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O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI)
Celia Daniele Moreira de Souza1
Resumo: Reconstruir o passado islâmico na Espanha é uma tarefa que divide opiniões quanto
ao seu pertencimento ou não à identidade e a história espanholas. O Califado Omíada de
Córdoba (929-1031), entretanto, detém unanimidade quanto ao reconhecimento de sua
magnitude, pela contribuição científica e literária valiosa que esse apogeu legou à Espanha,
uma vez que o mesmo propiciou um projeto cultural que seria inestimável para o
Renascimento cristão no séc. XIV e que colaboraria para as Grandes Navegações do séc. XV.
Ibn Hazm em “O Colar da Pomba”, sua obra-prima literária, ele escolheu este período como
plano de fundo de sua teoria amorosa, e suas lembranças serão legadas às gerações posteriores
como um vislumbre da vida aristocrática dos habitantes da Al-Andalus omíada, perfazendo
uma postura propagandística na saga do amor verdadeiro.
Palavras-chave: Al-Andalus, Ibn Hazm, Califado Omíada de Córdoba
Abstract: Rebuilding the Islamic past in Spain is a task that divides opinions as to whether or
not it belongs to Spanish identity and history. The Umayyad Caliphate of Cordoba (929-
1031), however, holds unanimous recognition of its magnitude, for the valuable scientific and
literary contribution that this legacy bequeathed to Spain, since it provided a cultural project
that would be invaluable for the Renaissance Christian in the century XIV, and that would
collaborate for the Great Navigations of the century. XV. Ibn Hazm in "The Necklace of the
Dove," his literary masterpiece, he chooses this period as the background to his loving theory,
and his memories will bequeath to later generations as a glimpse into the aristocratic life of
the inhabitants of Al-Andalus Umayyad , making a propagandistic stance in the saga of true
love.
Keywords: Al-Andalus, Ibn Hazm, Umayyad Caliphate of Cordoba
1 Mestra em História Comparada, doutoranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História
Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista CNPq. Contato:
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1. Introdução
Al-Andalus não é um passado tangível, ou ao menos, um passado que tenha um
consenso de sua relevância e pertencimento à história moderna da Espanha. Desde o início em
que arabistas se puseram a analisar e reconstruir o que fora Al-Andalus em seu tempo e como
ela permanecia – ou não – no presente da sociedade contemporânea, outras questões de ordem
moral, política, ideológica e religiosa se fizeram presentes e diversificaram a imagem deste
passado. Estudar Al-Andalus é lidar constantemente com o mito.
A ideia de que Al-Andalus se relacione sempre a um caráter mítico advém do próprio
resgate desse passado. Conciliá-lo com a identidade hispânica é extremamente complicado,
não só porque a ideia de nação espanhola por muitos séculos se firmou sobre a cristandade – e
algumas vezes referenciada ao passado visigodo2 – como também o mundo árabe volta e meia
reivindica o passado andalusino como pertencente a sua história e não à história europeia. O
mito de Al-Andalus ora toma um lugar muitas vezes alógeno para justificar a visão cristã de
formação da Espanha, ora toma o lugar de nostalgia pela decadência moderna das sociedades
árabes.
Nesse sentido, analisar como um andalusino, Ibn Hazm (994-1064) compreendeu o
seu presente e o representou como parte da identidade andalusina é uma forma também de
encarar como a definição de Al-Andalus, mesmo sob uma hegemonia islâmica, estava sujeita
a discursos tanto antagônicos como convergentes, mas que, maiormente se vinculavam a
noções de pertencimento político e ideológicos de um momento. A Al-Andalus de Ibn Hazm
inegavelmente se volta ao mito da civilização ideal perdida, esta conformada com o
desmantelamento do Califado Omíada de Córdoba.
2. O resgate de Al-Andalus
Antes de comentarmos como Ibn Hazm elaborou Al-Andalus conforme suas
ideologias, devemos compreender como o nosso presente reelaborou esse mesmo lugar do
passado. A história de Al-Andalus foi uma elaboração, em certa medida, vinculada a projetos
ideológicos impregnados da ótica orientalista e que lograram se firmar na mentalidade atual
sobre o que é ser “árabe” e “oriental”, aspectos que também estão contidos na percepção do
que fora Al-Andalus.
2 REI, A. Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: A ‘Laude’ e o ‘Dolo’, os cimentos do
discurso da Reconquista. Del Nilo al Guadalquivir - II Estudios sobre las fuentes de la conquista Islámica.
Actas dos II (2009) e III (2010) Colóquios Internacionais sobre Fontes Não Árabes sobre a Conquista Árabe,
Granada, 1ª edição, 2013, pp. 83-96. p. 83.
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O movimento orientalista foi muito importante para a elaboração da visão do Oriente
para o mundo ocidental. Conforme conceituação da filóloga Luz Gómez García, depreendido
do sentido elaborado por Edward Said, o orientalismo é um discurso de poder que perpetua a
visão eurocêntrica da história nos interesses do domínio do Ocidente sobre aquilo que não é o
Ocidente. Originalmente correspondia a um estudo filológico dos textos das línguas asiáticas,
tornando-se logo a posteriori uma ciência da ilustração, formando a visão exótica do Oriente
que é própria da cultura europeia nos séculos XVIII ao XX. Atualmente, a noção do
orientalismo provém das lutas anticoloniais de meados do séc. XX, evidenciando uma
ideologia “do outro” em contraposição ao poder colonial representado pela identidade
europeia.3
Segundo o historiador Pierre Guichard, no séc. XVII, o conhecimento árabe na
Espanha havia praticamente desaparecido, e o país não possuía mais contato com seu passado
muçulmano,4 assim a percepção e o abarcamento deste período da história não teria sido algo
natural para os espanhóis, tampouco teria se mantido presente como parte da identidade
hispânica por um longo período. O historiador Eloy Martín Corrales considera que a
islamofobia/morofobia da Península Ibérica teria iniciado justamente com a Reconquista da
Granada em 1492, porém não pela tomada da cidade, mas pelo início da expansão castelhana
pelo litoral norte-africano que viria a coloca-la em constante embate com os interesses
otomanos, também expansionistas. As diversas batalhas que se seguiram pela possessão do
comércio e dos territórios provocariam perdas humanas e econômicas inestimáveis, levando a
Coroa Espanhola a endurecer suas políticas contra os mouriscos e finalmente expulsá-los em
1609.5
Após esse período de tensão na relação da Espanha com seu passado islâmico, o
movimento orientalista mobilizando o romantismo retomaria esse passado como parte da
história espanhola, dando início a diversas levas de arabistas – ou na época, orientalistas – que
de acordo com seu posicionamento político elaboraram uma forma de resgatar e analisar Al-
Andalus. Em uma primeira leva, viriam os arabistas liberais, distanciados do conservadorismo
e do tradicionalismo, como Pascual de Gayangos (1809-1897), até serem transpostos por
outra corrente, a tradicionalista, representada pelo arabista Francisco Javier Simonet (1827-
3 GÓMEZ GARCÍA, L. Orientalismo. In: Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 253-254.
4 GUICHARD, P. De las revueltas mudéjares al “legado andalusi”. In: Esplendor y fragilidade de al-Andalus.
Granada: Editorial Universidad de Granada, 2002. p.318. 5 MARTÍN CORRALES, E. Maurofobia/islamofobia y maurofilia/islamofilia em la España del siglo XXI.
Revista CIDOB d’Afers Internacionals, Barcelona, n. 66-67, p. 39-51. p. 40.
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1897).6 Ainda que mais calcadas na experiência local do que numa perspectiva estrangeira –
como a francesa, que se lança ao “longínquo oriente” – essas correntes de pensamento,
mesmo opostas em ideologia e que se colocavam como caminhos para se redescobrir a
história da Espanha muçulmana estavam completamente sujeitas ao Orientalismo espanhol.
O passado como Al-Andalus tornou o orientalismo espanhol mais brando em sua
iniciativa imperialista, uma vez que ele se forjou de um caráter maiormente “doméstico” que
era mais uma interpretação literária e pictórica de seu passado islâmico, produto do
romantismo, que um orientalismo científico.7 Foi aproximadamente entre o final do séc.
XVIII e o início do XIX, período em que o orientalismo experimentava o auge como uma
ciência da ilustração, que se forjou a imagem de Al-Andalus e, segundo o historiador
González Alcantud, os franceses detiveram um papel fundamental: no olhar francês, Al-
Andalus ressurgiria como a materialidade das “Mil e Uma Noites” da fantasia oriental, como
a representação terrena da beleza e da condição moral, fruto da problemática romântica da
filosofia ilustrada sobre o Oriente, e encarnada em estética e em moral. De Antoine Galland a
Voltaire, Al-Andalus seria exaltada como fonte de inspiração romântica.8 Esta busca pelo
“oriental” que estava dentro das fronteiras europeias atraía não somente europeus como
também árabes que ansiavam resgatar culturalmente a memória de um passado islâmico. Da
segunda metade do séc. XVIII ao séc. XX, há um movimento numeroso de viajantes
muçulmanos para a Península Ibérica, os quais elaboraram “diários de viagem”, o estilo
literário árabe conhecido como riḥla, que segundo o historiador espanhol Nieves Paradela
Alonso, ansiavam idealizar Al-Andalus na mesma proporção em que o presente se mostrava
desencorajador para os árabes.9
O orientalismo doméstico se evidenciaria pela nostalgia, que tanto viria por parte dos
europeus como por parte dos árabes. Nesse sentido, haveria duas consciências apresentadas
em cada grupo: a consciência romântica, que estaria ligada a raízes cristãs e europeias, e a
consciência religiosa dos árabes voltada ao islã cultural. Nesse sentido, podemos associar aos
árabes também a produção de um conhecimento dito orientalista, que obviamente não seria
europeu e ocidental, mas uma reelaboração de povos árabes do passado islâmico nas terras
ocidentais. Cabe aqui comentar a estranheza de se mobilizar o termo “orientalismo” para se
6 GUICHARD, P. Introduccion: sobre la historia de al-Andalus. In: Esplendor... Op. cit., p. 13-14.
7 GONZÁLEZ ALCANTUD, J. Al-Ándalus: pinceladas autóctonas y europeas de ilustración y romanticismo. In:
Al Ándalus y lo Andaluz: Al Ándalus en el imaginario y en la narración histórica española. Córdoba:
Almuzara (Edição Kindle), 2017. p. 586. 8 Ibid. p. 387.
9 PARADELA AFONSO, N. El otro labirinto español. Viajeros árabes a España entre el s. XVII y 1936. Madrid:
Ediciones de la UAM, 1993. p. 136. apud GONZÁLEZ ALCANTUD, J. Al-Ándalus... Op. cit., p. 595.
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referir ao continente europeu, porém ainda que de uma iniciativa propriamente não-europeia –
no caso árabe ou berbere – o que esses estudiosos buscavam na Europa era o “oriental
idealizado”, mesmo que este estivesse em seu passado. A Espanha, diferentemente de outras
nações europeias, respaldou o orientalismo dentro de suas fronteiras, por isso ela abarcaria
uma dimensão dupla e ambígua, por permitir a busca desta idealização tanto por povos
ocidentais como por povos orientais. Entretanto, ainda que houvesse um movimento
“orientalista” árabe, foi o movimento europeu que prevaleceu e se difundiu, promovido por
viajantes românticos centro-europeus, cuja influência no imaginário ocidental e até no oriental
perduraria até o final do séc. XIX; por meio de sua visão, a Espanha estaria envolta em um
ambiente “sensual” expresso pelos contrastes entre as figuras históricas dos mouros e dos
cristãos que corresponderiam à natureza própria da Espanha.10
Os relatos europeus triunfariam
como síntese explicativa do caráter nacional espanhol, enquanto que os relatos árabes não
encontrariam eco por estarem presos a uma categoria mais isolada, que é própria da questão
da consciência da decadência árabe no mundo moderno.11
O orientalismo espanhol
doméstico, portanto, depreende um sentido diferente daquele proposto por Edward Said, uma
vez que ele não manifesta uma “violência colonial”, e sim uma adequação de um contexto
marcado pela autoctonia, isto é, pela relevância do passado do local quanto a sua percepção
no mundo.12
O encontro do outro, mas que também permitia ver a si mesmo era um aspecto muito
peculiar do orientalismo espanhol, que esbarrava na sua semelhança e de certa forma
pertencimento com a história do colonizado, o mundo árabe-muçulmano. Na segunda metade
do séc. XIX, quando se contrapunham as noções de civilização e barbárie refletidas entre a
Europa cristã e o Oriente muçulmano, uma nova perspectiva orientalista abarcaria a dimensão
única do caso hispânico: o historiador espanhol Francisco Javier Simonet resgataria o
arabismo espanhol pela corrente tradicionalista, de atitude antiárabe, elaboraria uma tendência
nacionalista dos estudos orientalistas ao falar do passado de Al-Andalus referindo-se aos seus
gentios como “muçulmanos espanhóis” e não como “árabes da Espanha”. Essa mudança de
paradigma sugeria que a cultura islâmica de Al-Andalus havia sido um fenômeno estritamente
espanhol que pouco ou nada devia às contribuições orientais.13
Assim, se reconhecia o
elemento islâmico do passado andalusino, mas desvitalizava a sua relação com o Oriente,
então vilipendiado pelo imperialismo. A nacionalização do passado islâmico vinha ao
10
GONZÁLEZ ALCANTUD, J. Al-Ándalus... Op. cit., p. 598. 11
Ibid., p. 608. 12
Ibidem, p. 1239. 13
Ibidem, p. 319.
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encontro das tendências liberais e conservadoras que se faziam presentes na sociedade
hispânica do final do séc. XIX, uma vez que aceitava a herança árabe, porém a fundamentava
em elementos autóctones. Essa visão acabou por ser a majoritária entre os arabistas espanhóis
até meados do séc. XX, dominando a historiografia até os anos 70.
Da mesma maneira que se elaboraram argumentos que procuravam desvincular o
elemento árabe – e assim a relação com o Oriente Médio – do passado da Espanha, tornando
seus mouriscos e sua cultura islâmica desvinculados do restante do mundo árabe-islâmico e
puramente autóctones, outros argumentos que buscaram desvitalizar e até mesmo anular o
legado árabe e islâmico em Al-Andalus.
O primeiro historiador espanhol que se aventurou a negar a contribuição e a presença
árabe em Al-Andalus, considerando-a um fenômeno completamente hispânico, foi Ignacio
Olagüe em sua tese La Revolución Islámica en Occidente de 1974. A sua visão marcaria um
novo momento nos estudos arabistas espanhóis, em que se alegaria que não ocorreu nenhuma
invasão árabe, porém tampouco conquista ou ocupação, haveria a chegada do islã como
religião que seria englobada por hispânicos e a reestruturação política na região teria sido
ocasionada pela disputa de grupos já presentes, como visigodos, vândalos, alguns berberes,
bizantinos e bascos. Segundo Olagüe, pensar em uma invasão, até mesmo presença, domínio
ou legado árabe não passa de uma “doutrina política”, considerando que tanto o islã como a
cultura andalusina foram uma herança romana oriental, vinculando esta experiência ao
elemento visigodo e retirando qualquer contribuição árabe e até islâmica.14
A sua argumentação foi duramente refutada por historiadores como Pierre Guichard,
Dolors Bramon, entre outros, o que era de se esperar visto a longa tradição que havia
resgatado e valorizado o caráter árabe-islâmico da sociedade andalusina, mas ainda assim ela
encontra bastante sucesso na internet, tendo sido até mesmo reeditada em 2004. A
historiadora Maribel Fierro aponta que a proposta de Olagüe estava vinculada ao fascismo
espanhol: sua intenção era limitar o máximo a “intervenção estrangeira” na História da
Espanha, alegando que houve uma “espanização” do árabe e assim, a “essência espanhola”
teria se mantido intocada.15
A proposta de Olagüe, para Fierro, seria o pilar base do
nacionalismo andaluz.
Em 2006, um outro historiador chamado Emilio González Ferrín, resgatou a obra de
Olagüe e elaborou um livro chamado História General de Al Andalus, que apesar do título,
14
OLAGÜE, I. La Pretendida Invasión Árabe. In: La Revolución Islámica en Occidente. Madrid: Fundación
Juan March, 1974 (e-book). p. 7-50. 15
FIERRO, M. Al-Andalus en el pensamiento fascista español. In: MARÍN, M. (dir.). Al-Andalus/España.
Historiografías en contraste, siglos XVII-XXI, Madrid: Casa de Velázquez, 2017 (edição kindle). p. 9416.
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não pretendia ser uma narrativa da história de Al-Andalus, mas o reforço da antiga teoria de
uma cultura autóctone que floresceu e que se manteve única, a despeito das invasões
almorávidas e almôadas, dinastias berberes, indo além de Olagüe ao propor que a Europa
seria devedora de Al-Andalus – este reconfigurado como uma experiência puramente
“hispânica – por nela ter ocorrido o primeiro renascimento europeu.16
O historiador
Alejandro García SanJuan dedicou um livro chamado La Conquista Islámica de la Península
Ibérica y la Tergiversación del Passado em 2013 para rebater principalmente Ferrín, mas
também o próprio negacionismo andalusino, considerando-o uma fraude historiográfica.17
Para o historiador Luis Molina o movimento negacionista serve para diferentes linhas de
pensamento, ainda que em seu teor não haja alteração; enquanto Olagüe buscava minimizar o
componente árabe-muçulmano para atender à historiografia nacionalista espanhola, a proposta
de Ferrín, ainda que também acometida por sentimentos nacionalistas andalusistas, não se
expressa por meio de fatores políticos ou ideológicos, mas pela onda do pós-modernismo,
com sua relativização, e pelas teorias de conspiração.18
Atualmente um dos negacionistas mais polêmicos e que atrai mais atenção é o literato
arabista Serafín Fanjul, que politicamente e literariamente se assemelha ao nosso Olavo de
Carvalho: conhecido antigamente como um homem de esquerda, nos últimos anos converteu-
se em uma espécie de “paladino antiárabe”, empenhando-se na negação da identidade árabe
andalusina.19
Em seu livro Al-Andalus contra España, sua proposta consegue ir além daquela
de seus predecessores: não se trata apenas de retirar o legado árabe ou pulverizar o peso do
Islã no território ibérico, Fanjul trata de refutar quaisquer heranças árabes e islâmicas e
questionar a convivência entre muçulmanos e cristãos na Península Ibérica.20
Serafín Fanjul
atualmente representa o que há de mais feroz na negação do passado andalusino como parte
da identidade espanhola e também como parte da história e memória da Península Ibérica.
Isso se dá porque seu ataque não se direciona somente às análises de outros arabistas ou de
uma crítica às fontes, mas aos próprios arabistas, incutindo em sua proposta e em sua figura
um caráter sensacionalista. Sua argumentação acaba por ser uma caricatura, o que é de certa
forma o que o negacionismo representa para a historiografia espanhola.
16
Ibid., p. 9521. 17
SANJUAN, A. Introducción. In: La conquista islâmica de la península Ibérica y la tergiversación del
passado. Madrid: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2013 (edição kindle). p. 161. 18
MOLINA, L. Alejandro García Sanjuán, La conquista islâmica de la península Ibérica y la tergiversación del
pasado. Marcial Pons, Madrid, 2013. Medievalismo, n. 25, 2015, p. 455-459. p. 455-456. 19
GONZÁLEZ ALCANTUD, J. Viaje pós-moderno al encuentro de Clifford Geertz, com posdata. In: Lo moro:
las lógicas de la derrota y la formación del estereotipo islâmico. Barcelona: Anthropos, 2002. p. 226. 20
FANJUL, S. Presentación. In: Al-Andalus contra España: La forja del mito. Madri: Edicciones Akal, S.A.,
2014. (Edição Kindle), p. 26.
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3. Al-Andalus no olhar de Ibn Hazm
Se há um momento em que todas as correntes de estudo sobre Al-Andalus concordam
é quanto ao esplendor do Califado Omíada de Córdoba. Enquanto uns apelam para enaltecer o
elemento árabe-islâmico por meio dele, outros o mobilizam como oriundo de um
desenvolvimento puramente hispânico – nesse caso visigodo – porém nenhum deles é capaz
de negar que se a Espanha teve um passado áureo, este o foi por meio da existência do
califado.
Segundo o historiador Pierre Guichard, a identidade andalusina se forma justamente
sob o Califado Omíada de Córdoba, uma vez que toda a produção literária sobre a presença
árabe na Península Ibérica, assim como todo o fomento científico e filosófico, se deu à
sombra do califado do séc. X.21
Após o desmantelamento do mesmo, há toda uma difusão de
sábios e de produções intelectuais que se concentravam em Córdoba e passam a ser
empregados em outras regiões, como uma forma de angariar prestígio para os reis de taifas22
,
assim como também por reinos cristãos e posteriormente pelo Califado Almôada. O projeto
cultural omíada não seria interrompido quando do seu fim, mas ressignificado conforme as
novas políticas que se fariam presentes na região.23
O papel de Ibn Hazm neste processo é, no entanto, um ponto fora da curva. Filho do
ministro do grão-vizir Al-Mansur, sua vida esteve até a juventude completamente inserida no
contexto aristocrático e político omíada, porém mesmo diante da guerra civil que duraria 22
anos – de 1009 a 1031 – e mesmo após o efetivo fim do califado omíada, ele se manteve fiel à
causa omíada, ocasionando a sua total inadequação ao regime político que se seguiu.24
Dessa
forma, Ibn Hazm não fez parte do movimento cultural de dispersão que tomou a Península
Ibérica, visto que quando se atreveu a divulgar suas posições, foi duramente perseguido, tendo
até seus escritos queimados em praça pública. Ao contrário de outros sábios e poetas que se
filiaram aos novos poderes, ele se recolheu na pequena cidade de Manta Lisham (Montija),
onde escreveu até o fim da vida em isolamento.25
21
GUICHARD, P. Introduccion: sobre la historia de al-Andalus. In: Esplendor... Op. cit., p. 15. 22
Príncipes de cada um dos trinta estados islâmicos independentes resultantes da desintegração do Califado
Omíada de Córdoba a partir de 1009. GÓMEZ GARCÍA, L. Taifa. In: Diccionario... Op. cit., p. 319.
23
AL-JABRI, M. O ressurgimento andalusi. In: Introdução à crítica da razão árabe. São Paulo: UNESP,
1999. p. 108-109. 24
Ibid., p. 54. 25
SANCHEZ RATIA, J. Quince Bagatelas en torno a Ibn Hazm y su Collar de la Paloma. In: IBN HAZM, Al-
Andalusi. El Collar de la Paloma (El Collar de la tórtola y la sombra de la nube). Tradução de Jaime Sanchez
Ratia. Madrid: Hipérion, 2009. p. XXI.
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Das suas obras, que vão desde a tratados filológicos a de jurisprudência islâmica, O
Colar da Pomba se destaca pelo caráter, a princípio, puramente literário e nostálgico. Ibn
Hazm não procurou apenas narrar o amor por meio das lembranças da aristocracia omíada de
Córdoba, ele buscou manter a memória da forma mais idealizada possível da sua cidade natal.
Quando em 1023 o mesmo iniciou a redigi-la, ainda havia esperança de reviver o período
áureo califal, assim ao mesmo tempo que a epístola representava um modelo filosófico e
teológico que ele divulgava – o do projeto cultural – ela também se configurava em uma
propaganda política do governo que ele defendia.
Um dos maiores exemplos de como o amor é ilustrado com o fundo de pano da causa
omíada é a associação das suas características e dos casos que ele levanta com a situação do
califado ou com seus governantes. Essas associações são apresentadas por meio da narrativa
de personagens com os quais ele conviveu, porém também por meio de poesias em que ele
inclui no elogio ao amor ou ao amado o elogio a um califa omíada.
Na maioria dos capítulos, a associação com a causa omíada é apresentada por meio de
poemas. Quando quer ilustrar a temática discutida, Ibn Hazm escolhia apresentar personagens
históricos, com os quais não necessariamente ele conviveu, e escrever um poema, no qual o
personagem louvado muitas vezes é um representante da dinastia omíada cordobesa.
Curiosamente também é apresentado com carinho Al-Mansur, o grão-vizir que deturpou a
legitimidade do poder omíada ao se elevar como uma espécie de regente do califa Hisham II,
por ele ser menor de idade no momento da morte do pai, mas que manteve tal posição até o
fim da vida e ainda a repassou para seus filhos, o que viria a desencadear a guerra civil
andalusina.26
Apesar do seu caráter dúbio, toda a vida de Ibn Hazm no califado foi sob o
poder e a influência de Al-Mansur, assim por mais que sua posição tenha afetado a
juridicidade do califado, em O Colar da Pomba ele aparece como um exemplo de homem
digno e amigo.27
Interessante notar que na lembrança de Al-Mansur e de seus descendentes que mais se
demonstra as relações que a família de Ibn Hazm detinha com o poder. No capítulo “Sobre
quem se enamora de alguém ao lhe ser descrito”, Ibn Hazm relatou ter tido antipatia pelo neto
de Al-Mansur sem conhece-lo apenas porque seu pai e o dele disputavam o privilégio do
sultão – aqui o grão-vizir por antonomásia28
– e por desejarem as “glórias mundanas”.29
Dessa
26
VERNET, J. El Califato. In: Al-Andalus: El Islam en España. Barcelona: Lunwerg, 1992. p. 20-21. 27
IBN HAZM, Al-andalusi. Señales del amor. In: El Collar de la Paloma (El Collar de la tórtola y la sombra de
la nube). Tradução de Jaime Sanchez Ratia. Madrid: Hipérion, 2009. p. 57. 28
Desde o séc. X no mundo oriental, o califa perderia o poder na prática com a sua submissão à autoridade de
sultões e vizires. Primeiramente esta submissão aconteceu no Califado Abássida em relação aos sultões turcos,
805
forma, percebemos que era favorável à família do autor apoiar Al-Mansur a fim de satisfazer
seus próprios interesses políticos, o que curiosamente na concepção de Ibn Hazm não
desqualificava sua postura pró-omíada.
Apoiador do poder de Al-Mansur e também da legitimidade dos omíadas, a nostalgia e
a ânsia de regresso dos tempos prósperos se fazem claras em O Colar da Pomba. No capítulo
sobre “O Retraimento”, Ibn Hazm apresentaria tanto a família amirida30
como dispenderia
panegíricos aos omíadas. Sobre sua nostalgia e esperança, ele declamou:
Bendiga Deus os dias que passaram e as noites,
Nos pareciam um nenúfar que se abre com fragrância:
Suas pétalas foram os dias, beleza e esplendor,
E seu centro a noite que encurta a existência.
Nos divertimos então, exuberantes e entranhados
Vinham, sem darmos conta, os dias e se iam,
Mas depois deles chegaram outros tempos, como
Ao pacto leal segue, sem duvidar, a traição.
[...]
Não desesperes, oh alma, que nosso tempo
Talvez volte, de frente e verso, tal como
O Clemente devolveu o reino aos Omíadas.
Refugia-te nas boas faces e tenha paciência.31
Reforçando sua posição política e a crença na autenticidade do poder omíada, Ibn
Hazm incrementaria com um panegírico ao pretendente à califa omíada de então, Abu Bakr
Hisham Ibn Muhammad, que deterá o poder efetivo entre 1026 e 1031. Porém o poema,
claramente editado pelo copista32
, perde um pouco o sentido apologético por seus versos
sobreviventes conterem alusões vagas sobre a alma conhecer o mundo mesmo presa no corpo,
as benesses serem reconhecidas pelo homenageado e os rios fundirem-se nos mares, o que nos
fazem tentar entender como eles poderiam estar louvando a figura do homenageado.33
Ainda que a citação de personagens ligados ao poder nos referencie sobre a posição
política que Ibn Hazm e sua família detinham no califado, é por meio das lamentações de sua
vida presente no momento de elaboração de O Colar da Pomba que o autor contrapunha um
passado esplendoroso com seu presente calamitoso, e assim forjava a imagem de um paraíso
terrestre quando o Califado era a instituição oficial de poder em Al-Andalus. No capítulo “De
mas também foi abarcada no Califado Fatímida no séc. XI pelos vizires armênios. Assim, ainda que
nominalmente Al-Mansur fosse um grão-vizir – hayib – o seu papel era idêntico aos sultões que inauguraram
essa nova configuração de poder no mundo islâmico, em que o califa possuía um papel meramente cerimonial. 29
Ibid., p.71. 30
Epônimo dos descendentes de Al-Mansur Ibn Abi Amir (938-1002). 31
Tradução nossa. IBN HAZM, Al-andalusi. El Retraimiento. In: El Collar... Op. cit., p. 230-231. 32
O copista informa no colofão que “embelezou” algumas partes e encurtou poemas que considerou enfadonhos,
o que nos faz perder muito do sentido original da obra. ANONIMO. Colofón. In: IBN HAZM, Al-Andalusi. El
Collar... Op. cit., p. 455. 33
IBN HAZM, Al-Andalusi. El retraimiento. In: El Collar... Op. cit., p. 231-232.
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quem não se enamora senão com uma longa convivência”, Ibn Hazm retrataria sua situação ao
narrar sobre o sofrimento de haver perdido pessoas e coisas que amava:
As recordações das coisas passadas me afligem em qualquer vida que retomo e sou um
defunto das penas que se conta entre os vivos, e um sepulto de tristeza, que anda por esse
mundo entre gentes de carne e osso.34
A vida aristocrática corbobesa omíada seria sempre a referência de um mundo ideal
para Ibn Hazm e o amor por ele narrado tem peso e carga afetiva graças a essa relação
pesarosa que o autor possuía com a perda de seus privilégios. No capítulo “Sobre a
fidelidade”, Ibn Hazm demonstra abertamente essa relação do sentimento amoroso com sua
posição política ao apresentar como exemplo de fidelidade amorosa a que ele resguarda diante
de sua vida desmoronada:
De minha fidelidade me orgulho em um longo35
poema em que relaciono as calamidades que
me tem atormentado e conto as estadias, andanças e vagabundeios a que de improviso me
forçou a sorte. Assim começa:
Que se foi e se foi e com ele a bela paciência,
Mas as lágrimas proclamam o que o peito esconde,
Um corpo fatigado, mas um coração enternecido.
Quando sobreveio a separação, ela foi dolorosa.
Nunca se assentou em nenhuma casa ou pátria,
Nem chegou jamais a aquecer seu próprio leito.
Como essas nuvens vaporosas que, espaçosas,
O vento não consegue empurrar para outros horizontes,
Ou como a ideia de um único Deus, que se a introduz
Na alma de um herege, se entedia e a rechaça.
Ou uma estrela que, em seu périplo, corta o firmamento
E que sua rápida marcha obriga, após curtos ocasos
A novas alvoradas [...]36
Penso que se ela quisesse recompensá-lo ou ajuda-lo
Jogaria sobre ele uma torrente de lágrimas, que o seguisse.37
Na poesia sobrevivente, o lamento de Ibn Hazm não soa com uma lamentação
amorosa, mas social. Ainda que a edição provável do copista possa ter ocultado à nossa
apreciação algum objeto amoroso, o poema resplandece, na medida do possível, o apego à sua
ideologia a despeito dos revezes de sua vida. A seguir do poema, para reforçar que sua
menção à fidelidade é política e não amorosa, vem quando ele menciona da perseguição que
sofreu por defender sua posição política no mundo em que vivia. Ele disse:
Também me vanglorio da fidelidade em uma longa qasida38
minha que trago aqui a cópia,
por mais que seja, em grande parte, alheia ao teor deste livro. [grifo nosso] A razão para sua
composição foi a seguinte: alguns me atacaram, os que havia acabado de se vangloriar, me
jogaram na cara várias reprovações mal-intencionadas e me acusaram de sustentar com uma
34
Tradução nossa. Ibid., p. 83. 35
Poema também editado, pois o autor diz ser longo, mas em relação a outros apresentados, é bem curto. 36
O tradutor informa que nesta parte ocorreu a edição do copista. 37
Tradução nossa. IBN HAZM, Al-Andalusi. Sobre la fidelidad. In: El Collar... Op. cit., p. 244-245. 38
Estilo poético árabe de origem pré-islâmica.
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dialética doutrinas fúteis, por sua incapacidade de se fazer oposição aos argumentos por mim
avançados, fazendo triunfar a verdade e quem as defendem, e por pura inveja que tinham por
mim.39
As referências às perseguições que sofrera em O Colar da Pomba leva ao arabista
Sanchéz Ratia a considerar que a mesma foi elaborada em uma data posterior à oficialmente
aceita, uma vez que as polêmicas teriam sido uma constante na vida do autor após a efetiva
destituição do Califado Omíada de Córdoba.40
Todavia, considerar que elas pudessem estar
presentes ainda durante as disputas pela nova hegemonia de poder não soa deslocado, uma
vez que a voz de Ibn Hazm cada vez mais soaria inadequada em um mundo que não mais
reconhecia a validade do califa omíada e já se dividia em reinos de taifas.
A ênfase do autor em se desculpar por levar tão explicitamente o tema político em seu
capítulo também é digna de nota, uma vez que é uma das poucas partes em que ele é
categórico. De toda forma, o capítulo sobre a fidelidade é extremamente vinculado à postura
política do autor, o que corrobora que sua argumentação filosófica muito mais se associa ao
seu papel como membro destituído da aristocracia cordobesa do que como um relato
meramente contemplativo e teórico sobre o amor.
Porém, de todos os relatos que reconstroem o imaginário de Al-Andalus sob o poder
omíada, o mais significativo é quando o autor relembra o amor não correspondido por uma
escrava cantora em Córdoba. O relato, que é bem extenso, narra a beleza e a elegância desta
escrava durante o domínio de Al-Mansur até o momento que o grão-vizir morre e em poucos
anos seguem-se os embates pelo poderio da cidade, em que a família de Ibn Hazm foi
desterrada, seu pai assassinado e a cidade califal – Madinat Al-Zahra – e a cidade viziral –
Madinat Al-Zahira – foram destruídas. No meio desta destruição, Ibn Hazm reencontraria a
escrava, porém não a reconheceria. Ela teria perdido toda a sua beleza diante de tanto
desgosto.41
A associação indireta é muito pertinente, enquanto gozava do esplendor califal, a
escrava e Córdoba eram resplandecentes, quando devastadas pelo avanço dos berberes e dos
usurpadores do califado, Córdoba e a escrava encontravam-se em ruínas.
Não permanecia nela senão a parte que se recorda o que fora o todo, essa pitada que dá uma
ideia do que outrora fora um conjunto, na razão da pouca atenção que havia prestado a si
mesma, ou por ter-lhe faltado o cuidado que havia desfrutado durante os dias em que os
ventos sopravam a nosso favor [grifo nosso] e ela gozava de nossa grande proteção, e
também por ter derrotado suas energias nas suas saídas de casa, a realizar tarefas próprias de
sua condição, das que antes era resguardada e cujo cumprimento era eximida.42
39
Tradução nossa. IBN HAZM, Al-Andalusi. Sobre la fidelidad. In: El Collar... Op. cit., p. 245-247. 40
SÁNCHEZ RATIA, J. Nota de rodapé. In: IBN HAZM, Al-Andalusi. El Collar... Op. cit., p. 247. 41
IBN HAZM, Al-Andalusi. El Consuelo del olvido. In: El Collar... Op. cit., p.325-333. 42
Tradução nossa. Ibid., p. 333.
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As memórias de Ibn Hazm podem não descrever minuciosamente Al-Andalus, mas
dão ideia do como essa região lhe era valiosa e como o poder omíada se configurava no
poderio legítimo para ele. Ao mencionar os poetas e sábios de seu passado, ele reforça a
imagem de uma sociedade digna de todo mérito e menção, que detinha uma cultura própria,
valores elevados e um governo que correspondia em grandeza àquilo que dominava. A
valorização do local, daquilo que fazia de Ibn Hazm e seu pertencimento cultural único e
inestimável vem da escolha em ilustrar o amor com histórias que pertenciam ao imaginário de
sua época e lugar, isto é, de Al-Andalus. A base de seus relatos são personagens que estavam
completamente entranhados nas relações culturais, sociais, políticas e religiosas andalusinas,
por isso que o resgate de sua memória também é o resgate do passado de Al-Andalus como
califado. O mesmo defendeu sua maneira de narrar o amor quanto à seleção dos personagens
das anedotas:
Me forcei neste livro a me ater a permanecer nas fronteiras que me colocaste e me limitar a
dar por bom aquilo que vi ou tenho por certo, por ter recebido de gente de confiança.
Dispensa-me de contos de beduínos e de antigos, pois nossos modos não são os seus e as
histórias sobre eles correm livremente. Além disso, não é meu estilo fatigar outras costas que
não as minhas, nem tampouco brilhar com joias emprestadas.43
Essa referência à escolha de Ibn Hazm em se ater a contar a história de Al-Andalus é
algo inovador para a época. Segundo Sánchez Ratia, nos primeiros séculos de existência
andalusina, tudo que vinha do Oriente era sobrevalorizado, aqueles que iam ao Levante
voltavam como sábios e eram venerados.44
A escolha de Ibn Hazm em valorizar o local reflete
mais uma vez o projeto cultural do Califado Omíada de Córdoba, que a partir de Abd Al-
Rahman III, o primeiro autointitulado califa, viria a fomentar uma produção cultural de
referência que rivalizaria com aquela produzida em Bagdá, e acabaria por elevar como capital
intelectual do mundo islâmico a cidade de Córdoba.45
Ibn Hazm em O Colar da Pomba mais
uma vez se alçava como o maior representante do legado omíada em Al-Andalus.
4. Conclusão
A compreensão do que Al-Andalus foi e representou para o mundo medieval e
atualmente para o mundo contemporâneo espanhol e árabe ainda é uma página aberta na
historiografia arabista. As fontes passadas estão carregadas de pensamentos ideológicos que
visam assegurar a legitimidade de seus discursos e muitas vezes idealizam seu contexto como
forma de assegurar a coerência de seus postulados. Isso é o que ocorre com Ibn Hazm: a sua
43
Tradução nossa. Ibidem, p. 13. 44
SÁNCHEZ RATIA, J. Nota de rodapé. In: IBN HAZM, Al-Andalusi. El Collar... Op. cit., p. 13. 45
AL-JABRI, M. O ressurgimento andalusi. In: Introdução... Op. cit., p. 108.
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necessidade de se fazer valer a coerência e a perenidade do Califado Omíada de Córdoba
permeia seus textos, como permeia sua epístola O Colar da Pomba, tornando esse passado o
ápice da civilidade e por mérito a governança ideal para as terras andalusinas.
A Al-Andalus vislumbrada nas anedotas e poesias de Ibn Hazm é uma das realidades
possíveis de se resgatar do passado da presença islâmica na Península Ibérica, porém como
qualquer fonte, ela está sujeita a críticas e a uma apreciação analítica. Ao se debruçar sobre o
imaginário elaborado por Ibn Hazm, antes de divisarmos uma sociedade, encontramos uma
ideologia, que se faz presente quando na verdade o amor que protagonizaria o cerne da
questão trabalhada por sua epístola. Neste artigo não procuramos analisar o sentimento
amoroso apresentado por Ibn Hazm, mas como por trás dele vemos a sua tentativa de associar
ao Califado Omíada os valores excelsos do amor verdadeiro.
A argumentação de Ibn Hazm retrata o passado andalusino, mas o faz de maneira
indireta: quando demonstra a ideologia de Estado a qual pertencia com seu raciocínio
filosófico e teológico, devedor do projeto cultural omíada; e ao definir o amor verdadeiro
segundo os valores islâmicos, os quais também eram os valores religiosos da sua sociedade.
Temos em Ibn Hazm um representante deste passado, não por tê-lo descrito minuciosamente,
mas por tê-lo transposto na expressão e concepção sobre o amor.
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