o massacre de nanquim

138
IUPERJ Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro VEBERSON PEREIRA DA SILVA O IMPÉRIO DO CRISÂNTEMO: O massacre de Nanquim e a construção do Japão no contexto imperialista Rio de Janeiro - 2014

Upload: paulo-gracino-junior

Post on 12-Jan-2016

7 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

O massacre de Nanquim

TRANSCRIPT

Page 1: O massacre de Nanquim

IUPERJ Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro

VEBERSON PEREIRA DA SILVA

O IMPÉRIO DO CRISÂNTEMO:

O massacre de Nanquim e a construção do Japão no contexto imperialista

Rio de Janeiro

- 2014 –

Page 2: O massacre de Nanquim

1

Veberson Pereira da Silva

O IMPÉRIO DO CRISÂNTEMO:

O massacre de Nanquim e a construção do Japão no contexto imperialista

Dissertação apresentada ao Instituto

Universitário de Pesquisas do Rio de

Janeiro, como meio de obtenção

do título de mestre em Sociologia

Orientador: prof. Dr. Fernando Vieira

Rio de Janeiro

- 2014 –

Page 3: O massacre de Nanquim

2

Dedico este trabalho a todos aqueles que me

apoiaram e que, de alguma maneira contribuíram

para que ele pudesse ser realizado. Dedico

especialmente à minha família e, como não poderia

deixar de ser, a todos os chineses mortos em

Nanquim.

Page 4: O massacre de Nanquim

3

“Aprender história é fácil, difícil é aprender as lições da história.”

- Mansour Chalita –

Page 5: O massacre de Nanquim

4

Resumo

A expansão imperialista japonesa é algo extremamente interessante de ser estudado,

sobretudo no que tange à construção da nação japonesa moderna, na medida em que ilustra

um dos períodos mais violentos na história da Ásia moderna. Após a restauração Meiji

(1868), o mundo assiste a uma gigantesca modernização e militarização do Japão, visando o

sudeste asiático. Os países ocidentais, nesse contexto, também entrariam em choque com os

japoneses a fim de rivalizar influência na Ásia. Adentrando no séc. XX, nota-se que a China,

principalmente, sofreria as mais pesadas consequências do imperialismo japonês, padecendo,

na década de 1930, os mais terríveis episódios do teatro de guerra entre os dois países. Já no

fim da década, o Japão empreenderia contra a China uma das mais brutais campanhas

militares de todo o período de conflito, que deixaria marcas no território e na população

chinesa por longas décadas.

Palavras chave: Imperialismo, Nação, Japão, massacre, Nanquim.

ABSTRACT

The Japanese imperialist expansion is extremely interesting to be studied, especially

regarding the construction of the modern Japanese nation, in that it illustrates one of the most

violent periods in modern Asian history. After the Meiji Restoration (1868), the world is

witnessing a huge modernization and militarization of Japan, targeting Southeast Asia.

Western countries, moreover, had also come into conflict with the Japanese to rival influence

in Asia. Entering the 20 century, we note that China, especially, suffer the most serious

consequences of Japanese imperialism, suffering, in the 1930s, the terrible episodes of the war

theater between the two countries. By the end of the decade, Japan launch against China one

of the most brutal military campaigns throughout the period of conflict that would leave

marks on the territory and the Chinese people for many decades.

Keywords: Imperialism, Nation, Japan, massacre, Nanking.

Page 6: O massacre de Nanquim

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................6

CAPÍTULO 1.

NAÇÃO, IMPERIALISMO E VIOLÊNCIA.......................................................................11

CAPÍTULO 2.

A RESTAURAÇÃO MEIJI E A CONSTRUÇÃO DO JAPÃO IMPERIALISTA..........52

CAPÍTULO 3.

O “ESTUPRO” DE NANQUIM............................................................................................88

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................120

REFERÊNCIAS....................................................................................................................125

ANEXOS................................................................................................................................129

Page 7: O massacre de Nanquim

6

INTRODUÇÃO

A Segunda Guerra Mundial foi, sem dúvida, um dos acontecimentos que mais

marcaram a história humana em todos os tempos. Os confrontos da guerra, longe de terem se

desenrolado somente na Europa, provocaram focos de enfrentamentos por todo o mundo. Na

Ásia não foi diferente. O crescente desejo japonês de expansão territorial e de unificação do

continente sob sua bandeira contribuiu para que esse país, observando a crescente intromissão

dos países ocidentais no sudeste asiático, ingressasse na empreitada das conquistas, tendo

como uma de suas principais vítimas a China.

O avanço japonês sobre esse país especialmente, foi totalmente avassalador,

provocando extrema destruição e humilhação sobre o povo chinês. O sentimento japonês em

relação à China nas primeiras décadas do séc. XX era de que este país era totalmente inferior,

desprezava-se o seu povo devido à sua falta de patriotismo e incapacidade da impedir que seu

país se tornasse uma zona de influência ocidental.

A relação do Japão com as potências europeias sempre se constituiu bastante delicada

em decorrência desse país acreditar que os “bárbaros” tentavam, a todo momento, tirar

enormes vantagens dele, como também do restante da Ásia. Essa grande desconfiança levaria

o Japão a adotar uma espécie de postura paternalista1 em relação aos demais países asiáticos.

Uma postura, todavia, que não significava agir de maneira pacífica e benevolente. As ações

do Exército Imperial na Ásia, destacando-se na China, principalmente na década de 1930,

foram extremamente duras e provocaram muitas mortes e destruição. Os estrangeiros também

se veriam diretamente afetados com as ações do Japão no Leste asiático, o que, mais tarde,

provocaria guerra aberta entra as nações.

Em 12 de Dezembro de 1937, o Exército Imperial rompe as defesas chinesas em

Nanquim e consegue entrar na cidade, perpetrando atos desumanos contra a população,

tornando o episódio conhecido como o “estupro” de Nanquim. A caminhada dos combatentes

japoneses até a chegada à cidade foi marcada por um rastro de destruição e humilhação. O

número de pessoas assassinadas é, ainda hoje, impossível de se precisar, variando, das

estimativas mais brandas às mais severas, de 100 mil a 300 mil mortos.

1 O governo japonês considerava que a sua liderança na Ásia seria fundamental para que a área não caísse

definitivamente sob o domínio dos ocidentais. Idealizariam, então, a chamada “esfera de coprosperidade”, que apesar do nome, possuía intenções que na prática se mostraram muito mais individualistas do que comunitárias

de fato.

Page 8: O massacre de Nanquim

7

O imperialismo japonês distinguiu-se em muito do tradicional imperialismo ocidental

por sua mentalidade peculiar. Os japoneses adotavam uma série de prerrogativas muito mais

simbólicas do que econômicas propriamente ditas. Entretanto, na medida em que o governo

nipônico observou a imensa lucratividade do modelo de ganho econômico imperialista, os

países que compunham a esfera de interesse do Japão na Ásia passaram a sofrer cada vez

mais, devido às ambições dos seus vizinhos insulares.

A progressão histórica do Japão, desde a restauração Meiji, é de fundamental

importância para o entendimento dos acontecimentos em Nanquim. A construção social do

nacionalismo para a população japonesa e o forte pragmatismo político instaurado no Japão

após a era Meiji foram determinantes para o desenrolar dos acontecimentos e da construção

da mentalidade imperialista no país. A gradativa aversão aos valores estrangeiros que

lentamente se observa no Japão contribuiu diretamente para que se formasse uma hostilidade

dos japoneses em relação aos ocidentais, que aumentaria significativamente no início do séc.

XX.

O relacionamento dos nipônicos com os chineses, principalmente, também vai se

tornando cada vez mais tenso, devido a uma série de choques de interesses entre os dois

países, além de o próprio território chinês representar grandes possibilidades de ganho aos

japoneses. Esse crescente conflito de interesses, unido à fixação das novas ideologias

nacionalistas nos cidadãos japoneses, estabeleceram, com o passar dos anos, um forte

sentimento anti-chineses no Japão. Os chineses, não obstante, eram totalmente desprezados

pelos japoneses e vistos verdadeiramente como uma sub-raça.

Após a Primeira Grande Guerra, a relação dos japoneses com os ocidentais, que já era

bastante tênue, torna-se insustentável, principalmente em relação à Rússia e os Estados

Unidos. Ao longo das décadas de 1920 e 1930 os japoneses experimentam transformações

políticas extremamente impactantes, que transformariam fundamentalmente a sociedade

japonesa, no que diz respeito ao militarismo. Nesse contexto se desenvolve o imperialismo

japonês.

Nesse sentido, nota-se que o estudo do conjunto de ideias que davam suporte às ações

do alto comando, bem como do Exército Imperial, é de fundamental importância. Ele permite

compreender qual era a razão e quais eram as premissas utilizadas pelos japoneses para

justificar seus atos. Nesse sentido, é possível se ter uma dimensão da importância atribuída à

motivação psicológica das tropas em relação aos objetivos propostos.

Page 9: O massacre de Nanquim

8

O âmbito simbólico que sustenta a manutenção de um regime ou de uma batalha

exerce destacado papel em relação aos acontecimentos que se desenvolvem. A compreensão

do fato de que ações cometidas em favor da nação são vistas como heroicas, por exemplo,

leva necessariamente ao entendimento do papel da construção do Estado nacional no

imaginário da população.

Nota-se que apesar de comumente as pessoas não escolherem a nação a qual irão

pertencer, o senso de familiaridade a ela é construído de maneira tão forte, que o serviço a seu

favor se torna de grande valia para quaisquer cidadãos. Esse sentimento individual em relação

a uma comunidade que foi construída está intimamente ligado à força que esta exercerá sobre

os seus membros e, também, até que ponto esses cidadãos estarão dispostos a doar-se em

favor dela.

É interessante destacar que essa coesão grupal pode, em variados casos, levar a

população a cometer atos que seriam impensáveis tendo como premissas a autoafirmação da

nação. E isso pressupõe que todo o povo, ou a esmagadora maioria retenha profundamente os

valores políticos e sociais desenvolvidos para a afirmação do grupo enquanto nação.

Nesse sentido, muito além dos aspectos econômicos ou materiais, é necessário que se

levem em consideração os aspectos políticos e simbólicos que fazem parte da formação de

uma nação, tendo em vista que ela não é simplesmente uma entidade sem forma ou impessoal,

ela é antes de tudo a própria população em si. Realmente existe um grande problema em

tentar explicar a formação de um grupo, e também sua autoafirmação em relação aos outros

grupos, tendo como base simplesmente os argumentos e análises sob o prisma econômico ou

material, sem levar em conta os aspectos figuracionais envolvidos no processo.

É necessário, então que se leve em consideração todo o conjunto de prerrogativas que

sustentam a formação da nação e, para tanto, é imprescindível o entendimento, entre outras

coisas, das crenças e mitologias que fazem parte do imaginário da população, além da força

que elas exercem sobre esta.

O entendimento dessa construção de senso nacionalista no Japão deve começar

necessariamente pela adoção, no período Meiji, de uma religião oficial, o xintoísmo. Essa é a

única religião que pode ser considerada genuinamente japonesa, com origens que se

confundem com a do próprio povo, há pelo menos dois milênios, e que predomina na mística

do arquipélago japonês. Essa filosofia religiosa aponta para uma origem divina da casa real

japonesa.

Page 10: O massacre de Nanquim

9

Consequentemente a população absorve, mesmo que em níveis diferentes, essa

ascendência mítica para si, tornando-se herdeira, por direito, dos deuses. Isso justifica a

intensa preocupação dos japoneses com relação aos costumes tradicionais e o papel social de

cada cidadão que faz parte da nação japonesa e, ainda, a fortíssima ligação dos nipônicos com

os elementos naturais.

Observando-se tudo o que foi exposto até agora, torna-se bastante relevante suscitar o

debate acerca do modelo imperialista do Japão, apontando a construção da nação japonesa

moderna como um fator fundamental na consolidação da política imperial-expansionista

empreendida pelos nipônicos. Sendo assim, buscamos compreender quais as premissas

utilizadas e por quais motivos os cidadãos legitimaram as ações do governo de Hiroíto e

participaram ativamente, de forma coercitiva ou não, da empresa imperialista do país, e em

especial o episódio do massacre de Nanquim.

Nota-se que as ações do governo japonês, rivalizando até mesmo os países ocidentais

com presença ativa na região do sudeste asiático, só podem ser compreendidas tendo como

pano de fundo a própria noção de “nação forte” construída no país. Sendo assim, a pesquisa a

respeito do tema é de grande valia, no sentido de oferecer meios para se compreender de que

maneiras os conceitos de nação e identidade foram apreendidos pela população japonesa.

Essas representações sociais construídas sobre bases políticas tão intensas

representaram a mola mestra da expansão japonesa. E isso se verifica observando-se até que

ponto essa mentalidade foi determinante para as ações dos soldados e do alto comando do

Exército em Nanquim em 1937. O imperialismo japonês, em si, distingue-se em diversos

aspectos do tradicional modelo europeu. Entretanto, é comumente defendida a tese de que

todo esse processo se iniciou a partir do contato brusco entre as duas culturas, lê-se ocidente-

oriente.

Ademais, o estudo acerca da inter-relação de nacionalismo, religião e educação formal

constitui a espinha dorsal para a compreensão dos mecanismos práticos envolvidos na

empreitada imperialista japonesa. Mesmo sendo possível observarem-se nuances

ocidentalizantes, por assim dizer, na política japonesa do início do séc. XX, em última análise

a compreensão do processo de consolidação do império japonês – constituído simbolicamente

– perpassa necessariamente pelo exame dessas características peculiares ao caso nipônico.

Em termos concretos, a dissertação será composta de um capítulo inicial discutindo a

construção histórica dos termos nação e identidade. Para tanto, busca-se realizar um debate

entre alguns autores que trabalhem os temas, com ênfase, como já apontado, nos trabalhos de

Page 11: O massacre de Nanquim

10

Benedict Anderson, Norbert Elias e Anthony Smith, cujas definições são adotadas como

sendo as que mais se aproximam das perspectivas e premissas apontadas na pesquisa.

No segundo capítulo buscamos a gênese histórica do estabelecimento da nação

japonesa moderna, ou seja, a Restauração Meiji. Os mecanismos envolvidos nesse processo

são analisados em vias de proporcionar um entendimento das táticas e medidas adotadas pelo

governo japonês para afirmar a nação frente aos demais países e, além disso, promover uma

autoafirmação dos valores nacionais pela própria população.

Além disso, esse é um capítulo que visa analisar a forma através da qual a população

japonesa é doutrinada e absorve, ou não, os valores da empreitada imperialista do país.

Procuramos evidenciar, através da cultura popular, se de fato esse era um projeto legitimado

pela população japonesa, ou simplesmente representava os anseios do alto escalão

governamental. Em outras palavras, o que se pretende é descobrir se havia sido constituída

efetivamente uma identidade nacional imperialista no Japão já na década de 1930.

O terceiro e último capítulo, intitulado “O massacre de Nanquim”, procura discutir as

ações do exército japonês em Nanquim à luz de toda essa atmosfera social do Japão,

cristalizada ao longo das últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX.

A perspectiva no Japão de que a devoção ao imperador – e consequentemente à nação – vem

antes de qualquer anseio individual é fundamental para que se compreendam as ações dos

combatentes japoneses em Nanquim. Só que, além disso, essa parte do trabalho tenta analisar

se o episódio do estupro de Nanquim corresponde a uma consequência natural da política

imperialista empreendida pelo Japão, ou se há outras perspectivas que supram a análise desse

acontecimento. Contamos, ainda, com alguns dos documentos utilizados no trabalho

disponibilizados nos anexos, a fim de embasar ainda mais os argumentos utilizados.

O trabalho, portanto, se ocupa em estudar efetivamente a construção do império

japonês, buscando como marco inicial a restauração Meiji, de 1868, e indo até o massacre da

cidade chinesa de Nanquim pelo Exército Imperial, em 1937. Isso não significa, de maneira

nenhuma, que a pesquisa se detém simplesmente numa reconstituição histórica dos eventos

compreendidos nesse período, mas que se propõe a analisar, como já dito, os mecanismos

sociológicos por trás dos eventos.

Page 12: O massacre de Nanquim

11

CAPÍTULO 1. NAÇÃO, IMPERIALISMO E VIOLÊNCIA

A discussão a respeito da construção teórica de um conceito é de fundamental

importância para o entendimento dos eventos concretos que de alguma forma se vinculam a

essa ideia. Nessa discussão, é interessante que se observem as análises de diferentes autores, a

fim de promover uma maior abrangência de argumentação, contribuindo, assim, para uma

elucidação do assunto proposto.

A delimitação e especificação dos temas abordados contribuem grandemente para que

a pesquisa não se torne prolixa e enfadonha. Sendo assim, o debate teórico de alguns

parâmetros ganha corpo no sentido de estabelecer quais são as balizas conceituais adotadas

pela pesquisa, colaborando para uma análise mais direcionada que evite rodeios

desnecessários.

Sem o estabelecimento de referências teóricas, qualquer trabalho se torna carente de

uma argumentação que, de fato, dê um embasamento às questões propostas, já que a análise

crítica de eventos concretos não deve ser feita pelo evento por si só, mas perpassa uma série

de conceitos e argumentos pré-estabelecidos que ajudem a problematizá-los.

Nesse sentido, quanto mais bem especificadas forem as referências teóricas às quais o

trabalho recorre, tanto mais se poderão analisar de forma apropriada os temas sugeridos,

evitando, assim, que o desenvolvimento da pesquisa se perca em meio a conceituações que

desviem o foco daquele que foi previamente estabelecido.

Como suporte teórico para a presente pesquisa, é necessário que se observe o debate

envolvendo os conceitos de nação, imperialismo e violência, conceitos esses que permearão

toda a investigação. Para tanto, é imprescindível a observação das contribuições de alguns

autores que tomaremos como baliza para o trabalho.

A concepção de nação, fortalecida no ocidente sobretudo a partir do século XIX,

indica que havia, de fato, um esforço direcionado – pelos governos, lideranças – para se

construir no imaginário popular uma entidade abstrata que proporcionasse um senso de

familiaridade entre os membros a ela relacionados.

Isso não significa dizer que anteriormente ao período indicado não houvesse laços

comuns entre as pessoas de uma dita comunidade. O que se passa a observar no oitocentos2,

contudo, é a construção de uma comunidade mais abrangente que englobe mais do que as

pessoas de um dado espaço territorial específico. Ou seja, o laço afetivo, por assim dizer, da 2 Esse termo, muito utilizado no meio historiográfico, indica o período que compreende o século XIX.

Page 13: O massacre de Nanquim

12

pessoa com relação à sua vizinhança continua a se estabelecer, mas aparece, também, um

outro tipo de ligação e familiarização do indivíduo com um grupo que abarca não só os seus

vizinhos mais próximos, mas também uma série de anônimos que, mesmo que a princípio não

tenham aparentemente nada em comum, constituem-se membros da mesma nação.

Os laços estabelecidos entre indivíduos próximos uns dos outros, seja num bairro ou

numa pequena aldeia, costumeiramente desenvolvem-se de acordo com o aprofundamento das

relações sociais entre eles. Relações de amizade, antipatia, agressividade, amor, carinho,

identificação, etc., acontecem na medida em que há, de fato, algum tipo de contato entre as

pessoas (ninguém poderia naturalmente odiar alguém de quem não se conhece nem a

existência3).

O estabelecimento dessa teia de relacionamentos não pressupõe, necessariamente, que

todos os envolvidos tenham os mesmos objetivos em relação aos seus vizinhos para que se

forme, de fato, uma comunidade, ao contrário do que uma primeira análise superficial possa

sugerir. Na verdade, como afirma Weber:

Todas as partes mutuamente orientadas numa dada relação social não manifestam necessariamente o mesmo sentido objetivo, ou seja, não precisa

haver qualquer tipo de “reciprocidade”, “caridade”, “amor”, “lealdade”,

“confiança contratual”, “nacionalismo”, pois uma parte pode manifestar uma

atitude diferente da de outra. Para as partes envolvidas, sua conduta demonstra meramente várias formas e significados, e a relação social é, para

cada parte, simplesmente “assimétrica” (WEBER, 2008, p. 46).

Essas são situações nas quais, devido ao contato direto entre os indivíduos, formam-se

laços efetivos de relacionamento, sejam eles amistosos ou hostis, mesmo sem que as pessoas

ajam conscientemente nesse sentido. É o próprio conjunto das ações sociais que forma essa

comunidade e estabelece a maneira através da qual os sujeitos envolvidos nela enxergarão uns

aos outros.

A formação de coesão em pequenos grupos se estabelece no passo do

desenvolvimento social de proximidade entre os membros envolvidos. Existe grande

pessoalidade nos laços dessas comunidades. Nas palavras de Elias (2000, p. 40), “a

autoimagem e a autoestima de um indivíduo estão ligados ao que os outros membros do grupo

pensam dele.”

Sendo assim, as relações sociais, estabelecidas de acordo com as ações dos indivíduos,

exercem papéis cruciais na constituição da coesão grupal. Ou seja, cada um dos indivíduos é

igualmente responsável pela manutenção e sobrevivência da comunidade, na medida em que

3 No caso das relações entre nações, entretanto, isto pode facilmente acontecer. Abordaremos esse ponto mais

adiante.

Page 14: O massacre de Nanquim

13

existe codependência entre eles. O capital simbólico desenvolvido pelo conjunto das ações

sociais age como o parâmetro para o estabelecimento das posições ocupadas por cada um dos

indivíduos na comunidade.

Acompanhando essa linha de raciocínio, nota-se que as ações imediatas dos membros

do grupo desempenham papéis de extrema importância e que exercem influência direta nas

representações sociais e no relacionamento entre eles. Esse conjunto de relações se torna mais

complexo à medida que a própria comunidade se complexifica. Entretanto, a manutenção da

harmonia interna e do senso de pertencimento de cada um dos membros em relação ao grupo,

pelo menos em última análise, se faz por intermédio da interação direta entre os indivíduos.

A legitimação das posições ocupadas por cada um dos integrantes nessas pequenas

comunidades não acontece por meio de mecanismos inteiramente abstratos e impessoais de

estratificação social. Ela se viabiliza, antes, através da interação direta e pessoal dos membros

do grupo. De fato, como destacado anteriormente, a posição social e a autoimagem de cada

um dos integrantes da comunidade depende diretamente da troca de experiências com os

outros indivíduos que, por sua vez, também se veem submetidos ao juízo de valores deste.

Numa localidade na qual, por exemplo, os valores religiosos exercem papel

preponderante, a constituição dessa comunidade far-se-á a partir das crenças pré-estabelecidas

pelo discurso religioso. Da mesma forma, a hierarquização social será construída tendo como

base os próprios papéis desempenhados pelos indivíduos no grupo religioso ao qual

pertencem. Nota-se, dessa forma, que a intimidade entre os membros dessas comunidades se

faz importantíssima no que tange ao desenvolvimento de uma espécie de carisma grupal.

Por outro lado, no caso das teorias nacionalistas, isso não necessariamente se verifica,

já que os Estados nacionais, em geral, englobam num mesmo território uma multidão de

anônimos, uns em relação aos outros. Mas esse anonimato não impede que se desenvolva

entre eles uma identidade comum de pertencimento a um macrogrupo. E essa identificação se

constrói de uma forma tão consistente e bem amarrada que chega ao ponto de levar essas

pessoas que aparentemente não possuem nada em comum (não possuem laços de parentesco

ou de amizade e na maioria das vezes nem sequer se conhecem) a lutarem lado a lado numa

guerra até a morte, se necessário.

Mas, que mecanismos são esses que se desenvolvem e se consolidam a ponto de criar

uma comunidade de proporções tão amplas e que ao mesmo tempo estabelece um senso de

pertencimento e reconhecimento tão forte entre os seus membros?

Page 15: O massacre de Nanquim

14

Antes de responder à pergunta, é necessário que se deixe claro nesse ponto o que é

exatamente esse objeto, a nação. Primeiramente, ela não é simplesmente o Estado constituído

politicamente, pois esse conceito implica diretamente a instituição formal e toda a burocracia

relacionada a ela. A observação pura e simples das questões institucionais estatais leva a uma

análise fria que desconsidera o fator humano envolvido, como se a nação não constituísse, na

verdade, uma comunidade.

Considerar como nação simplesmente o Estado, seria o mesmo que caracterizar os

movimentos oriundos da relação entre as nações como eventos impessoais e autômatos, como

se não houvesse, de fato, incontáveis interações entre os seres humanos envolvidos no

processo, sobretudo no que diz respeito aos enfrentamentos bélicos. Quanto a essa

perspectiva, Victor D. Hanson argumenta que:

Falar sobre a guerra de qualquer outro modo cria uma espécie de

imoralidade, [sugere] a ideia de que, ao serem atingidos, os soldados simplesmente adormecem, ao invés de serem destroçados; de que no calor da

batalha os generais dão ordens a batalhões impessoais e robóticos, em vez de

garotos de 19 anos gritando em meio a nuvens de gás e cortinas de balas de

chumbo; ou de que cadáveres pútridos pouco tem a ver com abordagens mais amplas da ciência e da cultura (HANSON, 2004, p. 22).

A observação desse ponto não significa dizer, todavia, que a instituição estatal não

possua atuação direta na constituição de uma nação, nem tampouco que ela possa ser definida

de forma tão simplória quanto uma criação abstrata, impessoal e burocrática. Implica afirmar,

na verdade, que a simples ocorrência da posse material de alguns elementos não denota, por si

só, a constituição de uma nação.

Muito além de aspectos puramente materiais, é necessário que se leve em

consideração os aspectos culturais e políticos da formação de uma nação, já que ela não é

simplesmente uma entidade amorfa e desprovida de pessoalidade, ela é antes de tudo a própria

população em si. Na análise de Norbert Elias, há um grande problema em tentar explicar a

formação de um grupo, e também sua autoafirmação em relação aos outros grupos, tendo

como base simplesmente os argumentos e análises sob o prisma econômico ou, ainda,

qualquer teoria que explique os diferenciais de poder “tão somente em termos da posse

monopolista de objetos não humanos, tais como armas ou meios de produção, e que

desconsidere os aspectos figuracionais dos diferenciais de poder que se devem puramente a

diferenças no grau de organização dos seres humanos implicados” (ELIAS, op. cit., p. 21).

Em segundo lugar, enxergar a nação como uma instituição burocrática se torna,

também, um equívoco, na medida em que esse também é um aspecto impessoal e geral que

não necessariamente representa as idiossincrasias de cada nação. A ação burocrática

Page 16: O massacre de Nanquim

15

institucional não representa em nenhuma instância a cultura, língua ou história nacional de um

povo, já que o proceder dessa ação institucional não se vincula diretamente a esta ou aquela

peculiaridade cultural, antes possui um modus operandi próprio que é basicamente o mesmo

onde quer que se verifique. Os setores burocráticos russo, japonês e alemão, por exemplo,

possuem muito mais semelhanças do que diferenciações. Isso porque a uniformidade e a

rigidez dos procedimentos são inerentes à própria organização burocrática.

Numa terceira via, a nação também não é simplesmente uma comunidade étnica, na

medida em que esta não necessariamente apresenta todos os fatores organizacionais e o

aparelhamento político inerentes à nação. Não obstante, as comunidades étnicas geralmente

carecem de uma cultura pública e de uma dimensão territorial, tendo em vista que essas não

são determinantes para aquelas (SMITH, 2010, p. 12-13).

Desta forma, mesmo em se considerando ocasiões nas quais essas duas definições

(nação e comunidade étnica) se sobrepõem – na categoria de identidade cultural coletiva, por

exemplo – não é possível incluí-las exatamente na mesma categoria analítica. A comunidade

étnica, a despeito da sua legitimidade para os que a integram, não possui necessariamente a

organização política que proporcionaria a sua aparição no cenário internacional em meio às

demais nações. Essa é uma característica que está relacionada a questões extrínsecas ao grupo,

já que diz respeito à afirmação externa da nação.

Intrinsecamente, pode-se dizer que falta à comunidade étnica, na maioria das vezes, o

esforço de internalização de uma cultura pública que viabilize a absorção de uma ideia mais

abrangente de comunidade organizada. Além do mais, a soberania política também não é um

fator preponderante para esse tipo de grupo social. Essas lacunas ficam mais evidentes quando

se observa que na prática as comunidades étnicas podem até mesmo se desenvolver no

interior de nações, como grupos minoritários, mas que, em última análise, esses indivíduos

integram-se ao grupo maior, que é a própria nação.

Qualquer uma das visões em separado – Estado, burocracia e comunidade étnica –

seria demasiado simplória para definir a nação. O conceito utilizado aqui abrange uma

conexão entre ambas as definições que, juntas, oferecem de uma forma mais apropriada, a

caracterização do que está sendo entendido como o objeto. Essa identificação aponta para a

nação não ingenuamente como uma entidade abstrata, mas vê a necessidade da sua

materialização de fato.

Sendo assim, pode-se considerar que uma definição aceitável seria a de uma

comunidade de concidadãos que, além de todo o constructo intelectual e social que

Page 17: O massacre de Nanquim

16

corroboram a sua existência e permanência, possui todo o aparato político, legal e material

necessário à sua sustentação. Essa definição teórica é importante para estabelecer os

parâmetros conceituais adotados.

Um dos aspectos mais interessantes da nação é justamente o que diz respeito à própria

construção social dessa comunidade na mentalidade dos seus membros, e que gera uma

identificação fortíssima e irrevogável a ela. Antes de qualquer coisa, é estritamente necessário

que se observe que a nação se constitui como uma “comunidade política imaginada”

(ANDERSON, 2008, p. 32), e como tal, está munida de mecanismos que engendram a sua

formação e consolidação.

É interessante notar a argumentação de Breuilly de que “a política nacionalista é

sempre política de massa. Em variados casos, o nacionalismo envolve a organização de um

apoio populacional aos propósitos políticos, ou a manutenção de grandes grupos que gravitam

em torno de uma arena política exclusiva” (BREUILLY, 1993, p. 19). Portanto, essa

comunidade se constrói tanto vertical quanto horizontalmente.

Ademais, cabe ressaltar que essa comunidade política é não só imaginada, como

também ao mesmo tempo soberana, porém limitada, e esse é um aspecto bastante relevante na

análise das nações. Ela é soberana porque é pensada como superior ao indivíduo e limitada

porque mesmo a maior de todas elas possui, evidentemente, fronteiras finitas e além delas

existem outras nações.

Quanto à questão do caráter soberano da nação, que se constrói nas mentalidades, cabe

destacar uma análise que considera que “o nacionalismo é a maior vergonha política do século

XX” (BEINER, 1991, p. 27)4. E isso se dá justamente pela sua enorme força de consolidação,

pois em comparação a outras forças políticas no mesmo período, como por exemplo o

socialismo, internacionalista por essência, o nacionalismo logrou muito mais êxito na sua

consolidação.

Muito além da teoria, observa-se na prática o colapso do solidarismo proletário – tão

bem elaborado e apregoado pela Segunda Internacional – frente à eclosão da Primeira Guerra

Mundial (BROWN, 2011, p. 45-et. seq.). De fato, as bases mundializantes e apátridas da

teoria socialista pareceram não conseguir rivalizar com a estrutura compacta e de valorização

das raízes comuns de uma referida população, defendida pelo nacionalismo. Evidentemente,

não intencionamos sugerir que as teorias socialistas sejam frágeis no seu discurso, nem

tampouco pretendemos empreender uma longa argumentação a esse respeito, para não fugir

4 Tradução livre.

Page 18: O massacre de Nanquim

17

ao objetivo central do trabalho. O que se pretende, na realidade, é promover a observação de

que, em comparação, na prática, as duas teorias políticas trilharam caminhos bem diferentes.

O discurso de que o nacionalismo constituiu uma grande vergonha política está

diretamente relacionado à ideia de que a própria concepção de soberania nacional, levada ao

extremo, produziu em grande medida os fascismos e, dentre eles, sobretudo o nazismo

alemão. Essa visão, porém, sugere que, em última análise, os nacionalismos deram origem aos

regimes fascistas, e não pressupõe o contrário. Aceitar essa linha de raciocínio seria o mesmo

que acreditar que toda nação estabelecida solidamente sobre um discurso de valorização dos

seus símbolos, língua e cultura, tem uma tendência natural a se tornar um Estado fascista. Se

assim o fosse, os Estados Unidos da América deveria ser constituir o maior governo fascista

do mundo.

As teorias fascistas, que englobam muito mais do que simplesmente a ideia

nacionalista, na verdade, ao contrário do que a argumentação supracitada sugere, apoiam-se e

apropriam-se da ideia de nação para corroborar e fortalecer politicamente o poder do Estado,

entendido, então, como mais importante do que qualquer cidadão individualmente. A respeito

dessas questões, Beiner afirma que:

Há uma resposta simples e universalista que afirma que o nacionalismo

nunca foi algo exatamente correto, que qualquer ideologia cultural de

autopreservação é simplesmente e intrinsecamente reacionária, e que isso é tudo o que há pra se dizer a respeito do assunto. Mas essa resposta é tão

simples que não pode ser uma resposta de fato. Na verdade, [esse argumento,

por outro lado] parece um pouco mais esclarecedor como julgamento político, do que considerar que se toda a raça humana tivesse sido controlada

na sua conduta através da história por um profundo entendimento e aceitação

do Sermão do Monte, por exemplo, a maioria dos horrores de sua história, da

forma como aconteceram, teria sido evitada (BEINER, op. cit. p. 42)5.

O fato da nação, como comunidade imaginada, ser concebida como soberana não

implica uma relação de causalidade direta com o surgimento dos regimes fascistas. Essa

relação, como se observa no trecho acima, não se estabelece de forma tão simplória e

mecânica quanto se pode depreender de uma análise superficial do assunto. A questão da

soberania nacional evidentemente está presente no discurso nacionalista, mas não há

evidências, de fato, que levem a crer que a consolidação da ideia de nação, por si só, conduza

à criação de uma doutrina fascista.

O que os exemplos históricos sugerem é que, na verdade, essa relação é um pouco

mais complexa. No caso, por exemplo, do próprio nazismo alemão, é o Partido Nazista que se

apropria da ideia de nação germânica para desenvolver toda a sua argumentação racista e

5 Tradução livre.

Page 19: O massacre de Nanquim

18

nacionalista. O que se deve observar é que não é o processo de consolidação e formação da

nação alemã moderna, com as guerras de 1870-1871, que cria o discurso fascista na

Alemanha. Da mesma forma, não se pode acreditar, por outro lado, que tenham sido os

nazistas que criaram a ideia de nação alemã. Eles, na verdade, engenhosamente se

apropriaram do constructo nacionalista, a fim de consolidar suas ideias políticas.

De fato, a ideia de nação se mostra importantíssima não só para os governos fascistas,

mas também a qualquer país no cenário internacional. E isso porque ela pressupõe uma

profunda “imersão na cultura da nação” (SMITH, op. cit., p. 7), seja através do resgate de sua

língua vernácula, de sua história, ou mesmo de músicas e danças folclóricas que promovam a

valorização da unidade de todos os que se pretendem incluir nessa comunidade.

A compreensão do fato de que ações cometidas em favor da nação e

consequentemente do governo que a representa, devam ser vistas como heroicas, leva

necessariamente ao entendimento do papel da construção do Estado nacional no imaginário da

população, já que, como afirma Weber, “a autoridade adquirirá ‘validade’ apenas se a

orientação aos axiomas incluir ao menos o reconhecimento de que tudo a que obrigam o

indivíduo, ou a ação correspondente, constitui um modelo digno de imitação” (WEBER, op.

cit., p. 54).

Na argumentação de Benedict Anderson (op. cit., p. 202), “morrer pela pátria, a qual

não se escolhe, assume uma grandeza moral que não pode se comparar a morrer pelo Partido

Trabalhista, pela Associação Médica, ou talvez até pela Anistia Internacional, pois essas são

entidades nas quais se pode ingressar ou sair à vontade.” Nota-se, nesse argumento, que

apesar de geralmente as pessoas não escolherem sua nação, o senso de pertencimento a ela é

construído de maneira tão forte, que o serviço a seu favor se torna de grande valia para

quaisquer cidadãos.

As pessoas se reconhecem, devido aos mecanismos de construção ideológica, como

um grupo coeso6 que possui inúmeros elementos em comum. Esse sentimento individual em

relação a uma comunidade que foi construída está intimamente ligado à força que esta

exercerá sobre os seus membros e, também, até que ponto esses cidadãos estarão dispostos a

doar-se em favor dela.

6 O conceito de coesão, destacado aqui, refere-se ao argumento de que a nação é, de fato, uma comunidade

política imaginada. A harmonia das relações entre as pessoas de uma mesma sociedade está diretamente ligada à

imagem que o grupo tem de si mesmo e que cada indivíduo tem em relação ao grupo, e também, necessariamente, o que os outros membros do grupo pensam dele. Essa coesão pode ser mais forte ou mais tênue

de acordo com os mecanismos utilizados, propositalmente ou não, para a construção ideológica do grupo.

Page 20: O massacre de Nanquim

19

Toda essa engenharia no campo das mentalidades envolve a construção de discursos

que corroborem a formação da nação – entendida como Estado-nação – e que visem promover

a sua aceitação por parte daqueles que a integram. Isso implica dizer que a nação existe em

primeiro lugar no discurso, antes mesmo de se verificar na prática. E esse discurso é

fundamental, já que os movimentos nacionalistas geralmente não começam como passeatas de

protesto ou declarações abertas de resistência armada. A sua primeira fase se observa no

desenvolvimento de grupos de intelectuais que veem no desenvolvimento educacional a

melhor forma de fomentar as ideias e doutrinas nacionais (SMITH, op. cit, p. 7). Ademais,

Anderson (1989, p. 16) afirma que:

sem considerar a desigualdade e exploração que atualmente prevalecem em todas elas, a nação é sempre concebida como um companheirismo profundo

e horizontal. Em última análise, essa fraternidade é que torna possível, no

correr dos últimos dois séculos, que tantos milhões de pessoas, não só matem, mas morram voluntariamente por imaginações tão limitadas.

É interessante destacar que essa coesão grupal pode, em variados casos, levar a

população a cometer toda sorte de atrocidades tendo como premissas a autoafirmação da

nação. Esta, por sua vez, necessita invariavelmente que todo o povo, ou a esmagadora maioria

– levando em consideração que nenhum grupo pode ser completamente homogêneo – retenha

profundamente os valores desenvolvidos para a afirmação do grupo enquanto nação.

O caráter de consolidação desse discurso nacionalista nas mentalidades é, justamente,

o que a torna uma comunidade imaginada, o que não significa, contudo, nem de longe dizer

que ela não seja real e que exista única e exclusivamente no imaginário da população

envolvida. Essa característica está relacionada, na verdade, à gênese da ideia de nação, que se

dá, após ser concebida mentalmente, por meio do discurso, e um discurso na maioria das

vezes bastante inflamado.

Olhando por esse prisma, pode-se compreender melhor esse aspecto aparentemente

abstrato das nações. Muito além das ideias o nacionalismo sugere atitudes, ele “elucida os

sentimentos populares evocados pela ideia da nação; nesse discurso ideológico a nação é uma

comunidade sentida e vivida; é uma categoria de comportamento tanto quanto de imaginação;

e é uma coisa que requer dos seus membros alguns tipos de ação” (SMITH, op. cit., p. 11).7

Certamente, esse caráter abstrato é, em muitos aspectos, simplesmente ilusório. Apesar

de surgir no discurso, e por meio dele8, o Estado-nação não está circunscrito a isso. Ele é

7 Tradução livre. 8 O presente trabalho não se ocupa em discutir as implicações do poder do discurso, exaustivamente trabalhadas

por Foucault, principalmente em A ordem discurso e As palavras e as coisas. Limitamo-nos a considerar o

Page 21: O massacre de Nanquim

20

amplamente verificável na prática, seja por meio das suas instituições, seja através das suas

ações políticas, que indicam que de fato ele existe no cenário internacional. E essa existência,

como já apontado, indica algo que vai muito além de uma instituição impessoal, mas constitui

um existir acima de tudo político.

Essa argumentação não deve sugerir, todavia, que a nação seja simplesmente um

subproduto do discurso nacionalista. A relação entre esses conceitos deve ser observada como

sendo de complementaridade, já que um não vem sem o outro. Contudo, há uma via de análise

que sugere outra visão acerca da relação entre nações e nacionalismos. Isso fica claro nesse

trecho de Smith (ibid., p. 11):

Se o conceito de nação é anterior à ideologia do nacionalismo, então não se pode caracterizá-lo simplesmente como uma categoria da prática

nacionalista. Se, além disso, podem-se contemplar umas poucas nações pré-

modernas antes do advento das ideologias nacionalistas no final do século XVIII, então é necessária uma concepção da nação que seja independente da

ideologia do nacionalismo, mas que seja, entretanto, consonante a ela.9

Essa é uma das grandes questões que permeiam o estudo das nações e dos

nacionalismos. O entendimento da complementaridade entre ambas as definições traz à tona a

própria questão referente ao papel exercido pelo discurso nacionalista na construção da nação.

Se esta é realmente anterior àquele, então não se poderia dizer que a nação surge, em primeiro

lugar, no discurso. Essa é, de fato, uma questão bastante complexa e merece muita atenção.

A nação, nesses termos, aparece como sendo representativa simplesmente do grupo

populacional com características e costumes comuns. O argumento de que se podem verificar

nações antes do esforço nacionalista pela sua construção suscita um debate importante para o

entendimento do tema. As nações, e consequentemente os Estados nacionais, demandam uma

série de características para que de fato possam ser identificadas e consideradas como tal.

Sendo assim, como sugerido anteriormente, é a conjunção de vários fatores que estabelecem

uma nação, e não cada uma das características isoladamente.

Anteriormente ao século XIX não se pode falar em nações amplamente constituídas.

Esse termo seria no mínimo equivocado para se analisar a conjuntura internacional. O que se

verifica nesse período, na verdade, é a existência de reinos dinásticos, impérios e

comunidades étnicas que não podem servir como exemplos de nações, já que como argumenta

Anderson, “O governo do rei organiza tudo em torno de um centro elevado. Sua legitimidade

discurso como um fator de apresentação e convencimento de uma ideia e que possui uma série de implicações políticas. Para mais, ver Foucault (2000) e Foucault (1996). 9 Tradução livre.

Page 22: O massacre de Nanquim

21

deriva da divindade, e não das populações, que, afinal de contas, são súditos, não cidadãos”

(Anderson, op. cit., p. 28).

Esses são exemplos de comunidades que de fato desenvolvem relacionamentos entre

si, evidentemente de forma assimétrica, mas que não possuem todos os elementos necessários

para a constituição de uma nação. Utiliza-se, também para esses casos, a nomenclatura de

“nações pré-modernas” (SMITH, id.), embora esse termo possa gerar certa confusão e a ilusão

de que se pode realmente verificar a existência de nações amplamente estabelecidas já no

século XVIII.

Ilusão, porque mesmo os Estados dinásticos relativamente organizados que se

verificam no setecentos – ou mesmo, se preferir, um resgate à protogênese de alguns Estados

europeus ainda nos séculos XI e XII, como Portugal e Espanha – carecem do fator coesivo

que gera a identificação nacional, que é muito mais ampla do que os laços locais, ou mesmo

do que o simples reconhecimento de que existe um poder central. Mesmo nesses jovens

países, o que se observa é a assimilação, por parte da população, de uma identidade

majoritariamente local em detrimento de uma que se constitua nacional. Ademais:

Para muitos teóricos, nacionalismo é tanto historicamente quanto

sociologicamente anterior à nação. Se o nacionalismo é, então, produto da modernidade, então as nações não podem ser datadas anteriormente à virada

do século XVIII para o XIX; além disso, são os nacionalistas que trazem à

tona a nação, através da mobilização dos seus membros e endossando-os

com a coesão nacional (SMITH, 2009, p. 43)10

.

Ou seja, a constituição do Estado-nação se dá por meios muito mais complexos e que

vão muito além do reconhecimento de um poder político constituído. O fato de haver um

governo central regendo e normatizando as ações no interior de um dado espaço territorial

específico, não significa necessariamente que essa autoridade seja representativa de uma

nação.

O nacionalismo, portanto, é anterior à nação. Isso, contudo, não significa que esse

discurso tenha surgido espontaneamente. As ideias nacionalistas aparecem quando se verifica

o Estado organizado, já que “a questão do nacionalismo não surge quando não há Estado”

(GELLNER, op. cit., p. 5). Então, se o nacionalismo é anterior à nação, o Estado é anterior ao

nacionalismo. Daí a razão de não se poder falar em nação antes do final do século XVIII, haja

vista que o discurso da nação, o nacionalismo, só se desenvolve efetivamente a partir desse

período.

10 Tradução livre.

Page 23: O massacre de Nanquim

22

Mas, para se compreender a nação como um objeto recente na história, constituído

sobretudo a partir do advento da modernidade, é preciso que se faça uma distinção entre as

formas de sociedade pré-industrial e pós-industrial. Anthony Smith afirma que para

compreender a ocorrência de “ambos, a recente prevalência da nação e sua ausência no

período pré-moderno, é necessário correlacionar grandes diferenças entre a civilização

industrial moderna e seus predecessores agrários” (SMITH, 1993, p. 9).

A coerência desse argumento se percebe no desenvolvimento histórico do próprio

conceito de Estado-nação. Antes do período que Gellner (op. cit., p. 5 et. seq.) chama de

estágio agrário, a figura do Estado não era sequer uma opção, portanto, não existia. No estágio

agrário, o autor mostra que o Estado passou a ser uma possibilidade. Entretanto, na fase pós-

agrária, industrial, não havia opção, o Estado tinha que existir. Se de fato não há nação antes

do Estado, então a nação também só surge a partir do período industrial, fundamentalmente o

final do século XVIII e início do XIX.

A legitimação da nação, além dos aspectos políticos e institucionais, se dá através do

reconhecimento, por parte da população, da cultura e ancestralidade comuns a todos. Essa

familiaridade se relaciona diretamente à capacidade do referido governo de gerar e gerir os

meios necessários a essa familiarização. Nessa linha de raciocínio, Hobsbawm afirma que:

na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade

bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas

que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória

(HOBSBAWM, 1984, p. 10).

Sendo assim, nota-se que os mecanismos utilizados pelas lideranças a fim de que a

população atribua legitimidade em relação à nação que se pretende construir, podem até

mesmo constituir tradições inventadas efetivamente com esse fim. Mas essas tradições devem

impreterivelmente possuir algum significado para os indivíduos, pois o que está em jogo são

as próprias heranças históricas e sociais as quais se pretende resgatar, inventar ou

supervalorizar.

Cabe salientar, ainda, que o termo invenção deve ser visto com muita cautela, já que

não indica, em última análise, a criação infundada de um ou mais objetos folclóricos. A

invenção se dá sobre as bases culturais preexistentes, e sua força provém não do objeto em si,

mas do que se pretender estabelecer através dele. As tradições aparecem como sendo

invariáveis e corroborantes da instituição – nesse caso, a nação – que se busca afirmar.

Page 24: O massacre de Nanquim

23

As tradições assumem um caráter de ampla importância nesse sistema, haja vista que

são elas que fornecem o caráter de legitimidade às próprias lideranças, e isso se verifica no

sentido prático de que quanto mais bem estabelecidas e rígidas forem as tradições, tanto mais

poder possuem os grupos no governantes. De fato, pode-se notar na argumentação de Weber,

que:

A legitimidade da autoridade mais antiga e mais universalmente mantida baseia-se no caráter sagrado da tradição. O temor de penalidades mágicas

fortalece as inibições psicológicas a respeito das mudanças nos modos

costumeiros de conduta. Ao mesmo tempo, um sistema de autoridade continua válido por causa dos muitos interesses empenhados que se

levantam com respeito à sua perpetuação (WEBER, op. cit., p. 63-64).

As relações de poder baseadas na tradição constituem um elemento de extrema

importância na compreensão da formação dos Estados nacionais. Na verdade, o poder

atribuído ao governo como representante máximo dos anseios nacionais é o que, em linhas

gerais, constitui a própria legitimidade do Estado-nação enquanto instituição.

O que se entende por tradição (e nesse contexto também as tradições inventadas) se

refere a categorias inflexíveis de ação social, bem como de rituais, que seriam, por seu turno,

vistos como as mais altas expressões da cultura da nação. O próprio Hobsbawm faz uma

alusão que deixa bem claro o sentido de tradição:

A “tradição”, neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O objetivo e a característica das

“tradições”, inclusive das inventadas, é a invariabilidade [...] O costume não

pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim, nem mesmo

nas sociedades tradicionais [...] O “costume” é o que fazem os juízes; “tradição” (no caso, tradição inventada) é a peruca, a toga e outros

acessórios e rituais formais que cercam a substância, que é a ação do

magistrado. A decadência do “costume” inevitavelmente modifica a “tradição”, a qual ele geralmente está associado. (HOBSBAWM, op. cit., p.

10)

Pode-se dizer, a partir dessa perspectiva, que as tradições inventadas não necessitam

possuir um caráter de aplicabilidade prática, essa característica é delegada ao que o autor

chama de costume. Esse, por sua vez, pode ser entendido, numa primeira análise, como a

tradição sendo colocada em prática. Já a tradição possui um caráter figuracional que

representa os anseios daqueles que pretendem viabilizar e estabelecer uma relação de poder.

Nesses termos, no processo de construção simbólica da nação, as tradições assumem a

função de criar e consolidar o poder do Estado-nação, e consequentemente do governo por

trás dele. E isso pela atitude peculiar da população em relação à nação, estabelecida pelos

aspectos da tradição nacional. Esse tipo de relação se explica, nas palavras de Weber, por ser

“[...] simplesmente uma reação amortecida – quase automática – a estímulos rotineiros que

Page 25: O massacre de Nanquim

24

tem conduzido a ação, repetidamente, ao longo de um curso rotineiro. A maior parte de todos

os deveres cotidianos desempenhados habitualmente pelas pessoas todos os dias é deste tipo”

(WEBER, op. cit., p. 42).

Esse é o tipo de relação que produz a confiança no caráter representativo da nação. Os

símbolos da tradição adquirem a função de atribuir naturalidade à filiação ao Estado-nação, já

que são eles que produzem a identificação entre os membros da nação. Todo esse esforço

construtivo ganha corpo quando aliado à instituição estatal.

Toda essa argumentação faz necessário, a essa altura, um rápido resgate da distinção,

feita anteriormente, entre duas coisas que se confundem quando se fala em Estado-nação, o

Estado e a Nação. Sendo assim, dizer que os mecanismos relacionados à tradição provocam

devoção, por assim dizer, e uma sensação de naturalidade em relação ao Estado nacional, não

significa que o mesmo necessariamente se verifique sempre em relação ao governo estatal.

A repetição das condutas tradicionais e dos costumes possui valor, porque é

considerada perpetuadora da própria nação, e não porque representa o governo em si. A

história contemporânea está repleta de exemplos de críticas e ações contra os governos

nacionais, entretanto, não há razões que levem a crer que possa surgir um movimento anti-

nação. A história do século XX mostra que mesmo quando há luta no interior de um Estado

nacional, observa-se que ela se pauta pelo anseio do reconhecimento e/ou diferenciação e

divisão de duas ou mais nações que dividem o mesmo território. Essas lutas, em última

análise não possuem um caráter de extinção da ideia de nação.

Isso se deve, evidentemente, à engenharia simbólica empregada na construção das

nações. E se todo esse complexo de relações e atitudes acontecem devido ao esforço exercido

no sentido da absorção da ideia de nação, então, ela realmente só pôde ser concebida depois

do surgimento e consolidação do próprio nacionalismo.

Mas há várias formas práticas de se verificar a consolidação das nações. Em relação

aos grupos cuja coesão social foi fortemente estabelecida culturalmente, Anderson (op. cit., p.

19-20) afirma que “se é amplamente reconhecido que os Estados-nação são ‘novos’ e

‘históricos’ as nações a que eles dão expressão política assomam de um passado imemorial e,

ainda mais importante, deslizam para um futuro ilimitado. A mágica do nacionalismo consiste

em transformar o acaso em destino.”

Sendo assim, nota-se claramente a argumentação do autor de que, de fato, os Estados-

nação constituem uma forma política relativamente nova e historicamente datada. O que não

indica, todavia, que o contingente populacional que o compõe tenha, também, sido criado no

Page 26: O massacre de Nanquim

25

escopo de organização da nação. Na verdade, se a organização política e territorial é, de fato,

recente, na maioria das vezes o povo o qual se pretende fazer representar possui raízes

histórico-culturais bastante antigas. Nas palavras de Anthony Smith:

Num senso puramente conceitual, as nações devem ter precedência, assim

como o nacionalismo, com a busca pela autonomia, unidade e identidade da

comunidade cultural histórica e territorializada, pressupõe a ideia de nação. Mais importante, a maioria das nações da Europa Oriental e da Ásia foram

criadas em torno de etnias preexistentes [...] Os símbolos, memórias,

tradições e mitos dessas etnias dominantes proveram esses novos Estados nacionais da sua cultura pública, seus códigos simbólicos e repertórios, e

muitos dos seus costumes e leis (op. cit., p. 44)11

.

É importante notar que o conceito que vem sendo trabalho, como dito, engloba não só

as questões institucionais ou étnicas, mas ambas. E isso implica um amplo espectro de

atuação dessa entidade/comunidade, pois ao mesmo tempo em que se afirma socialmente

através das ideias, existindo em primeiro lugar na mentalidade dos seus membros, ela também

conta com os meios práticos que concretizam e, de certa forma, legitimam essa existência.

Pensar a nação, como citado, implica, antes de qualquer coisa, elaborar um discurso

que a apresente à coletividade, a fim de mostrar como esse Estado-nação que se pretende

afirmar é importante para todos os que fazem parte dele. Isso demanda o desenvolvimento de

teorias da nação, bem como o protagonismo de um grupo na consolidação dessa dita

comunidade/instituição. A forma através da qual ela é sentida e percebida pelos cidadãos está

intimamente ligada a esse discurso em prol da nação – discurso nacionalista – que surge e se

intensifica justamente com o intuito de estabelecer laços entre essa entidade aparentemente

abstrata e todos aqueles os quais pretensamente se deseja incluir nela.

O discurso nacionalista se desenvolve par e passo com os símbolos e outros elementos

que permeiam a busca pela originalidade da nação, tendo em vista que o nacionalismo, como

movimento sociopolítico atribui ênfase às suas construções e representações culturais. Sendo

assim, o senso nacionalista serve para conectar os setores mais ativos e organizados da

sociedade àqueles que carecem dessa coesão nacional.

E isso se torna de extrema importância na medida em que existe o anseio, por parte do

grupo considerado na vanguarda do movimento nacionalista, de provocar a participação e

integração no processo, da ampla camada populacional que aparentemente nada teria a ver

com esse dito grupo. Mas, dizer que existe uma aparente lacuna de reconhecimento entre a

população e a nação é uma afirmação bastante delicada, já que a nação não existe, senão por

meio do próprio povo.

11 Tradução livre.

Page 27: O massacre de Nanquim

26

É necessário que se compreenda que, em se tratando da gênese de uma mentalidade

que conecte uma série de pessoas a ponto de torná-las igualmente integrantes de uma nação,

não se pode considerar que todos possuam igualmente o mesmo senso nacional, por assim

dizer. Durante o século XIX, que, como já citado, pode ser considerado o período de

recrudescimento das doutrinas nacionalistas, nota-se, de fato, um esforço bastante

significativo dos governos, principalmente europeus, mas também se pode citar o governo

japonês a partir de 1868, de incluir toda a camada populacional do país na ideia de nação e,

por conseguinte, no Estado nacional.

No caso japonês, por exemplo, a restauração Meiji possui um papel fundamental de

protagonismo no processo de construção e consolidação da nação japonesa. Vale lembrar que

no período anterior a esse processo, não havia a ideia de nação consolidada entre a população

japonesa, o que se começou a notar a partir da década de 1870. Surge o Estado japonês

moderno e daí surge a ideia do nacionalismo nipônico. Nesse caso, o alto escalão do governo

agiu diretamente como o grupo diretor do processo, resgatando ou criando símbolos e valores

que possuíssem significação popular, a fim de consolidar nas mentalidades a nação japonesa

moderna.

Através desse cenário, se observa que pelo menos durante o processo de formação e

afirmação do Estado nacional não se pode verificar a coesão nacional que se espera, já que

apesar de todos estarem no mesmo território do Estado, não existe ainda a absorção dos

valores que proporcionam a unidade da população. Ou seja, não há nação antes do discurso

nacionalista. Pode haver o Estado, ou até mesmo uma comunidade étnica bem definida,

entretanto, a nação só ocorre quando há, de fato, o esforço no sentido da sua construção.

A nação dos nacionalistas aparece como uma iniciativa de conscientização da unidade

cultural e da peculiaridade da história nacional. Através disso, os nacionalistas promovem

uma devoção ao cultivo da individualidade nacional, tudo isso através da educação e das

instituições. Smith afirma que:

A cultura nacional demanda uma expressão pública e acaba gerando um simbolismo político. O retorno a uma história autêntica e a uma cultura

vernácula adquire uma forma pública e se torna politizada. A nação cultural

tende a tornar-se a nação política, com uma cultura pública nos moldes e

medidas da sociedade e da política. A nação é, portanto, caracterizada pela ‘cultura política’, com um papel político distinto, suas instituições e seus

símbolos distintos – bandeiras hinos, festivais, cerimônias e coisas do tipo

(SMITH, op. cit., p. 37).

É extremamente necessário que a nação seja mostrada como essa entidade a qual todos

se identificam. Ela é maior do que qualquer indivíduo, mas ao mesmo tempo se apresenta de

Page 28: O massacre de Nanquim

27

uma forma tão real e palpável através dos mecanismos culturais, que evoca o sentimento de

que todos devem e precisam defender a sua manutenção. Em linhas gerais a grande ideia

nacional seria amar a nação, observar as leis e defender o território.

Esses mecanismos de construção simbólica agem no sentido de resgatar raízes

culturais comuns e inerentes à nação, que gerem familiaridade entre todos. O grupo na

vanguarda desse processo – normalmente o governo – necessita resgatar valores que façam

sentido para a população. Não se trata simplesmente de inventar a esmo toda uma gama de

símbolos e rituais, já que até mesmo as tradições necessitam de legitimidade para que possam

constituir-se na prática.

Quando se fala em comunidades políticas imaginadas, não se trata de meras invenções

puramente abstratas sem conexão com a vida prática. Na verdade, quando se observa, por

exemplo, a Ásia e a Europa Oriental, nota-se, como já dito, que a maioria das nações nessas

regiões surgiram em torno de comunidades étnicas pré-existentes, nas quais se forma um

verdadeiro culto da autenticidade dos elementos da nação. Acompanhando a argumentação de

Anthony Smith, as nações:

[...] por mais problemáticas que sejam, [devem ser vistas] como

“comunidades reais” com seus próprios direitos, e algo mais do que puramente formações discursivas. A nação não é apenas “falada”, ela é

sentida, desejada, consumida e reencenada simbolicamente em diversas

ocasiões. Embora o conceito de nação possa ser visto como um elevado nível

de abstração, os seus símbolos, o seu imaginário e seus rituais convencionam um senso de tamanha proximidade entre seus membros, que chegam ao

ponto de exigir deles o sacrifício extremo. (SMITH, op. cit. p. 43).12

A nação não é simplesmente um constructo imaginário saído da mente de um gênio.

Há muito mais casos de nações formadas sobre bases étnicas já estabelecidas. Sendo assim, é

necessário retomar a importância dos intelectuais e dos profissionais que atuam no sentido de

construir a nação na prática, o que corrobora a ideia de que o esforço nacionalista aparece

antes da nação, e de que a valorização do sistema educacional é fundamental no sentido de

organizar e estabelecer a nação.

Seria um erro, portanto, considerar que esses intelectuais e profissionais simplesmente

imaginem a comunidade nacional, ou inventem tradições nacionais de forma indiscriminada,

como se fosse ex nihilo13

. Ademais, Geary afirma que, de fato, “acadêmicos, políticos e

poetas do século XIX não inventaram o passado do nada. Eles se basearam em tradições,

12 Tradução livre. 13 Essa expressão em latim indica a ideia de “fazer a partir de nada preexistente”.

Page 29: O massacre de Nanquim

28

fontes escritas, lendas e crenças preexistentes, mesmo que as tenham usados de novas

maneiras para forjar unidade ou autonomia política” (GEARY, 2005, p. 29).

A nação exerce influência na vida das pessoas de uma forma tão gigantesca que acaba

se tornando uma parte naturalmente constituinte de sua vida. E isso se torna ainda mais latente

quando se trata de grupos que já estavam constituídos previamente. Os membros da nação se

sentem tão naturalmente parte dela, que é como se sempre tivesse sido assim, ou seja, como se

esse tipo de organização política e simbólica sempre pudesse ter sido verificada ao longo da

história.

Evidentemente, como procuramos mostrar anteriormente, pensar a nação como sempre

tendo existido é uma visão bastante equivocada em termos de análise, já que como afirma

Ernest Gellner, “de fato, nações, assim como os Estados, são contingenciais, e não

necessidades universais. Nem nações e nem Estados sempre existiram em todos os tempos e

circunstâncias. E, ainda, eles não são a mesma contingência” (GELLNER, 2008, p. 6)14

. Além

do mais, Smith corrobora essa visão, afirmando que

qualquer suposição a respeito da universalidade das nações ou dos nacionalismos só podem ser atribuídos à retenção de crenças e ideais

nacionalistas dentro das próprias comunidades eruditas, crenças e ideais que

são profundamente enganosas para análise e explicação, e talvez também

para ação política (SMITH, 1993, p. 9).

Não se pode considerar que todos os povos ao longo dos tempos formassem

organizações sociais no formato da nação. De fato, há incontável formas de organização

sociopolítica que não a nação. Nesse sentido se torna até um equívoco analítico considerar

que já houvesse nações antes mesmo do esforço nesse sentido.

Entretanto, a fim de ilustrar o sentimento provocado pela construção social da ideia de

nação para os indivíduos, essa lógica se encaixa perfeitamente. O indivíduo que se considera

membro desse grupo, passa a reproduzir, não apenas simbolicamente, mas efetivamente nas

atitudes cotidianas, os valores da sua respectiva nação. A absorção dos valores se faz de forma

tão sólida que provoca naturalidade à filiação nacional.

Esse poder exercido pelo estabelecimento da nação, analisado historicamente, pode ser

compreendido levando-se em conta que numa conjuntura internacional de rivalidades e da

busca pela afirmação de interesses políticos, “os homens ainda não conseguiram conceber

uma forma prática que transcenda o Estado-nação” (BEINER, op. cit., p. 34). Ou seja, a

instituição estatal, é vista, segundo essa visão, ainda como a melhor forma prática de

14 Tradução livre.

Page 30: O massacre de Nanquim

29

organização política moderna. E, nessa análise, pode ser que o modelo nacional venha a ser

sobrepujado, ou não.

Mas, se na prática é assim que ocorre, isso não significa dizer, em última análise, que

os homens não consigam imaginar outras formas de organização política. Segundo a

argumentação de Ernest Gellner, “embora o homem moderno tenda a valorizar o Estado

centralizado (e mais especificamente, o Estado nacional centralizado), ele é capaz, com

relativamente pouco esforço, de imaginar uma situação social na qual o Estado está ausente”

(GELLNER, op. cit., p. 5). Esse é o caso das tribos, por exemplo, que não podem ser

consideradas, evidentemente, Estados nacionais.

Quando se afirma que os homens ainda não conceberam uma forma melhor de

organização política além do Estado-nação, obviamente referimo-nos ao homem ocidental

moderno, herdeiro da Revolução Francesa. Contudo, no caso dos povos orientais essa

concepção acabou por se tornar também uma demanda, na medida em que passaram a

estabelecer um contato mais próximo com o ocidente. Um contato, que a partir

fundamentalmente do final do século XIX, passaria não mais a ser unilateral, mas constituiria

um relacionamento (no caso japonês principalmente) em que ambos procurariam estabelecer

seus interesses.

Essa troca de experiências mostrou aos orientais que seria necessário que absorvessem

alguns valores do ocidente para que pudessem se contrapor às ambições dos países europeus.

Isso fica ainda mais latente no caso dos nipônicos, que através da restauração Meiji

procuraram estabelecer um Estado-nação, ainda que aos moldes orientais, para rivalizar com a

presença dos ocidentais no sudeste asiático, e mesmo para que o Japão não se tornasse, assim

como a China, uma quase colônia ocidental.

O nacionalismo surge onde o Estado é presente e/ou onde há mecanismos que

funcionem como reguladores da vida social. É interessante que os mecanismos simbólicos

envolvidos na construção do pertencimento à nação, que funcionam sobretudo através do

discurso nacionalista, proporcionam um cenário no qual se torna praticamente impensável não

ser membro de uma nação.

A esse respeito, vale a pena observar a argumentação de Beiner de que “a geopolítica

no século XX é ainda conduzida no nível dos Estados-nação e eles (obviamente com poder

desigual) são os personagens principais nesse drama. Se você não gostar do seu Estado-nação,

o plano alternativo na política (senão individualmente) é criar um novo” (BEINER, op. cit. p.

Page 31: O massacre de Nanquim

30

34). Normalmente na política não há a opção de ser apátrida. Ou o indivíduo é membro de

uma nação, ou ele é membro de uma nação.

E isso é, de fato, uma regra com raríssimas exceções. Cabe ressaltar, como destaca o

autor, os casos da Índia-Paquistão-Bangladesh e do Canadá-Quebéc, por exemplo. Ambas são

situações nas quais o descontentamento com os rumos tomados pelo Estado-nação original,

por assim dizer, se tornaram incongruentes com os anseios de ampla parcela populacional,

que ao invés de preferir tornar-se livre do Estado nacional, optou por formar uma nova

instituição política organizacional, só que mantendo os mesmos moldes estruturais.

Esses mecanismos podem ser entendidos partindo-se das raízes culturais da formação

do Estado-nação. Os valores culturais exercem influência no sentido de homogeneizar as

atitudes dos indivíduos em relação a essa entidade abstrata – a nação – que se estabelece na

prática. Homogeneidade, logicamente entendida dentro das suas limitações, num contexto

amplo em que se observa que mesmo apesar dos esforços no sentido de construí-la, ela não é

alcançada na sua plenitude.

A cultura nacional, empregada nesse esforço, oferece em grande medida o substrato

sobre o qual se estabelece a nação. E isso significa que é essa cultura que definirá qual será a

postura do Estado nacional constituído, em relação aos diversos assuntos pertinentes. Os

valores culturais aparecem quase como balizas valorativas que permeiam as atitudes dos

indivíduos membros da nação. Dessa forma, as nações “[...] são caracterizadas por um grau de

unidade e distinção cultural, que, em contrapartida, adquire muito da sua potência e

durabilidade de uma convicção de solidariedade étnica” (SMITH, op. cit. p. 45).15

A unidade cultural, nesse contexto, se torna condição sine qua non para a manutenção

política da nação. Segundo Gellner (op. cit. p. 54) “as culturas parecem ser os repositórios

naturais da legitimidade política”. Nesses termos, o nacionalismo, como movimento

sociopolítico atribui um papel de destaque às suas construções e representações culturais, que,

por sua vez, contribuem diretamente para o esforço nacionalista.

A cultura deve ser vista como uma parte fundamental da constituição da nação, já que

é o conjunto cultural o que provoca o senso de reconhecimento entre os membros da nação.

Na verdade, nesse caso não se deve observar a cultura num sentido antropológico, mas atentar

ao que a cultura faz. Deve-se levar em consideração quais são os impactos sociais gerados

pela difusão e absorção de uns ou outros valores culturais.

15 Tradução livre.

Page 32: O massacre de Nanquim

31

Não basta a institucionalização econômica do Estado para gerar o reconhecimento e o

senso de pertencimento à nação. O fator de unidade cultural vai além da solidariedade

estabelecida por parcerias ou até mercados regionais de caráter geográfico ou político-

administrativo, pois como afirma Anderson (op. cit., p. 63) esses mercados “‘naturais’ [...] ,

por si sós, não criam lealdades. Quem estaria disposto a morrer pelo Comecon ou pela CEE?”.

Não pretendemos indicar, com esse argumento, que o interesse econômico não produza

laços efetivos de relacionamento e reconhecimento. Pretendemos sugerir, por outro lado, que o

senso nacionalista vai muito além do interesse econômico, já que, de fato, ninguém em sã

consciência se disporia a dar a vida em sacrifício em favor de um bloco econômico, mas isso se

verifica em larga escala quando o assunto é a nação.

Sendo assim, os desdobramentos sociais gerados pelos valores culturais de uma

determinada nação possuirão influência direta na forma através da qual a nação se constituirá.

Os costumes e as leis servem não só para criar a unidade nacional, mas também para provocar

uma diferenciação em relação aos povos além das fronteiras. Isso se torna claro na

argumentação de Beiner, de que:

Qualquer sociedade [...] prefere os seus próprios costumes aos de outras

sociedades. De fato, possuir costumes que se prefere àqueles de outras

sociedades é o que, de um ponto de vista cultural, determina o ser uma

nação. Qualquer sociedade está disposta a lutar se a necessidade surgir, ou se houver o senso de que há pelo menos alguma chance de sucesso, pelas

cinzas de seus pais e pelo altar dos seus deuses (BEINER, op. cit., p. 36).16

A questão da unidade cultural produz um esquema social no qual cada indivíduo se

considera parte integrante e importante do grupo ao qual pertence, e isso se faz observando-

se, fundamentalmente, que há muitos que não fazem parte do grupo. Surge a ideia de que a

nossa comunidade é preferível à de outros, e por isso, somos orgulhosos por fazer parte dela.

Além disso, Smith afirma que “o cultivo de simbologias pressupõe o surgimento de uma

classe especialista de comunicadores com talento para selecionar, interpretar elementos da

herança comum a novas situações” (SMITH, op. cit., p. 49).

Sendo assim, é necessário saber, de fato, quem faz parte do grupo. Gellner (op. cit., p.

6-7) argumenta que duas pessoas só podem ser consideradas da mesma nação se possuírem a

mesma cultura, e essa entendida como um sistema de ideias, crenças, símbolos, modos de agir

e se comunicar. Mas não é só isso. A resolução de quem faz ou não parte do grupo perpassa a

ideia de reconhecimento por parte dos outros membros da nação. Ou seja, o indivíduo

16 Tradução livre.

Page 33: O massacre de Nanquim

32

necessita se considerar parte da comunidade e deve, da mesma forma, ser assim considerado

pelos outros.

O nacionalismo, nesse sentido, se torna muito parecido esteticamente com o discurso

religioso. A entidade sagrada do nacionalismo é a própria nação, que tem atribuídos a si um

senso de naturalização e inquestionabilidade, que acabam por provocar uma atitude rígida e,

em grande medida, engessada da população em relação à questão nacional. Atitude essa que

torna impensável não se devotar às causas da nação.

Isso ocorre, levando em conta que o nacionalismo, segundo a análise de Smith, “[...]é

muito mais do que uma ideologia política, ele é tanto uma forma de cultura quanto uma

‘religião’. Essa linha de raciocínio focaliza no ponto principal do nacionalismo, a ‘nação’” (p.

36). E, nesses termos, esse objeto central se torna, em determinados cenários uma instituição

sagrada.

O valor simbólico de cada aspecto cultural se faz sentir na medida em que proporciona

atitudes em favor da nação. Essa engenharia mental ganha corpo no sentido de produzir

símbolos que serão absorvidos pela população, sempre em vias de engrandecer o Estado

nacional. Nas palavras de Smith,

Sociologicamente falando, isso significa que as nações, por definição, são

repetidamente formadas e reformadas nas bases de processos simbólicos de

etnogênese, como nos casos da criação dos nomes, definição das fronteiras, mitos de origem e cultivo de simbolismos. Mas apenas em parte. Esses

processos, por si sós, não fazem uma nação; por isso, outros processos

políticos e sociais são necessários (SMITH, op. cit., p. 49).17

A cultura – e aqui também subentendidos a tradição e os costumes – representa o

campo prático do estabelecimento das nações. Isso porque é ela, entendida sociologicamente,

como apontado anteriormente, que estabelece os parâmetros que serão seguidos pelos

membros da comunidade política imaginada da nação. Sendo assim, é fundamental atentar

não para cada aspecto da cultura isoladamente, mas perceber quais mecanismos são

engendrados pela complexidade cultural.

Da mesma forma, vale salientar que a ocorrência desses aspectos, ainda que todos eles

juntos, mas desprovida de uma série de outros fatores políticos, bem como um espaço

territorial definido (ou que se pretende definir) e a preexistência de um Estado, não são

suficientes para o estabelecimento de uma nação. É necessária, como procuramos mostrar, a

conjunção de todos esses fatores para que se possa falar em nação.

17 Tradução livre.

Page 34: O massacre de Nanquim

33

A comoção popular e o senso de familiaridade e proximidade entre os membros do

Estado-nação, nessa linha de raciocínio, se estabelece de forma muito mais complexa e

fortalecida do que por simples interesse particular ou anseio por algum tipo de vantagem

política ou econômica individual.

A noção de bem-estar da nação se torna quase que um consenso entre todos.

Simbolicamente, a nação é construída e apresentada à população como representante de tudo

o que há de melhor em cada indivíduo. Nesse contexto as manifestações, ritos e locais

folclóricos possuem um papel de destaque, tendo em vista que eles representam uma parte

considerável do que é a nação colocada na prática.

E isso se deve aos mecanismos que são gerados pela cultura, já que “o objetivo dessa

indústria cultural seria empregar história e arqueologia, filologia e antropologia, bem como as

artes, não apenas para servir de aparência às pessoas, mas para autenticar a nação, para revelar

sua verdadeira essência e sua natureza pura” (SMITH, ibid., p. 56).

Os indivíduos passam a absorver esses valores culturais e a reconhecer as

manifestações folclóricas nacionais como sendo realmente representativas daquilo que é a

nação. Isso se torna nitidamente verificável quando se trata de monumentos e/ou rituais que

pretendem resgatar uma história ou tradição nacional. Eles possuem efetivamente um respaldo

popular que por si só já seria suficiente para garantir a sua existência.

Isso porque, como buscamos apontar, o aspecto cultural mais relevante, do ponto de

vista dos grupos de vanguarda na construção do Estado-nação, é justamente o cenário que o

conjunto cultural é capaz de proporcionar. Dessa forma, não basta erigir grandes monumentos

em prol da afirmação de uma tradição ou uma história nacional, se eles, na prática, não forem

capazes de promover e evocar os mais variados e intensos sentimentos populares em favor da

nação.

Quanto ao caráter de sacralidade que a nação acaba por assumir para os cidadãos,

pode-se dizer que o Estado nacional se torna, em grande medida, herdeiro do pensamento

religioso. Se é verdade que a nação assume um papel quase que sagrado para os que a

integram, então seria correto afirmar que a vida de cada indivíduo só faz sentido quando

direcionada em favor da nação.

Nesse sentido, o papel da língua nacional é um aspecto que também se destaca

sobremaneira na construção do Estado-nação, já que a linguagem representa, ela mesma, um

fator de coesão nacional. A língua e os símbolos nacionais exercem papel preponderante na

Page 35: O massacre de Nanquim

34

constituição da nação. A análise de cada símbolo constituído é fundamental devido à

abrangência do seu objeto, a nação.

É preciso notar, ainda, que se o uso de uma linguagem universal foi crucial para a

manutenção de uma força transnacional das comunidades religiosas, ou seja, se o fator

coesivo representado pela linguagem representou destacado papel no estabelecimento dessas

comunidades, por outro lado, o enfraquecimento do poder dessa língua (latim, por exemplo)

representou uma grande fragmentação, territorialização e pluralização dessas comunidades

religiosas imaginadas.

Da mesma forma, o fortalecimento de línguas que se pretendem nacionais viabiliza a

afirmação dos Estados nacionais. E já que os símbolos religiosos e dinásticos são capazes de

provocar uma coesão muito bem estabelecida, então o enfraquecimento desses tipos de poder

abre caminho para que outras comunidades imaginadas se estabeleçam como representantes

da coesão social e como guardiãs da tradição popular.

Entretanto, esse é um argumento que precisa ser bem entendido, para que não sirva a

um entendimento errôneo. As nações não se estabelecem estritamente onde o discurso

religioso se encontra enfraquecido. Muito pelo contrário. Anderson afirma que:

Seria uma visão acanhada [...] pensar que as comunidades imaginadas das

nações simplesmente tenham brotado das comunidades religiosas e dos

reinos dinásticos e tomado seu lugar. Por trás da decadência das comunidades, línguas e linhagens sagradas, tinha lugar uma mudança

fundamental nos modos de apreender o mundo, que, mais do que qualquer

outra coisa, tornou possível "pensar" a nação (ANDERSON, op. cit., p. 31).

Sendo assim, mais uma vez se trona clara a necessidade da conjunção de uma gama

muito mais complexa de fatores para que se estabeleça a nação. Os fatores de ordem política,

simbólica, cultural, folclórica, histórica, e por aí adiante, são igualmente necessários e

importantes na composição das comunidades imaginadas das nações. A língua nacional

aparece, assim, como facilitadora do processo de construção da autoimagem nacional.

O surgimento dos estados nacionais e a necessidade do fortalecimento das línguas

nacionais na Europa, por exemplo, colocaram em pé de igualdade as línguas desses diferentes

países no âmbito internacional, tendo em vista que havia, nesse ínterim, a necessidade de

comunicação e interação entre esses países. Isso se comprova pelo surgimento dos dicionários

monolíngues e bilíngues, que aproximavam e relacionavam esses conjuntos simbólicos das

nações.

É interessante notar que o fortalecimento dos Estados-nação provocava uma via de mão

dupla, na medida em que, se existia, por um lado, a necessidade do fortalecimento interno dos

valores nacionais, por outro lado isso se fazia normalmente num esquema de nós em

Page 36: O massacre de Nanquim

35

contraposição a eles. Sendo assim, não basta que seja estabelecido todo o constructo cultural que

dá embasamento à manutenção da nação, é necessário também que surjam nesse contexto fatores

externos que justifiquem a autoafirmação do grupo nacional.

Não basta, então, apenas o reconhecimento de quais são os membros da comunidade

nacional. É necessário, também, que estabeleça uma diferenciação em relação aos que estão

de fora dessa nação. Nota-se, na argumentação de Weber, a importância da contraposição a

outro grupo que esteja de fora do cenário social gerado pela nação:

É apenas com o surgimento de diferenças conscientes, em relação a

terceiros, que o fato de dois indivíduos falarem a mesma língua e

compartilharem de uma situação comum pode levá-los a experimentar um sentimento de comunidade e a criar modos de organização conscientemente

baseados na participação de uma língua comum (WEBER, op. cit., p. 74).

Já que a nossa nação e os nossos costumes são, para nós, melhores do que os dos

outros, naturalmente nós constituímos um grupo muito bem estabelecido, o que faz com que

as outras comunidades sejam simplesmente os outros. Nas palavras de Norbert Elias “a

complementaridade entre o carisma grupal (do próprio grupo) e a desonra grupal (dos outros)

é um dos aspectos mais significativos do tipo de relação estabelecidos-outsiders” (ELIAS, op.

cit., p. 23).

Essa postura dos membros de uma mesma nação que conta com uma autoimagem de

grupo coeso provoca uma atitude de supervalorização dos seus valores em detrimento dos

valores de outras nações. Isso indica que a noção de que os valores e crenças nacionais

funcionam para o indivíduo como balizadores do seu relacionamento com os outros membros

da nação, gera, por outro lado, uma reação um tanto depreciativa em relação aos valores de

outras nações. A análise de Elias (2000, p. 23) ajuda a compreender esse processo:

Há uma tendência a se discutir o problema da estigmatização social como se ele fosse uma simples questão de pessoas que demonstram, individualmente,

um desapreço acentuado por outras pessoas como indivíduos [...].

Entretanto, isso equivale a discernir apenas no plano individual algo que não

pode ser entendido sem que se o perceba, ao mesmo tempo, no nível do grupo [...]. Portanto, perde-se a chave do problema que costuma ser

discutido em categorias como a de “preconceito social” quando ela é

exclusivamente buscada na estrutura de personalidade dos indivíduos. Ela só pode ser encontrada ao se considerar a figuração formada pelos dois grupos

implicados ou, em outras palavras, a natureza de sua interdependência.

As relações de poder entre os grupos nacionais gera uma atmosfera de rivalidade entre

eles. Sendo assim, a própria construção simbólica dessas comunidades políticas imaginadas

oferece o escopo de observação para a análise desse fenômeno. A contraposição aos membros

de outras comunidades acontece na medida em que há sobreposição dos valores culturais das

nações envolvidas, no sentido de perceber no outro tudo o que não se deseja ser.

Page 37: O massacre de Nanquim

36

Sob esse prisma, o fato de os nossos valores serem preferíveis aos dos outros provoca

cada vez mais o fortalecimento interno do próprio grupo, influenciando, ainda, na absorção da

cultura nacional como sendo natural e perfeitamente aceitável. A nação construída pelos

nacionalistas aparece como sendo portadora da cultura e história ancestral da população em

questão e, assim, torna-se realmente digna do esforço em seu favor.

Esse é um processo que, como dito, não deve ser encarado como natural, ou analisado

simplesmente no plano individual. Os processos de estigmatização do outro perpassam

questões que vão muito além do relacionamento individual entre as pessoas, eles são, na

verdade, categorias das relações sociais coletivas que provocam a rotulação, não de um

indivíduo isoladamente, mas de todo um povo em relação a outro. Isso quer dizer que a

imagem que é criada não diz respeito somente a essa ou aquela pessoa, mas a todos os

membros da comunidade.

A explicação para esse processo passa pelo entendimento da complexidade do

relacionamento entre os dois ou mais grupos envolvidos, ou seja, além do esquema de

construção de cada uma das nações envolvidas, é fundamental que se observe o

desenvolvimento das relações entre elas. As rotulações que são geradas a partir desse

encontro é que estabelecem qual será a imagem que cada um dos grupos envolvidos terá do

outro.

O relacionamento entre as nações, entendido de forma muito mais profunda do que

simplesmente o relacionamento entre os Estados burocráticos, possui, nesse sentido, um papel

fundamental para a própria constituição dos nacionalismos. A interação entre esses

indivíduos, de forma coletiva, molda a representatividade que um terá para o outro. Nas

palavras de Spencer, “[…] fundamental a todas as formas de nacionalismo são os processos

de categorização que cria e reproduz como inimigos, estrangeiros e todos aqueles que não se

encaixem na nação, bem como estimula um senso de ‘profunda camaradagem horizontal’ para

aqueles que estejam incluídos na nação” (SPENCER, op. cit., p. 2).

O senso de coesão interna se fortalece cada vez mais, à medida em que há um inimigo

externo comum ou mesmo um estado de coisas as quais os membros da nação desejam evitar

a todo custo. Sendo assim, o fato da imagem de outra nação ser construída por nós com uma

representatividade pejorativa provoca quase que automaticamente um repúdio por ela, uma

atitude de vê-la como um modelo antagônico ao nosso, e por isso precisa ser evitado.

Os membros de uma mesma nação com valores culturais bem estabelecidos passam a

ter uma autoimagem através da qual se enxergam como uma grande família, mesmo

Page 38: O massacre de Nanquim

37

observando-se as peculiaridades individuais. E mesmo que haja diferenças acentuadas em

relação a algum aspecto da vida cotidiana, é o próprio pertencimento à mesma nação que

provoca a sensação e a certeza de homogeneidade.

Os laços de “profunda camaradagem horizontal” (id.) que são criados e estimulados

funcionam como a argamassa dos processos sociais envolvendo os membros da nação. Dessa

forma, o fato de ser alemão, americano ou japonês, por exemplo, ou seja, o fato de o

indivíduo possuir uma autoimagem de identificação com a comunidade e, mais do que isso,

ser aceito pelos seus pares como legitimamente integrante desse grupo, é o que garante uma

postura social orientada a determinados valores ou a outros.

As idiossincrasias de cada nação, entendidas na sua complexidade, formam uma teia

de relacionamentos sociais norteada fundamentalmente pela disputa pelo poder. Isso se

transfere inequivocamente para o relacionamento entre as nações, onde se observa

nitidamente a luta em função do poder. E essa luta determina, evidentemente, a vitória de uns

em detrimento de outros. A respeito dessa disputa pelo poder empreendida pelas nações, é

interessante a análise de Morgenthal de que:

o mundo, imperfeito como é do ponto de vista racional, resulta do

encontro de forças inerentes à natureza humana. Assim, para poder

melhorar o mundo, seria necessário trabalhar com essas forças, e não

contra elas. Tendo em vista que vivemos em um universo formado por

interesses contrários, em conflito contínuo, não há possibilidade de

que os princípios morais sejam algum dia realizados plenamente,

razão por que, na melhor das hipóteses, eles devem ser buscados

mediante o recurso, sempre temporário, ao equilíbrio de interesses e à

inevitavelmente precária solução de conflitos (MORGENTHAL,

2004, p. 4).

Essa argumentação suscita a ideia de que a busca pelo poder, ou seja, a busca pela

afirmação da nação frente às outras, gera um cenário de rivalidades e antagonismos no qual

aquelas nações que puderem estabelecer os seus interesses mais do que as demais serão as que

de forma real estabelecer-se-ão no cenário mundial como potências, sendo relegado às demais

comunidades nacionais o papel de coadjuvantes, ou mesmo de povos subjugados.

Todo esse mecanismo simbólico pressupõe, além da participação efetiva dos membros

da nação, a atuação forte daqueles que estão em posição de liderança, os que representam, na

prática, a figura do Estado. Sendo assim, esses indivíduos, no caso da discussão empreendida

até aqui sobre o que é a nação, precisam contar com um considerável grau de legitimidade

popular, o que leva à necessidade de uma análise desse processo de afirmação e legitimação

das lideranças.

Page 39: O massacre de Nanquim

38

Em relação às noções de dominação, é necessário que se observem os mecanismos

através dos quais as autoridades constituídas – por imposição ou adesão – consolidam seu

poder social e também de que formas os indivíduos absorvem essas construções mentais e os

tornam válidos. Nota-se, segundo a argumentação de Weber, que “a validação de uma

autoridade deverá significar, portanto, mais que a mera regularidade da ação social,

determinada pelo costume ou interesse próprio” (WEBER, op. cit., p. 53).

Sendo assim, nota-se que a legitimação da dominação de uma autoridade se faz através

de mecanismos que vão muito além da aceitação de normas ou costumes. Está relacionada,

entre outras coisas, ao sentido que as ações da autoridade, e ela mesma, têm para os

indivíduos socialmente organizados sob essa liderança. E isso acontece, tanto em relação à

liderança de uma figura carismática quanto em relação à aceitação de quaisquer instituições

pela população.

A construção dos mecanismos que receberão significação pela população pode, em

alguns casos, levar a um chauvinismo que se pauta pela supervalorização das instituições que

representam, na prática, a nação. Por isso mesmo, a compreensão do estabelecimento desses

mecanismos de coesão social precisa observar o anseio pela conquista de legitimidade e

manutenção do poder. Num grande número de casos, esses processos de afirmação nacional

no cenário mundial levam à adoção de medidas violentas e/ou dos meios que forem

considerados necessários para se alcançar os objetivos. A esse respeito, Beiner afirma que:

A articulação desse tipo de chauvinismo está intimamente ligada à

guerra. As grandes datas do chauvinismo nacional são quase todas

relacionadas às datas de batalhas ou tratados de paz que concluíram

com sucesso guerras de libertação nacional [...] A guerra foi o grande

motor da expansão nacional, não apenas no sentido mecânico da

conquista militar de territórios [...] mas também num sentido

psicológico, escorregadio, porém igualmente significativo e que

constitui um senso de solidariedade nacional. (BEINER, op. cit., p.

37).

O papel desempenhado pelas lideranças nacionais, no sentido de fortalecer a ideia de

coesão nacional e, sobretudo, em contraposição às demais nações, tem ligação direta com a

formação cultural nacional. O esforço nacionalista de cristalização das datas e manifestações

ditas nacionais, e principalmente datas e manifestações relativas a guerras e/ou feitos heroicos

oferece o fermento que faz crescer o orgulho da nação.

O que se deve atentar nesse mecanismo simbólico é a maneira através da qual são

vistos os que estão de fora da nação, ao mesmo tempo em que se solidifica a noção de que

essa nação é preferível às demais, ou seja, a comunidade nacional merece todo o esforço em

Page 40: O massacre de Nanquim

39

seu favor, a fim de que se afirme frente o cenário mundial. Sendo assim, a liderança passa a

ser vista como guardiã da honra e dos interesses nacionais.

Essa noção contribui para a ideia de que se a liderança nacional age em função do

estabelecimento dos interesses comuns da nação, então esse grupo (ou indivíduo) na

vanguarda das decisões possui uma autoridade legítima. Dessa forma, quando há a devida

significação, por parte da população, das ações dos líderes, entende-se que há, de fato, a

legitimação da dita autoridade. Nas palavras de Weber (id, p. 54):

Verdadeiramente, a conduta pode ser orientada a uma autoridade por

vários motivos. Mas o fato de que, ao lado de outros motivos, a

autoridade seja mantida também ao menos por alguns dos outros

indivíduos como sendo digna de imitação ou obrigatória, naturalmente

aumenta num grau considerável a probabilidade de que a ação de fato

se ajuste a ela.

Tomando como base esse argumento fica mais claro o entendimento da devoção e da

paixão observadas nos indivíduos quando o assunto é a comunidade nacional. Isso é um fato

interessantíssimo, já que muito além de uma abordagem individualizante que desconsidere o

caráter social dos eventos concretos, essa análise leva em conta as interações entre as

lideranças e os outros indivíduos envolvidos, socialmente falando. Em outras palavras, a

construção de determinados símbolos e padrões de conduta considerados legitimamente

representantes da nação provocam a noção coletiva de que todas as ações em prol da nação, e

nesse caso norteadas pelo comando das lideranças, são amplamente justificáveis, tendo em

vista a sobrevivência da comunidade.

Isso ocorre justamente devido ao culto à individualidade da nação, uma questão que

exerce grande influência sobre as atitudes dos membros do grupo. Em relação a um grupo de

indivíduos, acreditar que se pertence a uma nação que é preferível à outra, provoca a ideia de

que é realmente necessário que se defendam os elementos peculiares relativos à cultura

nacional e, mais ainda, que se estabeleça, de fato, uma diferenciação em relação às demais

culturas.

Além do mais, é primordial que o modus vivendi experimentado pelos membros da

nação seja mantido e se perpetue, a fim de que a legítima cultura nacional sobreviva aos

tempos. Por isso, então, é fundamental que haja realmente o direcionamento de cada membro

da comunidade aos padrões de vida e comportamento estabelecidos pela liderança, e para isso,

ela precisa ser, além de aceitável, portadora de uma legitimidade amplamente constituída.

Sendo assim, como apontamos, a cultura nacional é construída sobre bases que

legitimem um poder estabelecido, seja ele representado pela figura do Estado em si, ou por

Page 41: O massacre de Nanquim

40

um grupo no poder. As ideias e as noções que são divulgadas e repetidas agem no sentido de

fortalecer o conceito de que todos devem amar a nação, como portadora oficial da cultura do

povo em questão; observar as leis, que são vistas como reguladoras e garantidoras da

autoridade nacional; e defender o território, que, em última análise, é a casa da nação.

Essas três características expressam muito bem a dinâmica do discurso nacionalista, já

que apontam sempre para a valorização da comunidade nacional. A institucionalização do

Estado e das leis escritas funciona, nesse sentido, como mantenedora da organização (e a

cargo disso a perpetuação) da comunidade imaginada da nação. Dessa forma, o próprio grupo

diretivo aparece no papel de protetor oficial da sobrevivência e da peculiaridade da nação.

O território nacional aparece como um fator preponderante, na medida em que não há

como pensar em nações modernas, no sentido estrito do termo, sem que possuam um espaço

geográfico. Sendo assim, o estabelecimento das fronteiras territoriais é um fator de extrema

importância para as nações modernas, sobretudo a partir do final do século XIX, período em

que há um recrudescimento na relação entre as nações europeias. O nacionalismo serve, nesse

momento, como a mola mestra dos processos de demarcação das fronteiras.

A população nacional, orientada por símbolos que supervalorizam a sua comunidade

constituída, age em defesa do Estado nacional, a fim de garantir a sua sobrevivência.

Sobrevivência essa que deve ser garantida custe o que custar. Nas palavras de Beiner, no

sistema nacional, da forma como está posto,

[...]os Estados permanecem, pelo menos, comunidades de segurança mínima,

máquinas de autodefesa humana. E autodefesa, num nível comunal, como a defesa de modos de vida, direitos, autonomia coletiva, não constitui uma

questão individual e não pode ser moralmente ou na prática, reduzida a um

senso egoísta individualista (BEINER, op. cit., p. 37).

Como comunidades de segurança, os Estados necessitam garantir a segurança dos

cidadãos e a manutenção de sua própria soberania, o que perpassa pelo jogo de poder entre as

nações. Se o poder nesse caso puder ser entendido como a capacidade de impor um não e

extrair um sim, então, observando-se o contexto do século XIX, é possível notar que essa

prática se estabelece nitidamente através das políticas imperialistas empreendidas por

inúmeras nações – Inglaterra, Japão pós-1868, Alemanha pós-1870 – em relação a outras

comunidades que não podiam, nessa lógica de raciocínio, se autoafirmar como nações fortes.

O imperialismo, como política de estabelecimento de poder e dominação, com vistas à

obtenção de ganhos de qualquer espécie, especialmente financeiros, pressupõe um tipo de

relação que, comparado à análise de Norbert Elias, pode ser considerada do tipo estabelecidos

Page 42: O massacre de Nanquim

41

X outsiders. Mas para se compreender essa dinâmica de relacionamento é necessário recorrer

à análise de Weber acerca de poder e dominação. O autor argumenta que:

Entende-se por poder a oportunidade existente dentro de uma relação social

que permite a alguém impor a sua própria vontade, mesmo contra a resistência e independentemente da base na qual esta oportunidade se

fundamenta. Por dominação entende-se a oportunidade de ter um comando

de um dado conteúdo específico, obedecido por um dado grupo de pessoas. Por “disciplina” entende-se a oportunidade de obter-se obediência imediata e

automática de uma forma previsível de um grupo de pessoas, por causa de

sua orientação prática ao comando (Weber, op. cit., p. 97).

A política imperialista funciona na medida em que se estabelecem os parâmetros

simbólicos de autoafirmação de uma nação em detrimento de outra, ou seja, é uma relação

entre a autoimagem de poder de um grupo estabelecido e a imagem de fraqueza e impotência

de outro grupo. Ambas as comunidades acabam por absorver esses mecanismos simbólicos de

representação coletiva, fazendo com que até mesmo a própria população dominada se veja

como inferior à outra.

O fato de se impor a sua vontade à de outrem independente da circunstância, por si só,

já denota uma relação de poder. A luta pelo estabelecimento dessa vontade geralmente leva a

hostilidades e conflitos nos quais o ponto nevrálgico é a aceitação ou não da dominação, ou

seja, se a nação que se pretende como dominadora realmente possui, ou não, os meios

necessários para impor a sua vontade. Isso não significa que um dos grupos simplesmente

passe a considerar o outro como superior a si, mas está relacionado à estrutura de poder bélico

e simbólico dos quais está munida a nação, ou seja, não basta derrotar o inimigo fisicamente,

é necessário que ele também seja vencido psicologicamente.

A vitória no campo das mentalidades é importantíssima já que proporciona o

estabelecimento, de fato, dos interesses do grupo vencedor sobre o grupo dominado. Sem a

vitória simbólica, ainda que belicamente um dos grupos seja incrivelmente superior ao outro,

não há a construção de um imaginário que permita a consolidação dos processos de

dominação. Ou seja, é fundamental que uma das nações se renda à outra para que os

mecanismos se ajustem a fim de estabelecer uma relação de poder, o que não indica, todavia,

que o imperialismo esteja circunscrito ao campo das mentalidades.

Um exemplo muito claro em relação a essa dinâmica dos conflitos é o que diz respeito

ao final da Segunda Guerra Mundial, no contexto da derrota japonesa. Os mecanismos de

construção ideológica da nação japonesa18

se davam no sentido de formar coletivamente a

18 As questões referentes à construção simbólica da nação e do imperialismo nipônicos serão mais

detalhadamente trabalhadas no capítulo 2.

Page 43: O massacre de Nanquim

42

ideia de que o povo nipônico era superior a qualquer outro, ou seja, seria inconcebível a nação

japonesa ser dominada por qualquer outro povo.

Sendo assim, mesmo com a superioridade bélica estadunidense, estabelecida

sobretudo a partir de 1943, após a batalha de Midway, os japoneses não reconheciam as

crescentes vitórias conquistadas pelos americanos, o que fazia com que o Exército Imperial se

lançasse incessantemente nas batalhas perseguindo o êxito, mesmo que fosse seguidamente

derrotado e tivesse milhares de soldados mortos.

Isso ocorre justamente pelo fato dos japoneses coletivamente considerarem um ato

extremamente vergonhoso o de render-se aos americanos, que eram vistos como os

“bárbaros” ocidentais. Nesse contexto, mesmo com as bombas atômicas de Hiroshima e

Nagasaki não há uma rendição imediata da nação japonesa, ou seja, o reconhecimento de que

realmente o conflito havia levado a nação japonesa à exaustão.

É somente quando o próprio imperador faz um pronunciamento à população japonesa

reconhecendo a derrota, que os nipônicos deixam a empreitada bélica. Mesmo que as bombas

tenham provocado a declaração de Hiroíto, é somente a partir das palavras proferidas por ele

que os soldados, e a população em geral, imediatamente deixam de perseguir a vitória nos

campos de batalha e, em obediência ao imperador, se rendem aos americanos.

O ponto central aqui é levar em conta que não são as bombas lançadas sobre o

território japonês que levam a população a reconhecer a vitória dos americanos, mas sim as

palavras do imperador, sendo ouvidas pela primeira vez pelo povo japonês, ordenando que

todos reconheçam a vitória dos americanos. Esse mecanismo representou a tônica da

aceitação simbólica da derrota pelos nipônicos, que estariam dispostos a, literalmente, lutar

até o último homem ou até mesmo pôr em prática as medidas mais extremas (como suicídios

em massa) a fim de evitar a vergonha da rendição.

O fator simbólico de uma relação conflituosa de dominação representa o ponto central

do estabelecimento da própria dominação de um sobre o outro. Assim como no caso japonês

supracitado, mesmo que haja uma nítida disparidade de poder bélico entre duas nações, se

esse predomínio não estiver acrescido de mecanismos simbólicos, a destruição material e

humana, por si só, não gerará a devida dominação de um dos grupos sobre o outro.

A superioridade bélica necessita provocar, em certa medida, o domínio no campo

simbólico para que não só o grupo mais poderoso se considere como vencedor, mas para que,

também, os vencidos assumam a autoimagem de derrotados. Essa dinâmica de

Page 44: O massacre de Nanquim

43

relacionamentos contribui diretamente para o estabelecimento de relações de poder e

dominação, agindo no sentido de diferenciar vencedores e vencidos.

A representação surgida a partir desse relacionamento de hostilidade gerado entre duas

nações constitui-se através da criação de uma autoimagem da própria nação derrotada de que

ela é inferior à outra. Nas palavras de Elias, “os indivíduos ‘superiores’ podem fazer com que

os próprios indivíduos ‘inferiores’ se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando-se

humanamente inferiores” (ELIAS, op. cit., p. 20).

Sendo assim, nota-se que independentemente da forma através da qual esse

mecanismo de dominação se constrói, é imprescindível a sua ocorrência para que, de fato,

haja o estabelecimento de uma relação de poder. Dessa forma, os imperialismos

empreendidos principalmente no final do século XIX e início do XX, se fizeram sobre bases

simbólicas muito bem estabelecidas, já que é necessário à política imperialista o senso de

dominação de um povo subjugado por outro supostamente superior.

Essa é uma característica inerente à própria rede complexa de relacionamentos entre as

nações estabelecidas enquanto Estados nacionais. É interessante a análise sugerida por Weber

(op. cit., p. 187) de que “todas as estruturas políticas usam a força, mas diferem no modo e na

extensão com que empregam ou ameaçam empregar contra outras organizações políticas.

Essas diferenças têm um papel específico na determinação da forma e destino das

comunidades políticas.”

O conflito e a busca pelo estabelecimento de interesses estão presentes a todo o

momento quando se trata do relacionamento entre as nações. Isso se torna ainda mais latente

se uma das duas nações possui o que a outra anseia, principalmente em termos econômicos.

Na verdade, essa questão permeou a política externa da maioria das nações europeias no final

do século XIX.

No campo econômico, a relação conflituosa parece ainda mais proeminente. Ademais,

se fortalece no oitocentos, outro personagem que figurará no cenário mundial e influenciará

inclusive nos rumos das políticas nacionais: o capital privado. Não estamos sugerindo que até

esse momento ele não existisse, mas é nesse período que passará a exercer um papel mais

destacado no plano das políticas imperialistas europeias.

A esse respeito, vale à pena observar a análise de Lênin, que sugere que “na época do

capital financeiro, os monopólios de Estado e os privados se entrelaçam, formando um todo,

e, [...] tanto um como outro, não são na realidade mais do que diferentes elos da luta

Page 45: O massacre de Nanquim

44

imperialista travada pelos maiores monopolistas pela partilha do mundo” (LÊNIN, 2011, p.

195).

A busca pelos interesses nacionais acima de tudo provoca a ocorrência de inúmeros

eventos que têm a violência como norteadora das ações dos Estados nacionais. Nessa linha de

raciocínio, é imprescindível o argumento de Morgenthal afirmando que, de fato, “não

podemos, com base nas boas intenções de um político, concluir que suas políticas externas

serão moralmente elogiáveis ou politicamente bem-sucedidas” (MORGENTHAL, op. cit., p.

8).

É facilmente comprovável que as políticas imperialistas possuem um pano de fundo

motivacional econômico. Isso se verifica por meio de qualquer análise, ainda que superficial

das ações principalmente de alguns países europeus – França, Inglaterra, Alemanha, etc. – na

África e na Ásia a partir da segunda metade do século XIX. As questões que norteavam a

atitude desses países com relação às suas esferas de influência e domínio eram, via de regra,

questões econômicas.

O imperialismo aparece como um meio facilitador da otimização dos lucros que

poderiam ser obtidos, e isso através de uma série de mecanismos. Realmente, como afirma

Lênin, “o capitalismo, chegado à sua fase imperialista, conduz à socialização integral da

produção nos seus mais variados aspectos” (op. cit., p. 131). Isso não indica, todavia, que os

lucros provenientes da produção sejam, também, socializados. Na verdade o autor segue

argumentando que “A produção torna-se social, mas a apropriação continua a ser privada”

(id.).

As atitudes provenientes da política imperialista perseguem a satisfação dos interesses

da nação que se lança nessa empreitada. Mas seria um erro considerar que somente a busca

incansável de lucros financeiros, por si só, possa explicar suficientemente as ações

imperialistas. Segundo a análise de Weber:

poderíamos inclinar-nos a acreditar que a formação, bem como a expansão

das grandes potências, são sempre e primordialmente determinadas

economicamente. A suposição de que o comércio, especialmente quando

intenso e já existente numa área, é a condição preliminar e a razão para a sua unificação política poderia ser facilmente generalizada [...] A atenção mais

detalhada, porém, frequentemente revela que essa coincidência não é

necessária, e que o nexo causal de modo algum aponta numa única direção (WEBER, op. cit., p. 190).

Essa análise indica que muito além dos fatores econômicos, há uma série de outros

aspectos que precisam ser levados em consideração quando se analisa a expansão imperialista

das nações. Isso porque além dos ganhos econômico-financeiros imediatamente provenientes

Page 46: O massacre de Nanquim

45

da empresa imperialista, existem os fatores políticos que permeiam as ações dos governos

nacionais.

O jogo político entre as nações se faz por meio de mecanismos que vão muito além da

satisfação econômica do país. Isso não significa afirmar que haja, de fato, amplas evidências

históricas de que o fator econômico esteja totalmente descartado como motivador das ações

imperialistas, como se alguma nação encarasse essa empreitada visando ter prejuízos, sem que

estivesse interessada nos possíveis ganhos de natureza material que em algum momento

viriam.

Evidentemente, esse seria um argumento no mínimo ingênuo, o de achar que o

movimento imperialista possa, via de regra, desconsiderar as questões econômicas e materiais

que rendem frutos para os países imperialistas. O que se pretende afirmar através dessa

argumentação é que o fator material não é a única motivação para a expansão imperialista das

nações e, além disso, ele nem sempre representa a condição primeira. De fato, há exemplos

históricos que corroboram essa afirmação.

Um caso emblemático referente a isso é o caso francês. A esse respeito, Wesseling é

categórico em afirmar que na época da expansão imperialista, na França “não existia nada de

semelhante ao tipo de capitalismo moderno em expansão. A França não necessitava de um

império colonial, de mercados externos para capital e produtos industriais [...] Não tinha,

portanto, nenhuma necessidade econômica de imperialismo” (WESSELING, 1998, p. 18).

O que o governo francês buscava era o estabelecimento de zonas de domínio político

como forma, também, de se contrapor aos ingleses, que vinham estendendo seus tentáculos

sobre regiões na África e Ásia como um polvo que abraça sua presa. O próprio modelo

imperialista inglês possui características bastante peculiares no que tange à relação entre

interesses econômicos e políticos.

A multiplicidade dos casos de imperialismo indica, ela mesma, que há outro erro que

precisa ser evitado. Trata-se da interpretação que uniformiza todos os movimentos

imperialistas como se fossem representantes exatamente do mesmo tipo de ação. Os tipos de

prática imperialista, nos seus mais variados casos, apresentam muitas peculiaridades em cada

caso, o que provoca a necessidade da nomenclatura os imperialismos.

Se o fator econômico está fortemente presente como um aspecto proeminente em

diversos casos de empreitadas imperialistas, não se pode esquecer que as questões políticas e

estratégicas também compõem uma parte considerável da análise de tais movimentos. Isso

porque é necessário que se observe, como afirma Morgenthal, que o conceito de interesse seja

Page 47: O massacre de Nanquim

46

definido em termos de poder, já que dessa forma o conceito oferece um elo entre a tentativa

de compreender os variados aspectos da política internacional e os fatos a serem analisados.

Ademais, o autor argumenta que dessa forma se torna possível ver “a política como uma

esfera autônoma de ação e de entendimento, separada das demais esferas, tais como

economia, ética, estética ou religião” (MORGENTHAL, op. cit., p. 6).

Esse cenário fica ainda mais turbulento quando se envolvem questões inerentes à

cultura nacional que sugerem a ideia de que essa população é única e escolhida para um

propósito específico num papel de vanguarda. Smith afirma que essas são realmente questões

que vêm aviltar o senso patriótico e legitimar a expansão das nações, considerar a nação como

“[...]um povo único com uma história e um destino específicos, os sucessores seculares de

antigas crenças religiosas de eleição étnica, ou ‘o povo escolhido’.” (SMITH, op. cit., p. 38)

A aplicação prática dessa engenharia simbólica, por seu turno, garante a legitimação

de quaisquer atos que sejam cometidos visando o fortalecimento e a sobrevivência da nação,

ou seja, a subjugação de outros povos e mesmo o uso extensivo da violência se justificam

pelo próprio discurso que é construído em torno do movimento imperialista como um

mecanismo de fortalecimento da nação.

Por isso mesmo, não se pode considerar que as ações dos Estados, na prática, estejam

sempre voltadas para a melhor política externa, simplesmente pelo fato dos políticos que os

dirigem terem boas intenções. Em relação ao imperialismo, na verdade, existe uma grande

diferença entre o que se professa pretender fazer e o que se faz, e isso está diretamente

relacionado aos diversos fatores que influenciam as relações entre as duas nações (a que se

pretende por dominadora e a que estaria sendo subjugada). Nas palavras de Morgenthal:

Quando a mente humana defronta a realidade com o propósito de tomar medidas concretas, entre as quais o embate político é um dos principais

exemplos, ela costuma ser desencaminhada por um destes quatro

corriqueiros fenômenos mentais: a obsolescência, em face de uma nova

realidade social, de modos de pensar e de agir que até então se mostravam adequados; as interpretações demonológicas, que substituem a realidade dos

fatos por uma outra, fictícia, povoada por pessoas malvadas, mais do que por

questões aparentemente intratáveis; a recusa de enfrentar um estado de coisas ameaçador, que é negado mediante o recurso a uma verbalização

ilusória; e a crença na infinita maleabilidade de uma realidade notavelmente

turbulenta (MORGENTHAL, op. cit., p. 11).

Quando se observa a ocorrência do que o autor chama de “fenômenos mentais” nota-

se, então, que a realidade dos acontecimentos só pode ser compreendida através dos diversos

mecanismos envolvidos no processo, e não apenas desse ou daquele motivo. Depreende-se,

Page 48: O massacre de Nanquim

47

daí, a importância de se contemplar a política como uma esfera autônoma na análise, não

submetida à economia, mas complementar a ela.

A complexidade dos eventos que se referem aos imperialismos costumeiramente evoca

novos arranjos sociais que, para serem analisados, necessitam ser muito bem definidos. Em

relação à argumentação de Morgenthal, um fator interessante é o que ele analisa como sendo

as “interpretações demonológicas” que possuem o papel de atribuir à realidade prática uma

bruma por vezes exótica e fantasiosa com a função de construir uma imagem do outro como o

mal a ser combatido.

A imagem que se forma através da interpretação do outro a partir de prismas que

proporcionam uma leitura imbuída de um pré-julgamento muitas vezes infundado, remete a

uma associação da nação a ser dominada a todo tipo de perspectivas que desmerecem

completamente a sua cultura nacional, relacionando-a a estereótipos de barbárie, atraso e/ou

desonra.

Daí, então, fica muito mais fácil justificar as ações violentas que são cometidas, já que,

além do argumento de que são praticadas em favor da sobrevivência e expansão da nação,

elas também possuem um quê civilizatório e corretivo. Isso porque o país imperialista passa a

ter uma autoleitura de que de fato está assumindo uma condição por vezes até mesmo altruísta

em benefício do povo dominado, levando-lhe a civilização e ensinando-lhe o caminho que

deve seguir.

Essa perspectiva não pode, todavia, perder de vista uma questão importantíssima que,

como já apontado, está comumente presente quando se trata das empreitadas imperialistas: os

ganhos econômicos provenientes dessas ações. Não se pode pensar que os líderes das nações

imperialistas simplesmente estejam partindo de uma motivação puramente particular ou que

eles hajam de acordo com pressupostos individualistas e egoístas. Todo esse processo diz

respeito ao próprio desenvolvimento do sistema capitalista – quando se trata da necessidade

de expansão de mercados e zonas de interesse econômico. A esse respeito, vale a pena

observar a contribuição de Lênin de que:

Os capitalistas não partilham o mundo levados por uma particular

perversidade, mas porque o grau de concentração [da produção] a que se chegou os obriga a seguir esse caminho para obterem lucros; e repartem-no

“segundo o capital”, “segundo a força”; qualquer outro processo de partilha

é impossível no sistema da produção mercantil e no capitalismo (LÊNIN, op. cit., p. 198).

Essa visão indica que em relação aos aspectos econômicos dos imperialismos, existem

alguns pontos que tornam os casos semelhantes. O próprio sistema de produção capitalista

Page 49: O massacre de Nanquim

48

possui características eminentemente predatórias que impulsionam as nações a buscar

mercados externos e áreas nas quais possam colocar em prática as políticas necessárias à

manutenção e gradativa expansão da economia nacional.

De fato, segundo argumenta o autor, quanto mais desenvolvido está um sistema

econômico nacional, mais ele tende a se voltar para o exterior, buscando empreendimentos

arriscados e que exigem um longo tempo para o seu desenvolvimento. O tempo e o risco que

estão envolvidos na manutenção desses empreendimentos elevam sobremaneira os lucros

provenientes deles.

A construção política do imperialismo, que Lênin chama de “etapa superior do

capitalismo” (ibid.), pressupõe a manutenção de um Estado forte que possa estar na direção

do processo, a fim de garantir o êxito econômico nacional. Na verdade, junto aos Estados,

aparecem os grupos de empresas capitalistas como novos atores nessa nova fase de

desenvolvimento do capitalismo.

Essas empresas, especialmente a partir do século XIX, surgem como importantes

parceiras (ou rivais) dos Estados nacionais em relação aos investimentos nas regiões de

interesse econômico. Podem-se citar os casos dos Hothschilds e dos Rockfellers19

, que

atuaram ativamente no processo dos imperialismos europeus, sobretudo na África e na Ásia.

As condições econômicas, quando favoráveis, influenciam diretamente na ocorrência

dos imperialismos. O cenário favorável de desenvolvimento do sistema mercantil, e do

próprio sistema capitalista, age diretamente impulsionando a expansão nacional para além das

fronteiras econômicas do território nacional.

Isso não indica, contudo, que o fato de uma nação se lançar ao imperialismo esteja,

como analisado anteriormente, única e exclusivamente relacionado aos fatores econômicos e

materiais envolvidos no processo. Muito além disso. Se com um pano de fundo favorável,

sob o prisma econômico, for muito provável que haja, de fato, a expansão imperialista, a não

ocorrência desses fatores, não determinam que seria impossível que a nação se lance ao

imperialismo.

Na verdade, a construção da empreitada imperialista gera um cenário no qual a política

é considerada boa se ela é racional, tendo em vista que somente uma política externa racional

minimiza os riscos e maximiza as vantagens. Nesse sentido, o poder acaba abarcando tudo

que estabeleça o controle do homem sobre o homem visando o estabelecimento de um sistema

19 Não é objetivo e nem interesse do presente trabalho analisar a participação dos grandes grupos capitalistas no processo dos imperialismos. Para um exemplo dessa participação no Congo de Leopoldo II, vale à pena

consultar Hochschild (1999).

Page 50: O massacre de Nanquim

49

de dominação. Sendo assim, a racionalização das ações pode chegar ao ponto de considerar

friamente as ações sem levar em conta os seres humanos que estão envolvidos. Ocorre, nesse

ínterim, um mecanismo de despersonalização do outro.

Sob essa perspectiva, a utilização da violência é perfeitamente aceitável, sob o ponto

de vista dos imperialistas, já que o que importa são os fins a que se pretende chegar. A

perseguição desses objetivos perpassa por uma série de mecanismos que nem sempre podem

ser considerados aceitáveis sob o ponto de vista moral, mas que influenciam diretamente no

destino das nações envolvidas. A respeito disso, Hannah Arendt afirma que:

Uma vez que os propósitos da atividade humana, distintos que são dos

produtos finais da fabricação, não podem jamais ser previstos com

segurança, os meios empregados para se alcançar objetivos políticos são na maioria das vezes de maior relevância para o mundo futuro do que os

objetivos pretendidos (ARENDT, 1970, p. 4).

A questão da violência empregada nos processos de expansão imperialista não pode

ser lida e nem compreendida sob uma égide moralista, como se as ações dos Estados fossem

pautadas por mecanismos éticos. Se os próprios fins a que pretendem chegar as nações nunca

são, na verdade, muito claros de início, então o que se pode analisar são os meios através dos

quais elas buscam alcançá-los.

Sendo assim, a análise da política externa dos países imperialistas se faz por meio das

ações práticas dessas nações, e não apenas pelos objetivos e pelas supostas boas intenções

professadas pelos seus respectivos governos. Essas ações, muito mais do que os fins em si,

assim como o trecho supracitado indica, influenciam no direcionamento da situação futura de

todos os envolvidos nos processos imperialistas.

Sendo assim, a questão da violência precisa ser analisada como sendo parte integrante

e fundamental nos processos de dominação imperialista do final do século XIX e ao longo do

XX. Entretanto, não se pode considerar que o emprego da violência nesses e em outros casos

de relacionamento entre nações, esteja diretamente relacionado a uma espécie de sadismo ou

ausência de senso de autopreservação por parte dos homens. Na verdade como indica Arendt:

A razão principal por que os conflitos armados ainda existem, não é nem um

desejo secreto de morte da espécie humana, ou um irreprimível instinto de

agressão, nem, finalmente, e mais plausivelmente, os sérios perigos

econômicos e sociais inerentes ao desarmamento: porém o simples fato de que substituto algum para esse árbitro final nas relações internacionais

apareceu ainda no cenário político (Ibid, p. 5).

O emprego da força bélica, ou mesmo a possibilidade e ameaça de se utilizá-la, sugere

que no campo de relacionamento entre as nações existe um verdadeiro jogo de forças no qual

todos os participantes anseiam pelo estabelecimento do seu domínio, porém, apenas alguns

Page 51: O massacre de Nanquim

50

conseguem. No caso dos imperialismos, a utilização da violência aparece como um

instrumento que legitima o domínio de uma nação sobre a outra.

A questão da depreciação do outro que está sendo dominado através de processos

violentos realmente salta aos olhos quando se observa a progressão histórica dos

imperialismos. De fato, como observa Morgenthal “os princípios morais universais não

podem ser aplicados às ações dos Estados em sua formulação universal abstrata, mas [...]

devem ser filtrados por meio das circunstâncias concretas de tempo e lugar”

(MORGENTHAL, op. cit., p. 20).

A violência que se verifica nesses contextos se relaciona aos mecanismos de

abordagem figuracional que aparecem como norteadores do relacionamento entre

dominadores e dominados. É um tipo de relação muito próxima à noção de Estabelecidos-

outsiders analisada por Elias, na qual um dos grupos lança sobre o outro um rótulo

depreciativo que justifica a dominação e até o extenso uso de violência. Nas palavras do autor,

“a estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders, associa-se,

muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido”

(ELIAS, op. cit., p. 35)

Nota-se então que os mecanismos gerados a partir dessa interação social funcionam a

partir das representações que são cristalizadas pela ação direta dos dominadores, mas que são

aceitas pelos dominados. De fato, esses rótulos agem no sentido de imbuir naqueles

considerados outsiders características negativas e uma nítida diferenciação. Como afirma

Clastres, “o Outro é a diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença” (CLASTRES,

2004, p. 56).

O que chama atenção nos imperialismos é que as ações cometidas não podem ser

entendidas partindo de pressupostos individualistas, ou mesmo simplesmente dos sentimentos

que um grupo nutre pelo outro. Na verdade, os piores casos de violência, ao contrário do que

se poderia sugerir, não ocorrem movidos diretamente pela paixão, mas por uma

racionalização extrema. Racionalização essa que retira do outro aquilo que o aproxima do

perpetrador da violência: a condição humana

Os atos violentos se tornam coisas banais e perfeitamente aceitáveis, já que a suposta

vítima passa a ser vista como um mero objeto sendo utilizado com o fim de alcançar um

objetivo específico, ou mesmo como um empecilho no caminho de uma meta que se pretende

atingir. É interessante a análise de Arendt nesse sentido. Ela argumenta que :

Dizer que a violência origina-se do ódio é usar um lugar-comum, e o ódio

pode certamente ser irracional e patológico, da mesma maneira que o podem

Page 52: O massacre de Nanquim

51

ser todas as demais paixões humanas. É possível, indubitavelmente, criar

condições que desumanizam o homem – tais como os campos de

concentração, a tortura, a fome – porém, isto não significa que se tornem semelhantes aos animais; e nestas condições, não é o ódio ou a violência,

mas a sua ausência conspícua que constitui o mais claro sinal de

desumanização (ARENDT, op. cit., p. 39).

Essa questão de se retirar do outro a sua representatividade como ser humano, ou seja,

atribuir a ele características de inferioridade, desonra, vergonha, dentre tantas mais, é o que

torna as abordagens violentas ainda mais cruéis e desumanas. Isso se banaliza na medida em

que essas construções simbólicas se tornam naturais e amplamente aceitas pelos

conquistadores. Sendo assim, é natural, por exemplo, que mulheres sejam violentadas, mãos

sejam decepadas, prisioneiros sejam torturados, etc.

Imperialismo e violência são questões que não podem ser analisadas isoladamente.

Não que a violência dependa da ocorrência dos imperialismos, mas, de fato, os imperialismos

trazem consigo em larga escala o uso da coerção e da violência física, além dos mecanismos

de legitimação simbólica. Nesse contexto, o estabelecimento dos Estados-nação modernos

exerce um grande protagonismo nessas situações, já que a todo o momento o jogo de forças

entre as nações demanda uma acirrada disputa pelo poder que acaba por desaguar no aumento

e fortalecimento das relações de dominação.

Page 53: O massacre de Nanquim

52

CAPÍTULO 2. A Restauração Meiji e a construção do Japão imperialista

A partir da análise dos mecanismos simbólicos e políticos que se desenvolvem em

conjunto com o próprio desenvolvimento dos Estados-nação modernos e sua consolidação no

cenário internacional, é possível observar o pano de fundo contra o qual estão sobrepostos os

interesses de cada um dos governos nacionais em relação à manutenção e fortalecimento

daquilo que se considera vital à nação.

O fortalecimento dos símbolos e da cultura que se pretende como nacionais atuam

diretamente no sentido de viabilizar a construção da nação nos moldes modernos. No Japão,

esse processo foi bastante traumático e modificou completamente a estrutura social do país.

Havia uma série de interesses em jogo em relação à construção de um novo modelo nacional

que estivesse livre da dominação da antiga classe dos samurais, nesse momento – final do

século XIX – vistos pelo alto escalão do governo Meiji20

como totalmente prejudiciais ao

desenvolvimento nacional.

Seriam necessários, então, novos símbolos que representassem essa nação japonesa

moderna que estava sendo construída. Na verdade, houve um processo de reordenamento de

antigos símbolos que foram resgatados no intuito de difundir a ideia de um poder central que

é fosse legitimado diretamente dos deuses. A cultura japonesa passa a girar em torno do

fortalecimento da ideia da ascendência divina da casa imperial.

Sendo assim, a análise da construção do senso nacionalista no Japão deve começar

necessariamente pela observação da adoção, no período Meiji, de uma religião oficial, o

xintoísmo. Essa é, de fato, a única religião que pode ser considerada genuinamente japonesa,

com origens que se confundem com a da própria população, há pelo menos dois milênios, e

que predomina nas simbologias e na mística do arquipélago japonês.

Em contraposição ao Budismo, que têm origem indiana e influência chinesa, o

Xintoísmo é uma religião que possui expressão somente no seu país de origem. Um fato

interessante é que a prática xintoísta não implica o abandono total ou o repúdio a outras

formas de crença, ela não deve ser considerada uma concepção exclusivista. Muito pelo

contrário, o Xintoísmo pode conviver pacificamente e até complementarmente com outras

práticas religiosas.

20 A restauração Meiji (“o grande salto para frente”) se caracterizou por um conjunto de reformas que visavam principalmente a modernização do Japão e a consolidação do poder do imperador. Antes, por quase três séculos

os imperadores eram simplesmente figuras ilustrativas. Ver Behr (1991, p. 31-et seq.)

Page 54: O massacre de Nanquim

53

O que chama a atenção, contudo, é o poder de doutrinação do comportamento

xintoísta em relação à maneira de agir dos seus praticantes. Isso é amplamente perceptível não

só nos seus diversos rituais, mas em todos os aspectos cotidianos da vida do indivíduo, que

adquire sentido na medida em que se observam todos os preceitos que o tornam uma parte

integrante e participante de uma cosmovisão que engloba muito mais do que simplesmente os

homens ou até os seres vivos.

E isso porque o Xintoísmo se Baseia numa mitologia panteísta repleta de divindades e

que atribui valor sagrado a todos os elementos da natureza. Na verdade, segundo essa

concepção, todos os elementos no universo são divinos, sendo, também, interligados e

interdependentes de forma que não só os seres vivos, mas o vento, a água e as pedras, bem

como todos os níveis invisíveis da natureza, coexistem em harmonia, tendo se originado da

mesma fonte.

A base filosófica21

dessa religião aponta para uma origem divina da casa real japonesa

a partir da deusa solar Amaterasu. Consequentemente, a população absorve, mesmo que em

níveis diferentes, essa ascendência mítica para si, tornando-se herdeira, por direito, dos deuses.

Isso explica, em parte, a intensa preocupação dos japoneses no que diz respeito aos costumes

tradicionais e, ainda, sua fortíssima ligação com os elementos naturais.

A forte relação dos japoneses com a natureza chama a atenção, pois explica muito no

que concerne à estruturação da sociedade. Percebe-se, segundo explicita Sakurai (2007, p. 14),

que a ligação dos japoneses com os elementos naturais é realmente muito forte, e isso

contribui para que ela seja sentida em todos os setores da sociedade:

A casa imperial japonesa [...] é representada por um crisântemo. O Japão é

também conhecido como a terra das cerejeiras e seu cartão postal mais

popular é o Monte Fuji, em forma de cone, com o topo coberto de neve [...].

Quando na segunda metade do século XIX, as famílias foram obrigadas a adotar um sobrenome (o que não ocorria antes), optaram por alusões à

natureza.

Mesmo que um olhar descuidado possa sugerir uma aparente naturalidade e falta de

importância a esse comportamento, ele faz parte de um complexo conjunto de rituais e

21 A preocupação do trabalho não é detalhar todo o conjunto de simbologias e filosofias do xintoísmo, e sim

analisar o seu papel na construção do nacionalismo no Japão. Em linhas gerais, a mitologia indica que a criação

das ilhas do arquipélago japonês pela deusa do Sol Amaterasu, bem como a descendência divina da casa real

japonesa e do próprio povo, ainda que estes não derivem de deuses tão importantes quanto os da família real, são

pressupostos para a diferenciação da nação japonesa das demais nações. O relato dessa criação mitológica está compilado num documento intitilado Registros dos assuntos antigos, datado de 712 (SAKURAI, 2007, p. 13 et.

seq. ).

Page 55: O massacre de Nanquim

54

simbologias que serve como parâmetro às ações dos nipônicos. A noção do on22

no Japão é

extremamente forte e explicita a devoção e a obrigação que cada indivíduo necessariamente

tem em relação a tudo e todos que estão à sua volta, principalmente a natureza. Essa noção

suscita uma ideia de que todo japonês já nasce com uma dívida que precisa ser saldada ao

longo da sua vida.

A noção capitalista ocidental conseguiu convencer a todos que, se alguém contrai uma

dívida financeira com alguma instituição – um banco, por exemplo – essa pessoa tem a

obrigação moral de pagá-la. Comumente, não se discute a legitimidade da cobrança ou dos

juros, eles simplesmente fazem parte do mundo financeiro23

. Da mesma forma, na sociedade

japonesa, todos os indivíduos tem obrigações (on) uns em relação aos outros, em diferentes

níveis. Todos têm dívidas morais em relação às gerações passadas e em relação a todos

aqueles com quem se relacionam. Não se discute a origem dessas obrigações, elas

simplesmente são aceitas e fazem parte de uma cultura que, aparentemente, remete a tempos

imemoriais. Ruth Benedict afirma que no Japão:

Os homens virtuosos não declaram, como fazem nos Estados Unidos, que nada devem a ninguém. Não desprezam o passado. A probidade no Japão

repousa sobre o reconhecimento do próprio lugar dentro da grande rede de

mútuo débito, abarcando tanto os antepassados quanto os contemporâneos

[...] A situação de devedor pode tornar um homem extremamente suscetível, e os japoneses o comprovam. Igualmente lhes confere grandes

responsabilidades (BENEDICT, 2007, p. 88).

O on no Japão denota a disciplina com que os japoneses encaram todos os aspectos da

vida cotidiana em sociedade. Essa noção é ensinada desde a mais tenra idade, o que provoca

uma grande naturalidade na atitude dos nipônicos em relação a essas atitudes. Essa disciplina

explicita a devoção com a qual são realizados os compromissos e, também, a maneira através

da qual os cidadãos desenvolvem as relações sociais.

A ligação do Japão com a natureza se explicita do mesmo modo na religião, sobretudo

no mito da criação das ilhas pela deusa do Sol. A relação entre a religião xintoísta, com toda

sua simbologia, e a construção do nacionalismo no Japão foi muito forte, na medida em que

todo japonês, desde o imperador até o cidadão mais humilde, se sentia parte integrante de uma

raça escolhida, separada, divina. Segundo Sakurai (op. cit., p. 47), “a mensagem embutida

22 Essa expressão corresponde, em linhas gerias, às obrigações que cada japonês tem para com as gerações

passadas, o presente, a natureza, o universo, enfim, tudo o que possa estar direta ou indiretamente relacionado à

sua existência. Essa noção é muito mais forte do que o sentido ocidental da palavra obrigação e pode ter vários

significados, dependendo do contexto em que está sendo utilizada. Para uma explicação mais detalhada, ver

Benedict (2007, p. 87-et seq.). 23 Evidentemente não é objetivo do presente trabalho discutir a dinâmica capitalista na sociedade ocidental e seus desdobramentos. Utilizamos esse exemplo simplesmente a fim de explicar mais facilmente a força da ideia de

obrigação a que os japoneses estão familiarizados.

Page 56: O massacre de Nanquim

55

nessa mitologia [criacionista] é a de que os japoneses são diferentes do resto do mundo pela

sua origem divina e, mais ainda, que são homogêneos do ponto de vista racial e cultural”.

Em relação ao poder imperial, essas questões se aprofundam ainda mais, na medida

em que a casa imperial é tida como a representação máxima do que é o Japão. Desde o início

da sua construção, o Estado japonês moderno foi colocado como superior aos japoneses,

sendo representado pela casa imperial. Os cidadãos precisam ser extremamente devotados ao

imperador, mas, ao mesmo tempo, são uma parte fundamental da constituição dessa nação.

Nas palavras de Benedict:

On é sempre empregado neste sentido de devoção sem limites quando emana

do principal e maior dos débitos, on imperial. É o débito para com o

imperador, que se deve aceitar com gratidão incomensurável. Seria impossível, acham eles, estar satisfeito com o próprio país, com a própria

vida, com os próprios interesses grandes e pequenos, sem pensar em aceitar

tal privilégio (BENEDICT, op. cit., p. 89).

Nota-se nesse argumento que, de fato, a cultura pública dos japoneses gira em torno da

devoção ao imperador e da aceitação da ideia de que a casa imperial constitui a representação

máxima da nação japonesa e está acima de qualquer cidadão. Além do mais, essa questão não

aparece, segundo o trecho supracitado, como um fardo que precisa ser carregado pelos

nipônicos, mas sim como motivo de orgulho nacional, já que todos fazem parte dessa

comunidade a qual consideram única e divinamente moldada.

A construção simbólica proposta a partir dessas premissas sugere que o povo japonês,

invariavelmente, procede de uma linhagem pura e extremamente poderosa. Além disso, nota-

se que a própria complexidade da mitologia da religião xintoísta atende a variados setores da

vida comum do povo:

O mito não explica apenas a origem dos japoneses e seu território, mas

esclarece muitas outras questões. Por exemplo, a hierarquia entre os sexos como base da ordem social, a dependência humana dos frutos da terra, a

separação entre vivos e mortos, o motivo de haver tantas mortes seguidas de

tantos nascimentos, o relevo do país, os astros, os desastres naturais, a vaidade das mulheres. (SAKURAI, op. cit., p. 49)

A compreensão do processo de consolidação do senso de pertencimento à nação

japonesa e a construção da noção de nacionalidade entre os japoneses, seja através da religião

ou de qualquer outro meio, é de fundamental importância, pois como foi apontado no capítulo

anterior, a nacionalidade e o nacionalismo constituem-se produtos culturais específicos.

Sendo assim, o conjunto de ideias, bem como os constructos simbólicos, assumem um papel

extremamente importante, porque será baseado nesses pressupostos e atendendo a interesses

previamente determinados que a população será educada e doutrinada.

Page 57: O massacre de Nanquim

56

Considerando-se o período pós-restauração Meiji, nota-se que se fazia necessária a

reestruturação política nacional, tendo como base determinados padrões que possibilitariam

ao Japão ser tratado em pé de igualdade com as demais nações poderosas. O Japão (BEHR,

1991, p. 34) poderia ter sido colonizado assim como a China, entretanto, as famílias

tradicionais japonesas apoiaram fortemente o poder do imperador e o avanço econômico. Sob

o governo de Meiji, o país enfrentou as potências invasoras, ao mesmo tempo em que,

paradoxalmente, absorvia inúmeros valores e técnicas ocidentais.

Os japoneses, já em meados do século XIX, nota que as intenções dos ocidentais em

relação à Ásia não são nada amistosas, sendo assim, o Japão passa a adotar uma postura cada

vez mais de fortalecimento interno. A restauração Meiji, de 1868, lança o país numa cascata

de modernização e aumento do poder do imperador, fazendo com que este seja sentido em

cada canto do território nacional.

Sakurai (op. cit., p. 133) argumenta que “a restauração Meiji [...] se pauta por reformas

cujo objetivo foi adaptar o Japão às exigências do mundo da época. Trata-se de um profundo

redimensionamento das forças sociais no cenário político-econômico levado a cabo pela elite

do país.” Entretanto, esses padrões de modernização feriam, em parte, as ideologias japonesas,

bem como sua concepção de origem diferenciada. Ademais, até mesmo no período de

dominação do xogunato Tokugawa24

, já se debatia sobre a manutenção de um país forte que

pudesse se contrapor aos anseios imperialistas ocidentais e por si mesmo aumentar sua esfera

de influência, através de sua própria expansão territorial (BEASLEY, 1987, p. 29-30).

Enfatizando a necessidade de aceitação no cenário mundial, Anderson (2008, p. 146)

afirma que “[...] o Japão, para ser aceito como ‘grande’, também teria que converter o tenrô25

em imperador e se lançar nas aventuras ultra-marinas”. Fez-se necessário, então, que se

tomasse uma decisão acerca da permanência ou mudança. Permanência no sistema de clãs

estabelecido pelos samurais, com todo um conjunto de leis que primavam pela honra e pela

24 O xogunato (governo dos generais) no Japão foi instaurado a partir do séc. XII, e tem como uma de suas figuras principais Yoritomo Minamoto. Os xoguns governavam apoiados por exércitos de samurais, que a

princípio, visavam dominar todo o Japão, unificando o país através das armas e de fortes alianças e

administração organizada. Entretanto, com o tempo esse sistema contribuirá para que se desenvolva no Japão

uma espécie de feudalismo, com o poder central quase pulverizado, e que se caracterizou por frágeis poderes

locais sob algum líder militar mais forte. Ieyashu Tokugawa foi uma figura crucial no processo de unificação do

Japão após os anos de guerra civil provocados por essa descentralização política. Além de guerreiro, ele era um

excelente administrador, e seu projeto de unificação possibilitou, não só que a paz e a coesão fossem instauradas,

mas que pudessem ser mantidas até mesmo pelos governantes seguintes. O xogunato Tokugawa foi abolido em

1868 pela restauração Meiji. 25 Esse termo era comumente utilizado por alguns clãs samurais para designar o mestre de armas perfeito, o

melhor e mais habilidoso guerreiro. Posteriormente, esse termo passou a se referir ao líder do clã principal e que era considerado o “chefe” do Japão. Evidentemente, a tradução de termos como esse não representa efetivamente

a dimensão que ele possuía na sociedade japonesa pré-moderna.

Page 58: O massacre de Nanquim

57

sabedoria proveniente dos deuses, ou a mudança, tendo como base a modernização aos

moldes ocidentais, o que significava industrialização, poder econômico, e maior poderio

militar que, todavia, viria acrescido de todo um conjunto de ideias que eram totalmente

avessas à filosofia nipônica.

Essa encruzilhada na história japonesa contribuiu para o recrudescimento das disputas

no interior do sistema político japonês. Ao contrário do que se pode pensar, a despeito da

nação japonesa viver sob um sistema de intensa disciplina e devoção, o cenário polít ico no

país não era homogêneo. Havia disputas pesadas por influência, que eram facilitadas pela

própria constituição do aparelho político26

. Peter Duus afirma que “longe de criar um sistema

absolutista, o quadro constitucional forneceu muito espaço para o conflito político e a

competição”27

(DUUS, 1976, p. 114).

Esses dois paradigmas que foram apresentados aos japoneses, bem como a escolha

pela modernização, lançariam o país definitivamente no cenário político e econômico mundial,

o que embora trouxesse alguns benefícios, modificaria totalmente a estrutura do país, haja

vista que os ocidentais seriam presenças fixas durante as próximas décadas e isso representava

um problema. Cabe ressaltar que os valores ocidentais torna-se, de certa forma, moda no

Japão e tem presença muito forte, porquanto como observa Behr (op.cit., p. 32):

O Japão foi colocado sob uma administração moderna e centralizada, com prefeitos em cada província, responsáveis perante um ministro do interior.

As vestimentas ocidentais tornaram-se moda e o porte de espadas foi

proibido em 1870. Surgiu um culto às coisas estrangeiras tanto que, em 1880, uma canção infantil muito popular [era] entoada [...] e intitulada

canção de bola da civilização.

As décadas de 1870 e 1880 representam um período no qual se constrói um grande

paradoxo na sociedade japonesa. E isso se deve justamente pelo embate das forças culturais

em disputa após a restauração Meiji. De um lado estavam os valores tradicionais japoneses,

munidos de ideias de devoção, compromisso e honra, e que faziam parte da própria

constituição cultural do Japão. Do outro lado, observa-se uma série de costumes tipicamente

ocidentais e capitalistas sendo introduzidos na sociedade japonesa juntamente com o processo

de modernização.

A própria canção citada anteriormente, e que se tornou extremamente popular nos

grandes centros urbanos japoneses, nada mais é do que uma compilação do que os nipônicos

consideravam como sendo as dez invenções ocidentais mais importantes e valiosas. Dentre

26 Não pretendemos descrever a complexidade do sistema político japonês moderno. O objetivo aqui é

simplesmente demonstrar que o próprio sistema favoreceu o aumento das disputas por influência. Para uma análise mais ampla da organização política moderna no Japão, ver Ishii (1980). 27 Tradução livre.

Page 59: O massacre de Nanquim

58

essas invenções, uma que chama particularmente atenção é a máquina fotográfica, que,

colocada numa escala de importância, está à frente dos navios a vapor, por exemplo.

Isso indica, de fato, os mecanismos, muitas vezes sutis, através dos quais o modo de

vida ocidental ganhava corpo entre os japoneses. A fotografia adquire muito valor na

sociedade nipônica, tornando-se moda, além de representar um sinal de status. Esse é um fator

de ampla importância no entendimento do processo de modernização e ocidentalização da

sociedade japonesa. As fotos dos grandes líderes tornam-se muito comuns, geralmente

cobertos com indumentárias imponentes – geralmente ocidentalizadas – que representavam

simbolicamente todo o poderio da nação japonesa.

Esses são costumes tradicionalmente ocidentais, mas que passam a integrar em larga

escala o escopo cultural japonês. Na verdade, os nipônicos desenvolvem uma capacidade

extraordinária de absorver algumas das características de vida ocidentais. Numa análise até

certo ponto radical, Behr (op. cit., p. 33) afirma que “[...] em todos os setores os japoneses

começaram a dar provas de serem extremamente bons em copiar o Ocidente.”

Entretanto, nota-se que o processo de modernização japonesa não pode ser lido

exclusivamente como um produto do imperialismo ocidental por quaisquer motivos. Nesse

sentido, entende-se que o imperialismo japonês seria, no máximo, apenas um filho ilegítimo

do capitalismo ocidental. De fato, a despeito da intensa influência europeia e americana, ao

longo de três séculos antes da abertura dos portos, o Japão esteve desenvolvendo uma forma

de capitalismo comercial que legou à economia moderna um know-how que seria essencial no

futuro (BEASLEY, op. cit., p. 27). De qualquer forma, é inegável que os europeus e norte-

americanos se estabeleciam cada vez mais frequentemente no Japão e que isso incomodava

sobremaneira os japoneses.

O ponto principal que se deve salientar aqui é o fato de que os japoneses, apesar se

verem na necessidade de absorver os valores e técnicas ocidentais para se autoafirmar

enquanto nação poderosa, não estavam dispostos, ou pelo menos não previam que seu país se

tornaria uma área de intensa concentração de estrangeiros ocidentais. Na verdade, com o

processo de modernização, veio a liberdade de viajar ao estrangeiro, o que aumentou a

consciência dos nipônicos em relação aos estilos de vida fora de seu país.

Ao mesmo tempo em que entravam em contato com a sociedade norte-americana e as

europeias, os japoneses também se deparavam com o que acontecia num dos seus vizinhos

mais próximos, a China. Nas palavras de Behr:

Ali, os conselheiros de Meiji logo perceberam, havia um estado de coisas a

ser evitado a qualquer custo: a China estava se transformando numa virtual

Page 60: O massacre de Nanquim

59

colônia das potências estrangeiras [...] Devido à sua fraqueza e

ingovernabilidade, o país [...] estava em processo de entregar pedaços de

territórios soberanos à Grã-Bretanha, França e Alemanha (BEHR, op. cit., p. 33).

Ao se deparar com esse cenário, os japoneses percebiam que se não tomassem

providências quanto à manutenção da sua soberania nacional e ao fortalecimento interno, eles

também estariam no caminho de tornarem-se meros figurantes no jogo de forças internacional.

Nesse sentido, a presença cada vez maior de estrangeiros no Japão passou a ser considerada

prejudicial e até perigosa, no que tange à sobrevivência da cultura tradicional – mesmo que

convivendo com os novos valores ocidentais – e até mesmo no que diz respeito à soberania

nacional.

Como afirma Anderson (op. cit., p. 142), “o tenrô podia ser restaurado rapidamente

após a abolição do xogunato, mas não era tão fácil expulsar os bárbaros28

.” Em decorrência

disso, a presença cada vez maior de estrangeiros no Japão cultivaria na população um

sentimento de repulsa em relação aos “bárbaros” que gradativamente transformavam o país,

introduzindo produtos e ideias ocidentais.

No exército, principalmente, havia grupos de direita que eram extremamente

recalcitrantes em relação à introdução dos valores estrangeiros em detrimento dos valores

nacionais. Entretanto, não era possível derrotar os invasores sem que antes os próprios

japoneses tivessem adquirido conhecimento bélico suficiente. Como apontado anteriormente,

em meados do século XIX, a aversão às coisas estrangeiras no Japão era bastante forte,

contudo, a frequente introdução desses produtos e valores no país provocou um processo de

aceitação a essas coisas, pois o governo imperial percebeu que o país “necessitava dos

bárbaros para tornar-se, com o tempo, suficientemente forte para expulsá-los” (BEHR, op. cit,

p. 32).

O Japão, a partir daí, estaria desenvolvendo uma espécie de relação bastante

interessante com os povos estrangeiros. Essa relação de poder sendo desenvolvida acabaria

por colocar todo indivíduo não-japonês numa posição de outsider, que, como analisado no

capítulo anterior, é uma forma de estigmatização do outro em favor do fortalecimento do

grupo que se considera insider. Os japoneses, no papel de povo homogêneo e superior, tanto

28 Nota-se que a utilização dessa expressão torna-se bastante interessante, porque comumente o olhar ocidental

prevalece nos contatos com outros povos. Entretanto, ao se analisar a visão que as outras culturas tinham dos

europeus e ocidentais de maneira geral, é claramente perceptível o estranhamento e repulsa, não só num primeiro

momento, em relação à civilização trazida por eles. No caso do contato com os povos asiáticos, esse

estranhamento não foi diferente, e cabe salientar ainda que essa dicotomia Oriente – Ocidente se faz notar até mesmo nas esferas mais elementares das relações entre os povos. Para uma análise mais detida acerca da relação

entre ocidentais e os povos considerados não-ocidentais, ver (HANSON, op.cit.).

Page 61: O massacre de Nanquim

60

étnica quanto socialmente, transferem aos outros indivíduos uma abordagem figuracional

depreciativa, enquanto atribuem a si mesmos uma série de características valorativas. A

depreciação do outro, nesse caso, se fazia extremamente importante para o projeto de

afirmação nacional do Japão.

Nesse sentido, a necessidade da constituição de uma nação forte que pudesse se

contrapor aos estrangeiros, além de exigir total apoio popular, demandava poder econômico e

principalmente militar. Todavia, o Japão era ainda fraco demais para derrotar os estrangeiros,

e por isso, seriam necessárias as próprias técnicas dos ocidentais para derrotá-los, o que,

porém, os japoneses ainda não possuíam.

A incapacidade de restringir a influência dos estrangeiros no país de forma imediata

causaria no inconsciente coletivo dos nipônicos um misto de impotência e ódio em relação

aos “bárbaros”. Vale salientar que o povo japonês, herdeiro, ainda, de filosofias samurais e

que se autoconsiderava um povo superior (o papel da religião novamente merece ser

destacado), encontraria uma grande dificuldade em compreender e admitir que suas técnicas

militares, via de regra, eram ainda muito inferiores às ocidentais.

Com o seu modelo militar ainda baseado em guerreiros lutando com espadas e lanças,

o Japão notou que o estilo de guerra europeu moderno não poderia ser vencido. O alto escalão

do governo japonês se convenceu de que nem mesmo poderia exercer pressão sobre as demais

potências, levando-se em consideração que, diante dos exércitos ocidentais, o desorganizado

Exército imperial não representaria sequer um inimigo que exigisse muito esforço para ser

derrotado.

O Japão entra em contato com conhecimento proveniente do ocidente, pela primeira

vez, através de livros trazidos pelos alemães, isso possibilitou que, no momento em que a

guerra do ópio na China mostrasse o quão perigosas eram as intenções expansionistas

ocidentais, os japoneses já possuíssem algum conhecimento acerca da ciência e tecnologia

modernas (BEASLEY, op. cit., p. 28). Essas ações ocidentais demonstraram ao Japão, de

forma ainda mais incisiva, que era necessário adotar uma postura mais enérgica e agressiva,

ou, então, amargar o jugo ocidental.

Dessa forma, todo esse pano de fundo apresentado aos japoneses, justificava cada vez

mais a necessidade da manutenção de um Estado forte, com coesão popular contra os

“bárbaros”. A constituição desse Império merece tanto crédito quanto a mentalidade que os

Page 62: O massacre de Nanquim

61

japoneses atrelaram à modernização. The four corners of the world under one roof29

, é um

exemplo dos jargões que impulsionaram a criação e expansão de um império ultramarino, que

seria erigido em nome do imperador.

Muito mais do que simplesmente defender-se das possíveis investidas dos europeus e

norte-americanos, os japoneses ambicionavam expandir suas próprias fronteiras. E mesmo

que a princípio parecesse que buscavam tão somente a garantia da soberania sobre o seu

próprio território, a casa imperial japonesa demonstrou que visava muito mais do que isso, o

que incluía contrapor-se até mesmo à própria presença dos ocidentais na Ásia. Só que nesse

contexto os primeiros a sentir o seu japonês são, evidentemente, os territórios mais próximos:

a Coreia e a China.

Nesse ínterim, a cultura simbólica japonesa e a noção de dever para com o imperador

exerceram um papel preponderante. Partindo desses pressupostos, seria fácil estimular a

população, e mais especificamente o exército, a praticar qualquer tipo de ação em nome da

sua nação divina. Além disso, Anderson (op. cit., p. 142-143) argumenta que “[...] a

antiguidade exclusiva da casa imperial e a sua identidade nipônica simplificavam muito a

utilização da figura do imperador para finalidades nacionalistas oficiais.” Por outro lado,

afirma ainda o autor, se fazia necessário que toda a população, sem exceções, incorporasse o

sentimento nacionalista, e em decorrência disso notam-se medidas de longo prazo que, em

retrospecto, oferecem uma explicação às ações dos japoneses no final do século XIX:

Em 1872, um decreto imperial determinou a implantação de um programa

de alfabetização geral de adultos do sexo masculino. Em 1873, muito antes do Reino Unido, o Japão instaurou o serviço militar obrigatório. Ao mesmo

tempo, o regime acabou com a classe privilegiada e legalmente definida dos

samurais, numa medida essencial de abertura [lenta] do corpo de oficiais a

todos os talentos, e também para se adequar ao novo modelo, agora “disponível” da nação de cidadãos ( id.).

O modelo nacional que passou a ser adotado no Japão demandava a ampla

participação popular e aceitação do poder do imperador. Ao mesmo tempo em que os

cidadãos deveriam absorver os valores nacionais e saber que são partes fundamentais da

nação japonesa, eles precisavam reconhecer a dívida que tinham com a casa imperial, e, da

mesma forma, sentir-se orgulhosos em poder servi-la.

29 “The four corners of the world under one roof” (os quarto cantos do mundo sob o mesmo teto) é uma

expressão que destaca perfeitamente os anseios japoneses daquele período. Nota-se que realmente o país

ambicionava o controle de inúmeras áreas de influência na Ásia, dentre elas principalmente a China, mas que

também visava influência política sobre as potências ocidentais. Pode-se dizer que essa expressão utilizada, não como simples retórica, pretendia ser seguida exatamente ao pé da letra. Sobre esse assunto, vale a pena consultar

(BEASLEY,ibid., p. 27-et seq.)

Page 63: O massacre de Nanquim

62

Sendo assim, a construção em massa dessa mentalidade de nação de cidadãos

perpassaria diretamente pelo sistema educacional oficial. Vale lembrar que no período Meiji é

criado um sistema educacional obrigatório, que, inclusive, também passa a figurar na cultura

popular como sendo algo extremamente valioso e importante. De fato, esse sistema aparece

como o carro chefe na construção da cultura e dos valores do Japão moderno, em contraste ao

antigo modelo baseado nos clãs de samurais.

O imperador, nessa conjuntura, aparecia como o símbolo de poder da nação. Segundo

Beasley (op. cit., p. 35 et seq.) a constituição reconhecia sua descendência divina. Ele era

considerado um monarca benevolente e profundamente sábio no que concerne ao

comportamento moral do seu povo. Além do mais é preciso destacar, ainda, que nas escolas o

curso de ética treinava toda criança em reverência e lealdade ao imperador, ele era o foco da

unidade nacional, a personificação da tradição. Tudo quanto possível era feito para que todo

homem, mulher e criança do Japão o temesse.

Nesse contexto, ambos, o sistema educacional e a tradição religiosa desempenharam

papéis de destaque na construção de uma cultura de devoção incondicional ao imperador. O

cotidiano dos cidadãos funcionava no sentido de tornar natural a dominação da casa imperial

sobre todos os diversos aspectos da vida. Sendo assim, era fundamental que o imperador

aparecesse como o representante máximo das virtudes japonesas. As escolas e a religião

atuariam diretamente nesse sentido.

Vale considerar, ainda, que “todas as mudanças profundas na consciência, pela sua

própria natureza, trazem consigo amnésias típicas”. Desses esquecimentos, em circunstâncias

históricas específicas, nascem as narrativas” (ANDERSON, op. cit., p. 278). Em decorrência

disso, a engenharia simbólica feita no Japão no período pós-abolição do xogunato é de

fundamental importância para a reestruturação do país tendo como base novos princípios. O

enraizamento na população de doutrinas que pusessem em cheque a ideologia samurai, ao

mesmo tempo em que supervalorizasse a importância do imperador seria de vital importância

para a sustentação de um regime centralizado forte.

Analisando-se essas medidas tomadas pelo governo japonês30

, nota-se que, ao mesmo

tempo, deram fim à classe dos samurais, considerados naquele momento um mal à sociedade

japonesa em processo de modernização, e possibilitaram que o povo31

japonês pudesse

30 A expressão governo nesse caso se refere ao alto comando do governo (parlamento, gabinete) e não especificamente à figura do imperador. 31 Entende-se povo como os cidadãos adultos do sexo masculino.

Page 64: O massacre de Nanquim

63

integrar-se à máquina do Estado, reconhecendo na figura do imperador o grau máximo dessa

instituição.

A estratégia governamental de incorporação gradativa da população deve ser

entendida tendo como base o anseio de que o Japão se tornasse uma nação forte, e isso só

seria possível com aderência popular e, principalmente, através do reconhecimento por parte

dos ocidentais. Ao analisar essa questão, Behr (op.cit., p. 77) afirma que “para que o Japão se

tornasse uma grande potência, deveria ser tratado em pé de igualdade [pelos ocidentais].

Também deveria possuir meios para se defender das outras potências mundiais.” Isso significa

que o país deveria ser reconhecido como potência na Ásia e que também deveria conhecer os

meios para que pudesse agir em defesa, tanto do seu próprio território, como dos seus

vizinhos, do domínio estrangeiro.

Em concordância com essa argumentação, Beasley (op. cit., p. 27-et seq.) afirma que

na virada do séc. XIX para o XX, especialmente, se intensifica no Japão um sentimento de

reafirmação dos seus próprios valores de forma antagônica aos valores ocidentais, e, ainda,

que essa preocupação não se limitava às fronteiras nacionais e que declarava motivos bem

mais fortes do que meramente econômicos. O governo argumentava que o fortalecimento dos

seus valores visava a defesa não só do território dos países, mas de sua alma.

Essa característica, a despeito de parecer uma coisa simplesmente mística, metafísica,

ou até desprovida de aplicabilidade prática, ganharia corpo e legitimidade no Japão e estaria

fortemente presente no desenvolvimento da política externa do país, sobretudo em relação ao

sudeste asiático. Na verdade, essa questão representa uma das grandes balizas do próprio

empreendimento imperialista japonês. O que não quer dizer que os japoneses, de fato, fossem

agir de forma benevolente para com seus vizinhos, mas indica que as ações seriam pautadas

pela seguinte concepção: já que alguém iria exercer dominação na região, esse deveria ser o

Japão, a fim de proteger a Ásia dos “bárbaros”.

Partindo dessa premissa alegadamente altruísta, nota-se que na década de 1890 as

intenções expansionistas do Japão se intensificaram e os olhos se voltaram de forma especial

para o sudeste asiático. Contra esse pano de fundo, o que se desenrolaria seria uma guerra

contra a Coreia que representaria o primeiro estágio do imperialismo japonês (BEASLEY,

ibid., p. 55).

O Japão nesse momento perceberia a real importância de ter bases fortes, tanto política

quanto militarmente, para que seus interesses fossem atendidos e respeitados. Para tanto, seria

necessário que o país adotasse os mesmos meios, de ganho econômico e aumento de sua

Page 65: O massacre de Nanquim

64

esfera de influência, do que os ocidentais. O país ingressaria na empreitada imperialista.

Contudo, o imperialismo nipônico tinha bases que iam muito além dos ganhos materiais. O

ethos imperialista japonês estaria fortemente imbuído da mentalidade japonesa e das ideias de

honra e vergonha, o que, por si só, já representa uma grande diferenciação em relação aos

imperialismos ocidentais.

Os fatores que culminaram no processo imperialista japonês podem ser entendidos

através da análise da progressão histórica do país e sua relação com o ocidente. Tendo como

base as experiências históricas do Japão, em contraposição aos países europeus e os Estados

Unidos, pode-se considerar que, se nesses países o imperialismo surge atendendo a anseios

principalmente econômicos, naquele, ele surge por motivos bem diferentes. Beasley (ibid., p.

6) defende que o imperialismo japonês veio a existir por vias bastante diferentes do britânico,

alemão ou até mesmo do norte-americano. Ele se caracteriza, não pela necessidade de

aumentar mercados consumidores para uma superprodução, mas pela aliança de uma

burguesia com a elite militar no intuito de uma acumulação primitiva de capital.

As alianças entre os militares, a burocracia e a burguesia possibilitaram a expansão

japonesa. Além disso, a necessidade do Japão se adequar às condições mundiais de

capitalismo e imperialismo, como uma nação livre, levou o país a atuar como agente no

processo, como já dito anteriormente, para que não sofresse a ação de outros países. Além do

mais, o súbito contato japonês com o ocidente, como destaca Anderson (op. cit., 144-145),

contribuiu para que se adotasse um caráter imperialista agressivo em decorrência dos três

séculos de isolamento voluntário provocado pelo xogunato tokugawa.

A nação japonesa, por assim dizer, não se sentia parte integrante de um “pluralismo

tradicional de Estados dinásticos em interação” (id.), e por isso a postura defensiva do

passado logo se tornaria um anseio expansionista desenfreado. Nesse sentido, a ausência de

familiaridade com a comunidade internacional imaginada logo se materializaria num jogo de

forças no qual só há duas opções: conquistar ou ser conquistado.

O imperialismo japonês, sendo analisado sob o ponto de vista simbólico, apresenta

algumas semelhanças em comparação ao europeu e norte-americano. Como afirma Sakurai

(2007, p. 186-187):

A grande maioria do povo japonês, disciplinado e doutrinado há pelo menos

duas gerações, passou a acreditar que o Japão tinha uma missão de

“civilizar e esclarecer” o mundo o que, na prática, significava conquistar

territórios e fazer valer seus interesses sobre o de outras nações.

Nos movimentos expansionistas ocidentais, nota-se que a população acreditava

realmente que era o seu papel levar a civilização aos povos atrasados e que, em contrapartida,

Page 66: O massacre de Nanquim

65

esses povos se sentiam agradecidos pela modernização que recebiam. O Japão, por seu turno,

considerava sua liderança na Ásia um fator de extrema importância para sua sobrevivência

política e econômica, assim como dos próprios países que estavam sendo subjugados, mesmo

que isso significasse o martírio dessas outras nações asiáticas em favorecimento do

crescimento do povo nipônico.

Já na primeira década do séc. XX, o sentimento expansionista no Japão já está tão

enraizado, e esse ethos imperialista tão bem construído, que o apoio popular foi facilmente

conseguido. Anderson (op. cit., p. 144) afirma que:

O êxito espetacular do Exército japonês contra a China em 1894-5 e da

Marinha Imperial contra a Rússia czarista em 1905, e mais a anexação de

Taiwan e da Coréia, foram de imensa valia para criar a impressão geral de que a oligarquia conservadora era uma representante autêntica da nação,

enquanto os japoneses começavam a se imaginar membros dela.

A população japonesa era fortemente estimulada a adotar os valores da expansão

territorial como a missão do Japão. As ações do Exército Imperial na China atuariam no

sentido de mostrar que esse realmente seria o caminho correto a ser seguido, além de ser esse

um caminho bastante lucrativo. A despeito disso, Beasley (op. cit., p. 56), afirma que não há

evidências de que ao declarar guerra à China em 1894, o governo japonês tivesse expectativas

de ganho territorial, porém, a facilidade e a rapidez das vitórias japonesas contribuíram para o

aparecimento desse tipo de ambição. Além do mais, o fervor público no Japão durante a

guerra aumentou consideravelmente.

O fato é que a guerra com a China trouxe ao Japão a possibilidade de anexação de

alguns territórios, e embora a princípio essas anexações não fossem almejadas, elas depois se

mostraram bastante convenientes. Além disso, Sakurai (op. cit., p. 164) afirma que “a guerra

sino-japonesa revelou o poderio do Japão ao resto do mundo ocidental. Até então, desde 1868

ao final do séc. XIX, o Japão aparecia aos norte-americanos e europeus envolto numa bruma

exótica e inofensiva de gueixas ou imagens bucólicas do monte Fuji.”

A China, sendo uma das principais áreas de interesse do Japão, merece destaque no

que tange às representações do povo japonês em relação aos chineses. A princípio, nota-se

que o Japão “reconhecia a China como a matriz de muitos fundamentos da cultura japonesa –

a escrita, a religião budista, o confucionismo [...]” (SAKURAI, ibid., p. 163), contudo,

percebe-se uma mudança radical nesse sentimento, já que, como afirma Behr (op. cit., p. 33),

a partir de determinado momento “os japoneses desprezavam a China por sua falta de

patriotismo. Durante a era Meiji, os japoneses passaram a ver a China não como nação, mas

sobretudo como uma cultura, um estado de espírito”.

Page 67: O massacre de Nanquim

66

Uma mudança extremamente significativa como essa merece muita atenção. O

reconhecimento, por parte dos japoneses de que a China havia tido participações

consideráveis na formação cultural do Japão não pode ser descartada, contudo, é preciso

atentar para a maneira através da qual os chineses seriam representados na mentalidade

japonesa no período expansionista. Os japoneses passaram a observar que na China havia uma

série de coisas que deveriam, a qualquer custo, ser evitadas.

Nota-se que mais uma vez o contato com os ocidentais exerceria um papel bastante

importante na construção dessas representações. Behr (id.) afirma que “com a modernização e a

liberdade de viajar ao estrangeiro, surgiu uma crescente consciência da vida além das fronteiras

japonesas, especialmente na terra continental mais próxima, a China.” No Japão, o país vizinho era

visto como uma terra sem leis, terra de ninguém, e isso favorecia e fortalecia cada vez mais o

imperialismo japonês na área.

Nesse ponto, vale a pena estabelecer uma análise mais detida sobre a relação entre

Japão e China. Como dito anteriormente, o Japão, na trilha da modernização e

desenvolvimento econômico-militar, não poderia – e nesse aspecto torna-se claro o anseio

japonês – deixar que seu vizinho continental continuasse servindo, mesmo que

involuntariamente (considerando-se que a China não possuía os meios necessários para se

defender ou simplesmente não o fazia) aos interesses ocidentais.

A relação e as representações estabelecidas pelos nipônicos são bastante intrigantes,

no sentido de que torna-se claramente perceptível uma depreciação do povo chinês. No Japão

há um processo de estabelecimento e intensa afirmação de um sentimento de nós em

contraposição a eles. A China é a representação de tudo o que os japoneses não querem para

seu país. No Japão, a aversão e repúdio aos chineses passam a ser bastante comuns.

Esse processo de estigmatização de um grupo por outro pode ser entendido

analisando-se o processo de estruturação simbólica das partes envolvidas32

. Um grupo só

poderá atribuir máculas a outro desde o momento em que ele próprio estiver instalado em

posições de poder nas quais o outro não está. Cabe ressaltar ainda, que muito além de simples

preconceito individual do japonês em relação ao chinês, o estabelecimento dessa perspectiva

estigmatizante é, antes de qualquer coisa, um processo estritamente coletivo. Não é

simplesmente o chinês (ou um chinês específico) que é visto como pária, mas toda a China,

enquanto nação sofre essa exprobração.

O resgate à análise de Elias (2000, p. 23) ajuda a compreender esse processo:

32 Ver capítulo 1.

Page 68: O massacre de Nanquim

67

Há uma tendência a se discutir o problema da estigmatização social como se

ele fosse uma simples questão de pessoas que demonstram, individualmente,

um desapreço acentuado por outras pessoas como indivíduos [...]. Entretanto, isso equivale a discernir apenas no plano individual algo que

não pode ser entendido sem que se o perceba, ao mesmo tempo, no nível do

grupo [...]. Portanto, perde-se a chave do problema que costuma ser

discutido em categorias como a de “preconceito social” quando ela é exclusivamente buscada na estrutura de personalidade dos indivíduos. Ela

só pode ser encontrada ao se considerar a figuração formada pelos dois

grupos implicados ou, em outras palavras, a natureza de sua interdependência.

Inúmeros fatores merecem ser destacados no que concerne à relação entre esses dois

países. Todavia, o que mais deve ser destacado é o desprezo pelos chineses que,

complementarmente ao ódio, estimularia a materialização de cenários extremamente

pavorosos e desumanos, quando da ação do Exército Imperial na China. E essa é uma questão

extremamente pertinente, já que esse sentimento permeará as relações entre esses dois países.

No caso da Rússia, a rápida vitória num período de aproximadamente um ano (1904-

1905) tomaria proporções muito maiores do que uma simples campanha militar bem sucedida.

O exército russo representava um império de proporções continentais, o que, segundo Sakurai,

(ibid., p. 165-166), trazia ao Japão o status quo equivalente a Davi vencendo Golias. É

evidente que a alegoria à história bíblica não era tão recorrente entre a população japonesa,

haja vista que o cristianismo não tinha ampla difusão no país. Entretanto, no ocidente, o fato

do Exército Imperial, representante de uma nação tão pequena como o Japão, ter vencido as

tropas russas, mostrava que aquele país não estava adormecido, ou pelo menos que não era tão

alheio ao resto do mundo.

Mesmo que as demais potências tivessem conhecimento antes da guerra de que o

Japão possuía uma marinha e um exército de primeira classe, era praticamente impensável

que um país de proporções tão minúsculas pudesse vencer uma potência como a Rússia.

Mesmo no Japão, havia sérias dúvidas quanto à possibilidade real do país vencer a guerra.

E apesar do Japão ter sofrido pesadas baixas em seu efetivo e também um déficit

financeiro considerável, a representação simbólica do país perante os demais nunca mais seria

a mesma. A total entrega das tropas japonesas no campo de batalha33

mostraria efetivamente

quem era aquele pequeno país. A imprensa mundial exaltaria o caráter “heróico” do Exército

japonês. Uma manchete do The times (apud BEHR,op. cit., p. 37) acentuava que “A atitude do

povo japonês diante desse triunfo que marcará época é uma visão para homens e deuses”. 33 De fato, é interessante ressaltar que não se esperava realmente, segundo Behr (1991, p. 37) que muitos

soldados japoneses sobrevivessem aos conflitos, entretanto, a vontade com que combatiam e a dureza com a qual os oficiais os tratavam, fuzilando imediatamente qualquer um que abandonasse o campo de batalha, tomaram

dimensões gigantescas no cenário mundial.

Page 69: O massacre de Nanquim

68

Esse período, no qual o Japão pôde surpreender o resto do mundo com seu potencial

bélico, provocou o aparecimento de expressões referentes ao país, como perigo amarelo, que

permaneceu nas representações ocidentais nas décadas seguintes. No Japão, a vitória sobre o

gigante russo traria consequências extremamente significativas na psique da população.

Segundo Behr (ibid., p. 38), “as qualidades bushido de seu exército e marinha e as

histórias de legendário heroísmo em face de dificuldades esmagadoras eram contados e

recontados na imprensa e nos livros de história do Japão”. O Exército, a partir desse momento,

passaria a desempenhar um papel cada vez mais importante e as carreiras militares tornaram-

se mais procuradas do que nunca. A população realmente absorvia os ideais militares.

É interessante notar que, se num primeiro momento (final do século XIX) houve um

esforço empreendido pelo governo japonês, após a restauração Meiji, para acabar com a

cultura samurai, o alvorecer do século XX e os confrontos com as potências europeias

proporcionaram um cenário perfeito justamente para o resgate dessa mentalidade e dessas

filosofias, a fim de que os nipônicos pudessem rivalizar os ocidentais.

Nesse sentido, as ações cometidas pelo Exército Imperial posteriormente,

principalmente na China, merecem destaque justamente pelo fato de que elas eram

legitimadas pelos japoneses. O Japão, segundo Dower (2005, p. 268) “não [se considera] mais

culpado do que os outros países envolvidos na guerra e nem mais violento nos campos de

batalha e para com os prisioneiros do que os outros combatentes”. Existe todo um complexo

simbólico que dá suporte a cada país ou indivíduo envolvido em um conflito34

.

Contudo, essas justificativas nem sempre são realmente válidas. O que é interessante

destacar aqui é o fato de que até mesmo as ações mais pavorosas e desumanas possuem

pressuposições que são vistas como válidas pelos que promovem os atos. Aliás, falar em

conflitos, massacres ou qualquer tipo de conflagração sem falar dos seres humanos que estão

por trás desses acontecimentos é descaracterizar totalmente o papel da história.

Nesse sentido, a análise de assuntos como o imperialismo japonês não pode vir

separada da análise dos reais anseios e perspectivas que serviram como combustível e

afirmação dos valores expansionistas. Nota-se que nas épocas posteriores à Segunda Guerra

os países ocidentais adotaram uma postura de demonizar os japoneses pelos seus atos na

34 É necessário destacar, nesse ponto, que as ações dos imperialistas na África e Ásia principalmente, sem

esquecer das Américas, também eram justificadas sob o ponto de vista ideológico, entretanto essas justificativas

não diminuem o caráter desumano dos atos. Nota-se, contudo, que no caso japonês parece que a culpa pelos

acontecimentos vem em dobro, o que não acontece no caso do imperialismo ocidental. O objetivo aqui não é

condenar ou absolver os países, e seus respectivos meios imperialistas, das suas ações, mas analisar o processo de demonização das culturas orientais, e em especial o Japão, por seus atos, que muitas das vezes são até menos

prejudiciais do que os equivalentes ocidentais, considerando-se que se possa fazer essa comparação.

Page 70: O massacre de Nanquim

69

China. Entretanto, conforme se verifica na análise de Dower (op.cit., p. 274) as atitudes de

países como os Estados Unidos no Vietnã, por exemplo, oferecem uma demonstração de

como os americanos (e outros) se colocaram em posição de julgar os japoneses, mas sem ao

menos observar os mesmos critérios para si.

A questão central aqui é que a manutenção de um Japão forte no início da década de

1920 seria, por um lado, encarada como benéfica, principalmente pelos Estados Unidos,

porque representaria um baluarte asiático contra o comunismo russo, que ambicionava

influência política naquelas áreas. Todavia, a mentalidade expansionista japonesa aliada ao

fato de que a população se encontrava extremamente coesa com o governo, provocaria

prontamente a atenção dos americanos, e isso contribuiu para que “[...] em 1924 os Estados

Unidos [fechassem] definitivamente a entrada de imigrantes japoneses em seu território. Essa

postura, além de restringir a possibilidade de muitos jovens satisfazerem o sonho de mudar de

vida, feriu o orgulho dos japoneses” (SAKURAI, op.cit., p. 175).

Há de se atentar para o fato de que no início do séc. XX o fluxo de japoneses

imigrando para outros países e de estrangeiros migrando para o Japão havia se intensificado

consideravelmente devido à própria dinâmica política mundial. Sendo assim, essa atitude

tomada pelo governo dos EUA em relação aos japoneses tomaria proporções gigantescas na

mentalidade da população e nas relações diplomáticas entre esses países.

Em meio a esse cenário de crescente rivalidade dos nipônicos em relação a alguns

países ocidentais, o exército japonês vem sendo treinado e doutrinado, a fim de que se

tornasse uma verdadeira máquina de guerra que destruísse rapidamente os inimigos nacionais,

que visavam impedir que os anseios políticos nacionais – leia-se os anseios que eram

veiculados como sendo do próprio imperador – fossem colocados em prática.

As ações do Exército Imperial devem ser analisadas à luz do forte sentimento

nacionalista no Japão. Segundo argumenta Sakurai (op. cit., p. 187), no período a partir da

década de 1930:

O “espírito samurai” foi revivido de forma contundente como exemplo de comportamento a ser seguido por todos os japoneses: lealdade, obediência

às normas e à hierarquia, orgulho da pátria. A literatura e o cinema japonês

da época exploravam o espírito de auto-sacrifício em nome do país. As

músicas preferidas tinham o som de marchas militares, num vivo contraste com as décadas anteriores. O apelo patriótico, sempre presente, procurava

agora preparar a população para uma iminente guerra.

O trecho citado indica uma série de questões que não podem ser perdidas de vista

numa análise da sociedade japonesa do início do século XX. Primeiro, o resgate do que se

considera como sendo o “espírito samurai”; em segundo lugar, destaca-se o papel exercido

Page 71: O massacre de Nanquim

70

pelas artes no imaginário da população; e por último, deve-se levar em conta o esforço do

Estado para legitimar uma cultura bélica nacional.

O espírito samurai que se pretende resgatar representa tudo de mais precioso, em

relação a valores de honra e lealdade, que era extremamente necessário à manutenção de um

Japão forte nesse período. De fato, a cultura samurai havia sido oficialmente abolida desde a

década de 1870, entretanto, ainda havia um forte resquício simbólico do estilo de vida e

devoção dos antigos samurais, presente no cotidiano dos japoneses.

O esforço governamental ocorria no sentido de demonstrar que o compromisso de

honra maior que qualquer japonês deveria assumir era o próprio on em relação ao imperador.

Isso se conseguiria através do sistema educacional obrigatório que fora implantado após a

restauração Meiji. A educação de massa estabelecida pelo governo atendia, em larga escala,

aos interesses estatais para que se formasse uma cultura de legitimação das ações do governo.

Sendo assim, as próprias escolas se encarregaram de transformar alguns aspectos da

tradicional cultura samurai e adaptá-los à nova realidade do país. Aliás, a educação passou a

ser tão importante para a construção do Estado japonês moderno que os professores eram os

únicos cidadãos que não tinham por obrigação curvarem-se diante do imperador.

O sistema educacional funcionou como um dos principais instrumentos do governo

para construir, de fato, uma cultura pública no Japão. E isso se fez perceber ainda mais

fortemente dentro do exército, já que a cultura samurai que era resgatada apontava para uma

atitude em relação à guerra que era a de conseguir a vitória sobre os inimigos, ou uma morte

honrada no campo de batalha. Ou seja, os soldados japoneses seriam formados sob uma

pesada doutrina de repúdio à fraqueza (física e mental), extrema devoção e obediência aos

superiores, e principalmente, eram ensinados a não retroceder nunca, mesmo em face à morte

certa, e não demonstrar qualquer tipo de piedade para com o inimigo.

Esse é um ponto que salta aos olhos, tendo em vista que um exército formado por

soldados que são tão fortemente devotados a uma causa – e isso se faz notar claramente na

devoção do exército japonês em relação ao imperador – se torna uma máquina de matar

extremamente eficiente, dada a falta de limites provocada pela própria necessidade de se

atender a um objetivo maior: atender aos anseios do imperador.

Se o sistema educacional agia oficialmente no sentido de construir e consolidar os

ideais e a cultura que atenderiam aos anseios do Estado japonês moderno; as artes e aquilo

que se considera como sendo a cultura popular agiam no sentido de cristalizar e naturalizar

Page 72: O massacre de Nanquim

71

ainda mais os diversos aspectos simbólicos desse conjunto de representações que passaram a

fazer parte do cotidiano dos cidadãos.

Sendo assim, de fato, se passa a observar no país a introdução de uma série de

aspectos culturais ocidentalizantes (como, por exemplo, a já citada canção de bola da

civilização), que na medida em que fossem reproduzidos pela população trariam naturalidade

aos diversos símbolos recentemente introduzidos no país, e também a ideia de que essas

manifestações sempre fizeram parte da cultura nacional comum.

O impacto causado em médio prazo pela repetição constante dos inúmeros novos

símbolos culturais no Japão se faz notar na medida em que se observa o êxito dessa política

em adequar a cultura popular nipônica à nova conjuntura internacional enfrentada pelo país à

época. As músicas, as artes plásticas, o teatro, enfim, todos os aspectos culturais oficiais no

Japão se voltaram ao objetivo de colaborar com as metas do alto escalão governamental.

E isso porque, no Japão, se fazia necessária a construção de uma cultura pública

voltada para a guerra. Esse ponto seria de extrema importância, na medida em que o país

necessitaria do maciço apoio popular, no jogo de forças internacional, em contraposição aos

ocidentais que estendiam suas áreas de influência cada vez mais pelo sudeste asiático,

principalmente na China.

O Japão – leia-se o governo imperial – não poderia empreender grandes campanhas

militares, nem mesmo esboçar qualquer tipo de hostilidade em relação a outros países, sem

que tivesse a coesão interna que o possibilitasse. Sendo assim, a construção de uma cultura

pública voltada para a guerra garantiria que no momento em que fosse exigido de cada

cidadão a sua devida participação e apoio em relação aos conflitos, a legitimação popular viria

naturalmente, devido a esses fatores já fazerem parte da cultura do país.

Na verdade, a gradativa introdução, e ao mesmo tempo aceitação dos novos valores

culturais no Japão, por si mesmas, trataram de criar um terreno bastante fértil para o

fortalecimento de ideias favoráveis à manutenção de um Estado forte, e até mesmo um clamor

público pró-intervenção nas regiões (principalmente chinesas) onde houvesse forte presença

ocidental. É interessante perceber que todos esses fatores – educação, artes e cultura popular –

estarão intimamente ligados e interdependentes no Japão do início do século XX, e que, em

larga escala, serão fundamentais na constituição social nipônica de uma cultura em favor da

guerra.

As relações entre os nipônicos e os demais povos asiáticos, dentre eles principalmente

a China, devem ser analisadas partindo-se do entendimento de todo o conjunto cultural e

Page 73: O massacre de Nanquim

72

simbólico que servia como justificativa aos atos dos governantes e dos soldados. Pressupondo

esse entendimento, é possível se fazer um exame mais próximo dos eventos, evitando

qualquer tipo de maniqueísmo provocado pelo não conhecimento do contexto histórico no

qual os países estavam submersos.

Na década de 1890, atendendo aos fatores até agora apontados, as intenções

expansionistas japonesas se intensificaram e os olhos se voltaram com mais força para o

sudeste asiático. Sobre esse pano de fundo, começaria uma guerra contra a China e a Coréia

que representaria o primeiro estágio da expansão imperial japonesa (BEASLEY, op. cit., p.

55)

A guerra sino-japonesa de 1894-5 representa um marco fundamental para o início de

uma postura efetivamente agressiva do imperialismo japonês. Esse conflito, pode-se dizer,

caracterizou-se pelo anseio japonês em gradativamente diminuir a esfera de influência chinesa

no sudeste asiático, ao passo que aumentaria sua própria área de alcance. Como estopim para

esse conflito, podem-se citar as hostilidades que surgem fundamentalmente devido ao impasse

provocado pela questão da Coréia35

.

A respeito desse ponto, deve-se destacar a argumentação de Sakurai (op. cit., p. 163)

de que “o Japão via nela [Coréia] um terreno propício para cumprir seus objetivos de alargar

as fronteiras econômicas pelo comércio e para a obtenção de matérias-primas”. Nota-se que o

território coreano já era cobiçado pelos russos, pelos japoneses e mesmo pelos chineses há

pelo menos duas décadas. Ademais, desde meados do séc. XIX China e Japão, especialmente,

já divergiam quanto ao exercício de influência na região.

Em retrospecto, nota-se que os nipônicos em 1875 propuseram um acordo econômico

à Coréia a fim de garantir para si mesmos uma posição privilegiada. China e Rússia,

prontamente demonstraram descontentamento em relação a esse acordo, já que se sentiram

extremamente secundarizados por ele, o que fez aumentar ainda mais a inimizade entre os

países (SAKURAI, id.).

A fragilidade nas relações entre China e Japão era bastante notável. Ela seria tamanha

que, em 1885, os dois países se viram na eminência de uma guerra. Contudo, assinaram um

tratado para evitar tal conflagração. Em longo prazo, esse acordo se mostrou ineficiente, pois

em vez de anular a possibilidade de guerra entre os dois países, apenas a adiou em uma

década.

35 Durante as duas décadas anteriores à guerra sino-japonesa, a China e o Japão divergiram quanto à política

interna da Coréia e a forte influência chinesa no governo do país. A Coréia fica localizada numa área extremamente estratégica e seria de grande importância para atender aos anseios expansionistas japoneses, que

se voltavam para o sudeste asiático.

Page 74: O massacre de Nanquim

73

A análise da guerra sino-japonesa não pode perder de vista o desenvolvimento político

e cultural dos dois países envolvidos no conflito. Nesse sentido, mesmo uma rápida

observação seria capaz de explicar, pelo menos a princípio, a rápida vitória japonesa. Esse

exame da progressão histórica de japoneses e chineses viabiliza o entendimento dos

desdobramentos do conflito, e é necessária nesse ponto uma atenção especial para o

desenvolvimento militar dos dois países.

A virada do século XIX para o XX, na análise de Behr (op. cit., p. 33), é um período

no qual as marinhas assumem um papel de extrema importância no que tange ao poderio

militar de uma nação. Sendo assim, o Japão, que vinha num passo bastante acelerado de

modernização do exército e da marinha, assumia de início uma vantagem considerável em

relação à China. Esta, por seu turno, sofria com a forte influência estrangeira em seu território,

o que impossibilitava o desenvolvimento das estruturas militares.

Além disso, deve ser destacado ainda, o fato de que a situação da política interna dos

dois países era totalmente oposta. Enquanto o Japão vinha num crescente social, com

melhorias objetivando a legitimação do Estado nacional moderno por parte dos cidadãos, o

que visava a total coesão nacional; a China atravessava um período de instabilidade política,

marcado por inúmeras guerras civis e pela impossibilidade de manutenção de um governo

central forte. A decadente dinastia Manchu não tinha poder suficiente para que se fizesse

sentir em todo o imenso território chinês (BEHR, id).

A conflagração de 1894-95, levando em consideração a situação interna dos

beligerantes, foi fácil e rapidamente vencida pelos japoneses. O teatro de operações, que num

primeiro momento compreendeu o território da Coréia, num curtíssimo espaço de tempo se

arrastou para a Manchúria, no nordeste da China, onde os chineses foram definitivamente

derrotados pelas tropas japonesas. O período imediatamente após a guerra, mais do que o

conflito em si, merece uma atenção especial. O Japão, com a vitória no conflito, visa obter

grandes vantagens econômicas. Entretanto, como destaca Beasley (op. cit., p. 56 et seq.), os

termos do acordo de paz em vias de ser elaborado pelos japoneses foi causa de muitas

controvérsias entre o governo. O autor destaca que:

Os homens com voz ativa no governo japonês, que tinham influência na

elaboração dos termos de paz, se mostravam menos ambiciosos do que a

opinião pública e a imprensa. Mas nem tanto assim. Oficiais do ministério das finanças ansiavam por uma grande indenização, para que fossem pagos

os gastos de guerra japoneses. Logo após, o Exército descobriu boas razões

para anexação de porto Arthur e da província de Liaodong36

.

36 Tradução livre.

Page 75: O massacre de Nanquim

74

O clamor público e a pressão da imprensa devem ser destacados nesse período da

história política japonesa. Acompanhando a análise de Beasley (id), percebe-se que não há

evidências de que no período imediatamente anterior à declaração de guerra à China em 1894

o governo japonês tivesse alguma expectativa de ganho territorial. Entretanto, a facilidade e a

rapidez das vitórias japonesas gradativamente os impeliram a esses objetivos expansionistas.

Ademais, o clamor público no Japão se elevou consideravelmente durante a guerra. É notável

o fato de que as ideologias absorvidas pela população, durante a segunda metade do século

anterior, contribuíram diretamente para que ela aderisse aos valores imperialistas.

Apoiando essa argumentação, Behr (op. cit., p. 34-35) afirma que o fato de o

imperador Meiji ter tomado pessoalmente o comando do moderníssimo Exército Imperial

durante a guerra contribuiu diretamente para que os termos da paz fossem mais duros ainda:

“A Coréia se tornaria virtualmente um protetorado japonês, Taiwan se tornaria japonesa, a

China seria obrigada a pagar uma enorme ‘indenização’ e o Japão se moveria para a parte

sudeste da Manchúria”.

Os termos do acordo de paz, entretanto, como dito anteriormente, não foram tão

facilmente elaborados. O Japão necessitava de um significativo ressarcimento econômico para

que pudesse se reestruturar. E esse ganho econômico deveria vir, necessariamente, da China.

O ponto central aqui, é que a guerra com a China trouxe ao Japão a possibilidade de anexação

de alguns territórios. Muito embora não haja evidências de que a princípio essas anexações

fossem os objetivos primários da guerra, elas logo se mostrariam bastante convenientes. O

embaixador britânico em Tóquio, reportando a repercussão da guerra no Japão, afirmou que

“nada menos do que a inteira absorção de todo o império chinês é agora abertamente discutido

no país” (apud BEASLEY, op. cit, p. 55).

No entanto, a despeito de suas necessidades, o receio japonês de que suas ambições

estivessem acima do limite tolerável provocou uma flexibilização nas exigências do acordo. A

cautela das ações japonesas deve-se, na verdade, ao temor de que houvesse uma intervenção

das outras potências. De fato, os diplomatas japoneses nos Estados Unidos e na Europa

advertiam para o perigo de hostilidades por parte dos ocidentais a ações japonesas que

provocassem “desmembramento da China” ou “destruição da presente dinastia” (BEASLEY,

ibid., p. 58). Os países europeus com interesses na área não poderiam permitir que uma nação

com as proporções do Japão viesse a interferir nos assuntos ocidentais na China. O Japão,

enquanto potência bélica, era ainda totalmente desconhecido pelos ocidentais.

Page 76: O massacre de Nanquim

75

A evolução do cenário da guerra e a rápida vitória sobre a China apresentaram aos

demais países, ainda que de maneira discreta, o potencial bélico do Japão, que até então era

extremamente subestimado pelos ocidentais (SAKURAI, op. cit., p.163-164). A terra do Sol

nascente era vista envolta numa bruma totalmente exótica, com as imagens das gueixas e do

monte Fuji coberto de neve. Todavia, o país saía da guerra sino-japonesa com uma boa

indenização, além de sua mais nova colônia, Taiwan. Mais importante, ele teria agora acesso

a uma área que representaria uma importantíssima fonte de lucros: a Manchúria.

A ascensão do Japão como potência na Ásia foi tão dramática que, devidamente

alarmadas, França, Alemanha e Rússia se uniram numa tripla intervenção diplomática para

pressioná-lo a ser menos ambicioso. Em decorrência disso, o Tratado de Shimonoseki37

,

assinado no final da guerra, foi nada mais do que uma versão bem menos audaciosa do tratado

original. Beasley (op. cit., p. 58) enfatiza o argumento de que o Japão optaria por essa postura

menos agressiva, não pela condição de recusa chinesa, mas pela possibilidade de hostilidades

por parte dos ocidentais. Além disso, o autor prossegue argumentando que:

Se o Japão demandasse territórios na Coréia, a Rússia também poderia brigar por esses territórios. Os ganhos territoriais ao Sul da Manchúria trariam

oposição tanto da Rússia quanto da Inglaterra. A reivindicação por Taiwan

poderia provocar Inglaterra e França. Sendo assim, seria melhor considerar

os ganhos territoriais como inatingíveis e concentrar-se em assegurar a maior indenização possível

38.

Behr (op. cit., p. 35), analisando a posição japonesa em face às exigências ocidentais,

afirma que “o imperador Meiji relutantemente cedeu, mas a lembrança desse comportamento

‘colonialista’ e a suspeita de que o ocidente sempre tentaria impedir o Japão de obter suas

justas recompensas, iria inflamar-se no inconsciente coletivo dos japoneses durante gerações.”

A tripla intervenção foi promovida apenas seis dias após a assinatura do tratado de paz entre

China e Japão. Os nipônicos deveriam declinar suas ambições na península de Liaodong (na

Manchúria), além de suas pretensões na Coréia. Esse fato representou uma grande derrota

diplomática japonesa.

É plausível o argumento de que o governo russo se sentiria seriamente prejudicado

com a presença japonesa na Coréia e em Liaodong, tendo em vista que os russos também

tinham muitos interesses nessas regiões. Para ampliar sua esfera de influência no Oriente, os

russos necessitavam assegurar posições e áreas de influência na China, e o fato do Japão estar

despontando como grande potência asiática preocupava-os sobremaneira. Ademais, a Rússia

vivia numa atmosfera europeia onde tinha, a todo momento, que manter-se firme diante as

37 17 de Abril de 1895. 38 Tradução livre.

Page 77: O massacre de Nanquim

76

demais potências que disputavam sua adesão. Cabe ressaltar que quando o Japão finalmente

conseguiu a Coréia como colônia, o governo russo foi alertado pelos alemães do perigo que o

Japão estava representando, e que algo deveria ser feito (SAKURAI, op. cit., p. 165).

O império russo, após a tripla intervenção, prontamente tomou providências quanto

aos assuntos chineses, para que mantivesse influência na região. O governo olhava

fundamentalmente para a região da Manchúria, que devido à sua considerável atratividade

econômica39

chamava a atenção dos países com interesses em estabelecer influência na Ásia.

Em 1898, apenas três anos após o fim da guerra sino-japonesa, a Rússia procurou estabelecer

um acordo com os chineses a fim de conseguir a implantação de uma base naval em porto

Arthur, na península de Liaodong.

O Japão, dado esse cenário, não poderia permanecer numa posição inerte. Enquanto

país relativamente pequeno, não podia apenas ficar observando os europeus consolidarem

suas posições em todo o sudeste asiático, sem temer por sua própria integridade. No período

entre 1895-1900 os japoneses assistiram à partilha da China pelos imperialistas ocidentais em

áreas de influência. Os japoneses viam mais uma vez os ocidentais vetarem a expansão

nipônica, ao passo que cada vez mais estendiam seus cobiçosos tentáculos sobre a Ásia.

Contudo, esse foi um período no qual o Japão vinha se reestruturando economicamente após a

guerra e não podia fazer muito, apenas esperar o momento oportuno para agir.

No início do séc. XX, o Japão já estava novamente em condições de brigar por suas

posições. Segundo Behr (op. cit., p. 33), “as concessões estrangeiras se estendiam por toda a

China, e o Japão – depois de fornecer metade das tropas que dominaram a rebelião dos

boxers40

, em 1901 – também viu ser chegada a hora de pedir sua parte.” A melhor defesa para

o Japão, argumentavam os membros do governo, seria lançar-se ao ataque. O país deveria

mostrar-se como potência na Ásia.

Nesse período a Grã-Bretanha, em decorrência de seu intenso descontentamento com a

Rússia41

, estabelece um tratado de amizade com o Japão (1902) que possibilitou aos japoneses

uma maior afirmação dos seus interesses. A intromissão russa na Manchúria provocava uma

particular insatisfação no governo japonês, na medida em que o Japão é que deveria exercer

39 Apesar das condições climáticas adversas, a região da Manchúria possui um solo extremamente fértil. Além

disso, é bastante rica em recursos minerais e, em decorrência de seus extensos rios, possui um potencial

hidroelétrico bem elevado (HARRIS, 2002, p. 4). 40 O Japão começou a mostrar seu poderio bélico fornecendo 8000 soldados que se juntaram a outros 9000 de

todas as outras potência juntas. Esse feito representou grande importância no que diz respeito à posição

diplomática japonesa em relação aos ocidentais, pois demonstrava que os nipônicos não estavam inertes, nem

tampouco enfraquecidos. 41Nesse período a Rússia vinha ameaçando constantemente a hegemonia britânica na Índia através do Estado-

tampão do Afeganistão (BEHR, id).

Page 78: O massacre de Nanquim

77

influência na Ásia. Os japoneses, no papel de povo escolhido, deveriam tomar a vanguarda

dos assuntos asiáticos.

A Manchúria, como dito anteriormente, era uma região que provocava intensa

oposição entre Japão e Rússia. Essa, por sua posição geográfica, demandava uma saída para

um mar navegável no Pacífico42

. Isso possibilitaria que o país realizasse comércio fora da

Europa com mais facilidade, além de poder estabelecer uma Marinha de Guerra forte. A

China representava o caminho mais viável para os russos conseguirem êxito na sua

empreitada. Sendo assim, o exercício de influência na região era fundamental para o sucesso

desse empreendimento.

A frequente intromissão russa na Manchúria provocaria uma intensa animosidade com

os japoneses. Após a conclusão da ferrovia Transiberiana o governo japonês assistiu à

transformação definitiva da Manchúria numa área de enorme importância estratégica para a

Rússia. Os russos alegavam que aquela era a ferrovia Chinesa Oriental – havia até mesmo um

diretor chinês – mas os japoneses perceberam que na realidade o empreendimento

representava uma estrada de ferro russa atravessando a China (BEHR, ibid, p. 35).

Nesse momento, os russos procuraram estabelecer acordos junto aos chineses visando

o estabelecimento de guarnições militares no Nordeste da Manchúria, bem como a instalação

de uma base naval russa em Porto Arthur, na península de Liaodong. Os russos, enfim, tinham

conseguido tomar posse do único porto daquela região que não sofre as consequências do

congelamento no inverno (SAKURAI, op. cit., p. 165).

O Japão, dadas as circunstâncias, não poderia permanecer como um simples

espectador de toda essa movimentação russa no território chinês. Sakurai (id) afirma que a

princípio, o Japão tentou uma negociação, mediada pela Grã-Bretanha, propondo um

relaxamento dos interesses japoneses na Manchúria em troca do controle do Norte da Coréia.

Um acordo como esse, considerando-se o disputado jogo de interesses na Europa,

representaria um perigo para os demais europeus, porquanto os russos, além de uma vitória

diplomática, teriam ainda acesso livre a uma região que poderia render consideráveis lucros.

É possível presumir que os próprios britânicos tenham imposto dificuldades para que

esse acordo não vingasse. Além do mais os Estados Unidos, já demonstravam seus interesses

na Europa e na Ásia e, juntamente com a Grã-Bretanha, exerceram pressão diplomática

visando o malogro desse acordo. Uma Rússia fortalecida seria um perigo para as demais

42 O território russo possui saídas para o mar, entretanto, esses mares permanecem congelados durante boa parte

do ano, o que inviabiliza a navegação. A Rússia, por ter estreita ligação com as potências européias, buscava manter sua autonomia diante delas, e uma saída para o mar representava condição sine qua non para a

manutenção dessa autonomia (BEASLEY, op.cit.,p. 58 et seq.)

Page 79: O massacre de Nanquim

78

potências, ao passo que o enfraquecimento desse país, mesmo que não fosse desejado

abertamente, seria bem-vindo. Ao Japão, considerando a hipótese de não haver ressarcimento

pela perda da Manchúria e o insucesso da alternativa diplomática, restava apenas a opção de

um enfrentamento aberto com os russos para que pudesse garantir a afirmação dos seus

interesses na China.

Em 1904, com apoio internacional, a Marinha Imperial promoveu um ataque surpresa

à frota russa em Porto Arthur43

, visando evitar que os russos continuassem a se expandir no

território chinês. A análise de Behr (op. cit., p. 36) a respeito desse ataque é bastante

interessante: “Foi uma pré-encenação de Pearl Harbor. Na tradição dos samurais tudo é válido

na guerra, e atacar o inimigo de surpresa, sem qualquer aviso, não era meramente aceitável,

mas fazia parte das cruéis regras do jogo japonesas.”

Após o primeiro ataque furtivo, o Japão conseguiu desestruturar completamente as

forças russas levando a guerra a um desfecho rápido favorável a si (cerca de um ano). A

Rússia sairia completamente desmoralizada por ter sido derrotada por um país territorialmente

tão inferior.

A vitória japonesa se materializou apoiada por inúmeros fatores. Na reta final da

guerra, o Japão pôde contar com a fidelidade dos britânicos ao tratado de amizade de 1902.

Os remanescentes russos que haviam sido massacrados pelos japoneses refugiaram-se em

Porto Arthur, enquanto outra frota, que estava no mar Báltico, partiu para dar apoio a seus

compatriotas. Foi aí que os britânicos desempenharam um papel fundamental a favor dos

japoneses, negando aos navios russos a possibilidade de passagem pelo canal de Suez (BEHR,

id). A cansativa viagem ao redor da África enfraqueceria consideravelmente as forças russas.

Além disso, os franceses negaram-lhes o direito de aquartelar-se na Indochina francesa.

Desenhado o teatro final de operações, o alto comando japonês deveria tratar de

derrotar os russos enquanto esses ainda estavam enfraquecidos. Acompanhando ainda a

análise de Behr (id), nota-se que:

Era vital para o imperador Meiji subjugar a guarnição russa em Porto Arthur antes que os reforços chegassem, e ele ordenou a seu general favorito,

Maresuke Nogi, que capturasse a posição a qualquer custo. Nogi conclamou

seus soldados a estarem prontos a morrer pelo imperador. Não se esperava

que os oficiais sobrevivessem, e qualquer um que abandonasse o campo de

43 O Japão rompe as relações diplomáticas com a Rússia em 5 de Fevereiro, entretanto a declaração oficial de

guerra só foi feita no dia 10 do mesmo mês. Em 8 de Fevereiro, portanto antes da declaração oficial de guerra,

foi perpetrado o ataque surpresa ao Porto Arthur, pegando a marinha russa totalmente desprevenida, provocando resultados devastadores. Vale ressaltar que dois jovens oficiais japoneses ficaram especialmente marcados pela

guerra russo-japonesa: Isoroku Yamamoto e Hideki Tojo. (BEHR, op. cit., p. 36).

Page 80: O massacre de Nanquim

79

batalha sem motivo era imediatamente fuzilado. Durante cinco meses, ondas

sucessivas de infantaria japonesa tentaram romper as defesas russas44

.

A guerra russo-japonesa deixou o mundo perplexo. A grande bravura dos soldados

japoneses foi enaltecida pela imprensa internacional. Após a destruição das frotas russas, o

Japão pôde finalmente emergir como uma das maiores potências políticas e militares do

mundo. A possibilidade de um país das dimensões do Japão derrotar a Rússia num

enfrentamento direto45

(no início da guerra essa probabilidade era considerada quase nula)

mostrou aos demais imperialistas que havia realmente uma potência a ser respeitada na Ásia.

Isso não significa dizer que o Japão imediatamente conseguiu concretizar todos os seus

objetivos para com a Ásia. Contudo, vale considerar que essa vitória contra o gigante russo

denotaria prontamente uma maior respeitabilidade em relação aos nipônicos.

Como resultado da guerra, nota-se que os japoneses, através do tratado de Portsmouth,

conseguiram direitos incontestáveis sobre a Coréia, além do acesso novamente à Manchúria.

A influência russa nesse território foi prontamente substituída pela japonesa, o que

possibilitou aos nipônicos se tornarem a principal força estrangeira na região.

Copiando seus predecessores russos, os novos mestres da Manchúria empregaram uma

série de meios para consolidar sua influência na região. Na primeira década do domínio

japonês, uma grande quantidade de agências burocráticas emergiu em território manchu

(HARRIS, op. cit., p. 6). Isso pode ser explicado tendo como base o fato de que os japoneses

necessitavam manter o controle da região a todo custo, e para eles, o estabelecimento de uma

máquina estatal forte viabilizaria a manutenção do domínio na região.

Outra consequência expressiva da vitória japonesa foi a chance de estabelecimento de

um exército fixo em Kwantung46

, na parte Sul da península de Liaodong, com o pretexto de

proteger a nova ferrovia do Sul da Manchúria. O novo empreendimento japonês na região

logo tomaria gigantescas proporções para atuar na indústria e comércio.

44 Durante uma dessas batalhas, o general Nogi assistiu através de seus binóculos à morte de seus dois filhos à

frente das tropas brandindo suas espadas de samurai. Extremamente devotado ao imperador, Nogi anunciou que iria cometer suicídio, e Meiji proibiu afirmando que enquanto ele vivesse Nogi também deveria viver (BEHR,

ibid., p. 37) 45 O Japão realmente possuía uma Marinha de Guerra e um Exército moderníssimos, com treze divisões,

artilharia de primeira linha e mais de 76 navios de guerra. Todavia, nenhum especialista ocidental acreditava que

o pequeno país pudesse enfrentar uma das maiores potência europeias e vencer. Ademais até mesmo no Japão

havia sérias dúvidas quanto à capacidade do país de vencer a guerra. O partido constitucionalista, que tinha

grande influência nas questões políticas era abertamente contrário à guerra, e o próprio imperador Meiji

procurou obter garantias, junto aos americanos, de que esses não permitiriam que os russos invadissem o Japão

provocando mais humilhação além da derrota (BEHR, id.) 46 Apesar de formalmente o Exército só ser estabelecido em 1919, desde o final da guerra russo-japonesa já

foram estabelecidos “guardas da ferrovia” que fariam o papel de policiamento nas regiões próximas à ferrovia. Embora esses guardas fossem civis, o comandante em Kwantung era sempre um oficial do Exército Imperial

(HARRIS, op. cit., p. 6).

Page 81: O massacre de Nanquim

80

Estrategicamente, o fim da guerra com a Rússia trouxe ao Japão a chance de alargar

definitivamente sua esfera de influência no Leste asiático, ao mesmo tempo em que minou o

poder russo sobre essa região, bem como sua autoridade e supremacia nas áreas próximas à

sua fronteira. Os japoneses agora estariam perigosamente próximos do Império russo. Os

países nos quais os japoneses estabeleceriam domínios após o conflito começariam a sofrer o

peso do poder japonês em diversos setores (SAKURAI, op. cit., p. 166-167).

A situação interna do Japão no período exatamente posterior à guerra, entretanto, era

bastante delicada. O país mais uma vez saía economicamente arrasado de um conflito que

apesar de ter sido vencido, provocou pesadas baixas no Exército japonês. Behr (op. cit., p. 37-

38) afirma que:

Enquanto os políticos japoneses inflamavam a opinião pública, clamando

que o Japão deveria ter ganhado mais com a guerra, inclusive uma indenização russa, o imperador Meiji sabia que o fim do conflito e o

providencial papel pacificador dos norte-americanos entre Japão e Rússia

haviam chegado no momento exato [...] o Japão estava empobrecido, quase falido pelas dispendiosas campanhas em terra e mar e pela invasão da

Manchúria. [...] o custo, em termos de baixas e déficit financeiro, havia sido

enorme.

A vitória sobre os russos, a despeito de ter mostrado o poderio bélico dos japoneses ao

restante do mundo, indicava um aspecto muito mais alarmante às demais potências: o Japão

mostrava a sua força e ansiava por sua parte do bolo imperialista, mostrando que poderia

brigar, se necessário fosse, para garantir que seus interesses fossem observados pelas outras

potências.

Diante desse cenário, as carreiras militares no Japão passaram a ser intensamente

procuradas, mesmo por jovens de classe média baixa e do meio rural, que viam no Exército e

na Marinha a possibilidade de servir ao imperador e à nação em sua empreitada na Ásia. Esses

jovens, fortemente influenciados pelas últimas campanhas da guerra russo-japonesa,

reforçavam o sentimento de que uma nação pequena poderia derrotar e humilhar uma potência

gigantesca, desde que fosse muito bem organizada, corajosa e inescrupulosa.

Nos próximos anos o Japão assistiria à reestruturação do país, e em 1912 à morte de

Meiji47

, em decorrência de um câncer. O país sentiria profundamente essa perda, já que Meiji

era considerado o principal símbolo da nação japonesa moderna. O novo imperador seria

Taisho, filho de Meiji. Os anos subsequentes dariam ao Japão a oportunidade de fortalecer

47 29 de Julho de 1912. Meiji tinha 59 anos. Logo após o funeral, o general Nogi e sua esposa prepararam-se para

o ritual de suicídio, lembrando-se da frase: “Enquanto eu viver você também viverá”. Agora que o imperador

tinha morrido, não havia mais razão para as suas vidas, e finalmente poderiam cumprir o ritual de suicídio, que foi cumprido em sua casa. Primeiro a condessa Nogi, cortando a garganta, e depois o general Nogi, cometendo o

ritual do seppuku, que consiste em enfiar uma espada pequena afiadíssima no abdome (BEHR, op. cit., p. 47).

Page 82: O massacre de Nanquim

81

suas possessões na Ásia e seu status diante dos outros países. Nessa mesma época (1911-

1912) a dinastia manchu foi derrubada e a China entrou num período de grande fragmentação

política. Nesse ínterim, a política da China se mostrou desfavorável aos países com interesses

em seu território. Ademais, sem um governo central claramente estabelecido, as potências não

sabiam ao certo com quem negociar. A confusão da política chinesa durou aproximadamente

quinze anos. (BEASLEY, op. cit., p. 101-et seq.).

Apesar de tudo, as primeiras duas décadas do séc. XX deram ao Japão a possibilidade

de consolidar seus domínios no Leste asiático perante os países europeus e os Estados Unidos.

Além disso, a Primeira Guerra Mundial levou o Japão a estreitar seus laços diplomáticos com

os ocidentais. Após a eclosão da Grande Guerra, o país alinhou-se quase imediatamente com a

Grã-Bretanha48

, em oposição à Alemanha (SAKURAI, op. cit., p. 169).

Em suma, o apoio japonês à Tríplice Entente foi muito bem recebido, principalmente

pelo fato de que o Japão representava um forte baluarte na Ásia. Após o conflito, os japoneses

conseguiriam seu lugar de respeito entre as potências, sendo signatário da Liga das Nações,

fato que representou uma gigantesca vitória diplomática aos nipônicos49

. Ademais, os anos da

Primeira Guerra viabilizaram ao Japão o aumento de sua influência na China. Logo após

declarar guerra contra a Alemanha, o alto comando mobilizou tropas para a China “em nome

dos aliados” visando proteger o país (BEASLEY, op. cit., p. 109-114).

Internamente, o Japão experimentou nos anos da Guerra um grande desenvolvimento

capitalista, almejando atender às demandas do mercado asiático em substituição aos europeus.

A prosperidade dos capitalistas japoneses, entretanto, contrastava com o crescente

endividamento do governo para financiar os gastos militares e a manutenção dos territórios

ocupados.

Segundo Beasley (id)50

, “uma ótima síntese do que pode ser dito para explicar o

imperialismo japonês entre 1915-1918 é a consolidação dos ganhos, feita tendo como base as

21 demandas51

.” O governo japonês sabia que para conseguir estabelecer-se definitivamente

na Manchúria deveria agir cautelosamente. A fragmentação da China, que facilitava de certa

48 A aliança do Japão com a Tríplice Entente deveu-se muito mais ao anseio japonês de levantar oposição aos

alemães (é do Kaiser alemão a expressão perigo amarelo), para tentar tomar posse de suas posições no Oriente e

no Pacífico ocidental, do que por simpatia aos países integrantes da Entente – deve-se lembrar que a Rússia

estava entre eles (SAKURAI,op. cit., p. 169). 49 Mesmo que posteriormente os japoneses tenham reclamado do descaso dos ocidentais em retribuir

devidamente o apoio japonês na Guerra, a entrada na Liga das Nações e a possibilidade de expandir-se na China

representaram grandes vitórias aos japoneses (HARRIS, op. cit., p. 6 et seq.) 50 Tradução livre. 51 As 21 demandas (twenty-one demands) foram uma espécie de memorando escrito pelo ministro do exterior Abe Moritarô para garantir que a política japonesa em relação à China fosse cautelosa o suficiente para evitar

que os chineses se unissem contra os japoneses.

Page 83: O massacre de Nanquim

82

forma a penetração japonesa na área, por outro lado dificultava o relacionamento entre os

países. O Japão veria a necessidade da criação de uma esfera de co-prosperidade na Ásia para

garantir seus interesses na China, além de gradativamente diminuir a influência ocidental no

país.

A esfera de co-prosperidade, da forma como era professada pelos japoneses, indicava

a ideia de uma zona de ajuda mútua entre os países do sudeste asiático, ou seja, as nações

dessa região – sobretudo Japão, China e coreia – experimentariam um tipo de relacionamento

no qual haveria um esforço comum no sentido de promover um desenvolvimento

socioeconômico de toda a área. Essa esfera funcionaria, também, para fortalecer a região em

contraposição aos ocidentais que ansiavam por beneficiar-se economicamente desses países.

A esfera de co-prosperidade não significaria, contudo, amizade ou igualdade sob

nenhuma circunstância. Os japoneses acreditavam que a China já havia sido destituída desses

atributos pelos imperialistas ocidentais há muito tempo. O alto governo japonês propunha

uma direção do Japão nos assuntos asiáticos, uma espécie de relacionamento que os

caracterizaria como uma “comunidade de benefício mútuo”. Esses benefícios seriam tanto

políticos quanto econômicos (BEASLEY, ibid., p. 119).

A reação dos imperialistas ocidentais a essa atitude japonesa foi, num primeiro

momento, vista como positiva, principalmente pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha.

Sakurai (op. cit., p. 169) afirma que os japoneses, por sua posição geográfica estratégica,

representariam importantes aliados contra o comunismo russo crescente após a revolução bem

sucedida de 1917.

Nota-se que as potências ocidentais dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França,

contando com o importante apoio do Japão, promoveram uma intervenção militar no extremo

Norte da Manchúria a fim de tomar a Sibéria oriental. A despeito dos esforços ocidentais,

apenas os japoneses conseguiram manter algumas bases militares e ocupar partes da região.

Entretanto, a resistência japonesa apesar de ter durado quatro anos, foi expulsa pelas tropas

bolcheviques (SAKURAI, id.).

A respeito de toda a participação japonesa na Primeira Guerra e na intervenção na

Sibéria, Harris (op. cit., p. 7) oferece uma análise bastante intrigante no que diz respeito ao

pós-guerra, afirmando que “o país [Japão], embora tenha sido um dos vitoriosos da Grande

Guerra, foi humilhado por seus aliados em Versalhes. O Japão considerava que não havia

Page 84: O massacre de Nanquim

83

recebido nenhum despojo considerável pelos conflitos com a Alemanha e a Áustria-

Hungria52

.”

A instabilidade política provocada pela desconfiança japonesa em relação aos

ocidentais aumentaria gradativamente ao longo da década de 1920. Conjugados a uma série

de reformas liberais dificultadas pelo Exército, esses foram anos marcados por inúmeros

escândalos financeiros no Japão, além de consideráveis quebras de bancos. O terremoto de

1923 que atingiu Tóquio e provocou uma imensa devastação foi praticamente obscurecido

pelo governo japonês que temia que a divulgação da catástrofe demonstrasse fraqueza do país,

possibilitando uma intervenção dos ocidentais para ajudar o Japão (BEHR, op. cit., p. 79-80).

Nota-se que a todo momento, o esforço do alto escalão governamental japonês era de

não demonstrar nenhum tipo de fraqueza do país e, em contrapartida realçar a ideia de que o

governo japonês sempre tinha tudo sob controle. Mas a verdade era que o país vinha

atravessando maus momentos devido à destruição provocada pelo terremoto. Em termos

gerais, os anos da década de 1920 representaram um período bastante conturbado na

atmosfera interna do Japão, marcado por inúmeras transformações nos campos político e

militar que seriam sentidas profundamente nos anos posteriores.

Logo no início da década, a relação do Japão com os Estados Unidos, principalmente,

foi marcada sobretudo por uma grande instabilidade política. Os dois países despontavam

como grandes potências tanto militar como economicamente, e a reação dos americanos, a

despeito do apoio aos nipônicos nas décadas anteriores, foi de proibir definitivamente, em

1924, a imigração de japoneses para os Estados Unidos. Essa postura mesclava argumentos de

ordem racial, concorrência econômica e retaliação à agressiva política de expansão japonesa

(SAKURAI, op. cit., p. 175).

Nas forças armadas japonesas, uma nova mentalidade se faria presente e afetaria

profundamente o oficialato. À medida que as lembranças da Guerra russo-japonesa se

atenuavam, os oficiais de carreira de ambos, Marinha e Exército, se tornavam extremamente

determinados a reafirmar a importância da força das armas (BEHR, op. cit., p. 73).

Corroborando essa afirmação, Harris (op. cit., p. 7-8) defende que em face aos

acontecimentos destrutivos na política e na economia japonesas, os jovens membros da

oficialidade militar começaram a perder a confiança nas instituições básicas da sociedade

japonesa, exceto no imperador e na religião xintoísta. Muitos desses jovens oficiais

argumentavam que o modelo capitalista liberal dos ocidentais não era capaz de suprir as

52 Tradução livre.

Page 85: O massacre de Nanquim

84

necessidades da complexa sociedade japonesa. Em sua maioria provenientes das classes rurais,

esses novos membros do oficialato se tornavam cada vez mais frustrados diante da situação de

grande pobreza e desigualdade social na qual o Japão se encontrava.

Em 1926, Hiroíto53

(filho do Imperador Taisho) finalmente ascendia ao poder como

novo Imperador do Japão. O novo governante logo de início teve que lidar com a delicada

situação da política interna do país, que já nesse momento era marcada por uma série de

assassinatos políticos cometidos por grupos de extrema direita, que defendiam, em sua

maioria, as vias do nacionalismo autoritário como único modo de recuperar a glória da nação

japonesa. Nota-se que nesse período, emergiram no Japão três grandes correntes ideológicas

propondo a maneira através da qual o país deveria atuar para garantir o êxito da sua

empreitada imperialista na Ásia54

.

É interessante notar que esses grupos extremistas, formados via de regra por membros

do Exército, não apresentavam nenhum tipo de questionamento em relação à legitimidade do

poder do Imperador. Muito pelo contrário. Partiam da premissa de que a origem divina do

Imperador legitimava seu governo sobre todos os povos da Terra. Esses grupos, em sua

maioria, apoiavam uma ditadura estabelecendo poderes irrestritos ao Imperador. Além do

mais, os assassinatos eram cometidos contra figuras proeminentes que demonstravam

comportamento permissivo de qualquer tipo e que desonravam a nação japonesa (BEHR, op.

cit. , p. 71 et seq.).

Todo esse pano de fundo aliado à quebra da bolsa de Nova York em 1929, forneceram

à década de 1930 o estopim para a eclosão e consolidação definitiva dos movimentos

ultranacionalistas na Europa. A crise econômica proporcionou uma nova dinâmica ao

imperialismo japonês na China. Minando parte da estrutura econômica adotada até então, os

acontecimentos influenciaram para que o Japão se voltasse mais intensamente para os planos

baseados na idealizada esfera de co-prosperidade sino-japonesa, mas dessa vez visando

audaciosamente toda a Ásia (BEASLEY, op. cit., p. 175-176).

Os conservadores mais radicais, como afirma Sakurai (op. cit., p. 173), “defendiam um

retorno aos moldes da ética de obediência samurai sem abrir qualquer espaço para as

organizações dos trabalhadores como os sindicatos, e para manifestações populares como

53 Desde 1921, Hiroíto já governava o país como príncipe regente devido a uma série de complicações de saúde

de seu pai, o Imperador Taisho. O período de regência ensinou ao jovem príncipe a maneira através da qual ele

deveria conduzir a política externa do Japão para que o país se consolidasse como força definitiva na Ásia

(BEHR, op. cit., p. 79). 54 Essas correntes de ideias conseguiram inúmeros adeptos. Caracterizavam-se basicamente como Ofensiva

Norte, Ofensiva Sul e o Grande Projeto. Para detalhamentos, ver Behr (op. cit., p. 76 et seq.).

Page 86: O massacre de Nanquim

85

greves e revoltas no campo.” O enfraquecimento político provocado pela divergência de

opiniões e a intromissão dos valores ocidentais no Japão eram as principais causas do anseio

dos grupos de extrema direita em evitar, a qualquer custo, a liberalidade política que levaria o

país a enfraquecer-se.

Na China, o cenário político nesse momento crucial se mostrava desfavorável aos

japoneses. Entretanto, o estabelecimento de tropas oficiais em Kwantung nos anos anteriores,

bem como dos guardas da Ferrovia, proporcionou aos japoneses os meios para uma

intervenção militar. Mas ainda seria necessária uma boa prerrogativa diante dos outros países

para justificar as ações.

Sobre esse pano de fundo, as tropas na Manchúria começariam a fortalecer-se cada vez

mais. Após o assassinato de um espião japonês, pego pelos chineses no Leste da Mongólia em

Junho de 1931, o sentimento antichineses no Exército Kwantung se intensificaria. Tirando

proveito de descontentamentos entre os imigrantes coreanos e os fazendeiros chineses, o

comando japonês mobilizou tropas à fronteira da Coréia com a Manchúria. Todo o teatro já

estava armado, tudo que os japoneses necessitavam agora era o pretexto para uma invasão da

região. A pretensão dos nipônicos em conseguir definitivamente o controle dessa área era

realmente muito forte. Segundo Beasley (op. cit., p. 190), era muito frequente a argumentação

de que a Manchúria se tornaria a base da economia para os japoneses, isso provocou a

remoção desses assuntos de um status de “interesses especiais” para o de “sobrevivência

nacional”.

Os membros do governo mais diretamente ligados a esses assuntos que defendiam a

posição de que, uma vez consolidada a ocupação da Manchúria, a região rapidamente ficaria

sob a administração militar japonesa, o que direcionaria o desenvolvimento da economia da

área no sentido de complementar a economia do Japão (BEASLEY, ibid., p. 194).

A prerrogativa para as ações japonesas seria conseguida de uma maneira bastante

curiosa. Behr (op. cit., p. 132-133) oferece uma interessante análise acerca do desencadear

desse processo:

Um oficial do Exército japonês depositou uma pequena quantidade de

dinamite ao longo da linha Norte de Mukden, na ferrovia do Sul da Manchúria, planejada para explodir com o máximo de barulho e o mínimo

de danos. A explosão aconteceu por volta das 10:20 hs da noite [...] Contudo,

a explosão foi ouvida por uma patrulha chinesa que foi investigar imediatamente e se viu sob artilharia japonesa.

Page 87: O massacre de Nanquim

86

Essa série de acontecimentos, que posteriormente ficou conhecida como Incidente

Mukden55

, foi o pretexto utilizado pelos japoneses para a invasão da China. Eles afirmavam

que essa explosão representava um ato de agressão, por parte das tropas chinesas, que havia

destruído parte dos trilhos da ferrovia. Nada mais faltava. Os japoneses tinham um bom

motivo para sua intervenção militar.

No entanto, as tropas de Kwantung ainda não estavam fortes o suficiente para uma

confrontação direta. Sendo assim, a surpresa se fazia necessária. A situação, como foi

interpretada, demandava uma ocupação noturna de pontos chave no Sul, sendo seguida pela

extensão das operações a outras partes da Manchúria. A solução para os problemas no

estabelecimento da autoridade japonesa na região deveria evitar fundamentalmente os

distritos mais ao Norte, em decorrência do risco de provocar uma intervenção russa na área.

Os japoneses declaravam que as operações visavam única e exclusivamente o

restabelecimento da lei e da ordem, e que pretendiam respeitar a integridade chinesa.

A pressão exercida pelos japoneses na Manchúria, entretanto, contribuiu diretamente

para a declaração, em 1932, do Estado Independente Manchukuo. Para a exultação do

Governo japonês, o novo estado teria como governante Henry Pu Yi56

, que na verdade

serviria como um Imperador fantoche para atender aos anseios japoneses na região. Os

japoneses estabeleceram um conselheiro japonês para cada oficial chinês, e nenhuma decisão

importante era tomada sem que antes os oficiais observassem a opinião de seus conselheiros

(Harris, op. cit, p. 8-9).

As ambições do Japão tornavam-se categoricamente incômodas aos demais

imperialistas. Aproveitando a denúncia chinesa das ações japonesas que violavam seu

território, a Liga das nações promoveu uma verificação através de uma comissão e julgou que

os japoneses tinham infringido normas internacionais. Tanto que, em 1933, os japoneses

perdem seu lugar na Liga devido aos contínuos incidentes com a China.

O relacionamento entre os países se tornaria cada vez mais hostil. Behr (op. cit., p. 218

et seq.) enfatiza a ideia de que nesse momento de fundamental importância da história

japonesa, o país começaria a se alinhar com os métodos políticos da Alemanha Nazista.

A expansão japonesa, contudo, não deveria ser confundida com o imperialismo

ocidental. Este era representado como tirânico e opressor, enquanto aquela necessitaria ser

55 18 de Setembro de 1931. 56 Pu Yi (Henry Pu Yi como gostava de ser chamado) era o último descendente da dinastia manchu. Em 1934

ascendeu ao trono do Estado Independente Manchukuo como um imperador fantoche estabelecido pelos japoneses. Um fato interessante a ser destacado é que depois de muito pensar, utilizando uma inexplicável ironia,

Pu Yi resolveu nomear seu reino como K´ang-te, que significa prosperidade e virtude.

Page 88: O massacre de Nanquim

87

vista como libertadora do povo asiático a partir da liderança japonesa. A progressão do

Exército nipônico na China, porém, encontraria oposição. Em 1936, Chiang-Kai Chek57

iniciou uma resistência juntamente aos comunistas.

A percepção, de ambos os lados, da fragilidade da área da Manchúria possibilitou que

eclodissem hostilidades entre os países em 1937, culminando na invasão aberta da China pelo

Japão. Os chineses resistiram. Entretanto, o alto comando militar japonês persuadiu os

governantes de que essa seria mais uma vitória rápida e importante. Não demoraria, contudo,

para que se tornasse uma grande campanha, culminando em incontáveis massacres

perpetrados pelos japoneses e mesmo no deplorável evento que ficou conhecido como o

estupro de Nanquim.

57 As contínuas investidas japonesas contra a China, especialmente na década de 1920, provocaram o fortalecimento do movimento nacionalista no país, que já era uma república desde 1912, representado pelo

Partido Nacionalista (Kuomintang) liderado por Chiang-Kai Chek.

Page 89: O massacre de Nanquim

88

CAPÍTULO 3. O “estupro” de Nanquim

A declaração aberta de guerra do Japão à China em 1937 lançaria os dois países num

conflito de gigantescas proporções que os marcaria profundamente, sobretudo no que diz

respeito ao povo chinês. A caminhada e o desenrolar dos fatos que levaram à conflagração58

,

ao serem analisados, oferecem uma idéia mais clara do engajamento dos beligerantes na

campanha.

Quando se observa a paixão e a devoção com que os japoneses encaravam os seus

objetivos, é possível vislumbrar a amplitude a que os seus atos poderiam chegar, quando o

assunto fosse atingir esses objetivos. A complexificação das relações entre os japoneses e os

vizinhos continentais (China e Coreia, principalmente) provocou intensa instabilidade política

na região, causando, como apontado anteriormente no trabalho, conflito aberto entre os

países.

O Japão, por ter sido por tantas vezes privado pelos ocidentais de seus interesses na

Ásia, passa a agir cada vez mais agressivamente em relação à China. Os próprios chineses,

que vinham refreando a expansão japonesa, visando a manutenção de sua soberania territorial

e mesmo seus próprios interesses, provocam gradativamente o ódio dos nipônicos que, aliado

aos anseios imperialistas crescentes no país, desencadearam incontáveis massacres e episódios

brutais protagonizados pelo Exército japonês.

A trajetória dos japoneses no território chinês, sob uma perspectiva militar, desenhou

um cenário de incrível devastação, tanto material quanto humana. A caminho de Nanquim, o

Exército Imperial foi responsável pela destruição de inúmeras cidades – entre elas cita-se

principalmente Xangai. Contudo, o tratamento adotado pelos japoneses em relação aos

cidadãos de Nanquim especialmente, sugere que a despeito de qualquer anseio de ganho

econômico, os soldados japoneses propunham-se a punir os chineses pelas dispendiosas

campanhas empreendidas contra esses no Leste asiático e pela tentativa de travamento da

expansão imperialista japonesa.

Nesse ponto é necessário salientar, contudo, que a progressão militar dos japoneses em

território chinês não pode ser compreendida simplesmente tomando por base o ódio aos

chineses construído no Japão. Empreender esse tipo de análise simplória a um evento dessa

58 Esses pontos foram discutidos no capítulo 2.

Page 90: O massacre de Nanquim

89

magnitude significaria desconsiderar todos os mecanismos simbólicos e materiais que

também constituem partes essenciais dos eventos relativos ao massacre na cidade chinesa.

O que salta aos olhos no exame dos fatos, porém, é a crueldade e a frieza com que os

soldados japoneses encaravam não só os soldados inimigos, mas também a população civil

em geral. E isso inclui mulheres, idosos e até crianças da mais tenra idade. Ser chinês e estar

em Nanquim durante a ocupação do Exército japonês na cidade, sobretudo no período

chamado seis semanas de terror, significava estar sujeito a uma infinidade de atrocidades e a

uma intensa violência física e psicológica.

As mortes em Nanquim, segundo Chang (1997, p. 5-6) excedem o número de civis

mortos de alguns países europeus durante todo o período da Guerra e, extraordinariamente,

nem mesmo os piores ataques aéreos da Guerra fizeram mais mortos do que o massacre na

cidade chinesa. Nota-se, segundo a autora, que mesmo os ataques a Dresden no final da

Segunda Guerra não foram capazes de provocar tantas baixas civis e com um requinte de

crueldade tão grande quanto os acontecimentos de Nanquim.

A fim de oferecer um prelúdio à análise dos atos dos combatentes japoneses de um

modo geral, bem como de seus oficiais, vale a pena propor uma reflexão acerca do paradoxo

provocado, já no fim da Guerra, quando do episódio das bombas de Hiroshima e Nagasaki,

episódios que geraram grande comoção internacional devido às suas proporções e a extensão

da destruição causada nas cidades, tanto em termos materiais quanto em relação às perdas de

vidas humanas.

As mortes provocadas nessas cidades foram também cometidas sem qualquer chance

de defesa para os cidadãos. A falta de escrúpulos por parte do alto comando norte-americano

foi muito salientada na época e o mundo assistiu atônito aos horrores provocados por

explosões atômicas. É fato que os japoneses haviam cometido ações semelhantes – guardadas

as devidas proporções – no episódio de Pearl Harbor, entretanto, uma ação tão devastadora

quanto um ataque nuclear não pode ser justificado por premissas militares ou até políticas tão

frágeis como as professadas pelos americanos.

Cabe salientar, porém, que os americanos pelo menos possuíam meios para justificar

suas ações (mesmo que fossem justificativas não muito convincentes). Os japoneses, em

relação aos episódios na China, não apresentavam nenhuma prerrogativa que justificasse seus

atos, o que torna o massacre de Nanquim extremamente paradigmático no sentido de mostrar

como o militarismo excessivo e a adoção de ideologias que desmerecem o outro podem ser

perigosos.

Page 91: O massacre de Nanquim

90

Behr (op. cit., p. 207) afirma que os assuntos referentes a Nanquim receberiam, nos

círculos militares japoneses, uma nomenclatura de “Guerra de Punição”. Esse termo, nas

palavras do autor, possui “uma conotação muito mais violenta em japonês do que traduzido, e

tornava absurda a política declarada de amizade e cooperação [...]”. Sendo assim, torna-se

menos obscura a compreensão dos atos japoneses em Nanquim através da consideração

dessas premissas, e mesmo que ainda assim seja extremamente complicado entender quais

prerrogativas podem levar à materialização de casos como esse, nota-se que os nipônicos não

agiam simplesmente a esmo, ao contrário do que uma primeira análise pode sugerir.

Esse é um ponto que necessita de uma análise bastante cuidadosa, já que indica, de

fato, uma postura oficialmente violenta dos nipônicos em relação ao povo chinês. Quando os

japoneses se lançam no sentido de imputar uma punição nos chineses, simbolicamente isso

significa que eles se colocavam numa posição elevada e que tinham, de fato, direito de

corrigir a conduta dos vizinhos continentais. Ou seja, se o povo chinês não vinha agindo

conforme a cartilha dos japoneses, esses teriam o direito de castigar-lhes exemplarmente para

que não voltassem a cometer tais erros.

Ademais, a própria composição política interna do Japão como sendo constituinte de

uma raça elevada e herdeira dos deuses, provocaria gradativamente na população a ideia de

que o país deveria agir como um grande pai para as nações orientais vizinhas, e, nesse caso,

um pai que corrigia os filhos com punho de ferro. Sob esse prisma fica mais fácil entender a

naturalidade com que os japoneses encaravam tudo o que vinha acontecendo em território

chinês. Tudo aquilo, segundo a mentalidade japonesa, se justificava pela lógica de que

aqueles que agem vergonhosamente devem ser castigados.

A crise na Manchúria, que vinha se desenrolando desde o início da década de 1930,

conjugada ao decréscimo da produção rural desaguaram em uma atmosfera de crise e

incertezas no Japão, diante da qual se fortaleceu uma série de ideias de extrema direita

(DUUS, 1976, p. 209). Já no início de 1932, surgem várias associações de cunho patriótico,

partidos de extrema direita e até séquitos religiosos chauvinistas com o intuito de fortalecer o

sistema nacional.

O número de membros desses grupos cresceu assustadoramente entre 1932 e 1936,

fazendo com que se tornassem realmente expressivos. Eles eram, geralmente, guiados por

ideias nacionalistas de extrema direita e liderados por homens que tinham sido tão bem

educados a ponto de terem absorvido o culto oficial de lealdade ao trono, mas, ao mesmo

tempo, não tão instruídos para que pudessem chegar a questionar suas bases místicas.

Page 92: O massacre de Nanquim

91

Prejudicados por todos os lados por dificuldades econômicas e ressentidos de sua situação,

eles contrastaram seu próprio apego a virtudes tradicionais, diante da evidência do fracasso

moral e da possibilidade de corrupção política no alto escalão governamental.

O fortalecimento e a aceitação, pelo menos parcial, de tais grupos proporcionou o

questionamento ao papel exercido por alguns membros do governo imperial59

. Os

nacionalistas mais extremistas consideravam que vários assuntos da política externa do Japão,

particularmente os referentes à China, estavam sendo levados com muita frouxidão pelo

governo nacional, e, por isso, passaram a considerar que esses políticos não eram dignos de

ocupar tais cargos.

Os acontecimentos na Manchúria deram fim a um período em que os partidos ditavam

as regras e inauguraram uma era na qual a violência era a tônica do sistema político, ao ponto

de, segundo Duus (ibid, p. 210), um jornalista estrangeiro se referir à política japonesa do

período como “governo por assassinato”. Na verdade, o autor prossegue argumentando que:

o terrorismo fez sua primeira aparição em novembro de 1930, quando um jovem fanático de direita baleou e matou o premier Hamaguchi em protesto

pelo Tratado Naval Britânico. A situação se tornou ainda mais tensa com a

trama dos oficiais conta o alto gabinete em março de 1931 e outro evento similar em outubro do mesmo ano. Essas duas ações abortadas estimularam

outras atividades mais ousadas e violentas por parte de oficiais subalternos

que se consideravam samurais dos últimos dias e herdeiros das tradições legalistas dos anos 1850 e 1860. Convencidos de que o Japão estava sendo

mais uma vez ameaçado por perigos externos e problemas internos, eles

procuraram trazer a “restauração Showa”60

para salvar a nação de tais

apuros61

(id).

Os movimentos radicais de cunho nacionalista que se observam nesse período

buscavam eliminar todo e qualquer tipo de fraqueza que pudesse existir no interior do

governo. Sendo assim, na sua compreensão, seria necessário que cada vez menos políticos

civis fizessem parte do alto escalão governamental. Inicia-se, então, uma campanha de terror e

assassinatos destinada a aniquilar a predominância de tais políticos no governo.

Esse é um ponto de suma importância na análise sociopolítica do Japão na década de

1930. O terrorismo mencionado pelo autor e que era praticado contra alguns membros mais

moderados – ou mesmo pró-estrangeiros – do governo contribuiu para que cada vez mais os

militares fossem ocupando posições de destaque e importância no governo japonês. Dessa

59 É interessante destacar que em nenhum momento a autoridade e divindade do imperador são colocadas em

dúvida. 60 A era Showa é um termo comumente utilizado para caracterizar o período de governo do imperador Hiroíto,

que durou de 1926 a 1989. Essa nomenclatura indica a ideia de “período iluminado de harmonia e paz”. É

interessante observar que os grupos de extrema direita ansiavam por restabelecer o que compreendiam como sendo a soberania e harmonia interna do Japão. 61 Tradução livre.

Page 93: O massacre de Nanquim

92

forma, seria muito mais fácil que se colocassem em prática todos os objetivos da extrema

direita nipônica, nesse caso representada pelos militares.

Importante destacar que dentro do próprio alto escalão do governo, as ações radicais

teriam simpatizantes, mas, evidentemente, essa não era a postura da maioria. Na verdade

havia uma pequena minoria, representada principalmente pelo ministro da guerra Araki

Sadao, que via com bons olhos as ações praticadas e consideravam que, como o próprio

ministro declarou publicamente, “não são ações em busca de fama ou ganho pessoal [...] elas

foram praticadas pela crença sincera de que contribuem para o benefício do Japão Imperial”

(apud DUUS, ibid, p. 211).

Com mais prestígio e uma maior participação política, os militares começam então, já

no início da década, a implementar as medidas que assegurariam a absorção do projeto

nacional pelos mais jovens. Dito isso, observa-se que é nítida a importância do sistema

educacional e das escolas militares, bem como do próprio incentivo para que os mais jovens

ingressassem na vida militar.

A grande questão desse período é o ganho de prestígio e poder por parte do exército, o

que fez com que boa parte das ações sociais oficiais do governo girasse em torno dos

objetivos militares. O resgate do código de honra samurai62

elevou sobremaneira a ideia da

dicotomia entre glória e vergonha, contribuindo, dessa forma, até mesmo para o tipo de

postura que seria adotada em relação à população civil de maneira geral e, principalmente, nas

escolas e no exército.

Essa mentalidade, aplicada na prática em relação aos outros países do sudeste asiático,

traria uma atmosfera de naturalização das ações violentas em nome da honra, ou como

punição por algum tipo de vergonha. Sendo assim, na medida em que os chineses passaram a

ser vistos como os maiores representantes da desonra asiática, cabia aos nipônicos imputar-

lhes o devido castigo.

A noção de que o que se desenrolava em solo chinês nada mais era do que a merecida

punição da população gerava como dito, uma naturalização de tudo o que era praticado pelos

soldados. Na verdade, ocorre uma grande racionalização da máquina de guerra japonesa em

Nanquim (e em toda China), só que diferentemente dos nazistas em relação aos judeus, por

62 Bushido, “o caminho do guerreiro”. Era o estilo de vida dos samurais. A lealdade dos samurais ao imperador e

ao seu senhor (ou damio) era sem igual. Eles eram realmente homens leais e honestos. Viviam vidas simples sem

interesse em riquezas e coisas materiais. Os samurais não temiam a morte sob nenhuma circunstância, e

poderiam entrar em qualquer batalha, independente da probabilidade de vitória, e, além disso, morrer em batalha trazia honra para a família e o senhor de tal guerreiro. Essa era a mentalidade que os oficiais japoneses

desejavam resgatar e inculcar nos jovens soldados.

Page 94: O massacre de Nanquim

93

exemplo, não havia um esforço voltado diretamente para dizimar a população da China, mas

sim mostrar quem realmente mandava e deixar os chineses no seu devido lugar de submissão.

Em outras palavras, existe um fator simbólico aqui que vai muito além de aniquilar o

inimigo fisicamente. Na mentalidade japonesa era necessário liquidar totalmente os

adversários, e isso inclui derrotá-los fisicamente de forma brutal e irrecuperável, mas, além

disso, principalmente, destruir a sua alma. Isso significa que uma simples vitória sobre os

chineses não bastaria e não saciaria os anseios japoneses, era necessário trucidá-los, humilhá-

los, a um ponto em que não houvesse nenhuma possibilidade de reação.

Em relação a Nanquim, os japoneses acreditavam que, para os chineses, as notícias do

saque à cidade traria aos chineses o temor do poder divino do Japão e levaria a população, de

forma geral, a aceitar a ocupação japonesa como sendo uma alternativa menos terrível do que

se acontecessem outros episódios iguais a esse. É de se supor, então, que a violência e a

brutalidade perpetradas contra a população da cidade chinesa atingissem níveis astronômicos.

A ideia mais aceita nos altos círculos militares nipônicos era que isso também abalaria

a força do governo chinês – representado pela figura de Chiang Kai-Chek – e, certamente,

começariam a questionar sua liderança depois de uma derrota tão terrível. Mas o tiro sairia

pela culatra, como a história dos anos seguintes ao massacre mostraria. Nas palavras de Behr,

“esses argumentos brutais estavam errados: os chineses intensificaram sua resistência contra

os japoneses e Chiang Kai-Chek, embora tenha fugido inicialmente para Hankow, e depois

para Chungking, não caiu” (BEHR, op. cit., p. 206).

A despeito do que aconteceria depois do saque a Naquim, a política enérgica dos

japoneses em relação à China chama a atenção justamente pelo aspecto selvagem e punitivo

com que foi empreendida. Muito embora as ações tenham sido cometidas partindo-se da

crença de que contribuiriam para tornar mais fácil a dominação japonesa da China, os

soldados e oficiais japoneses eram implacáveis e impiedosos no sentido de destruir

completamente o moral dos chineses.

Isso é a guerra de punição no universo japonês. O modo de vida honrado dos

samurais, que vinha sendo resgatado pelos japoneses, contrastava drasticamente com a apatia

e a desonra que eram relacionados com o estilo de vida na China e a sua inabilidade em

preservar o espírito – ou seja, a essência – da cultura oriental frente aos bárbaros ocidentais.

Os chineses, por conta disso, eram vistos pelos nipônicos como portadores da vergonha e da

desgraça do sudeste asiático.

Page 95: O massacre de Nanquim

94

Para que se tenha uma ideia mais clara das implicações da utilização do termo guerra

de punição aos assuntos referentes a Nanquim, vale a pena observar a própria construção da

expressão em japonês: Batsu no sensô63

. Ela indica muito mais do que o que nos sugere o

português, e vai além de uma simples correção ou mesmo de um castigo brando. Essa

expressão possui uma conotação bastante agressiva em relação àquele que é o alvo da

punição, o que se torna compreensível levando-se em conta o rigor e a disciplina social no

Japão.

Dessa forma, seria impossível imaginar os japoneses empreendendo tal tipo de castigo

de uma forma menos dramática do que como aconteceu. No universo japonês, se os castigos

imputados aos filhos, alunos, ou mesmo cidadãos que se desviavam dos padrões

tradicionalmente aceitos já eram duríssimos, a leitura que se fazia dos chineses, por sua vez,

num contexto no qual eram vistos como desonrados e portadores de grande vergonha, era de

que eles eram notadamente merecedores das punições e do castigo exemplar.

Uma questão que chama atenção em relação à utilização desse termo, porém, é que ele

só era utilizado no gabinete do governo e nos círculos militares, mas jamais seria utilizado

pela imprensa japonesa. É interessante notar que os japoneses professavam abertamente um

grande altruísmo em relação à esfera de coprosperidade asiática, mas, na verdade, agiam

conforme as suas próprias convicções daquilo que seria o melhor para a região e,

principalmente, para o próprio Japão.

Observando-se todo esse cenário, torna-se incoerente qualquer argumento do Japão em

favor de uma fraternidade entre os povos asiáticos, já que o que os nipônicos queriam, de fato,

era garantir seus próprios interesses e estabelecer uma zona de domínio no sudeste asiático.

Evidentemente o poder militar dos japoneses garantiria dominação política e,

consequentemente, maior poder econômico.

É importante notar que essas concepções políticas passaram a fazer parte da cultura

japonesa quando da criação do Estado japonês moderno pós-1868. Sendo assim, essas ideias

ganham corpo e são absorvidas pela população, que, como apontado anteriormente no

trabalho, passa a considerar a expansão imperialista do país como sendo uma parte

fundamental do processo de afirmação nacional frente aos imperialistas ocidentais.

Cabe salientar ainda que a educação dada aos jovens japoneses durante anos a fio teria

agora o terreno chinês para se manifestar. A visão desses jovens de que eram muito superiores

63 Neste caso, a expressão significa literalmente “Guerra de punição”.

Page 96: O massacre de Nanquim

95

aos chineses alimentaria ainda mais o grau de crueldade empregado pelos soldados, afinal de

contas, os chineses representavam uma raça inferior64

.

As escolas japonesas operavam como pequenas unidades militares e, nesse sentido, o

enraizamento do militarismo nos estudantes era muito forte. Muito comuns também eram os

castigos físicos perpetrados pelos próprios professores a fim de garantir o cumprimento e

absorção da disciplina rígida. Essa rigidez se intensificava ainda mais quando alguns desses

estudantes resolviam tornar-se soldados. Os castigos físicos aumentavam sobremaneira, e

nesse sentido, é interessante a fala dos oficiais professores de que batiam nos jovens não

porque os odiavam, mas porque realmente se importavam com eles (Chang, op. cit., p. 30-32).

Peter Duus oferece uma análise interessante em relação à sociedade japonesa desse período:

As ideias tradicionais de harmonia social, dever e autosacrifício, de lealdade

ao imperador e obediência aos pais, e o caráter especial da kokutai65

japonesa eram incessantemente embutidos na mente da maioria dos

japoneses. Originalmente propagados pelo governo a fim de reforçar a

determinação popular em um tempo em que o Japão vinha protegendo a sua frágil nova soberania nacional, essas ideias eram facilmente desviadas para

mobilizar apoio popular a políticas de expansão externa e reorganização

política interna (DUUS, op. cit., p. 207)66

.

Vale notar que o governo japonês foi realmente muito hábil em resgatar valores do

final do séc. XIX e empregá-los em prol da sua nova política externa em relação ao sudeste

asiático. Essas ideias, repetidas à exaustão no Exército Imperial, pareciam, de fato, bastante

pertinentes e aplicáveis às estratégias militares e políticas dos nipônicos para garantir que seus

interesses fossem observados e que, acima de tudo, tivessem apoio popular em tudo.

Esse apoio se fazia necessário já que havia, de fato, no Japão, um esforço oficial para

que o país, de um modo geral, encarasse a expansão imperialista como sendo fundamental

para a própria sobrevivência do país. Os que haviam nascido no início do séc. XX

experimentaram claramente o empenho governamental em difundir uma mentalidade

militarista e imperialista no Japão.

Toda escola japonesa, desde o final do século XIX passara realmente a funcionar

como um quartel, e, agora, com o intenso militarismo da década de 1930, isso havia se

intensificado. Os próprios professores eram treinados como soldados e também passavam por

uma disciplina pesadíssima e um forte doutrinamento. As escolas claramente deixaram de

funcionar em benefício dos alunos e passaram a trabalhar em função do bem maior da nação.

As entradas de novos textos de ética – shûshin, em novembro de 1936 – e de um volume

64 Ver capítulo 2. 65 Tradicionalmente, esse termo refere-se à política nacional japonesa. 66 Tradução livre.

Page 97: O massacre de Nanquim

96

chamado de Princípios Básicos da Essência Nacional – kokutai no hongi, em maio de 1937 -

agiram no sentido de realçar ainda mais a distinção cultural do povo japonês na mentalidade

dos jovens estudantes67

.

Em 1936, o professor M. S. Bates, da Universidade de Nanquim, fez uma visita ao

Japão e pôde observar mais de perto a atmosfera política do país. Ele redigiu um documento

de 13 páginas no qual descreve as suas conclusões acerca dos rumos que o país vinha

trilhando em relação à sua organização interna e ao tratamento dado aos estrangeiros. As

informações foram conseguidas através de uma série de entrevistas não oficiais a japoneses,

estrangeiros que viviam no Japão, diplomatas, professores universitários, missionários

cristãos, educadores e estudantes.

É importante destacar o cuidado de Bates em preservar em sigilo os nomes e

endereços de algumas pessoas envolvidas na sua viagem. Ele chega ao ponto de colocar na

primeira folha do relatório a frase “Favor destruir esta folha depois de tomar as devidas

precauções e notas que se possa desejar”68

. Nessa folha (que provavelmente foi redigida por

outrem, já que se refere a Bates na terceira pessoa), são relatadas as condições da sua viagem,

das entrevistas e, por fim, os nomes e endereços de alguns colaboradores – que deveriam ser

mantidos em sigilo.

Em relação à viagem e a permanência do professor em algumas cidades (Tóquio e

Nagasaki, por exemplo), bem como a obtenção de alguns relatos das dificuldades encontradas

ao se trabalhar com qualquer tipo de cultura estrangeira no Japão nesse período, deve-se

destacar o papel desempenhado por grupos de missionários cristãos, sobretudo presbiterianos,

no sentido de colaborar com tal suporte ao professor Bates.

De fato, em observância ao cenário de nacional-militarismo excessivo que se observa

no Japão, a introdução de aspectos de cultura estrangeira, como língua e religião, não seria

tolerada. Na verdade, observa-se, inclusive, assédio moral e violência sendo empregados nas

escolas cristãs do Japão. Vale a pena, nesse sentido, observar um trecho do próprio relatório

de Bates:

67 Isso depois se tornaria ainda mais evidente, quando, em 1938, o ministro da educação japonês instituiu um

panfleto intitulado Mobilização Espiritual Nacional e Educação Escolar (HAVENS, 1974, p. 25). Esse panfleto

dava aos professores as diretrizes de como trabalhar a crise com a China nas diversas áreas do saber. Depois

disso, foi resgatado o documento de educação imperial, de 1890, para os estudantes e professores, e em todas

as escolas, passou a ficar num lugar de destaque, ao lado do retrato do imperador. Ele era lido todos os dias

pela manhã, e era encarado como uma coisa tão séria, que se chegou a recomendar a mais de um professor

que acidentalmente engasgou ou gaguejou durante a leitura, que cometessem suicídio por ter cometido

tamanho insulto ao documento sagrado. 68 RG 10: Box 90 Folder 718: C. NMP0104.

Page 98: O massacre de Nanquim

97

Há grande pressão dos nacionalistas extremistas sobre as mentes e vidas de

todas as pessoas. Isso só pode ser entendido através de casos concretos, a sua

maioria fornecidos por fontes cristãs. Missionários de várias partes do Japão reportaram que tanto os antigos quanto os novos convertidos são

pressionados a quebrarem a sua conexão com uma religião internacional e

não-japonesa. Essa pressão é particularmente forte nas escolas, e é

geralmente expressa através de oficiais locais combinados com líderes budistas ou xintoístas que enfatizam o caráter nacional de suas religiões [...]

em certa universidade cristã, vários alunos foram presos e alguns mantidos

por semanas e até meses, e pelo menos um deles foi continuamente torturado e mantido pendurado pelos punhos. Não foram feitas acusações reais contra

os alunos, mas eles foram pressionados a declarar que eram comunistas ou

que tinham recebido instrução comunista na universidade. Nitidamente o

propósito da polícia era incriminar um grupo de professores interessado em melhorias sociais, por motivos religiosos. Em Tóquio, um cristão japonês

está na prisão porque respondeu à pergunta de uma criança na escola

dominical dizendo que Jesus é maior que o imperador. Em Osaka, um cristão leigo foi preso porque ao pregar na rua, ele declarou que a presente família

imperial não é diretamente descendente da deusa do Sol.69

A pressão interna no Japão contra a influência de qualquer tipo de cultura estrangeira

era muito forte. Quando o assunto era a religião, então, as coisas ficavam muito piores, já que

a própria religião xintoísta representava a base da constituição social do país. A nação, de

fato, havia sido constituída sobre as bases da mitologia religiosa, que indicava uma relação

direta entre os japoneses e os deuses.

A intromissão de uma cultura religiosa que colocasse em xeque a veracidade e a

validade da natureza divina do imperador e, por conseguinte, de todo o sistema social

estabelecido, contrariaria totalmente os objetivos estabelecidos pelo governo japonês para

uma nação forte e poderosa. O sistema educacional, principalmente, não poderia sofrer

nenhum tipo de interferência externa.

O simples fato de existirem escolas de orientação cristã no Japão nesse período já

incomodava sobremaneira os membros mais radicais do governo. A cultura estrangeira, que

durante os primeiros anos do século XX vinha obtendo ampla aceitação no Japão devido aos

anseios de modernização do país, passou a representar, a partir da década de 1930, o risco de

desviar os jovens do propósito de devoção à nação.

O sistema educacional japonês e, por consequência, o sistema educacional militar

agiam no sentido de difundir a ideia de devoção dos cidadãos ao sistema nacional

representado pela figura do imperador. O emprego da violência em benefício do bem nacional

maior (leia-se, o imperador) tornava-se plenamente aceitável e até incentivado, tendo em vista

69 RG 10: Box 90 Folder 718: C. NMP0104 (tradução livre).

Page 99: O massacre de Nanquim

98

que a sobrevivência e fortalecimento da nação pressupunha fortalecimento do próprio

imperador.

Sendo assim, não se podem tolerar quaisquer tipos de afrontas ao sistema instituído,

partindo-se do pressuposto de que uma ofensa à nação representa ofensa ao imperador e

consequentemente aos deuses. Sob esse prisma, a violência empregada nas escolas japonesas

e principalmente em relação às escolas de cunho cristão torna-se perfeitamente aceitável do

ponto de vista da filosofia nipônica, já que todos devem adequar-se ao novo modelo nacional.

A presença dos missionários cristãos, nesse contexto, torna-se totalmente

inconveniente às autoridades nacionais, e o próprio ensino do inglês chegou a ser proibido.

Muito mais mal vista ainda era a ideia de um deus ocidentalizado que era ensinado como

sendo maior do que o próprio imperador. Seria impensável às autoridades japonesas conceber

a ideia de um Jesus branco, com fisionomia e vestes ocidentais, e representando um poder

maior do que a casa imperial japonesa70

.

Nesse sentido, a repressão praticada contra todo e qualquer ato considerado

antinacional estaria fortemente presente na sociedade japonesa na década de 1930. A religião

cristã ocidental colocava em risco a validade de todo o sistema social japonês, que estava

baseado na aceitação da divindade da casa imperial e na naturalidade da hierarquia política

estabelecida no país.

E se a repressão contra os ocidentais já era fortíssima, a ponto de até nas escolas

cristãs os professores e alunos serem obrigados a venerarem fotos do imperador, a rigidez em

relação aos próprios japoneses era ainda mais forte. Como se observa no relato de Bates, as

agressões e os aprisionamentos seguidos de tortura eram muito comuns em se tratando dos

cidadãos nipônicos que resolviam se converter ao cristianismo, ou mesmo que fossem estudar

nas escolas cristãs.

Essas pessoas eram consideradas como traidores da nação e do imperador, e, por isso,

eram rotulados como inimigos do bem comum. O que chama a atenção, entretanto, é que essa

não era uma postura defendida abertamente pelo governo japonês. De fato, a presença de

escolas cristãs ocidentais não era proibida no Japão, tampouco os japoneses eram proibidos de

se converterem ao cristianismo, só que os que adotavam tal postura passavam a ser preteridos

socialmente e até tratados com violência por parte das autoridades policiais, como é o caso

dos exemplos supracitados.

70 Essa é uma ideia realmente discrepante da realidade sociopolítica japonesa, na qual se fazia uma leitura dos

ocidentais como bárbaros (vide capítulo 2).

Page 100: O massacre de Nanquim

99

Ao mesmo tempo em que o governo japonês agia energicamente contra os atos

considerados antinacionais, o país, oficialmente, tentava passar uma imagem de coesão

interna e até uma aparente aceitação da presença de missionários e outros estrangeiros. Era

como se, de uma forma dissimulada, o governo professasse um tipo de postura, mas, na

prática, agisse de uma forma bem diferente. Em termos concretos, qualquer um que

demonstrasse atitudes que iam de encontro ao projeto nacional era rechaçado, só que em

relação à sua política externa, o Japão agia como se essas coisas não ocorressem.

Esse tipo de postura violenta acabou se naturalizando na sociedade japonesa e passou

a fazer parte do cotidiano da população. Como dito anteriormente, as escolas funcionavam em

função do êxito da implantação do projeto nacional e, dessa forma, os próprios professores

trabalhavam como agentes diretos do Estado, incutindo nas mentes dos jovens as doutrinas

nacionais e punindo aqueles que por qualquer motivo se desviavam da obrigação dos cidadãos

para com a nação japonesa.

Nota-se novamente a presença fortíssima do on71

que perpassa todas as áreas da vida

do japonês, desde a família até o governo e ao próprio imperador. O compromisso de servir à

sua comunidade de concidadãos gerava nos jovens estudantes um grande furor e o anseio em

serem aceitos para fazer parte do Exército Imperial. Não havia forma mais honrada de servir o

imperador diretamente do que integrar as fileiras da máquina de guerra japonesa. Só que para

isso acontecer, os jovens precisavam passar por um pesadíssimo treinamento e encarar o rigor,

a disciplina e os constantes castigos físicos a que eram submetidos os jovens cadetes.

As punições imputadas aos alunos, em inúmeros casos, eram tão brutais que os jovens

não suportavam as condições físicas e vinham a morrer. Outros, ainda, cometiam suicídio

para evitar a vergonha de desapontar o imperador. Psicologicamente, o mundo militar era, de

fato, extremamente causticante para os soldados. Como se não bastasse a dificuldade física,

eles estavam submetidos a condições psicológicas bastante adversas, e isso era encarado como

necessário, tendo em vista que o objetivo era fazer dos jovens garotos verdadeiras máquinas

de matar, cegamente devotados à causa do imperador.

Apesar dos suicídios e da brutalidade com que eram tratados, a grande maioria seguia

na carreira militar e passava a ver nela o único meio através do qual poderiam ganhar suas

vidas. Depois de se tornar soldado, não havia um caminho de volta a ser percorrido, ou seja,

não havia outra opção de carreira a ser seguida, já que esses soldados tinham passado toda a

juventude sendo doutrinados e disciplinados para cumprir esse dever para com a nação.

71 Conjunto de obrigações ao qual todos os japoneses já nascem submetidos. Vide capítulo 2.

Page 101: O massacre de Nanquim

100

O mundo desses jovens soldados estava circunscrito ao exército e, por conta disso,

dedicavam-se sobremaneira para cumprir as suas missões e agradar aos superiores. Dito isso,

é fácil perceber que para esses soldados não havia limites do que poderia ser feito em nome

do imperador. Em outras palavras, não havia uma fronteira muito bem definida entre o que

seria moralmente aceito ou não, e, então, valia tudo em nome da nação.

Além do mais, esses jovens eram comumente incentivados a irem até as últimas

consequências e darem as suas próprias vidas em nome do imperador, e também, como

apontado anteriormente, eram submetidos a castigos físicos duríssimos quando cometiam

algum tipo de erro ou agiam desonradamente. A lógica do exército japonês nesse período

estava muito próxima do código de honra samurai, o bushido, que incentivava os guerreiros a

vencer o inimigo a qualquer custo ou, então, conquistar uma morte honrada no campo de

batalha e evitar a vergonha de possivelmente tornar-se prisioneiro do inimigo.

A rotina de treinamento era extremamente causticante para os militares japoneses

tanto em termos físicos quanto psicológicos. Os japoneses chegavam a encarar mais do que o

dobro de horas de estudo e treinamento em comparação às academias militares ocidentais, por

exemplo, e havia muita cobrança para que apresentassem sempre os melhores resultados. E

essa cobrança vinha tanto por parte dos professores como deles mesmos. A autocobrança é

um ponto que realmente chama muito a atenção quando se fala da população japonesa em

geral, e no exército isso era ainda mais forte, a tal ponto que os resultados dos exames eram

mantidos o máximo possível em sigilo para minimizar o risco de suicídio.

As academias militares japonesas funcionavam como se estivessem à parte do resto do

mundo. Não havia praticamente nenhum tipo de interferência externa em relação à educação

dos jovens cadetes e, além disso, eles não contavam com nenhum tipo de privacidade (não

havia assuntos particulares na academia) e eram extremamente desencorajados a desenvolver

qualquer tipo de liderança individual dentro da academia, enquanto estivessem passando pelos

anos de treinamento. Pode-se dizer que em cada jovem aspirante era prensado o rótulo do

militarismo japonês, com todas as implicações que isso trazia consigo.

Como se não bastasse, todo o material de leitura dos estudantes passava por um

rigoroso controle de censura para que não tivessem contato com nenhum tipo de ensinamento

que colocasse em cheque a divindade do imperador e o papel soberano da liderança japonesa

na Ásia. A ciência e a história eram distorcidas a fim de afirmar a imagem dos japoneses

como uma super-raça. Durante anos a fio os estudantes eram submetidos a esse tipo de

educação que não tinha nenhum tipo de interferência do mundo além das fronteiras japonesas.

Page 102: O massacre de Nanquim

101

Desse ambiente de violência física constante e forte pragmatismo político, onde

literalmente os fracos não têm vez, sairiam os soldados japoneses que iriam a Nanquim. Sob

essa perspectiva, torna-se bem mais palatável a idéia de que os soldados japoneses não eram

simplesmente demônios de farda, mas que eram seres humanos submetidos a doutrinas e

condições de ensino que possibilitavam e até mesmo incitavam à realização de atos

extremamente violentos aos outsiders (ELIAS, op. cit.).

Quando se observa o contexto no qual emergem os oficiais e os jovens soldados que

estavam na linha de frente da progressão militar japonesa na China é possível, de fato, sugerir,

mesmo sem se ter conhecimento dos eventos que se seguiram, que, no mínimo, um cenário de

muita violência e barbaridades seria protagonizado por tal Exército, ainda mais em um

território que representava todo o avesso do que professava o código de honra nipônico.

Depois de passar anos a fio sendo submetidos ao tipo de educação e doutrinação

discutido até o presente momento, os soldados japoneses que se encontravam a caminho de

Nanquim ansiavam veementemente por mostrar o seu valor, e isso seria feito através da sua

postura de total impiedade em relação aos chineses. O terreno estaria, então, extremamente

fértil para a ocorrência de toda espécie de atrocidades.

A população – e não só o Exército chinês – estaria frente a soldados assustadoramente

acostumados a uma rotina de agressões e à naturalização da violência como parte da

educação. Sendo assim, as rápidas vitórias do Exército nipônico sobre o chinês e a

velocíssima progressão militar japonesa sobre o território do vizinho continental trariam à

população chinesa o pior cenário que se possa sugerir.

Com um exército parcialmente abatido e com um moral muito baixo, a população civil

estaria entregue à mercê dos soldados inimigos. Nada menos do que um panorama de

brutalidade e devastação deveria ser esperado pelos chineses, já que desde o início das

campanhas militares os japoneses demonstraram toda a sua força e violência em relação a

essa população. Mas como não era de conhecimento dos chineses a ideia japonesa de guerra

de punição, a população civil considerava-se, pelo menos em parte, livre de quaisquer tipos de

excessos cometidos pelo Exército Imperial.

Estavam enganados. Na verdade, as ações dos soldados japoneses na cidade de

Nanquim, especialmente, teriam consequências desastrosas para a população civil restante na

cidade. Os soldados e até oficiais japoneses agiam realmente como se aquela campanha

militar na China representasse a razão das suas vidas e, mais ainda, como se os chineses – e os

Page 103: O massacre de Nanquim

102

cidadãos de Nanquim especialmente – estivessem simplesmente se deparando com o seu

destino inevitável de castigo devido à sua postura seguidamente desonrosa.

Diante do que vem sendo exposto, não é o caso aqui, contudo, de sugerir uma espécie

de demonização dos japoneses, ou, ainda, a ideia de que eles estavam na China única e

exclusivamente a fim de punir os chineses. Não pretendemos levantar a hipótese de que os

nipônicos passaram a balizar o sentido de sua existência em executar a punição dos chineses

devido aos supostos desvios da conduta moral desses. Esse argumento sugeriria a ideia de que

os nipônicos passaram a agir como se fossem os carrascos de um tribunal de honra asiático

imaginário, quando, na verdade, a situação se mostraria bem mais complexa e repleta de

detalhes.

Não se pode perder de vista todos os aspectos sociopolíticos que compõem as relações

entre chineses e japoneses, sobretudo após 1930-1931. Tampouco se podem desconsiderar as

questões econômicas que permeiam a invasão da Manchúria e as constantes tentativas da

manutenção de zonas de domínio na região. Só que além dessas questões, é extremamente

necessário levar em conta todo o âmbito figuracional que contribuía diretamente para moldar

as abordagens de um para com o outro no contato entre ambos os povos.

Nesse sentido, a observação da forma através da qual se constrói o Exército Imperial

desde a base, é fundamental para se compreender a violência, até certo ponto incomum, com

que esses militares empreenderam suas campanhas na China. O dia a dia de violência no

interior do Exército seria vertido em ainda mais violência contra os inimigos e teria terreno

aberto para se materializar. O alvo seria a população civil de Nanquim.

Os acontecimentos que se seguiram em Dezembro de 1937 em Nanquim merecem

uma atenção especial no que se refere ao tratamento dado não só aos soldados capturados

como também aos próprios civis. Chang (op. cit., p. 6) argumenta que:

não apenas o enterramento de pessoas vivas, castrações, dilaceramento de

órgãos e a queima de cidadãos vivos se tornaram rotina, mas também outros

métodos mais diabólicos de tortura eram praticados, como pendurar os prisioneiros em ganchos pela língua e enterrar pessoas nos seus próprios

excrementos [...]. Tão doentio era o espetáculo que até mesmo alguns

membros do Exército nazista que estavam na cidade ficaram horrorizados, um deles chegando a proclamar que aquele massacre era uma obra de

“maquinaria demoníaca”72

.

72 Tradução livre.

Page 104: O massacre de Nanquim

103

Através das palavras acima73

, é possível se ter uma ideia da profundidade das ações

dos soldados e oficiais japoneses na cidade chinesa de Nanquim, a partir de dezembro de

1937. É impressionante o fato de até mesmo os membros do Exército nazista que estavam

presentes terem ficado horrorizados com o que viam. Evidentemente, não pretendemos sugerir

que os nazistas não pudessem se espantar com o número de atrocidades cometidas ou que

fossem simplesmente monstros inescrupulosos e que já na década de 1930 pretendiam colocar

em prática todo o sadismo representado pela solução final74

(é nítido o fato de que o sistema

nazista era muito mais complexo do que um maniqueísmo simplista poderia sugerir), contudo,

é de chamar particularmente a atenção, o fato de que mesmo esses homens que também

vinham sendo doutrinados de forma semelhante – e que depois, de forma geral, viriam a

cometer toda sorte de barbaridades contra os judeus – tenham ficado perplexos com o cenário

em Nanquim.

As torturas cometidas contra os cidadãos, comumente não se justificariam nem mesmo

se cometidas contra os soldados. Mas em relação à população civil, isso se torna ainda pior.

Não havia informações estratégicas importantes que se poderiam ser extraídas dos cidadãos;

os civis normalmente não representavam perigo real aos soldados; e nem mesmo havia focos

de resistência civil contra a ocupação da cidade, como guerrilhas urbanas, por exemplo. A

partir dessas evidências se torna ainda mais complicado encontrar uma justificativa para tais

atos. Não é o caso aqui de sugerir que alguma coisa pudesse justificar tais tipos de tortura com

tamanho requinte de crueldade ou qualquer tipo de ação brutal, entretanto, algumas premissas

daquele tipo pelo menos serviriam para auxiliar a compreensão dos fatos – mesmo que nunca

a aceitação.

O que justifica pendurar uma pessoa pela sua própria língua? Ou enterrá-la em seus

excrementos? Essas são questões que perpassam o estudo dos eventos em Nanquim e, de

73 Poucos são os trechos que, assim como esse, apesar da limitação das suas palavras, conseguem transmitir de

forma tão assustadora, e ao mesmo tempo tão sucinta, o extremismo e a brutalidade a que se pode chegar um

processo de dominação. Como se podem compreender essas ações tão desumanas que atingiam até mesmo

mulheres, idosos e crianças? Quais são os mecanismos que permitem fazer com que esse tipo de coisa possa

ser encarado de forma tão natural pelos soldados, mesmo ao ouvir os gritos desesperados das mulheres e

crianças chinesas? É chegado o ponto que justifica toda a investigação empreendida até agora. Seria impossível

compreender, ou até mesmo simplesmente analisar esses eventos sem que se compreendam os processos de

construção e afirmação da nação japonesa moderna e todas as implicações relativas a isso. Sendo assim, a

partir desse arcabouço sócio-histórico é possível de se vislumbrar o ponto de entendimento – o que não

significa resignação – dos eventos em Nanquim em 1937-8. 74 A solução final foi a política implementada por Hitler a fim de exterminar os judeus nos campos de

concentração, quando a partir de meados de 1944, o jogo de forças pendeu para o lado dos aliados e a Alemanha se viu face a uma inevitável derrota. Já que não seria possível vencer a guerra, então, pelo menos, os judeus

seriam exterminados, esse era o pensamento de Hitler.

Page 105: O massacre de Nanquim

104

maneira nenhuma, poderiam passar ao largo em análises aprofundadas a respeito do tema. Só

mesmo um desejo muito grande de humilhar o inimigo pode fazer com que se chegue a tais

coisas. Na verdade, derrotar e destruir o inimigo não bastam, é necessário, segundo a

mentalidade difundida no Exército japonês, retirar-lhe tudo de mais precioso que ele possui, a

sua própria humanidade.

Numa análise um pouco mais detida, nota-se claramente que a barbaridade e a falta de

escrúpulos tornaram-se rotina em Nanquim. E isso significa que não seria o caso de estarmos

nos referindo a uma análise, por exemplo, de desvio de conduta por parte de um ou outro

membro do Exército Imperial, mas que o tratamento dado aos chineses era incentivado e

praticado até mesmo por alguns dos oficiais japoneses.

É importante notar, ainda, que a brutalidade dos soldados se inicia tão logo eles

conseguiram romper as defesas da cidade chinesa. Mais interessante ainda, é o fato de que os

soldados não faziam distinção entre a população civil e os militares chineses, nem no primeiro

momento e nem posteriormente. Todos eram considerados inimigos e representavam um alvo

em potencial, sendo assim, o tratamento despendido pelo Exército deveria ser violento e letal.

A entrada dos japoneses na cidade de Nanquim foi totalmente dramática. O Exército

chinês superava em muito o número de soldados do Exército Imperial, e é muito improvável

que aquele não tenha oferecido nenhuma resistência aos invasores. Todavia, o plano de defesa

chinês se mostrou muito mal articulado e desorganizado desde o princípio. Os membros do

alto escalão militar divergiam quanto às medidas a serem tomadas a fim de deter o Exército

japonês, ou pelo menos minimizar as perdas humanas do lado chinês. Isso se fazia sentir no

front, onde cada vez mais soldados chineses pereciam.

Durante a campanha, num período de um mês (Novembro a Dezembro),

aproximadamente 90 mil soldados chineses se instalaram em Nanquim, buscando proteger a

cidade do jugo japonês. Nesse ínterim, se iniciaria uma gigantesca empreitada visando retirar

da cidade os principais bens culturais dos museus, bem como todas as pessoas que possuíssem

os meios para encarar uma fuga árdua em navios lotados pelo rio Yangtzé. Naturalmente, os

cidadãos que conseguiam sair rapidamente da cidade eram aqueles mais abastados, os que

possuíam considerável poder aquisitivo, o que indicava logo de início que boa parte da

população de Nanquim pereceria nas mãos dos japoneses.

A despeito de toda essa mobilização demonstrada pelos chineses, a chegada dos

japoneses ao entorno da cidade e o cerco que se seguiria seriam totalmente desastrosos para os

chineses. O incipiente Exército chinês – formado por inúmeros soldados que haviam se

Page 106: O massacre de Nanquim

105

tornado combatentes literalmente da noite para o dia, e por isso não possuíam experiência

nem treinamento suficientes para embates corpo-a-corpo – não foi páreo para o bem

organizado Exército Imperial. Além do mais, as tropas que vinham chegando a Nanquim nos

dias imediatamente anteriores à invasão da cidade, acabavam de sair de outras derrotas para

os japoneses, e com isso já estavam totalmente exauridas, proporcionando quase nenhuma

resistência aos nipônicos.

Essa apatia em relação aos invasores só pode ser entendida partindo do pressuposto de

que além das tropas japonesas serem muito mais bem preparadas e devotadas à causa que

perseguiam, os próprios chineses agiram no sentido de facilitar o trabalho dos inimigos, ou

pelo menos de não interpor-se no caminho dos soldados japoneses. Isso aconteceu, não

porque o Exército sitiado fosse covarde ou menos dedicado do que os japoneses, mas pela

própria estrutura das forças armadas chinesas nesse momento crucial de defesa do país. Um

ponto que deve ser muito frisado é o despreparo e a exaustão dos seus soldados, bem como a

desorganização das tropas.

Mesmo a retirada do Exército chinês foi extremamente marcada pela desorganização e

desinformação. Alguns oficiais rapidamente informavam seus comandados das ordens de

recuar, outros, contudo, procuravam salvar suas próprias vidas, entregando os soldados à sua

própria sorte. Em comparação com o lado japonês, atitudes como essa seriam impensáveis, o

que, mais uma vez, mostra a disparidade entre os dois exércitos.

A modesta resistência chinesa75

aos nipônicos em Nanquim, como presumível, não foi

capaz de parar o Exército Imperial, que estava muito mais empenhado em atingir seus

objetivos. Em 12 de Dezembro de 1937 os combatentes japoneses rompem os portões da

cidade, passando a dominá-la. Começaria um período de terror com episódios como os

supracitados e até piores do que eles.

No episódio de entrada dos japoneses em Nanquim, inúmeros civis que consideravam

terem sido abandonados por seu exército e governo, procuravam saldar os combatentes

vitoriosos. Alguns inclusive colocaram bandeiras japonesas improvisadas nas janelas de suas

casas. Mas a sensação de que seriam tratados honradamente pelo exército invasor, como

citado anteriormente, passou rapidamente, pois logo que entraram na cidade, os japoneses

atiravam e matavam indiscriminadamente qualquer cidadão que encontrassem pelo caminho e

que esboçasse qualquer reação diferente de correr apavorado (CHANG, ibid., p. 82).

75 Nota-se que os soldados chineses possuíam munição e suprimentos suficientes para suportar um cerco de até

cinco meses, entretanto a resistência aos japoneses durou apenas quatro horas (CHANG, op. cit., p. 70).

Page 107: O massacre de Nanquim

106

Imediatamente após a entrada, facilitada pelas rendições em massa dos soldados

chineses que haviam sido praticamente deixados para trás, os japoneses iniciam suas

pavorosas ações contra os prisioneiros. Além dos soldados chineses, qualquer um que fosse

confundido com um soldado era imediatamente feito prisioneiro.

A princípio, os japoneses matavam todo homem jovem que encontrassem, alegando

que fossem membros do Exército chinês disfarçados. Entretanto, com o passar dos dias, as

mortes se intensificaram e os assassinatos passaram a alcançar todo e qualquer homem,

mulher ou criança que simplesmente não entendesse algum comando dos soldados, comandos

esses que eram dados em japonês.

A vida em Nanquim naquele dezembro de 1937, para os habitantes remanescentes na

cidade, era intensamente apavorante. Após a onda inicial de mortes do primeiro dia da

invasão, os japoneses começaram a tornar ainda mais requintados os rituais de execução. Os

prisioneiros, sem exceção, eram deixados por alguns dias sem comida ou água para que

fossem enfraquecidos gradualmente e então depois seria muito mais fácil conduzi-los ao

extermínio.

Os estrangeiros que ainda estavam na cidade assistiam horrorizados às atrocidades

cometidas pelos soldados e oficiais japoneses. Na verdade, desde o dia 2 de dezembro, um

documento da embaixada norte-americana já havia alertado os americanos que viviam em

Nanquim que deixassem a cidade, devido ao “crescente perigo para aqueles que

permanecerem em Nanquim”76

. Essa – cuja íntegra está no anexo I – circular enfatizava a

urgência da saída de todos os cidadãos americanos de Nanquim o quanto antes, sugerindo,

ainda, que se o conflito chegasse aos arredores da cidade, passar pelos portões provavelmente

seria impossível77

.

Os números divergem um pouco, mas, oficialmente, uma lista78

de 23 de novembro

contabilizava em 44 o número só de americanos residindo na cidade – mesmo que o próprio

documento admitisse que pudesse haver vários outros não listados. Já outro documento79

,

reportando a permanência de estrangeiros na cidade quando da ocupação japonesa, informa

que em 13 de dezembro (portanto um dia depois da ocupação da cidade) o número total de

estrangeiros, incluindo alemães, americanos, austríacos, russos, ingleses (além de um possível

76 RG 10: Box 102, Folder 862 - NMP0130. 77 O governo americano solicitava que os cidadãos americanos, na medida do possível, reportassem a forma

através da qual deixariam a cidade, se por conta própria, através da embaixada, ou se buscariam refúgio no

U.S.S. Panay. Um fato interessante, porém, é que o referido navio norte-americano seria prontamente

bombardeado e destruído pelos japoneses, causando a morte de 11 pessoas e ferindo gravemente várias outras. 78 RG 10: Box 102, Folder 861 - NMP0127. Anexo II. 79 RG 10: Box 102, Folder 862 - NMP0141. Anexo III.

Page 108: O massacre de Nanquim

107

cidadão francês) era de 42 pessoas. E, ainda, desse total, a grande maioria deixou a cidade

entre 15 de dezembro e 28 de fevereiro, inclusive jornalistas e membros da embaixada

americana.

O que salta aos olhos é que havia um alarme geral aos estrangeiros para que evitassem

ao máximo permanecerem na cidade. Essa intensa preocupação dos governos estrangeiros

chega a sugerir que essas embaixadas já esperavam que a atitude do Exército japonês em

Nanquim fosse violenta, ou mesmo que elas possuíssem algum tipo de informação

privilegiada sugerindo que estava por vir.

Esse argumento, porém, na ausência de documentos ou provas que o justifiquem, fica

só na especulação. Mas é no mínimo estranha essa postura tão afoita dos governos

estrangeiros em apressar a saída dos seus cidadãos antes da chegada dos japoneses.

Evidentemente, em qualquer tipo de guerra ou confusão num território, a recomendação dos

governos estrangeiros na maioria das vezes é que seus cidadãos deixem o local do conflito,

mas o que destoa no caso de Nanquim é o assombro de que mesmo para os que fossem

chineses poderia ser impossível deixar a cidade após a chegada dos nipônicos. Isso sugere a

ideia de que havia, sim, na comunidade internacional o receio de que os soldados japoneses

não poupassem a população civil da cidade.

A situação na cidade tornara-se realmente muito difícil até mesmo para os estrangeiros

que lá viviam. Mesmo que não fossem alvos dos japoneses, esses estrangeiros sofriam os

danos colaterais de estar em uma cidade que sofria uma ocupação militar violentíssima. Os

únicos estrangeiros que permaneceram presenciaram inúmeros estupros, sequestros e

espancamentos constantes perpetrados pelos soldados japoneses.

A fim de ilustrar a barbaridade dos soldados japoneses, vale a pena acompanhar a

história de Tang Shunsan. Um sapateiro que na época estava com 25 anos, e que após a

entrada dos japoneses na cidade havia encontrado refúgio juntamente com outros dois amigos

que tinham camuflado sua casa, colocando tijolos no lugar de uma das portas, ficando

abrigados dos japoneses no interior do cômodo escondido por alguns dias. A saga de Tang

iniciaria quando ele resolveu, movido pelo calor do momento, sair do amparo do esconderijo

para ver pessoalmente um soldado japonês. Chang (op. cit., p. 83, et seq.) descreve a trajetória

do rapaz:

Tão logo Tang pisou do lado de fora ele se arrependeu. Uma cena de horror quase surreal o chocou profundamente. Ele viu inúmeros corpos de homens

e mulheres – até mesmo corpos de pequenas crianças e de idosos –

apodrecerem diante de seus olhos nas ruas, a maioria havia sido apunhalado ou baionetado até a morte [...]. Tang viu um outro chinês na rua e, atrás

Page 109: O massacre de Nanquim

108

dele, um grupo de oito ou nove japoneses observando à distância [...]. Um

dos soldados [veio ao encontro deles] gritando e, antes que Tang soubesse o

que estava realmente acontecendo, o soldado decapitou o outro chinês com sua espada [...]. Foi aí que ele viu um grupo maior de soldados japoneses

levando centenas de cidadãos chineses ao longo da rua. Tang foi ordenado a

se juntar a eles [...]. Não muito depois, Tang se viu num lugar com um

buraco no chão recentemente aberto, que continha aproximadamente sessenta corpos de chineses [...]. Os japoneses ordenaram que os

prisioneiros se alinhassem lado a lado ao longo da cova, formando dois

grupos [...]. Então, para o horror de Tang, uma competição começou entre dois soldados – uma competição para estabelecer qual dos dois poderia

matar mais rápido [...]. Em cada um dos dois grupos de pessoas um dos

soldados decapitava os prisioneiros com uma espada, enquanto um outro

apanhava as cabeças e as empilhava à parte. Os prisioneiros permaneciam congelados de medo e terror enquanto seus compatriotas caíam, um por um

[...]. Foi então que Tang pode contar miraculosamente com a sorte. Quando

o soldado decapitou o homem exatamente em frete a Tang, o corpo da vítima caiu sobre ele. Segurando-se ao corpo, Tang caiu juntamente com o

cadáver na vala comum sem que ninguém notasse80

.

A sorte desse chinês tomado como exemplo não era comum naquele cenário. E a sorte

foi maior ainda porque depois de quase uma hora daquela disputa sangrenta, os soldados, a

fim de poupar tempo passaram a apenas cortar as gargantas dos prisioneiros em vez de

arrancar-lhes as cabeças, o que aumentou ainda mais as chances de sobrevivência de Tang,

afinal de contas, ele não seria o único corpo ainda com cabeça na vala.

É impressionante observar as ações que se tornaram rotina em Nanquim e que

atingiam diretamente toda a população civil chinesa na cidade. Exceção feita à uma pequena

parte da cidade onde se estabeleceu uma zona de segurança internacional, as ruas se tornaram

palco de todo tipo de atrocidades contra os cidadãos e formavam um cenário digno de filmes

de terror, com poças de sangue, cadáveres apodrecendo, pessoas sendo torturadas e

submetidas ao mais alto grau de sofrimento.

A falta de escrúpulos dos japoneses em Nanquim realmente chama muito a atenção.

Mais ainda porque, de modo geral, não se tratavam de combatentes lutando contra eles, e sim

de civis amedrontados. Além de casos como o supracitado, nota-se que a imaginação dos

nipônicos quanto aos tipos de tortura a serem realizados não tinha limites. Harris (op. cit., p.

55) oferece uma análise bastante interessante desse aspecto da conduta dos japoneses, no

episódio de sua progressão na China, de que nem mesmo os melhores escritores de ficção

poderiam rivalizar com os horrores da vida real na China.

Através de uma série de cartas enviadas pelo Dr. Robert O. Wilson, um americano que

trabalhava no Hospital Universitário de Nanquim, é possível notar a gigantesca extensão da

80 Tradução livre.

Page 110: O massacre de Nanquim

109

violência, sendo observada pela ótica dos estrangeiros na cidade. Além disso, outro aspecto

chama a atenção: a falta de preparo dos médicos chineses em atender a imensa quantidade de

pacientes graves que chegavam ao hospital. Nesse sentido, vale a pena acompanhar um trecho

de uma das cartas81

do Dr. Wilson para sua família, em 15 de dezembro de 1937:

O hospital fica mais sobrecarregado a cada dia. Nós estamos prestes a atingir

nossa capacidade normal, na medida em que os pacientes recebem alta.

Houve cerca de trinta novas entradas hoje e ninguém recebeu alta. Não podemos dispensar nenhum paciente, porque eles não tem nenhum lugar

para onde ir. Cerca de dez dos cento e cinquenta casos são ambulatoriais e

obstétricos, e o resto é de casos cirúrgicos. Nenhum de nossos médicos

chineses tem a habilidade para cuidar deles, exceto sob cuidadosa supervisão e isso me mantém muito atarefado.

82

Diante do cenário apresentado até agora, não é de causar espanto o número de entradas

de novos pacientes no hospital a cada dia, mesmo que já nos primeiros dias da ocupação

japonesa. A grande maioria desses pacientes (mais de 90%) representavam casos graves e que

requeriam cirurgias urgentes. O próprio Dr. Wilson relata que fazia em média mais de dez

cirurgias por dia, todas de pessoas que haviam sido vítimas dos soldados japoneses.

Como é possível perceber, a situação dos cidadãos se tornava ainda pior, na medida

em que a assistência médica era, também, muito ruim por parte dos médicos chineses, o que

acabava por sobrecarregar os poucos médicos estrangeiros que haviam permanecido na

cidade. Esses médicos, evidentemente, não conseguiam dar conta da gigantesca quantidade de

pacientes e a grande maioria desses vinha a morrer.

Através da perspectiva de um estrangeiro que tinha contato direto com as vítimas dos

japoneses, é presumível o espanto do médico americano em observar o que acontecia em

Nanquim. Nessa mesma carta que, é importante frisar, foi redigida apenas três dias após a

chegada dos japoneses, o Dr. Wilson afirma que “o massacre de civis é chocante, [...] casos de

estupro e brutalidade quase inacreditáveis”83

Alguns homens sofriam longas torturas procedidas pela morte, e essas torturas

variavam assustadoramente. Há numerosos casos em que os japoneses enterravam os

prisioneiros vivos e depois passavam por sobre eles com os tanques. As mutilações físicas

eram extremamente comuns, além das queimaduras, congelamentos e mordidas de cães, o que

sugere que havia realmente um toque especial de crueldade nos atos dos japoneses. Do

mesmo modo, os japoneses saturavam pessoas em ácido e, assustadoramente, empalavam

bebês com as baionetas (CHANG, op. cit., p. 88).

81 RG 11: Box 229 Folder 3875: NMP0016. 82 Tradução livre. 83 Idem.

Page 111: O massacre de Nanquim

110

Não há premissas que justifiquem o cometimento, especialmente, dessas duas últimas

ações. Atirar ácido numa pessoa não é um ato de alguém que está preocupado em

proporcionar ao inimigo uma morte honrada, ou mesmo uma morte rápida. Esse é um ato que

realmente indica crueldade e desumanidade por parte de quem o pratica. A ideia não é só

matar, mas imputar o maior sofrimento possível.

O empalamento de bebês, então, é uma coisa totalmente impensável sob qualquer

ponto de vista. Não existe nenhuma premissa ou doutrina bélica que justifiquem tais atos de

selvageria cometidos contra vítimas que nem sequer podem entender o que está se passando.

Esses tipos de eventos, por si só, indicam um dose bem grande de sadismo por parte dos

japoneses e, também, que realmente eles faziam uma leitura totalmente pejorativa em relação

aos chineses. Entretanto, não se pode perder de vista o fato de que esses não são atos de

violência gratuita, e sim o resultado de décadas de doutrinação política de estigmatização do

outro. Sendo assim, na lógica daqueles soldados, esses atos são perfeitamente justificáveis,

ainda mais sob a perspectiva da guerra de punição.

Quando se observam esses tipos de casos por uma ótica mais humanizada, é quase

impossível conter as emoções ao se imaginar tais atos sendo cometidos contra pessoas

acuadas, enfraquecidas fisicamente e que não esboçam, na maioria das vezes, nenhum tipo de

reação. É muito difícil acreditar que esses soldados estivessem agindo por conta própria de

forma desordenada e indisciplinada.

Não se trata de alguns casos isolados que foram reportados, mas de uma lista

astronômica de episódios de brutalidade e selvageria cometidos pelos japoneses. Sendo assim,

parece cada vez mais estranha a ideia de que os soldados estivessem agindo a esmo, ou que

recebessem punições ao excederem no uso da violência para com os cidadãos de Nanquim.

De fato, não há informações de repreensões significativas a soldados japoneses por parte das

autoridades competentes no período da tomada da cidade chinesa.

Nesse cenário, as mulheres, como em qualquer invasão de cidade, eram as que mais

sofriam. Os estupros em Nanquim atingiram proporções astronômicas, e era muito fácil para

uma mulher ser vítima de estupro na cidade. Além do mais, acompanhando a análise de

Chang (ibid., p. 90-91) nota-se que “nenhum lugar era sagrado o bastante para evitar um

estupro. Os japoneses atacavam mulheres em templos, igrejas, escolas bíblicas.” Levando-se

em conta que assim que chegavam a uma casa os soldados imediatamente procuravam

desmoralizar todos os membros da família, forçando-os a cometer incesto e depois

estupravam todas as mulheres da casa sem distinção de idade, pode-se considerar que não

Page 112: O massacre de Nanquim

111

havia nenhuma hora do dia sequer na qual não estivesse havendo um estupro em algum canto

da cidade.

Além dos estupros, que por si só já são extremamente brutais, os soldados japoneses

passaram a não só violentar as mulheres chinesas, mas também assassiná-las após os atos.

Esses soldados na verdade temiam que seus atos fossem revelados e que sofressem algum tipo

de retaliação dos oficiais superiores. Portanto preferiam se assegurar que nada realmente fosse

revelado. Cadáveres não falam.

Enganoso, porém, é o pensamento de que todos os oficiais estavam alienados dos atos

de seus subordinados. Muito pelo contrário. Assim como apontado anteriormente, muitos

oficiais participavam das orgias e, além disso, instigavam os soldados rasos a cometerem os

estupros em grupo, o que mais uma vez reforça a ideia de que essas ações não estavam

relacionadas ao desvio de conduta de um ou outro soldado, mas que se tornaram prática

corrente na cidade.

A gigantesca extensão dos estupros em Nanquim contribuiu diretamente para que

surgisse a preocupação entre os japoneses de manter mais discrição aos seus atos, temendo

retaliações dos ocidentais. É nesse contexto que são criadas as casas de conforto para servir

aos soldados e oficiais, já há tanto tempo no campo de batalha. As mulheres de conforto eram

selecionadas por toda a extensão do domínio japonês na Ásia e, após serem seqüestradas,

eram enviadas para esses locais onde passariam a servir de escravas sexuais.

Há inúmeros relatos e depoimentos da situação das mulheres de conforto chinesas e

suas condições de vida. Na verdade, os testemunhos corroboram ainda mais a idéia de que

realmente havia um quê de sadismo nas ações dos japoneses. Cabe lembrar que a margem de

idade para as violências sexuais era assustadoramente de 11 a 80 anos, e se o tratamento das

mulheres idosas já era apavorante, as violências contra as mais jovens era ainda pior.

Algumas, inclusive, tinham suas vaginas cortadas a fim de facilitar a penetração dos

japoneses.

Além das execuções dos prisioneiros e habitantes de maneira geral e das orgias

sexuais, os japoneses também iniciaram um empreendimento no sentido de capturar

prisioneiros para enviá-los para os novos complexos industriais de desenvolvimento de armas

químicas e biológicas na Manchúria. Os japoneses acreditavam que o desenvolvimento desse

tipo de arma desempenharia um importante papel nos possíveis conflitos futuros com os

Page 113: O massacre de Nanquim

112

ocidentais84

. Sendo assim, o teste desse tipo de armamento necessitaria de um número

considerável de cobaias humanas para o incremento em larga escala. Tendo um complexo de

purificação de água como disfarce perfeito, o plano de desenvolvimento de armas biológicas

do dr. Ishii Shiro poderia agora funcionar e receber fortes investimentos do governo japonês

(HARRIS, op. cit., p. 40).

As pesquisas de desenvolvimento de armas químicas e biológicas receberam a

nomenclatura de unidade 731 e entravam nos orçamentos do governo japonês como verba de

pesquisa. A unidade contou com alguns complexos industriais pela Manchúria, dentre eles

principalmente os de Harbin, Ping Fan e Beyinhe.

A desumanização inferida aos pacientes desses centros de pesquisa, bem como aos

trabalhadores chineses na construção dos prédios, merece ser destacada. Nota-se que

realmente os japoneses “tratavam brutalmente os trabalhadores chineses durante o processo de

construção das novas fábricas. Os obreiros enfraquecidos eram obrigados a trabalhar longas

horas, suportar condições de vida extremamente adversas e recebiam uma verdadeira ninharia

por seu trabalho” (HARRIS, ibid., p. 32).

Paradoxalmente, nota-se mais uma vez que a despeito das barbaridades cometidas no

interior dos pavilhões, o responsável pelas instalações, Ishii Shiro, procurava manter o sigilo

das reais ações dos centros de pesquisa. Behr (op. cit., p. 212) ilustra muito bem os esforços

do general afirmando que:

a seus colegas e superiores do Exército,vangloriava-se da contribuição que

estava dando à capacidade de defesa do Japão e do interesse despertado por seu trabalho nos círculos mais elevados; entre seus subordinados, ele

difundia a necessidade de segredo, fazendo-os jurar que nunca divulgariam

o que presenciaram em Ping Fan.

O terror nas unidades de pesquisa do dr. Shiro poderia ser rivalizado apenas pelos

posteriores campos de concentração nazistas e pelos experimentos dos médicos alemães em

judeus. Os tipos de pesquisa desenvolvidos nessas instalações evocam também um pavor

quase surreal. Apesar de os prisioneiros dessas fábricas da morte85

receberem boa

alimentação a princípio, os tipos de situações e condições as quais seriam submetidos

mostravam que eles representavam nada mais do que ratos de laboratório.

84 Desde o início da década de 1930 a gradativa transformação da Manchúria numa área de teste e implantação

de armas químicas e biológicas se deve principalmente aos esforços do Maj. Ishii Shiro, médico do exército.

Shiro foi o grande responsável pelas milhares de mortes nessas verdadeiras fábricas da morte que em muitos

casos compreendiam complexos gigantescos semelhantes a cidades. Ele teve sua grande chance de implementar

esse tipo de pesquisa com o apoio do governo após o Exército de Kwantung sofre uma baixa de 6000 homens em

1936 por um surto de cólera. Para uma análise mais detalhada dessas unidades de pesquisa biológica, vale a pena consultar Harris (ibid.). 85 Harris (op. cit.).

Page 114: O massacre de Nanquim

113

Harris (op. cit., p. 64-65) afirma que os escolhidos para os experimentos só recebiam

boa alimentação para que os médicos japoneses pudessem apurar realmente quais seriam os

efeitos das armas em condições normais. Sendo assim, testes em cobaias debilitadas teriam

seus resultados mascarados pelas próprias condições físicas dessas.

Outro aspecto que torna ainda mais peculiares as instalações de pesquisa biológica

japonesas é que a quantificação das cobaias se torna praticamente impossível, na medida em

que em Ping Fan, por exemplo, era utilizada uma numeração de 101 até 1500 que era repetida

ciclicamente quantas vezes fossem necessárias. Estima-se que dezenas de milhares de civis

chineses foram mortos só em Ping Fan (HARRIS, id.).

A numeração era inferida aos prisioneiros no exato momento de chegada, o que

provocava a total despersonalização das vítimas. Logo após, elas eram dirigidas para os

diversos tipos de experiência: “alguns eram infectados com disenteria ou injetados com

tétano; outros (alguns usando máscaras, outros não) eram levados a um lugar aberto e

‘bombardeados’ com cianureto; outros, ainda, eram encerrados em ‘câmaras frias’ a 50 graus

negativos e congelados até a morte” (BEHR, op. cit., p. 213).

A invasão de Nanquim contribuiu em muito para o estabelecimento dos complexos

industriais de pesquisa na Manchúria. A posição estratégica da cidade favorecia o lançamento

de um ataque armas biológicas a fim de aterrorizar os exército de Chiang Kai-Shek (HARRIS,

OP. CIT., P. 137). Levando-se em consideração que a população da cidade no momento da

invasão japonesa era de aproximadamente meio milhão de pessoas (CHANG, op. cit., p. 40 et

seq.), o arrebanhamento de vítimas para a unidade 731 foi facilitado diante do enorme

tamanho da população.

O período de dois meses que compreendeu o massacre de Nanquim é totalmente

incomum tendo em vista que a cidade não fica numa área isolada, como ficam as cidades de

Harbin e Cahngchun, que também sofreriam muito com a progressão militar japonesa. Mesmo

assim, os soldados japoneses não pouparam os cidadãos de Nanquim, muito pelo contrário, a

matança nesse local foi particularmente assombrosa (HARRIS, op. cit., p. 136).

Ao se analisar uma série de documentos e correspondências enviados pelos

responsáveis estrangeiros pela Universidade de Nanquim à embaixada japonesa na cidade,

nota-se alguns pontos bastante elucidativos em relação à postura das autoridades japonesas no

tocante às ações dos soldados. A maioria dessas cartas refere-se à péssima conduta dos

nipônicos para com a população civil chinesa, e até mesmo funcionários chineses da

Page 115: O massacre de Nanquim

114

Universidade. Em uma dessas cartas, datada de 17 de dezembro, um membro do Comitê

Emergencial da Universidade questiona a embaixada japonesa da seguinte forma:

Nós acreditamos que o Exército japonês tem o poder e a eficiência para

manter uma conduta respeitosa e para garantir ao povo conquistado uma chance de viver e trabalhar de forma ordenada. Nós não conseguimos

compreender por que isso não acontece, e, ainda, por que isso não é feito

antes que mais danos sejam causados à população local e à reputação do Japão.

86

Nessa mesma carta, e em várias outras, são relatados casos nos quais os soldados

vinham sempre em busca de dinheiro, relógios e mulheres, além de cometerem vários

estupros, mesmo à luz do dia. Na verdade, numa outra carta do dia anterior, havia sido

relatada a situação na Universidade, onde havia cerca de 1500 refugiados. É narrado que

alguns soldados japoneses derrubaram a bandeira americana e invadiram as casas do campus

universitário. Próximo à biblioteca, quatro mulheres foram estupradas, três foram levadas e

não mais retornaram e uma delas foi salva graças aos policiais do Exército nipônico que

estavam próximos à embaixada.

É importante notar que aparecem nesse cenário novos atores que teoricamente agiriam

em favor da população civil: os policiais e guardas do Exército. Na verdade, esses homens

tinham por função fiscalizar a conduta dos soldados e garantir a ordem social na cidade. A

despeito disso, o que acontece é que o número desses guardas era ínfimo, e, por isso, não era

possível realmente garantir que atos de violência contra os cidadãos acontecessem.

O acompanhamento das correspondências do complexo universitário com a

Embaixada é de vital importância para a compreensão de toda a conjuntura que envolve a

grande questão de se os soldados agiam a esmo e por conta própria, ou se estavam

fundamentalmente colocando em prática o que haviam sido instruídos a fazer. Do dia 16 ao

dia 31 de dezembro as cartas são quase que diárias. De início, os assuntos pautavam-se em

reclamações a respeito de “soldados desordeiros e sem disciplina e sem oficiais”87

, mas com o

passar dos dias, as reclamações voltaram contra as próprias autoridades japonesas.

Em 19 de dezembro, o Dr. Wilson reportou uma ocorrência bastante incomum que

ocorreu no hospital universitário. Três soldados entraram pelos fundos do hospital e ficaram

circulando pelos corredores, quando uma das enfermeiras, uma senhora americana de 63 anos,

passou a acompanhá-los. Eles tomaram o relógio dela, mesmo sob protestos, e depois de

algum tempo, dois dos soldados foram embora, enquanto que o terceiro desapareceu.

86 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0064. 87 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0070.

Page 116: O massacre de Nanquim

115

Aproximadamente uma hora depois, o Dr. Wilson foi alertado de que havia um soldado

japonês no dormitório das enfermeiras.

Ao chegar ao local, ele se deparou com o soldado parcialmente vestido, em um quarto

com seis enfermeiras. Descobriu, então, que o soldado já tinha estuprado três das enfermeiras

antes dele chegar. Diante do flagrante, o soldado pegou suas coisas e foi embora. As vítimas e

as demais enfermeiras do hospital ficaram horrorizadas com o acontecido. O texto da carta

não deixa muito claro, mas ao que tudo indica, as enfermeiras que foram vítimas desse

soldado eram todas chinesas.

O secretário Fukuda, da embaixada japonesa, responde a essa carta solicitando que os

estrangeiros responsáveis pela Universidade averiguassem mais de perto as denúncias contra

os soldados, a fim de verificar se realmente são reais. Uma carta de 21 de dezembro

endereçada à Embaixada começa a mudar o tom das reclamações. Nela, são reforçadas as

denúncias e o fato de que tinham sido cuidadosamente investigadas, conforme solicitado.

Aparece novamente, nessa carta, a reclamação de que os nipônicos derrubaram a

bandeira americana na Universidade e, dessa vez, ameaçaram de morte os funcionários, se

mais uma vez a bandeira fosse hasteada. O documento reafirma o pedido para que houvesse

mais guardas do Exército para garantir a segurança dos cidadãos, solicitação essa que vinha

sendo insistentemente feita aos oficiais da embaixada.

De fato, o número de guardas, segundo as cartas, era irrisório e não representava, nem

de longe, algum tipo de real segurança para as pessoas. O último parágrafo do documento

chama particularmente a atenção e sugere mudança no foco das reclamações. Os membros do

Comitê Emergencial argumentam que “se os generais pretendem destruir as casas das pessoas

e levar seus últimos alimentos e roupas, é melhor que isso seja dito honestamente em vez de

enganá-los com falsa esperança de ordem.”88

A partir dessa data, o foco das reclamações nitidamente começa a se direcionar para as

autoridades japonesas além dos soldados. Nitidamente, começa a surgir entre os estrangeiros a

insatisfação a respeito da apatia dos chefes japoneses em acabar com os episódios de

violência. Os textos dos documentos são enfáticos em relação à não existência de guardas e,

mesmo, ao desrespeito dos soldados para com as poucas ações da guarda.

Uma correspondência datada de 27 de dezembro é bastante interessante no que tange à

sua clareza em elencar os casos de violência relativos a estupros (inclusive de uma menina de

11 anos de idade), espancamentos e sequestro de chineses. Além disso, é enfática em afirmar:

88 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0068.

Page 117: O massacre de Nanquim

116

“há mais de uma semana foram feitas promessas de que se restauraria a ordem e haveria um

maior número de guardas”89

. Como o próprio documento explicita, a “desordem continua” e,

a despeito das promessas feitas pela Embaixada japonesa no sentido de acabar com esses

problemas, nada vinha sendo feito.

Segundo essa correspondência, os japoneses havia prometido proteger a escola bíblica,

mas não cumpriram a promessa. A escola sofria constantes ataques de soldados que a

invadiam, sequestravam meninas e as estupravam. Os episódios de violência geralmente eram

protagonizados por grupos de três ou quatro soldados, mas havia grupos bem maiores que

contavam com doze ou quatorze homens que pareciam incansáveis na tarefa de violentar os

cidadãos, sobretudo as mulheres.

Além disso, os oficiais japoneses haviam se comprometido perante os estrangeiros em

resguardar a população civil, coisa que, evidentemente, não ocorria. Novamente é possível

observar que as palavras e as ações dos nipônicos eram muito contraditórias umas em relação

às outras. Esses documentos relativos ao período de dezembro, principalmente, transparecem

a ideia de que os próprios estrangeiros não enxergavam aqueles atos como a prática oficial do

Exército Imperial, mas que consideravam ações de indisciplina dos soldados.

Todavia, as críticas direcionadas às autoridades japonesas foram duríssimas e, na

verdade, já se vinha pondo em dúvida o seu desejo de realmente reverter essa situação. O

resultado disso foi que em 30 de dezembro, a Embaixada recebe outra carta da Universidade

afirmando que “nos últimos dois dias, o número de soldados nos arredores diminuiu

bastante”90

. Pode-se supor que devido às insistentes reclamações, os oficiais passaram a

instruir que os soldados evitassem a área. Não se pode dizer que tenha havido um real esforço

para frear os eventos de violência.

As evidências mostram justamente o contrário. Esse próprio documento parece ser um

tanto contraditório, pois ao mesmo tempo em que agradece, já no primeiro parágrafo, a

suposta melhora que houve na situação, os parágrafos subsequentes estão repletos de relatos

de casos de violência, incluindo mulheres raptadas, invasão de casas e desaparecimentos.

Contudo parece que esse esforço virtual dos japoneses chegou a convencer os responsáveis

pela Universidade de que estavam agindo em represália aos atos violentos, já que no final da

carta, o professor Bates conclui: “grato pelo seu interesse amigável pela boa ordem e

tratamento justo às pessoas.”91

89 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0071. 90 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0073 91 Idem.

Page 118: O massacre de Nanquim

117

O que chama a atenção, pelo menos em relação às correspondências diretas com a

Embaixada japonesa, é que aparentemente o Dr. Wilson, o professor Bates e os outros

estrangeiros realmente acreditavam que as autoridades japonesas iriam esmerar-se em

repreender e punir os soldados transgressores. Ao se observar a saudação final de Bates não se

pode considerar que ele estivesse querendo dizer o contrário ou que estivesse sendo irônico

em relação aos oficiais da Embaixada, mesmo porque isso, sim, ofereceria a eles as razões

para agirem de forma mais severa.

Essa crença na veracidade das intenções do alto escalão japonês se reflete ainda no

post scriptum (P.S.) deixado na carta, no qual Bates argumenta: “Ontem de manhã, os guardas

militares no nosso portão levaram três colchões que tinham pegado emprestado aqui. Parece-

nos que um ou dois policiais confiáveis seriam melhores que os oito soldados descuidados

que ficam sentados o dia todo e à noite dormem numa sala ao lado”92

.

Ao explicitar esses protestos, fica claro que eles realmente esperavam que os oficiais

japoneses fossem tomar as providências cabíveis para restaurar a ordem. Todavia, mesmo que

os nipônicos professassem uma preocupação em relação ao que vinha acontecendo, suas ações

demonstram que essa preocupação era muito mais no sentido de evitar que as atrocidades

cometidas viessem a público na comunidade internacional.

A percepção que se tem é realmente de uma postura dissimulada das autoridades

nipônicas em Nanquim a respeito da conduta dos soldados. Oficialmente, os nipônicos

professavam uma atitude de controle de conduta, fiscalização e restauração da ordem, mas na

prática, as suas ações se mostravam bastante condescendentes em relação aos episódios de

violência. Por isso mesmo, é difícil acreditar que os episódios em Nanquim representem a

indisciplina ou o sadismo de alguns soldados.

Havia uma preocupação dos japoneses em demonstrar à comunidade internacional que

tudo corria bem na China, e, sendo assim, procuravam passar a imagem de que oficialmente

repreendiam os soldados. Da mesma forma, quando recebiam reclamações dos estrangeiros a

respeito dos episódios de violência cometidos pelos soldados, buscavam transmitir a ideia de

que agiam no sentido de adverti-los e puni-los. Evidentemente, não se pode considerar que

todo o amplo alto escalão governamental japonês estivesse planejando desde o início o

massacre em Nanquim. Não há evidências que comprovem tal ideia93

, nem tampouco é isso

que pretendemos supor.

92 Idem. 93 A respeito da complexidade política do alto escalão japonês em relação aos assuntos referentes a Nanquim,

vale à pena consultar Behr (op. cit., p. 207 – et seq.).

Page 119: O massacre de Nanquim

118

A partir das premissas apontadas acima é possível compreender o porquê de os

japoneses não terem se preocupado tanto com o fato da cidade de Nanquim não ficar numa

área isolada. Na verdade, como é de conhecimento geral, Nanquim era a capital da China

nessa época. Sendo assim, as ações brutais cometidas na cidade seriam facilmente

interpretadas como ímpeto e sadismo dos soldados rasos, já que seria realmente inimaginável

a ideia de que o oficialato japonês pudesse incentivar os soldados a cometerem barbaridades

contra a população civil.

Entretanto, numa análise mais detida é possível identificar a real natureza dos eventos

em Nanquim: representavam a aplicação prática da política militarista japonesa para a Ásia.

Dessa forma, em observância à cultura japonesa construída desde o final do século XIX e

fortalecida durante as primeiras décadas do século XX, é nítida a conclusão de que, quando a

hora chegasse, o Exército Imperial estaria pronto a colocar em prática todas as ideias relativas

à superioridade racial dos japoneses, do vanguardismo nipônico e do poder divino da nação

japonesa. E isso incluía derrotar, destruir e, principalmente, humilhar os inimigos, sobretudo

os que se mostrassem desonrados. Esse foi o caso dos chineses.

A elucidação das correspondências supracitadas contribui fortemente no sentido de

corroborar esse argumento, já que em quase todas as correspondências observa-se a aparência

enganadora dos japoneses de que estavam agindo contra os episódios de violência, mas, na

realidade, nada faziam de concreto para que esses atos fossem coibidos, nem mesmo

aumentaram a fiscalização ou o número de guardas do Exército na cidade.

A falta de ações das autoridades nipônicas no sentido de frear os atos de brutalidade

em Nanquim indica muito mais o desinteresse do que incapacidade em fazê-lo. É muito difícil

acreditar que com toda a disciplina e o rigor com que era comandado o Exército Imperial, os

soldados pudessem agir tão desordenadamente e indisciplinadamente quanto se pretende

sugerir. A ideia de soldados agindo à revelia dos seus superiores é praticamente impensável

no universo cultural japonês.

Além do mais, nota-se que ao se confrontar os eventos em Nanquim com o tipo de

cultura construída no Japão durante as décadas anteriores, é possível identificar diversos

aspectos peculiares de proximidade entre as ações dos soldados e o tipo de educação que

recebiam nas escolas militares. Como dito anteriormente, os acontecimentos em Nanquim

refletiam a cultura imperial-militarista japonesa sendo colocada em prática, ou seja, os

soldados faziam o que foram ensinados a fazer.

Page 120: O massacre de Nanquim

119

Isso significa que não se pode analisar o massacre de Nanquim simplesmente

considerando que os soldados fossem sádicos e inescrupulosos (mesmo que, como foi

explicitado no trabalho, houvesse inúmeros casos de crueldade nos quais os soldados

claramente se divertiam ao massacrar os chineses). É evidente que tanto a brutalidade quanto

a falta de escrúpulos estavam presentes nas ações supracitadas, entretanto, a análise se torna

rasa se não leva em conta a cultura de violência que foi sendo construída no Japão desde o

final do século XIX. Sendo assim, o massacre de Nanquim representa a política japonesa para

o sudeste asiático sendo colocada em prática.

Os eventos em Nanquim duraram efetivamente apenas alguns meses, mas a marca que

elas deixariam na população chinesa atravessaria gerações. Muitas mulheres violentadas

durante a invasão da cidade ficaram grávidas, o que provocou um enorme número de suicídios

e infanticídios nos meses subseqüentes. Ademais, os sobreviventes tiveram que conviver com

a vergonha e a dor das lembranças pelo resto de suas vidas.

É através do testemunho desses sobreviventes que se tornaria possível ter uma ideia

mais clara da bestialidade com que os soldados japoneses tratavam os civis na cidade. Além

disso, os experimentos químicos e biológicos na Manchúria e a presença japonesa em

Nanquim durariam até a derrota japonesa em 1945, o que, diante das evidências, indica que

possivelmente dezenas ou até centenas de milhares de pessoas encontraram, também, o

trágico destino de engrossar as estatísticas da máquina de morte japonesa.

Page 121: O massacre de Nanquim

120

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Massacre de Nanquim, analisado em retrospectiva, precisa ser entendido no amplo

contexto da expansão militar japonesa no sudeste asiático. E, mais ainda, sob os

desdobramentos da política militarista e imperialista construída no Japão desde o final do

século XIX com a restauração Meiji. Não se podem encarar os eventos em Nanquim, em

1937, como se fossem fatos isolados, mas como integrantes de um contexto histórico muito

maior.

A pesquisa procurou mostrar como a construção histórica da nação japonesa moderna

contribuiu diretamente no sentido de favorecer a ocorrência de eventos como o assalto à

cidade chinesa supracitada. Evidentemente, há uma série de fatores que precisam ser levados

em conta nesse estudo, e, nesse sentido, foram necessárias as apreciações de alguns aspectos

que fazem parte desse contexto, como, por exemplo, as questões relativas ao próprio

estabelecimento de alguns conceitos, como nação e imperialismo; e o exame do emprego da

violência nas relações sociais.

Nesse sentido, observamos que a cultura representa o campo prático do

estabelecimento das nações. Isso porque é ela que estabelece os parâmetros que serão

seguidos pelos cidadãos da nação. Sendo assim, é fundamental atentar não para cada aspecto

da cultura isoladamente, mas perceber os mecanismos que são engendrados pela

complexidade cultural do povo em questão.

Da mesma forma, vale salientar que a ocorrência dos aspectos culturais por si sós, mas

desprovida de uma série de outros fatores políticos, bem como um espaço territorial definido

(ou que se pretende definir) e a preexistência de um Estado, não são suficientes para o

estabelecimento de uma nação. É necessária, como procuramos mostrar, a conjunção de todos

esses fatores para que se possa falar em nação.

A comoção popular e o senso de familiaridade e proximidade entre os membros do

Estado-nação, nessa linha de raciocínio, se estabelecem de forma muito mais complexa e

fortalecida do que por simples interesse particular ou anseio por algum tipo de vantagem

política ou econômica individual, e isso garante grande legitimidade ao Estado nacional que

se pretende construir.

A noção de bem-estar da nação se torna um grande consenso entre todos.

Simbolicamente, a nação é construída e apresentada à população como representante de tudo

o que há de melhor em cada indivíduo. Nesse contexto as manifestações, ritos e locais

Page 122: O massacre de Nanquim

121

folclóricos possuem um papel de destaque, tendo em vista que eles representam uma parte

considerável do que é a nação colocada na prática.

Os indivíduos passam a absorver esses valores culturais e a reconhecer as

manifestações folclóricas nacionais como sendo realmente representativas daquilo que é a

nação. Isso se torna nitidamente verificável quando se trata de monumentos e/ou rituais que

pretendem resgatar uma história ou tradição nacional. Eles possuem efetivamente um respaldo

popular que por si só já seria suficiente para garantir a sua existência.

Isso porque, como buscamos apontar, o aspecto cultural mais relevante, do ponto de

vista dos grupos de vanguarda na construção do Estado-nação, é justamente o cenário que o

conjunto cultural é capaz de proporcionar. Dessa forma, não basta erigir grandes monumentos

em prol da afirmação de uma tradição ou uma história nacional, se eles, na prática, não forem

capazes de promover e evocar os mais variados e intensos sentimentos populares em favor da

nação.

Quanto ao caráter de sacralidade que a nação acaba por assumir para os cidadãos,

pode-se dizer que o Estado nacional se torna, em grande medida, herdeiro do pensamento

religioso. Se é verdade que a nação assume um papel quase que sagrado para os que a

integram, então seria correto afirmar que a vida de cada indivíduo só faz sentido quando

direcionada em favor da nação.

Nesse sentido, o papel da língua nacional é um aspecto que também se destaca

sobremaneira na construção do Estado-nação, já que a linguagem representa, ela mesma, um

fator de coesão nacional. A língua e os símbolos nacionais exercem papel preponderante na

constituição da nação. A análise de cada símbolo constituído é fundamental devido à

abrangência do seu objeto, a nação.

Além disso, o fator que merece ênfase é o fato que as nações constituem comunidades

políticas imaginadas, e como tais, surgem primeiro no campo das ideias. Isso reforça a noção

de que o nacionalismo vem antes da nação em si e serve não apenas para validar, mas para

atuar no sentido de construir propriamente a nação. O discurso nacionalista, nesse sentido,

resguarda os principais aspectos do Estado nacional soberano.

As relações de poder entre os grupos nacionais gera uma atmosfera de rivalidade entre

eles. Sendo assim, a própria construção simbólica dessas comunidades políticas imaginadas

oferece o escopo de observação para a análise desse fenômeno. A contraposição aos membros

de outras comunidades acontece na medida em que há sobreposição dos valores culturais das

nações envolvidas, no sentido de perceber no outro tudo o que não se deseja ser.

Page 123: O massacre de Nanquim

122

Esse é um processo que não pode ser encarado como natural, ou analisado

simplesmente no plano individual. Os processos de estigmatização do outro perpassam

questões que vão muito além do relacionamento individual entre as pessoas, eles são, na

verdade, categorias das relações sociais coletivas que provocam a rotulação, não de um

indivíduo isoladamente, mas de todo um povo em relação a outro. Isso quer dizer que a

imagem que é criada não diz respeito somente a essa ou aquela pessoa, mas a todos os

membros da comunidade.

A explicação para esse processo passa pelo entendimento da complexidade do

relacionamento entre os dois ou mais grupos envolvidos, ou seja, além do esquema de

construção de cada uma das nações envolvidas, é fundamental que se observe o

desenvolvimento das relações entre elas. As rotulações que são geradas a partir desse

encontro é que estabelecem qual será a imagem que cada um dos grupos envolvidos terá do

outro. Daí surge a noção de estabelecidos e outsiders.

Sob esse prisma, notou-se que a política imperialista funciona na medida em que se

estabelecem os parâmetros simbólicos de autoafirmação de uma nação em detrimento de

outra, ou seja, é uma relação entre a autoimagem de poder de um grupo estabelecido e a

imagem de fraqueza e impotência de outro grupo. Ambas as comunidades acabam por

absorver esses mecanismos simbólicos de representação coletiva, fazendo com que até mesmo

a própria população dominada se veja como inferior à outra.

O fato de uma nação impor a sua vontade à outra independente da circunstância, por si

só, já denota uma relação de poder. A luta pelo estabelecimento dessa vontade geralmente

leva a hostilidades e conflitos nos quais o ponto nevrálgico é a aceitação ou não da

dominação, ou seja, se a nação que se pretende como dominadora realmente possui, ou não,

os meios necessários para impor a sua vontade.

A vitória no campo das mentalidades é importantíssima já que proporciona o

estabelecimento, de fato, dos interesses do grupo vencedor sobre o grupo dominado. Sem a

vitória simbólica, ainda que belicamente um dos grupos seja incrivelmente superior ao outro,

não há a construção de um imaginário que permita a consolidação dos processos de

dominação. Ou seja, é fundamental que uma das nações se renda à outra para que os

mecanismos se ajustem a fim de estabelecer uma relação de poder, o que não indica, todavia,

que o imperialismo esteja circunscrito ao campo das mentalidades.

Sob essa perspectiva, a utilização da violência é perfeitamente aceitável, sob o ponto

de vista dos imperialistas, já que o que importa são os fins a que se pretende chegar. A

Page 124: O massacre de Nanquim

123

perseguição desses objetivos perpassa por uma série de mecanismos que nem sempre podem

ser considerados aceitáveis sob o ponto de vista moral, mas que influenciam diretamente no

destino das nações envolvidas.

A questão da violência precisa ser analisada como sendo parte integrante e

fundamental nos processos de dominação imperialista do final do século XIX e ao longo do

XX. Entretanto, não se pode considerar que o emprego da violência nesses e em outros casos

de relacionamento entre nações, esteja diretamente relacionado a uma espécie de sadismo ou

ausência de senso de autopreservação por parte dos homens.

O que chama atenção nos imperialismos é que as ações cometidas não podem ser

entendidas partindo de pressupostos individualistas, ou mesmo simplesmente dos sentimentos

que um grupo nutre pelo outro. Na verdade, os piores casos de violência, ao contrário do que

se poderia sugerir, não ocorrem movidos diretamente pela paixão, mas por uma

racionalização extrema. Racionalização essa que retira do outro aquilo que o aproxima do

perpetrador da violência: a condição humana

Aliados a esses fatores, observa-se o desenvolvimento histórico do Estado japonês

moderno durante os primeiros anos do século XX. A crescente atmosfera de militarismo e

nacionalismo exerce um papel preponderante para o enraizamento das doutrinas bélicas e de

violência pessoal que viriam a ganhar terreno quando da progressão japonesa na Ásia. Os

combatentes nipônicos experimentariam uma grande possibilidade de colocar em prática tudo

quanto tinham sido doutrinados a viver.

As apavorantes histórias de sobreviventes do massacre de Nanquim, em retrospectiva,

sugerem realmente que não havia limites para os assassinatos na cidade. As torturas e os

estupros, que também não tinham limites, tornam ainda mais complicado de se compreender a

paixão que os japoneses empregavam para destruir o inimigo derrotado. As ideias atreladas à

guerra eram realmente muito fortes.

Os soldados japoneses em Nanquim não agiam simplesmente por conta própria, e isso

a própria constituição do Estado japonês e do Exército Imperial confirmam. A forte devoção e

disciplina empregados no Exército contribuem para que se descarte a possibilidade de que os

eventos em Nanquim representem numerosos casos de indisciplina e insubordinação por parte

dos soldados.

Na verdade, a pesquisa procurou evidenciar que, ao contrário disso, não se pode falar

efetivamente de ações individuais no caso do referido massacre. O gigantesco número de

casos de estupros, espancamentos e atos de brutalidades desmancha a hipótese de que os

Page 125: O massacre de Nanquim

124

soldados pudessem estar agindo fora de controle. E, nesse sentido, a própria participação de

oficiais nos episódios de violência contribui para o entendimento de que as ações não eram

cometidas a esmo.

A maneira dissimulada e apática com que as autoridades japonesas em Nanquim

encaravam as denúncias contra o Exército sugere que, mesmo que oficialmente a política

japonesa que era professada fosse de reestabelecimento da ordem e garantia de salvaguarda da

população civil, o que as ações práticas demonstraram é que essas autoridades no mínimo não

davam muita atenção aos episódios de violência na cidade.

Além do mais, os assuntos referentes às ações do Exército Imperial na Ásia eram tabus

na imprensa japonesa e o governo nipônico procurava a todo momento encobrir e camuflar as

notícias que prejudicassem a reputação do país na esfera internacional. Mesmo que não haja

indícios de que o massacre de Nanquim tenha sido planejado, as evidências sugerem que as

ações violentas na cidade serviam a um propósito mais amplo de dominação dos japoneses no

sudeste asiático.

Tudo leva a crer que, na verdade, os japoneses acreditavam que as notícias de

Nanquim divulgadas no interior da China possibilitariam uma vitória ainda mais rápida dos

japoneses, já que a rendição seria mais vantajosa do que a ocorrência de outros Nanquins. Na

verdade, tudo fazia parte de um grande esquema de dominação imperialista japonesa do

sudeste asiático, lembrando, é claro, do anseio dos japoneses em contrapor-se aos ocidentais.

O fato é que os cidadãos da cidade chinesa estiveram à mercê de toda sorte de

atrocidades e barbaridades nas mãos dos combatentes japoneses. Durante as seis semanas de

terror a que foram submetidos, os chineses – e, indiretamente, os ocidentais que estavam na

cidade – presenciaram e foram vítimas dos mais terríveis tipos de violência física e

psicológica que representariam aquilo que seria conhecido como o holocausto esquecido da

Segunda Guerra.

Page 126: O massacre de Nanquim

125

REFERÊNCIAS

Allen, G.C. A Short Economic History of Modern Japan. New York: St. Martin's Press,

1981.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

___________________. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 2002.

ARENDT, Hannah. Da Violência. Brasília: ed. UNB, 1985.

_______________. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

BEASLEY, W. G. Japanese imperialism 1894-1945. New York: Clarendon Paperbacks,

1987.

BEHR, Edward. Hiroíto: por trás da lenda. São Paulo: Globo, 1991.

BEINER, Ronald. Theorizing Nationalism. SUNY: Albany, 1991.

BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva. 2007

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.

________________. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

________________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

________________. O campo político. In Revista Brasileira de Ciência Política, nº 5.

Brasília, janeiro-julho de 2011, pp. 193-216.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CHANG, Iris. The rape of Nanking. New York: Basicbooks, 1997.

Page 127: O massacre de Nanquim

126

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.

DEAL, Willian E. Handbook to Life in Medieval and Early Modern Japan. New York:

Facts on File, 2006.

DOWER, John. Tendência a não ser amado: guerra e memória no Japão. In: BARTOV,

Omer; GROSSMAN, Atina; NOLAN, Mary. Crimes de Guerra: culpa e negação no século

XX. Rio de Janeiro: Difel, 2005.

DUUS, Peter (org.). The Cambridge history of Japan vol. 6. New York: Cambridge

University press, 2008.

___________. The rise of modern Japan. Boston: Houghton Mifflin Company, 1976.

ELIAS, Norbert. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

_____________. Estabelecidos e outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

_____________. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

FINNEMORE, John. Peeps at many lands: Japan. London: Adam and Charles Black, 1913.

GORDON, Andrew. A modern history of Japan. New York: Oxford University press, 2003

HANSON, Victor Davis. Porque o ocidente venceu. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

HARRIS, Sheldon H. Factories of death. London: Rotledge, 2002.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence, org. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 1984.

HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

HUFFMAN, James L. Modern Japan. New York: Oxford University press, 2004

Page 128: O massacre de Nanquim

127

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das letras, 2009

ISHII, R. A history of political institutions in Japan. Tokyo: University os Tokyo Press,

1980

JANSEN, Marius B. (org.). The Cambridge history of Japan vol. 5. New York: Cambridge

University press,2007.

_________________. The making of modern Japan. Massachussets: Harvard University

press, 2002.

LÊNIN, V. I. Imperalismo, etapa superior do capitalismo. Campinas: Unicamp, 2011.

MARX, Anthony W. Faith in Nation. New York: Oxford, 2003.

MORGENTHAU, H. A política entre as nações. São Paulo: Ed. UNB, 2003.

OZKIRIMLI, Umut. Theories of Nationalism. New York: Palgrave McMillan, 2010.

SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das letras, 1990.

SAKURAI, Célia. Os japoneses. São Paulo: Contexto, 2007.

SMITH, Anthony D. The ethnic origins of nations. Cambridge: Blackwell, 1986.

SMITH, Anthony D.; HUTCHINSON, John. Ethnicity, New York: Oxford, 1996.

_________________.Nationalism. New York: Oxford, 1994.

SPENCER, Philip; WOLLMAN, Howard. Nationalism: a critical introduction. London:

SAGE, 2003.

TYNDALE, Walter. Japan & the japanese. New York: Macmillan Company, 1910

VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na história. São Paulo: Ática, 1997.

Page 129: O massacre de Nanquim

128

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1999.

WEBER, Max. Conceitos básicos de Sociologia. São Paulo: Centauro, 2002.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC editora S.A., 1982.

Sites:

Documentos acerca do massacre de Nanquim

http://www.library.yale.edu/div/Nanking/findingaid.html acessado em: 16/09/2012 às 12:10 h

Page 130: O massacre de Nanquim

129

ANEXOS

Anexo I: Carta de George Atcheson, Jr, Segundo Secretário da Embaixada Americana, para

"todos os americanos em Nanquim”.

Page 131: O massacre de Nanquim

130

Anexo II: Lista de cidadãos americanos vivendo em Nanquim, em 23 de novembro de 1937

Page 132: O massacre de Nanquim

131

Page 133: O massacre de Nanquim

132

Anexo III: Total de estrangeiros em Nanquim quando da entrada do Exército Imperial

Page 134: O massacre de Nanquim

133

Page 135: O massacre de Nanquim

134

Anexo IV: Correspondência entre os membros do Comitê Emergencial da Universidade de

Nanquim e a Embaixada japonesa.

Page 136: O massacre de Nanquim

135

Page 137: O massacre de Nanquim

136

Anexo V: Carta do prof. Bates, endereçada à embaixada japonesa em Nanquim.

Page 138: O massacre de Nanquim

137