. Ao utilizar um idioma selecionamos o que e como falar, jamais criamos o idioma. O idioma existe, está lá a ser utilizado, então ao falar observamos o idioma tal como ele se nos apresenta como idioma mesmo. Voltando ao tema, observar é, então, uma operação altamente seletiva do acoplamento estrutural e da reprodução da trama recursiva autopoiética (como ocorre quando a redundância produz informação ao especificar a sensibilidade do sistema (LUHMANN, 2005, p. 417)). Assim é porque a unidade do distinguido não pode ser observada, ela antecede a própria produção

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de sentido (LUHMANN, 2005, p. 36), ao qual se chega por recursividade - a reentrada (re-entry) do sistema no sistema mesmo, o que faz o sistema se tornar incalculável e, portanto, “alcançar um estado de indeterminação não atribuível ao imprevisto dos efeitos externos (variável independente), mas ao sistema mesmo” (LUHMANN, 2005, p. 28).

Ainda sobre o tema: “no modo da auto-observação de segunda ordem – ou seja, no modo de uma teoria do conhecimento de corte construtivista -, todas as características prescritas se dissolvem e em sua investigação ressalta tanto sua necessidade quanto sua contingência” (LUHMANN, 2005, p. 19).

Ao aplicar a teoria dos sistemas que observam à teoria da sociedade, Luhmann toma por sistema aquelas comunicações sociais condensadas por observação de primeira ordem realizada pelo próprio sistema, da qual resulta a autopoiesis do sistema. Observar sistemas é, portanto, observar o que o sistema já observou, por isso, observação de segunda ordem. Um observador, então, não realiza observação de algo (objeto, coisa, ideia, informação, pessoa, mente, consciência, imaginário, razão, símbolo, fenômeno), ele observa como o sistema observou. Nas palavras de Luhmann: “o observador é definido pelo esquema que dá lugar às suas observações, isto é, pelas distinções que utiliza. No conceito de observador estão contidas as noções tradicionais de sujeito e ideias – ou conceitos. E a autologia que está na base da metodologia do observador de segunda ordem – a saber, o reconhecimento de que se trata tão só de observação – garante o fechamento cognitivo deste manejo de complexidade: não há nem é necessário recorrer a garantias externas” (LUHMANN, 2007, p. 107). Ainda sobre o tema: “no modo da auto-observação de segunda ordem – ou seja, no modo de uma teoria do conhecimento de corte construtivista -, todas as características prescritas se dissolvem e em sua investigação ressalta tanto sua necessidade quanto sua contingência” (LUHMANN, 2007, p. 19). No sistema do direito da sociedade, a decisão dos tribunais (interpretação por argumentação) é uma observação de segunda ordem, ou seja, é

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observação da auto-observação do sistema jurídico (LUHMANN, 2005, p. 389; 403-415).

Com isso, interpretar e argumentar12 só são possíveis enquanto observação de segunda ordem, pois antes mesmo de interpretar e argumentar procedemos a seleção do que integrará nossa interpretação e nossa argumentação.

Com essa visão de observação, selecionamos o Corpus da Pesquisa. Ao promover a busca pela expressão “prova ilícita”, no sítio do STF13, localizamos, na ocasião, 141 decisões. Diante da considerável variedade de temáticas envoltas às decisões encontradas, optamos selecionar aquelas que tratassem especificamente de prova por interceptação telefônica, assim chegamos a 30 (trinta) decisões tomadas no período de 1993 a 2010. Essa seleção teve lugar por a interceptação telefônica ilícita ser o meio mais empregado para combater o crime organizado. O Supremo Tribunal Federal foi escolhido por ser o órgão máximo da organização jurídica brasileira, máximo no sentido de dar a palavra final sobre a distinção lícito/ilícito, o que nos levou a considerar que o STF é um dos responsáveis por produzir o sentido de direito da sociedade. Tomando como critério a atualidade das decisões, foram selecionadas especificamente as decisões proferidas a partir do ano 2000, finalizando a seleção do universo amostral em 22 (vinte e duas) decisões do Supremo Tribunal Federal.

As decisões foram então cadastradas por ano e pelo número de identificação do próprio STF. Passou-se, então, à terceira etapa da pesquisa: a análise das decisões colhidas e seu catálogo, de acordo

12 Luhmann distingue argumentação de intepretação por considerar que só se chega a uma argumentação “depois que surge a pregunta de como se deve manejar o texto na comunicação” (LUHMANN, 2005, p. 403), já intepretação é “racionalização posterior do texto” (Idem, p. 402), sendo texto acoplamentos estruturais que enlaçam o movimento de validez à argumentação jurídica (Idem, p. 402). A validez é um valor específicamente próprio do sistema jurídico que surge da realização recursiva das operações próprias do sistema e que não pode ser utilizado em nenhuma outra parte (Idem, p. 170) 13 http://www.stf.jus.br/

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com os seguintes critérios: a) se a prova foi considerada lícita ou ilícita; b) se a decisão foi unânime; c) o número de ministros que votaram a favor e contra a aceitação da prova; d) se o Procurador Geral da República votou pela licitude ou ilicitude da prova; e) qual o crime cuja denúncia a prova impugnada embasa e o seu instituto legal; f) se o crime é punível com pena de reclusão; g) se o acórdão trata da chamada “prova encontrada” – quando utilizada para provar crime diverso do que deu causa à interceptação; h) se o acórdão trata de denúncia oriunda da “Operação Anaconda”; i) se o acórdão envolve ação policial no combate ao tráfico de drogas; j) se o acórdão envolve ação policial no combate à corrupção; l) qual o bem jurídico tutelado.

Ainda, os argumentos utilizados pelo particular, pela posição dos ministros vencedora do STF e pela posição dissidente, se houver, foram classificados segundo os seguintes critérios: a) se o argumento gira em torno da autoridade do texto constitucional (sua proteção, o não esvaziamento de seu conteúdo); b) se o argumento da decisão almeja evitar abusos por parte da autoridade policial; c) se o argumento se utiliza do critério da razoabilidade ou proporcionalidade; d) se o argumento se utiliza da teoria dos frutos da árvore envenenada; e) se o argumento gira em torno de debate político ou alude a questões sociais; f) se o argumento pleiteia pela legitimidade da utilização de informações obtidas por intermédio de interceptação telefônica para apurar delito diverso daquele que deu origem à diligência; g) se o argumento se funda no fato de que a interceptação não foi a única prova utilizada; h) se o argumento se funda na falta de autorização judicial prévia à interceptação; i) se o argumento se funda na incompetência do juiz que autorizou a diligência; j) se o argumento pleiteia pela legitimidade de prova produzida em cautelar preparatória, ainda que autorizada em foro distinto daquele competente para a ação principal; k) se o argumento se funda no fato de não ser a matéria tratada contida no texto constitucional; l) se o argumento se funda na ausência de transcrição da interceptação nos autos do processo; m) se o argumento se funda na transcrição meramente parcial da interceptação nos autos do

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processo; n) se o argumento se funda na solução de continuidade da interceptação entre os pedidos de autorização da interceptação; o) se o argumento se funda na inexistência de procedimento de natureza penal antes das interceptações telefônicas; p) se, para embasar o argumento, cita-se doutrina e se a doutrina citada está contida em outro acórdão; q) se, para embasar o argumento, cita-se jurisprudência do STF e qual; r) se, para embasar o argumento, cita-se jurisprudência do STJ e qual; s) se, para embasar o argumento, cita-se outra jurisprudência e qual.

Os dados colhidos foram, então, organizados em tabela para realização da quarta etapa da pesquisa: a análise, observação dos resultados colhidos sob a ótica do marco teórico adotado.

Passemos às observações sobre os dados sistematizados.

3. Observações sobre decisões do STF: a produção de sentido do direito da sociedade

Inicialmente tratamos de observar os argumentos mais utilizados. Lembremos que partimos da seguinte distinção entre argumentação e interpretação: só se chega a uma argumentação “depois que surge a pregunta de como se deve manejar o texto numa comunicação” (LUHMANN, 2005, p. 403); intepretação é “racionalização posterior do texto” (Idem, p. 402), sendo texto acoplamentos estruturais que enlaçam o movimento de validez à argumentação jurídica (Idem, p. 402).

Dessa ideia, localizamos como principal argumento utilizado para legitimar a proscrição da prova ilícita em processo gira em torno do paradoxo que é se utilizar de algo contrário ao direito (antijurídico, ilícito) para fazer valer o próprio direito, integrando o sistema jurídico. A passagem abaixo, de um acórdão do Supremo Tribunal Federal, evidencia o paradoxo:

pelos últimos, valha por todos a lição, da doutrina alemã, de Amelung – colacionada por Costa Andrade – segundo a qual ‘o Estado cairá em contradição normativa e comprometerá a legitimação da própria

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pena, se, para impor o direito, tiver de recorrer ele próprio ao ilícito criminal (...)’.’ Sepúlveda Pertence. HC 80.494-9 2001

Aplicando a teoria dos sistemas de comunicação de Luhmann, verificamos como maneira de saltar desse paradoxo aplicando o paradoxo do sentido, pois tanto as comunicações sobre o lícito quanto aquelas sobre o ilícito integram, igual e simultaneamente, o sistema jurídico. O lícito e o ilícito são dois lados da mesma forma (distinção): o lícito não é algo em si mesmo, é aquilo que não é ilícito, e vice-versa. Sempre que se comunica (assinala) um dos lados da forma, o outro lado vem suposto simultaneamente (LUHMANN, 2007, p. 41). E o sistema do direito, enquanto sistema social funcionalmente diferenciado a partir de um meio de comunicação simbolicamente generalizado, possui um código central, sobre o qual comunica: a forma lícito/ilícito (LUHMANN, 2007, p. 279-281). Assim, tanto as comunicações sobre o lícito quanto sobre o ilícito integram o sistema social do direito. Não faz sentido sob esse marco teórico, portanto, tratar como paradoxo o fato de uma relação processual conter uma prova ilícita, o jurídico conter o antijurídico.

Outro paradoxo localizado na pesquisa foi quanto à licitude da prova ilícita. Diante deste paradoxo questionamos: como é possível que uma prova ilícita seja lícita? Ao observar os “movimentos” vivenciados nas decisões do STF, percebemos que, ao longo do tempo, os argumentos utilizados pelos Ministros partem do pressuposto de que não se admitem no processo provas ilícitas. Ocorre que, decisões consideram hipóteses de provas ilícitas como lícitas, inclusive a despeito de, em acórdãos anteriores, terem sido julgadas ilícitas. Vejamos o exemplo abaixo:

assim, a prova produzida mostra-se perfeitamente válida, apta, portanto, a embasar a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal. Joaquim Barbosa. HC 84.301-8 2004

Neste excerto decisório, a decisão citada consolidou, no STF, o entendimento de que é lícita a prova produzida por juiz incompetente para a ação principal em cautelar preparatória.

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Anteriormente, no entanto, neste mesmo tribunal foram tomadas decisões (RHC 80.197-8 no ano 2000) nas quais foi considerado que é prova ilícita a interceptação telefônica autorizada por juiz incompetente. Vejamos parte do voto do Ministro relator: ”(...) a autorização para interceptação telefônica somente será válida se competente o juiz que a defere. Está no art. 1º da lei 9.296, que a autorização na espécie será concedida pelo ‘juiz competente da ação principal’.”

Em 2004, o STF decide em sentido oposto às suas decisões anteriores, apesar de similares as hipóteses em análise. Para tanto, os Ministros se utilizaram de argumentos como o Princípio da Proporcionalidade e trouxeram ao debate questões de cunho social, como o combate ao crime organizado. Apesar disso, ao decidir que a prova será aceita, não se afirma na decisão que se aceita uma prova ilícita, mas sim, como grifamos, decide-se que a prova é perfeitamente válida, lícita – portanto, pode ser utilizada em processo.

Assim, uma vez aceita no processo, a prova anteriormente caracterizada como ilícita, passa a ser comunicada no sistema jurídico como lícita.

Sobre o tema, vejamos o gráfico abaixo, que ilustra o percentual de provas aceitas no Supremo Tribunal Federal ao longo do período estudado.

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O gráfico demonstra, dentro do período estudado, um

crescimento marcante do percentual de provas julgadas como lícitas. Entre 2000 e 2003, apenas 43% das provas impugnadas perante o STF foram julgadas como lícitas e aptas a serem utilizadas em processo. No período seguinte, entre os anos de 2004 e 2007, o percentual de provas julgadas como lícitas cresce sensivelmente, atingindo 89% dos julgados, e chegando a 100% no período de 2008 a 2010.

Somando tais dados a anterior análise de que em momento algum ao longo dos períodos estudados os Ministros do STF argumentam em favor da aceitação da prova ilícita, é possível concluir que houve uma expansão do sentido de prova lícita empregado no tribunal. Ou seja, diversas hipóteses, que no início da década integravam o sentido de ilicitude, passam a ser julgadas como lícitas pelo STF. Isso gera uma aparente contradição dentro do sistema jurídico, que passa a conter comunicações contraditórias sobre a mesma modalidade de prova. E aqui surge o paradoxo central a ser analisado pelo presente trabalho: como é possível a licitude da prova ilícita? Como é possível que uma prova comunicada ilícita dentro do sistema passe a ser lícita?

Lembremos que o marco teórico adotado nesta pesquisa suporta a hipótese acima, pois a comunicação sobre lícito/ilícito é uma operação realizada pelo próprio sistema jurídico (autopoiesis),

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bem como que a teoria dos sistemas de comunicação de Luhmann abdica da causalidade como forma de explicação da relação entre operações do sistema, ou seja, uma comunicação sobre a licitude de uma prova não o é porque uma comunicação anterior o foi. Essa escolha epistemológica da teoria parte do pressuposto de que não a causalidade é atributiva, é um esquema de observação do mundo, no qual um observador determinado seleciona da “totalidade das causas do mundo” aquelas que concorreram para a “consequência” observada (LUHMANN, 2010, p. 104-106).

Sob esses pressupostos, consideramos dissolvido o paradoxo da licitude da prova ilícita ao considerar que a decisão jurídica não é uma aplicação causal de textos legislativos, mas uma aplicação circular reflexiva. Assim é porque não se dá que uma prova ontologicamente ilícita é julgada como lícita, mas sim que não há um sentido de licitude ou ilicitude rígido, portanto previamente estabelecido. O que ocorre, na tomada de decisão jurídica, é a produção autopoiética de sentido do direito da sociedade, pois através de suas próprias operações, o sistema do direito constrói o sentido de prova lícita/ilícita ao longo do tempo.

Para melhor compreender a questão, analisemos o gráfico abaixo, o qual demonstra o percentual de decisões por período que julgaram interceptações telefônicas como lícitas ou ilícitas, levando em consideração a incompetência do juiz que autorizou a diligência probatória:

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Observa-se no gráfico que, no período de 2000 a 2003, as

decisões que julgaram as interceptações telefônicas como ilícitas por incompetência do juiz que autorizou e aquelas que julgaram lícita apesar da incompetência do magistrado se mantém na mesma proporção: 14% das decisões analisadas do período. Isso ocorre apesar de a jurisprudência STF anterior ao ano de 2000 ser consolidada (estável) em negar licitude à interceptação telefônica proferida por juiz incompetente. O que sucedeu no período entre 2000 e 2003 foi uma variação nos elementos do sistema jurídico, ou seja, uma reprodução desviante das comunicações do sistema (LUHMANN, 2007, p. 358), após período de estabilidade.

Contudo, ao longo dos anos analisados, as próprias operações do sistema jurídico concorreram para excluir a hipótese de incompetência por ilicitude do magistrado da esfera de sentido da prova lícita, tanto que nenhuma decisão, de 2004 a 2010, julgou uma interceptação como ilícita em virtude da incompetência do magistrado. Nesse mesmo período, a hipótese de interceptação autorizada por juiz incompetente em sede de medida cautelar se firma na esfera de sentido da licitude. O que se registra nesse período é uma seleção, com a qual o sistema elege a comunicação idônea para o uso repetido, capaz de formar estruturas. Após essa mudança, todo

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o sistema jurídico passa por um processo de reestabilização, porquanto se afirma com a nova comunicação no entorno sociedade (LUHMANN, 2007, p. 358).

Desta maneira, a teoria dos sistemas de comunicação desfaz o paradoxo da licitude da prova ilícita e, por isso, permite observar como ocorrem as mutações nas referências de sentido nas decisões do sistema jurídico. Nada obstante, não por pressupor a mutabilidade dos sentidos de lícito e ilícito, a teoria deixa de pressupor a unidade do sistema jurídico. Por isso se distingue entre Código de Preferência e Programa. O primeiro consiste em uma forma (distinção) com dois valores opostos, sobre os quais comunica o sistema social: no caso do sistema jurídico, trata-se do código lícito/ilícito (LUHMANN, 2007, p. 280-287). Os códigos são invariáveis para o sistema, e isso garante sua unidade, contudo o mesmo não ocorre com os programas. Estes são os condicionamentos que estabelecem em que circunstâncias a atribuição do valor positivo e em que circunstâncias o valor negativo são verdadeiras ou faltas (LUHMANN, 2007, p. 293-295). No caso específico do sistema jurídico, são as referências de sentido que integram os conceitos de lícito e ilícito.

Assim, o que ocorreu no exemplo acima delineado foi que a hipótese de interceptação telefônica autorizada por juiz incompetente deixou de integrar programas do valor negativo do código do sistema jurídico (ilícito), passando a integrar os condicionamentos do lado positivo (lícito).

4. Observações sobre argumentos utilizados: Auto e Heterorreferência

O marco teórico da teoria geral dos sistemas, o presente trabalho se utiliza especificamente da teoria dos sistemas de comunicação, que engloba tanto os sistemas psíquicos como os sistemas sociais. Os sistemas sociais, especificamente, através de sua operação principal, a comunicação, tanto pressupõem como produzem sentido. (LUHMANN, 2007, p. 27). A cada operação do sistema, ao mesmo tempo em que se confirma (fixa) o sentido contido

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na memória do sistema, de alguma forma se modifica o sentido ao empregá-lo, o que concorre para a produção do sentido ao longo do tempo. Portanto, de forma simplificada, dentro do marco teórico adotado, por sentido designa-se o meio pelo qual operam os sistemas psíquicos e sociais, bem como o produto de suas operações específicas: formas, como palavras, interpretações, conceitos, etc.

Os sistemas que operam no meio do sentido são capazes de observar a si mesmo e ao entorno através de formas de sentido. E, porque observar é uma operação que requer distinguir – no caso, entre sistema e entorno – e assinalar (LUHMANN, 2007, p. 48), os sistemas sociais só podem fazê-lo em virtude de sua capacidade de distinguir entre autorreferência e heterorreferência.

Para compreender esses conceitos é necessário conceituar os componentes da comunicação (LUHMANN, 2007, p. 49). O primeiro componente é a Informação (do alemão, Information), que expressa sobre o que se comunica. O segundo é o Ato de Comunicar (do alemão, Mitteilung), que designa o primeiro passo da comunicação, com o qual se dá ao conhecimento do outro sistema alguma informação (como os tradutores hispânicos preferem, “darla-a-conocer”). Por fim, há a Compreensão ou o Entendimento (do alemão, Verstehen), que designa o ato mediante o qual o outro sistema adere à comunicação, sem com isso designar transmissão da informação ou consenso entre os sistemas comunicantes.

Assim, com heterorreferência se designa a operação na qual o sistema alude a si mesmo, através da referência ao Ato de Comunicar. Já com autorreferência se designa a operação mediante a qual o sistema, através da informação, refere ao seu entorno.

A partir do esquema de análise “autorreferência/heterorreferência”, tornou-se possível observar, ao longo do exame dos acórdãos selecionados, que os argumentos utilizados pelos ministros do STF ora aludiam a elementos do entorno do sistema jurídico, ora se baseavam em elementos do próprio sistema, referindo ao ato de comunicar jurídico através de leis, da constituição, de outras decisões jurídicas, etc.

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Um dos argumentos mais recorrentes, embasando 23,8% dos posicionamentos vitoriosos no tribunal – atrás apenas do argumento da proporcionalidade, com 28,6% –, é aquele que alude ao debate sócio-político. Essa modalidade de argumento exalta problemas sociais para legitimar a decisão jurídica a ser tomada. Analisemos o trecho abaixo:

uma autorização judicial com o restrito prazo de trinta dias (na hipótese de admitir uma única renovação) não teria efetividade alguma em nosso país. (...) há de se considerar que as interceptações telefônicas foram autorizadas para investigação de organização criminosa extremamente complexa, que envolve, entre outros, magistrados e policiais federais. (...) Não seria razoável, portanto, a limitação das escutas a apenas 30 dias, pois, pelo que consta dos autos, todas as prorrogações foram devidamente fundamentadas e feitas dentro do prazo, presentes, à época, todos os requisitos que as autorizavam. Entendimento contrário levaria à total ineficácia da medida, que, atualmente, se apresenta como importante instrumento de investigação e apuração de delitos. Joaquim Barbosa. HC 84.388-3 2004

No referido acórdão, o impetrante sustenta que a prova seria ilícita por violação da lei 9.296/96 no que se refere à possibilidade de renovação da interceptação telefônica14. A parte argumenta que houve excesso nas prorrogações, pois o texto legal preveria que as autorizações para escuta telefônica ocorram até duas vezes, pelo prazo máximo de quinze dias.

O Ministro objetiva que o STF decida que interceptações telefônicas renovadas mais de uma vez sejam provas lícitas e, para tanto, desenvolve uma argumentação baseada na complexidade do crime investigado, para cuja investigação não seriam suficientes apenas 30 dias de interceptação. Por fim, conclui que entendimento

14 Eis o texto da lei 9.296/1996: “Art. 5° A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”. (grifo nosso)

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diverso conduziria à ineficácia das interceptações telefônicas como instrumentos de apuração de delitos.

Ao longo da argumentação, a decisão refere a questões sociais como a dificuldade de combate ao crime organizado. Menciona diversas vezes, inclusive, que a interceptação em apreciação se insere entre as realizadas na chamada “Operação Anaconda”. Essa operação da polícia federal de grande repercussão na mídia nacional, realizada entre os anos de 2002 e 2003, teve como objetivo combater casos de corrupção envolvendo policiais e magistrados. A partir das investigações dessa operação, foi denunciada uma organização criminosa interestadual. 19% dos acórdãos analisados, inclusive, envolvem interceptações realizadas ao longo da “Operação Anaconda”, das quais todas foram declaradas lícitas.

Assim, ao longo da argumentação, a decisão alude a diversos elementos do entorno do sistema jurídico, trazendo informações sobre combate ao crime organizado e operações policiais. Isso conduz à classificação dessa forma de argumentação como majoritariamente hetero-referente. Majoritariamente porque, apesar de o argumento desenvolver-se em torno de informações sobre o entorno do sistema jurídico, não deixa ele de conter alusões à lei e à constituição, por exemplo.

Vejamos outro exemplo de argumentação com alusão ao entorno do sistema jurídico:

(...) o prazo estipulado foi de 30 dias, é verdade, mas inexistiu ilegalidade ou arbitrariedade, porquanto a lei mencionada permite, expressamente, que o prazo de 15 dias seja prorrogado. A autoridade policial estava convicta do envolvimento dos réus com o tráfico de entorpecente e não fosse sua perseverança, certamente a grande quantidade de cocaína apreendida teria infestado a cidade. A profissionalização do crime organizado e o seu poder de atuação cada vez mais disseminado e dissimulado, certamente que exige dos poderes instituídos a adoção de mecanismos compatíveis para combatê-los, desde que, evidentemente não transborde para o desrespeito às

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garantias constitucionais do indivíduo. Gilmar Mendes. HC 88.371-1 2006

Esse é um trecho da sentença do juiz da 21º vara criminal da comarca da Capital/SP, transcrita ao longo do voto do ministro relator. O impetrante sustentou que é ilícita a escuta telefônica porque, muito embora autorizada judicialmente, teria infringido a Lei n° 9.296/1996, por autorizar a interceptação telefônica por 30 dias consecutivos. Objetivando que o Tribunal decida a prova como lícita, o trecho da sentença é transcrito e a argumentação passa a girar em torno da nocividade das drogas para a sociedade, da dificuldade de combate ao tráfico de drogas e da ponderação entre o interesse público e o interesse individual do impetrante.

Assim, também nesse trecho é possível observar que o argumento utilizado é majoritariamente hetero-referente, posto que as informações que o guiam giram em torno de problemas do entorno do sistema jurídico. Não se pode deixar de levar e consideração, contudo, que a argumentação contém traços de autorreferência, não apenas em virtude de alusão a dispositivo legal, mas também por conter referência a outra decisão jurídica, a própria sentença da 21º vara criminal da comarca da Capital/SP: refere, portanto, também a um Ato de Comunicar Jurídico.

Logo, é possível concluir que, apesar dos esforços da presente pesquisa em qualificar os argumentos utilizados como auto ou hetero-referentes, não é possível estabelecer uma classificação rígida. Visto que o sistema sempre reproduz a dupla referência – autorreferência e heterorreferência – para produzir a diferença entre sistema e entorno (LUHMANN, 2007, p. 70), não é possível observar comunicações de um sistema social como o direito sem identificar as duas modalidades de referência. Portanto, o que o presente trabalho almeja é realizar um juízo de predominância acerca de quais tipos de informações são dominantes na construção dos argumentos utilizados pelos ministros. Contudo, não se pode esquecer que o limite do sistema é a diferença autoproduzida de autorreferência/heterorreferência, o que faz com que tal diferença esteja presente em todas as comunicações (LUHMANN, 2007, p. 54).

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Apesar de os argumentos com referência aos problemas do entorno do sistema jurídico serem na maioria das vezes utilizados no sentido de decidir pela licitude da interceptação telefônica, há decisões que aludem a tais problemas com o objetivo de sustentar uma argumentação para que a prova seja declarada ilícita. Vejamos o trecho abaixo:

Hoje, não há mais delitos do que ontem. As coisas estão aflorando. Há de se adotar rigor na interpretação dos textos legais que disciplinam a controvérsia, principalmente em época – costumo dizer – de caça às bruxas, na qual a persecução criminal é implementada – vou utilizar a palavra para elogiar e não para criticar – com idealismo ímpar pelos membros do Ministério Público. Marco Aurélio. HC 83.515-5 2004.

O argumento acima foi derrotado no STF e a prova foi decidida como lícita. Os ministros cujo posicionamento foi o vencedor argumentaram que não houve excesso de prazo em prorrogações sucessivas da interceptação, pois diante da complexidade e gravidade dos crimes investigados, 30 dias não seriam suficientes para fazê-lo. O ministro que teve seu posicionamento derrotado, para tentar derrubar esse posicionamento, defende que é fictícia a idéia de que hoje existem mais crimes e mais complexos, que precisam ser combatidos, e a interceptação telefônica é o único meio de fazê-lo.

O argumento refere, assim, ao entorno do sistema jurídico, contudo, ao contrário dos argumentos anteriormente transcritos, este não contém a informação de que os crimes hoje são mais complexos ou graves, e sim que hoje há tantos crimes quanto antes, e que, portanto, não se faz necessária uma interpretação menos rigorosa da lei. A informação predominante no argumento refere ao entorno do sistema jurídico, portanto, tratamos de uma argumentação hetero-referente.

Outro tipo de argumento utilizado é aquele que opõe o posicionamento que deseja suplantar a autoridade da própria constituição. Vejamos um exemplo desse tipo de construção:

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não é indiferente a lição de Ada Peregrini Grinover de que ‘a inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta, sempre que a ilicitude consiste na violação de uma norma constitucional, em prejuízo das partes ou de terceiros’. (...) Toda vez que uma prova for colhida em desrespeito aos princípios constitucionais expressos ou implícitos, ao que concerne à tutela do direito à intimidade e de seus desdobramentos, a referida prova não poderá ser admitida no processo, por subsumir-se no conceito de inconstitucionalidade. Maurício Corrêa. HC 81.154-0 2001

Com o argumento acima, o Ministro objetiva decidir como ilícita interceptação telefônica autorizada antes da edição da lei regulamentadora prevista pela constituição, posição vencedora no tribunal, na ocasião. Para tanto, o Ministro refere principalmente a elementos do próprio sistema jurídico: como a constituição e o conceito de inconstitucionalidade. A partir do conceito de autorreferência como aquela comunicação que refere ao próprio ato de conhecer, é possível qualificar o argumento acima como auto-referente, compreendendo a constituição como um ato de conhecer do sistema jurídico.

É importante destacar que, da mesma forma que ocorreu com os argumentos anteriores, o argumento acima é majoritariamente, e não absolutamente, auto-referente. Isso, inclusive, porque ao desenvolvê-lo o Ministro recorre a elementos da doutrina jurídica que, apesar de possíveis controvérsias sobre integrar ou não o sistema do direito, pode ser enquadrado no sistema ciência, portanto, como informação do entorno do sistema jurídico.

Nessa perspectiva, é possível enquadrar os argumentos utilizados pelos Ministros do STF como predominantemente auto-referentes e hetero-referentes, o que demonstra que só é possível comunicação jurídica – e comunicação em geral – se o sistema é capaz de distinguir entre Informação (Information) e Ato de Comunicar (Mitteilung) (LUHMANN, 2007, p. 70). E essa distinção é realizada simultânea e continuamente pelo sistema através da distinção auto e heterorreferência e, apenas através dessa distinção, os sistemas que

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operam no meio do sentido são capazes de desenvolver-se ou construir evolutivamente sua complexidade (LUHMANN, 2007, p. 33). Assim, através de suas próprias operações o sistema jurídico constrói seu limite, distinguindo-se do entorno.

Aqui cabe tratar do fechamento operacional, de as operações de um sistema se conectarem apenas com operações do mesmo sistema. Dessa forma, o entorno é, para o sistema, operativamente inacessível, no sentido de que não pode ser atingido por operações do sistema. No entanto, em razão do conceito de heterorreferência acima exposto, o sistema se torna cognitivamente aberto para o entorno através de suas referências (LUHMANN, 2007, p. 71). Através de construções argumentativas cujas informações referente ao entorno do sistema, como à nocividade do tráfico de drogas e dificuldade de combate à corrupção, o sistema permite que essas informações contribuam para a formação do conceito de prova lícita/ilícita. Contudo, não por isso o sistema deixa de ser autopoiético, já que seus conceitos são construídos exclusivamente por suas próprias operações, mesmo que estas façam referência ao entorno.

Assim, é possível compreender que o sistema jurídico é fechado ao entorno na medida em que suas operações não podem atingi-lo diretamente, nem influxos do entorno podem operar dentro do sistema jurídico. Não por isso está o sistema jurídico completamente alheio ao seu entorno, em função das informações a ele referentes nas comunicações jurídicas.

5. Sobre como é possível o paradoxo da licititude da prova ilícita Ariscamos afirmar que a legalização da prova ilícita é

explicável a partir da teoria social de Niklas Luhmann por esta não aplicar causalidade aos termos licitude e ilicitude, como se estes fossem entidades pré-dadas porquanto imutáveis. O que observamos não foi que uma prova ilícita se torna lícita, mas que uma prova anteriormente comunicada como ilícita, em virtude de variações internas ao próprio sistema jurídico sofre a seleção passando a ser

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comunicada como lícita – quando é reestabilizada, integrando a memória do sistema.

Isso porque o direito, autopoieticamente, através de suas próprias operações, constrói o sentido de prova lícita/ilícita ao longo do tempo.

A mutabilidade vivida na formação dos sentidos de prova lícita ou ilícita é explicada pela unidade do sistema jurídico (código binário lícito/ilícito), sem esquecer a distinção entre Código de Preferência e Programa. Sendo, pois, o sistema do direito formado por comunicações sobre lícito/ilícito, é o chamado código de preferência que, por ser invariável em todas as suas operações, representa a unidade do sistema do direito. O que é mutável, portanto, são as referências de sentido que integram, em determinada temporalidade, os conceitos de lícito e ilícito, são, pois, os programas - condicionamentos que estabelecem em que circunstâncias a atribuição do valor positivo e em que circunstâncias o valor negativo são verdadeiras ou falsas – que vivem mudanças.

A produção de sentido do direito da sociedade se dá sob constante processo de mutação das referências, no caso desta pesquisa, das referências de sentido ligadas às expressões prova lícita e prova ilícita, as quais são continuamente realizadas pelo sistema ao operar, simultaneamente, referências ao próprio sistema e ao entorno – referimo-nos à autorreferência e à heterorreferência.

Através do conceito de informação da comunicação em operações hetero-referentes, observamos que o sistema permanece cognitivamente aberto ao entorno, sem, contudo, abdicar do seu fechamento operacional: só operações do próprio sistema relacionam-se com operações do próprio sistema, e apenas elas constroem os conceitos do sistema, mesmo que contenham referências ao entorno. Ao contrário, ao identificar argumentos com predominância de auto ou heterorreferência, foi possível concluir que o próprio sistema, continuamente, constrói seus próprios limites.

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DIREITO À HABITAÇÃO ADEQUADA: O DESAFIO DA EFETIVIDADE E O DISCURSO NO JUDICIÁRIO

George Sarmento1

Ao meditar sobre o que é essencial para a sobrevivência humana diante das variações climáticas, o filósofo transcendentalista norte-americano Henry David Thoreau enumerou quatro itens: alimento, combustível, roupa e abrigo. Quando eles estão assegurados o homem pode enfrentar, com liberdade e grande perspectiva de sucesso, os problemas da vida2. A conjunção desses elementos garante a subsistência da pessoa humana desde tempos imemoriais. Constituem, portanto, as primeiras necessidades básicas reconhecidas pela coletividade. Podemos considerá-los, até mesmo, a semente dos direitos sociais contemporâneos.

“Onde os homens perdem a casa e se juntam sob o mesmo teto, sem poderem pensar, sem aquele mínimo de solitude que os arrancou da animalidade – o homem regride, desce”3. Essa reflexão de Pontes de Miranda, escrita em 1944, dá exata dimensão da moradia para a evolução civilizatória da espécie humana. A casa foi o elemento que separou o homem da horda, transformando-se em espaço íntimo que o protege do frio, das tempestades e dos salteadores. Nela os

1 George Sarmento é Doutor em Direito Público/UFPE, Professor da Faculdade de Direito de Alagoas/UFAL, Coordenador do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL. Integra o corpo docente do Mestrado em Direito PPGD/UFAL, sendo responsável pela disciplina Direitos Humanos Fundamentais. Foi professor convidado da Universidade de Montpellier 1 e é autor de livros e artigos sobre direitos humanos. É promotor de justiça, atuando na defesa da Fazenda Pública Estadual. É pesquisador do PROCAD no projeto “Os Direitos Fundamentais no Discurso do Judiciário”, desenvolvido pela UFPE, UFAL e UFPB. 22 THOREAU, Henry David. Walden ou a Vida nos Bosques. São Paulo: Global Editora, 1985, p. 25. 3 MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. São Paulo: Bookseller, 2002, p. 636.

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alimentos são estocados, os doentes convalescem e as crianças encontram as condições propícias para se desenvolver.

Ainda na Idade Média, os ingleses forjaram o princípio “minha casa é o meu castelo” com o intuito de protegê-la do despotismo da Coroa, das prisões arbitrárias e das expropriações patrimoniais. Foi a primeira limitação imposta ao absolutismo real e uma prerrogativa individual que sobreviveria ao tempo. Hoje a inviolabilidade de domicílio é um direito fundamental prescrito nos tratados internacionais e nas Constituições dos Estados Democráticos de Direito.

Mas o que dizer dos milhões de habitantes do Planeta que, em pleno Século XXI sequer têm acesso à moradia? E daqueles que vivem em condições miseráveis, insalubres, privados de equipamentos comunitários e serviços públicos básicos? Como desconhecer o drama das populações privadas de suas terras por despejos violentos e ilegais?

A habitação adequada é reconhecida internacionalmente pelas Nações Unidas como um dos mais importantes direitos sociais. Os Estados têm o dever de criar leis e promover políticas públicas na área habitacional de forma a ampliar cada vez mais o acesso à moradia, sobretudo para as camadas mais pobres da população. Além do Estado outros atores contribuem para a sua efetividade, a exemplo da sociedade civil, agências multilaterais, instituições financeiras, construtoras etc.

O direito à habitação adequada não significa dizer que o Estado deva promover a distribuição gratuita de casas à população. Tampouco se concretiza pela existência de um “teto”, onde as pessoas possam se abrigar da chuva e do calor. Consiste em um conjunto articulado de ações estatais para assegurar a todos o acesso à moradia que proporcione dignidade e conforto aos seus ocupantes, permitindo o desenvolvimento da liberdade, igualdade e solidariedade.

Da mesma forma não se deve confundir o direito à habitação com o direito de propriedade. O direito à habitação pressupõe um

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conjunto de fatores que asseguram as condições necessárias para que a pessoa humana se beneficie de uma casa para abrigar a si e sua família, com satisfatórias condições de vida, salubridade, serviços básicos, equipamentos comunitários e infraestrutura. Portanto, não basta o título de propriedade do imóvel para que ele se concretize na sociedade brasileira.

Este artigo analisa as causas da frágil concretização do direito à habitação adequada no Brasil, bem como as perspectivas de avanços a partir da execução de políticas públicas verdadeiramente comprometidas com o combate à desigualdade social e com a participação da sociedade civil nas instâncias de decisão. O tema é problematizado com a demonstração dos altos índices de déficit habitacional, que afeta, principalmente as classes de baixa renda, exigindo respostas urgentes do Estado brasileiro. Nossa hipótese é a de que, historicamente, a moradia nunca foi uma prioridade dos governos republicanos. O clientelismo, a especulação imobiliária, o patrimonialismo urbano e a passividade estatal diante das invasões ilegais foram algumas das causas da crise habitacional.

A inclusão do direito à habitação adequada nos tratados internacionais e na Constituição de 1988 foi o primeiro passo para reverter essa situação. Contudo, comemoramos os 10 anos do Estatuto da Cidade sem muitos avanços nos direitos por ele assegurados. Os Planos Diretores são sistematicamente desrespeitados pelos municípios. Milhões de brasileiros sequer têm acesso a serviços como a coleta de lixo, saneamento básico, tratamento de esgotos e água encanada4. As altas prestações dos financiamentos hipotecários e a burocracia que reveste os contratos têm excluído os mais pobres do acesso à casa própria. O boom imobiliário só tem beneficiado as grandes empreiteiras e setores da classe média, deixando de fora os que ganham entre 1 e 5 salários mínimos. Além disso, tem produzido espaços excludentes como

4 60 milhões de brasileiros não são beneficiados por sistema de coleta de esgotos; 15 milhões não têm acesso à água encanada; 65% do esgoto coletado não recebe nenhum tipo de tratamento.

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condomínios fechados – horizontais e verticais –, verdadeiras cidades dentro da cidade. Diante de tantos problemas, podemos indagar: quais as perspectivas para concretização do direito à habitação adequada nos próximos anos?

1. Déficit habitacional e condições inadequadas moradia

O déficit habitacional brasileiro é de 5,6 milhões de moradias: 82% em áreas urbanas, o restante na zona rural. Desde 1995, o monitoramento tem sido feito pela Fundação João Pinheiro. Os dados acima demonstram que o estoque de habitações disponíveis não é suficiente para os 20 milhões de brasileiros desprovidos de moradia adequada, isso se considerarmos cinco habitantes por residência. Em Alagoas o déficit atinge 123.244 moradias, portanto cerca de 600 mil pessoas sem acesso à habitação5.

Os pesquisadores trabalham com duas categorias estatísticas: o déficit habitacional e a inadequação de moradias. A primeira refere-se à necessidade de construção de moradias para satisfazer a demanda imediata da sociedade no setor. Seu paradigma é o estoque de unidades habitacionais6. A segunda tem como ponto de partida a qualidade de vida dos moradores alojados em residências.

Existem duas modalidades de déficit habitacional: (a) déficit por reposição de estoque e (b) déficit por incremento do estoque. A primeira modalidade abrange os imóveis sem condições de serem habitados em razão do desgaste de infraestrutura e precariedade de suas condições físicas. Enquadram-se os domicílios rústicos, com paredes sem alvenaria ou madeira trabalhada. Não proporcionam as condições mínimas de conforto e ainda expõem os moradores a doenças tropicais devido ao seu estado de insalubridade. Por isso devem ser substituídos por outros imóveis em melhores condições.

5 Déficit Habitacional no Brasil 2007. Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação. Brasília: 2009, mimeo, pp. 14-19. 6 Déficit Habitacional no Brasil 2007. Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação. Brasília: 2009, mimeo, p. 24.

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O déficit por incremento de estoque indica a necessidade de construção de novas unidades familiares para suprir as necessidades das camadas mais desfavorecidas da população que habitam espaços improvisados como favelas, cortiços, cômodos, ruínas, choupanas, coabitação familiar ou pessoas que pagam aluguéis onerosos e comprometedores de seu orçamento doméstico.

Verifica-se a inadequação das moradias quando as habitações não reúnem as condições desejáveis de ocupação. Aquelas que possuem adensamento excessivo de moradores, cobertura inadequada, inexistência de unidade sanitária domiciliar ou que possuem irregularidades fundiárias. Também se enquadram as casas com graves problemas de infraestrutura, como a inexistência de pelo menos um dos seguintes serviços básicos: iluminação elétrica, rede geral de abastecimento d’água com canalização interna, coleta de lixo e rede geral de esgotamento sanitário ou fossa séptica. Essas unidades quase sempre são produto da autoconstrução, da informalidade, do desrespeito às normas de segurança, da utilização de materiais improvisados, entre outras deficiências estruturais.

Quando o Governo brasileiro apresenta os resultados referentes aos avanços ou retrocessos das necessidades habitacionais, leva em consideração tanto o déficit habitacional (incremento ou reposição de estoque das moradias) como a inadequação das moradias7.

Estudos realizados por pesquisadores do IPEA demonstram que nos últimos anos, o Brasil conseguiu avanços na concretização do direito à moradia adequada. Dados de 2004 mostram que houve uma queda significativa do número de pessoas residentes em cortiços, de moradores de rua e de pessoas com irregularidades fundiárias. Por outro lado, as políticas públicas governamentais não foram capazes de deter o aumento de pessoas residentes em favelas e outros assentamentos informais nas metrópoles e em municípios

7 Informativo do Ministério das Cidades. Cf. www.cidades.gov.br. Acesso em 18/04/2011.

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densamente povoados. O crescimento foi na ordem de 2 milhões de pessoas8.

Mesmo diante dos avanços no setor, 2/5 da população brasileira vivem em moradias precárias. Segundo o estudo desenvolvido pelo IPEA, o problema afeta mais gravemente a população negra e pobre, detentora de pequena capacidade financeira para arcar com os custos da casa própria e dos serviços urbanos essenciais. Tal situação exige grandes esforços dos três níveis de governo para alocar recursos públicos destinados a reverter os vergonhosos índices de exclusão a tão importante direito fundamental9. As políticas públicas devem atuar não apenas na democratização dos serviços de saneamento, distribuição d’água e fornecimento de energia elétrica, mas também promover a regulamentação fundiária de comunidades indígenas, quilombolas, reservas extrativistas, assentamentos agrários etc 10.

2. Supraestatalidade do direito à habitação adequada

Na dimensão supraestatal, o direito fundamental à habitação adequada foi reconhecido pela primeira vez no art. XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. O documento proclamou que todo homem tem direito a um padrão de vida que lhe assegure, assim como a toda

8 Monitorando o Direito de Moradia no Brasil (1992-2004). MORAIS, Maria da Piedade; DA GUIA, George Alex, DE PAULA, Rubem. In Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, v. 12. 2006: IPEA, pp. 236-237. O estudo mostra que 59,7 milhões de brasileiros enfrentam algum tipo de inadequação em suas condições de habitação: moradia inadequada, esgoto inadequado, abastecimento d’água inadequado, adensamento excessivo, irregularidade fundiária, favelas, paredes não duráveis, inexistência de banheiro exclusivo e teto não durável. 9 Monitorando o Direito de Moradia no Brasil (1992-2004). MORAIS, Maria da Piedade; DA GUIA, George Alex, DE PAULA, Rubem. In Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, v. 12. 2006: IPEA, p. 236-237. 10 Monitorando o Direito de Moradia no Brasil (1992-2004). MORAIS, Maria da Piedade; DA GUIA, George Alex, DE PAULA, Rubem. In Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, v. 12. 2006: IPEA, p. 236-237.

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sua família, alimentação, vestuário, alimentação, habitação, cuidados médicos e assistência social indispensáveis, além de outros importantes direitos sociais. Ao regulamentá-la, o art. 11º do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado pela ONU em 1966, prescreve a garantia de alojamento para toda pessoa humana.

E não para por aí. O direito à habitação adequada é reconhecido, explicitamente por outros tratados internacionais, a exemplo do art. 14 (2) da Convenção sobre todas as formas de discriminação contra a mulher (1979) e do art. 27 (3) da Convenção sobre os direitos da criança (1989). Também pode ser identificado implicitamente no art. 5º da Convenção Internacional sobre todas as formas de Discriminação (1968) e pelo art. 26 do Pacto de São José da Costa Rica de (1969).

O direito à habitação adequada não é estanque. Liga-se a outras espécies de direitos humanos fundamentais por uma relação de transversalidade, uma vez que sua efetividade depende da concretização do direito à saúde, à segurança jurídica, à educação, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado etc. A degradação das condições de moradia acarreta graves conseqüências nas condições de vida da população, aumentando os índices de doenças, desemprego e violência nas comunidades mais desfavorecidas.

Ao emitir o Comentário Geral n. 4/91, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, órgão vinculado à ONU, elaborou as diretrizes e os parâmetros adequados para a fruição do direito à habitação adequada, previsto no art. 11 do Pacto. Na ocasião, as Nações Unidas constatam que cerca de 100 milhões de pessoas não tinham moradia e mais de 1 bilhão vivia em habitações inadequadas. A exclusão de grande parcela da população mundial, violava o direito de todos à habitação, independentemente de idade, condição financeira, raça, religião ou pertença a determinado grupo social.

Como o Estado pode satisfazer o direito à habitação adequada? O Comentário n. 04/91 deixa claro que não se pode reduzir a habitação à ideia de abrigo provido meramente de um teto

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sobre a cabeça dos moradores. Também não se trata de direito meramente individual, pois sua função primordial é abrigar a família com segurança, paz e dignidade. Daí a necessidade de se estabelecer parâmetros racionais para identificar a adequação dos domicílios à qualidade de vida da população.

Assim, a “adequação” surge como um paradigma central para a avaliação da efetividade do direito à habitação. Antes do Comentário n. 04/91, alguns fatores já tinham sido identificados como “privacidade adequada, espaço adequado, segurança, iluminação e ventilação adequada, infraestrutura básica adequada e localização adequada em relação ao trabalho e facilidades básicas, tudo a um custo razoável (Comissão sobre Assentamentos Humanos e Estratégia Global para Habitação para o ano 2000)”.

Até então o assunto tinha sido tratado no plano econômico, político, cultural e social. Porém, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais decidiu criar sete parâmetros jurídicos a serem observados pelos Estados-Membros na criação de leis e políticas públicas no setor habitacional. São eles:

1. Segurança legal de ocupação: proteção contra despejos arbitrários e ilegais, pressões incômodas, esbulho e turbação. A legislação deve proteger as diversas formas de propriedade urbana e rural, bem como posses consolidadas pelo tempo, sobretudo em grupos sociais vulneráveis – sem poder aquisitivo para enfrentar as demandas judiciais.

2. Disponibilidade de serviços, materiais, equipamentos e infra-estrutura: os moradores devem ter acesso ao fornecimento de energia elétrica, água tratada, gás para a cozinha, recolhimento regular de lixo, saneamento básico, instalação de equipamentos sanitários, drenagem de águas pluviais, iluminação pública, acesso a serviços de emergência (atendimento médico de urgência, atuação do corpo de bombeiros em caso de incêndio etc.).

3. Custo acessível: os custos dos imóveis devem atender às condições financeiras da família de forma a não comprometer o orçamento doméstico ou privá-la de outros direitos sociais básicos

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(educação, saúde, transporte, vestuário). Para isso, os Governos devem criar sistemas de financiamento da casa própria que levem em consideração a capacidade de endividamento do mutuário e a criação de subsídios habitacionais para atender aqueles que não dispõem de condições para arcar com os custos da habitação.

4. Habitabilidade: o imóvel deve reunir as condições necessárias para proporcionar aos seus moradores proteção contra a umidade, frio, calor, chuva, vento e todos os outros elementos nocivos à saúde, especialmente as doenças epidemiológicas. Também se enquadra nesse título a prevenção a todos os problemas estruturais da construção que dificultem o conforto dos ocupantes ou ponha sua segurança em risco.

5. Acessibilidade: os governos têm obrigação de promover ações concretas que assegurem aos grupos sociais vulneráveis as condições necessárias de acesso à moradia. A legislação deve assegurar prioritariamente a pessoas portadoras de necessidades especiais, doentes terminais, crônicos e em estado grave, portadores de HIV, vítimas de catástrofes e desastres o direito de adquirir casa própria ou abrigo onde possam obter a assistência médico-hospitalar necessária.

6. Localização: as áreas habitacionais devem ser instaladas em espaços que permitam o acesso de seus moradores ao trabalho, escola, hospitais, postos de saúde, mercados, creches, centros comerciais e de laser, através de meios de transportes coletivos. Além disso, os conjuntos habitacionais não podem ser construídos em locais poluídos ou suscetíveis desastres, a exemplo de encostas, charcos, sopé de montanhas etc.

7. Adequação cultural: a diversidade cultural de cada comunidade deve ser levada em consideração na implantação de projetos habitacionais, a fim de preservar a identidade e as tradições de seus moradores.

A ONU tem insistido em obter dos Estados-parte o compromisso de adotar tais parâmetros em seus sistemas jurídicos, inclusive o monitoramento dos resultados alcançados. As políticas

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públicas devem priorizar as famílias sem teto, as famílias que vivem em assentamentos ilegais, os grupos suscetíveis de despejos arbitrários, a população de baixa renda, bem como os aglomerados humanos que não têm acesso aos serviços públicos essenciais a uma vida digna e saudável. Isso inclui o contigente populacional considerado “sem abrigo”, formado por famílias sem residência fixa, obrigadas a pernoitar na via pública ou em alojamentos precários e temporários.

Mas as políticas públicas também devem ser concebidas para beneficiar toda a população, uma vez que a habitação adequada é um direito social que tem como titular a pessoa humana, independentemente de sua condição econômica. O Estado tem a obrigação de adimplir as prestações positivas de natureza constitucional, devendo regular a ocupação do solo urbano e rural, dotar as cidades de infraestrutura básica, oferecer serviços públicos de boa qualidade e programas de financiamento da casa própria.

Ao editar a Observação Geral n. 07/97, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais complementou as orientações relativas ao direito à habitação adequada, promovendo um conjunto de garantias contra os despejos forçados. Isto é, contra a expulsão de pessoas, famílias e comunidades de suas casas e terras – de forma permanente ou provisória –, sem lhes oferecer meios de proteção legal ou de acesso à justiça. Tal proteção não se aplica aos despejos legítimos, precedidos do devido processo legal e da correta aplicação da lei em matéria possessória e das normas internacionais de direitos humanos. Exemplo disso são os despejos decorrentes de esbulho possessório, inadimplência de alugueis e outros atentados ao direito de propriedade.

Os despejos forçados violam gravemente os direitos fundamentais pela sua violência e desrespeito à dignidade humana, especialmente quando atingem crianças, adolescentes, jovens, anciãos, mulheres, povos indígenas e minorias étnicas. Tais práticas envolvem outros crimes como homicídio, extorsão, violência sexual, destruição de bens, roubos etc. Isso exige do Estado atuação

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preventiva e repressiva para evitar tais abusos e punir os agressores. Nos casos de despejos legais, a legislação deve prever o direito à indenização justa pelas benfeitorias, reassentamento das famílias e acesso a terras produtivas decorrentes de programas de reforma agrária.

Por fim a Observação Geral n. 07/97 recomenda as seguintes medidas processuais a serem aplicadas nas hipóteses de despejo forçado: consulta às pessoas afetadas pela medida; prazo razoável para o cumprimento da medida judicial; fornecimento das informações necessárias ao procedimento de despejo, inclusive a destinação a ser dada ao imóvel; garantir a presença de representantes do governo para acompanhar o despejo e evitar excesso das autoridades policiais; identificação exata dos funcionários responsáveis pela execução do despejo, não realizar despejos à noite ou quando houver risco de chuvas ou tempestades; assegurar às pessoas afetadas assistência jurídica gratuita e o amplo direito de defesa com todos os recursos a ele inerentes.

4. O direito à habitação adequada no sistema jurídico brasileiro

O texto aprovado pelos Constituintes de 1988 não incluía a moradia entre os direitos sociais elencados no art. 6º da Carta Política brasileira. O acréscimo só aconteceu com a Emenda Constitucional n. 26, de 10 de fevereiro de 200011.

Com relação à responsabilidade dos entes federativos para assegurar o direito fundamental à habitação adequada, o art. 23, IX, do texto constitucional atribui competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para promover programas de construção de moradias, a melhoria das condições habitacionais e o saneamento básico. Nesse aspecto, devem atuar em

11 Art. 6º. “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma da Constituição”. O art. 7º da Constituição de 1988 também estabelece que o salário mínimo, nacionalmente unificado, deverá suprir as necessidades básicas do trabalhador, entre elas a moradia.

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três níveis: (1) suprir o déficit habitacional decorrente da ausência de estoque de unidades habitacionais; (2) promover ações para melhorar a qualidade dos imóveis já existentes, mas em estado de precariedade, decomposição ou desprovido de segurança para os moradores; (3) dotar as comunidades de saneamento básico mediante procedimentos eficazes de canalização e tratamento de esgotos, coleta e tratamento de resíduos orgânicos, além de outras medidas capazes de assegurar vida saudável, higiênica e ecologicamente sustentável, evitando a contaminação e a proliferação de doenças.

A Constituição de 1988 ainda trata do tema ao disciplinar a Política Urbana (arts. 182 e 183). Nesse aspecto, alguns avanços na questão habitacional devem ser enfatizados. O primeiro deles é que a política de desenvolvimento urbano deve ser executada pelo município em respeito às diretrizes fixadas em lei. Ela tem o objetivo de ordenar as funções da cidade e garantir o bem-estar de seus moradores.

Também determinou que os municípios com mais de vinte mil habitantes editassem os seus Planos Diretores, considerados instrumentos básicos da política de desenvolvimento e expansão urbana. Para prestigiar esses instrumentos legais, condicionou a função social da propriedade à observância das exigências fundamentais de ordenação da cidade neles expressas. Assegurou a impenhorabilidade do bem de família, impedindo sua expropriação por dívidas contraídas pelos proprietários.

Por fim merece destaque o direito à usucapião especial para aqueles que detenham a posse, por cinco anos ininterruptos e sem oposição, de área urbana de até 250 metros quadrados, utilizando-a como sua moradia ou de sua família. Nessa situação, o ocupante pode recorrer à justiça para converter a posse em propriedade, desde que não seja dono de outro imóvel urbano ou rural. O título do domínio pode ser concedido ao homem ou a mulher, independentemente do estado civil (CF, art. 183). A possibilidade de registrar o imóvel no nome da mulher tem sido uma estratégia recorrente nos programas de regularização fundiária, por sua histórica resistência em alienar o

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imóvel, o que garante maior segurança à família na manutenção do patrimônio. O registro em nome do casal é outra estratégia que tem sido largamente utilizada em programas sociais, como forma de impedir a negociação irresponsável do imóvel.

Na dimensão infraconstitucional, a Política Urbana foi regulamentada pela Lei 10.257/2001 – o Estatuto da Cidade. Ele trouxe muitos instrumentos de tutela ao direito à habitação adequada, sobretudo no que se refere à segurança jurídica da posse e da propriedade (usucapião urbana, concessão do direito real de uso para fins de moradia, zonas de interesse social, regularização fundiária etc.), além da gestão democrática e participativa da cidade.

5. Evolução das políticas habitacionais no Brasil

Até os anos 30, as intervenções estatais nos domicílios domésticos resumiam-se a questões sanitárias com o objetivo de evitar a proliferação de doenças. Exemplo disso foi o episódio conhecido como a Revolta da Vacina (1904), em que autoridades invadiram as casas do Rio de Janeiro para compelir os moradores a submeterem-se à vacina contra a varíola. Outro exemplo são as grandes reformas urbanas comandadas pelo prefeito Pereira Passos entre os anos de 1903 a 1906, apelidadas pelo povo de “bota-abaixo”, que reconfiguraram a capital federal, substituindo as ruas estreitas e vielas acanhadas por imponentes bulevares, além de retirar vários cortiços de áreas comerciais.

A partir dos anos 30, o Brasil começou a se industrializar. A oferta de empregos nas fábricas e a expansão dos centros urbanos atraíram milhares de operários vindos da zona rural em busca de oportunidades. O expressivo aumento populacional provocou grande crise habitacional, que atingiu principalmente as camadas mais pobres da população e arrefeceu a marginalização e exclusão social. A falta de planejamento e de vontade política terminou favorecendo o crescimento de favelas, vilas, alagados, cortiços, invasões de terras e ocupações de encostas.

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Foi nesse período que o Governo Vargas (1930-1945) estimulou a criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPS), vinculados a gênero ou categorias profissionais. Entre 1933 a 1945, foram constituídos sete IAPs (industriários, marítimos, bancários, comerciários, estivadores, servidores públicos e transportadores de cargas). Esses institutos iniciaram os primeiros programas de financiamento de casas próprias para os seus filiados.

Durante o Estado Novo, os IAPs assumem grande importância na expansão das moradias, sendo pioneiros na construção de conjuntos habitacionais em diversos Estados do país. Essas instituições eram importantes instrumentos políticos para fortalecer os princípios do Estado Novo, baseado nos pilares da industrialização, sindicalização e urbanização. Porém sua atuação não foi suficiente para resolver os problemas de habitação, que se agravavam com o crescimento de favelas e mocambos nas grandes cidades. A perda de legitimidade dessas instituições entre os trabalhadores e a incapacidade de suprir a escassez de residências provocaram uma crise sem precedentes no setor. Foi aí que o Ministério do Trabalho promoveu a unificação de diversos Institutos de Aposentadorias e Pensões na esperança de criar uma poderosa instituição de previdência social que ficasse responsável pela construção de vilas operárias em todo o território nacional12.

Em 1946, o Presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) editou o Decreto-Lei 9.777, que criou a Fundação Casa Popular – o primeiro órgão federal responsável pela condução da política habitacional brasileira. A FCP tinha a missão de financiar residências populares a baixo custo ou destinadas à locação sem objetivo de lucro. Também

12 O plano getulista consistia na criação do Instituto dos Serviços Sociais do Brasil, a partir da unificação do IAPETEC, IAPB, IAPM, IAPC, IAPE e IAPI. Esse projeto de unificação das carteiras hipotecárias dos IAPs ficou no papel durante anos e só se consolidou em 1967 com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social e do Banco Nacional da Habitação. Cf. MELO, Marcus André B. C. de. A Política de Habitação e Populismo: O Caso da Fundação da Casa Popular. www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/download/.../2222. p. 43. Consulta em 23/04/2011.

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era responsável pelo financiamento de obras urbanísticas, abastecimento d’água, esgotos, suprimento de energia elétrica e outros serviços que melhorassem a qualidade de vida e bem-estar das classes trabalhadoras13.

Por trás da criação da FCP estava a proposta de seduzir o operariado brasileiro com a realização do sonho da casa própria, promovendo financiamentos imobiliários cujas prestações cabiam no orçamento dos trabalhadores de baixa renda. A iniciativa sofreu muitas críticas, tanto do setor da construção civil e das classes conservadoras, como também dos membros do Partido Comunista. Os construtores temiam a concorrência do Estado num setor altamente lucrativo e que se encontrava em plena efervescência. A bancada comunista – que vinha obtendo importantes vitórias nas urnas – acusava o governo de clientelista e demagogo, pois os investimentos eram canalizados para seus aliados políticos.

Com o passar do tempo, verificou-se que a falta de critérios objetivos para a construção de conjuntos habitacionais terminou favorecendo o uso político da instituição, que passou a beneficiar claramente os Estados de maior densidade eleitoral. Esse importante instrumento político integrou-se ao projeto populista que visava à manutenção das oligarquias no poder. Pouco a pouco a FCP foi perdendo sua credibilidade e importância na condução da política habitacional brasileira. Com o golpe militar de 1964, já era um órgão obsoleto incapaz de cumprir as missões que inspiraram sua criação14.

Em 1964, o Governo Militar criou o Sistema Financeiro da Habitação e o Banco Nacional da Habitação (Lei Federal 4.380/64). O objetivo era financiar casas próprias em grande escala para as mais

13 MELO, Marcus André B. C. de. A Política de Habitação e Populismo: O Caso da Fundação da Casa Popular. www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/download/.../2222. p. 43. Consulta em 23/04/2011. 14 MELO, Marcus André B. C. de. A Política de Habitação e Populismo: O Caso da Fundação da Casa Popular. www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/download/.../2222. p. 43. Consulta em 23/04/2011.

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diversas classes sociais. Cabia ao BNH incentivar a população a investir em cadernetas de poupança, cujos recursos alimentariam o SFH e chegariam aos mutuários através de sociedades de crédito imobiliário públicas e privadas. Dois anos depois a Lei 5.107/66 instituiu o FGTS, também canalizando seus recursos para área de habitação e infraestrutura15. A ideia era aquecer o setor da construção civil, gerar empregos em massa e satisfazer às aspirações represadas de milhares de famílias brasileiras.

Em meados da década de 80 o modelo entrou em colapso. Diversas associações de mutuários se organizaram para combater as prestações abusivas, os constantes reajustes e as execuções hipotecárias movidas contra os devedores. Em 1986, o Banco Nacional da Habitação foi extinto. Suas atribuições foram redistribuídas para outros órgãos governamentais como o Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Caixa Econômica Federal. Durante sua existência, o BNH patrocinou importantes programas de construção de residências de baixo custo, como as Companhias Habitacionais (COAHBs), o Plano Nacional de Habitação Popular (PLANHAP) e o Sistema Financeiro de Habitação Popular16. As mudanças operadas pelo Decreto-Lei 2.291/86 tiveram o objetivo de corrigir as distorções que provocaram um alto índice de inadimplência dos mutuários17.

Embora o SFH tenha financiado cerca de 6 milhões de imóveis, o déficit habitacional não parou de crescer. Em 2000, o Relatório da Sociedade Civil sobre o Cumprimento do PIDESC (Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), denunciou a falta de políticas públicas no setor. Vários problemas foram apontados, entre eles os despejos violentos em imóveis abandonados, o aumento da inadimplência das prestações da casa própria, descaso

15 Hoje o FGTS é regulamentado pela Lei 8.036/90. Os recursos são controlados pelo Governo Federal, nos termos das Resoluções do Conselho Curador do FGTS. A Caixa Econômica Federal é o agente operador. 16 Durante sua existência, o BNH financiou 4,4 milhões de unidades habitacionais. 17 O Banco do Nordeste do Brasil também desenvolveu um programa de financiamento de casas populares, sem muito sucesso.

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com as habitações rurais e indígenas e inexistência de política de moradia para a população de baixa renda. A equipe de especialistas sugeriu programas de proteção à população em situação de risco, a urbanização de áreas insalubres, promoção de moradias para os “sem teto”, instalação de equipamentos comunitários para a população carente, entre outras medidas18. Os problemas relatados à época ainda persistem, o que mostra a incapacidade do Governo em resolver a questão.

O Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) apresentou um extenso programa habitacional19. Mas os anos que se seguiram mostraram que o setor não era prioridade. Entre as medidas estavam a reconfiguração do modelo de déficit habitacional, a descentralização e diversificação dos programas de aquisição da casa própria. Também houve o reconhecimento de que as principais carências se encontravam nas classes mais pobres da população. Os principais programas foram os seguintes: Pró-Moradia; Habitar Brasil; Carta de Crédito Individual e Associativa; Apoio à Produção.

Na prática, o Governo FHC seguiu o mesmo modelo de seus antecessores, utilizando-se dos recursos da poupança popular e do FGTS. Embora tenha prometido financiar casas próprias com recursos a fundo perdido, os valores destinados ao setor foram irrisórios. Para se ter uma ideia do descaso, entre 1995 e 1997, a União destinou apenas R$ 612.648,00 de recursos orçamentários para a habitação (cerca de 200.000,00 por ano). Além disso, apenas 13% dos recursos previstos para a classe mais pobre da população, com renda familiar entre um e cinco salários mínimos, foram investidos efetivamente. A maior parte dos financiamentos foi destinada às classes sociais com maior poder de compra20.

18 Relatório da Sociedade Civil sobre o Cumprimento pelo Brasil do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Brasília: 2000. Mimeo. 19 As principais propostas constavam do documento intitulado Política Nacional da Habitação (1996), elaborado pela Secretaria Nacional da Habitação e Política da Habitação. 20 MARICATO, Ermínia. Política Urbana e Habitação Social: um assunto pouco importante para o Governo FHC. São Paulo: 1998, mimeo, pp. 5-7.

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Outros problemas também foram detectados no período. As cartas de crédito, apresentadas como grande novidade para os candidatos à casa própria, esbarraram na falta de regularização fundiária dos imóveis de baixo custo, o que inviabilizava as aquisições. Por outro lado, muitos municípios não puderam ter acesso aos recursos do FGTS em razão de dívidas anteriores, prejudicando a construção de milhares de casas populares. Finalmente, o Governo reduziu a questão habitacional à lógica de mercado nos moldes neoliberais, deixando de tratá-la como um imperativo constitucional que exigia prestações positivas do Estado para erradicar a pobreza e a marginalização. (CF, art. 3º, III). Esse rompimento ficou muito claro quando o Governo flexibilizou o teto do financiamento e transferiu a questão para o setor da construção civil21.

O Governo Lula (2003-2010) estampou suas estratégias de combate ao déficit de moradias no documento intitulado Política Nacional de Habitação (2004)22. Entre os princípios inspiradores de sua política setorial estão a universalização da moradia digna, o atendimento à população de baixa renda, a ampliação do crédito habitacional, o combate aos problemas habitacionais, o estímulo ao mercado para atender à classe média e o planejamento das cidades. A coordenação e articulação das ações ficaram sob a responsabilidade da Secretaria Nacional da Habitação, órgão subordinado ao Ministério das Cidades.

A tônica do Governo Lula foi a diversificação dos programas e ações no setor habitacional23. Outra medida importante foi a criação

21 MARICATO, Ermínia. Política Urbana e Habitação Social: um assunto pouco importante para o Governo FHC. São Paulo: 1998, mimeo, pp. 9-10. 22 O Governo também elaborou o PlanHab 2009-2023 – Plano Nacional de Habitação. 23 Alguns dos programas no setor habitacional: (a) Orçamento Geral da União: Habitar Brasil BID – HBB, Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade do Habitat (PBQP-H), Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH), Projetos Prioritários de Investimento (PPI); (b) FGTS: Carta de Crédito Individual, Carta de Crédito Associativo, Programa de Atendimento Habitacional através do Poder Público (Pró-moradia); (c) FAR: Programa de Arrendamento Residencial (PAR); (d) FDS: Programa de Crédito Solidário e Minha Casa, Minha Vida (e) FAT:

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do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), com a proposta de assegurar à população de baixa renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável, nos termos da Lei 11.124/2005. Uma das medidas de maior impacto foi o Programa Minha Casa, Minha Vida – criado em julho de 2009, com o objetivo de incentivar a produção e aquisição de unidades habitacionais para famílias com renda mensal de até 10 salários mínimos. Hoje ele é considerado o maior programa brasileiro de construção de casas populares, sendo responsável pelo aquecimento da construção civil de baixo custo, pelo aumento de empregos e pelo acesso à habitação adequada. O seu sucesso pode ser constatado pelo número de financiamentos contratados. Entre março e dezembro de 2010 o número de casas financiadas saltou de 80.389 para 217.52424. Segundo o Governo a meta é construir, só na primeira etapa, 1 milhão de moradias25.

Com a criação do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, em 2007, o Governo Federal investiu cerca de 12 bilhões de dólares na urbanização de favelas26. Também destinou recursos para a construção de casas populares. Embora tenha havido significativos avanços no setor, não se pode dizer que o direito à habitação adequada está consolidado no país. O assustador déficit habitacional persiste em níveis muito altos. E a tendência é crescer cada vez mais. A cada dia aumenta o número de pessoas que vivem em favelas, cortiços, casas de fundo ou em espaços públicos como marquises, calçadas, pontes, viadutos, beiras de estrada, encostas, margens de rios e áreas verdes. A falta de políticas públicas eficientes

Projetos Multissetoriais Integrados; (f) FNHIS: Programa de Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários, Habitação de Interesse Social, Ação de Provisão Habitacional de Interesse Social, Ação de Apoio a Planos Habitacionais de Interesse Social PLHIS), Ação de Apoio à Produção de Moradia. Fonte: Ministério das Cidades. Governo do Brasil. 24 Fonte: www.blogdaconstrucaocivil.com.br . Postagem de 21 de fevereiro de 2011. 25 Em março de 2010, a então Ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, declarou que o PAC 2 terá como meta a construção de mais 2 milhões de moradias. 26 Fonte: Ministério das Cidades. Ministro anuncia novo déficit habitacional durante o Fórum Urbano Mundial 5. Informe de 23/03/2010. www.cidades.gov.br.

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tem contribuído para a proliferação de assentamentos irregulares, loteamentos clandestinos e cidades de lona. Tudo isso mostra que a questão habitacional é extremamente complexa e passa pela diminuição das desigualdades sociais, pela melhor distribuição de renda, pelo acesso ao trabalho, educação e saúde – direitos sociais historicamente negligenciados no país.

6. A qualidade das moradias e o direito à cidade

Ao descrever o Brasil Holandês, Gaspar Barléu, biógrafo oficial de Maurício de Nassau, observou que as casas dos brasileiros eram toscas construções, com paredes de vara rebocada e telhado ripado de telhas ou palhas de coqueiro27. Duzentos anos depois, a educadora alemã Ina Von Binzer anotava que as habitações rurais situadas nas aristocráticas fazendas de café não passavam de cabanas sem janelas, feitas de tábua e recobertas por uma esteira de palha de milho. Essa realidade ainda persiste em muitas favelas e assentamentos irregulares. Homens, mulheres e crianças vivendo em condições miseráveis, absolutamente excluídos dos serviços públicos básicos.

Os contrastes entre as elites rurais – baseadas no patriarcalismo, na monocultura e nas práticas feudais – acentuaram-se com a separação entre a casa grande e a senzala. Esse fenômeno foi profundamente investigado pelo sociólogo Gilberto Freyre. A casa grande era o espaço onde se desenvolviam as relações de poder e de dominação. Simbolicamente a senzala representa não apenas a habitação do negro escravizado, como também a precariedade da moradia dos trabalhadores livres que residiam nas fazendas de cana-de-açucar ou de café. A decadência da aristocracia rural começou com a chegada de D. João VI ao Brasil, quando surge uma elite

27 BARLÉU, Gaspar. O Brasil Holandês sob o Conde Maurício de Nassau. Brasília: Editora do Senado Federal, 2009, p. 93. A 1ª edição da obra foi publicada em 1647. BIZER, Ina Von. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 50. A primeira edição da obra foi publicada em 1856.

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formada por autoridades, bacharéis e comerciantes, fortemente influenciada pelos valores europeus. Ela expandiu-se para cidades como Recife, Salvador e Rio de Janeiro, implantando novos valores e modos de vida. Ocupou áreas urbanas valorizadas, construindo casas, mansões e sobrados. Em contrapartida, os escravos alforiados e os mestiços aglomeram-se em áreas insalubres, construindo suas favelas e mucambos. Essa nova burguesia manteve o modelo social excludente e discriminatório, que se refletia na qualidade da moradia.

Embora a migração para as cidades tenha começado lentamente em meados do Século XIX, ela tornou-se mais expressiva na década de 30, quando começou a industrialização do Brasil. A partir daí o processo migratório passou a aumentar em proporções incontroláveis. Entre 1950 e 1970, cerca de 30 milhões de pessoas deixaram a zona rural para tentar a sorte nas cidades. Geralmente mão-de-obra desqualificada, parcialmente absorvida pelo mercado de trabalho em bases salariais degradantes. Desprovidos de poder aquisitivo, detentores de empregos precários ou mergulhados na economia informal, esses trabalhadores ocuparam espaços periféricos onde passaram a habitar em condições deploráveis.

Hoje, cerca de 81% da população brasileira habita em zonas urbanas, tornando o acesso à moradia uma das questões centrais da cidadania. Nesse sentido o direito à habitação adequada está fortemente vinculado ao direito à cidade: o seu exercício depende diretamente da gestão pública e não apenas da iniciativa privada. Possuir casa própria não basta. A efetividade depende de medidas governamentais concretas que assegurem aos moradores as condições mínimas de iluminação, água encanada, esgoto, transporte, saneamento etc.

Por que o direito à habitação adequada não avança na intensidade desejada? Existem algumas explicações para o déficit de efetividade. O poder político local não tem sido capaz de romper com os históricos vícios de apropriação do espaço urbano pela especulação imobiliária e pelo clientelismo assistencialista. A pressão das construtoras, empreiteiras de obras públicas, concessionários de

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serviços públicos e grupos hoteleiros tem sido um grande empecilho para a aplicação dos Planos Diretores Municipais. Essas empresas atuam junto às Câmaras de Vereadores e Poder Executivo para flexibilizar as regras e padrões legais para a aprovação de seus empreendimentos. Os projetos de revitalização e gentrificação aumentam significativamente o valor dos imóveis e empurram os pobres para espaços cada vez mais distantes, para periferias desprovidas de equipamentos comunitários ou sistemas de infraestrutura.

Por outro lado, o clientelismo com fins eleitoreiros tem sido responsável pela proliferação de loteamentos clandestinos e de favelas em áreas públicas, encostas ou espaços esbulhados dos legítimos proprietários. A omissão do poder público em cumprir a lei alimenta um sistema de dominação política dos setores mais pobres da população e ajuda a eleger candidatos vinculados ao crime organizado, que se comprometem a encobrir diversas formas de violação das leis municipais. Estimulam a irregularidade da posse de imóveis, transportes clandestinos, invasões de áreas verdes, comércio irregular, pirataria etc. Diante da precariedade das condições de vida, os moradores ficam dependentes de “pequenos favores” prestados por cabos eleitorais para melhorar a qualidade de vida da comunidade. O assistencialismo prolifera na ausência do Estado, suprindo a falta de profissionais de saúde, de segurança pública e transportes coletivos, alimentando um sistema de apropriação privada dos direitos sociais.

O resultado de tudo isso é a péssima qualidade de moradia, a contaminação das águas, os esgotos a céu aberto, a proliferação das áreas de risco, o aumento dos resíduos sólidos e as condições insalubres de vida, num claro desrespeito às normas ambientais. Os Planos Diretores estão completamente desacreditados pela falta de cogência e pela relativização dos seus dispositivos legais. Assim, a função social da cidade, o planejamento e a regulação urbana ficam severamente prejudicados.

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Enquanto isso surgem produtos imobiliários destinados à classe média alta como condomínios residenciais, prédios de luxo, chácaras e grandes loteamentos, edificados em imensas áreas urbanas. Os mais ricos criam um cordão de isolamento, protegidos por sofisticados equipamentos de segurança e de todas as facilidades necessárias ao conforto e bem-estar. Sem espaço para construir, os moradores de baixa renda são empurrados para periferias, alimentando ciclos de violência e exclusão social.

7. A crise de efetividade e o discurso concretizador no judiciário

Embora a moradia adequada seja um dos mais importantes direitos sociais proclamados pela Constituição de 1988, sua concretização ainda é tímida no Brasil. O déficit habitacional continua a crescer, mesmo diante da execução de políticas públicas no setor da construção civil. Os dados estatísticos demonstram que o quadro tende a se agravar. A questão não se resume ao acesso à casa própria; também abrange a qualidade das unidades residenciais. A nova exigência introduz ao debate temas como acessibilidade, localização, preço, infraestrutura, registro imobiliário e qualidade da construção.

Tudo isso implica a adoção de um discurso jurídico comprometido com a máxima efetividade do direito à moradia adequada, que tenha como paradigmas as diretrizes internacionais recomendadas pela ONU e o Estatuto da Cidade. A construção de unidades habitacionais está vinculada à urbanização racional, voltada para a promoção da boa qualidade de vida e para o acesso dos moradores aos serviços públicos básicos (escolas, postos de saúde, transportes coletivos, áreas de lazer, centros de compras etc.).

O constitucionalismo brasileiro vive um momento de grandes transformações. As idéias pós-positivistas asseguram vastos mecanismos hermenêuticos e argumentativos destinados à aplicação eficaz dos direitos sociais nas relações jurídicas entre Estado e cidadãos. Entre as ferramentas que podem ser utilizadas pelo Judiciário para compelir o poder público a cumprir as prestações positivas contidas no texto constitucional, destacam-se a força

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normativa dos princípios, a retórica jurídica e os novos métodos de interpretação28. A jurisprudência brasileira também superou a visão ultrapassada e imobilista da separação dos poderes como obstáculo ao controle jurisdicional dos atos do Poder Executivo. Esse fenômeno, mais conhecido como judicialização da política, permite que as ações ou omissões da Administração Pública sejam discutidas em juízo à luz da legalidade, moralidade, bem comum e preservação ambiental.

A ideia de força normativa da Constituição, tão cara à doutrina alemã, consolidou-se definitivamente na jurisprudência brasileira. Por sua influência, as normas de direitos sociais deixaram de ser meras cartas estatais de boas intenções para adquirir cogência e eficácia vinculante em relação ao Executivo, Legislativo e Judiciário. Até mesmo as normas programáticas – antes consideradas diretrizes longínquas, de difícil concretização – passaram a conter uma fortíssima carga de compulsoriedade, legitimando os magistrados a exigir dos governos a satisfação das “promessas” estampadas no texto constitucional. Ao se ver privada das prestações positivas essenciais à dignidade, sobrevivência e qualidade de vida, a população pode recorrer ao Ministério Público a quem cabe a tutela dos direitos da cidadania, mediante a instauração de inquéritos civis ou propositura de ações coletivas.

A aplicabilidade imediata é um elemento estruturante do constitucionalismo contemporâneo. O simples fato de os direitos fundamentais estarem prescritos na Constituição já lhes confere plena executoriedade, independentemente de norma infraconstitucional que os regulamente ou os clarifique. Significa que juiz poderá aplicá-los na solução de conflitos intersubjetivos de interesses que envolvam o Estado, os cidadãos ou as pessoas jurídicas. Nesse aspecto, o Judiciário assume o compromisso de concretizar os direitos humanos na realidade social, atuando como verdadeiro mediador entre a lei e o caso concreto que lhe é submetido. A visão inflexível de neutralidade

28 SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: Leituras Complementares de Direito Constitucional: Teoria da Constituição. Marcelo Novelino (org.). Salvador: Juspodium, 2009, p. 32.

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do juiz deu lugar à ideia de ativismo judicial na medida em que o magistrado passou a direcionar sua atuação para soluções vinculadas à plena efetividade da norma constitucional. Para isso deve desenvolver um discurso jurídico consistente e racional, baseado em normas-princípios ou sofisticadas técnicas hermenêuticas que atendam às demandas de concretização das liberdades públicas e dos direitos sociais.

Em países periféricos como o Brasil, a efetividade dos direitos sociais obedece à lógica da gradualidade. As condições econômicas, políticas e sociais impedem que eles sejam implementados imediatamente e de uma vez por todas. As circunstâncias fáticas e jurídicas ditam a dimensão de sua observância. É a chamada eficácia progressiva, que depende de fatores conjunturais. Ao magistrado cabe a otimização de tais direitos, expandindo ao máximo a sua abrangência mediante a superação dos obstáculos jurídicos e financeiros que se projetam em situações específicas. Alguns parâmetros balizam as decisões judiciais, entre eles o mínimo existencial e a proibição do retrocesso.

Com frequencia a efetividade dos direitos sociais esbarra em dificuldades orçamentárias – algumas reais, outras retóricas e enganadoras. De fato, a implementação de políticas públicas exige a alocação de recursos financeiros previstos nos orçamentos dos entes federativos. Muitas vezes o governante se vê impossibilitado de assegurar à população determinadas prestações positivas em virtude da escassez ou inexistência de receitas orçamentárias específicas. Os gastos estão sujeitos a rigorosos critérios legais que não podem ser contornados pela mera vontade do governante, que fica sujeito às sanções contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal e de Improbidade Administrativa.

Outras vezes a omissão do gestor é falaciosa, enganadora. Um véu que esconde o deliberado propósito de descumprir os direitos sociais. Ao serem responsabilizados em ações civis públicas, os governantes costumam invocar a “reserva do possível” para justificar o descumprimento prestacional. O problema é que tal argumento

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quase sempre está desacompanhado de provas objetivas da impossibilidade de satisfação do direito invocado. A tese de insuficiência de recursos financeiros tem sido rechaçada pela jurisprudência pátria quando desacompanhada de elementos probatórios objetivos que justifiquem a omissão. O STF já decidiu que “a cláusula da reserva do possível – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente auferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade29”.

Ora, o acesso à moradia adequada é um direito social indissociável do mínimo existencial. Sem ele, a sobrevivência e a qualidade de vida digna ficam seriamente ameaçadas. O Estado tem o dever de adimplir as prestações necessárias a assegurar as condições básicas de habitação contidas nas diretrizes internacionais e na legislação brasileira. Portanto a efetividade não se submete a juízos de oportunidade, conveniência ou discricionariedade do governante. O mandato popular não assegura plena liberdade ao gestor em apontar discricionariamente os setores em que as receitas devam ser aplicadas. As escolhas políticas básicas têm assento constitucional e devem ser satisfeitas pelos detentores do poder político no limite das condições orçamentárias existentes. O Judiciário exerce importante papel institucional na concretização dos direitos sociais, na medida em que impõe aos governos o dever de conformação ao texto constitucional, determinando o cumprimento das prestações civilizatórias fundamentais. Essa postura fortalece o Estado Democrático de Direito e promove a dignidade da pessoa humana.

29 Extrato da decisão monocrática do Ministro Celso de Mello na ADPF 45.

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8. CONCLUSÕES

O modelo constitucional brasileiro inspira-se no Estado do Bem-Estar Social, cujos princípios fundamentais são a universalidade, seguridade e proteção à cidadania. Embora os direitos sociais beneficiem a todos indistintamente, a atual conjuntura política exige que os programas sociais focalizem as camadas mais desassistidas da população. O Estado deve promover a igualdade de pontos de partida, assegurando aos mais pobres as condições mínimas para que cada um possa se desenvolver de acordo com seus talentos e aspirações no jogo da vida.

O Governo brasileiro tem propalado o compromisso político de erradicar a miséria e reduzir a pobreza, numa clara evocação atenuada ao comando contido no art. 3º, III, da Constituição Federal. Isso só é possível mediante a canalização de recursos cada vez maiores para o financiamento de políticas públicas voltadas para os “miseráveis” e “pobres”. A crise social deve ser, por conseguinte, enfrentada a partir da estratégia de priorizar as ações estatais focalizadas em populações vulneráveis, sem desprezar as prestações universais (erga omnes). O primeiro desafio consiste em definir essas categorias sociais diante da diversidade de critérios propostos.

Grosso modo, o indivíduo é considerado miserável quando a renda familiar é insuficiente para adquirir cesta básica que atenda as suas necessidades nutricionais. Já o pobre é aquele que tem acesso precário e insuficiente à alimentação, moradia, trabalho, transporte e outros direitos sociais. Para o Banco Mundial, miserável é aquele que recebe até US$ 1,00 por dia; pobre, o que não supera a marca dos US$ 2,00/dia. A priorização das políticas públicas sobre essas camadas populacionais é uma questão de justiça social, de concretização do “mínimo existencial” – corolário de uma sociedade solidária e igualitária. A partir do momento em que as necessidades básicas estiverem satisfeitas, poderemos caminhar para a convergência entre as ações focalizadas e universais. Por enquanto as desigualdades podem ser combatidas através de transferências de rendas, relocação de recursos públicos para programas de promoção da casa própria,

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saúde, geração de empregos, educação fundamental e profissionalizante, segurança alimentar etc30.

A opção pela erradicação da miséria e a redução da pobreza não implica o rompimento com a universalidade dos direitos sociais. As prestações positivas não são prerrogativas exclusivas dos miseráveis e pobres. Ao contrário. As políticas públicas devem beneficiar a população, inclusive a classe média. Porém, o atual momento histórico exige que os recursos disponíveis sejam prioritariamente canalizados em benefício daqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade. É uma questão de justiça social, de acesso aos bens de consumo e aos serviços estatais de boa qualidade. As políticas públicas destinadas à população carente funcionam como verdadeiras “normas de calibragem”, na medida em que contribuem para o equilíbrio das relações sociais e promovem a igualdade de oportunidades na fruição dos bens da vida. Mas isso não impede que as ações governamentais ampliem-se gradativamente até atingir a totalidade da população.

É evidente que a execução dessas ações sociais tem como maior obstáculo a escassez de recursos financeiros. Mas é necessário que a República se comprometa com o aumento de verbas orçamentárias destinadas às políticas públicas concretizadoras dos direitos humanos fundamentais. É preciso buscar novas fontes de financiamento, o que só será possível com uma reforma tributária consistente que reduza a forte concentração de renda nas mãos de poucos e que possibilite reverter a lógica de desenvolvimento concentrador e excludente, tornando os direitos sociais realidades aferíveis empiricamente na sociedade brasileira31.

30 BAVA, Silvio Caccia. Recuperar as perdas. In: Le Monde Diplomatique Brasil, número 43, fevereiro 2001, p. 5; FAGNANI, Eduardo. Como conquistar o desenvolvimento social. In: Le Monde Diplomatique Brasil, número 43, fevereiro 2001, p. 7. 31 BAVA, Silvio Caccia. Recuperar as perdas. In: Le Monde Diplomatique Brasil, número 43, fevereiro 2001, p. 5; FAGNANI, Eduardo. Como conquistar o desenvolvimento social. In: Le Monde Diplomatique Brasil, número 43, fevereiro 2001, p. 7.

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Nesse contexto, o direito à moradia adequada surge como um verdadeiro pilar do constitucionalismo brasileiro, devendo figurar entre as ações prioritárias do Governo. A estratégia exige medidas como geração de empregos e renda, transferência monetária para as famílias carentes, créditos hipotecários subsidiados, economia solidária, entre outros investimentos sociais. Como a moradia depende da efetividade do direito à cidade, o Estado deve combater a crise urbana com fortes investimentos em pavimentação, transportes coletivos, saneamento básico, fornecimento d’água e coleta de lixo.

Os programas de construção da casa própria são uma poderosa ferramenta para incluir as famílias carentes no consumo de bens e serviços básicos, fortalecendo o “sentimento de pertença” à comunidade. As políticas de habitação devem ser configuradas no âmbito de um pacto federativo que integre a União, os Estados, os Municípios e a sociedade civil como vetores de efetividade dos direitos sociais.

Instituições como o Ministério Público e os Tribunais de Contas têm o dever institucional de exercer o controle externo das políticas habitacionais, a fim de prevenir e reprimir os atos de improbidade administrativa e a gestão perdulária dos recursos públicos destinados ao setor. A população também pode contribuir denunciando os abusos e participando ativamente das decisões governamentais que afetem sua qualidade de vida. O exercício da cidadania é essencial para os avanços e as transformações sociais, sobretudo para a formatação de políticas redistributivas dos tributos arrecadados pelo Estado.

Enfim, o direito à moradia adequada só será efetivado de forma satisfatória, priorizando-se os setores mais carentes da população brasileira na fruição dos benefícios trazidos pela execução das políticas públicas. As omissões administrativas devem ser mediadas pelo Judiciário, a quem cabe fortalecer cada vez mais o discurso jurídico concretizador dos direitos fundamentais. Diante de um cenário em que os recursos financeiros são escassos e as necessidades sociais ilimitadas, a atividade judiciária deve se voltar para a garantia do mínimo existencial, a aplicação racional das verbas públicas e o sistemático combate à corrupção.

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NORMAS E DECISÕES DO TRIBUNAL EUROPEU E DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: aproximações comparativas em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais

Jayme Benvenuto1

Rodrigo Deodato de Souza Silva2

As últimas décadas foram marcadas pelo crescente acionamento jurídico internacional em torno dos direitos humanos. Pessoas individualmente consideradas e entidades da sociedade civil organizada de todo o mundo têm acionado regularmente os sistemas global e regionais de proteção dos direitos humanos, diante da consciência de que os Estados são, muitas vezes, ineficientes, coniventes ou mesmo autores em situações de violação a direitos humanos.

Enquanto o sistema das Nações Unidas, também chamado de sistema global de proteção dos direitos humanos, tem sido uma via importante para “prevenir conflitos internos”, através de mecanismos de intervenção política que visam o “fortalecimento de instituições nacionais para solucionar questões relacionadas a direitos humanos”3, os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos visam decidir controvérsias que não tiveram solução no plano das jurisdições domésticas dos Estados, compondo um meio jurisdicional internacional de solução de conflitos, em princípio de acordo com a regra do esgotamento dos recursos internos.

1 Professor Doutor de Direito Internacional Público. Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Católica de Pernambuco e Catedrático da Cátedra UNESCO/UNICAP Dom Helder de Direitos Humanos 2 Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e Assessor Jurídico em Direitos Humanos Internacionais do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares – GAJOP 3 (United Nations, 2000).

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A utilização desses sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos não implica, no entanto, no abandono do uso dos sistemas nacionais. Ambos devem ser fortalecidos, na perspectiva do pleno respeito aos direitos humanos. No plano internacional, o desafio é, mediante instrumentos e mecanismos de proteção, ampliar as condições de respeito aos direitos humanos.4

Com vistas a uma perspectiva comparada de dois dos principais sistemas regionais de proteção aos Direitos Humanos – os sistemas europeu e interamericano -, faz-se necessário trabalhar as sentenças dessas instâncias internacionais com base em dois vieses de observação, a saber: a) a base normativo-funcional, por meio da qual serão feitas aproximações relacionadas às principais diferenças e convergências existentes entre os dois sistemas do ponto de vista das normas que lhes dão existência e operacionalidade; e, b) a base de conteúdo das sentenças emitidas pelas Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de melhor compreender os caminhos trilhados pelos dois tribunais para a adoção de suas sentenças, com ênfase nas relacionadas aos casos comentados.

1. A base normativo-funcional dos sistemas europeu e interamericano de direitos humanos

Os sistemas europeu e interamericano de proteção dos direitos humanos refletem o desenvolvimento das organizações que os acolhem – o Conselho da Europa e a Organização dos Estados Americanos, respectivamente - de igual maneira ao que acontece com o sistema das Nações Unidas. Ao longo do período de sua existência, apesar da enorme dificuldade em consolidar o projeto de organismos regionais garantidores de um padrão de convivência pacífica entre os países da Europa e das Américas, tem sido possível estabelecer e fazer funcionar sistemas de proteção que – amparados no princípio da indivisibilidade dos direitos humanos – viabilizem alguma

4 (Benvenuto., 2005)

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proteção para os direitos humanos econômicos, sociais e culturais, além dos tradicionais direitos humanos civis e políticos. O primeiro, tendo como base, em especial, a Convenção Européia de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais e a Carta Social Européia; e o segundo, com base, em especial, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Apesar dessa possibilidade crescente de proteção, os dois sistemas regionais evidenciam um padrão diferenciado de proteção para os direitos humanos econômicos, sociais e culturais em relação aos direitos humanos civis e políticos. A começar pela ratificação dos tratados pelos Estados que integram as organizações internacionais correspondentes, que demonstram possuir mais resistências em relação ao comprometimento com normas relativas à proteção dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais que em relação às normas que protegem os direitos humanos civis e políticos. Com efeito, em relação ao sistema interamericano, enquanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ["Pacto de San José da Costa Rica"], de 1969, foi ratificada por 25 Estados5 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ["Convenção de Belém do Pará"], de 1994, foi ratificada por 31 Estados6, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ["Protocolo de San Salvador"], de 1988, foi ratificado apenas

5 Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. (Organização dos Estados Americanos. Sistema..., 2011) 6 Antigua y Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Colombia, Costa Rica, Chile, Dominica, El Salvador, Equador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, São Vicente, Santa Lúcia, St. Kitts e Nevis, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. (Organização dos Estados Americanos. Sistema..., 2011)

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por 14 Estados da região americana [56 % dos estados que ratificaram a Convenção Americana]7.

O padrão de menor aceitação para a normativa relacionada aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais repete-se no sistema europeu de proteção dos direitos humanos, em que a Convenção Européia de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, de 1953, foi ratificada por 43 Estados8, enquanto que a Carta Social Européia, de 1961, foi ratificada por 36 Estados [83% dos Estados que ratificaram a Convenção Européia]9; e – é importante destacar - a Carta Social Européia Revisada, em 1996, foi ratificada até o momento por apenas 19 Estados [44 % dos Estados que ratificaram a Convenção Européia]10. Observe-se, ademais, que os instrumentos internacionais regionais relativos à proteção de direitos humanos econômicos, sociais e culturais – o "Protocolo de San Salvador" e a Carta Social Européia - são mais recentes que os relacionados a direitos humanos civis e políticos, o que poderia supor alguma mudança na postura dos países em aceitar os tratados correspondentes, tendo em vista a maior aceitação do princípio da

7 Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, México, Panamá, Paraguai, Peru, Suriname e Uruguai. Id. 8 Albânia, Alemanha, Andorra, Armênia, Áustria, Azerbaijão, Bélgica, Bósnia e Herzegozina, Bulgária, Croácia, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Ex-República Iugoslava da Macedônia, Finlândia, França, Geórgia, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Latvia, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Moldova, Noruega, Polônia, Portugal, Reino Unido, Romênia, República Tcheca, Rússia, San Marino, Sérvia e Montenegro, Suécia, Suíça, Turquia e Ucrânia. (United Nations. Ratifications..., 2011) 9 Albânia, Alemanha, Andorra, Armênia, Áustria, Azerbaijão, Bélgica, Bulgária, Croácia, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Latvia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Moldova, Noruega, Polônia, Portugal, Reino Unido, Romênia, República Tcheca, Suécia e Turquia. United Nations. Ratifications... 10 Albânia, Andorra, Armênia, Azerbaijão, Bélgica, Bulgária, Chipre, Eslovênia, Estônia, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Lituânia, Moldova, Noruega, Portugal, Romênia e Suécia. (United Nations. Ratifications...,2011)

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indivisibilidade dos direitos humanos com o fim da guerra fria, a partir do início da década dos 90 do século XX.11

Apesar dos limites aqui revelados quanto à normatividade do sistema interamericano de direitos humanos, especialmente em comparação com o sistema europeu, é surpreendente que aquele tenha conseguido produzir sentenças com uma abordagem mais claramente identificada com a proteção dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais que o seu correspondente europeu, em que pese a grande limitação imposta pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos [em sua restrição quase que exclusiva a direitos humanos civis e políticos] e pelo Protocolo de San Salvador [em sua limitação real a direitos sindicais e à educação]. A nova Corte Européia de Direitos Humanos, surgida do Protocolo no. 11 à Convenção Européia de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, embora com o grande mérito de reconhecer o acesso direto e irrestrito dos indivíduos à sua jurisdição, ainda deve às vítimas européias sentenças acordes ao disposto na Carta Social Européia. Com efeito, pela Carta Social Européia Revista, os Estados membros do Conselho da Europa comprometem-se a assegurar às suas populações uma grande gama de direitos sociais ali

11 O padrão desigual de ratificação de tratados relacionados a direitos humanos civis e políticos e a direitos humanos econômicos, sociais e culturais não se repete no sistema de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas, embora a realização dos direitos “sociais” encontre a mesma dificuldade no plano global: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, foi ratificado por 160 Estados, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, foi ratificada por 185 Estados [em que pese toda a resistência de vários países à igualdade de gênero], a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, foi ratificada por 192 Estados, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1966, foi ratificada por 173 Estados, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966 [adotado pelas Nações Unidas no mesmo momento do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos], foi ratificado por 160 Estados partes. Situação atualizada em 11 de julho de 2011. (United Nations. Ratifications..., 2011)

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especificados, a fim de melhorar o seu nível de vida e promover o seu bem-estar.12

A quantidade de casos – recebidos, processados e sentenciados – é outro ponto distintivo entre os sistemas europeu e interamericano de direitos humanos. Com efeito, como vimos, a nova Corte Européia passou a exercer sua competência mediante a divisão do organismo em salas [chambers], na perspectiva de agilizar os procedimentos em face do volume de casos, cada vez em maior número em função da ampliação do conhecimento e do acesso ao sistema, mas também da crescente entrada de novos Estados-membros. O mais importante a destacar na alteração verificada no sistema europeu é, como visto, exatamente a prevalência da sua função contenciosa na proteção dos direitos humanos, embora o sistema continue prevendo e fazendo valer a possibilidade de solução amistosa de casos, o que em nada diminui a sua capacidade de justiciabilidade. As tabelas a seguir dão a dimensão da capacidade, em termos quantitativos, de realizar direitos humanos por meio de casos decididos pelas Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos [ao longo de suas existências].

12 “The European Social Charter is the counterpart of the European Convention of Human Rights in the field of economic and social rights. It covers a broad range of rights related do housing, health, education, employment, social protection an non-discrimination.” (Council of Europe. 2002: 7).

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Casos Contenciosos julgados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos – 1959 - 201013

13 (Conseil de L’Europe, 2010)

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Casos Contenciosos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – 1980 - 201014

País15 16 No. casos Peru 28 Guatemala 14 Colômbia 13 Equador 09 Argentina 08 Honduras 08 Paraguai 08 Venezuela 08 México 08 Suriname 05 Brasil 05 Chile 04 Panamá 04 Nicarágua 04 Bolívia 03 El Salvador 03 Trinidad e Tobago 03 República Dominicana 02 Barbados 02 Costa Rica 01 Haiti 01 Uruguai - Total 138

14 Levantamento realizado pelos autores a partir de informações disponíveis na página: http://www.corteidh.or.cr/paises/index.html. (Corte Interamericana de Derechos Humanos. Jurisprudencia..., 2011) 15 Estados americanos que ratificaram a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e aceitaram a jurisdição da competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 16 Anos em que os estados aceitaram a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos: 1980: Costa Rica; 1981: Hondura, Peru e Venezuela; 1984: Argentina e Equador; 1985: Uruguai; 1987: Guatemala e Suriname; 1990: Chile e Panamá; 1991: Nicarágua e Trinidad e Tobago; 1993: Paraguai e Bolívia; 1995: Colômbia e El Salvador; 1998: Brasil, México e Haiti; 1999: República Dominicana; 2000: Barbados.

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Pode-se perceber que enquanto apenas no ano de 2010 o Tribunal Europeu de Direitos Humanos julgou um montante de 1499 casos, apenas 138 demandas foram apreciadas pela Corte Interamericana, nas últimas três décadas. Outro fator comparativo se evidencia quando da apreciação do número de casos julgados por país tanto pela Corte Interamericana [Tabela anterior] quanto pelo Tribunal Europeu, conforme apresentado nas duas tabelas abaixo:

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A observação das tabelas pode ensejar uma diferença de natureza política a marcar os dois sistemas. Enquanto o sistema europeu tem demonstrado a capacidade – graças à ratificação universal e incondicionada da Convenção Européia – de sentenciar indiscriminadamente os países da região [os maiores e os menores, os mais ricos e os menos ricos, os com maiores e com menores contingentes populacionais, os com maior e os com menor significado histórico], o sistema interamericano ainda não demonstra a mesma capacidade – fato este explicado pela ratificação parcial e condicionada da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Com relação à afirmativa desde o início apresentada, sobre a crescente utilização dos sistemas de Proteção aos Direitos Humanos por indivíduos e grupos organizados da Sociedade Civil, podemos observar com maior clareza tal fato a partir dos dados apresentados nos Relatórios desses organismos. Apesar dos dados sobre as denúncias recebidas e os casos processados pela Comissão Interamericana – órgão do Sistema Interamericano responsável pela promoção e proteção dos Direitos Humanos - não estarem consistentemente apresentados em seus relatórios anuais, os mesmos indicam um aumento significativo no número de denúncias ao longo dos anos.17 Em 1969 e 1970, por exemplo, foram encaminhadas à Comissão um total de 217 petições, metade do número recebido no ano de 1997 [435 casos].18 Esse número continuou a crescer nos anos seguintes, chegando ao montante de1325 casos recebidos em 2006.19 Nesse caminho ascendente, a quantidade de casos chegou a seu ápice em 2009, com o recebimento de 1625 casos.

Importa também destacar o caráter, além de obrigatório, vinculante das decisões da Corte Européia de Direitos Humanos em relação a todos os Estados-membros da Convenção Européia. Assim, a grande importância das sentenças da Corte Européia de Direitos Humanos está no método de interpretação adotado, que permite

17 (Santos, 2007: 37) 18 Comisión Interamericana de Derechos Humanos (2007) 19 Comisión Interamericana de Derechos Humanos (2007)

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amplificar suas decisões sobre os países da região, mediante o condicionamento a modificações procedimentais e legislativas no plano nacional. Tais elementos representam a ampliação da capacidade de justiciabilidade e de cumprimento regional do sistema europeu, que, com efeito, é o seu ponto alto.

2 A base de conteúdo das sentenças das cortes européia e interamericana de direitos humanos

Cabe ressaltar, inicialmente, que os sistemas europeu e interamericano de proteção dos direitos humanos possuem métodos diferentes de abordagem dos casos e tomada de decisão. Enquanto o sistema europeu funciona com base em um formato de referências comparativas entre os Estados [principalmente no que se refere às legislações nacionais] que lhe permitem alcançar avanços progressivos, o sistema interamericano possui um método de julgamento concentrado no caso concreto em referência a cada país. Ao assim atuarem as Cortes Européia e Interamericana obedecem a definições básicas da normativa dos organismos que as comportam, que por sua vez se orientam por definições políticas que conformam o Conselho da Europa e a Organização dos Estados Americanos.

A respeito do sistema europeu, Carozza levanta três princípios orientadores da jurisprudência do Tribunal Europeu. O mesmo entende que em primeiro lugar, embora a convenção valha-se de seu vocabulário de uso comum e das tradições constitucionais dos Estados-membros, o Tribunal dará a essas palavras um significado específico para fins de interpretação da Convenção, a partir de fontes internas ao próprio sistema europeu. O TEDH tem adotado uma postura dinâmica para interpretar a Convenção, buscando compreender os termos do tratado não em seu contexto original, mas à luz da sociedade européia contemporânea, o que constitui o segundo princípio orientador. Por fim, o terceiro princípio, aquele mais diretamente importante para nossos fins, o Tribunal desenvolveu a doutrina da margem de apreciação, a qual busca compatibilizar os Estados Membros com o sistema europeu de

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direitos humanos mediante a preparação dos órgãos nacionais para a declaração de violações a direitos humanos.20

A preocupação do sistema europeu, portanto, é claramente voltada para uma compatibilização de decisões em relação às tradições jurídicas dos países do sistema, na perspectiva de uma progressiva criação de uma tradição européia de proteção dos direitos humanos. A propósito da chamada margem de apreciação [‘margin of appreciation’]21 no método adotado pela Corte Européia de Direitos Humanos, é significativa a comparação – ou compatibilização - que o método promove em relação a países com status político, jurídico, social e cultural semelhante, com o que estaria indo além do denominado consenso europeu22, mas no sentido de alcançar avanços progressivos, inicialmente, sub-regionais, e posteriormente, regionais.

Considerando a diferença entre os sistemas nacionais que compõem o sistema europeu de direitos humanos, poder-se-ia dizer que o método produz efeitos diferentes para os países do sistema, pelo menos num momento inicial. Se é verdade que o estudo comparativo em certos casos poderia dar lugar a uma relativização dos padrões internacionais universais de direitos humanos, como acusam alguns autores, a diferença propiciada pelo método pode ser vista como um procedimento auxiliar na realização da

20 (Carozza, 1998) 21 A margem de apreciação foi definida por Mahoney como “the dividing line between the powers of the state and those of the Court”. Numa perpectiva extremamente restritiva, Michael O’Boyle diz que “the margin of appreciation means that the Court should give way to the Government’s decisions because it knows the situation better and can judge what actions are required.” Crysler, 1994. 22 “[...] the Court went on to compare the French laws and the English Laws at issue in the Rees and Cossey cases, precisely with regard to some of these details it claimed to be beyond a European consensus. In France, in contrast to England, a transsexual’s difficulty in changing her name and identification documents to reflect her apparent sex was so onerous that the applicant found herself ‘daily in a situation which, taken as a whole, is not compatible with the respect due to her private life. Consequently, even having regard to the State’s margin of appreciation … there has thus been a violation of article 8.” Ibid., p. 1223.

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progressividade dos direitos humanos, progressividade essa usada em seu sentido apropriado, ou seja, na busca da ampliação da garantia de direitos, num horizonte de equiparação de todo o sistema num horizonte razoável de tempo.23

De acordo com essa visão do método interpretativo da Corte Européia, haveria uma certa independência desta em relação ao conjunto das tradições nacionais - tendo em vista a incapacidade atual de compatibilizá-las todas e de uma só vez e a busca do bem comum em termos supranacionais – e uma certa dependência em relação a componentes políticos, orientada pela busca de maior alcance futuro para suas decisões. Essa característica pode explicar a decisão de garantir ganho de causa a Lustig-Prean e Beckett [no caso Lustig-Prean e Beckett contra o Reino Unido] no que se refere à indenização pela discriminação por orientação sexual sofrida e afirmada pela Corte, mas não fazê-lo no que se refere à reincorporação dos denunciantes às Forças Armadas, o que equivale a um ganho relativo para os denunciantes e a uma perda relativa para o Estado respectivo.24 O método revelaria a preocupação da Corte e do sistema europeus com a capacidade de absorção das suas decisões no plano nacional, além da busca em acomodar decisões individuais na perspectiva de garantir-lhes efeitos coletivos de maior alcance num futuro próximo. O próprio caso Lustig-Prean e Beckett contra o Reino Unido é um bom exemplo para a afirmação aqui sustentada, como será destacado na sequência.

A decisão insere-se no contexto de uma série de decisões da Corte Européia – o mesmo pode-se dizer em relação à Corte Interamericana de Direitos Humanos - em que a base originalmente relacionada a direitos humanos civis e políticos passa a ser vista e tratada como uma oportunidade para ressaltar a dimensão relacionada a direitos humanos econômicos, sociais e culturais.

23 (Benvenuto, 2005) 24 “As a supranational institution, the Court faces a genuine difficulty over its proper role. The whole enterprise of rights protection on this scale requires a delicate balance between national sovereignty and international obligation.” Citando o Juiz da Corte Européia, R. St. J. Macdonald, Carozza, 1998. p. 1223.

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Da observação do caso Frydlender contra a França, apresentado ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, denota-se evidente que ele possui menor proximidade com os direitos humanos econômicos, sociais e culturais, embora a sentença seja clara em querer proteger tais direitos. A dita sentença declara que a “decisão adotada pela Corte deve ser encarada como alusiva ao restabelecimento, ao menos parcialmente, dos direitos sócio-econômicos e culturais do trabalhador peticionário”.

A pouca proximidade desse caso com os direitos humanos econômicos, sociais e culturais deve-se ao fato de que embora o fundo da questão seja relacionado a uma questão social, é mais que tudo o elemento indenizatório que os torna dignos da referência aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais.

Está-se diante de uma decisão que se vale da idéia da indivisibilidade para garantir direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais pela via do direito de acesso à justiça. O direito de acesso à justiça, numa dimensão ampla, afinal, era o que estava em disputa no caso. Em conexão com o direito de acesso à justiça, no caso mencionado, coloca-se a discussão sobre a margem de apreciação que os Estados possuem para determinar o que faz parte dos interesses públicos. Ao assegurar que essa margem de apreciação não é ilimitada, e que seu exercício está sujeito à revisão, a Corte Européia reforçou a noção de pleno acesso à justiça.

Nos caso cujo titular principal é Frydlender, o elemento demora excessiva no sofrimento do denunciante, sem que a justiça nacional fosse capaz de solucionar as questões, foi utilizado com o sentido de reparar a vítima, ao menos no que se refere ao aspecto patrimonial. Assim, o Tribunal considerou, entre outros elementos, que “o prolongamento dos processos além de um tempo razoável causou dificuldades consideráveis ao denunciante, além de um longo período de incerteza, o que justificava o pagamento de uma indenização”. Ao proceder dessa forma, a Corte estava garantindo o exercício de direitos sociais, ao mesmo tempo em que alguma proteção individual para o denunciante, numa flagrante combinação

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entre direitos coletivos e individuais. Embora a base legal para as decisões seja uma violação a um direito eminentemente civil [o direito a um julgamento justo], o fundo da proteção buscada é relacionado a um direito social [o direito ao trabalho]. Ao contrário de constituir esta uma prática reveladora da prevalência para os direitos humanos civis e políticos, revela-se mesmo é o reconhecimento prático do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos.

No caso Lustig-Prean e Beckett, diversamente, embora vejamos igualmente imbricados interesses e direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, ressalta-se o reconhecimento do direito à cultura – embora pela via da indenização por discriminação na demissão de função pública. O caráter cultural parece claro, também, na medida em que o alcance dos direitos vem se tornando gradativamente possível numa base de incorporação cultural da diversidade. Além das inúmeras mudanças legislativas que foram feitas no Reino Unido após 1966, num contexto de democratização cultural, a decisão da Corte Européia de Direitos Humanos acelerou um processo que tem uma de suas marcas no próprio caso. Se por um lado a referência a um período mais longo de transformações culturais pode ensejar a idéia de que a decisão da Corte apenas veio agilizar um processo iniciado há mais tempo, no contexto do direito consuetudinário britânico, por outro o fato não pode servir para retirar importância à decisão da Corte. Em Lustig-Prean e Beckett, também sem se referir ao princípio da indivisibilidade, a Corte parece minimizar a preocupação relacionada à violação de direitos civis e políticos, e concentrar-se sobre os aspectos sociais e culturais.

A decisão, no caso Lustig-Pream e Beckett contra o Reino Unido insere-se no contexto de uma série de decisões das Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos em que a base originalmente relacionada a direitos humanos civis e políticos passa a

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ser vista e tratada como uma oportunidade para ressaltar a dimensão relacionada a direitos humanos econômicos, sociais e culturais.25

Embora estejamos falando de métodos diferentes utilizados pelas Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos, são semelhantes, pelo menos em relação a certos casos, os resultados a que chegam os dois tribunais. No caso Baena Ricardo e Outros contra o Panamá, não resta dúvida de que as reivindicações dos trabalhadores ao governo panamenho eram de natureza trabalhista, sendo as mesmas que motivaram a intervenção do Estado julgada na sentença de mérito da Corte Interamericana. Mesmo não fazendo menção clara ao princípio da indivisibilidade dos direitos humanos – fato incomum em se tratando da Corte Interamericana de Direitos Humanos - a sentença trata da proteção a direitos humanos num sentido amplo, incluindo os de natureza econômica, social e cultural. Para além de determinar em que momento um direito sindical é um direito humano civil e político e em que momento é um direito humano econômico, social e cultural, a Corte acatou a idéia de que as demissões dos 270 trabalhadores estatais aconteceram em razão da organização para motivar e promover uma marcha e paralisação com vocação trabalhista e sindical e de que a deliberação do governo panamenho afetava a capacidade política de organização dos sindicatos, com o que se estava afetando também a capacidade dos trabalhadores gozarem direitos sindicais e trabalhistas numa perspectiva social. A negação do acesso à justiça aos trabalhadores para recorrer da decisão governamental implicava na “perda concreta de direitos humanos econômicos, sociais e culturais”, a juízo da Corte Interamericana, o que equivale a dizer que os direitos humanos possuem dimensões diversas: civis, políticas, econômicas, sociais e culturais.

No caso Mayagna Awas Tigny contra a Guatemala, a situação social dos índios da região foi claramente reconhecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como a de um povo tradicional marginalizado. A necessidade de titulação de terras

25 (Benvenuto, 2005)

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ancestrais para o povo, portanto, era inquestionável. Com a sentença, a Corte Interamericana demonstrou a capacidade de absorver aspectos importantes do direito indígena tradicional, ao mesmo tempo em que os compatibilizava com a normativa internacional regional de proteção dos direitos humanos. Além de sua história e cultura, a legitimidade indígena para requerer a propriedade de terras ancestrais encontra-se na função social da propriedade, garantida pelas normas constitucionais contemporâneas. Estamos diante, claramente, de uma decisão com todos os elementos requeridos para entendê-la como alusiva à proteção dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais, sem que, para tanto, direitos humanos civis e políticos tenham sido desconsiderados26.

Uma última observação sobre as sentenças das duas cortes – embora se trate, aqui, de um aspecto mais formal que de conteúdo - revela a maior profundidade das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação às emitidas pela Corte Européia, o que se pode constatar da quantidade de provas colhidas e examinadas [documentos, testemunhos, perícias]. A propósito, as sentenças observadas do Tribunal Europeu de Direitos Humanos valeram-se em muito menor monta da produção de perícias e da ouvida de testemunhas, em comparação com as sentenças da Corte Interamericana. Apenas no caso Baena Ricardo e Outros contra o Panamá, a Corte Interamericana de Direitos Humanos colheu mais de uma centena de provas documentais e ouviu 11 testemunhas e 3 peritos.

De igual forma tal realidade se evidencia quando da capacidade de análise das situações fáticas. As sentenças da Corte Européia de Direitos Humanos variam muito de formato e, no que se refere estritamente às analises dos casos, apresentam posições com um certo grau de generalidade, à exceção da sentença do caso Lustig-Prean e Beckett contra o Reino Unido, que possui maior rigor no seu embasamento. Já as sentenças da Corte Interamericana apresentam um formato padrão de apresentação e análise dos casos, valendo-se

26 (Benvenuto, 2005)

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de uma estrutura que pode ser assim apresentada: 1. Introdução; 2. Procedimento perante a Comissão; 3. Procedimento perante a Corte; 4. Valoração da prova [documental, testemunhal e pericial]; 5. Fatos provados; 6. Considerações de fundo; 7. Análise dos artigos da Convenção; 8. Pontos resolutivos.

Outro dado que fortalece essa evidência é a quantidade de páginas utilizadas para prolatar as sentenças. A sentença [de exceções preliminares, mérito e reparação] do caso Frydlender contra a França e Lustig-Prean e Beckett contra o Reino Unido, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, possuem, respectivamente, 18 e 56 páginas. As sentenças [de exceções preliminares, mérito e reparação] dos casos Baena Ricardo e Outros contra o Panamá e Mayagna Awas Tigny contra a Guatemala, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, possuem, respectivamente, 147 e 106 páginas. O pragmatismo que caracteriza o sistema europeu pode contribuir para explicar o fato, que é comentado com fortes cores por Carozza ao referir-se às características do sistema europeu e de sua Corte: “As características apenas comparativas do "método" do Tribunal em que praticamente todos os pesquisadores concordam são a sua falta de profundidade, rigor e transparência. ”27

Embora não concordando com as fortes cores do autor, importa ressaltar que as sentenças estudadas da Corte Interamericana de Direitos Humanos são mais profundamente elaboradas que as da sua correspondente européia.

Conclusão

A convicção de que a realização prática dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais, tanto no plano nacional quanto no plano internacional, vem sendo negligenciada em relação aos direitos humanos civis e políticos, tendo em conta a visão de que

27 “The only characteristics of the Court’s comparative ‘method’ on which virtually all commentators have agreed are its lack of depth, rigor, and transparency.” Carozza, 1998. p. 1225.

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os direitos humanos econômicos, sociais e culturais seriam realizáveis apenas progressivamente, é visivelmente presente quando da análise comparada dos sistemas interamericano e europeu de proteção dos Direitos Humanos. A partir dessa compreensão, constata-se a necessidade de validade e afirmação do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos.

Com base na construção histórica de sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, foram apresentados os elementos fundamentais de dois dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos – o sistema europeu e o interamericano - de modo a demonstrar a existência de base normativa, funcional e política para a garantia dos direitos humanos no plano internacional, os quais possuem a dimensão prática de ir além da mera declaração de direitos. Ao longo do tempo, apesar da enorme dificuldade em consolidar o projeto de organismos regionais garantidores de um padrão de negociação da convivência pacífica entre os países da Europa e das Américas, tem sido possível ao Conselho da Europa e à Organização dos Estados Americanos estabelecer sistemas de proteção que – amparados no princípio da indivisibilidade dos direitos humanos – viabilizassem alguma proteção para os direitos humanos econômicos, sociais e culturais, além dos tradicionais direitos humanos civis e políticos. O primeiro, tendo como base a Convenção Européia de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais e a Carta Social Européia; e o segundo, com base na Convenção Americana de Direitos Humanos e principalmente no Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. É importante destacar, em relação aos dois sistemas, sua capacidade de reparar violações aos direitos humanos.

É patente, no entanto, a distância que ainda existe em relação ao padrão de proteção dos direitos humanos civis e políticos no que se refere aos sistemas regionais de direitos humanos. Apesar da importância da Convenção Européia de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aqueles instrumentos normativos restringiram a proteção

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dos direitos humanos basicamente aos direitos humanos civis e políticos, optando por deixar a proteção aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais para uma etapa posterior, o que não vem impedindo que avanços sejam feitos no sentido de validar praticamente tais direitos, como se pôde ver da exposição e comentários relacionados a casos julgados pelas duas cortes regionais.

As duas sentenças da Corte Européia e as duas da Corte Interamericana de Direitos Humanos relacionadas à proteção de direitos humanos econômicos, sociais e culturais, tendo por base o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, invocado direta ou indiretamente, bem demonstram a emergência da questão social nos nossos dias, assim como – sobretudo – a possibilidade prática da justiciabilidade de tais direitos. Para tanto, foram invocados os princípios da igualdade, e feitos os vínculos com o direito à cultura, o direito ao trabalho, o direito à previdência, o direito à propriedade, entre outros.

Com base na análise das referidas sentenças, foi possível demonstrar as limitações e as possibilidades dos sistemas internacionais regionais de proteção, nesse (ainda) início de século, em que pese serem os mais desenvolvidos sistemas de proteção dos direitos humanos com que já se contou na história. Evidencia-se, assim, de pronto a contradição que evidencia as limitações de sistemas [ainda] condicionados – e muito – à política regional, mas que, mesmo assim, são capazes de garantir praticamente a proteção a certos direitos sociais com base no princípio da indivisibilidade dos direitos humanos.

Ficou evidenciado que as sentenças comentadas experimentam caminhos novos na aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, com forte impacto no ordenamento interno dos países que integram os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, condicionados à reparação de violações, à alteração legislativa sob a primazia dos direitos humanos compromissados em nível internacional, e à mudança cultural na forma de ver e

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resguardar os direitos humanos. As sentenças mencionadas buscam garantir, plena e praticamente, os direitos humanos, negando-se a se limitar à retórica dos textos constitucionais e dos tratados internacionais, demonstrando a capacidade dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais – apesar de sua definição tradicional como direitos coletivos - serem garantidos juridicamente como direitos subjetivos, nos termos preconizados pelas constituições democráticas mais recentes.

Se é certo que ao ratificar tratados de proteção dos direitos humanos os Estados se obrigam a estabelecer normas de direito interno no sentido de realizar praticamente os direitos humanos, assumidos em condição de compromissos internacionais, a questão adquire importância maior no momento em que sentenças são emitidas por cortes internacionais de direitos humanos, obrigando os Estados-membros a satisfazer as vítimas em diversos sentidos. Em perspectiva comparada entre os sistemas europeu e interamericano, buscamos tratar de duas bases que nos pareceram de grande importância: a) a base normativo-funcional, por meio da qual foram feitas aproximações relacionadas às principais diferenças e convergências existentes entre os dois sistemas do ponto de vista das normas que lhes dão existência e operacionalidade; e, b) a base de conteúdo das sentenças emitidas pelas Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de melhor compreender os caminhos trilhados pelos dois tribunais para a adoção de suas sentenças, em especial as relacionadas aos casos comentados.

Ao longo do período de sua existência, apesar da enorme dificuldade em consolidar o projeto de organismos regionais garantidores de um padrão de negociação da convivência pacífica entre os países da Europa e das Américas, tem sido possível ao Conselho da Europa e à Organização dos Estados Americanos estabelecer e fazer funcionar sistemas de proteção que vêm viabilizando alguma proteção para os direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Apesar dessa possibilidade crescente de proteção, os dois sistemas regionais evidenciam um padrão diferenciado de

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proteção para os direitos humanos econômicos, sociais e culturais em relação aos direitos humanos civis e políticos. Particularmente no que se refere ao sistema interamericano de direitos humanos, vale ressaltar a importância de que a ratificação universal dos tratados internacionais de direitos humanos se estabeleça na região americana no sentido da consolidação dos mecanismos de justiciabilidade dos direitos humanos. Enquanto no sistema europeu se pratica um regime de ratificação universal e incondicionada da Convenção Européia, no sistema interamericano a ratificação tem sido parcial e condicionada.

Cabe ressaltar, igualmente, que os sistemas europeu e interamericano de proteção dos direitos humanos possuem métodos diferentes de abordagem dos casos e tomada de decisão. Enquanto o sistema europeu funciona com base em um formato de referências comparativas entre os Estados [principalmente no que se refere às legislações nacionais] que lhe permitem alcançar avanços progressivos, o sistema interamericano possui um método de julgamento concentrado no caso concreto de cada país.

Embora adotando métodos diferentes de julgamento e supervisão do cumprimento das decisões dos tribunais internacionais respectivos - orientados pelas definições normativas dos organismos que as comportam - pode-se dizer que a comparação entre os sistemas europeu e interamericano de direitos humanos não permite afirmar a existência de um sistema melhor que o outro. Ambos os sistemas dão as respostas possíveis aos Estados-membros e aos nacionais desses Estados que o momento permite, considerando seu acúmulo histórico, jurídico, social e cultural.

Referências

Benvenuto, Jayme (2005) A justiciabilidade internacional dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais: Casos das cortes europeia e interamericana de direitos humanos. Tese de Doutoramento. São Paulo: Universidade de São Paulo.

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PLURALISMO CONSTITUCIONAL E ESPAÇOS TRANSNACIONAIS: o fim da constituição ou um novo começo?

Luiz Magno Pinto Bastos Junior1

Cecilia Caballero Lois2

O presente artigo tem por finalidade discutir em que medida é possível preservar as funções tradicionais atribuídas à constituição em face da insurgência de espaços de regulação transnacional3. Trata-se, em outros termos, de compreender quais as consequências e as

1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Constitucional dos cursos de Direito e Relações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da UNIVALI (Mestrado e Doutorado). Advogado em Direito Público. E-mail: [email protected]; [email protected]. 2 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Associada de Teoria e Filosofia do Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (visitante) Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Mestrado), atuando na área de Teorias Jurídicas Contemporâneas (linha de pesquisa desenhos institucionais). Professora Colaboradora (mestrado e doutorado) da Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora dos programas de mestrado e doutorado. Bolsista de produtividade em pesquisa (CNPq/PQ2). Coordenadora de projetos de pesquisa e extensão em direito constitucional e filosofia do direito e da política. E-mail: [email protected] 3 Os “espaços” de regulação transnacional ocupam uma posição intermediária entre o nacional e o internacional (in-between state). Esta condição intermediária ocorre justamente porque estes espaços normativos se formam mediante processos de negação e de diferenciação em relação aos âmbitos normativos tipicamente estatais. Referem-se a espaços “construídos” por redes de inter-relações que se projetam para além do Estado. A ideia de um “espaço transnacional” deve ser compreendida como uma zona de interação que não se constrói em bases necessariamente territoriais. Estes espaços, concebidos em termos funcionais e sempre relacionais emergem no exato momento em que as relações entre os diferentes domínios normativos ganham corpo. O espaço transnacional constitui-se, pois, mediante interações, ele surge – sempre – na interação. (BASTOS JR, 2011, p. 168-182).

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possibilidades de (re)organização do constitucionalismo decorrentes dos processos de globalização e de crescente interdependência que atingem a concepção estruturante de soberania constitucional no seu elemento mais central, qual seja, na sua capacidade de decisão soberana em determinado território, balizada pela constituição.

Com efeito, a compreensão da constituição como critério para a demarcação das fronteiras de validade da ordem jurídica estatal foi construída com base em três atributos que lhe são usualmente conferidos na condição de “estatuto orgânico do político”: a territorialidade como critério de demarcação espacial de validade; a unidade sistemática do ordenamento jurídico; e, a legitimidade para fixar o enfeixamento hierárquico das autoridades. Estes elementos são centrais à noção de estado territorial soberano e podem ser perfeitamente traduzidos pelas ideias correlatas de “monismo jurídico-estatal” e “estrutura piramidal do ordenamento jurídico”.

Ao longo do processo de formação e de consolidação deste modelo de organização centrado no Estado, o acoplamento entre as categorias de território, soberania e constituição contribuiu para que a relação entre o direito e a política sofresse uma tríplice diferenciação/redução: (i) uma diferenciação entre o público e o privado e a redução da dimensão pública ao elemento estritamente estatal; (ii) uma diferenciação entre o direito e o não-direito e a redução daquele às formas jurídicas produzidas em consonância com as instâncias oficiais; e, (iii) uma diferenciação entre os espaços interno e externo demarcada pela criação artificial das fronteiras e a redução daquilo que seria normativamente relevante aos elementos produzidos no interior dos Estados territoriais.

No entanto, este modelo de organização política atravessa um processo de crise profunda. As “fronteiras” políticas, econômicas, jurídicas, sociais e culturais dos Estados tornam-se cada vez mais porosas (para não dizer, desprovidas de sentido). Esta situação faz com que as diferenciações entre direito e política modernamente operadas pela constituição diluam-se a tal ponto que os elementos conceituais classicamente apresentados pela teoria constitucional

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mostram-se incapazes de apreender a normatividade social e as pretensões de ordenação social.

Este cenário exige que se discuta a possibilidade de manter operativa a fórmula soberana (summas potestas) diante de alguns destes fenômenos, sobretudo quando se pretende justificar normativamente um “dever de abertura” dos sistemas jurídicos nacionais a elementos que lhe são, em princípio, externos. O grande desafio contemporâneo ao constitucionalismo consiste justamente em buscar definir parâmetros para a regulação dos conflitos a partir de regras de colisão que não se assentem, ultima ratio, na autoridade territorialmente hierarquizada, mas na capacidade da decisão de produzir pontos de convergência material.

Neste trabalho, defende-se abertamente que as funções modernamente atribuídas à constituição4 (como fator de integridade5 e de integração6 da comunidade política) permanecem operativas

4 A fim de esclarecer a perspectiva adotada, cumpre explicitar que a concepção de constituição é assumida neste trabalho como um conjunto multifacetado de discursos institucionalizados revestidos de capacidade de ordenação social em “uma” determinada comunidade política. Por conseguinte, a constituição não se reduz tão-somente ao texto constitucional, mas o extrapola. Enquanto texto normativo, seu sentido depende sempre de processos concretos de atualização que reinserem o contexto para o interior do programa normativo. Estes processos de atualização, por sua vez, são igualmente enunciados através de novas fórmulas linguísticas, fato este que desencadeia novos ciclos de atualização textual a cada aplicação concreta. Assim, “uma” constituição pode ser descrita como obra sempre inacabada, lacunosa, contraditória e permeada por desacordos e conflitos inelimináveis. 5 A constituição como fator de integridade representa o reconhecimento de sua função nomogenética e de sua aptidão a definir o fundamento de validade normativa do ordenamento jurídico (dimensão organizativa da constituição). Desta forma, o atributo de validade de qualquer disposição normativa deve guardar relação de compatibilidade vertical com as regras fundantes definidas no documento constitucional. O direito válido estrutura-se, a partir do Estado, com base nas ideias reguladoras de: hierarquia, unidade e coerência. 6 A constituição como fator de integração representa o reconhecimento de que esta cumpre um relevante papel como fator de ordenação social (dimensão valorativa da constituição). Por conseguinte, a tensão contínua e constante entre normatividade e normalidade deve ser incorporada à compreensão do sentido e do alcance a ser fixado ao documento constitucional.

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desde que os múltiplos discursos sobre a constituição sejam formulados em estreita preocupação com a preservação das diferenças, compromisso que se traduz na formação de redes sobrepostas de interação e na necessidade de ampliação dos mecanismos de diálogo institucional entre diferentes atores (sobretudo, aqueles situados fora do Estado).

Ao apontar esta direção, pretende-se demonstrar que se está ante uma situação paradoxal segundo a qual a única forma de manter a autoridade do Estado e o seu mais eficaz elemento de justificação (a ideia de soberania) consiste no reconhecimento de limites que lhe são imanentes e da proeminência de mecanismos de compartilhamento de autoridade soberana.

Transpondo esta questão para o constitucionalismo, quer isto dizer que a única forma que se vislumbra para que o potencial garantístico e ordenador dos discursos sobre a constituição sejam mantidos consiste em desconcentrar a autoridade constitucional e reconhecer a existência de centros diversificados de produção de discursos constitucionais. Estes centros decisórios diferenciados se situam para além das fronteiras jurídicas da constituição nacional e transpassam as barreiras estatais e afirmam-se discursivamente no plano doméstico dos Estados.

Este cenário suscita duas problematizações relacionadas e co-implicadas: uma de caráter substantivo (como prover legitimidade às decisões?) e outra de natureza eminentemente institucional (como lidar com a existência de autoridades concorrentes?). A questão central sobre a “capacidade de decidir” não pode mais se construir com base no elemento constitutivo da territorialidade, mas na capacidade da norma/decisão de produzir pontos de convergência material.

Neste trabalho, pretende-se dar especial ênfase à dimensão institucional destas transformações, em outras palavras, nos processos de transição: (i) da noção estruturante de unidade sistêmica (a partir do direito estatal), à necessidade de reconhecimento de distintas fontes normativas igualmente legítimas (produzidas para além do Estado); (ii) da pretensão de ordenação hierárquica, à

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necessidade de acomodação de diferentes regimes jurídicos multinivelados e segmentados; e (iii) da consagração do dogma da coerência intra-sistêmica (dever de correção e eliminação das antinomias), ao reconhecimento das diferenças e da pluralidade como valor que exige esforços de compatibilização de normas conflitantes, sem resultar na eliminação necessária destas antinomias. Elementos de transição este que serão enfrentados nas próximas seções deste artigo.

A identificação destes esforços de transição, segundo se pretende demonstrar no final deste trabalho, permite sejam lançadas as bases para a identificação de um modelo de pluralismo constitucional assentado sobre as máximas de pluralidade, ordenação heterárquica e conflituosidade.

1. Os desafios suscitados pelo pluralismo jurídico ao constitucionalismo contemporâneo

Nesta primeira seção, pretende-se sinalizar de que forma a ideia de unitas multiplex pode ser capaz de manter a pretensão regulatória da constituição nacional quando esta mesma constituição reconhece a existência simultânea de múltiplos regimes jurídicos, com fundamentos de validade distintas, em um mesmo espaço normativo7. A fim de fornecer alguns subsídios preliminares para o enfrentamento desta questão, serão feitas, inicialmente, breves incursões sobre os debates contemporâneos em torno do pluralismo jurídico e os desafios que ele suscita à teoria do direito.

O pluralismo jurídico pode ser genericamente definido como uma “concepção que se refere a ordens, redes e sistemas jurídicos coexistentes em um mesmo espaço geográfico” (AVBELJ, 2006, p. 378). Esta expressão encerra, contemporaneamente, uma variedade

7 Esta questão pode ser problematizada nos seguintes termos: como a constituição (nacional) pode ser capaz de operar como fator de integridade e de integração se admite a existência legítima, em um mesmo domínio territorial de regimes jurídicos com fundamentos de validade distintos?

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de usos e vem ganhando projeção em diversos domínios científicos (e.g., antropologia jurídica, direito comparado, direito internacional, estudos sobre globalização) (TAMANAHA, 2008, p. 3).

Se, por um lado, esta profusão de usos reforça a necessidade de se redimensionar a forma de compreender a relação entre o direito oficial e os demais padrões de regulação social que emergem espontaneamente nas comunidades (tanto subnacionais, quanto transnacionais); por outro lado, traz a lume diversas dificuldades conceituais e a necessidade de que sejam produzidas pontes de comunicação entre os diferentes domínios científicos das ciências sociais. (DUPRET, 2007).

De acordo com Brian Tamanaha (2008, p. 25-26), o atual8 acirramento do debate sobre o pluralismo jurídico em escala global decorre de duas mudanças de perspectiva atuais: de um lado, da definição, como pontos de partida das análises científicas, de níveis de regulação global e transnacionais; de outro lado, de uma guinada realizada pelos juristas no sentido de incorporar uma visão mais abrangente de direito (como fenômeno social ampliado) a qual acaba por “produzir” uma “profusão de ordens jurídicas”.

É possível identificar um conjunto muito díspar de propostas teóricas em torno do pluralismo jurídico que são aqui agrupadas a partir de três perspectivas distintas: uma primeira, que reúne os estudos que se ocupam, de forma bem abrangente, em reconhecer o direito como ordenação social que se exprime através de diferentes graus de institucionalização e encontra-se enraizado nas práticas sociais, em meio às quais emerge como fenômeno social autônomo; uma segunda, mais circunscrita ao problema da constituição, que compreende o pluralismo como reconhecimento de uma pluralidade de discursos constitucionais concorrentes ou de autoridades

8 O enfrentamento do pluralismo não é um fenômeno contemporâneo, pelo contrário, é possível identificar uma profusão de narrativas em torno da convivência de múltiplas ordens normativas sobrepostas na antiguidade e no medievo (WOLKMER, 1997, p. 168-192); ou mesmo, encontrar em formas subalternas (SANTOS, 2000) e não-oficiais (TAMANAHA, 2008) de normatividade social mecanismos de resistência dos povos autóctones frente à expansão do colonialismo (GRIFFITHS, 1986).

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concorrentes em um mesmo território; e, ainda, uma terceira, no plano global, que resulta do esforço em fornecer parâmetros teóricos para lidar com a pluralidade de mecanismos regulatórios insurgentes, ora como desdobramento do direito internacional, ora como espaços independentes dos mecanismos tradicionais de regulação interestatal.

A discussão em torno do pluralismo, desde sua origem, é perpassada por duas questões que se encontram presentes em maior ou menor medida e podem ser formuladas nos seguintes termos: (i) quais os critérios que podem ser utilizados para diferenciar o direito das demais normas sociais em geral? (ii) é possível (desejável) utilizar algum critério para “ordenar” estas pluralidades normativas quando colidentes?

A primeira questão, (i) busca por critérios para identificação do direito, se apresenta quando se pretende compreender o grau de exigibilidade das expectativas normativas e as interações existentes entre programas normativos distintos (moral, religião, direito estatal, direito não-estatal, convenção social). Esta controvérsia não se circunscreve aos foros jurídicos, mas igualmente divide antropólogos, sociólogos e politólogos. Seu debate é permeado pela contraposição de duas perspectivas sociológicas: a compreensão do direito como “padrão de conduta” ou a compreensão do direito como “coerção institucionalizada” (TAMANAHA, 1995).

A segunda questão, (ii) a plausibilidade da adoção de algum metracritério para solução de conflitos, será especificamente enfrentada adiante (seção 4). Por hora, vale a pena chamar a atenção para suas implicações em relação ao problema de soberania (capacidade de decisão). Quando se renuncia (mesmo que parcialmente) a um metacritério baseado na autoridade territorial, opera-se, a um só tempo, tanto uma espécie de renúncia ao monopólio estatal em afirmar coercitivamente o direito (já que a normatividade que transcende os domínios do estado “deve” ter sua normatividade reconhecida), quanto uma espécie de renúncia do monopólio dos tribunais nacionais (em especial dos tribunais

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constitucionais) em resolver definitivamente os conflitos em torno do direito aplicável em dado território.

As diferentes perspectivas que tomam seriamente em conta o pluralismo jurídico pugnam pelo reconhecimento de autêntica normatividade jurídica para além do direito estatal. Refletindo sobre os desdobramentos desta realidade para a teoria do direito, Klaus Gunther (2008) identifica duas dificuldades concretas: a impossibilidade de construção de um conceito uniforme sobre o direito, já que o sistema jurídico (antes lógica e hierarquicamente diferenciado) converte-se em uma “pluralidade de regimes jurídicos”; e a perda da força persuasiva do ideal de completude do sistema (ideal este que repousa sobre a ideia de representatividade/delegação e de identificação entre os autores e destinatários da norma)9.

De acordo com o autor, estes desafios exigem um redimensionamento estrutural da teoria geral do direito (e, por conseguinte, do próprio constitucionalismo) a fim de que ela substitua o seu modelo de referência fundado no ideal do Estado territorial (constituído a partir de um único legislador legítimo e de um sistema coerente de normas e precedentes), tendo em vista a incorporação, em uma postura de complementariedade10, perspectiva esta posta pelo pluralismo. (GÜNTHER, 2008, p. 16).

Sem pretender enfrentar por hora esta questão, a premissa que se infere a partir deste levantamento pode ser sintetizada nos

9 Nas palavras do autor: “Political legislation by general and coherently ordered legal norms and a legal adjudication based on the coherent interpretation of legal norms and precedents which all belong to one legal system seems to be more and more replaced by fragmented areas of self-regulation, practised by norm giving actors who have empowered themselves and who enact norms with different degrees of generality and scope.” (GÜNTHER, 2008, p. 7) 10 Isto seria possível, prossegue o autor, através do reconhecimento de que “a partir de um ponto de vista interno, os atores envolvidos nas várias e multiniveladas redes de interlegalidade ainda se comunicam tendo por base, ao menos hipoteticamente, um conceito uniforme de direito”. Conceito este que se traduz em uma metalinguagem que contém conceitos e regras jurídicas básicas, como o “conceito de direitos e de procedimentos equânimes, e os conceitos de sanção e de competência”. (GÜNTHER, 2008, p. 16)

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seguintes termos: o direito, enquanto prática discursiva (re)produtora de expectativas em torno da regulação social, constrói-se em múltiplos fora e mediante graus de institucionalidade variados, razão pela qual afigura-se inaceitável o seu encastelamento (do direito) sob os auspícios do modelo de Estado-nação.

Isto decorre não somente das “exigências” do discurso racional, mas, sobretudo, em face do reconhecimento da multiplicidade de atores envolvidos, da diversidade de espaços produtores de direito (com linguagens próprias) e das exigências de legitimidade material que ampliam vertiginosamente o auditório dos destinatários dos discursos institucionais produzidos acerca do direito.

É neste sentido que se assume, neste trabalho, que ante o ideal regulador de unidade sistêmica do direito centrado no Estado (state-centredness), o constitucionalismo responde como uma proposta de unitas multiplex, ou seja, de uma unidade múltipla. Desta forma, a constituição passa a representar um ponto de convergência para onde deve convergir uma pluralidade de discursos sobre os sentidos possíveis a serem atribuídos à própria constituição11.

A proposta de transição aqui delineada pode ser sintetizada nos seguintes termos:

Unidade sistêmica (state-centredness)

• Direito estatal (produzido ou reconhecido pelo Estado)

Unitas multiplex (não dependente do Estado)

• Fontes normativas autônomas e dotadas de

11 De certa forma, é este o sentido empregado por Gustavo Zagrebelsky quando defende a insurgência de uma concepção de soberania centrada na constituição, por meio da qual, a constituição converter-se-ia em um ponto de chegada, em uma pluralidade de valores constituídos para onde devem convergir (e entrecruzar-se) os diferentes discursos sobre a constituição. De acordo com o autor, “Para darse cuenta de esta transformación, ya no puede pensarse en la Constitución como centro del que todo derivaba por irradiación a través de la soberanía del Estado en que se apoyaba, sino como centro sobre el que todo debe converger; es decir, más bien como centro a alcanzar que como centro del que partir.” (ZAGREBELSKY, 1995, p. 32).

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• Teoria rígida das fontes do direito

emergência espontânea

• Caráter dinâmico das fontes

Fixados os traços constitutivos da noção de unitas multiplex, o passo seguinte consiste em enfrentar o desafio relativo à falta de metacritério(s) de ordenação decorrente do colapso do ideal de ordenação hierárquica construído em bases territoriais (modelo de estado territorial soberano).

2. Do princípio da hierarquização normativa à ideia-força de heterarquia como princípio de ordenação social

Como antes assinalado, esta seção pretende delinear os contornos de um princípio de organização que permita múltiplas formas de interação não estruturadas previamente. Este ideal de regulação deve permitir a estruturação de relações contingentes, dinâmicas e assimétricas entre regimes jurídicos díspares e entre discursos constitucionais concorrentes. Trata-se, pois, da substituição da pretensão de ordenação hierárquica, por novas formas de estruturação “heterárquica”.

Antes de avançar na seção, faz-se imprescindível precisar os contornos da ideia de heterarquia, tendo em vista a multiplicidade de sentidos em que é empregada pela literatura. Ino Augsberg (2009) identifica três diferentes usos: (i) empírico; (ii) sociológico, e (iii) epistemológico, critérios estes que nortearão o cotejo a seguir.

De acordo com o primeiro uso, (i) o empírico, a expressão heterarquia é utilizada para descrever formas de organização política não-estruturadas hierarquicamente; sua principal preocupação consiste em diferenciar esta “nova” estrutura de ordenação daquelas tradicionalmente associadas aos Estados-nação, ou ainda, ressaltar a existência de diversos parâmetros e formas de interação não-hierárquicas entre os níveis de regulação inter-relacionados.

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Em continuidade, (ii) para o uso sociológico, a ordenação heterárquica representa a única forma possível de compreender as relações sociais existentes em face do processo acelerado de transformação das sociedades contemporâneas, marcadas pelo crescimento exponencial do grau de interdependência, do número de relações transfronteiriças e de atuação transnacional de inúmeros atores econômicos e sociais. Desta feita, a forma de estruturação heterárquica traduz-se em modelos teóricos a partir dos quais são produzidos elementos conceituais que fornecem instrumental adequado à compreensão tanto dos processos de inter-relação, quanto dos processos de colisão entre sistemas; estes últimos, articulados de maneira dinâmica e flexível.

Por fim, (iii) de acordo com o terceiro uso, o epistemológico, a compreensão de formas heterárquicas de relação resulta da necessidade de uma mudança mais profunda nas condições de possibilidade de produção do próprio conhecimento. Com efeito, a necessidade de superação da racionalidade moderna se impõe como uma resposta aos desafios suscitados pelos diferentes paradoxos contemporâneos. De acordo com esta perspectiva, a ideia de heterarquia impõe-se como alternativa epistemológica de compreensão da forma de organização do político e do direito12.

12 Podem ser identificadas três diferentes perspectivas: (α) de acordo com a teoria dos sistemas, como uma forma de ordenação resultante de processos de des-hierarquização da forma de compreender as organizações sociais; (β) como a lógica que dirige a teoria da estruturação social, desenvolvida por Kyriakos Kontopoulos (1993, p. 209-267), para quem a lógica hetetárquica permite a criação de uma matriz conceitual apta não somente a descrever os diferentes tipos de estrutura e níveis estruturais, mas igualmente em fornecer parâmetros para o enfeixamento de relações estabelecidas não somente no mesmo nível de ordenação, mas, sobretudo, entre estruturas institucionais situadas em níveis diferentes ; (γ) como indissociavelmente ligada à noção de sociedade em rede formulada, entre outros, por Manuel Castells (2003), para quem a negação de relações estruturadas hierarquicamente representa o ponto de partida para o desenvolvimento de relações sociais articuladas a partir de noções como nós e enlaces. Transmudadas estas ideias para o campo da regulação, a ideia de heterarquia afigura-se como a única forma de articular as relações que se processam simultaneamente tanto no âmbito das comunidades políticas estatais,

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Mas, enfim, em relação à temática enfrentada neste trabalho, quais as são as implicações da ideia de heterarquia?

Do que foi dito até aqui, pode-se inferir que a noção de heterarquia traduz-se na existência de uma diversidade de interesses, atores e recursos, sem que exista entre eles o estabelecimento, ex ante, de relações estáticas de relevância ou de proeminência em favor de um ou de outro. Isto não significa dizer que as relações estabelecidas entre os atores distintos são rigorosamente simétricas, mas tão somente que nenhum deles é capaz de alcançar, sozinho, seus objetivos; decorre daí a relação de recíproca dependência entre estes atores.

Tendo por base a lição de Tamara Kovziridz (2009), a contraposição entre ordenação heterárquica e hierárquica, tomadas como tipos-ideais, pode ser feita nos seguintes termos:

Tabela 2: Distinções entre as ordenações hierárquica e heterárquica Hierarquia Heterarquia13

Tipos de dependência Dependência unilateral Dependência recíproca

Canais de comunicação

Comunicações (unilaterais ou bilaterais) estruturadas vertical-mente (top-down e bottom-up), entre os níveis

Coexistência de comunicações unilaterais, verticais e multilaterais entre os níveis.

Direção das relações entre os níveis

Estrutura piramidal. Relações verticais.

Estrutura não-piramidal. Relações tanto verticais quanto horizontais.

Tipos de coordenação De cima para baixo. Vários tipos de coordenação possíveis.

Distribuição de poderes e competências

Altamente assimétrico. Concentração de poderes

Diferentes graus de simetria e assimetria.

quanto em outras comunidades não estruturadas a partir de fronteiras e de identidades claramente definidas. 13 A autora utiliza a terminologia “Interdependência”. A fim de guardar congruência com a proposta desta subseção e considerando a aproximação entre a definição de interdependência e de heterarquia apresentados pela autora, optou-se por adaptar a expressão para “heterarquia”.

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Hierarquia Heterarquia13

nos níveis superiores.

Grau de flexibilidade Uma vez estabelecido, relativamente estático e rígido.

Flexível e mais facilmente adaptável no tempo

Tipos de estrutura e de ligação

Estruturada em vários níveis, todavia, os níveis inferiores se encontram englobados (nested) pelos superiores.

Estruturada através de várias entidades que são ligadas umas às outras (e não abrangidas umas pelas outras).

Fonte: Tamara Kovziridz (2009, p. 48, adaptado)

Por fim, tendo por base os discursos de ressignificação do constitucionalismo, faz-se é importante fazer uma última distinção, qual seja: a possibilidade de aplicação da ideia de heterarquia tanto às relações de ordenação intra-estatal, quanto às relações em escala global.

Em relação aos cenários de regulação que transcendem as fronteiras territoriais do Estado, mesmo considerando o cenário tradicional das relações interestatais, as relações entre os atores estatais (e não-estatais) sempre foi concebida em termos não-hierárquicos (costuma-se referir à natureza contratual do moderno sistema de Estados). Neste contexto, a mera possibilidade de se conceber estruturas de governança global só pode ser postulada se forem adotarem modelos não-hierarquizados de inter-relações14. Estas estruturas, portanto, são concebidas como redes desprovidas de

14 Em sentido similar, reproduz-se aqui a pertinente descrição feita por Volker Rittberger (2008, p. 16): “The concept of heterarchy is meant to describe the existence of an increasingly dense network of institutions of global governance, created and maintained by public and private actors, and aimed at the rules-based collective management of transovereign problems through horizontal policy coordination and cooperation where different groups of actors (states, intergovernmental organizations, civil society organizations, transnational corporations/ private sector actors) are sensitive to each other’s values and interests and dependent on one another to achieve collective goals. The peculiarities of a heterarchical world order consist, inter alia, in the horizontal generation and implementation of norms and rules – which is not bound to a vertical, top-down policy process.”

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um centro de imputação de autoridade e são descritas por Jochen von Bernstorff (2004, p. 258) nos seguintes termos:

o conceito de rede, em geral, relaciona-se às relações heterárquicas entre atores múltiplos. A unidade dessas relações é conceituada como rede e, por sua vez, redes são caracterizadas por acoplamentos não-hierárquicos e relativamente fracos entre seus elementos constitutivos (nós ou enlaces). Ao mesmo tempo, todavia, uma rede, como um todo, depende desses nós. Por conseguinte, cada nó afigura-se como interdependente em relação aos demais nós da rede. Em razão desta concepção não-centralizada, a autoridade é conceituada como sendo compartilhada ao longo da rede.15

Desta forma, compreender estas relações em termos heterárquicos implica reconhecer, de um lado, um movimento de expansão (quantitativa e qualitativa) da densidade normativa nestes espaços de regulação (transnacionais e interestatais), de outro lado, a necessidade de lidar com a insurgência de padrões normativos que tornam as redes e os espaços de atuação dos atores internacionais bem mais “viscosos” que outrora (ZACHER, 2000).

A questão mais sensível, e que interessa mais de perto a este pesquisa, consiste na discussão sobre a possibilidade de se compreender a ordenação intra-estatal em termos heterárquicos. Em relação a este nível de análise, contudo, há ainda menos acordo sobre o significado e o alcance desta expressão.

No espaço europeu, por conta da densidade das normas comunitárias e da atuação ativa de suas cortes regionais (Tribunal de Justiça Europeu e Corte Europeia de Direitos Humanos), ao se referir à organização heterárquica (ou ao pluralismo constitucional), se está a

15 Tradução livre de: “The network concept in general focuses on heterarchical relationships between multiple actors. The unity of these relationships is conceptualised as a network, and networks are characterised by a non-hierarchical and relatively loose coupling (nodes) of their constituent elements. At the same time, however, a network, as a whole, depends on these nodes. Thus, every node is interdependent of the other nodes of the network. From this a-centric conception, it follows that authority is conceptualised as being shared along the network.”

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refletir sobre uma espécie de construção de um espaço de cooperação regional em que o direito europeu representa, pelo menos, um espaço de articulação entre o direito internacional e os espaços de regulação nacionais. Desta feita, a ordem jurídica europeia se impõe (não sem contestações) desde fora às autoridades nacionais, as quais, por conseguinte, veem limitadas sua capacidade decisória.

Neste âmbito, inúmeras competências, até então indissociáveis da ideia de soberania, são expressamente transferidas para as instituições comunitárias; e, com isso, inexoravelmente ocorre um enfraquecimento das instituições nacionais. No entanto, estes mecanismos de “transferência” de competências não se caracterizam por jogos de soma zero (zero sum game), uma vez que a atuação comunitária depende do desenvolvimento de inúmeros (e estreitos) mecanismos de cooperação e de coordenação das atividades domésticas a serem empreendidas pelas instituições nacionais.

Desta forma, diferentemente do que pode parecer à primeira vista, conceber a ordenação constitucional doméstica em termos heterárquicos não significa afirmar o “enfraquecimento” das instituições nacionais e a “perda” da capacidade de decidir em última instância sobre as questões constitucionais relevantes para determinada comunidade política; mas importa em uma espécie de compartilhamento da autoridade decisória, ou seja, as autoridades nacionais envolvem-se em diferentes esforços (formais e informais) de articulação.

De outro modo, significa afirmar que, em que pese o processo de integração supranacional, os Estados não são simplesmente incorporados em uma nova estrutura protofederativa. Ao mesmo tempo em que as instâncias nacionais são compelidas a “considerar” elementos normativos que ultrapassam as fronteiras territoriais nacionais, estas mesmas instâncias afirmam-se como importantes atores com atuação transnacional, já que suas decisões também impactam e “devem” ser consideradas em outros fora externos. Esta “nova” dinâmica pretende ser apreendida, e.g., por conceitos como o de “interconstitucionalidade” (CANOTILHO, 2008), de “conexão

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causal” mediante “jurisprudência constitucional cooperativa” (ZAGREBELSKY, 2008), de “estado constitucional cooperativo” (HÄBERLE, 2007), ou ainda, de “transconstitucionalismo” (NEVES, 2009).

Todavia, reconhecer a ordenação constitucional como uma estrutura heterárquica implica ir além da inter-relação entre as instâncias nacionais e comunitárias; implica, também, em ressignificar diversas dimensões tradicionalmente confiadas à autoridade constitucional.

O esgotamento da ideia de estrutura hierarquizada para descrever as relações intraestatais vem sendo percebido em diferentes análises. Alguns desses esforços serão aqui rapidamente sumarizados:

(i) análise sobre a existência recorrente nos sistemas constitucionais de situações em que não há clara definição sobre o papel institucional a ser desempenhado pelos órgãos constitucionais. Em momentos de profundo desacordo na sociedade, estas situações fazem nascer tanto crises institucionais, quanto impulsos para sua superação mediante esforços de reinvenção constitucional. De acordo com esta perspectiva, a coexistência de concorrência entre órgãos constitucionais não se apresenta como um problema em si, do contrário, o eventual choque entre autoridades igualmente legítimas por vezes possibilita importantes redimensionamentos institucionais em momentos de crise constitucional;

(ii) análise sobre a impossibilidade de compreender as relações federativas em termos estritamente hierárquicos considerando tanto a existência de espaços de autonomia constitucionalmente conferidos às unidades territoriais, quanto sobre a necessidade concreta de acomodação de tensões a partir de diferentes mecanismos de pressão de baixo para cima (bottom-up);

(iii) análise sobre a artificialidade da ideia de hierarquia constitucional, considerando o caráter sempre criativo e transformador das concretizações constitucionais e a abertura constitucional às forças atualizadoras da esfera pública, neste

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contexto que se postula a ideia de que a constituição resulta do entrecruzamento de inúmeros discursos concorrentes sobre a constituição com pretensão de afirmar-se frente aos demais.

A transição até aqui apontada pode ser sumarizada no seguinte quadro: Ordenação hierárquica

• Ponto de imputação de validade

• Quem decide? Intérprete último

Acomodação “heterárquica”

• Diferentes regimes jurídicos multinivelados e segmentados

• Autoridade compartilhada

Assim, é possível estabelecer um cotejo entre estas ordenações, nos seguintes termos: a ordenação hierárquica pressupõe a existência de um único ponto de imputação de validade enquanto a ordenação heterárquica assenta-se sobre a existência de diferentes regimes jurídicos multinivelados cujos conflitos (entre normas e entre autoridades decisórias) dependem, muitas vezes, de cooperação e de reconhecimento mútuo; e o problema acerca do intérprete último (decisão soberana) acaba sendo substituído, em certo sentido, por uma ideia de compartilhamento de autoridades.

Nestes termos, a forma como aqui concebido, o compartilhamento de autoridade pressupõe o reconhecimento da impossibilidade (indesejabilidade) de se definir previamente quem é a autoridade que detém a competência para decidir, em última instância e de maneira inapelável, sobre as tensões que envolvem estes múltiplos regimes.

3. Da coerência intrassistemática à exigência de compatibilização: existem parâmetros para supraordenação em estruturas heterárquicas?

Ao se afirmar a impossibilidade de compreender estas múltiplas relações internormativas a partir de um metacritério de ordenação baseada na noção de hierarquia, surge uma dificuldade

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existencial: como lidar com os conflitos (entre normas e entre autoridades) surgidos nestes espaços de interação?

Com a crise da noção ordenadora de território, os postulados de unidade, de completude e de coerência de um ordenamento jurídico cedem lugar a novos desafios de compatibilização entre as ordens jurídicas colidentes. As “antinomias” e a coexistência de autoridades sobrepostas se apresentam não mais como problemas a serem eliminados, mas como uma realidade constitutiva do sistema que não goza mais de critérios seguros para sua superação. Em outras palavras, o direito não é capaz de fornecer regras claras para resolução destas tensões, nem em relação à regra aplicável, nem em relação à autoridade competente para por termo à controvérsia.

As diferentes narrativas sobre os processos de globalização e a expansão dos espaços regulatórios situados fora do Estado levam a duas constatações desconcertantes: de um lado, as ordens jurídicas encontram-se entremeadas de maneira inseparável; de ouro lado, a constituição não é mais capaz de operar como fonte de demarcação dos limites jurídicos do direito nacional.

Considerando o caráter normativo dos discursos constitucionais e a característica do constitucionalismo de se reinventar ante os novos problemas, múltiplas são as reações que pretendem conferir parâmetros para o enfrentamento desse choque intersistêmico (metacritérios de autoridade).

As tentativas teóricas de estabelecer critérios para a ordenação das relações existentes entre as ordens jurídicas interna e externa (tanto interestatal quanto transnacional) podem ser agrupadas em duas perspectivas contrapostas: constitucionalista e pluralista (KRISCH, 2009). Dois aspectos são levados em conta para esta oposição: o reconhecimento (ou não) da existência de um elemento comum de ligação entre os sistemas (common framework) e a existência (ou não) de algum princípio de ordenação na forma como se dá a articulação entre os sistemas (ordenação hierárquica ou heterárquica).

Para Nico Krisch (2009, p. 2), enquanto os constitucionalistas geralmente defendem a existência de princípios substantivos

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compartilhados entre os diferentes âmbitos de ordenação e sua articulação através de relações de supraordenação top-down (reconhecimento de alguma forma de constitucionalização do direito internacional), os pluralistas “preferem ver o mundo pós-nacional como caracterizado pela heterarquia, por uma interação de diferentes subordens que não estão sujeitas ao mesmo padrão de regras jurídicas, mas dotadas de formas mais abertas e políticas”16.

Em relação ao último grupo (perspectivas pluralistas), apesar de compartilharem entre si uma atitude de negação de qualquer princípio de organização hierarquicamente estruturado, dissentem em relação à existência de algum quadro comum de referência (common framework), podendo ser divididos em: institucionalistas e sistêmicos.

Os primeiros (pluralistas institucionalistas) tendem a admitir a existência de algum mecanismo institucional de articulação entre os regimes diferenciados, ou ainda, a possibilidade de articulação substantiva dos discursos entre os atores envolvidos (KRISCH, 2009, p. 17). Desta forma, esta variação institucionalista do pluralismo apresenta-se muito mais como uma continuação da proposta constitucionalista do que, propriamente, como uma alternativa àquele modelo. (KRISCH, 2009, p. 18).

Por outro lado, os segundos (pluralistas sistêmicos17) afiguram-se céticos em relação a qualquer pretensão de ordenação que se assemelhe à transplantação de resquícios de modelos organizativos centrados no Estado para o âmbito de regulação global (KRISCH, 2009, p. 17). Estes teóricos se coassociam em torno de uma espécie de gerência descentralizada da diversidade, razão pela qual, apesar das incertezas suscitadas em face das colisões cada vez mais frequentes, apresentam vantagens inegáveis que não podem ser, de plano, desprezadas. De acordo com suas característics suscitadas por Nico

16 Tradução livre de: “prefer to see the postnational realm as characterised by heterarchy, by an interaction of different sub-orders that is not subject to common legal rules but takes a more open, political form.” 17 A expressão foi cunhada por Neil MacCormick (1993)

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Krisch (2009, 19-28), estas perspectivas conferem maior capacidade de adaptação, permitem mais espaço para contestação e, ainda, fornecem mecanismos dinâmicos de check and balances.

Ao se confrontar as diferentes perspectivas teóricas, o que se percebe é que a diferença que as contrapõe é muito mais quantitativa do que qualitativa. Dito de outro modo, é possível articular estes modelos em uma espécie de feixe que gravita em torno de dois extremos configurados pelas versões fortes da perspectiva constitucionalista e do pluralismo sistêmico, como se pode observar na figura a seguir:

Constitucionalismo (quadro substantivo comum + ordenação hierárquica)

Pluralismo institucional (quadro comum institucional ou procedimental + não-hierarquia)

Pluralismo sistêmico (ausência de qualquer quadro comum + não-hierarquia)

Figura 1: Escala de transição entre perspectivas constitucionalista e pluralista

Em que ser bastante ilustrativo a realização de um cotejo analítico entre algumas destas propostas teóricas (em especial, em relação a forma com que elas enfrentam as questões do quadro comum e da ordenação), este esforço excede em muito os limites deste trabalho.

A perspectiva adotada neste trabalho situa-se no âmbito do chamado “pluralismo institucional”, em especial, defende a necessidade de identificação das bases de um compromisso essencial com a promoção dos “espaços de hibridação”18 (BERMANN, 2002; 2007) e da possibilidade de múltiplos enlaces comunitários

18 De acordo com o autor, estes espaços híbridos ocorrem “where more than one legal, or quasi-legal, regime occupies the same social field” (BERMAN, 2007, p. 1158), de uma variedade de formas que “overlapping legal systems interact with each other and observed that the very existence of multiple systems can at times create openings for contestation, resistance, and creative adaptation.” (BERMAN, 2007, p. 1159)

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expressados através da máxima postulada por Michel Rosenfeld (2008) em torno de um “pluralismo compreensivo”.

O principal motor que impulsiona esta perspectiva consiste na existência de um compromisso existencial em preservar (e promover) as comunidades e compromissos normativos gerados através de múltiplas interações (formação dinâmica de selve e others) (ROSENFELD, 2010). Portanto, se confere uma ênfase sobrelevada na dimensão institucional em meio do qual as interações normativas são realizadas. No entanto, a questão central não consiste tão-somente na identificação de procedimentos e de mecanismos de abertura e diálogo, busca-se discutir em que medida é possível formular uma concepção de jurisdição que, de alguma forma, seja deslocada da noção de território (BERMAN, 2002; 2005), construindo-se em termos “pluralista e cosmopolita” 19.

Em relação à proposta de Paul S. Berman (2007), em que pese seu esforço em definir um modelo analítico a partir do qual entende ser possível lidar com esta nova gama de conflitos normativos e o compromisso com o hibridismo dos espaços de regulação, ainda não é possível estruturar estas interações a partir de uma matriz teórica capaz de lidar, concomitantemente, com desenhos institucionais e com práticas discursivas tão díspares que marcam a atuação dos diferentes atores e cenários de interação normativa (BERMAN, 2007, p. 1159).

Se por um lado, este artigo rejeita a alternativa kelseniana de um monismo internacionalista que passaria a conceber a relação entre ordem internacional e interna a partir de uma relação de supraordenação, por outro lado, não é capaz de identificar, com precisão, os contornos deste novo modelo teórico de interação.

19 Nas palavras do autor: “(…)cosmopolitan because it recognized the possibility that people can hold multiple, sometimes nonterritorial, community affiliations; and pluralist because it acknowledged that forms of legal (or quasi-legal) jurisdiction can be asserted by communities beyond those represented by official statesanctioned courts.” (BERMAN, 2005, p. 1821).

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(Talvez porque seja impossível compreender estes fenômenos a partir de um único modelo teórico de interação?).

Portanto, a máxima aqui postulada de “exigência de compatibilização normativa” como diretriz que pretende suplantar o dogma da “coerência intrassistemática”, só pode ser formulada sob as bases de um compromisso de convivência e de preservação das diferenças. Quando muito, é possível identificar esta postura que se materializa em diferentes práticas discursivas e que se instrumentaliza através de mecanismos desenvolvidos de diminuição das tensões e conflitos. Afigura-se, portanto, tão-somente como uma diretriz que aponta possíveis caminhos e alternativas. Nada mais.

4. À guiza de conclusão: pluralismo constitucional como resposta possível às pressões sobre a constituição nacional

O cenário de transição antes descrito (do monismo ao pluralismo, da ordenação hierárquica à heterárquica e do debate em torno da existência de metacritérios para soluções de conflitos) resulta naquilo que aqui é chamado de pluralismo constitucional. Em outras palavras, resulta da multiplicação dos discursos sobre a constituição produzidos em diferentes centros decisórios situados em espaços que transcendem os limites geográficos do Estado e que se apresentam como narrativas concorrentes aos discursos institucionais das instâncias decisórias estatais.

Esta multiplicação de discursos, como dito, decorre da insurgência de espaços decisórios para além do Estado, é impulsionada pela atuação de inúmeros agentes (estatais e não-estatais) e revela a impossibilidade de definição prévia nem da instância decisória competente, nem da regra de direito aplicável à situação concreta. Nestes moldes, o conflito, a composição política e os discursos de legitimação material revelam como características inexoráveis deste novo cenário de regulação constitucional e conferem especial acento ao papel a ser desempenhado, em especial, pelos diferentes tribunais.

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Assim, os diferentes órgãos decisórios (resolução e arbitramento de conflitos) acabam ocupando posições centrais no processo de delimitação das fronteiras do direito. Isto é assim porque incumbe aos tribunais (sobretudo aqueles cuja decisão afigura-se formalmente inapelável20), ante os conflitos concretos ante si suscitados, tanto a identificação do direito aplicável (law finding), quanto a tarefa de definição do próprio âmbito de sua competência (Kompetenz-kompetenz).

Estas características, entre outras, permitem aos tribunais institucionalizar a porosidade entre os sistemas e conferir uma capacidade de adaptabilidade do respectivo sistema jurídico ao entorno que as instituições tradicionais (tendo-se por referência o direito estatal e o direito internacional) não são operativamente capazes de prover.

Paralelamente ao processo de “barganha de soberania”21 (operado em nível político) ocorrem, no âmbito dos tribunais, movimentos similares de compressão e de expansão de sua autoridade. Estes processos materializam-se mediante o reconhecimento de uma pluralidade de discursos constitucionais.

20 Os órgãos decisórios internacionais e supranacionais não realizam autêntico trabalho de revisão judicial das decisões proferidas em outras instâncias normativas. Isto é assim porque, tecnicamente, não existe relação de subordinação hierárquica entre instâncias decisórias distintas. A estratégia para lidar com a discussão sobre a existência (ou não) de desrespeito às obrigações internacionais assumidas e reguladas no âmbito do regime internacional no qual se encontra aquele órgão decisório é tratar as decisões produzidas em outras esferas como “matéria de fato”. (AHDIEH, 2004). 21 Os deslocamentos da capacidade regulatória e da atribuição para resolução de conflitos para instâncias situadas fora do Estado não autorizam que se fale em assalto à soberania, ou em processos de subjugação da autoridade constitucional a elementos externos. Pelo contrário, tais processos de transferência de competências por parte do Estado não se caracterizam pela eliminação da importância por si desempenhada; mas se processam por intermédio de intricados processos de negociação (CAPORASO, 2000) e barganha (LITFIN, 1997), mediante os quais, as interações e trocas entre os sistemas não ocorrem nem unidirecional, nem hierarquicamente.

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A multiplicação de discursos sobre a constituição gera, porém, paradoxos, contradições e ambiguidades em dois níveis distintos: (i) em relação à própria ideia de constituição e (ii) em relação à autoridade, no caso, do Judiciário nacional (sobretudo, dos tribunais constitucionais na condição de guardiães da constituição).

(i) Quanto à força sugestiva da ideia de constituição, o reconhecimento de uma pluralidade de discursos constitucionais concorre para o seu próprio fortalecimento (mais constituição), tanto nos espaços de regulação interno (desdobramento lógico da supremacia constitucional), quanto nos espaços de regulação para além do Estado (deslocamento da gramática da constituição para outros âmbitos). Este fortalecimento, porém, gera dois problemas. De um lado, propicia um aumento exponencial de expectativas em torno das promessas constitucionais, o que, por sua vez, pode levar à sobrecarga de expectativas e disfuncionalidade em relação à constituição (menos constituição)22. De outro lado, aumenta sobremaneira os conflitos relacionados às demandas por reconhecimento e por inclusão discursiva e os conflitos sobre a natureza e o teor dos discursos constitucionais veiculados (muitas constituições).

(ii) Quanto à autoridade, o reconhecimento de múltiplos centros decisórios (produtores de discursos constitucionais) acaba produzindo instâncias concorrentes e, em muitos casos, faz nascer, ao menos, um compromisso de engajamento em diálogo com estas instâncias. Isto implica, em certo sentido, uma redução da margem de autonomia dos tribunais e, por conseguinte, menos autoridade. Por outro lado, a projeção para estas instâncias da gramática constitucional tem autorizado que os próprios Tribunais nacionais exerçam um controle de legitimidade das decisões proferidas noutros âmbitos, a exemplo das multicitadas decisões da Corte Alemã

22 A este processo de sobrecarga de expectativas em torno da constituição e os riscos correlatos de disfuncionalidade operativa em sociedades periféricas, Marcelos Neves (1994; 1995) atribui a expressão “constitucionalização simbólica”.

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(Solange I e Solange II23). Desta forma, ao afirmar o controle de legitimidade das decisões proferidas “do lado de fora” (outside), os tribunais, por vias transversas, afirmam sua própria autoridade frente a estas instâncias. Este compartilhamento de legitimidade gera, por conseguinte, mais autoridade. Esta ambiguidade de fortalecimento/ enfraquecimento dos tribunais mediante a multiplicação dos discursos constitucionais expressa-se, exemplarmente, pela proposta de Armin von Bogdandy de acoplamento ou “sistemas de ligações”.

O que se pretendeu defender neste trabalho é que, em que pese à profundidade da crise experimentada, é possível ainda conceber a constituição como instrumento útil e apto a produzir regulação nas comunidades políticas nacionais. Suas funções clássicas podem continuar sendo operativas, desde que as mesmas sejam redimensionadas a partir de um comprometimento existencial com o pluralismo. Desta forma, tanto as funções de integridade e de integração passam a ser redimensionadas a partir do reconhecimento de que a capacidade de produção de discursos constitucionais depende da sua aptidão para produzir (novos) pontos de convergência material.

23 Em ambos os casos - Solange I (BVerfGE 37, 271 ss., de 1975) e Solange II (BVerfGE 75, 223ss., de 1987) - o Tribunal Constitucional Federal alemão reconheceu ser competente para conferir a compatibilidade (ou não) da execução dos atos concernentes ao direito comunitário secundário em face da Constituição Alemã. O traço distintivo destas decisões consiste justamente na postura adotada pela Corte. Em um primeiro momento, o Tribunal ressaltou que enquanto o Direito Comunitário fosse caracterizado por um processo de integração econômica (portanto, sem que o sistema ocupasse em tutelar os direitos considerados fundamentais pelo direito constitucional alemão), sempre caberia à Corte a avaliação da compatibilidade do direito comunitário em face das cláusulas de garantias providas pelo constitucionalismo alemão (nítida postura de confrontação). Esta decisão provocou, à época, grande repercussão e acabou gerando certa retração da atuação da Corte europeia. Na decisão seguinte, o tom conferido pelo Tribunal alemão mudou. Apesar de continuar reconhecendo a possibilidade de exercer esse controle, assume-o como residual, após reconhecer a guinada jurisprudencial empreendida pela Corte europeia no sentido de incorporar uma gramática de proteção dos direitos fundamentais no âmbito comunitário. Desta forma, o Tribunal alemão reconhece uma espécie de presunção em favor do direito comunitário (nítida postura de cooperação).

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DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA CONSTITUCIONAL TRANSICIONAL: ainda sob(re) as sombras do passado autoritário

Bruno Galindo1 Todavia, os mortos do lado oriental tinham sido fuzilados, linchados, executados. Além disso, penas de prisão foram impostas. A penitenciária de Bautzen ficou superlotada. Isso tudo veio à tona só muito mais tarde. Anna e eu vimos apenas impotentes atiradores de pedras. Mantivemos distância a partir do setor do lado ocidental. Amávamos muito um ao outro e à arte e não éramos operários que atiravam pedras na direção de tanques. No entanto, desde então sabemos que essa batalha continua acontecendo. Às vezes, e então com décadas de atraso, até mesmo os atiradores de pedras serão os vitoriosos. (Grass: 2000, p. 162)

É sabido que nenhuma das experiências constitucionais democráticas após períodos de autoritarismo político consegue lidar com naturalidade com as questões advindas dos anos de exceção. Isso é ainda mais notável na questão dos direitos humanos.

É lugar-comum a percepção de que os regimes autoritários, independentemente de sua tendência ideológica, tendem a contingenciar os procedimentos democráticos e desconsiderar o respeito aos direitos humanos daqueles que possam potencial ou efetivamente lhe fazer oposição política. “Direitos humanos para humanos direitos” seria um chavão bem apropriado para esses regimes, sendo os “humanos direitos” os simpatizantes e colaboradores dos poderosos da ocasião, ou ao menos os que não os contestam.

1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito do Recife/UFPE (Graduação/Mestrado/Doutorado); Doutor em Direito Público pela UFPE/Universidade de Coimbra-Portugal (PDEE); Mestre em Direito Público pela UFPE. E-mail: [email protected]. Blog: www.direitoecultura.blogspot.com.

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Quando do advento da democracia como regime político pós-autoritário, surge a relevante questão: o que fazer em relação às atrocidades e crimes contra os direitos humanos cometidos durante o período de exceção em nome do regime autoritário? A escusa do cumprimento do dever legal é absoluta? A obediência às ordens superiores é suficiente para evitar que os “obedientes” sejam punidos? E os mandatários que proferiram tais ordens, qual o grau de sua responsabilidade? É possível admitir que o direito penal comum e seus institutos como a prescrição e a estrita tipificação legal dos crimes possa dar conta de delitos com tal grau de excepcionalidade?

A resposta a tais questões está longe de ser uníssona. A depender da repercussão internacional, do momento histórico, da realidade objetiva e da própria cultura política de cada país, o enfrentamento das sombras do passado autoritário é bastante dissonante, variando do enfrentamento amplo e irrestrito de todas elas (da verdade histórica à reparação das vítimas e respectivas famílias, bem como da investigação dos crimes e punição dos culpados) às anistias autodeclaradas social e politicamente reconciliadoras, que, a seu turno, estabelecem uma espécie de “esquecimento” igualmente abrangente dos atos perpetrados durante aquele passado.

Este pequeno ensaio possui a pretensão de abordar como os problemas de tal natureza têm sido enfrentados aqui no Brasil, traçando um esboço comparativo com experiências de transição entre autoritarismo político e democracia constitucional em outros países, tais como África do Sul, Alemanha, Argentina e Chile, bem como o entendimento de instâncias judiciais internacionais a respeito, a exemplo da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

1. Justiça transicional: definição contextual

A definição adequada do que vem a ser justiça transicional está atrelada à ideia de que o direito a ser observado pelos agentes estatais não é somente aquele presente no ordenamento jurídico do Estado e em vigor no preciso momento em que os atos dos referidos

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membros do poder público foram perpetrados. Quem exerce função de Estado, bem como os membros da sociedade em geral, tem o dever de também observar o direito internacional, notadamente os direitos inerentes à própria condição do ser humano (direitos humanos), independentemente das fontes das quais tais direitos provenham, se dos tratados internacionais ou do direito consuetudinário.

Por óbvio que se trata de uma concepção ideológica construída em termos concretos a partir da jurisprudência do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, responsável pelo julgamento dos crimes nazistas cometidos na Alemanha (trataremos disso adiante). Se o direito interno de um Estado serve de escusa para o cometimento de atos claramente desumanos e degradantes por parte dos agentes desse mesmo Estado, tal direito não deve ser observado e esses agentes são passíveis de punição. Por outro lado, há a enorme coerção simbólica e fática sobre tais agentes e a medida para se fazer justiça nesses casos nem sempre poderá ser exatamente a mesma que se estabelece para casos semelhantes em situações de normalidade democrática.

O fato é que, uma vez estabelecida uma democracia constitucional em um país cujo passado recente tenha sido de regime autoritário, o enfrentamento dos crimes contra os direitos humanos perpetrados muitas vezes para a preservação do regime de exceção se faz necessário, ainda que as fórmulas da denominada justiça transicional não devam ser as mesmas em todo tempo e lugar. Como mostrarei adiante, há uma diversidade de tratamentos do tema a considerar as experiências democráticas de diferentes países.

Para iniciar o debate, faz-se necessária uma definição para estabelecer os pontos de partida das concepções defendidas neste ensaio. Para tal, vi no conceito de Louis Bickford uma definição bastante abrangente do que vem a ser a justiça transicional diante da variedade de experiências aqui abordadas. Para o autor, a justiça transicional consiste em um conjunto de medidas consideradas necessárias para a superação de períodos de graves violações a direitos humanos ocorridas durante conflitos armados (ex.: guerras

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civis) e/ou regimes autoritários (ditaduras), implicando a adoção de providências com os seguintes objetivos: - esclarecimento da verdade histórica e judicial, dentre outras coisas com a abertura dos arquivos estatais do período de exceção;

- realização da justiça propriamente dita, com a responsabilização em variados graus dos violadores dos direitos humanos;

- reparação dos danos às vítimas (indenizações, reabilitações etc.);

- reformas institucionais em relação aos serviços de segurança, adequando-os à pauta axiológica do Estado democrático de direito;

- instituição de espaços de memória (ex.: memorial do Holocausto, na Alemanha), para que as gerações presentes e futuras possam conhecer e compreender a gravidade do que ocorreu no período de exceção (Bickford: 2004, pp. 1046-1047; Greiff: 2007, p. 26; com ligeiras variações, cf. tb. Porto: 2009, pp. 180-181; Uprimny & Saffon: 2010; Piovesan: 2011, p. 78; Zanuzo: 2009, p. 67).

Considerando tal ponto de partida, convido o leitor a analisarmos o paradigma central nuremberguiano e as experiências escolhidas no contexto do trabalho.

2. Nuremberg paradigmático: os crimes de lesa humanidade

A definição sobre o que vem a ser os crimes contra a humanidade é crucial no debate sobre justiça transicional, já que sem tal noção, os referidos atos seriam, ao menos em tese, fundamentados no ordenamento jurídico vigente, bem como no poder das autoridades estatais que os ordenaram.

Normalmente a referência paradigmática fundamental é o Tribunal Militar Internacional, estabelecido pelos Aliados vencedores da 2ª Guerra Mundial na cidade alemã de Nürnberg, ou Nuremberg, como é mais conhecida. Contudo, Weichert e Fávero apontam para o anterior Tratado de Sèvres, ainda no final da 1ª Guerra, quando se condenou o até hoje polêmico massacre da minoria armênia na Turquia, na 2ª década do século XX (Weichert & Fávero: 2009, pp. 517-518).

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Não obstante a relevante observação dos autores suprarreferidos, não é por mero acaso que o Tribunal de Nuremberg se tornou paradigmático. No famoso julgamento dos criminosos nazistas, em que pesem as críticas ao caráter de tribunal de exceção e do estabelecimento de uma aparente retroatividade da lei penal internacional (em referência aos crimes de lesa humanidade) em desfavor dos réus, não foi um mero julgamento unilateral dos vencedores da guerra contra os vencidos: as regras básicas do contraditório e do devido processo legal foram respeitadas (ainda que a defesa não tenha tido o mesmo tratamento que a acusação), os réus tiveram oportunidade de expor seus argumentos, tendo sido vários deles levados em consideração, bastando analisar o resultado do julgamento. Ao invés do fuzilamento dos líderes vencidos, como era comum nas guerras até então ocorridas, o julgamento diferenciou as responsabilidades de cada um dos 22 líderes nazistas levados ao Tribunal, assim como suas respectivas penas: foram doze condenações à morte, três à prisão perpétua, duas a vinte anos de prisão, uma a 15, outra a 10 e ainda ocorreram três absolvições (Gonçalves: 2001, pp. 343-347).

O mais importante, todavia, para os limites do presente trabalho, foi o legado nuremberguiano acerca do conceito de crimes contra a humanidade. Antes um conceito diluído no direito internacional consuetudinário, recebeu do Estatuto do Tribunal, em seu art. 6º, c, a definição de que tais delitos seriam o homicídio, o extermínio, a escravidão, e outros atos desumanos cometidos contra a população civil antes ou durante a guerra, ou perseguições baseadas em critérios raciais, políticos e religiosos, para a execução de crimes ou em conexão com crimes que sejam da competência do Tribunal, independentemente de terem sido ou não praticados em violação do direito interno do país onde foram perpetrados (Piovesan: 2006, p. 34; Weichert & Fávero: 2009, p. 518; Lopes: 1999, p. 500).

A referida definição foi inspiradora de uma nova posição do indivíduo no âmbito internacional: a possibilidade de estipulação de direitos e deveres aos indivíduos diretamente pelo direito das gentes sem escusas de direito nacional foi gradativamente se sedimentando,

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sendo reiteradamente reafirmada pela legislação internacional positiva universal e regional, pela Comissão de Direito Internacional e Assembleia Geral da ONU, bem como pelos diversos tribunais internacionais, tanto as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos, como os tribunais penais internacionais ad hoc (Iugoslávia e Ruanda) (Trindade: 2004, pp. 219-225).2

O paradigma nuremberguiano também foi reafirmado no texto do art. 7 do Estatuto de Roma que, em 1998, instituiu o Tribunal Penal Internacional de caráter permanente.3 Para os julgamentos a serem realizados nesta Corte, será considerado o texto abaixo, que, como é frequente no direito internacional, consolida entendimentos reiterados ao longo da segunda metade do século passado sobre os crimes de lesa humanidade. O dispositivo está assim redigido: 1. A los efectos del presente Estatuto, se entenderá por “crimen de lesa humanidad” cualquiera de los actos siguientes cuando se cometa como parte de un ataque generalizado o sistemático contra una población civil y con conocimiento de dicho ataque:

a) Asesinato;

b) Exterminio;

c) Esclavitud;

d) Deportación o traslado forzoso de población;

e) Encarcelación u otra privación grave de la libertad física en violación de normas fundamentales de derecho internacional;

f) Tortura;

g) Violación, esclavitud sexual, prostitución forzada, embarazo forzado, esterilización forzada o cualquier otra forma de violencia sexual de gravedad comparable;

h) Persecución de un grupo o colectividad con identidad propia fundada en motivos políticos, raciales, nacionales, étnicos, culturales, religiosos, de género definido en el párrafo 3, u otros

2 Embora o sempre merecidamente citado Hans Kelsen já tenha previsto esta situação de responsabilização individual antes mesmo do julgamento de Nuremberg, mais precisamente em obra publicada em 1944 nos EUA, quando estipula aquilo que Massimo La Torre e Cristina García Pascual vão denominar de “utopia realista”, com várias implicações e antevisões para o direito internacional do Pós-Guerra (Kelsen: 2003, passim). 3 Em funcionamento desde 2002, a partir da 60ª ratificação. Cf. http://www.un.org/spanish/law/icc.

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motivos universalmente reconocidos como inaceptables con arreglo al derecho internacional, en conexión con cualquier acto mencionado en el presente párrafo o con cualquier crimen de la competencia de la Corte;

i) Desaparición forzada de personas;

j) El crimen de apartheid;

k) Otros actos inhumanos de carácter similar que causen intencionalmente grandes sufrimientos o atenten gravemente contra la integridad física o la salud mental o física.

2. A los efectos del párrafo 1:

a) Por “ataque contra una población civil” se entenderá una línea de conducta que implique la comisión múltiple de actos mencionados en el párrafo 1 contra una población civil, de conformidad con la política de un Estado o de una organización de cometer ese ataque o para promover esa política;

b) El “exterminio” comprenderá la imposición intencional de condiciones de vida, entre otras, la privación del acceso a alimentos o medicinas, entre otras, encaminadas a causar la destrucción de parte de una población;

c) Por “esclavitud” se entenderá el ejercicio de los atributos del derecho de propiedad sobre una persona, o de algunos de ellos, incluido el ejercicio de esos atributos en el tráfico de personas, en particular mujeres y niños;

d) Por “deportación o traslado forzoso de población” se entenderá el desplazamiento forzoso de las personas afectadas, por expulsión u otros actos coactivos, de la zona en que estén legítimamente presentes, sin motivos autorizados por el derecho internacional;

e) Por “tortura” se entenderá causar intencionalmente dolor o sufrimientos graves, ya sean físicos o mentales, a una persona que el acusado tenga bajo su custodia o control; sin embargo, no se entenderá por tortura el dolor o los sufrimientos que se deriven únicamente de sanciones lícitas o que sean consecuencia normal o fortuita de ellas;

f) Por “embarazo forzado” se entenderá el confinamiento ilícito de una mujer a la que se ha dejado embarazada por la fuerza, con la intención de modificar la composición étnica de una población o de cometer otras violaciones graves del derecho internacional. En modo alguno se entenderá que esta definición afecta a las normas de derecho interno relativas al embarazo;

g) Por “persecución” se entenderá la privación intencional y grave de derechos fundamentales en contravención del derecho internacional en razón de la identidad del grupo o de la colectividad;

h) Por “el crimen de apartheid” se entenderán los actos inhumanos de carácter similar a los mencionados en el párrafo 1 cometidos en el contexto de un régimen institucionalizado de opresión y dominación sistemáticas de un grupo racial sobre uno o más grupos raciales y con la intención de mantener ese régimen;

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i) Por “desaparición forzada de personas” se entenderá la aprehensión, la detención o el secuestro de personas por un Estado o una organización política, o con su autorización, apoyo o aquiescencia, seguido de la negativa a admitir tal privación de libertad o dar información sobre la suerte o el paradero de esas personas, con la intención de dejarlas fuera del amparo de la ley por un período prolongado.

3. A los efectos del presente Estatuto se entenderá que el término “género” se refiere a los dos sexos, masculino y femenino, en el contexto de la sociedad. El término “género” no tendrá más acepción que la que antecede.4

O texto normativo de certo modo consolida e sintetiza os entendimentos contemporâneos sobre o conteúdo dos crimes de lesa humanidade, atualizando o legado de Nuremberg (Teitel: 2003, p. 23).

3. Justiça constitucional transicional: variações democráticas e transições comparadas

Diante da maior abrangência das discussões sobre a temática, bem como de uma maior sedimentação de certos conceitos, transformados em pontos de partida irrenunciáveis no atual contexto internacional, vejamos como os paradigmas nuremberguianos podem ser ponderados nas diversas experiências nacionais de enfrentamento dos legados do passado autoritário pelos novos regimes de democracia constitucional e suas respectivas justiças transicionais.

Para tal intento, incluiremos aqui algo do debate presente em duas experiências geograficamente distantes, mas internacionalmente significativas (África do Sul pós-apartheid e Alemanha pós-Muro de Berlin) e duas mais próximas, inclusive no caráter específico dos respectivos regimes autoritários (casos da Argentina e do Chile), da experiência brasileira, que será debatida no final.

3.1 África do Sul: apartheid e a exposição visceral do regime

4 Versão oficial em espanhol, disponível em http://www.un.org/spanish/law/icc/statute/spanish/rome_statute(s).pdf, acesso em 02/12/2010.

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É tristemente famosa a experiência do apartheid na África do Sul. Durante mais de quatro décadas, foi sistematicamente cometida toda ordem de crimes contra os sul-africanos negros. A violência política e as violações de direitos humanos incluíram assassinatos, torturas, massacres, longos encarceramentos de ativistas e severa discriminação econômica e social em virtude da segregação racial. O próprio Nelson Mandela, maior ícone da resistência anti-apartheid, foi encarcerado político durante longos vinte e sete anos.

A era segregacionista começou a desmoronar em 1990, justamente com a libertação de Mandela e as negociações entre o governo, o Congresso Nacional Africano e outros grupos políticos sul-africanos, o que resultou na convocação e realização de eleições, culminando na eleição de Mandela como Presidente da República, em 1994.

Em 1996, veio a nova Constituição. Já no preâmbulo, o reconhecimento formal do passado injusto e discriminatório e as novas bases político-jurídicas fundamentadas na igualdade entre os cidadãos sem mais segregação racial ou de qualquer outra espécie fornecem as novas diretrizes do Estado democrático sul-africano. Todo o texto constitucional é inspirado por esse ideário (Vajli: 2010, p. 3).

Contudo, antes mesmo da promulgação da Carta de 1996, a África do Sul deu um passo decisivo para a realização da justiça transicional em seu território. Em 1995, o Parlamento aprovou a Lei de Promoção da Unidade Nacional e da Reconciliação, que, por sua vez, criou a Comissão da Verdade e da Reconciliação (Truth and Reconciliation Comission), encarregada de investigar, esclarecer e registrar os casos de violações de direitos humanos (muitas das quais crimes de lesa humanidade) ocorridas no período compreendido entre 1960 e 1994.

Em abril de 1996, sob a Presidência do Arcebispo Desmond Tutu, a referida Comissão iniciou seus trabalhos, tendo já em 1998, ouvido mais de 23 mil testemunhas, sendo cerca de duas mil em audiências públicas.

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O aspecto mais controvertido da Comissão foi a ideia de se trocar “anistia por verdade”. Os autores de violações de direitos humanos que confessassem seus crimes e esclarecessem toda a sua participação no mesmo poderiam ser anistiados em caráter individual. Não houve anistia geral e irrestrita para os agentes estatais do período do apartheid. Além do caráter estritamente individual, a anistia ainda possuía como pré-condições a solicitação pessoal do agente, a prova da motivação política e da proporcionalidade de suas ações, além do esclarecimento completo do ocorrido. Como afirma Nahla Vajli, tratou-se de uma

abordagem de "incentivo e castigo": aqueles que se apresentassem e preenchessem os critérios não somente estariam livres de acusações criminais, como também ficariam protegidos de qualquer ação civil por aqueles atos. O "castigo" para quem não se apresentasse era o risco de ver seu nome implicado por outros, o que podia resultar num processo criminal (Vajli: 2009).

Famílias e vítimas arguiram a inconstitucionalidade da anistia naqueles termos, alegando ser violação de suas garantias fundamentais constitucionais (art. 35) de acesso à justiça em busca de reparações civis e punições criminais. O Tribunal Constitucional sul-africano, contudo, considerou-a constitucional e apta a promover os objetivos gerais da justiça transicional, já que a própria lei previa a suspensão do direito à justiça desde que garantido o direito à reparação. Esta última fornecida às cerca de vinte e duas mil vítimas identificadas nos relatórios da Comissão foi considerada surpreendentemente pequena, tendo afinal o governo desembolsado cerca de 400 dólares para cada uma delas, em parcela única, o que de fato mostra-se irrisório diante da magnitude do sofrimento perpetrado contra as mesmas.

Embora a maior parte dos criminosos tenha permanecido impune e a reparação não ter sido digna dessa nomenclatura, os crimes dos agentes do apartheid foram em grande medida expostos à sociedade sul-africana e mundial, e seus autores, se não punidos juridicamente, não escaparam a uma profunda execração moral

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diante das revelações públicas de seus delitos. Basta lembrar que as audiências públicas realizadas com os relatos das vítimas e testemunhas em relação aos maus tratos, torturas e assassinatos tiveram transmissão televisiva para todo o país, expondo as vísceras do regime e de seus capatazes (Vajli: 2009).

Todavia, o fato é que na África do Sul, para se alcançar a reconciliação nacional, a priorização das ações da justiça transicional foi a verdade e a memória em detrimento da reparação das vítimas e principalmente da punição dos perpetradores de crimes de lesa humanidade.

3.2 Alemanha: o “Adeus, Lênin” aos fragmentos político-jurídicos do Muro de Berlin

Como já abordado, a justiça transicional aplicada pelo Tribunal de Nuremberg em relação aos nazistas é muitíssimo conhecida e bem divulgada. Contudo, nos anos 90 do século passado, a Alemanha passou por outra experiência de justiça transicional, muito menos divulgada, mas também de grande importância: trata-se da violação de direitos humanos e do cometimento de crimes contra a humanidade pelos agentes estatais da antiga República Democrática Alemã.

A RDA, também conhecida como Alemanha Oriental, foi um Estado que surgiu da porção de domínio soviético do território alemão. Inicialmente Estado satélite da União Soviética, foi aos poucos adquirindo maior independência política e administrativa, embora tenha permanecido ligada àquele país por laços ideológicos, afinal, tratava-se de um Estado socialista de inspiração marxista-leninista. Durante os 40 anos de sua existência, se solidificou a partir de um regime político totalitário, com grande ênfase na atuação da polícia secreta (a temida STASI) e do partido único, instrumentos que, segundo Franz Neumann, são essenciais para a caracterização de uma ditadura totalitária (Neumann: 1969, p. 274).

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Dessa forma, a RDA também deixou graves sequelas a serem solucionadas por critérios justransicionais após a queda do regime e da extinção do Estado alemão oriental e de sua incorporação à República Federal da Alemanha.

A simbolização da extinção da RDA pela queda do Muro de Berlin não foi apenas isso. A questão do alcance da responsabilidade dos guardas que protegiam o “dique antifascista” (como o denominava Erich Honecker, o último efetivo chefe de Estado daquele país) em relação aos assassinatos daqueles que tentaram ultrapassar a fronteira estabelecida foi a principal questão de justiça transicional debatida na era pós-Muro, pois também envolveu a responsabilização dos líderes e chefes daqueles que executaram as ordens.

Inúmeros julgamentos ocorreram sobre o tema, destacando-se pela notoriedade o Caso Chris Gueffroy, a última vítima fatal dos guardas do Muro de Berlin.

O referido caso envolveu, assim como os demais, a questão da necessidade de se estabelecer punições para tais atos violadores não somente da Constituição da RFA, mas também da Convenção Europeia de Direitos Humanos, de um lado, e as escusas de responsabilidade, por outro, principalmente fundamentada na ausência de vigência da Constituição de Bonn no território alemão oriental naquele período, o que faria com que fossem inaplicáveis as disposições penais pertinentes neste caso, pois do contrário haveria violação do art. 103.2 da Lei Fundamental que prevê, à semelhança da Carta brasileira, a proibição da retroatividade das leis penais.

Tanto no Caso Chris Gueffroy, como nos demais, o entendimento de todos os tribunais, desde os Tribunais Territoriais em Berlin até o Supremo Tribunal Federal (equivalente de modo aproximado ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro), bem como o próprio Tribunal Constitucional Federal, foi no primeiro sentido, qual seja, de que as violações de direitos humanos nos casos dos guardas do Muro eram suficientemente graves a ensejar as punições criminais previstas, embora também seria necessária a ponderação dos aspectos

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jurídicos específicos do ordenamento então vigente na RDA, utilizando-se daquilo que o STF alemão denominou em um dos julgados de “fórmula de Radbruch”, ressalvando-se a necessidade de conectar direito e moral (os conteúdos de justiça material pertinentes), sem que se tenha um completo desprezo em relação a um ou outro, vislumbrando-se mais uma vez critérios de proporcionalidade e razoabilidade para efetuar uma adequada ponderação de bens em cada um dos casos (Alexy: 2000, pp. 204-205; Figueiredo: 2008, pp. 35-37).

O fato é que os casos envolveram principalmente duas questões: a obediência aos superiores hierárquicos e a responsabilização individual em um Estado totalitário. Especificamente o Caso Gueffroy serviu para fundamentar as acusações contra várias figuras de proa do regime decaído, como o próprio Erich Honecker, Erich Mielke (chefe da STASI), Heins Kessler (Ministro da Defesa), Fritz Streletz (Ministro Adjunto da Defesa), Willi Stoph (1º Ministro e Vice-Presidente do Partido), Hans Albrecht (chefe local do Partido) e Egon Krenz (ex-Chefe de Estado da RDA) (Galindo: 2005, pp. 102-105; Rosenberg: 1999, pp. 277ss.).

Tanto os guardas fronteiriços como os líderes políticos responsáveis foram condenados, mas a gradação das penas variou, tendo sido em geral mais duras contra os autores mediatos dos crimes (os líderes políticos e chefes) do que contra os soldados atiradores; a maior condenação nestes casos foi a três anos e meio de prisão, ao passo que nos casos dos líderes, Egon Krenz teve a pena mais rigorosa (seis anos e meio de reclusão), refletindo a diversidade de tratamento dada pelos tribunais alemães na questão da responsabilização individual dos agentes.

Outra questão relevante no contexto alemão noventista foi o direito à verdade e à memória, envolvendo os arquivos da polícia secreta, a STASI. Como afirmei em outra oportunidade, a STASI foi a organização de espionagem mais abrangente da história mundial e os alemães orientais o povo mais espionado, como bem retratado cinematograficamente pelo filme de Florian Henckel Von

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Donnersmarck, “A Vida dos Outros”. Era praticamente um Estado dentro do Estado, com um complexo de 41 edifícios de concreto pardo, 18 mil apartamentos para encontros de espiões, cerca de 97 mil funcionários diretos e 174 mil colaboradores não oficiais, além de arquivos detalhados sobre a vida de aproximadamente seis milhões de pessoas, isso tudo em uma população de pouco mais de 17 milhões. O controle da vida pessoal e profissional dos cidadãos da RDA pela STASI chegava perto de um pesadelo orwelliano... (Galindo: 2005, pp. 97-99; Rosenberg: 1999, pp. 305-306; Funder: 2008, p. 85; Orwell: 2004, passim).

Após a queda da RDA, os arquivos da STASI foram abertos em 1992, após aprovação de lei neste sentido. As revelações dos arquivos foram estarrecedoras, mostrando situações de espionagem familiar (pais contra filhos, maridos contra esposas e vice-versa) e de utilização dos dramas e dificuldades pessoais dos cidadãos alemães orientais para chantageá-los e pressioná-los a agirem de acordo com as vontades dos governantes e líderes políticos (a “vontade do Partido”) (Galindo: 2005, pp. 95-98; Rosenberg: 1999, pp. 277ss.).

Em relação a esta questão, como se viu, a RFA optou por garantir o direito à memória e à verdade, determinando a abertura dos arquivos da STASI e de outros departamentos da antiga RDA. Neste caso, tratou-se de decisão eminentemente política, sem a necessidade de interferência judicial.

3.3 Argentina: os clamores da Plaza de Mayo

“Con vida los llevaron, con vida los queremos”, foi uma das frases que ouvi na manifestação semanal das Mães e Avós da Plaza de Mayo, que ocorre sempre às quintas, em Buenos Aires, entre a referida praça e a Casa Rosada, sede do poder executivo argentino.

As mães e avós argentinas se tornaram mundialmente conhecidas pela incansável luta para recuperarem as vidas, as identidades e as histórias de seus filhos e netos, desaparecidos políticos durante a última ditadura militar no país, entre 1976 e 1983.

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De fato, os números da ditadura argentina impressionam: é de longe a ditadura latino-americana proporcionalmente mais sanguinária, considerando que as estimativas mais modestas em relação ao total de desaparecidos políticos giram em torno de dez mil, tendo algumas outras chegando a mais de trinta mil cidadãos argentinos provavelmente assassinados, já que na maioria dos casos parece não terem deixado rastro. Durante os sete anos de sua duração, a ditadura argentina instituiu um verdadeiro “terrorismo de Estado”, com um plano de repressão generalizada contra todos aqueles que aparecessem aos olhos do regime como subversivos. Tal plano sistemático do cometimento de crimes de lesa humanidade e violação de direitos humanos teve como principais características o desaparecimento forçado de pessoas, os assassinatos, as torturas, a apropriação e subtração de bebês de suas mães (e, consequentemente, da identidade dessas crianças) e o encarceramento generalizado dos “subversivos” em centros clandestinos de detenção, sem qualquer informação à família dos mesmos, como bem retratado em filmes como “A História Oficial” e “Crônica de uma Fuga”, bem como no ficcional “Visões” (Litvachky: 2007, p. 108; Yacobucci: 2011, pp. 23ss.).

Todavia, houve resistências por parte da comunidade jurídica (destacando-se a figura de Germán Bidart Campos) e da própria Suprema Corte argentina no que dizia respeito especialmente ao cumprimento do art. 23 da Constituição (Caso Zamorano, cuja decisão foi proferida em 9 de agosto de 1977), considerando-se que apesar do estado de sítio permanente, a Carta argentina de 1853-1860 ainda estava em vigor (Garzón: 2003, passim).

Após a derrota militar para os britânicos na chamada “Guerra das Malvinas”, os dirigentes enfraquecidos terminaram por permitir o retorno dos civis ao poder, não sem antes se outorgarem anistia ampla pelos atos cometidos através da Lei 22924/1982. Em 1985, vários julgamentos ocorreram no poder judiciário, considerando culpada a maioria dos integrantes das juntas militares e inconstitucionais os dispositivos de auto-anistia da referida Lei, tudo isso após o minucioso trabalho investigativo da CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas), criada ainda em 1983

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(Litvachky: 2007, pp. 108-109; Salmón G.: 2006, pp. 20-21; Yacobucci: 2011, pp. 25-26).

Apesar disso, a questão não se encerrou aí. Os membros das juntas militares tiveram suficiente força política para aprovarem entre 1986 e 1987 as Leis conhecidas como “Do Ponto Final” e da “Obediência Devida” (denominadas por Litvachky de “el combo de la impunidad”), encerrando supostas dúvidas sobre o alcance da anistia conferida em 1982 (Litvachky: 2007, p. 109; Salmón G.: 2006, p. 9). Não obstante, logo depois o então Presidente Carlos Menem concedeu indulto presidencial aos líderes militares do período.

A partir do início do século atual, os debates voltaram a ganhar importância. A pressão política junto aos poderes do Estado e a maior sensibilização dos novos juízes e legisladores fizeram com que o tema fosse rediscutido. O advento de Néstor Kirchner à Presidência da República também contribuiu para novas políticas governamentais sobre o assunto, inclusive com a anulação dos indultos, consubstanciando aquilo que veio a ser chamado de “reversão do menemismo” (Bonvecchi: 2004, passim; cf. tb. Matarollo: 2007, p. 44).

Decisões judiciais proferidas a partir de 2001 com o Caso Poblete (sequestro de uma menina ainda bebê durante a ditadura) começaram a declarar inconstitucionais aquelas leis. Tal entendimento fez com que o Congresso Nacional argentino se visse pressionado a revogá-las, o que terminou fazendo, e que a Suprema Corte terminasse por sedimentar o entendimento, reafirmando-o desde 2005, que as leis de fato são inconstitucionais e diante do próprio modelo de recepção dos tratados internacionais de direitos humanos como normas constitucionais, instituído no art. 75, 22 da Constituição pela Reforma Constitucional de 1994, seria inaceitável posição diversa (Dalla Vía: 2004, pp. 293-294)

Estava aberto, portanto, o caminho para a responsabilização dos agentes estatais argentinos por crimes de lesa humanidade cometidos durante o período de exceção (Campos: 2004, pp. 297-298).

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A partir dessas mudanças, os clamores da Plaza de Mayo parecem finalmente fazer-se ouvir. Segundo os dados do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), tem-se atualmente um total de 1604 investigações catalogadas, com a seguinte situação: 726 agentes aguardando julgamento, dentre eles, 422 presos preventivamente; 113 condenados, incluindo dois ex-Presidentes da República (Rafael Videla e Reynaldo Bignone) condenados à prisão perpétua; 8 absolvidos e 284 denunciados em investigação ainda na fase de inquérito, sem processo formal instaurado contra os mesmos (disponível em http://www.cels.org.ar/wpblogs/, acesso em 02/12/2010).

No caso dos argentinos, parece haver uma grande disposição de acertar contas com o passado, buscando assegurar todos os direitos apontados por Bickford quanto ao conceito de justiça transicional, quais sejam, verdade, justiça, reparação e punição dos violadores, bem como as reformas institucionais. Basta que se observe o comportamento das Forças Armadas atuais da Argentina, não interferindo em nenhuma dessas questões judiciais e respeitando suas decisões, trazendo com isso um grande alento a nuestros hermanos que podem ver seus militares atuais como democratas e defensores da Constituição. Estes, por sua vez, parecem querer cada vez mais se dissociar politicamente das juntas militares governantes do período entre 1976 e 1983.

3.4 Chile: os “espíritos fora da casa” - condenação internacional e mobilização judicial interna

“Chi, chi, chi, le, le, le; viva Chile!”, dizem os patriotas chilenos quando torcem pela sua seleção de futebol. Mas não somente. Os discursos e as saudações patrióticas estão presentes até no recente e bem sucedido resgate dos mineiros aprisionados em uma mina de cobre no norte do país. Não poderia deixar de estar também no discurso político stricto sensu, de Salvador Allende (defender o Chile e seu povo das expropriações capitalistas e imperialistas) a

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Augusto Pinochet (defender a família e a sociedade chilena dos comunistas e “subversivos da lei e da ordem”).

O histórico da ditadura militar chilena é também bastante conhecido. Salvador Allende é eleito Presidente da República e assume o poder em 1970 como o primeiro líder socialista e simpatizante de Marx eleito democraticamente na América Latina. Apesar de marxista, Allende defendia em palavras e ações a democracia representativa e a via eleitoral para as reformas sociais no Chile, rechaçando revoluções armadas.

Em 1973, descontentes com os rumos do governo, uma parte das Forças Armadas liderada por um antigo colaborador de Allende, o Gal. Augusto Pinochet, empreendeu um golpe de Estado que derrubou o seu governo e instaurou uma ditadura militar em 11 de setembro de 1973.

Pinochet governou o Chile com mão de ferro de 1973 a 1990. O país encontrou prosperidade econômica, contudo, construída a partir de bases políticas extremamente repressivas em relação à população. Assim como nos outros casos, assassinatos, torturas, perseguição implacável aos adversários e terrorismo de Estado foram amplamente utilizados como política de Estado oficial ou oficiosa, a depender da situação.

Em 1990, ao devolver o poder aos civis após certo enfraquecimento político, Pinochet impõe aos mesmos a sua designação como “senador vitalício”, além da continuidade da vigência do Decreto-Ley 2191/1978 que havia instituído a auto-anistia aos agentes estatais da era autoritária. Aliás, o próprio General advertira a Patricio Aylwin, novo Presidente eleito que “Nadie va a tocar a mi gente. El día que lo hagan, se acaba el Estado de derecho”, o que fez o governante recém-empossado afirmar que os chilenos teriam “toda la verdad y la justicia en la medida de lo posible”, tendo com essa finalidade criado a Comissão Nacional da Verdade e da Reconciliação, através do Decreto Supremo no. 355/1990 (Salmón G.: 2006, pp. 5, 20-21; Sutil: 2007, p. 39-40; Zanuzo: 2009, pp. 90-91).

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A contundência autoritária de Pinochet permaneceu regendo a questão durante os anos que se seguiram, até que estímulos externos surgiram. O primeiro deles foi dado pelo pedido de extradição do ex-governante chileno feito em 16 de outubro de 1998 pelo Juiz espanhol Baltasar Garzón ao Governo do Reino Unido, em virtude de Pinochet lá se encontrar na ocasião. Solicitava a extradição para a Espanha para que lá fosse julgado por crimes de lesa humanidade cometidos contra cidadãos espanhóis em território chileno, envolvendo o elenco de violações de direitos humanos aludidas acima. Após muitas discussões, o Comitê de Apelações da Câmara dos Lordes, então órgão judicial da mais alta posição hierárquica no sistema britânico, decidiu que Pinochet era extraditável, não sendo válidas auto-anistias nem imunidades concedidas a si próprios, e deixou para o poder executivo a incumbência de fazê-lo ou não, de acordo com a análise política do caso. O governo decidiu não extraditá-lo para a Espanha sob a alegação de que o General não teria mais condições de saúde para responder ao processo e Pinochet voltou ao Chile, após todas essas idas e vindas de debates judiciais e políticos (Woodhouse: 2000, passim; Chigara: 2000, p. 126; Dorfman: 2003, pp. 119ss.).

O segundo e decisivo passo foi a condenação do Estado chileno por decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2006 no Caso Almonacid Arrellanos. Neste, a CIDH reafirmou as teses que já estipulara em outros casos paradigmáticos como Cumbipuma Aguirre y Otros x Peru/2001 (Caso Barrios Alto), Comunidad Moiwana x Suriname/2005 e Las Hermanas Serrano Cruz x El Salvador/2005, dentre as quais as seguintes:

Crimes de lesa humanidade podem ser cometidos em tempo de guerra ou de paz; Leis de auto-anistia são inválidas em relação a crimes contra o direito internacional humanitário (manifesta incompatibilidade entre tais leis e o Pacto de San José – CADH); Obrigação do Estado de investigar e punir os crimes contra a humanidade: combate à impunidade dos referidos crimes;

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Imprescritibilidade dos crimes: inoponibilidade de objeções de direito interno (Weichert & Fávero: 2009, 561-567; Piovesan: 2011, pp. 73ss.; Belaúnde: 2003, passim; sentenças disponíveis em www.corteidh.or.cr).

A condenação internacional abriu novas possibilidades. O

Governo da Presidente Michele Bachelet estabeleceu nova agenda governamental sobre a questão, inclusive na relação com as Forças Armadas, já mais depuradas dos herdeiros do pinochetismo. Ainda antes dela, o Presidente Ricardo Lagos criou a Comissão Nacional sobre Prisão, Política e Tortura, que agiu de forma intensificada na apuração dos 3.178 desaparecimentos de cidadãos chilenos e outros envolvidos em atividades “subversivas”, bem como dos 27.255 sobreviventes de torturas perpetradas por agentes do regime (Salmón G.: 2006, pp. 21-22; Sutil: 2007, p. 37; Neira: 2011, p. 287)

A seu turno, desde a volta de Pinochet ao Chile após o longo período de prisão domiciliar em Londres, aumentou no poder judiciário chileno a quantidade de decisões declarando a invalidade do DL 2191/1978 e de todos os dispositivos de auto-anistia quanto a crimes de lesa humanidade (Dorfman: 2003, pp. 127-130).

Contudo, o Caso Almonacid Arrellano foi realmente decisivo. Com fundamento nele, foram abertos e/ou reabertos 120 processos contra ex-integrantes do governo autoritário, inclusive o próprio Pinochet que não chegou a sofrer qualquer condenação em razão do seu falecimento naquele mesmo ano de 2006. Várias condenações ocorreram, sendo a mais célebre delas a do Gal. Manuel Contreras, ex-Diretor da DINA, a polícia secreta do Governo Pinochet. Contreras foi considerado culpado dos crimes de sequestro, rapto, tortura e homicídio de vários presos políticos pela Corte de Apelações de Santiago em 30 de junho de 2008, no denominado Caso Carlos Prats5. Em 2010, a Suprema Corte do Chile confirmou as condenações,

5 General que apoiara Allende e não aceitou o golpe militar, tendo, em razão disso, sido assassinado em um atentado a bomba promovido pelos agentes da DINA em Buenos Aires, onde Prats se encontrava exilado em 1974 (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/764027-chefes-da-repressao-na-ditadura-de-pinochet-tem-pena-reduzida-no-chile.shtml, acesso em 05/12/2010).

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embora tenha reduzido as penas de Contreras e da maioria dos demais réus (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/764027-chefes-da-repressao-na-ditadura-de-pinochet-tem-pena-reduzida-no-chile.shtml, acesso em 05/12/2010).6

Vê-se que, mesmo em um contexto diverso, o Chile também busca um acerto de contas com o passado autoritário. Todos os direitos, verdade, justiça, reparação e punição das violações, bem como as reformas institucionais, também ocorrem na justiça transicional chilena, apesar de todos os percalços e das críticas de muitos autores quanto à excessiva parcimônia nas condenações a partir da utilização de institutos penais como a “prescrição gradual” (cf. Lira: 2007, passim; Neira: 2011, pp. 95ss.).

3.5 Brasil: os tapetes continuam “úteis” – festejos e lamentos em torno da ADPF 153

Após essa longa viagem lítero-político-jurídica por três continentes, quatro países e suas experiências de justiça transicional, voltamos ao Brasil.

Como é fartamente sabido, nosso país passou por um longo período de exceção, desde o golpe de Estado de 1964 (impropriamente chamado de “revolução” pelos militares, o que contraria conceitos elementares de teoria política, mesmo de teóricos políticos tidos por conservadores) que instaurou a ditadura militar no Brasil até 1985, quando a eleição indireta de Tancredo Neves pelo Congresso Nacional, então candidato do PMDB (à época, partido de oposição), marcou a volta do poder político ao comando dos civis, embora em razão do falecimento do Presidente, assumiu em caráter definitivo o vice eleito, hoje Senador, José Sarney. Tal período, apesar de mais longo que os regimes autoritários da Argentina e do Chile, teve uma estatística menos sangrenta do que a desses países, a ponto de um infeliz editorial do Jornal Folha de São Paulo ter afirmado que

6 Desde o ano de 2005, quando proferida a primeira sentença definitiva desses casos, foram proferidas precisamente 100 decisões, sendo 89 condenações e 11 absolvições até dezembro de 2010 (Neira: 2011, p. 286).

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a ditadura brasileira teria sido uma “ditabranda” (edição de 17/02/2009).

Se o debate for meramente estatístico, talvez a Folha tenha razão. Mas discutir estatísticas dos crimes de lesa humanidade como tentativa de minimizar sua gravidade no contexto da ditadura brasileira enseja um sério risco de justificar tais atos, o que de certo modo explica, embora não necessariamente justifica, a “brandura” com que os poderes públicos têm tratado das violações de direitos humanos no período, especialmente quanto aos agentes do próprio “Estado-torturador”, como o denominou Luciano Oliveira (1995, pp. 37ss.).

O regime militar brasileiro manteve algumas aparências de Estado democrático, com o Congresso Nacional e o poder judiciário funcionando com regularidade. Contudo, os diversos Atos Institucionais esvaziaram de sentido e eficácia as próprias Constituições de 1946, 1967 e 1969 (EC 1), já que eram em termos concretos os atos normativos mais importantes no Estado brasileiro da época.

Como a repressão política no Brasil foi mais seletiva, o número constatado de desaparecidos pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos é até o momento de 479, tendo sido o Estado brasileiro responsabilizado por tais crimes. Porém, há mais de dez mil torturados nos porões da repressão e mais de 40 mil pessoas prejudicadas pessoal e/ou profissionalmente por atos de perseguição política por parte do regime de exceção vigente à época. O famoso documento da Arquidiocese de São Paulo intitulado “Brasil Nunca Mais!”, publicado em 1985, ainda aponta, com fundamento nos próprios registros do período autoritário, a prática da tortura como algo sistematizado e generalizado nas atividades repressoras do Estado brasileiro na ditadura militar.

Os períodos do “milagre econômico”, do “Brasil, ame-o ou deixe-o” dos governos Médici (principalmente) e Geisel, foram também os períodos de maior intensificação da repressão política (os denominados “anos de chumbo”), quando a dissidência política

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armada foi completamente dizimada (como no caso da Guerrilha do Araguaia), chegando o Estado-torturador brasileiro, após o esmagamento daquela dissidência, a ter necessidade de “fabricar novos subversivos para assegurar sua própria reprodução” (Oliveira: 1995, p. 37), o que provavelmente foi o início do fim.

Antes, porém, do ocaso completo da ditadura, os militares brasileiros conseguiram aprovar no Congresso Nacional a denominada “Lei da Anistia”, Lei 6683/1979, que estabeleceu em seu art. 1º a anistia para os crimes políticos e eleitorais, bem como os crimes conexos com os primeiros. Tal lei foi sempre percebida pela maioria dos poderes públicos, bem como pelas Forças Armadas brasileiras como uma lei de anistia bilateral, alcançando tanto os dissidentes políticos da oposição que praticaram crimes com o intuito de derrubar o regime de exceção como os agentes estatais que os cometeram para defenderem o regime militar de seus inimigos. Uma interpretação profundamente heterodoxa da clássica ideia de conexão de crimes, bem como do alcance conceitual da expressão “crime político”, levou a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro a manterem o entendimento de que a anistia alcançaria os agentes da repressão política que praticaram crimes de lesa humanidade, na ocasião do julgamento da ADPF 153, em 29 de abril de 2010 (acórdão e votos disponíveis em www.stf.jus.br). O Tribunal decidiu pela improcedência da referida Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil), com sete votos nesse sentido (Mins. Carmen Lúcia Rocha, Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Eros Grau, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello) e somente dois contrários (Mins. Carlos Ayres Britto e Ricardo Lewandowski).

Primeiro observe-se a questão do alcance da expressão “crime político”. Falar-se em um crime com o adjetivo “político” acoplado ao mesmo significa antes de tudo a existência de uma motivação política para o cometimento daquele. Só será crime se for tipificado como tal pelo próprio Estado, o que conduz ao entendimento de que é um ato contra o Estado, só que praticado com uma finalidade política.

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Conceituando a partir do entendimento tradicional do próprio STF, tanto a motivação como o bem jurídico violado precisam ser de natureza política (STF, RE 160841-2/SP, 03/08/1995, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; tb. Marques: 2011, pp. 144ss.).

O conceito apresentado é aquele em que podemos acoplar outro adjetivo: puro ou próprio. Trata-se, portanto, do crime político puro ou próprio.

Todavia, há outro conceito que possui especial relevância: a existência do crime político impuro ou impróprio. Neste, segundo o STF e seguindo autores como Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Francisco de Assis Toledo, a motivação política estaria presente (elemento subjetivo), porém, ausente o dano a um bem estatal político (elemento objetivo) (STF, EXT 1008/República da Colômbia, 21/03/2007, Rel. Min. Gilmar Mendes; cf. tb. Mendes, Coelho & Branco: 2007, pp. 587-592).

Ambos os conceitos são amplamente aceitos no direito constitucional brasileiro e mundial. Todavia, nenhum deles alcança semanticamente os crimes cometidos pelos agentes estatais brasileiros, a se considerar que são crimes de lesa humanidade cometidos contra dissidentes políticos em favor do Estado e de seu regime de então e com a finalidade de protegê-lo, não de atacá-lo, sendo difícil a tarefa hermenêutica de afirmá-los como crimes políticos próprios ou impróprios. Nesse sentido, vale a transcrição do voto vencido do Min. Carlos Ayres Britto:

Antigamente se dizia o seguinte: hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude. O vício tem uma necessidade de se esconder, de se camuflar, e termina rendendo homenagens à virtude. Quem redigiu esta lei não teve a coragem – digamos assim – de assumir essa propalada intenção de anistiar torturadores, estupradores, assassinos frios de prisioneiros já rendidos; pessoas que jogavam de um avião em pleno voo as suas vítimas; pessoas que ligavam fios desencapados a tomadas elétricas e os prendiam à genitália feminina; pessoas que estupravam mulheres na presença dos pais, dos namorados, dos

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maridos. Mas o Ministro Ricardo Lewandowski deixou claro que certos crimes são pela sua própria natureza absolutamente incompatíveis com qualquer ideia de criminalidade política pura ou por conexão.

Reitero o juízo: após a interpretação dessa lei de anistia, não encontro clareza. E aqui, essa minha preocupação de clareza no propósito de anistiar é tanto mais necessária quanto se sabe que as pessoas de que estamos a falar – os estupradores, os assassinos, os torturadores – cometeram excessos no próprio interior do regime de exceção. Não foram pessoas que se contentaram com a própria dureza do regime de exceção; foram além dos rigores do regime de exceção para a ele acrescentar horrores por conta própria. Pessoas que exacerbaram no cometimento de crimes no interior do próprio regime de exceção, por si mesmo autoritário, por si mesmo prepotente, por si mesmo duro, por si mesmo ignorante de direitos subjetivos.

(........)

Estas pessoas de quem estamos a tratar – torturadores et caterva – desobedeceram não só à legalidade democrática de 1946, como à própria legalidade autoritária do regime militar. Pessoas que transitaram à margem de qualquer ideia de lei, desonrando as próprias Forças Armadas, que não compactuavam nas suas leis com atos de selvageria, porque o torturador não é um ideólogo. Ele não elabora mentalmente qualquer teoria ou filosofia política. Ele não comete nenhum crime de opinião, ele não comete nenhum crime político, já que o crime político – disse bem o Ministro Lewandowski – pressupõe um combate ilegal à estrutura jurídica do Estado, assim como a ordem social que subjaz à estrutura política desse Estado, sendo, portanto, um crime de feição político-social. O torturador não comete crime político, não comete crime de opinião, reitere-se o juízo. O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado. O torturador é aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso dos sofrimentos alheios, perpetrados por ele próprio. É uma espécie de cascavel de ferocidade tal que morde até o som dos próprios chocalhos. Não se pode ter condescendência com ele.

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Mas, convenhamos, a Lei da Anistia podia, por deliberação do Congresso Nacional, anistiar os torturadores. Digamos que sim, mas que o fizesse claramente, sem tergiversação. E não é isso que eu consigo enxergar na Lei da Anistia.7

Resta finalmente a questão da conexão delituosa. É aí que temos o maior fator complicador: o § 1º do art. 1º da Lei em questão que afirma que “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.

O entendimento clássico consolidado pela doutrina e até mesmo legalmente no caso brasileiro (CPP, art. 76) é de que a conexão implica em união, nexo, ligação entre um fato e outro, um acúmulo de fatos, dois ou mais crimes em concurso formal, aberratio ictus ou aberratio criminis (Rangel: 2007, pp. 324-325). Fala-se ainda em conexão intersubjetiva, material ou teleológica e instrumental ou probatória, as quais correspondem, segundo Pacelli de Oliveira, respectivamente aos incisos I, II e III do art. 76 do Código de Processo Penal pátrio (Oliveira: 2009, p. 253).

Ainda nesta seara, vale a pena destacar a observação feita pelo Min. Ricardo Lewandowski, em seu voto vencido, que, embora amplie o conceito de conexão, não admite sua existência no caso do dispositivo legal em questão:

Ora, como se sabe, o sistema penal e processual brasileiro somente contempla as seguintes hipóteses de conexão: (i) conexão material: concurso formal, material ou crime continuado (CP, arts. 69,70,71); (ii) conexão intersubjetiva por simultaneidade: duas ou mais infrações praticadas ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, sem acordo mútuo de vontades, conhecida como “autoria colateral” (CPP, art. 76, I, primeira parte); (iii) conexão intersubjetiva por concurso: duas ou mais infrações praticadas por várias pessoas em concurso, mediante acordo mútuo, embora

7 Merece referência a respeito o intercurso teórico intercultural sobre a tortura na reflexão de César Augusto Baldi (2011, pp. 159-165).

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diverso o tempo e o local (CPP, art. 76, I, segunda parte); (iv) conexão objetiva: duas ou mais infrações quando uma delas busca facilitar ou ocultar a prática de outra (CPP, art. 76, II); (v) conexão probatória: quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influírem na prova de outra infração (CPP, art. 76, III); e (vi) conexão intersubjetiva por reciprocidade: duas ou mais infrações praticadas, por várias pessoas, umas contra as outras (CPP, art. 76, I, última parte).

Como se percebe, mais uma vez trata-se de algo incompatível com o caso da anistia aos agentes repressores. Entretanto, encontrou-se uma forma de se estabelecer uma interpretação que, embora destoe daquilo que outras experiências de justiça transicional permitem vislumbrar, é plenamente compatível com o caráter político da jurisprudência do STF que parece atender às pressões de natureza igualmente política exercida por setores das Forças Armadas que veem na “revisão” da Lei da Anistia uma espécie de “revanchismo”.

No acórdão da decisão proferida, aparece um conceito de “conexão sui generis”. Segundo a decisão, a Lei 6683/1979 estabelece tal conexão, ignorando completamente os conceitos clássicos de conexão criminal, algo que a própria Min. Carmem Lúcia Rocha (que votou pela improcedência da ADPF) admitiu em seu voto, quando afirma que a anistia concedida “foi a que se conciliou para não se deixar avançar e que, na época, frutificou com consequências graves, porque tecnicamente não se teria a conexão de crimes”.

Em verdade, o STF construiu um conceito de conexão que admite que o crime inicialmente desconexo se torne conexo por uma ficção legal excepcional e não caberia ao STF reformar a lei, ato soberano do Congresso Nacional enquanto poder legislativo, mas apenas interpretá-la (não obstante o STF legislar obliquamente de forma tão frequente, como já explorei em outra oportunidade – Galindo: 2009, passim).

O mais curioso é que isso não está explícito na Lei 6683/1979, como bem destacou o Min. Carlos Ayres Britto. Como visto, o dispositivo polêmico não estipula nenhum conceito heterodoxo de

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conexão, mas simplesmente expressa o alcance da anistia para os crimes conexos, o que apontaria sem maiores problemas para o conceito de crimes políticos impróprios e não para essa inovação conceitual com a qual o STF trabalhou no acórdão, sob a alegação de interpretação conforme à Constituição.

Outros problemas surgem na argumentação desenvolvida nos votos vencedores. Destaco aqui os eruditos e bem fundamentados votos dos Mins. Celso de Mello e Gilmar Mendes, não obstante minha completa discordância com suas conclusões.

Em voto de 46 laudas, o Min. Celso de Mello desenvolve substancial argumentação contra a tortura e os crimes de lesa humanidade, dando a impressão em dado momento que concluiria à semelhança dos Mins. Ayres Britto e Ricardo Lewandowski. Contudo, dentre os argumentos que afirmam o alcance amplo da anistia, estendendo-a aos que, em nome do regime, cometeram aqueles crimes, Mello curiosamente chega a citar os casos da Argentina e do Chile, bem como a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, reconhecendo-a como de crucial importância para que as violações de direitos humanos nesses regimes não sejam esquecidas e seus perpetradores, punidos, criticando a auto-anistia. Não obstante, em seguida afirma que

É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de anistia brasileira, exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser qualificada como uma lei de auto-anistia, o que torna inconsistente, para os fins deste julgamento, a invocação dos mencionados precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Ora, se a lei, feita à época do regime, anistiaria os agentes estatais que cometeram os ditos crimes, como não seria de auto-anistia? Parece que o suposto caráter bilateral (não explicitado na referida lei, como já se falou) não desnatura a essência da auto-anistia, que significa essencialmente anistia concedida pelo regime aos seus próprios agentes, o que, admitida tal interpretação, ocorreu no caso.

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Um tanto desarrazoada a fundamentação do voto do Min. Celso de Mello neste particular.

No caso do voto do Min. Gilmar Mendes, em que pese sua erudição demonstrada em 50 laudas, citando autores como Carl Schmitt, Otto-Brun Bryde e Konrad Hesse (a meu ver, de modo descontextualizado), contém argumentos que extrapolam uma possível compreensão técnico-jurídica ou mesmo teórico-política da questão, ainda que heterodoxa, e parte para a análise político-ideológica, demonstrada em passagens como essas:

Assim, a perspectiva ideológica não justifica o cometimento de atrocidades, como sequestros, torturas e homicídios crueis. Ademais, ainda que fosse possível justificá-la – e não é possível -, é certo que muitos dos recorreram a esses delitos não buscavam a normalidade democrática, mas a defender sistemas políticos autoritários, seja para manter o regime de exceção, seja para instalar novas formas de administração de cunho totalitário, com bases stalinistas, castristas ou maoístas. É notório que, em muitos casos, os autores desses tipos de crimes violentos pretendiam estabelecer sistemas de governo totalitário, inclusive com apoio, financiamento e treinamento concedidos por ditaduras estrangeiras.

Embora admita que os crimes cometidos pelos agentes estatais tenham ocorrido em muito maior número do que os dos opositores do regime, o Min. Gilmar Mendes chega a traçar equivalências entre as duas situações, uma espécie de proporcionalidade às avessas, no mínimo intrigante para alguém que foi um dos patrocinadores do debate de inspiração alemã sobre o princípio da proporcionalidade no Brasil (Mendes: 1998, pp. 67ss.).

Em um parágrafo como o citado, embora não o diga, parece justificar moralmente a repressão e a tortura de dissidentes políticos pelo simples fato dos mesmos defenderem ideologias antidemocráticas, como se “stalinistas, castristas e maoístas” pudessem ser torturados pelo que são e pelo que defendem. E parece ignorar a quantidade de democratas e de opositores que jamais pegaram em armas contra o regime e que, não obstante, sofreram

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torturas e foram assassinados pelos agentes do regime, a exemplo do Padre Henrique (antigo assessor de Dom Hélder Câmara na Arquidiocese de Olinda e Recife), do jornalista Vladimir Herzog e de muitos outros (Oliveira: 1995, passim). Chega a afirmar que o Brasil é um dos mais generosos países em termos de reparações pecuniárias às vítimas da ditadura, como se apenas esse aspecto de justiça transicional fosse relevante no contexto brasileiro ou mesmo justificasse o “esquecimento” dos crimes do regime e principalmente dos criminosos que restam impunes (quase como se fosse possível com as ditas indenizações comprar o silêncio das vítimas...).

Em que pese minhas discordâncias com a posição majoritária do STF, não se pode negar que a decisão proferida tem certamente algumas implicações importantes, dentre as quais podemos destacar:

I – a recente condenação internacional do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Gomes Lund/“Guerrilha do Araguaia”), algo previsível diante dos já referidos precedentes da mesma sobre a impossibilidade de auto-anistia;8

II – a constatação da omissão do Estado brasileiro diante da obrigatoriedade de apuração dos referidos crimes de lesa humanidade cometidos no período;

III – a questão dos crimes de natureza permanente, como a ocultação de cadáveres e os sequestros de pessoas que ainda se encontram oficialmente “desaparecidas” (desaparecimento forçado de pessoas – cf. Jardim: 2011, pp. 109ss.);

IV – a questão da abertura dos arquivos ultrassecretos da ditadura militar, ainda a ser enfrentada pelo STF no julgamento da ADIN 4077, proposta pelo Procurador-Geral da República contra a Lei 11111/2005 (mais

8 Hoy, jurídicamente oponer obstáculos procesales como la amnistía, la cosa juzgada o la prescripción para investigar serias violaciones a los derechos humanos es contrario al derecho internacional. Los Estados saben que adoptar estas medidas, aún aquellas que estén vinculadas a los derechos de los acusados, implica una apuesta de alto riesgo (Ciurlizza: 2007, p. 98).

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especificamente o seu art. 6º, § 2º)9, rechaçando a ideia de perpetuação indefinida de sigilo documental, dentre outros questionamentos.

3.6 Ainda não acabou: os incessantes clamores no Brasil e la revancha del tango das vítimas da ditadura militar (Corte Interamericana e o Caso Gomes Lund/“Guerrilha do Araguaia”)

A depender da decisão do STF, parece que mais uma vez o Brasil perde o “bonde da história” e se vai mais uma grande oportunidade de acertar as contas com o passado, tendo a mais alta corte brasileira lamentavelmente contribuído de modo decisivo para isso. Os tapetes continuam “úteis” e a sujeira ainda é varrida para debaixo dos mesmos.

No Brasil, apenas algumas reparações pecuniárias às vítimas e reformas institucionais foram realizadas em reconhecimento dos danos ocasionados pelo Estado brasileiro a essas pessoas durante o período autoritário. Há arquivos oficiais que continuam indefinidamente secretos, aqueles que cometeram crimes de lesa humanidade continuam na prática impunes e com a garantia do anonimato, reforçando a cultura do “jeitinho” e a percepção de que a tortura e o assassinato de dissidentes políticos é aceitável, desde que se cumpra “ordens ou motivações superiores”. Por que, p. ex., um policial na época da ditadura podia torturar um preso político e um policial contemporâneo não pode fazer o mesmo contra criminosos

9 Art. 6º O acesso aos documentos públicos classificados no mais alto grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo e prorrogação previstos no § 2º do art. 23 da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. (...) § 2º Antes de expirada a prorrogação do prazo de que trata o caput deste artigo, a autoridade competente para a classificação do documento no mais alto grau de sigilo poderá provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que avalie se o acesso ao documento ameaçará a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do País, caso em que a Comissão poderá manter a permanência da ressalva ao acesso do documento pelo tempo que estipular.

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de alta periculosidade para obter informações que levem à prisão de outros criminosos perigosos?

O efeito pedagógico da tese da não repetição do autoritarismo resta enfraquecido em tal contexto (López: 2007, p. 171).10

Como se percebe nas outras experiências de justiça transicional, não se trata de “revanchismo”: revanchismo seria torturar os torturadores e ninguém está propondo isso. Propõe-se simplesmente estabelecer a plenitude da justiça transicional, atendendo aos direitos não somente das vítimas, mas de toda a sociedade brasileira à verdade, à memória, à reparação, às reformas institucionais, bem como a punição dos perpetradores de crimes de lesa humanidade contra cidadãos brasileiros.

Do solo costarriquenho de San José, veio, contudo, uma notícia alvissareira: a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o Processo “Guerrilha do Araguaia” (Gomes Lund e outros x Brasil) em 24 de novembro de 2010 e, seguindo seus precedentes e por unanimidade, declara o Estado brasileiro culpado por violação de vários dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos, em uma decisão diametralmente oposta à do STF em um sentido substancial. As conclusões da Corte no que diz respeito ao que foi denominado de “controle de convencionalidade”, ou seja, competência da CIDH para verificar se as normas de direito interno do Estado signatário são compatíveis com os dispositivos da Convenção, foram assim resumidas pelo Juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas:

a jurisprudência brasileira firme, inclusive placitada por decisão recente do mais alto órgão do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, esbarrou em jurisprudência

10 “La pregunta que me hago es, ¿cómo han hecho algunas sociedades para evitar la repetición de la violencia, insoportable, terminal y sistemática?, una de las respuestas ha sido seguir alimentando y manteniendo viva la memoria histórica de lo que sucedió, y para ello se hace necesario, al menos a mi juicio, tres premisas: a) conocer altos grados de verdad de lo que pasó y um cierto consenso sobre ellos, b) extraer lecciones éticas del uso y de las consecuencias a las que conduce la violencia, es decir, el hartazgo social de la violencia; y, c) mantener altas dosis pedagógicas para las generaciones futuras”.

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tranquila desta Corte ao deixar de observar o jus cogens, ou seja, normas peremptórias, obrigatórias aos Estados contidas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (também conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica”, doravante indicada também somente como “Convenção”). Em apertada síntese, é por esta razão que o País está sendo condenado nesta sentença, pelas violações à Convenção, a saber:

a) desaparecimento forçado e os direitos violados das 62 pessoas desaparecidas – violação dos direitos à personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal (artigos 34, 45, 56 e 77), às garantias judiciais e proteção judicial (artigos 88 e 259), em combinação com a obrigação de respeitar os direitos previstos e o dever de adotar disposições de direito interno (artigos 1.1, 10 e 211, todos da Convenção);

b) aplicação da Lei de Anistia como empecilho à investigação, julgamento e punição dos crimes – violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8.1 e 25), em combinação com a obrigação de respeitar os direitos previstos na Convenção e o dever de adotar disposições de direito interno (artigos 1.1 e 2), em detrimento dos familiares das vítimas desaparecidas e da pessoa executada;

c) ineficácia das ações judiciais não penais – violação dos direitos às garantia judiciais e à proteção judicial (artigos 8.1 e 25), em combinação com a obrigação de respeitar os direitos previstos na Convenção (artigo 1.1), detrimento dos familiares das vítimas desaparecidas e da pessoa executada;

d) falta de acesso à informação sobre o ocorrido com as vítimas desaparecidas e executada – violação do direito à liberdade de pensamento e expressão (artigo 13), em combinação com a obrigação de respeitar os direitos previstos na Convenção (artigo 1.1), em prejuízo dos familiares das vítimas desaparecidas e da pessoa executada, e

e) falta de acesso à justiça, à verdade e à informação – violação do direito à integridade pessoal (artigo 5), em combinação com a obrigação de respeitar os direitos previstos na Convenção (artigo 1.1), em detrimento dos

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familiares dos desaparecidos e da pessoa executada, pela violação e sofrimento gerados pela impunidade dos responsáveis.

(sentença disponível em www.corteidh.or.cr, acesso em 16/12/2010 – grifos do original, pp. 118-120).

Na parte dispositiva, a declaração da Corte IDH é ainda mais explícita:

as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

(sentença disponível em www.corteidh.or.cr, acesso em 16/12/2010 – grifos do original, p. 114).

Pelo visto, há um inevitável embate entre o STF e a Corte IDH na questão. O STF, que recentemente tem reconhecido a prevalência dos tratados de direitos humanos sobre a própria CF ou, no mínimo, como normas supralegais (vide o caso da prisão do depositário infiel cuja proibição tornou-se até súmula vinculante11 em respeito ao art. 7, 2, da Convenção), assumiu um ônus de enfrentamento com o direito internacional humanitário que ocasiona opções um tanto “indigestas” para o Tribunal: pode se resignar e acatar a decisão da Corte IDH, o que poderia ser uma “saída honrosa”, ou retroceder três décadas e voltar ao “nacionalismo jurisprudencial” do STF dos anos 70 do século XX, quando, a partir do julgamento do RExt 80004 em 1977, estabeleceu a interpretação de que tratados de qualquer espécie eram equivalentes hierarquicamente à lei ordinária no Brasil, inferiores até

11 SV 25: É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.

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mesmo à lei complementar (Galindo: 2006, p. 279; Ramos: 2011, passim).

Por outro lado, é possível que, a partir de ponderações teóricas mais recentes, como as propostas de “direito dialógico”, “diálogo das Cortes” e “transconstitucionalismo”, bem como da nossa “teoria intercultural da constituição”, todas apontando para a superação de um sistema dialético de hierarquias fixas ou pirâmides normativas inflexíveis, que o STF encontre bases doutrinárias para a referida “saída honrosa”, mais do que necessária nesse contexto (cf. Gomes & Mazzuoli: 2011, pp. 59-60; Ramos: 2011, pp. 216-219; Neves: 2009, passim; Galindo: 2006, passim). É possível, em tese, que o STF reafirme a constitucionalidade da Lei da Anistia nos termos do Acórdão exarado na ADPF 153, admitindo, entretanto, com fundamento na decisão da Corte IDH que a última palavra em termos de interpretação do Pacto de San José é daquela Corte internacional, assim como a última palavra na interpretação da Constituição é do STF. Uma solução transconstitucional, admitindo a intersistemicidade do direito constitucional brasileiro com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

De todo modo, a decisão da Corte Interamericana estabelece a revancha del tango: nosotros brasileños aun tenemos nuestra Plaza de Mayo. Libertango, Piazzolla: na terra do samba e do frevo, ainda há esperança de superação do passado autoritário.12

Efetivamente um passado autoritário não é superado com “esquecimentos” de que existiram criminosos de lesa humanidade e suas vítimas. Superar o autoritarismo implica em exorcizar os seus fantasmas, prevenindo exemplarmente situações semelhantes no futuro. Concordo com Rodolfo Matarollo quando afirma que as situações de impunidade de crimes atrozes abrem caminho ao

12 A licença “lítero-poética-recreativa”, como diria o Min. Gilmar Mendes, se refere ao primeiro trabalho do grupo de tango eletrônico Gotan Project, intitulado La Revancha del Tango, e à bela música de Astor Piazzolla de nome Libertango. Também o fizemos nos outros tópicos em referências ao filme alemão “Adeus Lênin”, de Wolfgang Becker, bem como ao romance “A Casa dos Espíritos”, da escritora chilena Isabel Allende, filha do Presidente deposto Salvador Allende.

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conflito permanente e à instabilidade que conspiram contra a paz social e a reconciliação nacional, bem como com o filósofo Theodor Adorno quando destaca a atitude de “esquecer e perdoar tudo”, que só poderia ser adotada pelas vítimas das atrocidades, em verdade foi, em praticamente todos os casos, perpetrada pelos próprios praticantes, como demonstrado no texto (Matarollo: 2007, p. 44). Não foi diferente no Brasil.

No que diz respeito à atuação do STF, ao menos quanto aos arquivos ultrassecretos, há um dado a se comemorar (talvez ainda com cautela) com os dizeres finais da Ementa da decisão, bem como dos votos dos Mins. Eros Grau e Celso de Mello, apontando para uma provável posição pela inconstitucionalidade do sigilo perpétuo e indefinido dos arquivos secretos do período: “Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura”.

Resta-nos aguardar a decisão do STF na ADIN 4077, esperando igualmente que os arquivos do período não desapareçam nem sejam incinerados até lá (cf. http://www.atarde.com.br/politica/noticia.jsf?id=1322261).

É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil. É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas.

(voto do Juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas, sentença disponível em www.corteidh.or.cr, p. 126, acesso em 16/12/2010)

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O FENÔMENO DOS “NOVOS” DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS DEMANDAS TRANSNACIONAIS.

Marcos Leite Garcia1

Paulo Márcio Cruz2

O presente artigo tem como objetivo principal oferecer alguns elementos para que se possa iniciar uma necessária reflexão sobre a questão da construção de um espaço transnacional. Espaço este que gradativamente está se tornando cada vez mais imprescindível para tratar de temas fundamentais de direitos difusos e transfronteiriços como o direito à paz, direito a um meio ambiente saudável, direito à segurança no consumo de bens através de uma economia globalizada, entre outros.

O filósofo alemão Jürgen Habermas no livro Era das Transformações3 prevê a construção de novos espaços a partir da perspectiva de ampliação da esfera da influência da experiência das sociedades democráticas para além das fronteiras nacionais. No entender de Habermas tal processo de democratização pode ser

1 Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madrid – Espanha. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – Cursos de Mestrado e Doutorado – e da graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). 2 Pós-Doutor em Direito do Estado pela Universidade de Alicante, na Espanha, Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Instituições Jurídico-Políticas também pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI em seus cursos de Doutorado e Mestrado em Ciência Jurídica. Foi Secretário de Estado em Santa Catarina e Vice-Reitor da UNIVALI. É professor visitante nas universidades de Alicante, na Espanha, e de Perugia, na Itália. E-mail: [email protected] 3 HABERMAS, Jürgen. Era das transformações. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. Título original: Zeit der Übergänge.

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reproduzido no que chama de constelação pós-nacional (Die postnationale Konstellation)4 pelos caminhos de uma política interna voltada para o mundo em geral, ou seja, aberta a uma ordem jurídica cosmopolita5, capaz de funcionar sem a estrutura de um governo mundial6.

A história recente da economia mundial indica cautela em afirmar como serão as instituições e as relações entre os diferentes blocos de nações que irão compor a Comunidade Internacional. Mesmo assim é inevitável e evidente a necessidade de abordar questões relacionadas ao fenômeno da transnacionalidade, dito de forma mais radical, sem receio a cometer exageros: faz-se vital para o futuro da raça humana tratar das questões que intitulamos de demandas transnacionais.

O fenômeno da transnacionalidade dá-se a partir das chamadas demandas transnacionais que a sua vez estão relacionadas com a questão da efetividade dos chamados direitos difusos e transfronteiriços. Desta maneira, as demandas transnacionais são questões fundamentais para o ser humano e que vêm sendo classificadas pela doutrina como “novos” direitos. Um fato é impossível de se evitar: as questões transnacionais devem ser abordadas e enfrentadas por toda a Comunidade Internacional de forma diferente da prevista nas legislações interna e internacional existente.

A discussão sobre as demandas transnacionais em primeiro lugar gira em torno da questão da guerra e da paz. Esta certamente é a primeira grande questão transnacional e difusa da humanidade. Os Direitos Humanos são um fenômeno do mundo moderno e são concebidos e teorizados primeiramente como Direito Natural

4 HABERMAS, Jürgen. A constelação nacional: Ensaios políticos. Tradução de Marcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001. Título original: Die postnationale Konstellation: Politischen Essays. 5 HABERMAS, Jürgen. Era das transformações. Especificamente capítulo 2, p. 37-74. 6 Idem, p. 175-193.

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Racionalista7 e será exatamente em um debate sobre o tema de guerra e da paz que Hugo Grotius dará partida ao mesmo8. O direito à paz segue sendo, principalmente após o processo de internacionalização dos direitos humanos – demanda oriunda, sobretudo do horror da Segunda Guerra Mundial –, um tema ainda em debate e agora classificado como um direito difuso (e transfronteriço mesmo em sua modalidade quando trata de conflitos internos) ou como pelo menos uma questão difusa, já que existe uma polêmica quanto a classificar a paz como um direito fundamental9. As seguintes serão todas

7 “No se puede hablar propiamente de derechos fundamentales hasta la modernidad. Cuando afirmamos que se trata de un concepto histórico propio del mundo moderno, queremos decir que las ideas que subyacen en su raíz, la dignidad humana, la libertad o la igualdad por ejemplo, sólo empiezan a plantear desde los derechos en un momento determinado de la cultura política y jurídica. Antes existía una idea de la dignidad, libertad y igualdad que encontramos dispersa en autores clásicos como Platón, Aristóteles o Santo Tomás, pero éstas no se unifican en ese concepto”. PECES-BARBA, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales: teoría general. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 1995. p. 113-114. 8 Segundo reza a tradição o Direito Natural Racionalista teria sido concebido quase que por acaso a partir da tese do holandês Hugo Grotius, no histórico livro De Jure Belli ac Pacis (publicado em 1625), no sentido de que o Direito Natural existiria ainda que Deus não existisse, por ser tratar de direitos naturais de um ser racional “(...) o que não pode ser concebido sem um grande crime, isto é, que não existiria Deus ou que os negócios humanos não são objeto de seus cuidados”. GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Volume I. Ijuí: Ed. Unijuí, 2004. p. 40. Ainda que devemos considerar a crítica de Herrera Flores que coloca em dúvida as verdadeiras intenções de Grotius (HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos como productos culturales: crítica al humanismo abstracto. Madrid: Catarata, 2005. p. 94), não resta dúvida que será a partir dessa concepção de Direito Natural do pensador holandês que os seguintes autores passaram a tratar a questão de forma diferente do Direito Natural Clássico de transfundo religioso e conseqüentemente o direito natural passa a ser gradativamente separado da religião pelos seguintes e históricos livres pensadores como Samuel Pufendorf, Chistian Wolf e Chiristian Thomasius entre outros. Sobre a questão em pauta, ver: GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. In: MARTEL, Letícia de Campos Velho (Org.). Estudos Contemporâneos de Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 3-26. 9 Sobre a polêmica que resulta da dificuldade de classificar o direito à paz como direitos humanos são interessantes as seguintes palavras, e o citado artigo, de Maria Eugenia Rodríguez Palop: “Sé muy bien que la defensa del derecho a la paz como derecho humano no solo no es habitual sino que ha sido agresivamente contestada

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demandas mais recentes como a questão do meio ambiente, do Direto dos consumidores, do direito ao desenvolvimento dos povos etc.

1. Demandas transnacionais, direitos fundamentais e suas linhas de evolução.

As demandas transnacionais se justificam a partir da necessidade de criação de espaços públicos para tratar de questões referentes a fenômenos novos que serão ineficazes se tratados somente dentro do espaço do tradicional Estado nacional. Estes fenômenos novos se identificam com os chamados “novos” direitos ou “novos” direitos fundamentais. Para evitar equívocos de fundo meramente ideológico, certamente que se faz necessário afirmar que as demandas transnacionais não tratam somente de questões relacionadas com a globalização econômica como alguns autores pretendem, e sim com fundamentais questões de direitos relacionadas com a sobrevivência do ser humano no planeta. A globalização econômica pode estar na base de algumas questões transnacionais, mas não é sua principal fonte e fundamentação, a principal justificativa da necessidade de transnacionalização do direito é a necessidade de proteção do ser humano e dentro dessa perspectiva também se encontra a proteção de seu entorno natural.

por una buena parte de los teóricos que se dedican a estos temas, con el agravante de que algunas de tales criticas están ampliamente fundadas. El derecho a la paz, además no ha sido ni suficientemente estudiado, ni analizado en profundidad, sino que da la impresión de que ha salido del campo de juego antes de empezar a jugar. Y eso es lo que, me parece, hay que intentar evitar. Evitar un fundamentalismo de los derechos humanos que nos lleve a excluir, sin discutirlas, demandas que se encuentran frecuentemente en el espacio público y que han sido enarboladas por un gran número de movimientos sociales”. RODRÍGUEZ PALOP, María Eugenia. El derecho a la paz: un cambio de paradigma. In: CAMPOY CERVERA, Ignacio; REY PÉREZ; José Luis; _____ (Orgs.). Desafíos actuales de los derechos humanos: reflexiones sobre el derecho a la paz. Madrid: Dykinson, 2006. p. 51. Da mesma maneira um interessante debate sobre o direito à paz em: RUIZ MIGUEL, Alfonso. Tenemos derecho a la paz? Anuario de Derechos Humanos, n. 3, 1985, p. 397-434.

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Os direitos fundamentais são um fenômeno da Modernidade, pois as condições para o seu florescimento se dão no chamado trânsito à modernidade, conforme a tese das linhas de evolução desenvolvidas pelo professor Peces-Barba10. Assim depois do primeiro processo de positivação que será marcado pelas revoluções burguesas e pela ideologia liberal, através da história dos dois séculos seguintes os direitos fundamentais irão se modificando e incluindo novas demandas da sociedade em transformação. Os direitos fundamentais não são um conceito estático no tempo e sua transformação acompanha a sociedade humana e conseqüentemente suas necessidades de proteção.

Cabe frisar que na Modernidade os direitos humanos nascem como direitos fundamentais, ou seja, primeiramente são concebidos como direito interno11, como direitos do cidadão, mas ainda que direito nacional-interno com ampla vocação e pretensão universal como direitos do homem genérico, se referindo a todos os seres humanos. O fenômeno da universalidade dos direitos humanos é diferente do fenômeno da internacionalização dos mesmos. A universalização é anterior aos mesmos, pois se dá já na construção teórica dos direitos, ainda como Direito Natural Racionalista, e segue seu curso desde as primeiras declarações de direitos12. Já a

10 PECES-BARBA, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales, p. 146. 11 Idem, p. 113-144. 12 Veja por exemplo as declarações resultantes das revoluções burguesas, uma vez que tanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, assim como a Declaração de Independência Americana de 1776, se referem a um cidadão universal. Ver os referidos documentos em: COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Respectivamente p. 158 e p. 108. Sobre a questão da universalidade dos direitos humanos fundamentais ver em termos gerais sua defesa em PÉREZ LUÑO. Antonio-Enrique. La Universalidad de los Derechos Humanos y el Estado Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia. 2002. Uma interessante e diferente defesa da universalidade dos direitos humanos encontramos no excelente texto do indiano Amartya Sen: SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras. 2000. Ainda o tema é de maneira inteligente tratado por Jesús González Amuchastegui, infelizmente recentemente falecido o professor espanhol nos deixou um excelente legado, em: GONZÁLEZ AMUCHASTEGUI, Jesús.

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internacionalização dos Direitos Humanos é um processo muito mais recente, pois se dá basicamente como resultado da barbárie da guerra, do desejo do nunca mais da Segunda Guerra Mundial, com o advento da Organização das Nações Unidas (ONU) e com a construção de pelo menos três sistemas internacionais de proteção de Direitos Humanos (ONU, Organização dos Estados Americanos e Conselho da Europa) e tem como marco documental inicial a fundamental Declaração Universal de Direitos Humanos de 194813. Não resta a menor dúvida de que a manutenção da paz e a defesa dos direitos humanos, objetivos plasmados no art. 1º da Carta de São Francisco de 1945, decisivamente são os principais motivos da criação da ONU. Da mesma forma que essas foram também as principais preocupações tanto da Comunidade Interamericana como Européia. Não resta dúvida que a questão da universalidade do conceito ocidental dos direitos humanos/direitos fundamentais14 é uma discussão prévia ao tema da transnacionalidade dos mesmos.

Autonomía, dignidad y ciudadanía: Una teoría de los derechos humanos. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. E uma inteligente e madura crítica em WALLERSTEIN. Immanuel. O universalismo Europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007. Da mesma forma impossível não citar a interessantíssima e atual crítica de Joaquín Herrera Flores em: HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos como productos culturales: crítica del humanismo abstracto. Madrid: Catarata, 2005. 13 Norberto Bobbio conclama a Declaração de 1948 como o documento mais importante da história da humanidade, uma que na opinião do filósofo italiano “(...) representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade” (p. 26). Esta já é uma visão clássica que os diferentes autores de teoria geral dos direitos humanos discutem sua validade há algumas décadas. Conferir: BOBBIO, Norberto. Presente e futuro dos direitos do homem. In: ______. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 25-47. 14 Uma das primeiras dificuldades que apresenta o tema dos direitos é quanto a sua terminologia. Diversas expressões foram utilizadas através dos tempos para designar o fenômeno dos direitos fundamentais. Por exemplo, atualmente a expressão direito natural deve ser considerada como um termo histórico que significa ainda uma pretensão moral justificada não positivada como Direito. Em nossa opinião duas são as expressões mais corretas para serem usadas atualmente: direitos humanos e direitos fundamentais. Respaldamos nossa opinião no consenso geral existente na doutrina especializada no sentido de que o termo direitos humanos se utiliza quando fazemos referência àqueles direitos positivados nas declarações e convenções internacionais, e

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A transnacionalização dos direitos fundamentais é um processo diferente e posterior ao da internacionalização dos mesmos. Na teoria geral dos direitos fundamentais do professor Gregorio Peces-Barba uma das mais importantes de suas teses consiste nas já mencionadas linhas de evolução dos direitos que são relatadas nos seguintes processos, entre os quais incluímos didaticamente – em um outro escrito – um anterior por nós chamado processo de formação do ideal dos direitos fundamentais15. Resumidamente as linhas ou processos evolutivos dos direitos fundamentais em Peces-Barba se dão em quatro processos históricos: 1. processo de positivação: a passagem da discussão filosófica do Direito Natural Racionalista ao Direito positivo realizada a partir das revoluções liberais burguesas (característica principal: positivação da primeira geração dos direitos fundamentais: direitos de liberdade); 2. processo de generalização: significa a extensão do reconhecimento e proteção dos direitos de uma classe a todos os membros de uma comunidade como conseqüência da luta pela igualdade real (característica principal: a luta e a conseqüente positivação dos direitos sociais ou de segunda geração e de algumas outras liberdades como a de associação e a de

o termo direitos fundamentais para aqueles direitos que aparecem positivados e garantidos no ordenamento jurídico de um Estado. Da mesma forma que os distintos autores quando se referem à história ou à filosofia dos direitos humanos, usam, de acordo com suas preferências, indistintamente os aludidos termos. Então, para efeitos do presente trabalho sobre transnacionalidade as expressões direitos fundamentais e direitos humanos são sinônimas. Sobre o assunto e o consenso terminológico: PEREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 9. ed. Madrid: Tecnos, 2005. p. 31; BARRANCO, Maria del Carmen, El discurso de los derechos: Del problema terminológico al debate conceptual. Madrid: Dykinson, 1992. p. 20; e SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 33. 15 Este seria um processo diacrônico, ao mesmo tempo inicial e ainda atual que explica além do surgimento do ideal dos direitos fundamentais na Modernidade, também a constante transformação dos mesmos e sua adaptação às questões aqui estudas. Ver: GARCIA, Marcos Leite. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais: alguns aspectos destacados da gênese do conceito. In: XIV Congresso Nacional do Conpedi, 2005, Fortaleza, CE. Anais. Disponível em: http://www.org/manaus/arquivos/Anais/Marcos%20Leite%20Garcia.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2009.

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reunião e a ampliação da cidadania com a universalização do sufrágio); 3. processo de internacionalização: louvável tentativa de internacionalizar os direitos humanos e criar sistemas de proteção internacional dos mesmo que estejam por cima das fronteiras e abarquem toda a Comunidade Internacional ou regional dependendo do sistema. Infelizmente trata-se de um processo estagnado por vários problemas que caracterizam o Direito Internacional dos Direitos Humanos e de difícil realização prática (Principal característica: tentativa de efetivar a universalização dos direitos ao positivar os direitos humanos no plano internacional). 4. processo de especificação: atualíssimo processo pelo qual se considera a pessoa em situação concreta para atribuir-lhe direitos seja: como titular de direitos como criança, idoso, mulher, consumidor, etc., ou como alvo de direitos como o de um meio ambiente saudável ou à paz (principal características: positivar e mudar a mentalidade da sociedade na direção dos chamados direitos de solidariedade, difusos ou de terceira geração)16.

A internacionalização dos direitos fundamentais em direitos humanos é um fenômeno ainda incompleto e para muitos um falido processo de tentativa de internacionalizar a questão. Sua principal crítica situa-se na falta de um poder coercitivo acima dos Estados e na falta de homogeneidade entre os países e os seus interesses, que leva a uma carência de democracia no contexto da Comunidade Internacional: o que deixa infelizmente prevalecer a situação da tradicional, primitiva e selvagem lei do mais forte que impõe sua vontade. Este processo incompleto situa-se exatamente em um âmbito jurídico que carece de um Poder político que garanta plenamente a eficácia do ordenamento internacional dos diferentes sistemas de proteção dos direitos humanos, ainda que as tentativas

16 Entre outros trabalhos do professor espanhol, ver: PECES-BARBA, Gregorio. Las líneas de evolución de los derechos fundamentales. In: _____. Curso de Derechos Fundamentales: teoría general. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 1995. p. 146-198.

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são válidas e muito interessantes17. Difícil conceber o Direito sem força, sem coerção. Mesmo assim, inegável é a existência de um Direito Internacional dos Direitos Humanos, como nos mostra a prática e a jurisprudência interna e internacional e como admite majoritariamente a doutrina. Não se pode negar a existência de normas internacionais de direitos humanos, ainda que é facilmente constatado – exatamente pelos problemas apontados – um absurdo e completo descaso com este ordenamento muito menos considerado e obedecido que os ordenamentos internos.

2. Principais características dos “novos” direitos

Algumas questões são diferenciadoras dos chamados direitos fundamentais de terceira geração, também chamados de “novos” direitos. Devido as suas especiais condições, diferentes dos demais direitos fundamentais como foi visto, os “novos” direitos são: individuais, coletivos e difusos ao mesmo tempo, por isso considerados transindividuais. São transfronteiriços e transnacionais, pois sua principal característica é que sua proteção não é satisfeita dentro das fronteiras tradicionais do Estado nacional. São direitos relacionados com o valor solidariedade. Requerem uma visão de solidariedade, sem a mentalidade social de solidariedade não podemos entender os direitos difusos. Na visão de Carlos de Cabo Martín a noção do valor solidariedade é uma característica essencial, um princípio básico, do constitucionalismo do Estado social de Direito18. Certamente que é impossível pensar em um direito

17 Certamente que a única organização na qual a internacionalização dos direitos humanos há dado frutos mais positivos, com uma visível autoridade supranacional, tenha sido no marco do sistema de proteção do Conselho de Europa, devido a que são sociedades mais homogêneas em sua cultura política e jurídica. 18 Para Carlos de Cabo Martín a solidariedade é um princípio básico do constitucionalismo do Estado social como contraponto de que a insolidariedade é um suposto básico do constitucionalismo liberal. CABO MARTÍN, Carlos de. Teoría Constitucional de la solidariedad. Madrid: Marcial Pons, 2006. Respectivamente p. 45- 107 e p. 39-44.

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fundamental coletivo e/ou difuso sem a consideração do valor solidariedade.

No dizer de Maria José Añón Roig, os direitos de terceira geração são direitos difusos, coletivos e individuais ao mesmo tempo. Os direitos da liberdade são direitos individuais, os direitos de igualdade são direitos individuais e coletivos e os direitos de solidariedade seriam direitos individuais, coletivos e difusos ao mesmo tempo19. Dando assim a exata noção de que todos os direitos fundamentais são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados (De acordo com o ponto 1.5 da Declaração e Programa de Ação de Viena aprovado pelo Plenário da Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de Julio de 1993).

Ademais como foi dito, os direitos de solidariedade são difusos, ou seja, em conformidade com o que foi dito, além de serem coletivos são difusos. Então se faz necessário estabelecer a diferença entre direitos difusos e direitos coletivos: em primeiro lugar, no caso dos direitos difusos são incontáveis os seus titulares ou pessoas que podem ser atingidas; já no caso dos direitos coletivos ao contrário podemos estabelecer o número de titulares ou de as pessoas atingidas no caso de desrespeito de determinado direito coletivo. Por exemplo, com a ajuda dos números da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística pode-se estabelecer o número de trabalhadores brasileiros ou de trabalhadores que atuam na República Federativa do Brasil, ou fazer uma estimativa sobre o número de desempregados em um país ou aqueles que trabalham na economia informal. No caso dos direitos da chamada terceira geração, exatamente por serem difusos, não se sabe ao certo o número de pessoas envolvidas nessas questões. Por exemplo, no caso de uma catástrofe nuclear, nunca se sabe o número de pessoas realmente atingidas em dito tipo de desastre ambiental, se toda a população de uma cidade, de uma província, de uma região, de um país, de dois ou mais países, de todo um continente ou mesmo de todo o planeta. No caso da

19 AÑON ROIG, Maria José. Necesidades y Derechos. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1994. p. 45.

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contaminação de um rio, esse rio pode passar por muitas províncias de um mesmo país, ou mesmo por vários países. Enfim são incalculáveis os danos causados pela violação de um direito difuso, assim como são incontáveis os números de vítimas das violações dos direitos difusos20. Em contrapartida, já as violações de um direito coletivo se podem estabelecer os números das vítimas atingidas.

Além de que os direitos difusos são transfronteiriços, segundo boa parte da doutrina européia, eles em nossa opinião são também algo mais que isso. Certa é a afirmação de que os direitos fundamentais de terceira geração devem ter um tratamento diferenciado por perpassarem as fronteiras, por isso têm a característica de serem transfronteiriços. Mas se consideramos estes somente como transfronteiriços, eles poderiam ter unicamente um tratamento internacional a partir do Direito Internacional tradicional. Enfim eles ademais são transnacionais. Exatamente por serem transfronteiriços e difusos, seu tratamento deve ou também pode, por uma questão de efetividade, ser transnacionalizado. Ou seja, seu tratamento deve ser a partir de um Direito Transnacional21. Transnacional no sentido como muito bem lecionam Paulo Márcio Cruz e Zenildo Bodnar: “o prefixo trans denota (...) a capacidade não apenas da justaposição de instituições ou da superação/transposição de espaços territoriais, mas a possibilidade da emergência de novas instituições multidimensionais, objetivando a produção de respostas mais satisfatórias globais contemporâneas”22. Seguem os professores

20 Muito outros exemplos poderiam ser aludidos, como o clássico exemplo de uma guerra entre duas nações, violação do pretendido por alguns doutrinadores “novo” direito à paz, certamente trata-se de um outro caso de violação de um direito humano difuso exatamente porque uma guerra entre dois países poderá envolver outros países ou toda uma região ou mesmo a maioria dos países do globo terrestre e certamente trará conseqüências a todo o planeta sejam estas humanitárias, econômicas e/ou até ambientais. 21 Segundo se sabe em um livro de 1956, o primeiro autor a falar em um Direito Transnacional (Transnational Law) é o professor da Universidade de Colúmbia Philip C. Jessup. Conferir: JESSUP, Philip C. Direito Transnacional. Rio de Janeiro: Ed. Fundo de Cultura, 1965. 22 CRUZ, Paulo Márcio; BODNAR, Zenildo. A transnacionalidade e a emergência do Estado e do Direito Transnacional. v. 14, n. 1, jan./jun. 2009, p. 5.

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catarinenses, “Dessa forma, a expressão latina trans significaria algo que vai ‘além de’ ou ‘para além de’, a fim de evidenciar a superação de um locus determinado que indicaria (...) um constante fenômeno de desconstrução e construção de significados”23. Ainda os professores catarinenses fazem uma importante diferenciação do prefixo trans com relação ao prefixo inter: “diversamente da expressão inter, a qual sugere a idéia de uma relação de diferença ou aproximação de significados relacionados, o prefixo trans denota a emergência de um novo significado construído reflexivamente a partir da transferência e transformação dos espaços e modelos nacionais”24.

Acertadamente os professores Paulo M. Cruz e Zenildo Bodnar aludem a que todas essas questões são urgentes, uma vez que a causa da destruição de nosso entorno natural, a questão da paz e do consumo global de bens, por exemplo, são todas questões que trazem consigo uma necessidade de imediata e efetiva defesa e por isso mesmo a construção de espaços transnacionais é uma emergência de nossa era. De nada adiantaria, por exemplo, uma nação cuidar e ter uma excelente legislação e consciência social solidária e consciência ecológica no seio de seu povo, se o país vizinho não a tem, pois ficará a mercê da poluição causada por seus vizinhos. Então a conscientização e legislação ambiental têm que ter um tratamento transnacional e ser compartida entre todos os membros da comunidade – seja regional ou internacional – para cuidar das questões ambientais e de outras questões dos direitos provenientes do processo de especificação.

É correto o que afirma o professor Antonio Pérez Luño quando diz que as estratégias reivindicativas dos direitos humanos se apresentam hoje com características inequívocadamente inovadores ao serem polarizadas em torno a temas como direito à paz, direito dos consumidores, direito a um meio ambiente saudável, direito à

23 Idem, p. 6. 24 Idem, p. 6.

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manipulação genética, direito à qualidade de vida ou à informática25. Não resta dúvida que a revolução tecnológica, em palavras de Pérez Luño, “há redimensionado as relações do homem com os demais homens e a natureza, assim como as relações entre o ser humano com seu contexto ou marco cultural de convivência”26. Evidentemente que essas mudanças não hão de deixar de influenciar ou de incidir no entorno dos direitos fundamentais.

3. Características do processo de especificação e os direitos fundamentais transnacionais.

Com a consideração do processo de especificação dos direitos fundamentais podemos explicar uma série de modificações referente aos direitos e uma nova visão e concepção dos mesmos será necessária. A transformação que o fenômeno dos “novos” direitos trás à concepção dos direitos fundamentais é muito bem explicada através da quarta linha de evolução através da terminologia proposta primeiramente por Noberto Bobbio27 e desenvolvida pelo professor Gregorio Peces-Barba como processo de especificação. Nas palavras do último poderíamos até falar de um processo de concreção, uma vez que supõe não somente a seleção e matização dos processos anteriores, senão que a inclusão de novos elementos que levam ao enriquecimento e a complementação dos anteriores grupos de direitos fundamentais28. O jusfilósofo italiano Norberto Bobbio destaca que a especificação se produz na direção dos titulares29 e o jusfilósofo espanhol Gregorio Peces-Barba também considera a direção dos titulares e destaca que a especificação dos “novos” direitos em relação aos conteúdos dos mesmos. Ambos jusfilósofos

25 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de los derechos humanos. Cizur Menor: Editorial Aranzadi, 2006. p. 28. 26 Idem, p. 29. 27 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. In: ______. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 62-63. 28 PECES-BARBA, Gregorio. Lecciones de Derechos Fundamentales. Madrid: Dykinson, 2004. p. 120. 29 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. p. 63.

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concordam que a especificação dos direitos se insere como transformadora da visão dos direitos fundamentais e por isso que dá uma nova face à cultura política e jurídica moderna; ou como diz o professor Pérez Luño: agora já pós-moderna30. Em nossa opinião o fenômeno da transnacionalização do direito a partir de demandas transnacionais está mais intimamente conectado com o processo de especificação quanto ao conteúdo, ainda que não devemos olvidar que as questões de especificação quanto aos titulares também são de direitos fundamentais transnacionais.

3.1. Demandas transnacionais de direitos fundamentais especificadas quanto ao titular.

Em relação primeiramente aos titulares os direitos fundamentais se especificam na busca de uma melhor igualdade de condições ou igualdade de oportunidade para todos. É a questão de tratar a desiguais de forma desigual para se chegar a uma igualdade. Quanto aos titulares é constatável que alguns grupos por diversos motivos estão em situação de desigualdade e merecem uma proteção especial para chegar a uma teórica igualdade. É o caso das mulheres, dos idosos, das crianças e dos adolescentes, dos indígenas e de grupos minoritários outro como deficientes físicos e mentais e parcelas menos favorecidas da população de determinados povos (como afro-descendentes, pobres e excluídos). São todas questões absolutamente polêmicas, sobretudo para sociedades de modernidade tardia31 como a brasileira acostumada ao descaso que sofrem os

30 Para o professor Antonio-Enrique Pérez Luño o que caracteriza o direito da pós-modernidade são as questões que fazem parte de sua classifica de direitos fundamentais de terceira geração. PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de los derechos humanos. p. 53. 31 Será o professor Florestan Fernandes quem melhor explicará as origens da Modernidade no Brasil: “(...) a ordem escravocrata e senhorial não se abriu facilmente aos requisitos econômicos, sociais, culturais e jurídico-político do capitalismo. Mesmo quando eles se incorporavam aos fundamentos legais daquela ordem, eles estavam condenados à ineficácia ou a um entendimento parcial e flutuante, de acordo com as conveniências econômicas dos estamentos senhoriais”.

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menos favorecidos e com os arraigados privilégios dos donos do poder, utilizando-se aqui propositalmente o título da magistral obra de Raymundo Faoro32. Ainda que no caso brasileiro a incompreensão se deve, sobretudo, ao egoísmo dos mais favorecidos, a polêmica é compreensível em certa medida já que é uma mudança paradigmática no consenso sobre os direitos fundamentais que, como se sabe, tem uma importância decisiva na configuração da cultura jurídica da Modernidade. Na primeira geração dos direitos os titulares eram os genéricos homens e cidadãos e a cidadania era dividida em ativa e passiva (a idéia de sufrágio censitário), na segunda geração este é visto com relação à sua ocupação, além de homem e cidadão agora ele é também trabalhador, um cidadão que é titular de algumas necessidades básicas e que reivindica não somente estas, mas também seu direito de participação política (a luta pela universalização do sufrágio). Dentro da perspectiva de Luigi Ferrajoli no sentido de que os direitos fundamentais são reivindicações dos mais débeis33, os direitos fundamentais de terceira geração, originados no processo de especificação, agora são reivindicados pelos menos favorecidos na sociedade contemporânea, não pelo mais forte e sim por coletivos dos mais débeis: a mulher, a criança, o idoso, o indígena, o negro etc.

No mesmo sentido, segue o professor paulista “(...) Aqui cumpre ressaltar, em especial, a estreita vinculação que se estabeleceu, geneticamente, entre interesses e valores sociais substancialmente conservadores (ou em outras terminologias: particularistas e elitistas) e a constituição da ordem social competitiva. Por suas raízes históricas, econômicas e políticas, ela prendeu o presente ao passado como se fosse uma corrente de ferro. Se a competição ocorreu, em um momento histórico, para acelerar a decadência e o colapso da sociedade de casta e estamentos, em outro momento ela irá acorrentar a expansão do capitalismo a um privatismo tosco, rigidamente, particularista e, fundamentalmente, autocrático, como se o ‘burguês moderno’ renascesse das cinzas do ‘senhor antigo’”. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Zahar, 1975. Respectivamente p. 151 e p. 167-168 (grifo acrescentado). 32 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3.ed., São Paulo: Editora Globo, 2001. 33 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Tradução de Perfecto A. Ibáñes e Andréa Greppi. Madrid: Trotta, 1999.

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Segundo o professor Peces-Barba34 são três os critérios para identificar esses coletivos, as chamadas circunstâncias ou situações cuja relevância deriva: 1. De uma condição social ou cultural de pessoas que se encontram em situação de inferioridade nas relações sociais e que necessitam de uma proteção especial; 2. De uma condição física de pessoas que por alguma razão se encontram em uma situação de inferioridade nas relações sociais; 3. E de uma situação específica que ocupam as pessoas em determinadas relações sociais.

Em primeiro lugar (critério 1.) Peces-Barba fala de uma condição social ou cultural de pessoas que se encontram em situação de inferioridade nas relações sociais e que necessitam de uma proteção especial, uma garantia ou uma promoção especial para superar a discriminação, o desequilíbrio ou a desigualdade. O modelo mais claro e consagrado é o exemplo do direito da mulher.35 Neste mesmo grupo podemos situar os direitos do emigrante, do afro-descendente, do indígena etc. No caso brasileiro além das mulheres temos uma série de outros grupos de pessoas que merecem uma proteção especial, pelo menos para se chegar a uma igualdade de oportunidade para esses grupos que são os pobres, os excluídos, os negros e os indígenas etc., evidentemente que é o caso das ações afirmativas, que aqui se fundamentam suas políticas de discriminação positiva. O dilema e o problema em nossa sociedade é como são feitas ditas ações afirmativas na prática e não sua fundamentação.

Em segundo lugar (critério 2.) o professor espanhol fala de uma condição física de pessoas que por alguma razão se encontram em uma situação de inferioridade nas relações sociais. Ditas condições obrigam a uma proteção especial não vinculada ao valor igualdade, mas sim ao valor da solidariedade ou fraternidade36. Ainda Peces-Barba leciona que podem ser de dois tipos: gerais e

34 PECES-BARBA, Gregorio. Lecciones de Derechos Fundamentales. p. 120-122. 35 Idem, p. 121. 36 Idem, p. 121.

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específicos. As condições gerais afetam a todas as pessoas durante algum determinado tempo de suas vidas, enquanto que as condições específicas afetam a algumas pessoas durante todo o tempo em alguns casos e somente por algum tempo em outros casos. No suposto das condições relevantes gerais temos como exemplo os direitos da criança e do adolescente, enquanto que no suposto das condições relevantes específicas temos como exemplo os direitos de pessoas que sofrem algum tipo de deficiência permanente ou não. Além do direito do deficiente físico ou mental, também nesse último caso entraria o exemplo do direito dos enfermos e o direito do idoso37.

Em terceiro e último lugar (critério 3.), Peces-Barba fala de uma situação específica que ocupam as pessoas em determinadas relações sociais. Referem-se aos grupos genéricos homens ou cidadãos quando se encontram em uma circunstância concreta, são direitos do individuo colocado em uma situação concreta de desvantagem que se justifica quando a outra parte da relação tem um papel preponderante, hegemônico ou de enorme superioridade que exige equilibrar dita relação por meio de uma proteção reforçada. Desta forma nos encontramos diante dos direitos do consumidor situado diante dos grandes monopólios, grandes companhias multinacionais ou nacionais, ou mesmo de grupos de comerciantes e industriais muito mais poderosos que o usuário de seus produtos38. Não resta dúvida que este usuário tem seus direitos, ou seja: é titular de direitos, e que está em uma temerosa situação de desigualdade na relação e ademais de que está quase sempre muito desinformado sobre os bens que consome. Da mesma forma está muitas vezes em condições iguais de inferioridade o cidadão diante de serviços estatais públicos. Aqui se desenvolve o valor igualdade no âmbito de uma sociedade consumista e de mercado com a finalidade de paliar seus desajustes.

37 PECES-BARBA, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales. p. 181. 38 PECES-BARBA, Gregorio. Lecciones de Derechos Fundamentales. p. 121-122.

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Nas três circunstâncias descritas pelo professor Peces-Barba estamos diante de situações sociais que por razões culturais, físicas ou psicológicas e da posição em que se encontra a pessoa na sociedade, levam a uma suposta debilidade que o Direito tenta corrigir ou pelo menos diminuir. Podemos afirmar que a questão da igualdade é invocada, sobretudo, no sentido de igualdade de oportunidade. Evidentemente que, como já foi dito, em uma sociedade patrimonialista e estruturada em preconceitos classistas como a brasileira, ditas questões geram muita polêmica.

A questão da titularidade dos direitos fundamentais tem sua relevância primordial na questão da transnacionalidade no sentido de que a mesma significa também uma grande mudança na forma de pensar o Direito. Agora o titular não mais seria o cidadão nacional de um determinado país, aquele que tem a sorte de nascer em um país rico e democrático nem mesmo o genérico homem do direito internacional tradicional, o titular seria o cidadão transnacional. Não cabe dúvida que a transnacionalização somente tem sentido se reforçar a defesa dos direitos fundamentais, a defesa das liberdades aliada à defesa da igualdade perante a lei. Enfim: a transnacionalização do Direito deve proteger os titulares dos direitos fundamentais39.

39 Como sabemos a União Européia atribui uma importância especial ao respeito pelos direitos humanos com base nos artigos 6º, 7º e 13 do Tratado de Maastricht e de acordo com sua Carta dos Direitos Fundamentais. O caso da República da Turquia é emblemático com relação ao tema dos direitos humanos no seio da União Européia. Desde que a Turquia aspira fazer parte da organização continental tem obtido sucessivas negativas da mesma. Os principais motivos alegados para não integração da Turquia na Europa são as questões das violações dos direitos humanos no país, na repressão aos separatistas curdos e no conflito da ilha de Chipre. Como tentativa de uma aproximação ao padrão europeu em questões de direitos humanos o país tomou algumas providências, a se destacar: em 2002 aboliu a pena de morte; em 2004 aprovou um novo código penal que reprime a violência contras as mulheres e a tortura. Mesmo com todos os esforços citados, entre outros na área econômica, a Turquia ainda não conseguiu convencer aos especialistas da União Européia que o respeito aos direitos humanos fazem parte de uma prática diária de sua sociedade. Pesa contra a Turquia além da questão curda, dos acontecimentos do Chipre e do não reconhecimento do genocídio de armênios praticado pelo Império Turco-Otomano

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3.2. Demandas transnacionais de direitos fundamentais especificadas quanto ao conteúdo.

Em segundo lugar com relação à especificação dos direitos fundamentais, estes são especificados quanto ao conteúdo. Em nossa opinião é quando são mais claras as demandas transnacionais e cronologicamente algumas de suas demandas são até anteriores às demandas especificadas quanto ao titular, ainda que outras sejam mais recentes, então preferimos por esse último motivo deixar estas em segundo lugar. As demandas relativas ao processo de especificação quanto ao conteúdo em princípio são em um primeiro momento basicamente três: o direito à paz, a questão ambiental e o direito ao desenvolvimento dos povos. Posteriormente e mais recentemente nascem outras questões fundamentais de especificação quanto ao conteúdo dos direitos: são os “novos” direitos referentes à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética. Trata dos direitos específicos quanto ao conteúdo que têm vinculação direta com a vida humana, como reprodução humana assistida (inseminação artificial), aborto, eutanásia, cirurgias intra-ulterinas, transplantes de órgãos, engenharia genética (clonagem), contracepção e outros. Também entrariam em essa terceira geração os “novos” direitos advindos das tecnologias de informação (intenet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral. Tanto dita questão do Direito à informática como as questões de bioética ou biodireito incluímos, como o faz expressamente o professor Pérez Luño, como direitos de terceira geração, como resultantes do processo de especificação quanto ao conteúdo como o faz o professor Peces-Barba, e não como uma quarta e quinta geração como o fazem alguns renomados autores40. Preferimos inclusive nomear essas duas

em 1915, o fato de que se teme uma onda de emigração para a Europa Ocidental por parte de seus cidadãos depois de seu ingresso na União Européia. 40 Por exemplo: o professor Wolkmer classifica as questões relativas à biotecnologia como direitos humanos de quarta geração e o Direito à informática como de quinta geração. Ver: WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma

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questões mais recentes como “novíssimos” direitos de terceira geração.

Uma classificação tradicional dos direitos divide os mesmos em vários grupos que, em termos cronológicos, se correspondem, mais ou menos, com suas gerações históricas. Ainda que como é sabido, as classificações são sempre não imprecisas e injustas, essa divisão dos direitos em gerações não reproduz exatamente o que aconteceu na histórica. Mas, para esquematizar didaticamente o evoluir do ideal dos direitos alguns autores, como os pioneiros da expressão Vasak e Bobbio, falam de sucessivas gerações dos mesmos41. Certamente que é uma terminologia discutível, uma vez que poder-se-ia entender que as gerações são extintas a conseqüência do surgimento de outras, já que normalmente uma geração supera a outra. Crítica bastante comum e que por este motivo alguns autores preferem a expressão dimensões de direitos fundamentais42. Em sentido contrário Antonio-Enrique Pérez Luño é um dos teóricos que mais defendem as gerações dos direitos. Para o professor Pérez Luño não significa que uma geração substitua a outra, muito pelo contrário senão que em ocasiões o aparecimento de novos direitos traduzem exatamente o contrário: são respostas às necessidades históricas; e

Teoria Geral dos “novos” Direitos. In: _____; LEITE, José Rubens Morato (orgs.).Os “novos” Direitos no Brasil: natureza e perspectiva. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 1-30. 41 As três gerações estariam baseadas nos seus três fundamentos oriundos da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade no sentido contemporâneo de solidariedade. Como foi visto as gerações dos direitos fundamentais, dependendo do autor podem ser três, quatro ou até cinco. Como já ficou claro, nossa preferência é pela divisão mais tradicional que em principio está exposta em três gerações nos moldes da divisão apresentada originalmente por Karel Vasak, que foi quem criou o termo “gerações de direitos” em 1979 (VASAK, Karel. Pour une troisième génération des droits de l’homme. In: SWINARSKI, Chistophe (ed.). Studies and Essays on International Humanitarian Law and Red Cross Principles in honour of Jean Pictet. Genève - The Hague: ICRC - M. Nijhoff, 1984, p. 837-839). Ditas gerações foram muito bem complementadas por Norberto Bobbio (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 5-7) e atualmente excelentemente desenvolvidas e defendidas pelo professor Antonio-Enrique Pérez Luño (PEREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de los Derechos Humanos, p. 25-48). 42 Como o faz Ingo Sarlet, conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos Direitos Fundamentais. p. 38-60.

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outras vezes supõem redimensionamentos ou redefinições de direitos anteriores para adaptá-los a novos contextos em que devem ser aplicados43. Da mesma forma o professor Gregorio Peces-Barba reduz as críticas das gerações na alusão às linhas de evolução dos direitos no sentido de que as mesmas não significam a superação de uma geração pela outra e que tal consideração vem a ser muito didática44. Então se entendemos que assim acontece: uma geração não supera as outras, uma vez que as anteriores seguem vivas e se integram com as novas, e que não existe de forma alguma hierarquia entre esses grupos de direitos fundamentais45, existe sim uma integração das gerações, dimensões como querem alguns ou grupos de direitos fundamentais (teoria integral dos direitos fundamentais)46. Seguindo a visão do professor Pérez Luño diríamos então que estamos, no caso das demandas transnacionais, diante da terceira geração dos direitos47.

Assim desta feita como os direitos das duas gerações anteriores respondem a valores consagrados como a liberdade e a igualdade, a partir da formulação de uma síntese da democrática

43 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Concepto e concepción de los derechos humanos. DOXA, Alicante-Espanha, n. 4, 1987. p. 56. 44 Assim explicava o professor espanhol em suas aulas. PECES-BARBA, Gregorio. Concepto y fundamentación de los Derechos Humanos. Anotaciones de clases por alumnos del año académico 1988-1989. Asignatura del Curso de Doctorado en el Programa de Derechos Fundamentales - Instituto de Derechos Humanos – Universidad Complutense de Madrid. 45 Pensamos que melhor que as expressões gerações ou dimensões (como leciona Ingo Sarlet) seria melhor utilizar a expressão grupos históricos de direitos fundamentais ou, ainda, somente grupos de direitos fundamentais. Grupos estes resultantes das linhas de evolução dos direitos fundamentais e de seus respectivos valores da trilogia da Revolução Francesa: processo de positivação – liberdade; processo de generalização – igualdade; processo de especificação – fraternidade no sentido contemporâneo de solidariedade. 46 Ver: GARCIA, Marcos Leite. Efetividade dos direitos fundamentais: notas a partir da visão integral de Gregorio Peces-Barba. In: MARCELLINO JR. Julio Cesar; VALLE, Juliano Keller do. Reflexões da pós-modernidade: Estado, Direito e Constituição. Florianópolis: Conceito, 2008. p. 189-209. 47 PEREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de los Derechos Humanos, p. 25-48.

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liberdade igualitária podemos afirmar que os direitos de terceira geração têm seu fundamento no valor solidariedade. Uma solidariedade, que é a forma contemporânea de entender a fraternidade da trilogia da Revolução Francesa. Nas palavras do professor Gregorio Peces-Barba ditos conteúdos que compõe os direitos de terceira geração se formam em nossa era através de três grandes contribuições do ponto de vista ético e político que são as sucessivas ideologias liberal, democrática e socialista48.

Como já foi dito, o primeiro direito fundamental especificado quanto ao conteúdo é a questão da paz que está na base mesmo do surgimento do Direito Natural Racionalista. Os principais documentos internacionais sobre o discutido direito à paz49, traduzidos sobretudo na intenção de evitar as guerras como a Carta da ONU, assim como todo o processo de internacionalização dos direitos são fruto do “nunca mais” à barbárie nazi-fascista que provocou a Segunda Guerra Mundial. Alguns teóricos rechaçam o direito à paz como um direito humano afirmando que o uso da guerra é de fundamental importância para a manifestação da paz e a defesa dos próprios direitos fundamentais; como exemplo, o professor Peces-Barba segue esse entendimento50. Outros, os pacifistas, defendem a existência de um direito à paz dentro da perspectiva de um mundo sem armas e conseqüentemente menos violento. Entre estes últimos destacamos os pacifistas institucionais

48 PECES-BARBA, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales. p. 113-144. 49 Encontramos em María Eugenia Rodríguez Palop uma bela definição do directo à paz: “El derecho a la paz podría suponer el derecho de un Estado (entendido, en sentido moral, como el derecho de todos y cada uno de sus ciudadanos) a no ser agredido violentamente por otros y, quizás también, el derecho frente al Estado de requerir la adopción de una política lícita mediante la cual no se ponga en peligro o se violen los derechos de terceras personas existentes o posibles y, en concreto, el de objeción de conciencia al servicio militar (aunque este último caso se canaliza por medio del ejercicio de las libertades civiles y se configure como un derecho de primera generación)”. RODRÍGUEZ PALOP, María Eugenia. La nueva generación de derechos humanos: origen y justificación. Madrid: Dykinson, 2002. p. 110. 50 PECES-BARBA, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales. p. 191-196.

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na linha de Luigi Ferrajoli51 – evidentemente que não se trata de mais um pacifismo do tipo absoluto e utópico de um mundo sem armas habitado somente por pessoas boazinhas52 –. O pacifismo institucional entende o direito como ferramenta crítica contra a guerra e rechaça absolutamente a solução das controvérsias pela violência. Dito pacifismo advoga por um direito penal internacional mínimo e por um constitucionalismo global que proíba e puna a guerra e milita em um movimento contra a normalização constitucional da guerra fundamentado na oposição substancial entre Direito e guerra, uma vez que dita postura classifica os conflitos bélicos de ilegais53.

Nossa posição pacifista segue a linha de Ferrajoli, ademais dos conceitos e reflexões do jusfilósofo italiano devemos da mesma maneira ter em consideração a questão de que uso dos direitos humanos contra os próprios direitos humanos54, assunto de suma importância na reflexão dos Direito Internacional dos Direitos Humanos de nossa era, e que ajudará na argumentação e fundamentação de um direito à paz em um mundo sem armas, ou sendo realista com menos armas, mas que deve tratar aos intolerantes com a intolerância das armas a partir de tribunais penais internacionalizados ou mesmo de vários tribunais penais regionais ou transnacionalizados. A responsabilidade por crimes de guerra, crimes de lesa humanidade e todos os demais tipos penais internacionais

51 Idéias expostas no livro: FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Edição e tradução organizada por Gerardo Pisarello. Madrid: Trotta, 2004. 52 Sobre os diferentes tipos de pacifismos, assim como os diferentes tipos de belicismos, ver: RUIZ MIGUEL, Alfonso. La justicia de la guerra y de la paz. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988. p. 81-119. 53 Grifados os conceitos teorizados por Ferrajoli. Sobre o tema ver: PISARELLO, Gerardo. Introducción: el pacifismo militante de Luigi Ferrajoli. In: FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Edição e tradução organizada por Gerardo Pisarello. Madrid: Trotta, 2004. p. 11-24. 54 Sobre o uso dos direitos humanos contra os próprios direitos humanos, ver o interessante livro sobre o assunto: ARCOS RAMIRÉZ, Federico. ¿Guerra en defensa de los derechos humanos? Problemas de legitimidad en las intervenciones humanitarias. Madrid: Dykinson, 2002.

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classificados pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional55 não devem estar sujeitos somente às cortes nacionais como querem os países que sistematicamente violam as normas internacionais de direitos humanos e de direito internacional humanitário56.

O tema do direito à paz é pouco tratado pela doutrina, como argumenta Maria Eugenia Rodríguez Palop57. De todas as maneira a partir das reivindicações pacifista é um tema a ser aprofundado, ainda mais que no pós-guerra chegamos ao absurdo da proliferação das armas nucleares com as quais podemos simplesmente fazer com que todo o planeta seja destituído ou que se transforme em um imenso cemitério58. Dita questão, conjuntamente com o uso dos direitos humanos contra os direitos humanos, nos leva ao que o professor Pérez Luño ensina sobre a avançada tecnologia faz como o giro copérnico nas relações inter-humanas também com relação ao direito à paz, uma vez que a potencialidade das modernas tecnologias da informação permitem, pela primeira vez, estabelecer formas de comunicação a escala planetária59. Segue o professor de Sevilha: “Isso possibilitou que se adquirirá uma consciência universal dos perigos mais imediatos e terríveis que ameaçam a sobrevivência da espécie humana”60. Daí que a temática da paz tenha adquirido um inquestionável protagonismo no sistema de necessidades insatisfeitas

55 Os crimes tipificados pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional estão expostos em seu artigo 5º e conceituados em seus artigos 6º, 7º e 8º. Estes são: o crime de genocídio; crimes contra humanidade; crimes de guerra e o crime de agressão. Ver: PINTO, Antonio Luis de Toledo; et. al. (Col.) Legislação de Direito Internacional. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 544-599. 56 Sobre o interessante tema do Direito Internacional Humanitário, regras humanitárias que devem ser obedecidas em caso de guerras declaradas – previstas sobre tudo nas Convenções de Genebra de 1948 (que trata da defesa dos não-combatentes: populações civis, feridos e enfermos e prisioneiros de guerra) –, recomenda-se a seguinte obra: SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito Internacional Humanitário. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2007. 57 Ver nota 9 supra citada. 58 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de los derechos humanos. p. 29. 59 Idem, p. 29. 60 Idem, p. 29.

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dos homens e dos povos dos anos de nossa era, e que a temática entranhe uma imediata projeção como direitos fundamentais61.

A segunda questão do processo de especificação é a relativa aos direitos relativos ao meio ambiente, que expressam a necessidade de uma solidariedade não somente com nossos contemporâneos, senão que também com relação às futuras gerações para evidentemente evitar a tragédia que seria deixar o legado de um mundo deteriorado e inabitável por motivos de uma absurda contaminação do planeta e de uma egoísta exploração abusiva dos recursos naturais. É a questão transnacional por excelência, e é uma questão mais que urgente de todas, pois sem o planeta, nossa casa, não poderemos viver, evidentemente que é uma questão urgentíssima. Também é a questão difusa por excelência: o uso irracional de um recurso natural, como água, por exemplo, poderá privar até as futuras gerações de este bem natural fundamental. A causa da proteção do meio ambiente, sua reivindicação e sua transformação na mentalidade do ser humano e nos meio produtivos, certamente é a mais imprescindível questão transnacional uma vez que o futuro da raça humana poderá ser sua extinção com a destruição dos elementos que mantém o equilíbrio da natureza. A consciência que fazemos parte da natureza é de fundamental importância, a mudança de mentalidade aqui é vital para toda a raça humana.

Destacam-se algumas características de suma importância do direito ambiental, segundo Martín Mateo62: 1. O direito ambiental tem um caráter sistemático, fundamentado em um substrato ecológico, a sua vez voltados na direção da defesa da biodiversidade. É então um ramo do Direito independente que compreende uma percepção global da natureza, como na Alemanha deveria ser utilizada a expressão Direito ecológico; 2. Possui uma espacialidade singular, devido a que abarca questões globais, questões difusas como foi visto, e por

61 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de los derechos humanos. p. 29. 62 MARTÍN MATEO, Ramón. Tratado de Derecho Ambiental. Vol. I. Madrid: Trivium, 1991. p. 45.

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isso o campo de atuação perpassa o mero Estado nacional, sendo questão sumamente transnacional ou internacional. Essa é sua principal característica, sua principal razão de existência sem prejuízo de outras normas nacionais ou territoriais. 3. Cada vez mais se externa sua ênfase preventiva diante do aspecto retributivo das infrações ambientais. Desta maneira cada vez mais uma maior ênfase se dá às medidas garantistas e preventivas que evitem as possíveis ou futuras agressões, por motivo de que tais agressões ao entorno podem ter um custo irreparável a valores imensuráveis como a própria vida humana ou o ecossistema circundante. A idéia de danos irreversíveis deve superar a mera quantificação em dinheiro que o Direito possa determinar como indenização. Trata-se, portanto, de um novo ramo independente do Direito; um direito difuso e que deve ter um acentuado caráter educativo para ser preventivo; um direito de solidariedade, de conscientização solidária, que requer uma mudança de mentalidade.

Uma questão tratada desde o plano internacional, mas que deveria ser reforçada desde o plano do Direito transnacional, os efeitos dos danos ao meio ambiente são a melhor explicação do que venha a ser uma questão difusa, transfronteiriça e transnacional, já que a destruição do meio ambiente não se detém nas fronteiras do país que originou a mesma. Os exemplos são muitos como um acidente nuclear como o de Chernobyl, a poluição de um rio que passa em vários países, a contaminação do mar que banha diversas regiões etc. Alguns exemplos atuais e urgentes: a questão da bacia do Amazonas, sua exploração e seu entorno, somente pode ter um tratamento transnacional pelos países que compõe essa importante área do planeta. Ou mesmo o desastre ambiental do Mar de Aral, situado na fronteira entre o Uzbequistão e o Cazaquistão, certamente uma das maiores catástrofes ecológicas de todo os tempos quando o mar interno perdeu nos últimos 40 anos 80% de sua área. O exemplo recente do problema ecológico que pode provocar a instalação de uma grande fábrica de celulose no Rio Uruguai do lado uruguaio, na cidade de Fray Bentos, certamente que é um problema transnacional que deveria ter levado em conta todo o entorno e o lado argentino

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também. Não cabe dúvida que estas são todas questões ambientais transnacionais.

A convicção de que a vida convencional do cidadão contemporâneo ocidental e o seu consumo exagerado de bens industrializados levarão a uma deterioração mais rápida da natureza juntamente com o modelo de desenvolvimento proposto pelo capitalismo dos paises mais industrializados e agora inserido em países emergentes superpopulosos como a China e a Índia, por exemplo, levarão da mesma forma a uma destruição sem precedentes e infelizmente cada vez mais rapidamente. Todas questões urgentíssimas e de impossível resolução nos parâmetros do atual Direito nacional por se tratarem de questões transindividuais, difusas, transfronteriças e transnacionais.

A seguinte questão do direito ao desenvolvimento está amplamente vinculada com a duas questões anteriores já que polemiza com o paradigma de modelo de desenvolvimento seguido pelos paises mais ricos e que está sendo seguido pelos paises subdesenvolvidos e emergentes. O direito ao desenvolvimento dos povos é um direito um pouco esquecido pela doutrina, mas se trata de um tema fundamental para o futuro da humanidade e do planeta. Algumas questões estão radicalmente relacionadas como a da imigração econômica dos povos mais pobres ao ocidente, a da paz, a da sustentação de um meio ambiente nos países periféricos, etc.

Estão na raiz do direito ao desenvolvimento os valores de fraternidade/solidariedade e de igualdade, e supõe em certo modo uma aplicação aos povos no mesmo sentido que tem aos indivíduos os direitos econômicos, sociais e culturais63. Seu principal argumento é o que na comunidade de nações se devem generalizar as liberdades e a democracia, tanto nas suas relações como no interior dos países. O direito ao desenvolvimento internamente se traduz em direitos sociais vistos desde uma perspectiva global e são os direitos sociais como a uma vida digna, a uma moradia descente, a uma saúde pública, à previdência social, à educação, etc. É o chamado direito

63 PECES-BARBA, Gregorio. Lecciones de Derechos Fundamentales. p. 125.

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coletivo de povos e nações e que por culpa da pobreza, da ignorância, da imigração econômica para os países mais ricos, das guerras por motivos algumas vez étnicos ou por outros tipos de intolerâncias radicais que levam a genocídios e matanças sem precedentes, da exploração econômica de forma primitiva da natureza que leva a um deterioro das últimas reservas que o planeta possui, etc., certamente é um direito difuso, transfronteiriço e por isso uma questão de direito transnacional.

Trata-se de um típico tema da época da guerra fria, da dicotomia entre países ricos e pobres, e que foi positivado como direitos humanos a partir dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos, uma vez que tanto no Pacto de Direitos Civis e Políticos como no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais está previsto no artigo 1º de ambos pactos como conseqüência do direito à autodeterminação dos povos. Também são muito bem definidos na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento aprovada pela Resolução n.41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidades, em Paris, em 4 de dezembro de 1986: “O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados” (artigo 1º)64. E trazido à tona novamente com a Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993 (pontos 1.9, 1.10 e 1.11). Ainda que não devemos excluir os esforços da Comunidade Internacional, da mesma maneira pensamos como o professor Peces-Barba quando argumenta que o direito ao desenvolvimento tem problemas teóricos no que diz respeito aos seus titulares65, mas que estas dificuldades seriam superados se consideramos a possibilidade de um Direito transnacionalizado e com uma nova visão da titularidade especificada dos direitos humanos.

64 PINTO, Antonio Luis de Toledo; et. al. (Col.) Legislação de Direito Internacional. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 481-484. 65 PECES-BARBA, Gregorio. Lecciones de Derechos Fundamentales. p. 125-126.

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De todas as formas, não resta dúvida que para o bem da humanidade algo deve ser mudado. O conceito de desenvolvimento sustentável talvez seja uma das grandes falácias de nossa era que certamente nos passará uma conta de destruição da natureza no futuro. Certamente que um mundo melhor é possível, citando aqui propositalmente o lema dos seguidos Fóruns Sociais, outros modelos de desenvolvimento são possíveis, e este paradigma deve ser procurado com o emprenho de toda a Comunidade Internacional.

4. Fundamentação do fenômeno da transnacionalidade.

Para caracterizar a necessidade de transnacionalização dos direitos fundamentais de terceira geração, faz-se necessário reflexionar sobre os seguintes aspectos: o objeto de proteção do direito transnacional; o fundamento moral da transnacionalização; o espaço político e jurídico a ser matizada a transnacionalização.

O objeto de proteção seriam os anteriormente vistos direitos de terceira geração (resultantes do processo de especificação), as demandas transnacionais a serem protegidas seriam interesses coletivos e difusos e não somente os estritamente individuais, como querem os defensores de uma estrita globalização econômica de cunho neoliberal66. A definição dos interesses coletivos a serem considerados como objetos a serem protegidos exige, sem nenhuma dúvida, certas condições que permitam que sua acepção seja verdadeiramente racional e fundamentada e por isso confiável. Necessariamente deve tratar-se de temas universalizáveis, evidentemente de interesse de toda a humanidade, pelo tal devem estar excluídos interesses privados de uma classe privilegiada ou a imposição de simples interesses estratégicos das mesmas que por

66 Sobre o tema do fenômeno da globalização neoliberal, o seguinte texto de Boaventura de Sousa Santos é muito elucidador: SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos de globalização. In: ______ (org.). A Globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002. p. 25-102. Da mesma maneira também é interessante: BECK, Urich. ¿Que es la globalización? Falacias del globalismo, respuestas a la globalización. Tradução de B. Moreno e M. R. Borrás. Barcelona: Paidós, 1998.

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definição não podem ser universalizáveis por se apresentarem incompatíveis com a questão da igualdade perante a lei. Deve ser superado o esquema público/privado e, ainda que a primeira vista pareça contraditório, deve-se dar a imposição incondicionada do individuo sobre a comunidade67 e do interesse público sobre o privado (princípio republicano)68.

Uma vez que o fundamento e o valor guia dos direitos fundamentais de primeira geração é a liberdade, assim como o valor guia igualdade é o fundamento para os direitos de signo econômico, social e cultural, os direitos de terceira geração têm como principal valor de referência e fundamento a contemporânea idéia de solidariedade, que deriva da moderna idéia de fraternidade.

O fundamento moral da transnacionalização do direito seria então a solidariedade que, entendida em um sentido lato sensu exigirá a superação do sentimento de etnocentrismo69, inerente à formação do Estado nacional moderno (típico do Estado imperalista-canalha na concepção de Danilo Zolo, Ernesto Garzón Valdés, Immanuel

67 RODRIGUES PALOP, Maria Eugenia. Los intereses colectivos en el discurso de los derechos humanos. In: ANSUÁTEGUI ROIG, Francisco Javier (ed.). Una discussion sobre derechos colectivos. Madrid: Dykinson, 2001. p. 271-287. 68 Sobre a questão do princípio republicano veja-se: CRUZ, Paulo Márcio; SCHMITZ, Sérgio Antonio. Sobre o princípio republicano. Revista Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, v. 13, n. 1, p. 43-54, jan./jun. 2008. 69 Etnocentrismo: “Neologismo formado a partir da expressão grega éthnos (raça) e da latina centrum (centro). Tendência dos indivíduos a tomar sua própria cultura como superior e como centro, modelo de referência e norma. Rechaça, por tanto, a diversidade cultural”. RUSS, Jacqueline. Léxico de Filosofía: Dictionnarie de Philosofie. Madrid: Akal, 1999. p. 141. Duas outras definições de etnocentrismo: 1). “Rechaço a admitir o fato mesmo da diversidade cultural; prefere-se expulsar fora da cultura, ao âmbito da natureza, tudo que não se conforma à norma baixo a qual se vive”. LÉVI-STRAUSS, Claude. Le Racisme de l’homme. Paris: Unesco/Gallimard, p. 246. Apud: RUSS, Jacqueline. Léxico de Filosofía: Dictionnarie de Philosofie. p. 141. 2). Etnocentrismo: (...) tentativa de situar no centro do universo – e considerar como a medida de qualquer valor – o próprio grupo étnico”. MORIN, Edgar. Philosopher. Paris: Ed. Fayard, p. 41. Apud: RUSS, Jacqueline. Léxico de Filosofía: Dictionnarie de Philosofie. p. 141 (Traduções livres do autor).

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Wallerstein, Joaquín Herrerra Flores e Jacques Deriva70), ou seja, a ampliação da noção de sociedade e de nação e a inclusão do círculo do pronome nós aos que antes se considerava eles (na concepção de Jürgen Habermas71). Dito de outra forma: a superação da dicotomia nós/eles, sobretudo da dialética amigo/inimigo, e das perspectivas antropológicas que vêm ao homem como um ser isolado que não pode ou que não deve estabelecer laços de união com seu entorno. Fundamental é a questão da solidariedade para a superação do trauma da sociedade hobbesiana (o homem é o lobo do homem) e ao tratar-se de substituir esta visão pela de um homem inserido em uma comunidade transnacional, ciente de dificuldades comuns a todos, questões estas inevitavelmente difusas, e por isso aberta ao debate. Certamente que na sociedade transnacionalizada existem muitos interesses em comum de chegar a um acordo, de preferência a um consenso, sobre problemas a que todos afetam. Estes problemas seriam as demandas de transnacionalização do direito: como o problema das guerras, da destruição do planeta seja pela corrida armamentista desenfreada (como exemplo a questão das tecnologias nucleares agora em mãos de diversos países), ou pela degradação do meio ambiente, que como se sabe que cada dia se agrava mais e mais. Ademais do problema do direito dos consumidores, assim como a regulação e proteção dos direitos dos trabalhadores, em uma economia globalizada, etc.72.

Evidentemente que ao tratar-se de questões como as do parágrafo anterior deve-se ter em conta a prolixa obra de Jürgen

70 Um bom estudo sobre a maldade estatal poderia ser feito a partir dos respectivos livros dos autores citados, ver: ZOLO, Danilo. Justicia de los vencedores: De Nüremberg a Bagdá. Madrid: Trotta, 2007; GARZÓN VALDÉS. Ernesto. Calamidades. Barcelona: Gedisa, 2004; WALLERSTEIN. Immanuel. O universalismo Europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007; HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos como productos culturales: crítica del humanismo abstracto. Madrid: Catarata, 2005. DERRIDA, Jacques. Canallas: dos ensayos sobre la razón. Tradução de Cristina Peretti. Madrid: Trotta, 2005. 71 Ver: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002. 72 Sobre o valor da solidariedade incluindo também direitos sociais, ver: CABO MARTÍN, Carlos de. Teoría Constitucional de la solidariedad. p. 45- 107.

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Habermas, dita obra deve ser objeto de estudo aprofundado para traçar os rumos de uma efetiva transnacionalização do direito. Habermas expôs em um grande número de trabalhos os pressupostos do discurso da superação da dialética do amigo/inimigo com a universalidade dos princípios republicanos e das perspectivas antropológicas da construção de nossa era73. Exatamente, na linha do pensamento habermasiano, a cultura da solidariedade exigirá a superação das estruturas de dominação e sua substituição se deve dar por estruturas de cooperação, ou seja, por um Direito transnacional.

Quanto ao espaço político e jurídico necessário para a articulação das demandas transnacionais, estas exigiram uma certa forma de republicanismo, que se apoiaria em modelos educativos muito concretos e, que em alguma medida, traria uma maior implicação do cidadão em assuntos políticos. Cada vez mais assistimos um afastamento do cidadão aos centros de decisões, ou seja, cada vez mais um individualismo egoísta toma conta da vida de todos e a cidadania que fica sem verdadeiros representantes.

Evidentemente que a questão da educação do cidadão está intimamente conectada com a questão da participação do mesmo em dito espaço público. Somente um cidadão educado poderá se interessar pelos assuntos de sua comunidade e das demais comunidades conectadas a uma determinada demanda comum. Uma educação que invista no aprendizado dos direitos fundamentais e da cidadania, que desenvolva o argumento a favor dos direitos de todos, dos direitos de cidadania e que considere o dialogo como forma de resolver os conflitos. Conhecer, estudar os processos que levam aos conflitos e a violação de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração, certamente é mais do que aprender a solucioná-los, uma vez que o conhecimento é o primeiro e certeiro passo para

73 Por exemplo: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002; e ______. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Volumes I e II. Tradução de Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

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prevenir e assim criar condições para posteriormente, com conhecimento de causa, solucionar as referidas demandas.

Uma questão a ser matizada é que a transnacionalização não poderia, em nenhuma hipótese, isolar ainda mais o cidadão dos centros de poder, pelo contrário, caberá reforçar sua participação e a garantia de seus interesses e direitos fundamentais, isso se daria através da chamada democracia participativa, como vemos hoje em dia no seio da União Européia. Ademais, não seria a total superação do Estado nacional, mas sim sua abertura para a resolução de problemas comuns inerentes a toda a família humana. Uma vez que não podemos mais pretender a superação de problemas globais e difusos de forma individual.

Então como republicanismo pode-se entender, em nossa opinião, como a vinculação de uma democracia participativa que ampliaria seu espaço de reflexão, debate e deliberação e que permitiria uma maior e melhor comunicação entre a política institucionalizada e a não institucionalizada. A denominada democracia representativa, que corresponde (ainda!) ao esquema liberal, e a sua via canalizada a partir dos partidos políticos, tem-se demonstrado ser absurdamente insuficiente para absorver as questões realmente de interesse público (interesse dos representados) e o complexo contexto de suas demandas. A crise da democracia representativa, nos moldes tradicionais como a brasileira, não é e nem deve ser considerada a crise da democracia, pois infelizmente a falta de credibilidade do sistema representativo trás como conseqüência o descrédito e a falta de interesse da grande maioria população e conseqüentemente leva ao distanciamento da tomada de decisões de uma ampla parte da população, em beneficio é claro de uma minoria oportunista.

A única saída seria a superação de modelos educativos atuais e a inclusão das discussões de questões relacionadas com os direitos fundamentais e cidadania no dia-a-dia da sala de aula e também sua inclusão na mídia em todos os níveis. Também a mídia e os escusos interesses que defende tem a sua parcela de culpa pela não

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efetividade dos direitos fundamentais em uma sociedade como a brasileira, isso certamente se deve à sua falta de compromisso com a ética e com a verdade sintetizados numa verdadeira banalidade do mal dos meios de comunicação para aqui citar o dizer de Hannah Arendt74. A alusão à clássica autora nos faz justamente recordar as interessantes críticas de Joaquin Herrera75 no sentido de que em nossa sociedade valoriza o holocausto ocorrida na Segunda Guerra mundial, certamente que corretamente, mas se esquece da maldade e dos outros holocaustos mais recentes e de nossa atual sociedade, dando uma perversa idéia de que vivemos em uma sociedade quase perfeita e sem maldade, traduzindo-se assim a tendência de diminuir os problemas dos outros, dos excluídos e dos países periféricos, pelas classes dominantes e pelos países centrais76.

Com a transnacionalização dos direitos fundamentais o compromisso de um país periférico passaria a ser com toda a comunidade transnacional a que pertence, e não mais somente com o seu (des)enganado povo. Seria uma aposta para diminuir o problema de constitucionalização do faz de conta dos direitos fundamentais, problema tão bem explicado por Marcelo Neves na tese do livro A Constitucionalização simbólica77, e irreverentemente sintetizada como as promessas (a constitucionalização dos direitos fundamentais) do amante (o Estado) à suposta amada (representada pelo povo) na interessante explicação do professor Luís Alberto Warat sobre o exercício da atividade jurisdicional do Estado nacional com relação à aplicação das regras jurídicas relativas aos direitos fundamentais

74 Ver: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 75 HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos como productos culturales. p. 67. 76 “Desde que las bombas de Hiroshima y Nagasaki dieron fin a la segunda guerra mundial se han calculado que la humanidad ha sufrido más de ciento y treinta guerras (dados de 1983) (…), cuyo resultado en muertos se cuenta por millones (…)”. RUIZ MIGUEL, Alfonso. La justicia de la guerra y de la paz. p. 47. 77NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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previstos na Constituição: “(...) como promessas de amor, aquelas que os amantes formulam quando sabem que não poderão cumpri-las”78.

Noberto Bobbio em um de seus escritos mais inspirados e adiantados ao seu tempo, como o próprio título prevê, O futuro da democracia79, apresentava os problemas e as dicotomias que a democracia enfrentava e que viria a enfrentar no futuro: os interesses particulares contra o bem de todos (exemplo dos nossos dias: a pouca valorização atual do princípio republicano); o governo das elites contra o governo do povo (idem); a ausência de um espaço público de debate e de uma genuína participação popular (a apatia cidadã e a atual crise de representatividade de nossos parlamentos); o cidadão insuficientemente formado (a péssima educação atual da maioria da população); e entre outras questões a persistente ingovernabilidade das democracias (o abuso das medidas provisórias em nosso sistema). Diante do panorama aludido, Bobbio apontava algumas linhas básicas para uma renovação da democracia com uma efetiva participação cidadã: renovação da sociedade mediante um livre debate de idéias; uma mudança de mentalidade a favor dos ideais de direitos humanos; mudança de valores a favor da não violência, da tolerância e do ideal de fraternidade. Em todos os casos dentro do sistema fechado dos Estados Nacionais vemos que os Estados estão passando, mesmos os sistemas democráticos, por problemas gravíssimos comuns a todos como a corrupção, a dominação das elites e de seus interesses, a infidelidade aos seus ideais mesmo a falta de ideologias por parte dos partidos políticos e a conseqüente apatia política cidadã e por fim o aumento das desigualdades sociais.

Os novos direitos fundamentais se encontram conectados entre si exatamente por sua incidencia universal na vida de todos os

78 WARAT, Luis Alberto. Apresentação fora das rotinas. In: ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material. Florianópolis: Habitus, 2002. p. 13. 79 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 7.ed. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

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homens e exigem para sua realização a comunidade de esforços e sobretudo responsabilidades de todo o planeta80.

Certamente que com o objeto de proteção bem localizado e os objetivos bem claros da sociedade transnacionalizada, assim como bem entendida a fundamentação teórica da transnacionalização, e uma conseqüente abertura de espaços políticos para o debate, o resultado será uma boa regulação do Direito Transnacional.

Considerações finais

O processo de internacionalização tradicional dos direitos humanos, a partir da criação dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos – universal: ONU e regionais: OEA e Conselho de Europa – não têm se mostrado suficientes para a proteção dos direitos fundamentais de primeira e segunda geração e nem o serão para questões mais complexas como os de terceira geração. Fica então evidente a necessidade de criação de um espaço transnacional para que a Comunidade Internacional possa proteger questões tão urgentes para o ser humano como a paz entre as nações, a defesa do consumidor global, o meio ambiente para a atual e as futuras gerações, o crime organizado internacionalmente e outras novíssimas questões relacionadas com novas tecnologias como a biotecnologia – evolução da medicina – e o ciberespaço mundial.

Os direitos fundamentais de terceira geração também são reivindicações dos mais débeis, quando vemos que questões como a paz, o meio ambiente, o consumo, a proteção da criança e do adolescente, do idoso etc., são mais débeis que os interesses econômicos das grandes corporações e dos Estados centrais. Quando estão em jogo interesses econômicos dos mais poderosos sabemos que prevalecem quase sempre a vontade dos de sempre. Como o vulnerável súdito do estado absoluto, como o desprotegido trabalhador no estado liberal de direito do século XIX, o cidadão atual

80PEREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de los Derechos Humanos, p. 34-35.

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tem a necessidade de ver suas demandas fortalecidas pela construção de um espaço transnacional que venha a proteger suas demandas mais recentes (“novos” direitos).

A evidente crise da democracia e do Estado nacional leva a que devam ser pensadas novas possibilidades para regular e renovar as questões de cidadania. A União Européia certamente é o exemplo de transnacionalização que superou a questão puramente econômica e com respeito à decisão das maiorias e de uma sublime invocação, consideração e respeito aos direitos fundamentais mudou o rumo de futuras alianças transnacionais.

O fenômeno da transnacionalidade é mais bem caracterizado então como conseqüência do processo de especificação. Como um fenômeno recente e que está interligado aos chamados “novos” direitos, novos direitos fundamentais.

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DIÁLOGOS INSTITUCIONAIS E DEMOCRACIA: novas configurações constitucionais para a proteção e guarda dos direitos nas sociedades pluralistas

Cecília Caballero Lois1

Rafael Vasconcellos de Lima Costa e Silva2

A trajetória do constitucionalismo moderno apresenta uma série de desvios, sinuosidades, transformações, rupturas, saltos e retomadas que impedem a descrição de seu desenvolvimento desde uma perspectiva histórica linear. Desta forma, é impossível falar em uma narrativa oficial, exclusiva de algum modelo constitucional, mas sim de incontáveis fragmentos, de distintos sentidos e de inúmeros processos inacabados que concorrem para compor seu quadro. Como afirmar, por exemplo, tal qual fazem os inúmeros manuais do tema, que o aparecimento do constitucionalismo social tenha dado por encerrado o constitucionalismo liberal ou, por outro lado, que o surgimento de teorias pós-positivistas tenha redefinido, por completo, o sentido de ambos?

Especificamente, no que toca ao constitucionalismo oitocentista ainda que não se possa dar por estabelecido o fim do seu império soberano é possível afirmar, pelo menos, que sua agonia é crescente e que lhe resta pouco tempo de vida. Assim sendo, juristas e

1 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Professora dos cursos de graduação e pós graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora colaborada do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (mestrado e doutorado). Bolsista de Produtividade - CNPq/PQ. Coordenadora geral do Procad UFSC/UNIVALI/UNICAP. Atua na área de Teoria e Filosofia do Direito e da Política. 2 Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atua na área de Teoria do Direito e da Constituição

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filósofos preocupados com sua morte tardia começaram a perguntar-se que caminhos poderiam ser trilhados para enfrentar (e superar) a crise de racionalidade 3 que dali emerge, gerada, principalmente, pela tentativa de compreender questões práticas, utilizando um instrumental teórico que não está apto fazê-lo. Isso porque, durante o tempo em que o constitucionalismo liberal governou absoluto aliou-se, epistemologicamente, à chamada Teoria Geral do Estado.

Esta, por sua vez, reduziu o conhecimento da constituição à mera descrição das principais características das normas jurídicas (especialmente das características decorrentes de sua superioridade hierárquica) e da posição que ocupam no ordenamento (decorrente da chamada construção escalonada), suprimindo, assim, qualquer discussão sobre a sua fundamentação, posto que compreendê-la mostrava-se tarefa estranha à atividade do jurista. Como consequência, tem-se, então, que a Teoria Geral do Estado deixa de contemplar questões que ultrapassem o problema da validade formal do direito, para dedicar-se, tal como já dito, unicamente a uma elaboração mais genérica das características das regras e de seu funcionamento.

O fato é que, paulatinamente, a realidade que cerca o universo jurídico vai transformando-se profundamente até o ponto em que um modelo de conhecimento tão simples torna-se completamente desprovido de sentido. A noção restritiva, assumida por essa forma de constitucionalismo, sofreu duras críticas, especialmente a partir da República de Weimar, momento em que foram formulados os alicerces do que se costuma denominar de constitucionalismo social.

3 Por crise de racionalidade entende-se a tentativa de responder a questões práticas, utilizando um instrumental teórico que não está apto (em complexidade epistemológica) a fazê-lo, visto que os métodos foram deslocados do direito privado para o direito público, criaram uma grave crise de racionalidade que obrigou a revisão, incitou a criação de novas possibilidades interpretativas e argumentativas –como foi o caso da tópica–, tendo como força motriz a realização dos direitos fundamentais. Tentou-se, assim, responder à especificidade de um método voltado para o direito constitucional e que deve, ainda, conduzir à uma interpretação justa e, mais importante de tudo, fundamentar este resultado de forma racional e controlável.

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Esse modelo propiciou uma maior abertura epistemológica para a compreensão do fenômeno constitucional, cuja característica unificadora formula-se a partir da recepção teórica da complexidade que permeia as relações entre a constituição, o Estado e o poder político, inserindo as ideias de materialidade e cultura no interior do debate constitucional.

Como não poderia deixar de ocorrer, as mudanças de orientação política e teórica no entendimento da constituição levaram a uma nova transformação do horizonte e das possibilidades de análise e compreensão do sistema constitucional, bem como a uma necessidade de revisão metodológica visando a abranger as novas posturas nele encontradas. Como corolário desse movimento (num momento histórico muito mais próximo), outros temas — tais como concretização constitucional, regras e princípios e alargamento das funções jurisdicionais — passaram a adquirir maior relevância, a ponto de serem identificados como elementos centrais da Teoria Constitucional contemporânea e a partir dos quais se pode postular o desenvolvimento de uma nova forma de conceber o constitucionalismo. Essas transformações merecem, pelas suas implicações, uma análise mais cuidadosa.

Concretizar significa compreender a constituição como um campo aberto e indeterminado, onde as normas constituem apenas um ponto de partida e não, como considerariam os liberais, de chegada e, ainda, atentar para o fato de que a Carta Magna deve cumprir determinadas funções, especialmente, a de realização dos direitos fundamentais 4.

A par disso, pode-se verificar que a necessidade de ampliar a dimensão de proteção dos preceitos constitucionais ganhou maior repercussão, a partir do reconhecimento das normas (em especial, das constitucionais) como gênero das quais regras e princípios representam subespécies dotadas de mesma eficácia normativa. Esta

4 O debate sobre o conceito, alcance e materialização dos direitos fundamentais é central para a compreensão do constitucionalismo social e será abordado logo a seguir de forma individualizada.

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diferença, que foi inicialmente elaborada por Ronald Dworkin 5, reconhece tanto nos princípios quanto nas regras a capacidade de impor obrigação legal, acaba por ganhar maior impacto na doutrina alemã, a partir da obra de Robert Alexy 6 que, sob fundamentos bem distintos do autor americano solidifica a distinção e a faz passagem obrigatória da compreensão do constitucionalismo contemporâneo 7.

Os princípios constitucionais, em sua grande maioria, tem a função de albergar as demandas políticas e sociais que se fazem presentes dentro de determinado período. Trata-se, sem dúvida, de demandas de caráter moral que assumem a forma de direitos fundamentais positivados, mas indeterminados em seu sentido específico, tanto no seu conteúdo individual quanto na sua inserção no sistema constitucional. É justamente esta a grande novidade do constitucionalismo contemporâneo: o reconhecimento da estreita relação entre o direito e a moral e, principalmente, a impossibilidade de pensar um desvinculado do outro. Tal constatação nos afasta definitivamente do constitucionalismo do século XIX e nos coloca em areias movediças.

Vários motivos justificam tal constatação. O primeiro deles é a falta de uma moral comum ou objetiva que impede a determinação de um sentido unívoco ou universal para determinado princípio, deixando para as impressões subjetivas a determinação de seu conteúdo. O segundo, e talvez o mais relevante, aparece quando vislumbramos o novo papel que a jurisdição constitucional vem exercendo na contemporaneidade. O espectro extremamente alargado, onde um juiz ou uma corte são chamados a decidir sobre direitos que envolvem dilemas morais, potencializa o grau de

5 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 62-67. 6 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993, p. 81-86. 7 Considerado o fato de que esta pesquisa não tem por objeto o debate específico sobre a diferenciação entre regras e princípios, usaremos a divisão de forma genérica sem atentar para a diferença entre os dois sistemas, uma vez que na sua formulação geral, elas se equiparam.

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discricionariedade, pois acaba por autorizar decisões que fazem uso de convicções pessoais (em detrimento de uma argumentação potencialmente racional). Desta forma, a segurança jurídica — pautada na confiabilidade do sistema como um todo — ficaria confiada unicamente à consciência moral do juiz ou da corte constitucional.

Esse novo papel que a jurisdição constitucional é chamada a exercer não pode ser compreendido de forma isolada, mas como resultado de uma transformação na realidade fenomênica da própria teoria constitucional. Trata-se, acima de tudo, de uma decorrência do conjunto de elementos que transcendem o seu objeto específico (a constituição e a sua operacionalidade), e exigem que ele seja repensado e redimensionado continuamente, inclusive no que diz respeito às suas funções intrínsecas.

Esta conjuntura envolvendo a transformação dos destinos e das funções da constituição tem despertado inúmeras preocupações teóricas, dentre elas, as que se encontram aglutinadas sob um termo genérico denominado de ativismo judicial ou judicialização da política8. Este é um fenômeno mundialmente conhecido e caracteriza-se por uma postura ativista dos juízes, que passam a interpretar criativamente o direito, ocasionando assim uma espécie de transferência do poder legislativo, antes concentrado nos poderes legislativo e executivo, para os juízes e tribunais. Por outro lado, a interferência dos tribunais no campo político torna-se visível nos países democráticos, devido à utilização cada vez maior de procedimentos judiciais por parte de agências executivas e legislativas, bem como através do exercício do controle de constitucionalidade 9.

8 Embora vários autores estabeleçam algumas diferenças entre os termos eles serão tratados como sinônimos, uma vez que são fruto do mesmo problema: o alargamento indiscriminado da atuação de juízes e tribunais decorrente dos preceitos constitucionais. Para os fins deste projeto usaremos, prioritariamente, o termo judicialização da política. 9 TATE, Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995, p. 02

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Desta forma, o trabalho dos juristas, cientistas políticos e pesquisadores afins tem sido, com algumas variações, analisar as estratégias argumentativas e as práticas institucionais levadas a efeito pelo poder judiciário no processo de «domesticação» da política pelo direito e pelos dilemas estruturais decorrentes do aumento de sua atuação em Estado constitucional.

1. Causas da judicialização do ativismo judicial e da judicialização da política

O pressuposto essencial da judicialização da política é resultado de um novo modelo de atuação do tribunal constitucional, uma vez que a democracia e os direitos fundamentais consagrados nos textos constitucionais parecem carecer de um guardião. A jurisdição constitucional passa ser vista como condição de possibilidade desse modelo de Estado (o Estado Democrático de Direito), onde o juiz deixa de ser um mero aplicador do direito para intervir no processo político, ao utilizar a função judicial para estabelecer valores fundamentais que devem ser respeitados pelos três poderes do Estado e assim, conduzir a política para que ela se oriente na busca da justiça 10.

Segundo Tate e Vallinder 11 os principais fatores que contribuíram para consolidar a judicialização foram a queda do comunismo no leste europeu e o desaparecimento da União Soviética, fazendo com que os Estados Unidos fossem a única superpotência mundial. Após a segunda guerra mundial, estes emergiram como um modelo de poder democrático, e consequentemente, o prestígio e a reputação da Suprema Corte norte-americana e do judicial review se espalhou dentro e fora do país. Ao mesmo tempo, o modelo austríaco

10 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 28 11 TATE, Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995, p. 02

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de justiça constitucional, elaborado por Kelsen 12, no período entre guerras, também ganhou seu espaço no continente europeu.

Pese às diferenças existentes em cada país, a realização de uma pesquisa empírica fez com que Tate e Vallinder afirmassem que a judicialização geralmente ocorre de duas formas: a) através do processo de criação de políticas públicas, que até então eram feitas (ou deveriam ser feitas) pelas agências legislativas e executivas e passam a ser partilhadas com os juízes; e b) pela maior utilização de regras e procedimentos legais por espaços não-jurídicos 13.

No primeiro caso, o poder judiciário surge como uma nova arena de discussão de políticas públicas, na medida em que é provocado pela sociedade civil ou pelas instituições para estabelecer o sentido ou completar o significado de uma legislação, agindo segundo Werneck Vianna 14, como uma espécie de legislador implícito. No segundo caso, a utilização de procedimentos judiciais por espaços não-jurídicos pode ser exemplificada pelo uso das Comissões Parlamentares de Inquérito no ordenamento jurídico brasileiro, bem como pelo surgimento de organismos quase-judiciários, como agências, conselhos, tribunais administrativos, ombudsmen, árbitros e conciliadores, que de acordo com Cappelletti 15, também buscam controlar os poderes políticos.

Contudo, Tate e Vallinder 16 afirmam que outros fatores também contribuíram para a expansão do poder judicial nos países democráticos contemporâneos, merecendo destaque: a) a democracia;

12 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 13 A pesquisa foi empreendida a partir de relatos circunstanciados de diferentes autores sobre a realidade da expansão da judicialização nos seguintes países: Canadá, França, Alemanha, Índia, Israel, Itália, Malta, Filipinas, Suécia e Estados Unidos e, além de análises regionais como América Latina, os países integrantes da antiga União Soviética e a Comunidade Européia. 14 WERNECK VIANNA, Luiz et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 21. 15 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993. 16 TATE, Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995, p. 27

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b) a separação de poderes; c) a política de direitos; d) o uso das cortes por grupos de interesse; e) o uso das cortes pela oposição; f) a ineficácia das instituições majoritárias; g) as percepções sobre as instituições políticas; e h) a delegação das instituições majoritárias.

Pese a esta longa lista, os dois requisitos efetivamente necessários à judicialização da política são a democracia e a separação de poderes. Estes dois operam no sentido de fornecer condições para que o judiciário atue de modo independente dos demais poderes e que esteja em posição de igualdade em relação aos mesmos. Nas modernas democracias ocidentais, a independência judicial não se resume ao âmbito interno do judiciário, mas também é necessária diante das pressões econômicas e sociais, às quais os juízes estão expostos.

Não obstante, apenas esses dois fatores (ainda que indispensáveis) não seriam suficientes para impulsionar o ativismo judicial, até porque, segundo Tate e Vallinder 17, a separação de poderes pode ser uma via de mão dupla, na medida em que os juízes podem se basear na ideia de que devem apenas interpretar e não criar leis, deixando para mostrar seu próprio julgamento político apenas quando os outros falham adequadamente em alguma questão política, como muitas vezes ocorre na resolução de assuntos polêmicos.

O terceiro fator que facilita a atuação dos juízes é a existência de uma política de direitos, ou seja, de um conjunto de direitos protegidos pela constituição. A justiça constitucional muitas vezes atua como protetor dos direitos de indivíduos discriminados e de minorias étnicas ou parlamentares, que podem ter seus interesses prejudicados ou serem excluídos de participar do processo político, caso não haja nenhum controle sobre as ações da maioria. Ao interpretar as normas da constituição, muitas vezes a justiça

17 TATE, Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995, p. 43

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constitucional utiliza valorações políticas e, como se sabe 18, se todo direito é político, no âmbito constitucional, isso se torna ainda mais eminente, uma vez que a vigência e efetividade de todo ordenamento constitucional descansa sobre pressupostos políticos e depende de sua coerência com interesses da sociedade.

Este agigantamento das funções judiciais gera uma série de novos desafios à teoria constitucional e, em última instância, à própria ciência do direito, em face dos quais emergem uma série de questionamentos que ainda encontram-se sem respostas satisfatórias: qual deve ser o papel a ser desempenhado pelo poder judiciário em uma sociedade democrática? Constituem os enunciados normativos emanados das leis em autênticos limites à atividade interpretativa dos tribunais? Em que medida está o poder judiciário institucionalmente preparado para dar conta das funções a que se lhe atribuem? Em que medida as decisões dos tribunais interferem na tomada de decisões políticas?

Num breve levantamento bibliográfico efetuado para a construção deste trabalho (e que evidentemente não pretende de forma alguma ser exaustivo) foram encontradas algumas linhas de trabalho (que aqui poderíamos chamar de respostas) às questões levantadas (e que também, obviamente, não se pretendem exaustivas) que, em especial no Brasil, vêm norteando o debate sobre a judicialização da política. Estas linhas podem ser reunidas nos seguintes segmentos: (a) buscar um conceito apropriado a dar conta do fenômeno. Isto consiste basicamente em diferenciar judicialização da política de ativismo judicial, judicialização da política de politização da justiça, focar as principais características do fenômeno, bem como a expansão territorial e, ainda, o alargamento dos atores participantes do processo 19; (b) analisar os fundamentos do papel do

18 VERDÚ, Pablo Lucas; CUEVA, Pablo Lucas Murillo de la. Manual de Derecho Politico Madrid: Tecnos, 2001, p. 21. 19 Os autores de cada uma destas linhas de trabalho também são recorrentes. Neste primeiro exemplo, os nomes mais citados são TATE, Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of judicial power. New York: New York University Press,

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poder judiciário a partir de diferentes teorias da justiça que possam ser consideradas apropriadas a avaliar os limites e a extensão do controle por ele exercido sobre as demais esferas estatais 20; (c) identificar os vínculos existentes entre a abertura da argumentação judicial ao processo de principialização da constituição e o aumento do ativismo judicial; (d) empreender o levantamento de dados sobre a prática argumentativa do poder judiciário em casos emblemáticos a fim de avaliar a estratégia de argumentação corrente e o peso de argumentos consequencialistas em decisões que provocam significativo impacto no comportamento de atores políticos 21; (e) fornecer critérios para as bases de um diagnóstico-piloto sobre o poder judiciário brasileiro que seja capaz de avaliá-lo considerando parâmetros históricos, sociais, políticos e econômicos e que possa subsidiar a definição de políticas púbicas para o sistema judiciário e seu planejamento estratégico.

Em que pese à imensa gama de respostas que possam vir a ser oferecidas e, ainda, a discrepância política e epistemológica que possa existir entre elas, há um ponto em comum que envolve todas elas. Este ponto representa o cerne invariável de onde surge o pressuposto essencial para o aparecimento da judicialização e que nenhuma das

1995 e, na bibliografia nacional WERNECK VIANNA, Luiz et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 20 Aqui temos inserida, geralmente, o debate em torno das chamadas teorias substancialistas (Rawls, Dworkin, Raz, Ackerman) e das procedimentalistas (Habermas, Ely, Elster). Embora não vinculados diretamente a este debate CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Junior, 1993, 134 p. e GARAPON, Antonie.O juiz e a democracia : o guardião de promessas. 2 ed. Rio de Janeiro : Renavan, 1999 são referências quase que constantes nos trabalhos sobre o tema. 21 Os autores da Escola de Chicago cada vez mais têm aparecido neste debate que, neste caso, assume ares de um chamado pragmatismo renovado. Exemplos chaves seriam : POSNER, Richard. Law, Pragmatism, and Democracy. Cambridge, EUA: Harvard University Press, 2003. ou, ainda, RORTY, Richard. Consequences of Pragmatism. Minneapolis, EUA: University of Minnesota Press, 1982.

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possíveis respostas oferecidas até o presente momento chega sequer perto de tocar e, por este mesmo motivo, representa o argumento chave deste trabalho.

Trata-se, basicamente, de perceber que a judicialização está ligada a um arranjo institucional (ou constitucional) que envolve a ideia de um modelo de interpretação da teoria da separação dos três poderes e, ainda, um modelo de controle de constitucionalidade e atuação jurisdicional forte que possibilita e até exige do poder judiciário sempre a última palavra. Questionar este arranjo institucional e relativizá-lo pode auxiliar a comprovar o pressuposto geral que move este trabalho, qual seja: o de que a judicialização da política não deve ser percebida como decorrência automática da constitucionalização de direitos, da divisão de poderes e supremacia do judiciário, mas de uma escolha política construída sobre uma determinada leitura de fatos históricos que se naturalizaram.

Com efeito, para a compreensão do tema proposto é preciso retroceder, deslocar-se historicamente aos pressupostos que foram institucionalizados a tal ponto que, como foi dito, se naturalizaram. Faz-se necessário, então, problematizar o discurso padrão 22 utilizado para justificar a existência de um controle de constitucionalidade forte, amplo e abrangente que levaria, irremediavelmente, a ideia de última palavra do judiciário como uma decorrência natural da supremacia da constituição. A este tipo de pesquisa tem-se denominado de diálogos institucionais 23 e, pese as várias correntes e/ou concepções sobre os formatos institucionais que podem assumir, propõem,

22 Uma forma bastante didática de tentar explicar o sentido e o lugar das críticas que o presente projeto se propõe a debater seria pensa-lo como uma espécie de epistemologia constitucional. Ou seja, como uma forma de conhecimento sobre a constituição e o constitucionalismo que se preocupa em analisar a natureza e validade do conhecimento produzido historicamente. 23 Alguns autores costumam denominar estes trabalhos de weak form judicial review. Cfme. SHINAR, Adam. HAREL, Alon. Between judicial and legislative supremacy: a cautious defense of constrained judicial review. Unpublished working paper, 2011. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1760963>. Acesso em: 21 de julho de 2011.

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em linhas gerais, a distribuição da responsabilidade pela definição dos termos da constituição entre os demais poderes do Estado.

Vários são os autores que têm se dedicado a este trabalho. Entre eles, podemos citar Tushnet 24, Dixon 25, Sustein 26 e Gargarella 27. O que os une é a idéia de que nas sociedades complexas a supremacia do poder judiciário perde grande parte de seu significado, pois não se poderia atribuir a apenas um órgão a possibilidade de definir o sentido da constituição. A proteção e guarda de direitos, pelo contrário, deve ser o resultado de uma atuação conjunta de instituições que representem o pluralismo e o dissenso dentro da sociedade 28.

Assim, o que se propõe aqui é debater os limites da atividade judicial e a real necessidade de vincular a supremacia da constituição a supremacia do poder judiciário. Com isto, espera-se devolver à interpretação o seu caráter complexo e plural, retirando-lhe o caráter de empreendimento puramente racional e argumentativo. Para atingir tal objetivo, é preciso iniciar por desconstruir a vinculação semântica de superioridade constitucional – igual a – superioridade jurisdicional e descortinar este falso pressuposto, situando-o historicamente. Com efeito, vários autores 29

24 TUSHNET, M. Interpretation in Legislatures and Courts: Incentives and Institutional Design. In: The Least examined branch. The Role of Legislatures in the Constitutional State. Cambridge: Cambridge University Press, 1962; TUSHNET, M. Popular Constitutionalism as Political Law. Chicago: Chicago-Kent College of Law, 2006. TUSHNET, M. Alternative forms of judicial review. Michigan Law Review, vol. 101, Issue 8. Ann Arbor: Michigan University Press, 2003. 25 DIXON, R. Creating dialogue about socioeconomic rights: strong-form versus weak-form judicial review revisited. International Journal of Constitutional Law - I–CON, vol. 5, nº 03. New York: New York University Press, 2007. 26 SUSTEIN, C. One Case at a Time: Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2001. 27 GARGARELA, Roberto. La justicia frente al gobierno: sobre el caracter contramayoritario del poder judicial. Barcelona, Ariel, 1996. 28 SHINAR, Adam. HAREL, Alon. Between judicial and legislative supremacy: a cautious defense of constrained judicial review. Unpublished working paper, 2011. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1760963>. Acesso em: 21 de julho de 2011. P. 3-6 29 Cfme. GRIFFIN, Stephen. Enfim a Hora da Democracia? A Nova Crítica ao Judicial Review. In: BIGONHA, Antonio Carlos Alpino e MOREIRA, Luiz (Org.). Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.

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acreditam que este binômio foi construído por ocasião de uma leitura apressada do caso Marbury vs Madison, ao qual se atribui o título de marco zero do judicial review. O caso é extremamente conhecido e pode ser resumido da seguinte forma:

Derrotado pelo Presidente Thomas Jefferson, o então presidente John Adams nomeou diversos de seus correligionários do partido federalista como juízes federais, entre os quais se encontrava Willian Marbury. O próprio Marshall, secretário de Estado de Adams, havia sido nomeado com a aprovação do senado, Chief Justice da Suprema Corte, algum tempo antes. O título de nomeação de Marbury não lhe foi entregue a tempo, sendo sua nomeação suspensa por determinação do novo presidente (Jefferson) ao seu secretário de Estado, James Madison. Marbury acionou Madison exigindo informações. Não sendo fornecida nenhuma explicação, impetrou uma nova ação, writ mandamus, com o objetivo de alcançar a nomeação. O tribunal adiou por dois anos a decisão o que gerou uma forte reação contra os juízes. Finalmente, ao anunciar a decisão da Suprema Corte, Marshall destacou duas questões fundamentais: a) Jefferson não tinha direito de negar posse a Marbury; porém, b) a Suprema Corte não poderia conceder o writ mandamus, porque esta competência era original da Suprema Corte 30.

Do que se depreende do caso, é possível afirmar que não é o resultado que importa (uma vez que este, inclusive, concluiu pela improcedência da ação), mas as consequências que podem ser dele extraídas. Com efeito, com base no disposto no artigo 6º da constituição americana de 1787, ficou estabelecido que a função precípua da corte é declarar a inconstitucionalidade das leis incompatíveis com a constituição. É daqui que decorre a inovação de Marshall ao afirmar que – estando em jogo a constituição – é função

281. SHINAR, Adam. HAREL, Alon. Between judicial and legislative supremacy: a cautious defense of constrained judicial review. Unpublished working paper, 2011. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1760963>. Acesso em: 2 de agosto de 2011. 30 ATIENZA, M. El Derecho como Argumentación. México: Fontamara, 2005, p. 76

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de o judiciário protegê-la. O que não se lê, neste caso, contudo, é que caberia ao judiciário dar a palavra final sobre o tema, apenas que deve decidir sobre ele. Ora, decidir não implica necessariamente em dar respostas definitivas, mas pode consistir apenas em manifestar-se sobre o caso. Algo, portanto, totalmente distinto da interpretação que foi dada ao caso Marbury vs. Madison.

Com efeito, ao abandonar a leitura mais conservadora e tradicional dada ao caso em tela, vemos descortinar-se uma série de possibilidades interpretativas que colocam em xeque a ideia, tal como já foi dito, de que a judicialização da política e/ou o ativismo judicial é algo inexorável ao Estado contemporâneo. Assim, a interpretação da constituição poderia ser dada a partir da adoção de uma postura mais cooperativa por parte dos poderes do Estado, posto que o legislativo e até mesmo o executivo representam muito melhor a pluralidade política. Para as teorias dialógicas, a defesa da necessidade do judicial review num Estado democrático não implica na necessária assunção da supremacia judicial. O que estas vem paulatinamente demonstrando é que o judicial review pode ser estruturado de diversas formas, criando caminhos alternativos que permitam uma maior legitimidade e, portanto, uma maior proteção dos direitos na jurisdição constitucional.

A ideia fundamental é de que a construção do significado dos dispositivos constitucionais não deve ser vista como um monopólio do judiciário. As teorias dialógicas preconizam a participação das cortes, dos órgãos legislativos e da sociedade civil em um diálogo sobre princípios e políticas públicas. Promovem uma aproximação entre o discurso jurídico e o discurso político dentro de uma perspectiva de “dar e receber” entre Cortes e Legislativo no que concerne ao significado dos direitos constitucionais 31.

31 DIXON, Rosalind. Designing constitutional dialogue: bills of rights & the new commonwealth constitutionalism. 2008. 381 f. Dissertation (Doctor of Juridical Science) - Harvard University, Cambridge, 2008, p. 8. Dixon lembra que: “This idea of constitutional dialogue draws in part on a line of scholarship in the United States dating to Alexander Bickel’s famous 1952 treatise, The Least Dangerous Branch, about the desirability of some form of “give and take” between courts and legislatures in the

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O modelo constitucional que marcou o judicial review desde o século XVIII não pode ser o mesmo das estruturas constitucionais contemporâneas ainda que muitos dos seus traços sejam continuamente (re)afirmados. As discussões acerca dos novos modelos de direitos e democracia, bem como de suas possibilidades de realização estão na ordem do dia, ditando, nos diversos níveis da teoria e da prática constitucional, as pautas do debate. Certezas antigas são consideradas em crise, ao mesmo tempo em que se buscam metodologias consistentes para a análise do novo em conexão com as tradições. Esta questão faz-se presente, em especial, quando (co)relacionada com a própria prática constitucional.

Considerando essa situação que atravessa todo o discurso constitucional contemporâneo, surgem outras questões fundamentais:

(a) Existiria uma abordagem mais adequada para superar os problemas decorrentes do alargamento das funções jurisdicionais (judicialização da política e/ou ativismo judicial)?

(b) Considerando que as sociedades atuais são notadamente abertas e pluralistas, as decisões sobre questões políticas ou definição de políticas públicas representam função típica, atípica ou se simplesmente não estamos diante de uma função do poder judiciário no regime democrático deliberativo?

(c) O judicial review, na forma como foi concebido, a partir da leitura do caso Madison vs Marbury (e que se espalhou por boa parte do mundo ocidental) contribui de fato,

interpretation of constitutional protections. It also draws on a much broader array of recent American constitutional scholarship on the benefits of cooperative constitutionalism, or what Mark Tushnet has called “weak-form” judicial review more generally.”

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como argumentam muitos autores, para tornar a sociedade mais justa e democrática 32?

(d) O controle de constitucionalidade nos moldes atuais incita ou obstrui o debate público? Alarga ou torna mais estreita a esfera pública e o campo de deliberação?

2. Dialogos institucionais como possibilidades de uma concretização plural da constituição

As chamadas teorias dos diálogos institucionais podem apresentar algumas possibilidades concretas para fazer frente aos problemas decorrentes do alargamento das funções jurisdicionais. Embora apresentem diferenças em suas propostas, eles compartilham uma agenda política e constitucional semelhante, que se centra em desvincular o judicial review da sua consequência (não) natural: a ideia de que a última palavra em interpretação constitucional cabe apenas a um órgão judicial. Este modelo representaria uma forma de divisão mais equilibrada do poder e, por isso mesmo, uma forma muito mais democrática para a defesa e guarda dos direitos.

Outras questões iniciais precisam ser apontadas para elucidar melhor os caminhos que a pesquisa irá seguir:

(a) Embora não se possa afirmar que exista alguma hipótese mais adequada ou segura para encarar o problema apresentado, consideramos que a teoria dos diálogos institucionais, tanto pela originalidade, quanto pela sua atualidade, podem auxiliar na compreensão mais ampla do tema;

(b) Ainda que as funções do Poder judiciário encontrem-se integradas ao modelo de Estado que o constitui (neste caso, um Estado social que aposta em constituições principiológicas), estas precisam ser definidas num contexto global considerada a necessidade de reforçar a democracia, o pluralismo e a deliberação pública;

32 Cfme. DWORKIN, Ronald. Freedom`s law. The moral reading of American constitution. Cambrige: Cambrige Press, 1996.

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(c) Considerando que, no regime democrático - entendido como aquele que combina responsabilidade política com um alto grau de reflexão e um compromisso amplo com a argumentação - não constitui função típica nem atípica do poder judiciário proferir decisões de mérito sobre questão de natureza política ou definição de políticas públicas, é preciso pensar quais os limites e o alcance que certas decisões podem atingir.

A importância da teoria dos diálogos vem crescendo na medida em que cresce a perplexidade diante do alargamento cada vez maior dos poderes decorrentes do judicial review. Vários são os autores que (direta ou indiretamente) têm se dedicado ao tema. Entre eles, podemos citar Roberto Gargarella 33, Mark Tushnet 34, Rosalin Dixon 35 e Louis Fisher 36. Como se pode perceber (pelo rol de autores citados), o debate sobre este tema é muito mais intenso em terras estrangeiras (uma vez que os problemas decorrentes da guarda da constituição são bem mais antigos e, portanto, exibem maior amadurecimento) do que no Brasil, onde o debate ainda se limita as respostas tradicionais e, por vezes, dicotômicas.

Sua principal característica passa por tentar superar a tensão entre democracia e constitucionalismo, a partir de uma concepção democrática de constituição 37. Por sua natureza essencialmente política e, especialmente, por abranger a participação do poder legislativo na defesa e guarda dos direitos, as teorias dialógicas

33 GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno. Sobre el caracter contramayoritario del poder judicial. Barcelona, Ariel, 1996. 34 TUSHNET, Mark. Popular Constitutionalism as Political Law. Chicago: Chicago-Kent College of Law, 2006. 35 DIXON, Rosalin. Designing Constitucional Dialogue – Bill of Rights & The New Commonwealth Constitutionalism. (inédito, gentilmente cedido pela autora). 2009. 36 FISHER, Louis. Constitucional dialogues. Interpretations as political process. Prniceton, NJ: Princeton University Press, 1988. 37 Com algumas diferenças importantes e outras nem tanto, pode-se afirmar que este é o ponto que as une. O campo dessas teorias é perpassado por dois eixos: um de sentido vertical, que aglutina preocupações no sentido de efetivar direitos; de se levar em conta o caráter majoritário, do critério de um processo deliberativo genuíno e, por último, de se contrapor ao ativismo judicial. O outro, de tratamento horizontal refere-se à forma de conceber as teorias dialógicas, uma vez que se preocupa com relação à sistematização ou adoção de uma dinâmica conceitualista.

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colocam-se naturalmente opostas aos princípios da supremacia do poder judiciário e tendem a conferir maior peso ao papel do primeiro na configuração política/constitucional.

Com efeito, a teoria dos diálogos passa por uma concepção de re-equilíbrio na relação entre os poderes políticos, buscando a configuração de um sistema brando de controle de constitucionalidade (weak-form judicial review), com a premissa de que o poder último não há de residir na jurisdição constitucional, mas nos direitos em si, conforme cunhados pelos legítimos detentores dessa competência: o povo e/ou sua representação.

Outro ponto em comum de todas essas abordagens está na consideração de que a supremacia do judiciário é uma referência que perde o sentido nas sociedades contemporâneas. A proteção dos direitos deve envolver a atuação conjunta de todas as instituições, pois todas são responsáveis pela da tarefa de guarda da constituição, sobretudo no contexto das sociedades pluralistas.

A teoria dos diálogos institucionais opera, num primeiro momento, no nível do que poderia ser considerado uma epistemologia constitucional. Isto porque, seu passo inicial é desconstruir a semântica tradicional que associa diretamente a supremacia da constituição à supremacia do judiciário, a partir da releitura do voto do Chief Justice John Marshall no caso Madisom vs Marbury38. A decisão consagrou duas proposições fundamentais: (a)a constituição é a lei suprema e deve prevalecer diante de qualquer ato que a afronte; e (b)a função tradicional do judiciário é aplicar o direito e anular normas que (ainda que provenientes diretamente da soberania popular) entrem em conflito com o texto constitucional 39.

De fato, não há, na decisão em tela, nenhum elemento que conduza à associação aqui questionada. Há então que se concordar

38 O caso já foi apresentado na introdução deste projeto e, portanto, aqui ele será apenas objeto de análise. 39 Cfme. SOARES, Bernardo de Oliveira. Diálogos institucionais: (uma)releitura da supremacia do judiciário. Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito essencial para a obtenção do título de mestre me direito.

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com Griffin 40, para quem a referida associação (supremacia da constituição = igual a supremacia do poder judiciário) é posterior e comporta elemento políticos da época reafirmando esta ideia. As Teorias dos diálogos institucionais irão sustentar que atribuir o poder de controle de constitucionalidade unicamente ao poder judiciário é uma questão de escolha política e não de decorrência natural ou necessidade lógica.

Com efeito, a ideia de distribuir o poder de definição do significado dos direitos constitucionais entre os diversos ramos do governo não é nova. A defesa de um diálogo institucional foi feita por Roberto Gargarella, em 1996. Por este motivo (e sem desconhecer que existem outras classificações igualmente interessantes) 41 será utilizada a classificação por ele proposta para apresentar os três modelos de controle de constitucionalidade que são trazidos para o debate pelas teorias dialógicas. O jurista argentino distingue três concepções: (a) conservadora; (b) populista; e, (c) radical não populista ou genuinamente radical 42.

A primeira promove a defesa da revisão judicial a partir da ideia de que as maiorias são guiadas por paixões momentâneas, de modo que é preciso contar com um corpo de juízes isolados do debate público, composto por indivíduos especialmente capacitados, cuja tarefa seria lidar com questões constitucionais. A segunda é hostil a

40 O autor aponta a desconfiança das elites em relação povo como uma delas. Cfme. GRIFFIN, Stephen. Enfim a Hora da Democracia? A Nova Crítica ao Judicial Review. In: BIGONHA, Antonio Carlos Alpino e MOREIRA, Luiz (Org.). Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 289. 41 Cfme. SHINAR, Adam. HAREL, Alon. Between judicial and legislative supremacy: a cautious defense of constrained judicial review. Unpublished working paper, 2011. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1760963>. Acesso em: 1º de agosto de 2011. Segundo eles, as correntes dialógicas podem ser divididas em: Constitucionalismo Popular, Departamentalismo e Week-Form of Judicial Review. Devido as limitações do projeto, estas não serão trabalhadas neste momento, porém serão objeto de análise minuciosa por ocasião da realização da pesquisa. 42 GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno: sobre el carácter contramayoritario del poder judicial. Barcelona: Ariel, 1996, p. 47-58.

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revisão judicial e pretende restringir ao máximo a capacidade dos juízes de invalidar leis produzidas por órgãos representativos. A terceira acredita no poder da deliberação e afirma que a cidadania deve ser consultada nos processos de tomada de decisão. No entanto, reconhece que a deliberação pode falhar em algum momento. Por essa razão, ainda que privilegiem o princípio majoritário, os defensores da última tradição admitem a revisão judicial para reafirmar e/ou aperfeiçoar a vontade popular.

Gargarella considera que a tradição radical não populista é a mais adequada e busca fortalecê-la chamando a atenção para três questões: a técnica de reenvio de leis, o fortalecimento da vinculação entre poder judicial e grupos sociais minoritários e a necessidade de promover reformas políticas. Esta é particularmente importante, pois, de acordo com Gargarella, é capaz de fomentar o diálogo entre os poderes sobre o conteúdo dos direitos. Ao valer-se da participação dos representantes do povo em caso de disputas sobre o sentido dos direitos, o instituto do reenvio legislativo cria-se um sistema de responsabilidade compartilhada, fomenta-se o diálogo e, ainda, promove-se um sistema de proteção contra as falibilidade dos processos decisórios. En suma, el reenvío se presenta como un mecanismo institucional, en principio, idóneo, para satisfacer muchas de las finalidades defendidas en este trabajo: la promoción de ‘diálogo’ institucional, la protección ante uma general falibilidade en la toma de decisiones imparciales; la defensa del principio mayoritario, y la diminuición de la actual rigidez del sistema constitucional. 43

3. Sobre o a legitimação da jurisdição constitucional em democracias pluralistas

Neste contexto, assume fundamental relevo a divisão das funções estatais em Executiva, Legislativa e Judiciária. Pois somente tendo em vista a função exercida especificamente por cada órgão estatal pode-se verificar a legitimidade de sua atuação.

43 GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno. Sobre el caracter contramayoritario del poder judicial. Barcelona, Ariel, 1996.

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Ao legislador compete a tarefa de discutir e acordar programas gerais destinados a realizar a autodeterminação da sociedade. É por meio dessa auto-determinação democrática que devem ser densificados e concretizados, por meio de legislação, os direitos fundamentais inscritos na constituição.

A legitimação orgânico-pessoal dos parlamentares, associada a responsabilidade sancionada democraticamente pelas eleições periódicas, tal como definido por Böckenförde44, permite ao povo, manter o parlamento aberto a uma esfera pública pluralista não institucionalizada que emerge dos focos consenso gerados nas comunicações cotidianas. A formação desta esfera pública permite, por um lado uma maior tematização das demandas provenientes dos diversos âmbitos funcionais da sociedade45, tais como a economia, arte e educação, permitindo a formação de focos de consenso dos quais o parlamento se abastece para responder a estas demandas por meio de legislação46.

Por outro lado, a legitimação material ou de conteúdo das decisões parlamentares depende do respeito aos limites impostos constitucionalmente, bem como da consonância com a vontade popular gerada nos processos comunicativos cotidianos, sob a forma de uma esfera pública pluralista, que as eleições periódicas visam garantir.

Em que pese o fato de as decisões legislativas em geral serem tomadas por meio de ações estratégicas, mediante a negociação de interesses, e não pela busca do consenso intersubjetivo, o processo discursivo destas negociações, ao ser regulamentado procedimentalmente, proporcionando iguais chances de participação,

44 BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la Democracia. Trad. Rafael Agapito. Madrid: Editorial Trotta, 2000. 45 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo, Martins Fontes, 2003 46 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democratico de Derecho en Terminos de Teoria de Discurso. 4.ed. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Editorial Trotta, 2001.

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influência recíproca dos interesses divergentes garante a legitimidade do resultado obtido por meio do procedimento 47.

A necessidade da gênese democrática das normas jurídicas se funda na necessidade de que estas, por vincularem a todos os cidadãos devem ser passiveis de aceitação por todos os possíveis implicados48. Desta forma, os debates parlamentares, alimentados pelos focos de consenso gerados numa esfera pública pluralista, permitem a todos os implicados a chance de participação no estabelecimento destas normas. Daí porque os discursos de fundamentação de normas, isto é os discurso destinados a justificar a correção das normas competem prioritariamente ao parlamento, erigido pelo constituinte como detentor do poder legislativo, pois sua estrutura funcional proporciona a gênese democrática das normas49.

Ao judiciário por sua vez, cumpre a função de articular a coerência das normas abstratas produzidas pelo legislativo, aplicando-as aos casos de conflito de modo a estabilizar as expectativas de comportamento, impondo de forma vinculativa qual o comportamento devido, pondo um fim ao conflito50. Desta forma, a atuação judicial está vinculada fundamentalmente a discursos de aplicação de normas. Isso se justifica, devido ao princípio democrático, pois, em virtude da falta de legitimação orgânico-pessoal adequada dos membros do judiciário, que não são passiveis de responsabilidade democraticamente sancionada, a legitimidade material ou de conteúdo das decisões judiciais depende da vinculação destas às normas democraticamente criadas pelo legislador51. Assim, não é função do judiciário discutir a respeito da correção das normas criadas pelo legislador democrático, mas apenas

47 ibid 48 ibid 49 ibid 50 ibid 51 BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la Democracia. Trad. Rafael Agapito. Madrid: Editorial Trotta, 2000.

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sobre a adequação de sua aplicação a casos concretos com vistas a decidir conflitos52.

A legitimidade da atuação do tribunal constitucional, como bem ensina Schneider depende do respeito aos limites institucionais e funcionais destinados aos demais órgãos estatais, bem como a vinculação estrita à constituição. Assim, incumbe ao tribunal constitucional, no exercício de suas atribuições, resguardar-se para não invadir o âmbito funcional de outras instancias estatais, sob pena de passar de guardião a senhor da constituição53.

Na medida em que questões políticas estão tratadas na constituição, e em virtude disso se apresentam à jurisdição constitucional, esta não pode se subtrair de decidí-las. Estretanto, não pode o judiciário decidir essas questões da mesma forma como decidiriam as instancias representativas. Isso porque a atuação judicial não dispõe de legitimidade adequada para decidir sobre como os conteudos indeterminados da constituição devem ser densificados. O papel do jurisdição constitucional deve ser apenas de preservar a formação genese democratica das normas criadas pelas instancias representativas da sociedade mediante a aplicação das normas definidoras do processo legislativo.

O controle de constitucionalidade de uma lei por um tribunal constitucional sempre significa a solução da questão sobre se a lei surgiu de maneira constitucional”54, pois a constituição estabelece o procedimento para a criação de lei (incluindo aí limites e diretivas de conteúdo). Assim quando o conteúdo material da lei é contrario à constituição, isso significa apenas que essa norma não poderia ter sido veiculada por lei, mas apenas por emenda constitucional.

52 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democratico de Derecho en Terminos de Teoria de Discurso. 4.ed. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Editorial Trotta, 2001. 53 SCHNEIDER, Hans Peter. Jurisdicción constitucional y separación de poderes. In: Democracia y constitucion. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. 54 KELSEN, Hans. Quem deve ser o Guardião da Constituição. In: Jurisdição Constitucional, por Hans Kelsen. São Paulo: Martins Fontes, 2003. P. 256

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Mesmo quando a constituição exclua totalmente algum conteúdo de lei (e.g. clausulas pétreas) a inconstitucionalidade repousa no simples fato de a lei ter sido adotada55.

É fundamental que o tribunal constitucional, no uso de suas atribuições de verificar a constitucionalidade da atuação do legislador tenha por base unicamente verificar se este atuou segundo os procedimentos adequados prescritos pela constituição. Nos casos em que o legislador, seja por vicio de inicitiva, por invadir competência reservada a outro ente federativo, ou por veicular por lei ordinária matéria reservada a lei complementar, isto é, nos chamados vícios formais ou inconstitucionalidade formal compreendida em sentido estrito, não há que se cogitar qualquer limitação funcional do tribunal, até mesmo porque, ao zelar pela garantia do correto procedimento legislativo o tribunal está preservando a gênese democrática das leis.

Situação um pouco mais complexa ocorre na verificação da chamada inconstitucionalidade material, que consiste no fato de o legislador criar norma incompatível com a constituição em seu conteúdo. Tal complexidade se deve em grande parte à indeterminação dos conteúdos materiais da constituição, ou seja, aqueles não referidos especificamente ao procedimento legislativo, que informam e delimitam os âmbitos de atuação do legislador, fixando-lhe margens de ação56.

4. Jurisdição constitucional e as margens de ação do legislador

Em geral, quando as normas constitucionais apresentam-se como regras, definindo uma proibição ou obrigação em definitivo, qualquer disposição do legislador em sentido contrário importa em ultrapassar os limites materiais impostos.

55 KELSEN, Hans. Quem deve ser o Guardião da Constituição. In: Jurisdição Constitucional, por Hans Kelsen. São Paulo: Martins Fontes, 2003 56 A esse respeito ALEXY, Robert Tres Escritos Sobre los Derechos Fundamentales y la Teoria de los Pricipios. Trad. Carlos Bernal Pulido. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003.

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Muito mais problemática é saber se o legislador respeitou ou não os limites quando a ação não é prescrita ou proibida de forma definitiva, mas resulta de delimitação de conteúdos indeterminados da constituição. Isto é, quando as normas constitucionais se dirigem ao legislador sob a forma de princípios, ou seja, não prescrevem nem proíbem nenhuma conduta em definitivo, mas apenas direcionam a atuação do legislador em algum sentido. Aqui, uma delimitação precisa destes conteúdos significaria incorrer em discursos de justificação dizendo qual a norma deve ser adotada, função que a constituição estabelece ao legislador, e para a qual este possui legitimação democrática adequada. Entretanto, subtrair ao tribunal constitucional a possibilidade de controle da ação do legislador com base em princípios importaria em retirar a força normativa destas normas constitucionais.

Portanto, diante de tais conteúdos da constituição, não cabe ao tribunal delimitar qual deveria ser a atitude tomada pelo legislador. Nestes casos o tribunal deve se limitar a verificar se o legislador atuou nos limites das margens de ação conferidas pela constituição, declarando a inconstitucionalidade apenas quando estes limites materiais da competência legislativa são ultrapassados.

O legislador, por dispor de legitimação democrática adequada e responsabilidade sancionada democraticamente, tem ampla competência para estabelecer os objetivos a serem perseguidos pela comunidade, limitando-se apenas pela proibição de fixar fins contrariamente ao que a constituição proíbe de forma definitiva, casos em que o tribunal deve eliminar tal norma, ou subtrair-se aos fins que a constituição mesma já fixa, nesses casos de omissão o tribunal deve se valer de apelos ao legislador, bem como de extenão de efeitos de outras normas legais ou constitucionais a fim de garantir os direitos fundamentais prejudicados pela omissão.

No que diz respeito à margem para a eleição de meios é ao legislador que compete à eleição dos meios para promover os objetivos eleitos, estando apenas sujeitos a controle, no caso de medida que restrinja alcance de norma constitucional ser

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manifestamente inidônea para promover qualquer objetivo legítimo (sub-nível da adequação no princípio da proporcionalidade), ou se mostrar evidente que outro meio igualmente eficaz limite de forma claramente menos intensa o alcance de direito fundamental ou de outra norma constitucional (sub-nível da necessidade no princípio da proporcionalidade)57.

Por fim é ao legislador que compete realizar as ponderações necessárias para estabelecer qual a medida normativa deve ser adotada para densificar os direitos fundamentais e normas constitucionais carentes de concretização. Pois somente o legislador é adequadamente legitimado a decidir sobre a correção das medidas adotadas, na medida em que é responsabilizado por suas escolhas por meio da submissão periódica a eleições. O papel do tribunal no controle da ponderação efetuada pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito) é apenas verificar se a decisão do legislador não esvazia o significado da proteção de direito fundamental (proteção do núcleo essencial), e se eventuais limitações de alcance de direito fundamental ou outra norma constitucional pode ser justificado de forma plausível pela importância da medida legislativa. No entanto, deve-se reservar, evidentemente, ao controle concreto a verificação da adequação constitucional da aplicação da norma às situações de fato que se apresentem sem que isso importe em invalidade da mesma58

57 Assim, o STF declarou, na ADI 2536/DF, a constitucionalidade da medida legislativa do Plano Real, que promovia a desindexação da economia de forma progressiva, através da conversão da moeda corrente em URV (unidade valor de real), negando haver com isso ofensa a norma que garante o direito adquirido e da irredutibilidade de vencimentos. Entendeu a corte que em casos como esse de mudança de padrão monetário, pode o legislador dispor sobre a conversão de valores, de modo que se houvesse direito adquirido aos valores anteriores a conversão, e garantia de irredutibilidade tendo em conta os valores antigos isso importaria em impossibilitar a medida destinada a desindexar a economia. Além disso, a desindexação gradual da economia é uma medida que se destina a promoção de um fim legítimo e de claramente de baixo potencial lesivo, de modo que não há de se cogitar em na desnecessidade da medida. 58 Neste sentido é, por exemplo a decisão do STF na ADI 223 /DF que questionava a constitucionalidade de norma que vedava a concessão de liminares em processos decorrentes das medidas provisórias do plano Collor. Como bem esclarece o Min.

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Conclusão

Uma vez demonstrado o déficit de legitimidade gerado pelo ativismo judicial, bem como da falácia do argumento que liga a supremacia do judiciário como conseqüência lógica da supremacia da constituição, torna-se imperioso traçar os limites funcionais da jurisdição constitucional tendo em vista sua legitimação.

Traça-se assim o quadro de novas alternativas de compreensão de um modelo de judicial review não centradas na afirmação da supremacia judiciária. Para finalizar, é importante dizer que a conjugação responsiva desses pontos de vista (tanto do judiciário, quanto do legislativo) permite esclarecer quais são os vetores constitucionais, qual a área excluída da deliberação legislativa, sem abrir mão da prerrogativa – ou ônus – de concretizar os valores constitucionais tendo em conta a dimensão da coletividade. Neste sentido legitima-se a jurisdição constitucional, apresentada não como veto à deliberação política, mas como parâmetro da esfera do possível no campo da função legislativa.

Sepúlveda Pertence, a possibilidade de concessão de medidas cautelares tem uma importante função de se preservar determinadas situações para que a tutela jurisdicional não se torne inútil. Assim, uma vedação de concessão de liminares, sem sombra de dúvida constitui uma restrição do alcance da norma que garante a tutela jurisdicional a lesão ou ameaça a direito. No entanto, é sabido que a restrição de medidas liminares em determinados caso se mostra possível, para que justamente, sob o argumento de se preservar a possibilidade de garantir o direito de um se leve a situações de difícil reversão que inviabilizem a proteção do outro, resultando em uma cognição limitada da demanda. Entretanto, a norma em questão não se referia à vedação de liminares tendo em vista condições específicas, mas em vista de determinado bloco normativo de emergência, destinado a superar uma situação de crise. Diante disso, pareceu ao ministro, que não a norma não se mostrava incompatível com a constituição, mas que, diante da indeterminação dos casos aos quais a norma se faria aplicável, seria necessário realizar a cada caso em que esta pretendesse aplicação um juízo para verificar se neste caso esta violaria o direito a tutela jurisdicional adequada.

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