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LABORINHO LÚCIO O JULGAMENTO UMA NARRATIVA CRÍTICA DA JUSTIÇA

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O J U L G A M E N T O

L A B O R I N H O L Ú C I O

O J U L G A M E N T O U M A N A R R A T I V A C R Í T I C A D A J U S T I Ç A

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L A B O R I N H O L Ú C I O

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O J U L G A M E N T O

Í N D I C E

Manifesto anti-dantes AlegoriaAuto de Inquirição

I PARTE1968-1974

O ANTIGAMENTE DO DANTES

CAPÍTULO I1968– O juramento – A posse, o juiz e o tribunal. Os processos, os advogados e o fun-

cionário da instrução. A época: atitudes, motivações, notícias e comportamentos. O vulgar e o invulgar.

CAPÍTULO IIA Independência do Poder Judicial e o Estado Novo– Quando o que parece, é – A independência dos tribunais, o «Estatuto Judiciário» e o posi-

tivismo jurídico. O juiz mero técnico do direito e o silogismo

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judiciário. As inspecções, o direito e o caso. O Palácio da Justi-ça e a Casa dos Magistrados. A imagem projectada do regime.

CAPÍTULO IIIEbulição na Continuidade– «As gentes da justiça» –A comarca. Ruas, feiras, queijeiras e lojistas. Jornais, escritores e

dramaturgos. Juízes e advogados. Contradições e perplexidades. A «Pedra Filosofal» e o Tourmalet. O processo de Rafael. A cri-se académica. Eleições e criminalidade. Emigração clandestina. A Assembleia Nacional. Ascensão e queda da Ala Liberal.

CAPÍTULO IVO Culto da Forma– Na peugada de Kafka – O pós-guerra e as ciências sociais. O «Homem» situado e a de-

sigualdade. O Estado e os direitos sociais. Direito, valores e comportamentos. O diálogo entre a lei e a vida. Complexida-de, ordem e desordem. A dúvida, a interrogação e a incerteza. A emergência de novos sujeitos. Minorias e diferença. O pen-samento jurídico e a valorização da aplicação do direito. O Estado de direito. O moleiro de Berlim. O juiz, o processo e a forma. Justiças: laboral, cível, comercial e criminal – valori-zação relativa. O juiz penal e o fenómeno criminal. Investiga-ção criminal e direitos humanos. A justiça cível e o triunfo da forma. Justiça, credibilidade e fé. O ritual e a autoridade. Justi-ça, linguagem e comunicação.

CAPÍTULO VA Construção de Um Juiz – Medos e perplexidades – Sinais de mudança. A mulher no funcionalismo judiciário. Juízes

novos. Penhoras, comerciantes e formas de recrutamento. Eleições legislativas. Pequenas comarcas, grandes interro-gações. O juiz corregedor. Os novos delegados do procura-dor da República. Outras «gentes» da justiça. Independência, isenção e humildade. Dúvida e decisão. O julgamento popu-lar. A função de julgar e o apelo a Vinicius.

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CAPÍTULO VISobre o Acto de Julgar– Entre a razão e a emoção –O juiz, sujeito e objecto de julgamento. O bom juiz e o juiz bom.

Bom senso: riscos e virtualidades. Julgamento e interpretação. Julgamento e subjectividade. O processo psicológico de deci-são. Motivações não jurídicas das decisões judiciais.

CAPÍTULO VII1974– A revolução –Um livro. Um autor. Um procurador da República. Uma revolu-

ção.

II PARTE1974-1990

O NOVO DO DANTES

CAPÍTULO IO Poder Judicial na Transição– As grandes mudanças –A Constituição de 1976. Tribunais e representação. Leis orgâni-

cas e reforma da justiça. O autogoverno das magistraturas. A autonomia do Ministério Público. Pluralidade de ordens jurisdicionais. A mulher na magistratura. Independência dos

Marialvas e minissaias. Os Conselhos Superiores. O Conselho da Revolução, a Comissão Constitucional e o Tribunal Consti-tucional. Tribunal de júri, julgados de paz, juízes sociais. Novos diplomas legais. Criminalidade económica. O novo juiz.

CAPÍTULO IIO Retorno da Ideologia– A sociedade complexa –O Palácio da Justiça, os magistrados e a mudança. O ritual e a jus-

tiça, bicicletas e «dormitórios». O Presidente da República e a arena política. A aceleração da política. O movimento sindical

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nas magistraturas. «Três objectivos consensuais.» Da revolu-ção à institucionalização. O Conselho da Revolução, as nacio-nalizações, o COPCON, a unicidade sindical. O «Documento dos Nove», a Assembleia Constituinte e as eleições: legislati-vas, presidenciais e autárquicas. Institucionalização e combate político. Sindicalismo judiciário, independência dos tribunais e acção política. O sindicalismo na magistratura judicial. O peso do Ministério Público. Uma nova cultura judiciária e os auto-res «desconhecidos». «Encontros do Ministério Público.» Um procurador-geral da República. A época: atitudes, motivações e comportamentos. O FMI, o «ano do punk», uma obra ímpar e a Microsoft. A inspecção no Ministério Público. Rede bom-bista, cheques sem provisão, garrafas de sete decilitros e meio, consumo de estupefacientes. Novas interpelações na justiça.

CAPÍTULO III1979– Mudar de «escola» –

-ta. Juízes e magistrados do Ministério Público. Autogoverno das magistraturas e sindicalismo. A independência-valor e a in-dependência-garantia. Independência e responsabilidade. Bri-gadas Vermelhas, Khomeini e Simone. Sintomas de crise. A criação do Centro de Estudos Judiciários. A Escola Nacio-nal da Magistratura Francesa. Um Homem.

CAPÍTULO IVA Formação de Magistrados– «O círculo de giz» –O Centro de Estudos Judiciários. Construção do modelo de for-

mação. O CEJ e o mundo exterior. «A Ética e a Estética numa Sociedade em Evolução.» O CEJ, o Botequim, Natália Correia e Uma Estátua para Herodes. A dimensão cultural da formação de magistrados. Brecht, o teatro e a justiça. «Jornadas de Di-reito Criminal.» Zé do Telhado e o cabelo de Abelaira. Forma-ção de magistrados, os primeiros tempos, apoios e resistências. Crise de quadros e «juízes de aviário». Êxitos e fracassos do projecto de formação.

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CAPÍTULO VO Ritual, a Justiça e a Democracia – «Em nome do povo» –A advocacia e a formação de magistrados. O ritual e os direitos

de cidadania. O cidadão e a justiça. Poder, autoridade, respeito e reciprocidade. O provedor de Justiça. Novos temas da justi-ça portuguesa. A justiça laboral e a justiça de menores. Outros caminhos na formação de magistrados.

CAPÍTULO VIA Aplicação do Direito– A estranheza de um vazio –Esboço de um «direito judiciário»: conceito, fundamento e objec-

to. Aplicação do direito e separação de poderes. Dúvidas, críti-cas e interrogações. O novo Código Penal Português.

CAPÍTULO VIIIndependência do Poder Judicial e Corporativismo – Quando nem tudo o que parece, é –A década de oitenta. Em busca de uma «Ciência Judiciária do Di-

reito». O Gabinete de Estudos Jurídico-Sociais do CEJ. Outro

desenvolvimento económico. O novo Código de Processo Pe-nal. A nova criminalidade e os media. O «protagonismo» na justi-ça. O modelo de investigação criminal. Organização judiciária e

-tico. A primeira maioria absoluta de um só partido, na Assem-bleia da República. Dez anos de formação de magistrados.

III PARTE1990-2012

O AGORA DO DANTES

CAPÍTULO I1990– «As palavras e os actos» –Ministério da Justiça. Buzinadelas, discursos, lampreia e círculos

judiciais. Um diagnóstico do estado da justiça. Os meios e os

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resultados. Justiça e economia. A lei orgânica da Polícia Judi-ciária e o Ministério Público. Pluralidade de instâncias e cor-porativismo. Faxes, computadores e gravações, parlatórios, agulhas e Multibanco. A face política do autogoverno das ma-gistraturas. Órgãos de Estado e sindicalismo judiciário. A «bondade» difusa das ideias.

CAPÍTULO IIJustiça e Cidadania– Um diálogo sem história –

transparência. Responsabilidades partilhadas. Comunicação e

A independência dos tribunais como direito do cidadão. Um velho chamado Inácio.

CAPÍTULO IIIJustiça e Política– –Uma reforma falhada. O papel do Conselho Superior da Ma-

gistratura, uma nova instância de poder. A independência enquanto instrumento no debate político. Politização «na» jus-tiça. A natureza jurídico-política dos Conselhos Superiores. Governo das magistraturas, poder e responsabilidade. Uma proposta de Conselho único. A lógica do sistema.

CAPÍTULO IVA Independência do Poder Judicial e os Media– Quando o que é, nem sempre parece –A justiça e os media. O Ministério Público, os media e a nova crimi-

nalidade. A corrupção e as propostas para a combater. O reino das suspeições. O estatuto do Ministério Público. A questão dos meios. O Ministério Público e a Polícia Judiciária, uma dialéctica de implicação e de polaridade. A lei de combate à

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CAPÍTULO VProjectos e Reformas, Êxitos e Fracassos– Uma ideia de responsabilidade –O processo civil em revisão. Princípios, projectos e tropelias.

A reforma do notariado. Advogados e solicitadores, estatuto e «carreiras», propósitos e resultados. Uma proposta de revisão constitucional. A comunicação da justiça. As exclusões na jus-

CAPÍTULO VI1996-2000 – Do elogio do consenso ao ensaio de uma ruptura –O Supremo Tribunal de Justiça. Um «político» no tribunal? Sinais

de desanuviamento. Reformas, consensos e resultados. Êxitos e fracassos. A reforma da acção executiva. Processos mediáti-cos. O Ministério Público e as reformas legislativas. O segredo de justiça.

CAPÍTULO VIIÀ Entrada do Milénio– O sabor da suspeição –«Sociedade do risco» e a resposta criminal. O processo penal em

revisão. Dúvidas e interrogações. O «circo mediático-judiciá-rio». Entre o «Congresso da Justiça» e o «Pacto da Justiça».

CAPÍTULO VIII2011– Tudo como dantes? –Justiça e desenvolvimento económico. A «governança» do poder

judicial. Reforma do mapa judiciário. «À política o que é da política, à justiça o que é da justiça?» Ausência de um discurso judiciário institucional. Uma nova maioria no Conselho Supe-rior da Magistratura.

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IV PARTEO DEPOIS DO DANTES

CAPÍTULO IPolítica de Justiça– O lado político da justiça –

-senvolvimento. Razões de uma entropia. Diluição do poder e

-cia.

CAPÍTULO IISéculo XXI– O tempo dos tribunais –Tribunais, poder e democracia. Os territórios do Estado. O juiz

«criador» de direito. Cooperação e co-responsabilização. In-

discursos. A Assembleia da República e a justiça.

CAPÍTULO IIIPoder Judicial e «Sistema de Justiça»– Por uma unidade estratégica e de gestão –Poder Judicial e Sistema de Justiça. Função jurisdicional – sentido

e limites. Governo do «sistema», responsabilidade e accountabi-lity. O modelo de autogoverno das magistraturas e a divisão de poderes. Unidade de gestão, cooperação e co-responsabiliza-ção.

CAPÍTULO IVO Conselho Superior de Justiça– O anti-dantes –O Conselho Superior de Justiça. Fundamentação, composição,

orgânica e estatuto. O lugar dos sindicatos. Um modelo de Conselho Superior de Justiça.

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CAPÍTULO VSistema de Justiça e Organização Judiciária– Da circunscrição aos tribunais supremos –A circunscrição/comarca. Lei de Bases do Sistema de Justiça e

Organização Judiciária. A «comarca» e o seu governo. Plura-lidade de ordens jurisdicionais e tribunais superiores – presi-dências e acesso.

CAPÍTULO VIConselho Superior de Justiça– Atribuições e competências –Internacionalização da justiça. Formação de magistrados. Recruta-

mento, avaliação e progressão dos magistrados. O modelo de investigação criminal. O estatuto do Ministério Público. Justiça e comunicação.

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– O juramento –A posse, o juiz e o tribunal. Os processos, os advogados

e o funcionário da instrução. A época: atitudes, motivações, notícias e comportamentos. O vulgar e o invulgar.

Decorria o mês de Janeiro de 1968, quando o delegado do pro-curador da República tomou posse na comarca.

que cumprirei com lealdade a Constituição da República e suas

Era a sua primeira posse. O juiz recebeu-o abrindo-lhe os braços, o gabinete, a sua casa.

Nas palavras solenes que proferiu, sublinhou, no empossado, méri-tos dos quais nem este alguma vez havia suspeitado, e ofereceu-lhe todo o apoio de que viesse a carecer. Na pensão, onde o recém--chegado haveria de se integrar como comensal, apresentou-o ao proprietário, que, colhidas as informações preambulares da praxe e sabendo-o, assim, solteiro, o aboletou de imediato na mesa onde se sentavam duas gentis professoras do colégio da terra, ambas, por acaso do destino, igualmente solteiras. Dali, conduziu-o depois o

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juiz à sua residência, fronteira à que era destinada ao delegado, e onde lhe apresentou a «esposa» e os meninos. Mais precisamente, o menino e a menina, por ordem decrescente de idades.

No seu discurso, ensaiado durante horas, repetido na viagem até à exaustão e ali tremido na sua pública apresentação, o novo delegado ofereceu propósitos de muito trabalho, de seriedade e de total lealdade. Prometeu respeito pelos outros e humildade peran-te a responsabilidade que o esperava e, sobretudo, pensou ele para dentro, diante da ignorância que carregava na bagagem. Licenciado em Direito e adornado com o diploma do curso complementar de Ciências Jurídicas que lhe abria de imediato o estatuto de delegado efectivo, nunca vira um processo…

Seguiram-se os cumprimentos de advogados, conservadores, notário, peritos médicos, funcionários judiciais, e vários outros en-tre personalidades locais e curiosos, após o que o novo magistrado recolheu – só – ao seu gabinete de delegado do procurador da Re-pública, naquela comarca de terceira classe, fria e distante, encros-tada no sopé da serra.

No edifício, antigo, vindo já do século XIX, primorosamente restaurado, instalavam-se no piso térreo os serviços dos registos

enquanto o primeiro andar era partilhado pelos da câmara mu-nicipal e pelo tribunal. Na sala de audiências, uma imponente tapeçaria de Martins Barata, recriando o «Torneio dos Doze de Inglaterra», acrescentava o peso da honra que estes simbolizavam ao da dignidade que o «palácio» suportava na moldura granítica das suas cantarias.

Sentado à secretária, confrontado com um monte de processos depositados na aba esquerda desta, o delegado não se apercebeu logo da sobriedade do mobiliário e só alguns dias depois se deu conta da beleza do vasto tapete de Arraiolos, autêntico, que cobria

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O funcionário da «instrução», sediado no gabinete contíguo, veio apresentar, «com sua licença?», ao magistrado, os seus cumprimen-tos, e deu-lhe conta das «diligências» marcadas para o dia seguinte. «Muito bem», disse o delegado, como podia ter dito qualquer ou-tra coisa. Pouco tempo bastou para que os processos fossem todos transferidos da aba esquerda para a aba direita da secretária. Termi-nada essa tarefa de trasfega, o delegado bateu, cerimoniosamente, à porta do gabinete do juiz. «Entre», disse este. O delegado entrou. «Então?!… Como está a sentir-se?», inquiriu, cordial. «Vou-me em-bora», disse o delegado. E, perante o olhar atónito, digamos antes, ironicamente atónito, do juiz, considerou que não saber despachar os processos era circunstância para a qual se preparara já e que em breve esperava superar… mas, senhor doutor juiz, não saber sequer onde se despacha um processo!?…

Na televisão, a preto e branco, passava O Fugitivo. Pelo Natal, chegavam mensagens dos militares mobilizados para a guerra colo-nial. Nesse ano, Mário Soares era deportado para S. Tomé. Salazar

do Governo. Do Médio Oriente chegava ainda, truncada e pobre, notícia dos

israelitas e palestinos.O delegado, produto histórico da crise académica de 1962, te-

ria notícia, distante e frágil, de um mês de Maio explosivo em Paris e vibraria com a desordem. Eram os slogans que chegavam até nós

para a procura de uma outra dimensão da vida e do mundo. So-bre a tela da guerra colonial vinham projectar-se imagens oriundas do Vietname e da Argélia. Lia-se Kafka, Sartre, Camus, Simone de Beauvoir, Althusser, Kierkegaard. Ouvia-se Bob Dylan, os Beatles, Zeca Afonso, Adriano. Via-se Fellini, Visconti, De Sicca, Antonio-ni, Bergman. Era-se, a espaços, existencialista, e esperava-se por

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Godot. Por um Godot que tardava, e pelo Diário de Lisboa, que che-gava trazendo consigo Mário Castrim falando por nós, e «A Mosca», de Cardoso Pires, onde Sttau Monteiro tornava públicas as desvir-guladas «Redacções da Guidinha».

Cada um guardava, na intimidade da sua cabeceira, o autor

O Ho-mem Revoltado, repetia o pensamento de que «a liberdade absoluta mete a justiça a ridículo. A justiça absoluta nega a liberdade. Para serem fecundas, as duas noções devem descobrir os seus limites uma dentro da outra». Mas fora de Os Justosa utopia de Stepan e o realismo activo de Kaliayev, que retirara a consciência de que «o ideal de justiça está longe de assegurar a rea-lização da justiça»1.

Como lembra Hobsbawm, olhando para o século XX2, a juven-tude emancipava-se, deixando de se referir às gerações anteriores e de buscar nelas quem conduzisse os seus destinos, tarefa, essa, que tomava agora, inovadoramente, nas suas próprias mãos.

«É proibido proibir», repetia o delegado, no silêncio permissivo das noites passadas no vazio da «casa dos magistrados», agarrado aos

Ao envergar a beca pela primeira vez, estranhou a sensação. Te-ria gostado de que, nesse momento, alguém lhe tivesse dito, como ouviu, muito mais tarde, de Lídia Jorge, que «o magistrado é uma pessoa vulgar, numa função invulgar»…

O tempo não era, porém, para tais considerações. Nem a função se tinha por tão invulgar assim, já que julgar e condenar eram condição óbvia para o sucesso da ordem e da paz social prosseguidas pela lei,

1 Cfr. António Quadros, Sobre os Justos, prefácio à edição dos Livros do Brasil, Lis-boa, p. 11.

2 Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos – História Breve do Século XX, 1914-1991, Edi-torial Presença, Lisboa, 1996.

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que lá estaria sempre para assegurar a irresponsabilidade do julgador; nem, por outro lado, o prestígio a este reconhecido poderia alguma

se entendesse que a invulgaridade haveria que vislumbrar-se na fun-

nele se projectando por inteiro e nele actuando como dado natural

o seu agente, trazendo ambos ao solene culto da forma em que, por força da autoridade do Estado, tudo «o que parece, é»!

Tratado repetidamente por «vossa excelência» e saudado amiú-de com continência e tacão batido pelas forças da autoridade, va-

uma forte consciência do valor relativo das coisas e de si próprio.Também a isso ajudou o ambiente vivido na então designada

«família judiciária». Desde o advogado mais antigo e respeitado na comarca que, logo nos primeiros dias e perante a ausência do juiz em julgamentos colectivos, lhe chamou discretamente a atenção para a imposição legal de prisão preventiva, quando o delegado, in-seguro, havia promovido a aplicação apenas de uma caução, o que, obviamente, ainda que contra a lei, se mostraria bem mais interes-sante para o causídico e para o seu constituinte; até ao funcionário do Ministério Público, homem de uma rara dimensão humana que, perante as tentativas do «senhor doutor delegado», muitas delas falhadas, de produzir correctamente os despachos correntes, lhe dizia, de pé, a seu lado, junto à secretária: «Que despacho bem fei-to!… O excelentíssimo antecessor de vossa excelência não fazia assim!» O delegado sorria, rasgava a folha, e… «Diga lá, como é? O antecessor de vossa excelência costumava…», e lá saía o des-pacho escorreito a provar para a posteridade a competência que a responsabilidade do cargo inequivocamente exigia do seu titular!

Os grandes processos, escassos e pouco dados ao público, corriam longe. A imprensa interessava-se a espaços pelo caso da

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«Herança Sommer», e deu notícia do afastamento de António Cham-palimaud para terras de Santa Cruz3.

eram oriundos de uma pequena ou média burguesia rural, não sendo raros os que haviam frequentado o seminário numa primeira fase dos seus estudos. Como testemunha Cunha Rodrigues, «cultivavam uma disciplina forjada nas humanidades», daí resultando «uma particular sensibilidade à ideia de missão e às questões da moral e da ética»4.

O juiz era assim!Em plena audiência de julgamento, pela prática de um crime de

-celência autoriza!», o curso dos trabalhos e, autorizado, entrega ao juiz um envelope acabado de chegar. Serenamente, o magistrado abre-o e lê para si a carta que aquele continha. Com a mesma na-turalidade, convoca o escrivão para exarar em acta o seu despacho.

de tratamento com especial benevolência do réu que ali estava pre-sente. Lida a missiva, agora em voz alta, pelo juiz, determinou este

-tar. O julgamento prosseguiu, necessariamente num ambiente mais tenso, e veio a terminar com a condenação pesada e justa do réu. Como, nas suas alegações, o delegado tinha reclamado, agora já sem a correcção amiga do advogado, sem a recuperação confor-madora das teses do seu antecessor, mas intuindo, olhando o juiz, que, mesmo entre pessoas vulgares, nem todas ostentam o mesmo grau de vulgaridade!

3 Cfr. Adriano Moreira, Espuma do Tempo, Memórias do Tempo de Vésperas, Almedina, Coimbra, 2009, p. 122.

4 Recado a Penélope, colecção Portugal Futuro, Sextante Editora, Lisboa, 2009, pp. 10 e 11. Noronha do Nascimento ia mesmo mais longe, advogando que «é sobre este núme-

a conduta e a mentalidade do juiz», Fronteira, ano II, 5, p. 138.

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– Quando o que parece, é –A independência dos tribunais, o «Estatuto Judiciário» e o positivismo jurídico. O juiz mero técnico do direito e o silogismo judiciário. As inspecções, o direito e o caso.

O Palácio da Justiça e a Casa dos Magistrados. A imagem projectada do regime.

A despeito do quadro de valores dentro do qual a Constituição Política da República Portuguesa de 1933 desenhava os contornos do Estado – limitado na sua acção pela «moral e o direito», e em

-dades e garantias impostos pela moral, pela justiça ou pela lei» –,

soberania apenas projectavam destes uma imagem formal, à luz da qual lhes era atribuída a função judicial1.

Subordinando-se o Ministério Público – ao qual se cometia a re-presentação do Estado junto dos tribunais2 – à estrutura política do poder executivo do qual dependia, e colocando-se o poder judicial sob controlo idêntico, embora difuso, por força do sistema de no-meação e promoção de juízes, entregue, nos termos do «Esta tuto Judiciário», à competência própria do ministro da Justiça, a «função judicial» desenvolvia-se despojada de muitas das mais essenciais ga-rantias de independência.

1 Cfr. Arménio Amado – Editor, Sucessor – Coimbra, 1974, artigos 4.º, 6.º, 71.º e 116.º. 2 Cfr. artigo 118.º.

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Aos tribunais reconhecia-se uma independência limitada, asse-gurando-se-lhes uma acção que, embora sem vinculação expressa à política prosseguida pelos restantes órgãos do Estado, não dispu-nha de autonomia para avaliar criticamente, em concreto, as linhas

-ta legalidade, nesta se esgotando a máxima expressão que àquele se atribuía. Assim impunha, em termos inequívocos, o «Estatuto Judiciá-

nele incluindo o «de respeitar os juízos de valor legais», como, indo mais longe, se previa expressamente que «a independência consiste no facto de o magistrado exercer a função de julgar segundo a lei»3.

Por isso que, recusada a via da discussão substantiva em torno do sistema, afastada a opção do uso alternativo do direito e des-prezada mesmo a referência aos princípios morais que, em termos positivos, não deixavam de enformar expressamente os preceitos constitucionais fundamentais, o refúgio escolhido por uns e a justi-

na recuperação do pensamento e dos métodos que davam preva-lência ao abstracto e ao formal, em detrimento do real concreto e da substância, nomeadamente em termos de justiça material.

-responder os do positivismo jurídico, moldado este no quadro das concepções que sustentavam a ideia e o conceito de ciência, mas instalado aqui, enquanto metodologia para o direito, na trincheira segura do legalismo e do formalismo. Positivismo, assim, no direito,

entre os sistemas formais de representação e as pessoas concretas.

3 Cfr. Arménio Amado – Editor, Sucessor – Coimbra, artigos 110.º, n.º 3, e 111.º, al. a), respectivamente.

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Interessante é, por exemplo, observar como, entre nós, o «Esta-do Novo», inspirado no positivismo de Augusto Comte, dava real-ce ao homem sociológico e, assim, ao «facto», sem que tal viesse a transpor-se para o interior do direito e, por via deste, da justiça, onde a lei positiva fazia as vezes daqueles. Aí, mercê de uma visão prevalentemente formal do positivismo legalista, a cultura concreta da vida deixava-se substituir e dominar por uma cultura abstracta e dogmática; aos interesses próprios de cada um, opunha-se um con-ceito normativo de instituição e de sistema. Foi, aliás, por essa via que se alimentou o triunfo da burocracia como valor, elevando-se o próprio sistema de justiça à categoria de instituição e passando a

uma cultura burocrática, normativa e conceptual veio dar corpo à instituição, colocando-a no centro e deixando na periferia as pes-soas e os seus interesses concretos, enquanto elementos exterio-

própria funcionalidade. Como consequência directa, em sede de aplicação, ou realiza-

ção, do direito, isto é, do judiciário, extraía-se que, no domínio do

surgia sempre como mero pressuposto formal desta. Do mesmo

neutra da sua simples existência, cuja comprovação preenchia a actividade material de julgar. Reduzia-se a noção de facto à sua di-mensão normativa enquanto «facto jurídico». A administração da justiça limitava-se à administração da lei, cabendo ao magistrado, deste modo «independente», o estatuto residual e redutor de mero técnico do direito.

A independência dos tribunais, proclamada internamente como uma verdade indiscutível, esgotava-se, desta forma, na clássica asser-ção de Montesquieu segundo a qual «o juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei». Tratava-se de uma expressão cunhada nos fun-

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damentos históricos da divisão de poderes, em que o acento tóni-co incidia mais no propósito de impedir a invasão do político pelo judiciário do que na garantia de independência real deste perante a

4.Daqui resultava a concepção de instituição passiva, traduzida na

atitude formal conferida ao julgador, enquadrado por uma relação de dimensão puramente exegética com o direito e com a lei, e de contacto distanciado com a realidade própria do facto, sobre o qual

silogístico vinha completar, em termos de método, a estratégia da -

ção se excluíam as múltiplas considerações, designadamente de na-tureza histórica, antropológica e sociológica que particularizavam

verdadeira relação material com a lei, com vista a determinar, na in-terpretação desta, o seu último e mais adequado sentido a expressar

ontogenética do direito e à abstracção do facto projectado na nor-ma legal, acrescia agora a abstracção da própria instituição judiciá-ria. Erigida sobre princípios de dignidade formal e de neutralidade técnica, correspondia-lhe uma orgânica estrutural e funcional de dependência, mais evidente no tocante à magistratura do Ministé-rio Público5, mas visível também no domínio da magistratura judi-cial6, uma e outra constituindo, entre nós, um corpo único e uma só carreira, e ambas sujeitas, portanto, a uma mesma vinculação.

4 Este era o conceito de independência que, segundo Senese, se utilizava sempre numa única direcção: «independência perante a sociedade e independência perante o Estado (em termos externos, portanto); mas que não se invoca nunca com o de independência interna, como independência frente ao interior do próprio corpo judicial, frente à contun-dente hierarquização doméstica que determina a carreira judicial e o êxito da mesma». Cfr. Miguel A. Aparício Perez, Prólogo à edição espanhola de Die Unabhangigkeit des Richters de Dieter Simon: La independência del juez, Ariel, Barcelona, 1985, p. XXIII.

5 Cfr., entre nós, artigo 170.º, n.º 1, do Estatuto Judiciário.6 Cfr., entre nós, artigo 124.º do Estatuto Judiciário.

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-cional entre direito e justiça, colhendo-se, para adornar o primeiro, valores de extracção positiva, como os de certeza e de segurança,

--se para a justiça o sentido de «intencionalidade» última do direito7, que este prosseguia através da lei, em cuja interpretação, todavia, não haveria que fazer intervir preocupações reais de justiça8. Des-ta se retinha, assim, a sua tradução em «ideia», desligada do espaço social que reclamava a sua presença.

Numa lógica estritamente categorial e dedutiva, partia-se da justi-ça, tida como intencionalidade, para o direito; deste, para a lei; e desta,

-minhava daqui para a acção concreta que tinha por objectivo «dizer o direito» do caso. Este constituía um dado, ou elemento externo, epistemologicamente diferenciado dos restantes enquanto objec-to, tomado, em suma, como mero pressuposto daquela aplicação.

«Leis formais do pensamento; valores formais da consciência; logicismo, cientismo, ética também só formal; tecnicismo; Estado e democracia formais; direito e jurisprudência reduzidos a mon-tões de conceitos empilhados, sem vida e sem nervos – eis alguns dos traços mais marcantes… que incontestavelmente predomina-ram, pelo menos até à I Guerra Mundial9.» Com efeito, dos séculos XVIII e XIX

em direitos, conformado no quadro político de um Estado liberal concebido como árbitro na regulação das relações intersubjecti-vas vividas entre «iguais», e assente num sistema de normas que o

7 Gustav Radbruch, , Colecção Studium, Arménio Amado – Editor, Sucessor, Coimbra, 1974, 5.ª ed., p. 91.

8 Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, Lis-boa, p. 185.

9 Cfr. Cabral de Moncada, , Vol. I, colecção Studium, Ar-ménio Amado – Editor, Sucessor, Coimbra, 2.ª ed., p. 331.

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e que o positivismo formalista estreitava na «passagem ao acto» da sua aplicação.

A realidade, subsumida ao pensamento normativo abstracto,

própria, aí ganhando foros de verdade incontestada conceitos como os de «ordem», «objectividade», «segurança», todos eles suportados

-ria de superestrutura do sistema, num direito essencialmente com-

apenas uma margem de conformação, sendo que o comportamento desconforme tombava sempre no campo da desordem, integrando a esfera do «caos», tão próprio do pensamento cartesiano.

-cebido a partir do ideal discursivo, que o período revolucionário e o tempo das Luzes haviam esboçado e que o pensamento liberal

-

Enquanto isso, uma vez assim «normalizada» a realidade, tam-bém no plano institucional o estigma da abstracção determinava o predomínio de valores de natureza formal, sendo aí que ganhavam

detrimento, tantas vezes, de valores materiais entre os quais se con-tava o de justiça. Entre o direito e a vida estabelecia-se também uma relação de subsunção em que era a vida a subordinar-se ao direito, uma vez mais, em obediência a uma lógica silogística, despida de complexidade e, por isso, intencionalmente redutora.

A «redução da complexidade» constituía, exactamente, uma das funções primeiras atribuídas ao direito.

Era a própria instituição que assumia contornos abstractos, transformando-se a função de administrar justiça numa mera técni-ca ao serviço da norma formatada na lei, tidos que eram o direito e a lei como objecto de uma ciência pura, reconhecida como ciência

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jurídica do direito. O diálogo entre a justiça e o cidadão perdia-se numa contradição genética entre o abstracto normativo e o con-creto naturalístico, crescendo entre ambos um espaço de incom-preensibilidade que acabou por tornar a justiça «coisa» distante e de contornos mágicos, o que, entre nós, viria a revelar-se verdadei-ramente desastroso no futuro.

Apesar dos estilos diferenciados que eram construídos no redu-to último da personalidade de cada magistrado, a imagem do juiz esboçava-se na dependência de um complexo conjunto de factores

-

Excluído do quotidiano da comarca e distanciado aí de qualquer tipo de relação social estruturada, limitava ao espaço fechado do tribunal o convívio possível, exercido, com parcimónia, com fun-cionários, advogados, peritos médicos, conservadores e notários. O respeito que colhia junto das populações exigia-lhe um compor-tamento irrepreensível, ainda que de mera aparência, o que o leva-va, no limite, a valorizar, externamente, o discurso sem substância e, por isso, sem compromisso, e a transpor para o mundo o mes-mo culto da forma com que, nas palavras de Aquilino, costumava «baldear processos para detrás das costas»10.

Em muitos casos, a autoridade de que dispunha, embora no es-paço limitado da sua competência técnica, bastava-lhe para compor

-ção de si próprio. O «Palácio da Justiça» – ainda quando este não

10 Aliás, as caricaturas não faltavam. Obras como Os elementos genéricos da ciência da ri-queza e sua distribuição, segundo os melhores autores e A relação de todos os ministros de estado desde o grande Marquês de Pombal até aos nossos dias, com datas cuidadosamente averiguadas de seus nascimen-tos e óbitos, haviam já merecido, no último quartel do século XIX, a autoria do conselheiro Acácio, saído da pena de Eça de Queirós e do seu Primo Basílio; e O Grande Guia de Cami-nhos de Ferro Chaix era livro de cabeceira do magistrado do Ministério Público que Albert Camus, agora já na segunda metade do século XX A Peste.

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era mais do que um pobre tugúrio – e a «casa dos magistrados» – construída para acolher toda a família de vossa excelência, com seus pertences e provisões – cumpriam importante função simbó-lica como tribuna para o cortejo das virtudes.

O tribunal vem a ser o lugar onde se impõe a autoridade e se

pronunciando em cada caso as palavras da lei. Vem ele, assim, a as-

Como assinala Cunha Rodrigues, «o aprimoramento cultural, a família e as relações sociais dispunham apenas do espaço e do tem-po consentidos pelos processos»11, sendo que, por último, o per-manente apelo a uma forte ressonância ética em termos de serviço e a uma rigorosa exigência moral em matéria de costumes vinham reforçar o fundamento para o exercício da magistratura como mis-são ou sacerdócio.

Com o magistrado, deslocava-se toda a família, sem esquecer os -

lecimentos de ensino da comarca ou do concelho vizinho e o côn-juge, então sempre do sexo feminino, tomava em mãos o governo da casa, com o qual acumulava, por vezes, funções docentes numa das escolas locais. A «carreira» principal era, porém, a do marido! Para a «esposa», nos dizeres de Ramalho, restava uma «gloriosa car-reira jurídico-conjugal»12.

Enquanto isto, o «segredo» dos saberes próprios da função aju-dava a completar o quadro onde se projectava a imagem mítica do magistrado.

Num modelo sem paralelo noutros sistemas, entre nós, o aces-so à magistratura judicial fazia-se obrigatoriamente passando pelos quadros do Ministério Público. Neste, ingressava-se, à saída da licen-

11 Ob. cit., p. 13.12 Cfr. As Farpas, Livraria Clássica Editora, Lisboa, Tomo I, «Espinho – piscina da

magistratura», 1945, p. 245.

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ciatura, através de nomeação directa como delegado do procurador da República, interino. Após concurso, com apertadas provas sem-pre de natureza académica, adquiria-se a condição de efectivo13, e com este estatuto se progredia da terceira à primeira classes, tran-sitando entre comarcas de idênticas categorias, até se ser chamado a concurso para juiz. Aqui, de novo, todas as provas, embora de enorme exigência, incidiam apenas sobre a dimensão técnico-jurí-dica da função, voltando a centrar-se sobre o direito e o processo penal, o direito e o processo civil, e o direito comercial.

Submetidos a inspecções regulares, os magistrados, judiciais e do Ministério Público, viam ser privilegiada a sua qualidade como juristas, nomeadamente o seu conhecimento da doutrina e da ju-risprudência, aí se localizando o cerne do fundamento para a clas-

Cabendo ao juiz «dizer o direito do caso», era o direito que impor-tava, desvalorizando-se, as mais das vezes, a pluralidade compreensiva do «caso». O silogismo judiciário, impondo como premissa maior a lei, permitia que fosse o facto a subordinar-se a esta e não ela a pro-curar, entre vários possíveis, o sentido que àquele mais se adequasse. O caso tendia a perder dimensão, ao menos, enquanto contexto, para ser usado essencialmente como pretexto. Os conceitos validavam-se

passavam pelo crivo da sua conformação com a realidade.Era desse modo que, numa carreira iniciada e treinada sob o

signo da dependência hierárquica e vinculada directamente à con--

res, o mesmo poder judicial que integrava na sua organização os

independente!

13 Também atingível através do facultativo Curso Complementar de Ciências Jurídi-cas, mais tarde sucedido pelo mestrado.

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Essa era a imagem que o regime pretendia fazer projectar, para isso contando com a atitude de muitos dos próprios magistrados que, nuns casos, se assumiam como verdadeiros arautos comprome-tidos com o sistema político vigente, enquanto, noutros, se confor-mavam com uma dimensão de independência, sobretudo pessoal, exercida no recato de cada processo, onde procuravam encontrar uma legitimação de natureza ética para um digno exercício da função.

Como salienta Luís Eloy Azevedo, «nos regimes de matriz au-toritária, cria-se uma aparência de não intervenção e permite-se a manutenção da rotina»14, de tal modo que apenas a capacidade de distância crítica e de autonomia pessoal dos agentes envolvidos per-mitem romper a cortina de fantasia que cobre a realidade mais crua.

E, não obstante, sempre com as devidas distâncias, e a despeito do espesso manto que tapava a informação circulante, era já possível apreciar criticamente a acção dos tribunais e o valor efectivo reconhe-cido à sua independência, fazendo-o a partir do debate que já há mui-to se vinha travando, nomeadamente na Europa, sobre o positivismo jurídico, quando chamado a suportar a interpretação e a aplicação da lei e do direito em regimes totalitários. Os ensinamentos colhidos da história recente, permitiam, ao menos, abrir o debate sobre a legiti-midade de uma ordem jurídica, quando confrontada com «o juízo da consciência ética universal» enquanto fonte que, nas palavras de François Rigaux, «não é, seguramente, negligenciável para o jurista»15.

Por isso que não faltasse também entre nós quem persistisse no propósito de «olhar para fora» e, ainda que com todas as limitações, de se comprometer.

E foram esses, magistrados e advogados, os que permitiram, para

«poder judicial» do seu tempo.

14 Cfr. Magistratura Portuguesa – Retrato de uma mentalidade colectiva, Edições Cosmos, Lisboa, 2001, p. 89.

15 A Lei dos Juízes, Instituto Piaget, Lisboa, 1997, p. 139.