o palindromista

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O Palindromista - Um o quê? - Palindromista. - Como? - Pa-lin-dro-mis-ta. - Mas o que vem a ser isso? - Você não perguntou o meu trabalho? Eu faço palíndromos, oras! Palíndromo é aquele tipo de frase que quando se lê ao contrário fica a mesma coisa. - Como ovo? - É. O galo nada no lago. Entendeu? - Sim, mas... isso é profissão? - É óbvio. Sou um artista como qualquer outro. Quem tem talento pra pintura é pintor. Pra música, compositor. Minha vocação é fazer palíndromos. - Ah, é? Então improvisa um aí agora. - Dez reais. - O quê? - Dez reais. É o preço de cada palíndromo que faço. - Sujeitinho esperto, hein? Tá me achando com cara de quê? E de fato era mesmo um indivíduo irritante. No início, todos desconfiavam das boas intenções do pobre diabo. Por mais bom conhecedor da gramática que fosse, como poderia querer viver de vender palíndromos? Percorria a pé bairros e mais bairros com folhas repletas de palíndromos. Tinha de tudo: prosa, poesia, música. Mas ninguém se interessava. Não vendia um 'ovo' sequer. Sobrevivia da esmola fornecida pelos mais piedosos. Tinha uma grande ambição: escrever uma obra-prima da literatura, toda em palíndromo. As pessoas poderiam ler de trás pra frente. Poderiam chegar à metade e voltar para o começo. Comprariam dois livros em um. Ou um em dois. Mas o Palindromista envelheceu, sempre ridicularizado por sua excêntrica profissão. Aos 77 anos teve uma visão. "Está caduco", diziam uns. "Caduco ele sempre foi", riam outros. Num delírio constante, o Palindromista escreveu. Escreveu por 53 horas e 35 minutos ininterruptos, quando enfim expirou. Deixou, porém, seu manuscrito completo. Em palíndromos. "Foi um bom homem", lamentavam os poucos presentes em seu velório. "Louco, mas bom. Nunca fez mal a alguém." Leram, em sua homenagem, o início do manuscrito. Um jovem empresário se interessou. Meses depois, conseguiu a publicação. Foi um sucesso estrondoso. "É a maior obra de todos os tempos", afirmavam os críticos. Os outros textos do Palindromista foram usados em músicas, filmes, propagandas, campanhas - a anti-drogas dizia: o pó de cocaína mata maníaco cedo, pô! Ele estava por toda parte. As pessoas começaram a reverenciar o Palindromista. Diziam ter ele recebido o manuscrito de um anjo, através de visões. Seria ele O Salvador? Uma seita foi criada. Os seguidores do Palindromista só se comunicavam por palíndromos. Estrangeiros estudavam o português para lerem o clássico intraduzível. A seita se internacionalizou. Virou religião e possui milhões de fiéis. Esperam pela volta do Palindromista, que salvará aqueles que o seguirem incondicionalmente. Aquele que não fizer palíndromos padecerá no fogo do inferno.

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Page 1: O palindromista

O Palindromista

- Um o quê?

- Palindromista.

- Como?

- Pa-lin-dro-mis-ta.

- Mas o que vem a ser isso?

- Você não perguntou o meu trabalho? Eu faço palíndromos, oras! Palíndromo é aquele tipo de

frase que quando se lê ao contrário fica a mesma coisa.

- Como ovo?

- É. O galo nada no lago. Entendeu?

- Sim, mas... isso é profissão?

- É óbvio. Sou um artista como qualquer outro. Quem tem talento pra pintura é pintor. Pra

música, compositor. Minha vocação é fazer palíndromos.

- Ah, é? Então improvisa um aí agora.

- Dez reais.

- O quê?

- Dez reais. É o preço de cada palíndromo que faço.

- Sujeitinho esperto, hein? Tá me achando com cara de quê?

E de fato era mesmo um indivíduo irritante. No início, todos desconfiavam das boas intenções

do pobre diabo. Por mais bom conhecedor da gramática que fosse, como poderia querer viver

de vender palíndromos? Percorria a pé bairros e mais bairros com folhas repletas de

palíndromos. Tinha de tudo: prosa, poesia, música. Mas ninguém se interessava. Não vendia

um 'ovo' sequer. Sobrevivia da esmola fornecida pelos mais piedosos.

Tinha uma grande ambição: escrever uma obra-prima da literatura, toda em palíndromo. As

pessoas poderiam ler de trás pra frente. Poderiam chegar à metade e voltar para o começo.

Comprariam dois livros em um. Ou um em dois. Mas o Palindromista envelheceu, sempre

ridicularizado por sua excêntrica profissão. Aos 77 anos teve uma visão. "Está caduco", diziam

uns. "Caduco ele sempre foi", riam outros. Num delírio constante, o Palindromista escreveu.

Escreveu por 53 horas e 35 minutos ininterruptos, quando enfim expirou. Deixou, porém, seu

manuscrito completo. Em palíndromos.

"Foi um bom homem", lamentavam os poucos presentes em seu velório. "Louco, mas bom.

Nunca fez mal a alguém." Leram, em sua homenagem, o início do manuscrito. Um jovem

empresário se interessou. Meses depois, conseguiu a publicação. Foi um sucesso estrondoso.

"É a maior obra de todos os tempos", afirmavam os críticos. Os outros textos do Palindromista

foram usados em músicas, filmes, propagandas, campanhas - a anti-drogas dizia: o pó de

cocaína mata maníaco cedo, pô! Ele estava por toda parte.

As pessoas começaram a reverenciar o Palindromista. Diziam ter ele recebido o manuscrito de

um anjo, através de visões. Seria ele O Salvador? Uma seita foi criada. Os seguidores do

Palindromista só se comunicavam por palíndromos. Estrangeiros estudavam o português para

lerem o clássico intraduzível. A seita se internacionalizou. Virou religião e possui milhões de

fiéis. Esperam pela volta do Palindromista, que salvará aqueles que o seguirem

incondicionalmente. Aquele que não fizer palíndromos padecerá no fogo do inferno.