o marco temporal e o conceito antropológico de laudo ... · 3 professor adjunto do departamento de...
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O Marco Temporal e o Conceito Antropológico de Laudo Pericial: Uma Análise Sobre
a Demarcação da Terra Indígena Limão Verde 1
Jéssika Mayara Silva Rufino UFRN2 José Glebson Viera UFRN3
“Um acordão (decisão colegiada) unânime da Segunda Turma do Supremo
Tribunal Federal (STF), que julga procedente o Agravo no Recurso Extraordinário,
revendo a decisão monocrática de improcedência dada pelo Ministro Teori Zavascki”,
foi essa a explicação jurídica final que chegamos ao buscar o que significava aquela
decisão que circulava nas reportagens referentes à Terra Indígena (TI) Limão Verde. Uma
síntese que escrita em três linhas, esconde um processo de construção através de consultas
processuais e revisitas as categorias jurídicas.
Essa decisão faz parte de um processo judicial4 que inicia quando em 2003, Tales
Oscar Castelo Branco busca anular a inclusão da Fazenda Santa Bárbara à TI Limão
Verde, constituída como terra indígena homologada do povo Terena. A questão central
do processo é a inclusão ou não da Fazenda Santa Bárbara na integralidade da área já
demarcada pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) da TI Limão Verde.
Apesar de ser um dos últimos documentos acerca da demarcação dessa Terra, foi
um dos documentos que teve maior circulação pública referente a esse processo
demarcatório. Não sendo raro encontrar reportagens com links que lhe dão acesso direto
ou que citem essa decisão, como a do site Instituto Socioambiental (ISA)5 que
disponibiliza um link de acesso direto a decisão, ou no site Ecologia e Ação (ECOA)6 e
ainda destrinchado em análise por Deborah Macedo Duprat em seu artigo: O marco
temporal de 5 de outubro de 1988 – Terra Indígena Limão Verde. Tal decisão é
referenciada por trazer à tona a recente tese jurídica do Marco Temporal7, quando discute
as controvérsias da natureza jurídica da Fazenda Santa Barbara, que é alvo de debates e
discordâncias, acadêmicas, jurídicas e sociais.
1 Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de
dezembro de 2018, Brasília/DF. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 2 Mestranda do Departamento de Antropologia (DAN) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 3 Professor Adjunto do Departamento de Antropologia (DAN) e do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 4 Número de origem do processo: 00119849620034036000 5 O título da notícia: Deliberação aplica condicionante da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (RR) para
anular a demarcação da TI Limão Verde (MS), do povo Terena, homologada há mais de dez anos. 6 O título da notícia: A Terra Indígena Limão Verde do Povo Terena e o marco temporal. 7 Termos como Marco Temporal, esbulho renitente, partes, dentre outros, são categorias nativas
empregadas no documento analisado que marcarei todas em itálico para que sejam ser percebidas a partir
dessa premissa e tradução que se dará ao longo do trabalho.
Foi a utilização da tese jurídica do Marco Temporal após dez anos de
homologação da TI Limão Verde, que me levou até o seu processo demarcatório. Foi a
primeira vez que o Marco Temporal incidiu sobre uma terra que chegou ao último estágio
do processo demarcatório e até hoje não se concluiu. Tal singularidade poderia me trazer
elementos importantes para a compreensão dos efeitos e as implicações antropológicas
dessa recente tese jurídica alvo de diversos debates. Seja porque poderíamos acompanhar
os próximos procedimentos jurídicos e compreender melhor os ritos processuais, criando
e circulando documentos, seja porque uma tese jurídica que acionada em uma última fase
da demarcação de uma terra poderia me trazer elementos importantes da força de seus
efeitos.
O Marco Temporal é uma das interpretações do STF feitas ao caso Raposa Serra
do Sol, que determina a situação segundo a qual uma comunidade indígena litiga
judicialmente uma terra, por terem sido ocupadas tradicionalmente, a ação só será válida
se sua presença na terra (reivindicada) tenha ocorrido até a promulgação da Constituição,
sendo a alternativa ao Marco Temporal a comprovação do renitente esbulho. O Marco
Temporal permite reconhecer terras indígenas ocupadas depois de 05 de outubro de 1988
se os indígenas já estiverem em conflito efetivo ou movendo uma ação na justiça, até a
data exata da promulgação.
Diante disso, o trabalho discuti as implicações da recente tese jurídica do Marco
Temporal no conceito antropológico de Laudo Pericial. Para isso, parte do processo
judicial referente à demarcação da Terra Indígena (TI) Limão Verde do povo Terena,
situado no município de Aquidauana, no estado do Mato Grosso do Sul, concebendo esse
processo judicial a luz da Antropologia dos Documentos capazes de construir e alterar
realidades da qual fazem parte.
LAUDO ANTROPOLÓGICO
O Ministro Teori Zavascki em decisão da Segunda Turma do STF, ao discutir
sobre a inclusão ou não da Fazenda Santa Bárbara na integralidade da área já demarcada
da TI Limão Verde, coloca como central para a comprovação desse direito a existência
ou não do renitente esbulho. Para isso, o Ministro se baseia no Laudo Antropológico
produzido para a demarcação desta terra, são as informações contidas no Laudo as
acionadas pelo Ministro, que transcritos algumas vezes de forma literal é uma das vozes
contidas nessa decisão como um importante elemento para a comprovação da não
existência do renitente esbulho dos índios Terena.
Tratar dos Laudos Antropológicos é compreende-los a partir das transformações
inauguradas pela promulgação da Constituição de 1988, que para efetivação dos direitos
indigenistas sobre as terras que esses povos ocupam tradicionalmente, traça inicialmente
um “protocolo de intenções” entre a Procuradoria Geral da República (PGR) e a
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), amparado na Constituição de 1988,
quando em seu art. 129, § 5º define que cabe ao órgão “defender judicialmente os direitos
e interesses das populações indígenas”. Mais tarde tal protocolo se consolida em um
convênio institucional, em que a ABA passe a realizar estudos, pesquisas e elaboração de
Laudos Antropológicos, que auxiliem na função judicial e extrajudicial, nas questões que
versem sobre os povos indígenas e quilombolas (GONÇALVES, 1994).
Regida pela Lei nº 13.105/2015, a Prova Pericial tem a função de auxiliar o
magistrado nos casos em que a matéria dependa de um conhecimento técnico e científico
especifico que o juiz não possui para a tomada de decisão. Nesses casos, o magistrado
deverá ser assistido por perito ou órgãos técnicos ou científicos, podendo ser requisitado
de ofício pelo juiz ou a requerimento das partes. O Laudo Antropológico é então o
resultado de uma perícia, uma peça jurídica em que é apurado uma situação ou fato que
é indispensável conhecimento antropológico para compreensão, respondendo aos
quesitos estabelecidos em juízo (SANTOS, 1994).
Os laudos, diferente das produções acadêmicas, como teses, dissertações,
monografias e artigos, são produzidos em um cenário singular e por isso exige um outro
formato textual. São produções encaminhadas para esfera jurídica, outro campo cientifico
que exige outra linguagem e manejo. Uma produção técnica encarada como um elemento
para tomada de decisão que atinge concretamente a vida de diversos povos. Uma espécie
de prova que por vezes busca uma exatidão que desafia a ciência antropológica e que
auxilia os processos judiciais e administrativos muitas vezes decisivos para os conflitos.
Tal atividade exige uma convergência maior entre profissionais de diversas áreas,
suscitando debates e desafios sobre essa temática. (LEITE, 2005).
Os quesitos trazidos pelas partes e pelo judiciário para a construção do Laudo
Antropológico, muitas vezes versam sobre as formas de organização social, relações de
parentesco, questões demográficas, com o intuito de revelar o direito desses povos sobre
seus territórios, abordam temas que frequentemente são discutidos e analisados pelos
antropólogos, sendo por vezes temas comuns para as referências teórica e metodológicas
típicas da disciplina (VOZ, 1994).
O Ministro Teori Zavascki ao citar o Laudo Antropológico da TI Limão Verde em
um recurso processual, demostra que o Laudo Antropológico é um documento acionado
pelo judiciário durante todo o percurso processual, não se limitando apenas a responder
os quesitos que lhe deram origem, isto é, situação ou fato que é indispensável
conhecimento antropológico para compreensão. Como um documento trabalhado e
resgatado durante todo o processo judicial em questão, o Laudo Antropológico da TI
Limão Verde, tem os objetivos que lhe deram origem estendidos, funcionando como um
documento que contém informações, que pode ser acionado durante a discussão
processual.
Compreendendo como Ferreira (2015), que o Laudo Antropológico é um
instrumento do exercício de poder do Estado, que busca construir “técnicas e
procedimentos de verificação”, como “técnicas de produção de verdade”, a produção
antropológica nesses instrumentos tem contribuído historicamente com essa “produção
de verdade” estando nesse espaço de processos decisórios, entretanto, mesmo sendo
citado na decisão da Segunda Turma do STF o peso que o Laudo referente a TI Limão
Verde tem para na decisão do Ministro Teori Zavascki, pautada no Marco Temporal, é
algo que discutiremos nos próximos tópicos.
SOBREVOO PELOS PROCEDIMENTOS JUDICIAIS
Ao ler o título da decisão da Segunda Turma do STF sobre a TI Limão Verde
“Ag.reg. No Recurso Extraordinário Com Agravo 803.462 Mato Grosso do Sul” percebi
o quanto era extenso e trazia à tona a descrição de vários documentos e não só aquele que
ele intitulava. Os termos Ag. Reg., Recurso Extraordinário e Agravo 803.462 Mato
Grosso do Sul nomeiam três distintos documentos, que como sugerem os termos, “No”,
“Com”, estão interligados. O Ag. Regimental é No Recurso Extraordinário” que por sua
vez está Com Agravo 803.462. Revelando, de certo modo, que pra seguir o mergulho
nesse documento, teria também que percorrer, pelo significado daquelas categorias
jurídicas e pelos procedimentos anteriores que se deram até a chegada na decisão judicial
que analiso.
Para isso, fiz o que no “campo jurídico” se chama consulta processual, com o
número do processo pude ver os órgãos judiciais por onde ele percorreu. Percorri diversas
instâncias jurídicas, como são organizados os órgãos judiciais desse campo, que
divididos por assuntos jurídicos: Justiça Comum (tanto estadual, quanto federal), Justiça
do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar, todas elas são compostas por dois graus
de jurisdição, que vêm a ser a primeira e a segunda instância.
A primeira instância ou primeiro grau são onde atuam o juiz. Grande parte das
pessoas que entram com uma ação na Justiça tem o caso julgado por um juiz na primeira
instância, que chamado de singular (único), que profere (dá) a sentença (decisão
monocrática, de apenas 1 magistrado).8
As definições genéricas que tínhamos dos passos referentes à demarcação das
terras indígenas, com as legislações, protocolos e decretos, presentes nessa decisão, vão
ficando mais “vivas” (VIANNA, 2014) e concretas ao passo que acompanhamos o
processo que discute a natureza jurídica da Fazenda Santa Barbara. À medida que esse
mergulho segue, gera em nós uma pluralidade de sentimentos, como a angústia causada
pela dificuldade em entender na primeira leitura, o significado e os institutos jurídicos
escritos na decisão do STF.
O que nos fez lembrar Malinoswiki que, em seu Diário em um sentido estrito do
termo, descreve a constante dificuldade do trabalho de campo em sua apreensão da
“língua nativa”. Revisitar as categorias jurídicas, com as suas diversas peças judiciais,
definições, manuais, procedimentos, modelos e suas intermináveis exceções, foi um
exercício constante e necessário para o diálogo com os nossos interlocutores que como
Ministros da Segunda Turma do STF, carregam uma linguagem própria do “campo
jurídico”.
Logo após a homologação da TI Limão Verde ao buscar a anulação do decreto
que reconhece a Fazenda Santa Barbara como terra tradicionalmente indígena Tales
Oscar Castelo Branco aciona a Justiça Federal e leva a demarcação a outra fase, a
judicialização.
Se antes a demarcação dessa terra caminhava sob procedimentos administrativos,
agora segue na Justiça Federal de Campo Grande. A improcedência do seu pedido inicial
que buscava anular a inclusão da Fazenda Santa Bárbara a TI Limão Verde, marcava o
início de uma jornada de recursos utilizados pelo autor que deseja ter essa decisão revista.
Após ter o seu pedido negado em primeira instância, Tales usa um recurso
processual que se chama Apelação. De maneira geral o recurso é um instrumento jurídico
utilizado para modificar ou corrigir o curso de um processo jurídico. A apelação ocorre
quando se solicita a revisão de uma decisão judicial. Do ponto de vista jurídico, a
apelação só pode ser usado contra as sentenças proferidas por decisão do juiz em primeira
8 Essas informações foram encontradas no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que apresentadas
de forma didática, com gráficos, facilitaram o entendimento da organização judicial.
instância ou primeiro grau de jurisdição, como é a decisão acima mencionada da Justiça
Federal de Campo Grande. Tal apelação é remetida para o Tribunal Regional Federal
(TRF) da 3ª Região, que é a instância superior para o reexame dessa sentença, pelo
processo e julgamento de apelação contra as decisões da primeira instância.
Entretanto o seu pedido foi mais uma vez negado, pois embora tenha argumentado
que a Fazenda Santa Barbara não pertence ao povo indígena Terena, pois haviam perdido
a sua posse, a decisão do TRF da 3ª Região afirma que a perícia apresentava elementos
que comprovariam a ocupação tradicional anterior ao requerimento da titulação dessas
terras por particulares. Que tais terras se desocupadas não teriam sido feitas de forma
voluntária pelo povo Terena, que retomam as suas terras em tempo suficiente “para
justificar o título de domínio”.
Negada a apelação, Tales Oscar segue com outro recurso, o recurso
extraordinário, argumentando desta vez que haveria no caso a violação ao art. 231 da
Constituição Federal de 1988, pois como já havia reiteradas decisões do STF, para que
seja considerada tradicional, a posse indígena deve ser até a data da promulgação da
Constituição de 1988. Argumentando assim, que não houve renitente esbulho, como
aponta o TRF, em que se registra pelo contrário, uma convivência pacífica com o povo
Terena de 1950 até 1996. O Recurso Extraordinário é mais uma vez negado, dessa vez,
pela ausência dos requisitos essências a ele exigido, que só pode ser usado para tratar de
ofensa à matéria constitucional, ou seja, garantias estabelecidas na Constituição Federal,
ou seja, não cabe para um reexame de provas para a comprovação ou não do renitente
esbulho.
Não sendo aceito o recurso extraordinário, Tales Oscar utiliza outro recurso,
dessa vez um Agravo, contra decisão do Presidente do Tribunal Regional, que negou a
análise da matéria do recurso extraordinário. Nesse novo recurso, Tales Oscar
fundamenta que não se pretende o reexame de provas, mas que o Supremo Tribunal
Federal deixe nítido o que caracteriza o renitente esbulho. O processo é então enviado
para o STF e avaliado pelo Ministro Teori Zavascki, que seguiu negando o agravo
argumentando que embora o povo Terena não estivesse presente na terra reivindica, isso
só teria ocorrido devido ao renitente esbulho devidamente comprovado em Laudo
Antropológico.
Diante de mais uma negativa, Tales recorre, dessa vez o Agravo Interno, que tem
a intenção de provocar a revisão das decisões dos próprios tribunais. Um instrumento
jurídico que permite os tribunais rever suas próprias decisões monocráticas, deixando-as
serem analisadas por um colegiado capaz de reverter o que antes o Ministro Teori
Zavascki havia decidido sozinho. Foi com o Agravo Interno que Tales em sua jornada de
recursos tem a decisão judicial revista. Chegada a última instância jurídica, o STF, Tales
Castelo Branco tem uma decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, que
ao rever sua decisão julga procedente o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário
com Agravo.
Sendo assim, o que aqui analiso é a decisão da Segunda Turma do Supremo
Tribunal Federal referente ao Agravo Regimental 803.462 Mato Grosso do Sul criado
para rever a decisão que discute a natureza indígena de área de terras situada no Município
de Aquidauana, Estado do Mato Grosso do Sul, intitulada de Fazenda Santa Bárbara.
OLHANDO PARA A DECISÃO DA SEGUNDA TURMA DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
A decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal inicia com o título
aqui já tratado, depois traça uma espécie de cabeçalho, que de um lado traz classificações
próprias do campo jurídico e do outro diversos sujeitos e instituições, que dão
singularidade a essas classificações jurídicas.
RELATOR :MIN. TEORI ZAVASCKI
AGTE.(S) :TALES OSCAR CASTELO BRANCO
ADV.(A/S) :TIAGO BANA FRANCO E OUTRO(A/S)
AGDO.(A/S) :UNIÃO
PROC.(A/S)(ES) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
AGDO.(A/S) :MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROC.(A/S)(ES) :PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
AGDO.(A/S) :FUNAI - FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO
PROC.(A/S)(ES) :PROCURADOR-GERAL FEDERAL
Tal espécie de cabeçalho nos remete a construção analítica de Adriana de Resende
Barreto Vianna (2014), que ao compreender os processos judiciais como bens
administrativos que constroem uma padronização na busca de expor um caráter neutro e
racional como sendo próprio da esfera administrativa., nos remete aos sujeitos e as
instituições transformados em categorias genéricas de Relator, Agravante, Advogado,
Agravado e Procurador que se transformam em modelos padrões das partes legítimas do
processo e só assim passam a ser descritos nesse documento. Como uma espécie de ritual
de inserção no “campo jurídico” que, disposto logo no início da decisão, é condição
primeira de sua presença, legitimidade e competência nesta decisão.
As disposições dos nomes perpassam por uma hierarquia interna, que inicia com
o relator, ou seja, um membro do Supremo Tribunal Federal que tem como uma das
funções, elaborar um relatório que é uma espécie de resumo sobre o que ocorreu no
processo. Nas definições judiciais, sua função é também destacada por analisar
detalhadamente o processo, como se exigisse do relator uma análise mais minuciosa e
apurada da questão.
Após o relatório, o relator deve ser o primeiro a expor o voto que além de refletir
sobre o caso em questão deve servir como referência para os demais juízes. Essa
autoridade de referência, do ponto de vista jurídico é respaldada por sua análise minuciosa
do processo. Logo após o Relator, o cabeçalho segue com o Agte., como uma abreviação
da palavra Agravante se refere ao autor do Agravo, ou seja, o sujeito que se utiliza do
recurso judicial Agravo é adjetivado de Agravante. Na outra ponta estaria o Agto, uma
abreviação da palavra Agravado se refere ao réu do agravo, ou seja, o sujeito acusado
nesse recurso judicial é adjetivado de Agravado.
São essas adjetivações as utilizadas ao longo da decisão, os sujeitos não são
referenciados por seus nomes, Tales Oscar Castelo Branco ou União, mas por agravante
e agravado. Por se tratar de Terra Indígena, também serão Agravados a Funai e o órgão
ao qual é vinculado o Ministério da Justiça, representados pelo Procurador-Geral da
República.
Como uma característica própria da administração estatal a existência de um
esforço de padronização, com um tipo jurídico geral cristalizado é ao mesmo tempo
acompanhada de uma pluralidade e singularidade que atravessam essa padronização
(VIANNA, 2002). O Ministro Teori Zavascki ao mesmo tempo que singulariza os fatos
através dos dados presentes no Laudo Antropológico, com sujeitos de nomes próprios
com histórias e documentos datados, estabelecendo legalmente relações em torno da
fazendo Santa Bárbara, fundamenta sua decisão nos institutos jurídicos gerais da
Constituição Federal.
A abreviação ADV.(A/S) se refere à palavra advogado, que logo após o agravante
indica que embora Tales Oscar tenha o direito constitucional de recorrer e ter revista a
sua demanda jurídica, isso só será possível se acompanhado de um representante legal, o
advogado.
Para exercer a função de advogado, além do diploma em um curso superior de
Direito reconhecido pelo MEC, o profissional deverá se inscrever na OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil). O termo Advogado provém do latim, “ad vocatus”, que significa
defensor ou intercessor, que com a função de cuidar dos direitos das pessoas que a ele
confiam seus problemas judicias. Como uma figura que defende o seu cliente, media e
traduz a relação entre o sujeito e campo jurídico forjado por uma linguagem, categorias
e rituais processuais próprios por vezes necessitam de um profissional do próprio campo
que traduza e cuide dos direitos do qual assiste.
Palavras e frases como “Carta Magna”, “postulam, Preliminarmente”,
“revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos” revelam “Um rebuscamento e
arcaísmo são acionados para marcar uma diferenciação” (PINTO, 2016, P.343). A escrita
com um vocabulário diferente do cotidiano coloca em cena o valor da palavra como um
“ingrediente” do documento administrativo. Como um idioma do poder que mesmo
disponível para consulta seu conteúdo e acesso é controlado pela hierarquização entre a
sociedade e o Estado nacional. Uma forma de dizer jurídica que distingue os que
conhecem e entendem a escrita burocrática e os que mesmo tendo o direito de acesso
estão excluídos desse vocabulário restrito.
A União, como uma das partes do recurso, tem o seu representante legal o
Advogado Geral da União (AGU)9. Nomeado pelo Presidente da República, o Advogado
Geral da União (chefe da Advocacia Geral da União - AGU) presta assessoramento e
consulta jurídica aos órgãos do Poder Executivo, além de representar judicialmente e
extrajudicialmente a União (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário).
Só após compreender a função do relator é que podemos compreender a própria
estética da decisão, que segue no formato de sua função, na medida que após essa primeira
parte, segue o seu relatório, seguida de seu voto e só depois os votos dos demais ministros.
Tal abordagem estética se referência a partir do HULL (2012) e busca enfatizar a
papel que os recursos estéticos do documento podem ter ao longo dessa decisão, como
um padrão de poder, que vão desde a disposição das partes em uma ordem de
“importância” ao papel timbrando com o nome do Supremo Tribunal Federal em um
formato de letra que lembra um estilo imperial de escrita. Uma forma de sociabilidade
organizada pela forma disposta na decisão.
VOTO DO MINISTRO TEORI ZAVASCKI
O Ministro Teori Zavascki discorre o voto com base em três fundamentos
jurídicos, a recente tese jurídica Marco Temporal, Renitente Esbulho, e a Súmula 650 do
Supremo Tribunal Federal.
Para o Ministro Zavascki, o Marco Temporal nasce com a petição 3.338, quando
em 2010 ao julgar o reconhecimento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o STF teria
9 Acerca da estrutura organizacional da AGU caracteriza-se por órgãos centrais e de incidência estaduais,
sendo esta última a partir da realidade do estado (Universidades Federais, Institutos Federais, autarquias e
tanto outros), sendo a AGU representada pelos Procuradores Federais .
estabelecido que o art. 231, da CF/88, ao definir a ocupação tradicional indígena teria
como Marco Temporal para reconhecimento de natureza indígena de “terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios” à data da promulgação da Constitucional
Federal, 05 de outubro de 1988.
Para o Ministro, ao estabelecer o Marco Temporal à demarcação da TI Raposa
Serra do Sol, o STF determina de forma geral uma data certa para o artigo 231 da
Constituição Federal colocando uma “pá de cal nas intermináveis discussões sobre
qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. ” (ZAVASCKI, 2014,
p.7). Afirmando ainda, que a tese jurídica do Marco Temporal acaba com dois problemas
ao mesmo tempo, o primeiro deles seria o alto número de fraudes, “inclusive mediante o
recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos,
sob o único propósito de artificializar a expansão dos limites da demarcação”.
(ZAVASCKI, 2014, p.7). O segundo problema resolvido pelo Marco Temporal, para o
Ministro Teori Zavascki, seria que através da exceção do renitente esbulho os índios
alcançariam o fim da violência que os atinge, já que que estariam protegidos até a data da
promulgação da Constituição da República, 8 de outubro de 1988.
O “esbulho renitente cometido por não índios” é justificado pelo Ministro Teori
Zavascki através de uma contextualização histórica do Brasil, em que embora se registre
um processo de colonização estaria esse amparado pelo esbulho renitente, registrando
assim, uma história marcada também “pela miscigenação racial e retração de tais
populações aborígines” e não apenas de violência desenfreada (ZAVASCKI, 2014, p. 8).
Já a Súmula 650/STF ao afirmar que: “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição
Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas
em passado remoto”, traduz para o Ministro Zavascki que o conceito de “terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios” referidas no artigo 231 da constituição não
abrange aquelas que eram possuídas pelos índios no passado remoto. Nesse sentido,
renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação
forçada, ocorrida no passado, mas para configuração de esbulho, precisaria existir uma
situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista
até o marco demarcatório temporal atual, a data da promulgação da Constituição de 1988.
Nesse sentido, para Zavascki, a decisão recorrida por Tales Castelo Branco deixa
nítida que a última ocupação indígena registrada na Fazenda Santa Barbara teria sido em
1953, data anterior a promulgação da Constituição de 1988, não sendo possível aplicação
do renitente esbulho, pois ao seu entender como explica a Súmula 650/STF, não se aplica
a ocupações indígenas do passado, mas a uma data certa estabelecida pelo Marco
Temporal, sendo esse um entendimento compatível com as reiteradas decisões tomadas
pelo STF, como o caso “da delimitação da terra indígena Guyraroká, elaborado pela
FUNAI, indica que a população Kaiowá residiu na terra reivindicada até o início da
década de 1940.” (ZAVASCKI, 2014, p. 9).
Zavascki afirma, que embora a decisão da Fazenda Santa Barbara como uma Terra
Indígena, tenha utilizado a tese jurídica Marco Temporal citando inclusive a petição
judicial referente a demarcação da TI Raposa Serra do Sol, utilizou “equivocada
interpretação da jurisprudência desta Casa. ” (ZAVASCKI, 2014, p. 9).
Embora colocada de forma distanciada, a “equivocada interpretação” citada por
Zavascki, corresponde a uma decisão por ele mesmo tomada quando decidia sobre o
Agravo interposto por Tales Oscar, que foi por ele negado, como explicitado mais acima
quando localizo essa decisão.
Nesse sentido, essa decisão é uma reinterpretação do próprio Ministro Teori
Zavascki, que antes havia decidido pela aplicabilidade do esbulho renitente ao caso da
Fazenda Santa Barbara, que por isso teve sua decisão questionada por Tales Oscar, através
do recurso Agravo Interno, que dentre outras funções tem a de fazer com que os tribunais
revejam as suas próprias decisões.
Em sua nova concepção as três “reclamações” elaboradas pelos índios Terena em
1982, 1984 e 1989, como segundo o Ministro Teori Zavascki registra na perícia
antropológica, não seria suficiente para a caracterização do renitente esbulho, pois
nenhuma dessas se referiam diretamente a Fazenda Santa Barbara, nem mesmo a carta
do povo Terena enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI),o requerimento
de 1970 de um vereador Terena à Câmara Municipal, comunicada ao Presidente da
FUNAI e cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência
da FUNAI, seriam, nessa nova interpretação do Zavascki, suficientes para a comprovação
de que os indígenas Terena estivessem em conflito efetivo por suas terras, mas
configurariam apenas manifestações formais soltas ao longo de décadas insuficientes para
a efetiva caracterização do renitente esbulho, pois não materializa por circunstâncias de
fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.
Ao sair desse documento, fazendo uma contra leitura (ZEITLYN, 2012) do voto
do Ministro Teori Zavascki, buscando documentos e entendimentos ausentes na
construção de sua decisão, pude encontrar outros documentos dentro do próprio “campo
jurídico”, como o parecer do jurista especialista em Direito Constitucional, José Afonso
da Silva, em que discute duas questões judiciais, “a questão da correta interpretação do
‘esbulho renitente’ de terras indígenas e do ‘Marco Temporal’ da ocupação dos indígenas
de suas terras” (SILVA, 2016, p.3).
Para Silva, o Marco Temporal de ocupação das terras indígenas pelos índios
estabelecido no acordão (decisão colegiada) sobre as Terras Indígenas Raposa Serra do
Sol é um dos conceitos questionáveis dessa decisão por dois motivos. O primeiro deles é
por estabelecer de forma pretérita e arbitrária, a data da promulgação da Constituição de
Federal de 1988, como a data limite para a ocupação indígena de suas terras. Para Silva,
a Constituição não trabalhou com “data certa” como quer estabelecer o Marco Temporal,
não havendo “nenhuma cláusula, nenhuma palavra do artigo 231 sobre os direitos dos
índios que autoriza essa conclusão” (SILVA, S/D, p. 8), pois pelo contrário, reconhecidos
os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Nesse sentido, a Constituição de 1988 “é o último elo do reconhecimento jurídico
constitucional dessa continuidade histórica dos direitos originários dos índios sobre suas
terras, e assim, não é o marco temporal desses direitos” (SILVA, 2016, P.9), pois como
visto no primeiro capítulo, quando se percorria pela legislação indigenista, o documento
que deu início ao tratamento jurídico dos direitos indigenistas foi a Carta Regia de 30 de
julho de 1611. O segundo motivo de seu questionamento, seria adotar o conceito do
Marco Temporal em uma dimensão normativa, ou seja, de aplicação geral, aos casos que
versem sobre “ocupação tradicional indígena”, quando na verdade tal interpretação
constitucional teria sido direcionada apenas ao caso Raposa Serra do Sol.
Quando ao renitente esbulho, Silva (2016) ressalta que a interpretação dada pelo
STF após o caso Raposa Serra do sol, se destaca em quatro pontos, o primeiro deles é que
caberia aos índios “esbulhados” (que sofreram esbulho), comprovar os fatos que os
levaram a sair de suas terras; a segunda interpretação dada pelo STF é a utilização do
conceito de esbulho em um contexto que não lhe cabe, pois tal instituto jurídico seria
correspondente ao Código de Direito Civil, enquanto que os direitos dos índios
correspondem aos direitos constitucionais e não do direito civil.
A terceira interpretação do STF é que o conflito entre os indígenas e não indígenas,
para a caracterização do renitente esbulho, deve perdurar até a data da promulgação da
Constituição Federal de 1988, o que na compreensão de Silva seria deixar desamparado
os direitos constitucionais anteriores que reconheciam a posse indígena sobre seus
territórios. E por fim, o STF ainda exige que esse conflito seja materializado, em uma
“controvérsia possessória judicializada”, que haja uma judicialização do conflito entre
índios e não índios que buscam a posso de uma terra.
Tal interpretação desconsidera que antes da promulgação da nossa Constituição
Federal de 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado brasileiro, através do
órgão responsável pela política indigenista. Foi a Constituição Federal de 1988 que
reconheceu aos indígenas igualdade de direitos e como consequência, a tutela indígena,
por parte do Estado brasileiro e de suas instituições, acabou por ser superada.
A pesar do regime tutelar, discriminatório, ter sido suplantado pela Constituição
de 1988 textualmente, ao reconhecer as organizações sociais, costumes, línguas, crenças
e tradições indígenas, bem como o ingresso em juízo dos índios e suas comunidades, o
que chama a atenção, neste processo demarcatório da Terra Indígena Limão Verde, é o
fato de que as comunidades indígenas não foram citadas pelos autores das ações ou de
ofício pelo poder judiciário para compor as lides, e nem consultadas, nos termos da
Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, norma internalizada
pelo Brasil. Nem mesmo suas cartas e monções foram aceitas como documentos legítimos
para compor esse processo demarcatórios. Para o judiciário, a FUNAI é quem representa
os indígenas em Juízo e suas vozes só são levantadas nessas decisões a partir da
“tradução” antropológica presente no Laudo Antropológico. Nesse sentido, o povo
Terena teve sua esfera jurídica afetada quando o processo demarcatório foi interrompido
pelo judiciário, as quais sequer foram intimadas ou chamada nos autos como parte.
Além disso, um outro documento encontrado nessa contra leitura foi o artigo
Deborah Macedo Duprat Pereira (2018) que intitulado O marco temporal de 5 de outubro
de 1988 – Terra Indígena Limão Verde, afirma que tal decisão traz uma visão naturalizada
de posse, esbulho e resistência, que rompe com o compromisso de assumir uma
pluralidade adotada pela Constituição de 1988. Ela afirma que “a invocação da Súmula
n. 650, que volta e meia se faz na atualidade, é de todo impertinente, porque nada tem a
ver com territorialidade, mas com ‘antigos aldeamentos’, que existiram no passado e lá
ficaram” (PEREIRA, 2018, p.103).
Pereira (2018) argumenta ainda, a existência de embargos de declaração
decididos ao caso Raposa Serra do Sol, que como um tipo de recurso usado em processos
judiciais para pedir ao juiz que deixe nítido alguns pontos de uma decisão dada por ele,
esse estabelece que a decisão tomada em 2009 pelo ministro do STF, que define a TI
Raposa Serra do Sol, não é vinculante, ou seja, que não valerá obrigatoriamente para
outros processos relativos a demarcação de terras indígenas.
Após esse contra leitura, podemos perceber que ao traçar a construção da
definição do Marco Temporal, e como ele se aplica ao povo Terena, o Ministro Teori
Zavascki nos sugere uma tese jurídica consolidada e pacífica entre o Campo jurídico,
“performando” (MORETO,2014) um Marco temporal que nasce com a demarcação da
TI Raposa Serra do Sol e desde então coloca uma “pá de cal” sob as discordâncias
judiciais referentes à tradicionalidade de uma terra indígena.
Sair desta decisão e buscar outras referências sobre o Marco Temporal, nos
revelou um campo jurídico que divergem na tradução (interpretação) dos direitos
indigenista, e nos revela uma tese jurídica do Marco Temporal que está em disputa quanto
a sua legitimidade.
Tal conceito de “peforrmoatização” é inspirado em Glaucia Cristina Maricato
Moreto (2015), que nos remete a forma como os documentos são colocados pelo Ministro
Zavaraski que mudam a sua decisão, há um manejo dos documentos para provar a
ausência das condições essenciais na comprovação do renitente esbulho. Se antes o Laudo
Antropológico referente a TI Limão Verde pelo ministro Zavascki mostrava evidências
de que os indígenas não haviam deixado de ocupar a Fazenda Santa Barbara “por algum
dia, por vontade própria e em passado remoto” (ZAVASCKI, 2014, p. 6) em tempo
suficiente para justificar a tradicionalidade e o domínio sobre as terras, esse mesmo Laudo
Antropológico da TI Limão Verde agora “performa” uma convivência pacífica
registrando apenas “reclamações genéricas” elaboradas pelos índios Terena.
Nesse sentido, na decisão do Ministro Teori Zavascki o Laudo Antropológico terá
a centralidade de em um primeiro momento “performar” a presença da exceção do
renitente esbulho impedindo a aplicação da tese jurídica Marco Temporal e
posteriormente esse mesmo laudo “performa” a ausência dos elementos que caracterizam
o renitente esbulho.
O saber antropológico funciona então, como algo que pode performar dois
entendimentos opostos, o que nos remete a Santos (1994) quando na discussão sobre o
papel do juiz faz uma distinção entre neutralidade e imparcialidade. Nos alertando que
embora a ética da magistratura e a própria lei estabeleça que os juízes devam ser
imparciais, estes não são socialmente neutros, “mostrando que o juiz, como todo
profissional (inclusive os antropólogos!) é habitado por condicionantes ideológicos que
lhe ditam preferencias de classe” (SANTOS, 1994, p.20).
Vianna (2002) nos alerta para a “dimensão moralizadora” na singularização dos
instintos jurídicos gerais, que nos remete a construção de uma administração estatal
permeada de uma dimensão moral na singularização de suas normas.
Nesse sentido, essa decisão se constrói como conteúdo daquilo que lhe interessa
para justificar a sua posição. Acionando alguns aspectos do Laudo Antropológico e um
Marco Temporal estável, o Ministro Zavascki traça uma votação com a presença de
poucos diálogos e uma fácil aceitação dos demais ministros, demostrando uma
unanimidade e uniformidade presente na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.
A luz de Olívia Maria Gomes da Cunha (2004) podemos observar que o voto do
Ministro Zavascki não tem só o viés que ele segue, mas também o que ela deixa de seguir
não citando documentos já anunciados pelo próprio campo jurídico, evidenciando o
documento como um lugar de disputa, em que ao não citar alguns documentos se apaga
e se silencia sujeitos e direitos.
Para que o mesmo Laudo Antropológico componha interpretação distintas há uma
dimensão de agencia e subjetividade carregada pelo Ministro Teori Zavascki, que nos
sugere uma transformação do próprio direito indigenista, na medida como afirmado pela
Pereira (2018) traz à tona uma noção de justiça que reinterpreta os conceitos de posse,
esbulho e resistência, compreendidos e consolidados desde a Constituição de 1988. Tais
transformações tem implicado no espaço que o saber antropológico ocupa nesses espaços
de decisões, que revela a partir de Boudieu (1989) um campo jurídico formado por
disputas internas que traçam os limites e as possibilidades desse saber para a tomada de
decisões e que disputa a tradução dos direitos indigenistas expressos na constituição.
Uma decisão carregada de normas constitucionais, jurisprudência e súmula, que
como institutos jurídicos gerais produz um discurso de imparcialidade e neutralidade,
própria do “campo jurídico” descrito por Bourdieu, que esconde as escolhas particulares
feitas em sua decisão e produz uma singularidade tomada de caráter universal por seu
conhecimento técnico, especializado e racional, que busca apenas a solução mais justa,
própria de quem tem Fé pública (PINTO, 2016), ou seja, própria de quem tem os atos
profissionais pautadas na certeza e na veracidade de seus assentamentos .
Os Laudos Antropológicos encarados como um instrumento capaz de traçar a
intersecção entre o conceito jurídico de Terra Indígena tradicionalmente ocupada e o
conceito antropológico de territorialidade para efetivação dos direitos indígenas, com a
aplicação do Marco Temporal nesta decisão, nos traz um ensaio de como o saber
antropológico é articulado nesse campo decisório de forma pontual e mitigada.
Inaugurando um novo capítulo na história dos direitos indigenistas, já que a dimensão
observada e trabalhada pelo saber antropológico, ciência que traduz a dimensão relacional
que as populações indígenas estabelecem em seus territórios vem sendo substituído por
um critério temporal e estático.
É inspirada nessa concepção de Mariza Gomes e Souza Peirano (2006) que
compreende ser possível pensar esta decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal
Federal como um documento que ao mesmo tempo que decide sobre a terra indígena do
povo Terena coloca em ação o significado da política de demarcação de terra indígena
concebida abstratamente. Além disso, assim como os documentos analisados por Peirano
(2006) os processos judiciais demarcatórios de terra indígena mudam de significado para
o Estado ao longo do tempo, nesse sentido, observar essas mudanças é traçar uma
“arqueologia do Estado” que em diferentes contextos cria e altera o significado da política
demarcatória de terra indígena no Brasil. Tornando o processo demarcatório da TI Limão
Verde uma peça chave para essa abordagem, na medica que ela carrega a tese jurídica do
Marco Temporal que busca transformações das categorias, concepções e práticas
adotadas até então para a demarcação de terra indígena.
TERRITORIALIDADE, UM CONCEITO ANTROPOLÓGICO
Neste último tópico faremos uma reflexão em torno do conceito antropológico de
territorialidade abordado principalmente por Dominique Tilkin Gallois (2005) e Little
(2004), por compreender que o Marco Temporal desconsidera o conceito territorialidade
adotado pela Constituição de 1988 para a efetivação dos direitos constitucionais
indigenistas.
Little (2004), definiu territorialidade como “o esforço coletivo de um grupo social
para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela especifica de seu ambiente
biofísico, convertendo assim em território” (LITTLE, 2004, p.253). Como resultante das
condutas de territorialidade de um grupo social, a compreensão do território desses povos
só se dará a partir da história e dos processos políticos, sociais e simbólicos, que
estabelecem com o lugar em que habita. Portanto, traz à tona a noção de pertencimento
local, exigindo da análise antropológica uma abordagem etnográfica capaz de revelar à
diversidade de expressões e particularidades socioculturais, com a diversidade dos
territórios que surgem em “contextos intersocietários” diferentes (LITTLE, 2004). Little
(2004) afirma ainda, que a noção jurídica de Terra Indígena posta pelo Estado é o
reconhecimento institucional da diversidade étnica e territorial no Brasil, com ritual e uma
série de dispositivos jurídicos específicos.
Gallois (2005) afirma que a convergência entre o conceito jurídico político
conduzido pelo Estado de Terra Indígena tradicionalmente ocupada e a compreensão
antropológica de territorialidade presente de diferentes formas nos povos indígenas, é um
desfio posto desde a constituição de 1988. Afirma ainda, que o artigo 231 da Constituição
Federal reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam implicando que o entendimento de tal artigo perpassa por categorias e práticas
dos povos indígenas, que se levem em conta os usos e costumes e tradições de uma forma
particularizada de cada povo.
Os estudos antropológicos voltados à questão da territorialidade indígena em suas
diferentes dimensões recuperam a história da ocupação da terra, com o objetivo de trazer
os aspectos relevantes para ocupação territorial indígena. Aspectos econômicos, políticos,
cosmológico ou religioso são por vezes necessários para compreender a forma de
habitação desses povos como um espaço social, histórico e ecológico, que seja capaz de
garantir sua existência, identidades e valores. Não se pode esconder a história da
colonização que atingiu as populações indígenas brasileiras, nem muito menos as
políticas de Estado que implicaram na expulsão, remoção e na pressão para que as
populações indígenas abandonassem ou deixassem seus territórios (GALLOIS, 2005).
Para Gallois (2005), a territorialidade torna possível recuperar de forma central a
história que constrói a ocupação da terra de um povo, tornando nítido as experiências e
os elementos culturais acionados em uma “gestão territorial indígena”. Isso porque, se
por um lado, há possibilidade da inexistência de conceitos indígenas a respeito de seus
territórios, por outro, nenhuma sociedade existe sem expressar uma “lógica territorial”
(GALLOIS, 2005). Sendo assim, a dimensão da territorialidade, para a autora, carrega
elementos ambientais, econômicos, ecológicos, culturais e históricos, traçando uma
diversidade que a antropologia se esforça para adequar o direito.
Nesse sentido, se traz o conceito antropológico de territorialidade para
problematizar a tese jurídica do Marco Temporal que como uma concepção singularizada
do Estado não dá conta da pluralidade das formas dos territórios indígenas existentes no
Brasil. Tal conceito é capaz de revelar outras formas de ser, estar e compreender o mundo,
em que historicamente vem se traçando mediações, como o próprio conceito de Terra
Indígena como uma categoria jurídica criada para lidar com as diferentes “lógicas
territoriais” dos povos indígenas. O Marco Temporal é uma quebra desse processo de
mediação e se coloca como um desafio antropológico.
As diferentes forças internas de cada grupo expressadas nesse conceito de
territorialidade, com suas grandes variações históricas nos costumes, rituais e valores, por
exemplo, não se encaixam nas exigências externas traçadas pelo Marco Temporal. A
exigência de uma coincidência entre as diversas autoclassificação existentes e uma
classificação temporal do Estado se torna difícil, já que as identificações étnicas se dão
em um contexto situacional, e não de forma cristalizada e permanente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Olhar para o processo demarcatório da Terra Indígena Limão Verde nos remete a
perspectiva de Nader (1972) acerca dos “estudos up”, como um esforço de tradução e
compreensão do Supremo Tribunal Federal que ao aplicar a tese jurídica Marco Temporal
impacta a vida das populações indígenas do Brasil. Tornando os documentos processuais
uma “porta de entrada e estudos” (NADER, 1972) dessas esferas, que como documentos
possíveis de leitura antropológica (VIANNA, 2014) além do caso específico da Terra
Indígena Limão Verde, dá “trilhas possíveis para se acessar e interpretar” (CHAVES,
2018, p 14, no prelo) a política de demarcação de terra indígena do Brasil capaz de revelar
dimensões macro da construção do Estado-Nação (CUNHA, 2004). Transformando o
registro dessa decisão com os seus “regimes próprios de verdade” em novas narrativas e
leituras com reflexões atuais e de relevância antropológica (CUNHA, 2005). Um
documento que exerce um controle e coordenação do Estado com a capacidade de
estabelecer a natureza indígena ou não de uma terra, criando assim sujeitos e
sociabilidades.
A partir decisão da Segunda Turma do STF referente ao processo demarcatório da
Terra indígena Limão Verde, foi observado como é construída e aplicada a recente tese
jurídica Marco Temporal e suas implicações em torno dos elementos que atuaram na
construção da definição da natureza jurídica da Fazendo Santa Barbara. Uma tese jurídica
que atua ao longo de um processo para a objetivação, definição e performativização de
uma demarcação de terra, transformando os elementos e os saberes envolvidos para
definição dos direitos indigenistas.
São os desdobramentos impulsionados a partir do julgamento do caso Raposa
Serra do Sol pelo STF, principalmente em razão de um Marco Temporal para o
reconhecimento de direitos territoriais aos povos indígenas, em que se registram terras
indígenas que já foram anuladas ou que tiveram o seu processo demarcatório questionado
pelo Marco Temporal, como a Terra Indígena Limão Verde, que demonstram a atualidade
da reflexão em torno dessa tese jurídica. Sendo necessário refletir antropologicamente em
torno dessa questão jurídica, pois muitos povos indígenas aguardam a demarcação de suas
terras poderão ser e estão sendo diretamente impactadas, como o povo Terena.
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