o que é o medicamento

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Pignarre

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    Philippe Pignarre

    o QUEO MEDICAMENTO?

    Um objeto estranho entre cincia, mercado e sociedade

    Traduo Paulo Neves

    editora.34

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  • I

    EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455000 So Paulo SP Brasil TellFax (011) 816-6777

    Copyright Editora 34 Ltda. (edio brasileira), 1999 Qu'est-ce qu'un mdicament? ditions La Dcouverte & Syros, Paris, 1997

    A FOTOCPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMO;-.JIAIS DO AUTOR.

    Ttulo original: Qu'est-ce qu'un mdicament? Capa, projeto grfico e editorao eletrnica: Bracher & Malta Produo Grfica Reviso: Magnlia Costa

    l' Edio - 1999

    Catalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro {Fundao Biblioteca Nacional, Rj, Brasil} Pignarre, Philippe

    P556q O que o medicamento?: um objeto estranho entre cincia, mercado c sociedade / Philippe Pignarre; traduo de Paulo Neves. So Paulo: Ed. 34, 1999 152 p.

    ISBN 85-7326-127-7

    Traduo de: Qu'est-ce qu'un mdicament?

    1. Farmacologia e teraputica. 2. :\1edicamentos. 3. Farmacologia aplicada. I. Ttulo.

    CDD - 615.1

    ....I..

    o QUE O MEDICAMENTO? Um objeto estranho entre cincia, mercado e sociedade

    Introduo .............................................................................. .

    l. O efeito placebo e o segredo do medicamento moderno ......................................................................... . Um tempo de suspenso ................................................................ .. Desconhecimento ........................................................................... . A impossvel subtrao .................................................................. . A modstia convertida em fora .................................................. .. Socializar a molcula

    lI. A natureza do laboratrio do estudo contra-placebo ................................................................ . Combater os preconceiros ...................................................... . A falsa simetria do duplo cego O medicamento um placebo estabilizado por um marcador ....... .. O preparador ................................................................................ .. Um laboratrio singular

    m. A montante: a elaborao das molculas ........................... . Vigiar o pi peline ......................................................... . Da proveta ao corpo humano O ritmo do tempo Preparar o teste contra-placebo Um lugar de proliferao .................................... .. Instrumentos redefinidos ................................................................ .

    IV. A jusante: O mercado ........................................................ . Valor de uso e valor de troca ....................................................... .. O medicamento um universal As conseqncias da ausncia de mercado O papel dos mdicos ..................................................................... .. Novamente, o ritmo do tempo O clima de um mercado

    V. A jusante: O paciente .......................................................... . A prescrio ...................................................... . Redefinir um paciente A homeopatia: seus modos de funcionamento ....................... . Retorno ao efeito placebo

    11

    17 18 21 25 29 32

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    81 82 84 88 90 93 97

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    VI. Ecologia do medicamento ................................................. . Um objeto temvel e frgil .............................................................. . Uma medicina repleta de humanos ........................................... . A economia do medicamento ......................................................... . Reintroduzir o paciente ................................ _ .................. _ ............. . O que um laboratrio farmacutico? ........................................... .

    123 123 133 134 137 140

    Concluso: Peas e engrenagens ............................................... 143

    ndice onomstIco ................................................................... . 149 Gostaria de agradecer a Liliane Bettencourt, Catherine Ducruet, Franois Dagognet, Jeanne Fayard, Franois Ceze, Herv Curin, C-rard Jorland, Bruno Latour, Edwin e Tobie Nathan, Isabelle Stengers, Annick Tournier e douard Zarifian, que me encorajaram e acompa-nharam com suas discusses e sua amizade. impossvel citar aqui todos os que me acolheram em seu laboratrio, seu consultrio mdi-co, sua fbrica, seu curso universitrio. Espero que muitos possam reconhecer seu trabalho neste livro.

  • I

    ......

    o QUEO MEDICAMENTO?

    Um objeto estranho entre cincia, mercado e sociedade

    Para Franois Dagognet, cujo entusiasmo pelos objetos e em particular

    os medicamentos modernos sempre se afirmou.

    ,

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    INTRODUO

    "Mas quando tiveres inculcado a um administrador o de-sejo de te proporcionar o sucesso, quando tambm lhe tiveres inspirado a trabalhar com empenho para alcan-lo, quando, ademais, lhe tiveres feito adquirir os conhecimentos que permi-tam realizar com mais proveito cada um dos trabalhos agrco-las, quando o tiveres tornado apto para comandar e quando, enfim, ele tiver idntico prazer ao que tu mesmo terias em pro-duzir o mximo possvel de frutos de cada estao, no te per-guntarei, depois disso, se um homem assim formado deve ad-quirir ainda um outro conhecimento: parece-me que tal admi-nistrador tornou-se de um valor inestimvel. Em troca, [sc-maca, pedirei que no deixes de lado uma parte da exposio que s foi negligentemente aflorada.

    _ Que parte essa? - pergunta Iscmaco. _ Tu afirmaste, bem o sabes, que era muito importante

    aprender a maneira de realizar cada um dos trabalhos; caso con-trrio, dizias, se ignorarmos o que preciso fazer e como faz-lo, o prprio cuidado no tem nenhuma utilidade.

    Iscmaco diz ento: _ Tu me convidas, Scrates, a ensinar-te agora a prpria

    tcnica agrcola? Xenofonte 1"

    Podero achar o ttulo deste livro ou demasiado ambicioso, ou demasiado banal. Mas, aps ter escrito As duas medicinas2, senti uma profunda insatisfao quanto maneira como eu havia tratado a ques-to do medicamento, por meio de seus modos de inveno e o efeito placebo. Era preciso avanar mais, evitando o refgio na histria re-cente da medicina tal como foi contada vrias vezes, e aproveitar os quinze anos que passei na indstria farmacutica a observar e a escutar os diferentes atores.

    1 Xenofonte, L'conomique, traduzido do grego para o francs por Jean-Claude Riedinger, Paris, Rivages pache/Petite Bibliatheque, 1995, pp. 102-3.

    2 Philippe Pignarre, Les deux mdecines. Mdicaments, psychotropes et sug-gestion thrapeutique, Paris, La Dcouverte, 1995.

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  • A verdadeira ambio deste livro constituir uma "econmica" do medicamento. Escolhi essa palavra, em vez de economia, em aluso ao clebre texto de Xenofonte. Quando cursava o terceiro ano de gra-duao em histria, eu havia escolhido fazer uma exposio sobre esse livro. Impregnado de cultura econmica moderna, como muitos jovens de minha gerao, eu ficara desconcertado e mesmo decepcionado num primeiro momento, depois finalmente subjugado por Xenofonte. Aqui-lo de que ele falava em nada se assemelhava aos grandes textos da teoria econmica que conhecemos desde Adam Smith, David Ricardo ou Karl Marx, e que se afastam sempre do mundo prtico ou da natureza. Xenofonte parecia manter-se na descrio e ser incapaz de distinguir entre os conselhos para administrar bem uma propriedade e um tra-balho terico necessariamente mais abstrato. Hoje, talvez chamassem essa "econmica" alguma espcie de antropologia. Seja como for, vinte anos depois, no vejo seno vantagens em colocar este trabalho sob os auspcios de Xenofonte, como se houvesse a um meio de escapar s tentativas ditas crticas, de um lado, ou apologticas, de outro, que constituem habitualmente os dois grandes recursos do pensamento moderno. Gostaria portanto de situar este livro nesse momento de articulao do debate entre o proprietrio rural ateniense modelo, Iscmaco, e Scrates, sobre a boa administrao da propriedade agr-cola. A econmica ou a oikonomia no separa, mas unifica tudo o que diz respeito a oikos, "casa": gesto das relaes entre as pessoas (a arte de comandar) e aquisio de riquezas pela explorao da natureza.

    Com essa herana e essa ambio, reconhecemo-nos na boa com-panhia de Flix Guattari, que escrevia num texto-manifesto: " essa abertura prxica que constitui a essncia dessa arte da 'eco' que com-preende todas as maneiras de domesticar os territrios existenciais, quer se trate dos modos ntimos de ser, do corpo, do meio ambiente ou dos grandes conjuntos contextuais relativos etnia, nao ou mesmo aos direitos gerais da humanidade"3. E Guattari precisava numa nota: "A raiz 'eco' entendida aqui em sua acepo grega originria: oikos, isto : casa, bem domstico, habitat, meio natural".

    Vale dizer que nosso projeto terrivelmente ambicioso e certa-mente est muito acima de nossas foras: trata-se de nada menos que tentar estabelecer os referenciais de uma teoria geral do medicamen-to. "Mas isso j foi feito", nos diro. Creio que no esse o caso, pois,

    J Flix Guattari, Les trais cologies, Paris, Galile, 1989, p. 49.

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    se tomarmos todos os livros escritos sobre os medicamentos moder-nos, constataremos que h muito pouca generalizao. Imediatamen-te se classifica, e a partir dessas classificaes que se julga poder explicar melhor a natureza de nossas invenes. Tomemos, por exem-plo, qualquer livro sobre os psicotrpicos; todos comeam explican-do que existem trs tipos: os ansiolticos, os anti depressivos e os neuro-lpticos. Ora, estou agora convencido de que isso andar depressa demais. J h muitas coisas ocultas por trs dessa classificao. Ela remete a uma semiologia e a uma nosologia que deixaremos de poder estudar e "prever", pois ela formar a base do raciocnio, um dos axiomas de partida.

    Se, ao contrrio, trabalhamos imediatamente na diferenciao relativa aos medicamentos inventados no Ocidente, os quais chama-remos os medicamentos modernos, generalizamos de maneira extraor-dinariamente rpida todas as tcnicas teraputicas que consideramos como "pr-modernas". Somos imediatamente tentados a remeter a me-canismos comuns as medicinas no-cientficas: o empirismo e o efeito placebo.

    Sob as influncias combinadas de Isabelle Stengers, de Tobie Na-than, de Bruno Latour e de Franois Dagognet, que foi o primeiro fi-lsofo a se interessar pelos medicamentos modernos e pela maneira como eles so criadores da medicina moderna, assumi o risco de fa-zer exatamente o inverso. Essa a primeira exigncia deste livro. To-das as medicinas tradicionais so suficientemente respeitveis para que se queira lev-las a srio quando estudadas, isto , quando escutamos respeitosamente os que so seus representantes4 Essa seriedade desa-parece to logo comeam a ser feitas generalizaes irrefletidas. Quem pode dizer que compreende o que a acupuntura se comea a pens-la juntamente com a homeopatia ou a medicina ayurvdica? No en-tanto, o que muitos autores no hesitam em fazer, situando-se numa posio superior, e lcito perguntarmo-nos que saber lhes confere tal poder. Tanto os defensores das medicinas brandas (que no podem ser assimiladas s tradicionais) como seus detratores podem descobrir-se

    4 Evidentemente, no sou o primeiro a ter esse tipo de exigncia. Alm dos trabalhos de Georges Devereux (em particular sobre os ndios mohave) e de Tobie Nathan, h tambm um debate bastante rico nos Estados Unidos. Ver, por exem-plo, Arthur Kleinrnan, Patients and healers in the context of culture, an exploration of the borderland between anthropology, medicine and psychiatry, Berkeley, Uni-versity of California Press, 1980.

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    admin

  • de acordo quando se entregam, simetricamente, a tais generalizaes. bem possvel que isso seja apenas o resultado de uma relao de foras, capaz portanto de humilhar, de reduzir, mas no de explicar e ensinar. A conseqncia de nossa escolha que todas as ferramentas antropolgicas e sociolgicas que utilizaremos para explicar a inven-o dos medicamentos modernos deveriam poder ser utilizadas para a anlise de teraputicas inventadas em outros lugares.

    Faremos, pois, o inverso do que habitualmente se faz quando se generaliza em relao a nossos medicamentos, porque acreditamos que eles participam de um sistema comum e coerente que preciso expli-citar: h um segredo do medicamento moderno. Nossos medicamen-tos ganharo em dignidade com isso, afinal, todos os que os inventam tm o sentimento de trabalhar num quadro comum, ainda que at o momento este continue amplamente implcito. Mas essa escolha nos colocar tambm em situao de menor poder. Assim, no falaremos de nenhum medicamento em particular, embora seguindo o mais con-cretamente possvel os modos de construo que se aplicam a todos. No classificaremos. Talvez, se nosso procedimento for bem-sucedi-do e produzir pensamento, possamos ento ousar comear a classifi-car. Mas se progredirmos, as classificaes atuais certamente sero questionadas e transformadas em objeto de outros trabalhos.

    A segunda exigncia que nos imporemos falar apenas dos me-dicamentos, sem jamais nos entregarmos facilidade de recorrer a conceitos exteriores ao nosso tema. A aposta deste livro que o nvel medicamento um bom nvel de abstrao, desde que saibamos per-manecer nele por tempo suficiente e estejamos escuta dos diferentes atores. Talvez seja possvel compreender melhor a cura, a doena e, de maneira mais geral, toda a medicina moderna, estudando o mais longamente possvel o instrumento privilegiado que inventamos. Nossa segunda exigncia vem portanto equilibrar a primeira.

    O desafio deste novo livro muito mais terico que o do livro precedente, ainda que nossa abordagem seja emprica. Havamos en-to acumulado uma massa de informaes, por vezes eclticas, sobre o efeito placebo e a dupla inveno da medicina, conforme ela utilize ou no objetos-medicamentos. Acreditamos ter agora condies de apresentar um trabalho mais sistemtico e formalizado. Fui em parte obrigado a isso pelos estudantes do DESS de psicologia clnica da Uni-versidade Paris-VIII, com quem mantive contatos ao longo do ano universitrio 1996-7, a fim de lhes falar dos psicotrpicos.

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    -

    Enfim, surpreenderemos ao deixar provisoriamente de lado a questo, sempre tratada com avidez, da eficcias. Ela no nos pare-ceu poder constituir um ponto de partida. a que podero nos acusar de fazer filosofia, mas, quando for esse o caso, aceitaremos isso como um cumprimento. Afinal, essa questo da eficcia na maioria das vezes obscurecida por um raciocnio tautolgico, e os critrios pelos quais escolhemos determinar a eficcia de uma teraputica jamais so neu-tros. Eles decidem a resposta no mesmo momento em que colocamos a questo, ou melhor, no momento em que fingimos coloc-Ia. No tomar a eficcia como ponto de partida no implica que essa questo seja sem importncia. Pelo contrrio. Mas ela merece justamente ser seguida na maneira pela qual construda. No a mais bela ho-menagem que se pode prestar a todos os que participam da inveno dos medicamentos modernos consider-los, para alm de suas inven-es, como construtores de conjuntos que vo alm dos simples medica-mentos, participando das redefinies globais, inclusive as da sociedade?

    Tentaremos acompanhar o medicamento em sua inveno pri-mitiva como molcula, cujos efeitos so biologicamente identificveis, depois nas provas que a transformam em algo completamente diferente e que merece, enfim, o nome de medicamento. Veremos ento que o medicamento uma mercadoria muito particular: a maneira pela qual a administramos socialmente a diferencia das mercadorias clssicas, e poderia ser um meio de resolver os problemas colocados por seu modo de inveno especfico ao longo das primeiras experincias biolgicas. Os medicamentos no sero portanto analisados como construes sociais no sentido estrito do termo. Este seria um ponto de vista rela-tivista _ resultando em afirmar que tudo se equivale - no muito diferente, afinal, do ponto de vista dos que privilegiam a noo de imaginrio, que nos parece intil para este trabalho. Mas tentaremos ver como os medicamentos modernos constituem uma maneira origi-naI de ligar o biolgico e o social. Privilegiar um ou outro atribuir-lhes um excesso de honra ou de indignidade. Foi essa dupla armadi-lha que quisemos evitar.

    5 A vontade de escrever este livro surgiu das longas discusses que tive com Michele Ruffat, que trabalhava com a histria da indstria farmacutica. Inter-rogvamo-nos regularmente sobre a eficcia dos medicamentos comercializados antes da Segunda Guerra Mundial, e na maioria das vezes ficvamos perplexos. O livro de Michele Ruffat foi posteriormente editado. M. Ruffat, 175 ans d'industrie phar-maceutique franaise, Histoire de Sinthlabo, Paris, La Dcouverte, 1996.

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    admin

  • Contudo, se quisermos seguir o medicamento em seu modo de constituio, no poder ser de maneira linear, ou seguindo uma or-dem cronolgica ideal. Veremos as razes disso muito rapidamente nos primeiros captulos. A cronologia arriscaria ocultar os mecanismos or-ganizadores e seus efeitos, tanto a montante como a jusante. preci-so comear por aquilo que parece ser o principal mecanismo orga-nizador a partir do qual poderemos irradiar e seguir a cartografia do medicamento. preciso comear pelo meio do mapa que vamos ten-tar desdobrar6.

    6 No momento em que eu terminava este livro, Gilles Chatelet escrevia uma homenagem a Gilles Deleuze que caberia poder citar por inteiro: "Gilles no ces-sava de repetir: Pense no meio e pense o meio como o ncleo das coisas, como o ncleo do pensamento, abandone o pensamento-rvore com seus altos e baixos, seus alfas e megas, torne-se um pensador-folha de relva que brota e pensa! Voc ser mais veloz que os galgos mais bem treinados para corrida! Ouve-se j resmun-gar a Estupidez: Mas afinal, onde est esse seu maldito meio?" (Gilles Chatelet, "Pour Deleuze, penseur du dclic", Libration, 6 de abril de 1996, p. 4).

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    l. O EFEITO PLACEBO E O SEGREDO DO MEDICAMENTO MODERNO

    Comecemos por nos colocarmos a questo mais simples: por que se comparam os candidatos medicamentos a placebos ao longo de estudos chamados "em duplo cego" (nem os que prescrevem nem os pacientes sabem quem recebe a molcula e quem recebe o "vazio te-raputico")? Examinemos primeiro a resposta dada com mais freqn-cia pelos prprios atores: trata-se do meio mais simples para julgar de maneira objetiva a eficcia de uma molcula candidata ao ttulo de medicamento. Para ser reconhecida como medicamento, uma substn-cia, seja qual for sua origem, deve ter um resultado positivo nessa prova. A censura feita indiscriminadamente s medicinas alternativas e aos "maus" medicamentos da medicina oficial sempre a de terem recusa-do ou no terem sabido se defrontar positivamente com o placebo. Mas se o mtodo evidente, por que se imps to tardiamente? De fato, ser preciso esperar os grandes programas empreendidos pela admi-nistrao americana aps a Segunda Guerra Mundial1 para se come-ar a realizar, no sem mltiplas resistncias, esse tipo de estudo que depois se tornar obrigatrio. Se difcil responder a essa questo da

    1 A Food and Drug Administration foi criada pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Sobre esse perodo, Dominique Pestre escreve: "Durante a guerra, an-troplogos, socilogos, psiclogos e lingistas so mobilizados ao lado dos enge-nheiros para resolver problemas prticos (como o estresse e a fadiga dos pilotos de avies) ou para ajudar na guerra psicolgica. Depois de 1945, o procedimento adotado por ocasio desses trabalhos roma-se a regra de toda boa prtica da cincia. Ser cientista consiste ento em 'to solve problems rather than to reflect on meanings' (resolver problemas mais do que refletir sobre as significaes); isso consiste em ser operacional e eficaz, em ser capaz de influir sobre o mundo e control-lo" (Dominique Pestre, "Science, poli tique et tat", em J. Krige e D. Pestre, Les sciences au XXe siecle, no prelo). Veremos como essa mudana caracteriza tambm a in-veno tcnica e a diferencia da inveno cientfica. Sobre a questo particular dos medicamentos, leia-se Harry M. Marks, The progress of experimento Sciences and therapeutic reform in the United States, 1900-90, Cambridge, Cambridge University Press, 1997.

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    admin

  • "evidncia", porque ela se inscreve numa problemtica mais ampla que a da eficcia. A questo da eficcia, justamente, tampouco uma questo simples, por isso no podemos toin-Ia Como ponto de parti-da. Devemos portanto adotar uma ligeira distncia em relao aos atores e estudar mais detidamente suas prticas, a fim de compreender de que maneira eles podem falar de eficcia, de que maneira essa noo se construiu e se modificou, redistribuindo todas as questes adjacentes.

    UM TEMPO DE SUSPENSO Os mecanismos empregados nessa prova continuam a desafiar a

    anlise e a compreenso, mecanismos que os comenta dores se habi-tuaram a situar numa espcie de intervalo: entre uma poca em que os medicamentos no eram cientficos e uma poca vindoura em que nos prometem que no haver mais nenhum empirismo e na qual se poder prever o que uma molcula pode fazer num organismo huma-no desde sua sntese pelos qumicos ou sua elaborao pelos especia-listas em pesquisa gentica. Somente com os estudos contra-placebo comeariam a ser elaboradas teraputicas cientficas. Entretanto, a medicina ocidental definiu-se como moderna e cientfica bem antes que essa prova existisse e fosse o objeto de uma metodologia prescrita e rigorosa. H muito a medicina moderna encontrou sua identidade jurdica no confronto com o exerccio ilegal da medicina2. Louis Pasteur e Claude Bernard esto presentes nos momentos gloriosos da medici-na moderna. Porm, embora sua obra detenha-se vrias vezes no pro-blema das patologias e das teraputicas (pelo menos no que concerne a Louis Pasteur), a idia de um estudo contra-placebo jamais Ocorre como sendo a passagem obrigatria de toda inveno teraputica cien-tfica. A imensa voga das "vacinas", que segue o triunfo pasteuriano, ou os primeiros tratamentos considerados como eficazes contra a s-filis (antes da penicilina) no foram o objeto de uma discriminao "contra-placebo". No se pensava nisso. Tentava-se de 'outra manei-ra provar o valor de um tratament03.

    2 Ver M. Ramsey, Professional and popular medicine in France 1770-1830, the social world ofmedical practice, Cambridge, Cambridge University Press, 1988.

    .3 Ver W. Chen, Comment Fleming n'a pas invent la pnicilline, Le Plessis-Robinson, Institut Synthlabo pour le Progres de la Connaissance, 1996. Wai Chen explica como a equipe da qual Fleming fazia parte props, durante a Primeira Guerra Mundial, que se parasse de desinfetar as chagas dos feridos com anti-sp-

    18 Philippe Pignarre -

    Se a comparao com um placebo se acha doravante em todas as prticas, se essa a preocupao central dos que se interessam de fato e por "boas razes" pelos medicamentos modernos, ela jamais dada como a definio que enfim se encontrou para o medic:lmento moderno. Os fabricantes do medicamento, pesquisadores e respons-veis econmicos, tremem diante dessa prova cujos resultados nunca so garantidos. As agncias governamentais encarregadas dos medi-camentos, assim como as grandes revistas mdico-cientficas ditas" de comit de leitura", so intransigentes quanto a essa prova obrigat-ria e ao rigor com que ela deve ser conduzida. Entretanto, quando se coloca a questo" Como se inventam os medicamentos modernos?" , a resposta tender a se afastar dessa prtica e geralmente incidir so-bre a "farmacologia racional" ou a "pesquisa gentica", que so apre-sentadas como o ncleo da inveno contempornea.

    Pode-se ver a o desejo de dar uma definio do medicamento moderno que seja constitutiva de uma teoria capaz de fazer a ligao entre a estrutura molecular do medicamento e seu efeito teraputico. O empirismo contido na prova contra um placebo jamais parece me-recer um comentrio extenso_ Acaso a medicina moderna progride afastando-se das prticas empricas? No essa mesma palavra, em-pirismo, que se utiliza para explicar descobertas feitas em sociedades tradicionais, ou as de nossos prprios antepassados? Como falar do progresso ininterrupto da medicina cientfica e ao mesmo tempo re-defini-la em torno de uma prtica que representa o triunfo do em-pirismo? No haveria o risco de dar a entender que a prova contra-placebo, embora moderna, seria apenas uma maneira de acelerar um mtodo de descoberta que no l muito novo?

    esse mal-estar que poderia explicar por que jamais se exami-nam os constituintes desse fato para fazer coincidir minimamente o que fazemos, o que constitui uma prtica fundadora e o que nos lcito exigir. A prova contra-placebo sempre tratada na imediatez de uma espcie de evidncia cujo interesse epistemolgico seria pequeno. Ela

    ticos para permitir que sua vacina antigangrena fosse eficaz. A polmica com os mdicos militares adeptos de Lister jamais suscitou a idia de um estudo clnico. Somente no laboratrio biolgico buscavam-se "provas" para reforar as demons-traes sobre a eficcia das teraputicas vacinais. S tardiamente foram utilizados os procedimentos do teste contra-placebo para avaliar as vacinas e, deste modo, assimil-las aos medicamentos modernos. Durante longos anos, a inveno destes segue um outro caminho. Trataremos dessa questo no terceiro captulo.

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    admin

    admin

  • , por definio, aquilo sobre o qual no h razo alguma para se deter, salvo para eventuais contestaes puramente formais, metodolgicas, administrativas. Com efeito, ela seria em si mesma demonstrativa. Ou porque a etapa vencida e a vida "interessante" do medicamento pode recomear. Ou porque o fracasso se apresenta, pois nenhuma supe-rioridade estatisticamente significativa pde ser evidenciada, e pelas aes na Bolsa da empresa farmacutica proprietria da molcula que se deve ento se interessar4 ! A molcula era interessante antes da pro-va, quando estava nas mos de qumicos, fsicos e bilogos. Ela apai-xonar mltiplos novos atores depois (mdicos, homens de marketing etc.). Mas o momento do estudo contra-placebo est a para ser rapi-damente esquecido. Os resultados sero objeto de um discurso re-petitivo nas pastas de registro e nos documentos promocionais.

    No conjunto do texto a seguir adotaremos um procedimento inverso: sobre esse momento esquecido da vida do medicamento que vamos concentrar nossa reflexo. Pois nesse momento preciso e quase mgico em que uma molcula se torna um medicamento que a trans-formao decisiva ocorre. Ela foi apenas simblica ou efetivamente real? Impossvel determinar de imediato. a, portanto, que cumpre saber deter-se para ver o que de fato aconteceu.

    Se esse momento do estudo contra-placebo merece uma pausa, ela ser, de nossa parte, tudo menos irnica ou crtica, como o foi durante muitos anos por parte de uma tradio francesa que se autoproclamava humanista e rejeitava esse tipo de estudo em nome da luta contra a reduo dos doentes s suas doenas. Nossa inteno, ao contrrio, achar a melhor maneira de compreender, partilhar e fazer justia ao tremor que se apodera dos pesquisadores, mdicos experimentadores e industriais reunidos por um desafio que ento totalmente comum.

    Queremos, no mesmo movimento, evitar uma outra armadilha que nos parece perigosa. Se os que querem definir as grandes caracte-rsticas da medicina moderna fazem cada vez menos referncia pro-

    4 Eis um exemplo, entre muitos outros: "A empresa americana Telor Oph-talmic Pharmaceuticals suspender as pesquisas de seu principal produto, o Xarano (intracameral ethacrynate sodium), em conseqncia dos resultados dos estudos da fase lU, que no mostraram nenhuma superioridade sobre o placebo. O valor das aes da empresa teve queda de 52% aps o anncio desses resultados". assim que a revista Scrip, que semanalmente analisa os medicamentos que esto sendo pesquisados em rodo o mundo, explica o fracasso de uma molcula (Scrip, 2.052,18 de agosto de 1995). Sobre a definio da fase UI, ver adiante, p. 26.

    20 Philippe Pignarre .....

    va contra-placebo, esse em contrapartida um leitmotiv entre os que combatem as "outras" medicinas. Existe a uma dissimetria surpreen-dente entre os argumentos "a favor" da medicina moderna e os argu-mentos "contra" todas as outras medicinas. que a existncia dessa prova coloca um problema nossa vontade de fazer cincia: ela regis-tra a separao brutal entre a existncia de medicamentos eficazes, de um lado, e nosso conhecimento dos mecanismos implicados nas pa-tologias, de outro. Cumpre de fato reconhecer que as duas coisas no coincidem, e que nenhuma ordem de preeminncia se impe aqui de direito. Ora, reconhecer esse divrcio seria dar muita importncia ao estudo contra-placebo, que nos leva sempre de volta ao empirismo. Com freqncia se diz que esse divrcio est em vias de apagar-se pro-gressivamente. E o sinal mais claro disso deveria ser ento o "enfra-quecimento" dos estudos contra-placebo. Entretanto, a verdade resi-de justamente no contrrio: esses estudos so feitos de maneira siste-mtica, segundo metodologias cada vez mais rigorosas.

    Pode-se j considerar, portanto, que a arma do placebo excessi-vamente pesada para ser utilizada num objetivo de desqualificao sem maiores riscos para os que se entretm com ela. Ela no feita para isso. "Mas o que voc sabe sobre o efeito placebo, que faz dele uma palavra de ordem?", perguntariam com razo os acusados, revertendo a desqualificao numa questo difcil. Todos os que utilizam o efei-to placebo como uma arma de combate correm o perigo de ser consi-derados ingnuos demais para merecer a escuta dos defensores das me-dicinas ditas no-cientficas. Nesse dilogo de surdos, eles faro o papel do denunciador, sendo herdeiros dos juzes que perseguiam e puniam por exerccio ilegal da medicina, antes mesmo da inveno da prova em nome da qual eles falam, e no dos pesquisadores, mdicos e in-dustriais que participam de um dispositivo no qual so acossados pela dvida e pelo medo. Apostamos na possibilidade de pensar de uma outra maneira as relaes entre as diferentes tradies mdicas.

    Se devemos, portanto, desconfiar de todo uso desqualificador da prova contra-placebo, esta poderia, em compensao, ser o elemento mais interessante para definir a medicina cientfica moderna. o que vamos tentar demonstrar.

    DESCONHECIMENTO Se a prova contra-placebo caracteriza a inveno do medicamento

    moderno, devemos examinar as raras tentativas feitas pelos historia-

    O que o Medicamento? 21

    admin

    admin

  • I

    dores da medicina para lhe encontrar antepassados. Tomemos um exemplo muito prximo, primeira vista, do que chamamos estudo contra-placebo. Em seu livro Hipnotismo, sugesto, psicoterapia5, Hippolyte Bernheim (1837-1919) oferece uma informao que pode-ria coloc-lo na situao de antepassado:

    "Um dia, quis experimentar em meu trabalho o sul-fona! como hipntico. Escolhi dois doentes acometidos de insnia h vrias semanas. Antes de administrar o novo medicamento, pensei, para no ser induzido em erro pelo elemento de sugesto e para que a observao fosse rigoro-sa, em prescrever, sob a falsa etiqueta de sulfona!, gua pura, qual acrescentei algumas gotas de menta para no susci-tar a desconfiana dos doentes. Afirmei que, vinte minutos aps a administrao do novo medicamento, os doentes seriam tomados por um Sono incontrolvel. Foi o que de fato aconteceu: os dois dormiram como no o faziam h vrias semanas.

    Que no me faam dizer que o sulfona! tem apenas uma virtude sugestiva! No! Ele tem uma virtude hipntica real, como o clora!, independentemente de qualquer sugesto. Mas, para que a experincia fosse cientificamente conclusiva, foi preciso primeiro separar o elemento de sugesto. "

    H vrias diferenas essenciais entre Bernheim e os experimen-ta dores modernos. Bernheim no testa o sulfonal, mas o efeito da su-gesto. este que ele quer evidenciar e que lhe parece ser o nico efei-to digno de interesse. Em nenhum momento de sua experimentao o sulfonal realmente administrado, e essa uma diferena essencial em relao aos estudos modernos contra-placebo. O efeito do sulfonal evidente, como o indica sua exclamao final ("H uma virtude hip-ntica real", ele escreve; "Mas Como ele pode saber?", perguntaria o experimentador moderno). Portanto, ele no faz do efeito de sugesto um grau zero a partir do qual identificar e quantificar um efeito tera-putico suplementar. Ao contrrio: ele utiliza eSSe dispositivo para mos-

    5 Foi Daniel Widlocher quem chamou nossa ateno para esse texto. Hip-polyte Bernheim, Hipnotisme, suggestion, psychothrapie (1903), em "Corpus des reuvres de philosophie de langue franaise", Paris, Fayard, 1995, p. 72.

    22 Phili ppe Pignarre ._---- ....

    trar que o efeito de sugesto no justamente um grau zero, porque to eficaz quanto o medicamento conhecido, de uma maneira geral, por sua ao sonfera. o medicamento, conhecido por seu efeito, que se torna nesse caso a "testemunha". Bernheim toma a a\o do medi-camento como um grau zero, mas relativo e no absoluto. O que interessa o efeito de sugesto, e certamente ele teria ficado chocado se fizessem dele o ancestral do experimentador moderno: sua tcnica de sugesto, por simplificada que seja, no tem a inocncia do placebo.

    Ao contrrio de Bernheim, o experimentado r moderno reduz o efeito placebo a um grau zero para evidenciar uma ao farmacolgica. Se ele constri esse dispositivo, o faz por duas razes aparentemente diferentes: trata-se, primeiro, de neutralizar todas as "outras razes" que podem fazer com que o doente se cure (e que podem ser de duas ordens: cura espontnea e cura por influncia); trata-se, a seguir, de evitar que o mdico experimentador superestime, por razes subjeti-vas diversas, a ao do candidato a medicamento. Influncia do m-dico sobre o paciente, influncia do patrocinador do estudo sobre o mdico experimentado r: no se sabe jamais, em tal situao, quem coage quem e de que maneira esse tipo de coao poderia ser justifi-cado em proveito da "verdadeira realidade"6. Cura espontnea, cura por influncia, superestimao dos resultados pelo experimentador: reunimos num bloco esses trs fatores que vo se tornar definitivamente indiscernveis. O dispositivo tcnico muito simples do duplo cego torna o problema do placebo insolvel e impossvel de estudar: ele fora definitivamente o efeito placebo a tornar-se um grau zero, ao mistu-rar de maneira inseparvel toda a cadeia das influncias. Ele torna in-visvel, por sua prpria definio, a ao do experimentado r.

    H portanto, entre Bernheim e os experimenta dores modernos, uma verdadeira inverso na maneira de pensar um dispositivo que s semelhante aparentemente. Essa inverso no sem conseqncia. Ela cria um novo interesse, anulando outro. Hippolyte Bernheim o herdeiro dos mesmerianos e do magnetismo animal (cuja histria ele descreve em seu livro) por intermdio de seu mestre, o dr. Libeault.

    6 Vinciane Despret mostrou muito bem esse problema num outro domnio das cincias biolgicas, a etologia: de que maneira o olhar do etlogo permite ao animal ser extraordinrio (V. Despret, Naissance d'une thorie thofogique. La danse du cratrope caill, Le Plessis-Robinson, Institut Synthlabo pour le Progres de la Connaissance, 1996).

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    Se os experimentadores modernos no podem mais isolar e estudar o efeito placebo, porque essa no absolutamente sua preocupao. A experimentao de Bernheim e a dos experimentadores modernos se Cruzam e parecem se assemelhar. Mas suas histrias so totalmente diferentes. Os experimentadores modernos inventaram o comeo de uma nova histria, a dos medicamentos que podem transpor uma prova semelhante para todos. Mesmo se h numerosas patologias em que as nOvas molculas no so mais o objeto de uma comparao com um placebo, mas com um medicamento dito de referncia, porque esse prprio medicamento dito de referncia foi objeto de estudos contra-placebo e , portanto, capaz de testemunhar eSse efeito "que ele trans-porta consigo". A histria dos medicamentos modernos se inventa assim por comparaes sucessivas, mas o efeito placebo permanece o fundamento de todo o edifcio comparativo, com a condio de ser reduzido a um grau zero, como o almeja o dispositivo experimental inventado, mas dependendo de uma deciso que poderamos dizer prtica, e no terica.

    A anulao do interesse pelo placebo anula qualquer possibilidade de fazer histria com ele. Assim, dispe-se de um imenso corpus de milhares de estudos que permitiram comparar uma molcula a um pla-cebo. Mas no se pode considerar, apenas invertendo os termos, que haja a uma fonte importante de conhecimentos sobre o efeito placebo. Esses estudos so, na maioria dos casos, decepcionantes porque repe-titivos7, e s nos do informao de um ponto de vista nico: o do in-ventor de um medicamento a partir de uma molcula biologicamente ativa. Mas a criao desse ponto de vista implica a supresso de to-dos os outros. Isso no era evidente, e o que s vezes se chama de a revoluo dos medicamentos no faz seno ocultar o fato de esse novo ponto de vista ter podido se impor de tal forma que todas as outras maneiras de ver se tornaram estranhas para ns: por que no se reali-zaram estudos contra-placebo antes da Segunda Guerra Mundial?

    Para parafrasear os estruturalistas, poderamos dizer do placebo o que eles diziam do objeto = x, isto , "que ele falta em seu lugar (e por isso no algo real). Por conseguinte, que ele falta sua prpria semelhana (e por isso no uma imagem) - que falta sua prpria identidade (e por isso no um conceito)". Ele como "um lugar vazio

    7 Tentamos fazer um trabalho de reviso em P. Pignarre, Les deux mdecines, op. cito

    24 Philippe Pignarre

    ou perfurado" que s tem "identidade por faltar a essa identidade, e lugar por se deslocar em relao a qualquer lugar"g

    A IMPOssVEL SUBTRAO Foi exatamente a constatao emprica da existncia e da fora

    da sugesto (seja a do mdico sobre o paciente, seja a do patrocina-dor do estudo - com todas as esperanas que ele encarna - sobre o mdico) que levou os experimentadores a sofisticar seus protocolos cada vez mais9. Os pesquisadores inclusive aperfeioaram uma tcni-ca para eliminar os pacientes altamente placebo-respondedores em estudos efetuados com um nmero pequeno de sujeitos. Comea-se ento por realizar um estudo "placebo contra-placebo em duplo cego" para eliminar "todos os pacientes que apresentam um efeito superior a um valor-limiar fixado10". Mas sejam quais forem as precaues tomadas, um certo nmero de questes sempre deixado sem resolu-o pelo prprio dispositivo tcnico. o caso, evidentemente, dos efei-tos secundrios das molculas testadas. Ser que esses efeitos secun-drios no vm falsear a dissimulao organizada? O dispositivo tc-nico tampouco permite distinguir entre curas espontneas, que ocor-reriam mesmo sem a interveno do mdico, e curas por efeito de su-

    8 Ver G. Deleuze, " quoi reconnat-on le structuralisme?", em F. Chtelet (org.), La philosophie au XXe sicle, AlIeur (Blgica), Marabour (r. 4), 1979, pp. 293329.

    9 "O interesse em realizar um ensaio em duplo cego ilustrado por dois exemplos. No primeiro, um antidepressivo foi avaliado em dois estudos para tes-tar sua eficcia no mal de Parkinson. Os protocolos eram idnticos, s que um teste era aberto e o outro em duplo cego (contra-placebo). No teste aberto, oito dos doze pacientes (67%) tiveram uma melhora significativa de seus problemas (de pelo menos 30% no placar de eficcia) pelo produto ativo, mas, no teste em duplo cego (aplicado simultaneamente a outros pacientes), apenas dois pacientes em oito (25%) acusaram melhora. Esses resultados lembram um artigo da literatura psiquitrica que relata que 83% dos testes no controlados mostravam resultados positivos, ao passo que isso s acontecia em 25% dos testes controlados" (Bert Spilker, Mtho-dologie des tudes cliniques, Paris, Doin, 1987, p. 17). O conjunto dessas cons-tataes permite afirmar provisoriamente que o efeito placebb observado nos es-tudos clnicos controlados um efeito de sugesto mnimo.

    10 B. Spilker, ibid., p. 52. Isso evidentemente inaceitvel ao longo das fa-ses I1I, que devem se assemelhar o mximo possvel situao que ser a da vida real do medicamento. Portanto, s possvel nas fases 11, em que os objetivos so mais limitados (avaliao inicial da eficcia do medicamento). Ver adiante, p. 26.

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    gesto ou efeito placebo. Mas, ltima questo, ser que ele ao menos permite distinguir o efeito farmacolgico?

    H uma curiosidade no dispositivo tcnico que examinamos. Ela deveria saltar aos olhos de qualquer observador que toma conhecimen-to dos resultados de um estudo desse tipo. Mas isso nunca acontece. Pode-se pensar que haja boas razes para tanto, as quais ser preciso encontrar. Os resultados de um estudo conrra-placebo levam sempre a comparar os resultados obtidos entre os pacientes que tOmaram a molcula e os obtidos pelos pacientes que s tiveram direito ao placebo. Constatar-se-, por exemplo, que a gravidade dos sintomas foi redu-zida de 35 % no grupo placebo contra 65% no grupo que recebeu a molcula. Em funo do nmero de doentes includos no estudo, pro-curar-se- saber Se essa diferena entre os resultados "estatisticamente significativa". Portanto, falar-se- claramente de diferena.

    Se se faz o estudo da molcula contra um placebo, porque se pretende saber se a molcula prescrita pode curar por ms razes, ou seja, por razes que no se devem sua ao farmacolgica-biolgica prpria. Assim, o que justifica a experimentao e seu dispositivo tc-nico o fato de se comparar ao efeito placebo no uma molcula, mas uma molcula qual se acrescentou o efeito placebo. O placebo s est a Como testemunha dos fenmenos de sugesto e de curas espont-neas que vo ocorrer tambm com o candidato a medicamento. Uma questo que deveria vir imediatamente ao esprito de todos seria: por que no subtrair do resultado obtido pela molcula o resultado obti-do com o placebo? Deveria subtrair-se 35% de 65%. Nesse caso, a ao farmacolgica prpria seria de 30%. Um pouco menos que o simples efeito de sugesto, como se observa em grande quantidade de casos concretos. No entanto, essa diferena jamais ser realmente cal-culada. O movimento do pesquisador, do mdico e do fabricante (reu-nidos no momento em que se estudam os dados num laboratrio im-provisado de um tipo particular) se detm justamente antes dessa ope-rao que, no obstante, pareceria evidente 11.

    O exerccio de pensamento divertido mas, de maneira inespe-rada, poderia revelar-se igualmente muito proveitoso. De fato, no seria justo fazer essa subtrao e calcular a diferena. Os resultados seriam

    11 Franois Dagognet foi o primeiro a estudar esse problema de subtrao no realizada (F. Dagognet, La raison et les remedes, Paris, PUF, 1964, pp. 32-103).

    26 Philippe Pignarre

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    ilusrios. Se o medicamento tambm portador de um efeito placebo, nada nos permite afirmar que ele equivalente quele identificado com o placebo no grupo teste. H inclusive alta probabilidade de que ele seja mais importante! De fato, se o efeito placebo potencial se trans-formasse em efeito "nocebo" (um efeito placebo negativo, que agra-va a patologia), agenciando-se com uma molcula biologicamente ativa, poderamos ento constatar resultados inferiores obtidos com a mo-lcula em relao ao placebo, no curso de um certo nmero de estu-dos. Ao que eu saiba, os estudos no mostram isso. Os efeiros far-macolgicos da molcula e os efeitos biolgicos que eles induzem so suscetveis de ter um efeito potencializador do efeito de sugesto. Ig-nora-se a maneira pela qual o mecanismo da cura pela sugesto co-mea ou no a funcionar. Ignora-se tambm de que maneira mudan-as corporais provocadas pela ao de uma molcula ativa sobre teci-dos biolgicos so capazes de interagir com esse primeiro efeito. Cada molcula portadora de um efeito placebo prprio, cujo alcance es-tamos condenados a ignorar. De que maneira a secura da boca, fre-qentemente observada quando se tomam certos anti depressivos, age tambm sobre o estado global do paciente e sobre sua depresso em particular? De que maneira as primeiras manifestaes da melhora de sade tornam a ativar o que chamamos efeito placebo? Entre cura espontnea, cura por efeito placebo e - podemos acrescentar agora - "cura por uma ao biolgica, farmacologicamente induzida", ne-nhum limite preciso pode ser traado. H um continuum suscetvel de mudar a cada indivduo, cada molcula e a cada ingesto do medica-mento. dessa incerteza essencial que vai surgir a necessidade de re-correr sempre a um dispositivo -estatstico para tratar dados destina-dos a permanecer empricos.

    Podemos aqui utilizar um primeiro conceito filosfico: quando se estuda a ao de um medicamento sobre um organismo vivo, sem-pre de um agenciamento12 'que se deve falar. Os estudos biolgicos realizados precedentemente, antes do laboratrio do estudo contra-

    12 "A unidade real mnima no a palaV'ra, nem a idia ou o conceito, nem o significante, mas agenciamento. sempre um agenciamento que produz os enunciados" (Gilles Deleuze & Claire Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, "Champs", 1996, p. 65). Veremos que no se pode decompor esse agenciamento, que a ao de um medicamento, em elementos constitutivos de base e que se-riam analisveis separadamente em cada caso. por essa razo, alis, que no se subtrai o efeito placebo ao longo dos estudos contra-placebo.

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  • placebo, s valem para tecidos extrados (estudos ex vivo), para clu-las em cultura (estudos in vitro), para animais de laboratrio, mas h um salto qualitativo entre o que se pode observar nesse tipo de expe-rincia e o que se inventa num organismo humano vivo: exatamente o que justifica a criao desse tipo de laboratrio muito particular que doravante chamaremos de laboratrio de estudo contra-placebo. No empregamos evidentemente a palavra laboratrio no sentido de um lugar geogrfico preciso, mas num sentido mais geral: ele definido por todos aqueles (humanos e no-humanos) que so mobilizados por um dispositivo experimental, um "estratagema" destinado a fazer a natureza falar. Os que povoam o mundo cientfico so muito diversos: O que h de comum, aparentemente, entre o labora-trio do matemtico, muitas vezes reduzido a um quadro-negro, e os aceleradores de partculas onde trabalham os fsicos?

    Empregamos a palavra laboratrio para descrever uma srie de operaes que correspondem a estudos de natureza diferente, dividi-dos pelos especialistas em quatro grandes fases:

    Na fase I, a molcula testada em voluntrios sadios. Trata-se de avaliar a tolerncia clnica do novo produto. Ele administrado em condies de segurana muito estritas em centros especializados, em pacientes jovens, em dose nica e depois em doses repetidas;

    Na fase II, a molcula testada em pacientes acometidos da patologia que se busca combater. Os critrios de avaliao so igual-mente estritos e se aplicaro a grupos de quinhentos a mil pacientes. Buscar-se- a dosagem tima, com a melhor relao risco/benefcio;

    Na fase III, so includos os pacientes mais representativos pos-svel da populao que se ir tratar. O candidato a medicamento ain-da comparado a um placebo, mas tambm, sempre que possvel, a medicamentos de referncia j comercializados. Essa fase, que envol-ver cerca de trs mil pacientes, dura mais ou menos trs anos. Aps essa fase, submete-se um dossi s autoridades de sade a fim de ob-ter autorizao para distribuio no mercado;

    As fases IV so realizadas quando o medicamento j est sen-do comercializado. Elas seguem protocolos semelhantes aos da fase III e permitem precisar as vantagens de um medicamento.

    O laboratrio do estudo contra-placebo se define pela reunio de todos aqueles que esto apaixonadamente interessados pelos resulta-dos dessa curiosa prova. Eles so muito diversos: os pesquisadores, os mdicos experimenta dores e todos os responsveis econmicos da em-

    28 Philippe Pignarre

    presa constituem os membros desse grupo e dependem dos resultados dos testes. No se trata nem de um laboratrio cientfico no sentido prprio do termo, nem de uma oficina tcnica que verifica a conformi-dade de uma mercadoria a uma lista de encargos (como encontramos nas fbricas da indstria farmacutica, entre outras, para verificar a qualidade dos medicamentos produzidos em srie). Trata-se de um la-boratrio tcnico de inveno que funciona, em grande parte, no senti-' do contrrio do laboratrio cientfico: quanto mais se avana na rea-lizao das diferentes provas, tanto mais preciso definir um meio ex-perimental que se assemelhe populao dos pacientes a utilizar o me-dicamento comercializado. No se est aqui nem para compreender nem para explicar, ao contrrio do que se passa num laboratrio cien-tfico clssico.

    Um estudo controlado, portanto, no pe frente a frente um pla-cebo e uma molcula, mas um agenciamento original (placebo-mol-cuia-ser humano) frente a um placebo (que, por sua vez, remete a um agenciamento particular sobre o qual falaremos adiante). Nenhum mtodo permite purificar o efeito farmacolgico prprio num ser hu-mano vivo, a menos que se suprima tudo o que caracteriza um ser humano vivo. Mas ento retornamos s experincias com tecidos ou clulas em cultura, que evidentemente j foram feitas e cujos resulta-dos so de outra ordem. Esses resultados foram preditivos e no com-parveis aos que se obtm num ser humano vivo.

    A MODSTIA CONVERTIDA EM FORA Os estudos contra-placebo no nos permitem, pois, adquirir um

    verdadeiro conhecimento. Eles permitem simplesmente dizer que "fun-ciona", mas jamais avanar na compreenso de como e por que fun-ciona. Prossigamos a comparao j iniciada entre nosso laboratrio do estudo contra-placebo, cujo conceito vamos tentar construir, e um laboratrio cientfico. Quando um pesquisador cientfico inventa um dispositivo experimental, um laboratrio, ele tem por ambio dar uma hiptese. A experincia a validar ou a invalidar. O dispo-sitivo experimental poder a seguir ser discutido, questionado, aper-feioado. Esse dispositivo tcnico destinado a evoluir permanente-mente. A experincia contra-placebo inverte as coisas. o dispositivo experimental que doravante ser invarivel. Ele codificado em nor-mas de valor administrativo (tcnico-regulamentar) pelas agncias governamentais de medicamentos. Os trabalhos que se realizam nes-

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    se laboratrio no tm por objetivo fazer avanar a teoria biolgica. Uma hiptese biolgica no , enquanto tal, desmentida pelos resul-tados negativos de um estudo como esse: ela se v complicada por outros dados, quando os resultados so decepcionantes. em outro lugar que a biologia encontra suas provas, valida e invalida suas hi-pteses: no laboratrio biolgico, tal como Claude Bernard o inventou. A melhor ilustrao dessa caracterstica do laboratrio do estudo con-tra-placebo aparece claramente quando se estuda o que constitui, ine-vitavelmente, a ltima operao. Esta e deve ser sempre uma opera-o estatstica: a diferena placebo-molcula estatisticamente signi-ficativa? Assim termina toda experincia conduzida nesse laboratrio.

    A inveno do laboratrio do estudo contra-placebo uma con-verso da modstia em fora, o triunfo do empirismo. Ele marca o fim do triunfalismo, e o preo a pagar por fracassos retumbantes em termos de eficcia e tolerncia, em particular aps o caso da talidomida 13. a constatao de que o laboratrio biolgico no suficiente para dar um ponto de vista satisfatrio sobre o medicamento que est sendo produzido. Trata-se de uma pequena "ferida narcsica". Compreende-se assim por que essa prova esquecida logo depois de realizada, por que h recusa em deter-se nela. A comparao a um placebo no permite purificar o objeto da experincia, isto , eliminar o que teria ento o estatuto de artefato. O efeito placebo no um artefato que seria preciso eliminar. O que ocorre o inverso: ao longo desse tipo de estudo, a molcula aparece enfim com seu efeito placebo prprio. E como se iniciou esse trabalho de juno do efeito placebo molcula inicial, passamos a ter de fato nas mos no mais uma molcula, e sim um medicamen-to, um objeto j em curso de socializao, portanto, transformado.

    A prova contra-placebo no assim uma experincia cientfica, no sentido em que ela nos permitiria purificar o objeto medicamento, separar o efeito farmacolgico puro dos efeitos de sugesto. Isso no significa que contestemos seu rigor metodolgico14. A prova contra-

    13 Sobre essa necessidade de modstia, ler F. Rgnier, "La recherche et dve-loppement du mdicament a chang bien des choses!", em D. Jolly (org.), Mdica-ments et mdecine. Les chemins de la gurison, Paris, Flammarion, 1996, pp. 6-10.

    14 H uma acentuada tendncia, em biologia, a assimilar "rigor metodolgico" e cincia, como se fatos pudessem ser reunidos espera de fazer cincia, independen-temente de qualquer teoria, pela simples virtude intrnseca do acmulo de experincias. O exemplo mais significativo de tal confuso dado pelos experimentadores da c-

    30 Philippe Pignarre

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    placebo uma etapa indispensvel na construo de um objeto medi-camento, isto , de um objeto "enriquecido", ao contrrio do que os cientistas procuram fazer quando realizam experincias para compreen-der um objeto que o dispositivo experimental visa a "empobrecer" (o que tambm o caso das experincias feitas com a molcula antes de sua entrada no laboratrio do estudo contra-placebo). uma opera-o que permite passar da molcula ao medicamento. H portanto uma coincidncia entre dois acontecimentos, que consideramos como ab-solutamente essencial: a passagem da molcula, enquanto objeto es-tudado em clulas ou tecidos em cultura e em animais vivos, a um objeto prescrito e estudado num ser humano vivo, de um lado, e o em-prego da molcula como efeito placebo, de outro. Poderamos ter en-contrado a uma primeira definio provisria de medicamento.

    Se tomarmos o imenso corpus de estudos realizados com uma molcula contra um placebo, evidente que o elemento que se faz variar, a "varivel" no sentido preciso do termo, a seqncia quase infinita das molculas testadas. O placebo e seu efeito, por sua vez, so considerados como o ponto fixo. Trata-se de um paradoxo, j que o efeito placebo , por outro lado, o que menos dominamos, o que temos o hbito de considerar como a coisa mais evanescente, sobre a qual nenhum saber preciso possvel, como o mostram as variaes de resultados obtidos mudando o protocolo de estudo de uma mesma molcula. Esse paradoxo desaparece se abandonamos a idia de que o estudo contra-placebo destina-se a produzir cincia. Portanto, no exato momento em que se acrescenta o que chamamos "efeito pla-cebo", no se pode mais explic-lo, justamente por causa dos proce-dimentos escolhidos para realizar esse acrscimo. Ele o sinal de que os efeitos que obtemos com um ser humano vivo no so comparveis aos que se obtm com tecidos em cultura ou animais de laboratrio.

    O medicamento esconde dentro de si uma mistura em parte es-tabilizada, constituda por uma molcula ativa (biologicamente) e efei-

    mera de psitrons, que permite acompanhar as modificaes no funcionamento das diferentes zonas do crebro e obter um mapa que se pode colorir com recursos infor-mticos. Richard Haier, diretor do departamento PET da Universidade da Califrnia, especialista nessa nova tecnologia, declarou numa entrevista recente: "Assim, voc pode constatar que com alguns anos de experincia a mais e dados reunidos de ma-neira cientfica, cedo ou tarde ser possvel dizer: eis aqui uma imagem da loucura" (George E. Marcus, T echnoscientific imaginaries. Conversations, profzles and memoirs, Chicago, University of Chicago Press, 1995, p. 104).

    O que o Medicamento? 31

  • tos de sugesto, sem que se tenha os meios de discerni-Ios, por defini-o. Que nome se poderia dar a esse tipo de objeto cujo mistrio manter a cura em suspenso e as molculas que vo agir com brutali-dade sobre os funcionamentos corporais? Trata-se de objetos bizar-ros, cujos efeitos so diferentes segundo os indivduos que os tomam, o que no pra de surpreender e desapontar os mdicos, embora eles sejam notavelmente idnticos "enquanto no foram tomados". Eles escondem alguma coisa, e veremos que todos os esforos para tentar torn-los transparentes, por caminhos extraordinariamente diversos, vo esbarrar em temveis obstculos.

    SOCIALIZAR A MOLCULA A passagem da molcula ao medicamento no portanto uma

    prova de purificao que consistiria em isolar, enfim, o simples efeito farmacolgico. Tal efeito j foi observado e analisado em todas as experincias feitas anteriormente pelos bilogos .. Essa passagem , ao contrrio, o incio da socializao da molcula em sua transformao em medicamento. Se se trata de uma prova, porque se faz necess-rio organizar primeiramente o encontro terrvel e desconhecido entre dois corpos, o das molculas e o do organismo humano vivo. preci-so aprender a negociar esse encontro. A ingesto de molculas no corpo humano jamais feita sem precaues. Ela deve ser o objeto de uma domesticao que torne esse encontro possvel, permitindo que se afas-tem os perigos.

    Reencontramos a o pharmakon dos gregos, remdio e veneno aO mesmo tempo, e no mesmo lugar, o que supe uma arte da do-mesticao que, portanto, nada tem a ver com a nossa separao entre efeitos teraputicos e efeitos secundrios ou indesejveis. Em Arist-teles, o conceito de pharmakon, por meio da noo de dynamis, permite de sada construir uma ligao entre "pequena quantidade" e "gran-de causa". Como saber o que ir acontecer num ser humano a partir daquilo que se pde observar em outras circunstncias (a natureza dessas circunstncias sendo diferentes segundo as medicinas)? Falare-mos de socializao para descrever essa mudana de etapa, essa sem-pre difcil domesticao da dynamis.

    Ao voltarmo-nos para o medicamento homeoptico, poderemos encontrar um modo especfico de socializao que nos faria compreen-der melhor o que se passa com os medicamentos ditos alopticos ("ditos alopticos" porque essa maneira de nomear toda uma classe de medi-

    32 Philippe Pignarre

    camentos prpria dos homeopatas). Poderamos talvez encontrar no medicamento homeoptico o segredo do medicamento ocidental em geral! Como os homeopatas julgam os medicamentos alopticos? Simplificarei aqui de maneira exagerada, pois h numerosos pontos de vista "homeopticos" sobre o medicamento aloptico. De manei-ra geral, estes so reprovados por sua brutalidade, seu carter dema-siado violento, sua incapacidade de inserir-se com suavidade no or-ganismo humano para, prioritariamente, reforar as defesas naturais do organismo. Que dizem, paralelamente, os alopatas a respeito dos medicamentos homeopticos? Que eles so desprovidos de qualquer substncia ativa, e por isso no podem agir diretamente por contato entre dois corpos (o das molculas e o do organismo), sendo vlidos apenas quando a patologia muito funcional ou mesmo "psicosso-mtica", isto , provocada por um problema psquico, pelo "estresse", sem origem orgnica identificada. Ao vazio do contedo fsico do distrbio corresponderia o vazio do contedo frsico do medicamento homeoptico.

    Se examinarmos bem essa dupla maneira de referir o medicamen-to do outro, deixando de lado por um momento qualquer juzo de valor, notamos que talvez se esteja falando de outra coisa que consti-tui problema. a maneira pela qual um organismo humano vivo tem o poder de confrontar-se com um corpo estranho destinado a arromb-lo (um corpo estranho que foi justamente escolhido por sua forte ca-pacidade de arrombamento) que est em questo, e essa a nica questo. sobre a maneira de domesticar as molculas estranhas que se est falando.

    Uma primeira coisa no deve, porm, ser esquecida: o medica-mento homeoptico est muito prximo do medicamento aloptico. O ponto de partida o mesmo: ambos nascem de uma molcula que, num outro contexto, pode ser considerada um veneno. A atividade dessa molcula (seu perigo) conhecida por diversas razes, apesar de a homeopatia ter renovado pouco o seu material inicial. Mas quando essa molcula "entra em sociedade", seu modo de socializao mui-to diferente. No caso aloptico, a dramatizao se opera com o estu-do contra-placebo, como foi visto: a molcula se enlaa com o efeito placebo naquilo que vai ser um medicamento. Nesse mesmo momen-to ela julgada domesticada ou ento rejeitada. No caso do medi-camento homeoptico, a dramatizao se opera por reduo progres-siva da quantidade de molculas naquilo que se constri como medi-

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  • camento: trata-se da diluio. Muito progressivamente se faz essa quan-tidade desaparecer, o que talvez explique a inutilidade de buscar no-vas molculas. Falar de placebo a propsito do medicamento homeo-ptico , portanto, um contra-senso total.

    Poder-se-ia encontrar um antepassado comum a esses dois mo-dos de socializao, que alis constitui em si mesmo um outro modo original de socializao e que entrou para a histria com o nome de "mitridatizao", por referncia ao soberano helenstico e rei do Ponto, Mitrdates VI Eupator (132-63 a.c.): trata-se de acostumar-se progres-sivamente ao pharmakon comeando por pequenas doses1S. A figura 1 mostra como a "segunda parte" do medicamento que "marca" o processo de socializao se constri segundo flechas invertidas nesses dois casos.

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    A dramaturgia aloptica A dramaturgia homeoptica

    uma molcula uma molcula

    molculas + efeito placebo molculas - diluio

    , , O medicamento domesticado O medicamento domesticado (molculas mais efeito placebo) (molculas menos diluio)

    Figura 1: Modos de socializao das molculas potencialmente venenosas (controle da dynamis!

    15 A. Touwaide, "Stratgies thrapeutiques: les mdicaments", em Mirko D. Grmek (org.), Histoire de la pense mdicale en Occident, Antiquit et Moyen ge, Paris, Seuil, 1996, p. 234.

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    Em ambos os casos, a linha de separao (no local onde a mol-cula vem juntar-se ao efeito placebo, em um caso, e no local onde a diluio vem reduzir a quantidade de molculas, no outro) assinala a entrada no mundo dos humanos viventes, a passagem do ensaio so-bre tecidos e clulas ao ensaio em sociedade humana. A tentativa de eliminar os placebo-respondedores durante os pr-testes , pois, um contra-senso absoluto que s pode resultar em incerteza, e finalmente em fracasso, fazendo-nos regredir no processo de socializao da mo-lcula; trata-se da ltima tentativa de permanecer num efeito farma-colgico puro. Por isso ela de fato inconcilivel com um verdadeiro estudo de fase 111. Principalmente porque no se pode prescindir do acrscimo daquilo que chamamos efeito placebo. H decerto uma li-gao entre a maneira pela qual se selecionam as molculas de parti-da e seu modo de socializao, que se inicia por esse "acrscimo do efeito placebo". Essa ligao ser mostrada nos prximos captulos.

    De uma certa maneira, os medicamentos homeopticos e alo-pticos tm muito em comum. Podero nos censurar por fazer uma espcie de antropologia que esquece a questo essencial: "Mas ser que funciona?" ou "Ser que funciona do mesmo modo?". Quisemos vo-luntariamente esquecer essa questo, j que o desafio justamente a maneira pela qual se constri (inclusive socialmente) o "funciona" por caminhos em parte diferentes. No havia por que queimar etapas. No h instncia de poder aceitvel que possa julgar do alto a resposta a essa questo, independentemente do campo no qual e da maneira pela qual ela construda: o que faz que os partidrios da alopatia digam "funciona" e que os da homeopatia tambm possam dizer "funciona" sem que se caia na iluso de crer que eles respondem mesma ques-to. Mas o que nos interessa a partir de agora que, querendo fazer com que uns respondam a uma questo que s convm aos outros (e os especifica), ambos se encerram numa impossibilidade definitiva de compreender o que se construiu de maneira inteligente. Ambos se im-pedem de levar a srio os objetos e os humanos. Ora, essa a condi-o de uma ecologia dos medicamentos. A resposta questo "Ser que funciona?" sempre depende de uma ecologia, portanto de um dis-positivo, de uma verdadeira maquinaria inventada, da qual esperamos ter comeado a fazer uma primeira cartografia.

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    11. A NATUREZA DO LABORATRIO DO ESTUDO CONTRA-PLACEBO

    Estivemos porta do laboratrio do estudo contra-placebo. Ob-servamos o que nele entrava e o que dele saa. preciso agora trans-por seu limiar com determinao para tentar explicar a maquinaria em funcionamento com suas peas e engrenagens. Isso nos levar ine-vitavelmente a fazer nossas primeiras incurses a montante nos labo-ratrios cientficos.

    Essa anlise indispensvel para resolver uma dificuldade surgida no primeiro captulo. Falamos, quase com indiferena, de efeito placeho ou de efeito de sugesto, ainda que fosse mais justo considerar que o efeito placebo um efeito de sugesto mnimo, para enfatizar a dife-rena entre o que se passa nesse ltimo caso e nas diversas tcnicas so-fisticadas de influncia que foram desenvolvidas no Ocidente, talvez, e sobretudo, em outras tradies que no a nossa. Porm, mesmo que moderemos essa assimilao com a palavra mnima, ela surte proble-mas considerveis que precisamos examinar de frente.

    Pode-se pensar que, se aceitamos essa equivalncia de palavras, o efeito placebo se v de fato reduzido a um "efeito mdico" do qual Balint1 tanto falou, e camos diretamente numa explicao psicolgi-ca que justamente tentamos evitar. Adulamos ento o narcisismo m-dico que o sentido literal de placebo reflete: "agradarei". A presena de um objeto medicamento seria indiferente ao que realmente se pas-sa entre dois seres humanos; se tal fosse o caso, no haveria nenhum impedimento para o clculo da diferena entre os resultados obtidos com o medicamento e os obtidos com o placebo, j que o efeito placebo no dependeria do objeto medicamento, variando em funo de suas caractersticas de objeto, mas da relao entre o paciente e o mdico. Isso significaria adotar a distino real-simblico-imaginrio, da qual queremos escapar para poder levar a srio os objetos medicamentos em sua diversidade e satisfazer a primeira exigncia que nos impuse-

    1 Michel Balint, Le mdecin, son malade et la ma/adie, Paris, PUF, 1960.

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  • mos na introduo: no generalizar, atribuindo ao efeito placebo algo cujo funcionamento ignoramos. No surpreendente que os que qui-seram estudar, enquanto terapeutas, as medicinas tradicionais, erudi-tas ou no, tenham sido finalmente levados a recusar essa distino que os teria impedido de levar a srio os medicamentos nas socieda-des tradicionais2 O efeito placebo um efeito fsico produzido por um medicamento que, alm do mais, no fabricado pelo mdico. Os que esquecem isso so, enfim, anti-reducionistas que se entregam a uma forma de reducionismo. Sob pretexto de querer "mais humanidade", de levar mais em conta os fenmenos reconduzindo-os anlise das relaes diretas entre humanos, eles se do o luxo de ignorar os obje-tos que fabricamos em coletivos muito complexos, e que tm a capa-cidade de se tornar parcialmente autnomos em relao aos que os utilizam, assim como em relao aos que os fabricaram.

    COMBATER OS PRECONCEITOS Uma primeira surpresa nos espera: o exame da literatura consa-

    grada ao placebo mostra que o uso dessa palavra abre um certo n-mero de questes e exclui muitas outras, colocadas com o termo su-gesto. O placebo barra de maneira surpreendente qualquer explica-o em termos de estados modificados de conscincia, ao mesmo tempo observa-se, paralelamente, que se trata de um efeito de uma potncia que pode ser considervel. Quem poderia afirmar que o paciente que se cura, quando faz parte do grupo testemunha em que todos os mem-bros receberam um placebo, entrou em "hipnose", em "relaxamen-to", em "catarse"? Percebe-se claramente que essas palavras, geralmen-te utilizadas para falar da sugesto sob suas diferentes formas, no convm. Propomos tomar a srio esse sentido comum. O placebo nunca descreve um estado do paciente. O senso comum, alis, no hesita em falar do objeto medicamento referindo-se a sua cor, sua forma, seu nome, ou seu preo. Esses elementos participam da construo tardia do medicamento, bem depois que ele deixou o laboratrio do estudo contra-placebo, no momento em que novos atores vm ampliar ainda mais o laboratrio tcnico de inveno. Na etapa nem o preo, nem a cor, nem o nome so conhecidos, e portanto no podem ser variveis do efeito placebo: a nica preocupao dos experimentadores

    2 Ver Tobie Nathan, Isabelle Stengers, Mdecins et sorciers, Le PlessisRo-binson, Institut Synthlabo pour le Progres de la Connaissance, 1995.

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    que o medicamento e o placebo sejam distinguveis entre si apenas por uma numerao mantida em segredo at o final do estudo. A aten-o dirigida a tais caractersticas, na verdade, com freqncia um meio de retornar o mais depressa possvel a uma explicao pelo simbli-co, sem se deter sobre os modos reais de construo, ainda que ela oferea ao menos a vantagem de no dissolver imediatamente o mis-terioso objeto.

    Ao descrever o efeito placebo que vem juntar-se ao efeito biol-gico da molcula como uma relao entre dois humanos, esquece-se o essencial: o medicamento. A armadilha de todo discurso sobre o placebo esquecer que lidamos com um objeto construdo de manei-ra particularmente cuidadosa e que integrou esse efeito placebo.

    A forma mais extrema de analisar as coisas poderia ser afirmar que, se o objeto desempenha efetivamente um papel, afinal de con-tas como um obstculo intil ou mesmo prejudicial. No seria a su-gesto mais pura do que o placebo, por separar o que fundamental-mente uma relao entre os homens daquilo que se revela como uma relao com coisas? No ser o efeito placebo uma relao de suges-to "fetichizada", um desvio reificado de uma verdadeira relao tera-putica3? Os psicanalistas tambm poderiam adotar esse ponto de vista, considerando o efeito placebo como uma pseudo-"transferncia" , algo perigoso, segundo eles, por no ocorrer no quadro analtico que per-mite seu controle (e portanto capaz de provocar um temvel "deslo-camento" dos sintomas). Achamos que esse mtodo de compreenso nos afasta de nosso objetivo. Ele consiste em recorrer a conceitos ex-teriores situao que queremos compreender e pe fim abruptamente a todo raciocnio possvel, quando temos a possibilidade de avanar utilizando as prprias categorias dos que inventam o medicamento.

    O medicamento jamais um acrscimo posterior, pois ele fa-bricado para comandar. O que constitui o carter incomparvel en-tre um medicamento e uma pura relao de sugesto que o medica-menro sempre envolve um marcador, um arrombador que age como um escalpelo sobre o corpo do paciente, mesmo quando se apresenta

    3 Poder-se-ia considerar os medicamentos como fetiches. Os que os denun ciam e vem por trs do efeito placebo to-somente a relao mdicodoente pode riam refugiar-se em Karl Marx: " apenas uma relao social determinada dos ho-mens entre si que assume aqui, para eles, a forma imaginria de uma relao das coisas entre si". Reportarse a Alfonso M. Iacono, Le (tichisme. Histoire d'un concept, Paris, PUF, 1992.

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  • sob a forma mnima de um comprimido que no contm substncia qumica conhecida por sua ao sobre a biologia humana. Trata-se pois de uma situao radicalmente nova em relao a todas as situaes em que h sugesto sob as formas mais diretas entre um paciente e um terapeuta. As tcnicas de sugesto, das quais a psicanlise poderia ser considerada como uma variante ltima, implicam no Ocidente a re-cusa ativa da marcao dos corpos, recusa transformada em princ-pio ontolgico. Nada ativa tanto nossas paixes e suscita tanta incom-preenso quanto essas marcaes.

    Mas prossigamos e tentemos ver quais so as diferenas dos de-vires criados pela sugesto e pelo efeito placebo. Retomamos aqui as palavras utilizadas pelos prprios atores. Em seu manual Metodolo-gia dos estudos clnicos, o farmaclogo Bert Spilker escreve: "O placebo utilizado nos ensaios teraputicos para controlar dados que geral-mente so fontes de erros: 1) preconceitos do experimentador eJou 2) do paciente, 3) agravamento espontneo ou modificao da enfermi-dade ou das anomalias associadas ao curso do tratamento. Os precon-ceitos podem repousar sobre incidentes psicolgicos e emocionais, bem como sobre efeitos fsicos relacionados ao de um tratamento,,4. O especialista Bert Spilker agrupa sob a palavra preconceitos os erros de julgamento que mdicos e pacientes espontaneamente generosos podem produzir com o medicamento, e o verdadeiro efeito "fsico" podendo acontecer por ocasio da tomada de um placebo. Frisemos imediatamente que os preconceitos de que falamos nada tm a ver com a honestidade indispensvel a todo cientista que quer ser o porta-voz dos fenmenos que observa. Sabe-se, por outro lado, a importncia da questo da honestidade, sempre temida nesse tipo de situao, como em toda situao de observao emprica que no envolva uma teoria.

    O nico caso em que a experincia contra-placebo poderia en-volver uma teoria aparece com a experimentao dos medicamentos homeopticos: o objetivo ento refutar a homeopatia. Nesse caso, o laboratrio do estudo contra-placebo desvia-se de sua funo e, alis, no funciona muito bem. O fracasso de uma experincia ordinria contra-placebo jamais tem ambies desse tipo, muito menos a de refutar a farmacologia!

    O que nos importa que todos os que se interessaram pela questo da pura sugesto colocaram uma outra questo prtica que constitui

    4 B. Spilker, Mthodologies des tudes cliniques, op. cit., p. 51.

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    para eles um obstculo defmio de uma cena experimental: a simu-lao. A simulao tem muito mais a ver com o registro corporal e a volio, entretanto o preconceito tende a nos levar ao registro da opi-nio ou mesmo da crena - a que formamos acerca de um aconteci-mento futuro. As preocupaes iniciais, no momento em que se criam as condies da experincia, no so as mesmass .

    O que um "pr-conceito" seno o fator que convm eliminar para poder julgar? A eliminao dos preconceitos cria portanto uma situao em que um ponto de vista tornar possvel o julgamento: a coisa funciona ou no. Uma "situao em que um ponto de vista tor-na um julgamento possvel" um laboratrio. Mas iremos encontrar a uma segunda diferena: num laboratrio cientfico clssic06, de tipo galileano, no so tanto os preconceitos que se eliminam e sim mani-festaes julgadas parasitas, isto , fatos da natureza que no devem ser reintroduzidos como fatos da "arte", enquanto no se abandona o laboratrio (para fazer a teoria da queda dos corpos, preciso eli-minar os atritos). Se, no laboratrio do estudo contra-placebo, se in-siste tanto sobre a importncia de definir metodologias capazes de eliminar os preconceitos a priori, justamente porque no se pode pretender aqui construir uma experincia que prove por si mesma, isto , que faa coincidir uma hiptese e um objeto purificado de efeitos parasitas. Quando a experincia prova por si mesma, ela obriga to-dos os observadores a se renderem razo. Ela designa porta-vozes num processo que parece evidente, no sentido em que fora os espec-tadores adeso, mesmo se eles conservaram seus preconceitos ao longo da experimentao. A experincia faz a triagem nos preconcei-tos. A eliminao dos preconceitos no por isso uma pr-condio, mas um resultado.

    O mecanismo em funcionamento no laboratrio do estudo con-tra-placebo no portanto semelhante I}em s experincias que, para justificar a sugesto, tentam eliminar as possibilidades de simulao, nem s experincias desenvolvidas num laboratrio de tipo galileano,

    5 Sobre essa questo da simulao como obstculo a um certo regime da razo experimental, ver Lon Chertok & lsabelle Stengers, Le coeur et la raison. L 'hyp nose en question de Lavoisier Lacan, Paris, Payot, 1989. Em particular o ltimo captulo, "Blessures narcissiques", pp. 199-262.

    6 Ver Isabelle Stengers, L'invention des sciences modernes, Paris, La D-couverte, 1994.

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  • em que se procura purificar os fenmenos para deles deduzir leis repro-dutveis (experincias e teoria constroem-se a ao mesmo tempo). Nesse laboratrio muito particular, o resultado indiferente para quem cons-tri suas regras de funcionamento. Ele busca constituir, positivamen-te, um conjunto estatstico estvel ("molar", diriam Gilles Deleuze e Flix Guattar?) em torno do medicamento testado. O laboratrio do estudo contra-placebo nos afasta regularmente (por decepes ou, ao contrrio, por surpresas) da ambio de descobrir leis fundamentais do comportamento humano em casos de patologia, reinscrevendo-nos sempre numa dinmica de descries fenomenolgicas.

    Como eliminar os preconceitos? Essa operao constitui o n-cleo do dispositivo experimental do estudo contra-placebo. A expe-rincia ser julgada boa pelo simples fato de que soube definir um protocolo que os reduziu ao mximo. Por isso a elaborao do proto-colo to importante: ele objeto de importantes negociaes entre todos os atores, pois ir redefinir seu trabalho (o patrocinador - que ter ele prprio negociado com os pesquisadores da farmacocintica e da galnica8 -, os mdicos experimenta dores, os enfermeiros, o comit de tica e eventualmente as associaes de pacientes). O pro-tocolo deve ser definido numa srie de exigncias que reflitam os in-teresses de todos esses atores diferentes. Afinal, no momento dos re-sultados, tudo est decidido. nesse ponto que se institui uma pea essencial para compreender nossa maquinaria: a eliminao dos pre-conceitos a priori obriga a estabelecer uma relao de fora entre os que estudam e os que so estudados.

    Um primeiro sinal testemunha essa nova caracterstica interna de nosso laboratrio. Tambm a convm retomar as palavras utilizadas por seus atores. De fato, surpreendente, para um observador de fora, constatar a quantidade de termos que refletem a necessidade de cons-

    7 "H fundamentalmente dois plos; mas se devemos apresent-los como a dualidade das formaes molares e das formaes moleculares, no podemos nos contentar em apresent-los desse modo, j que no h formao molecular que no seja por si mesma investimento de formao molar. No h mquinas desejantes que existam fora (1as mquinas sociais que elas formam em grande escala; tam-pouco h mquina, sociais sem os desejantes que as povoam em pequena escala." Sobre a oposio entre "molar" e "molecular", ver G. Deleuze & F. Guattari, L'anti-CEdipe, Paris, Minuit 1972, pp. 406-19.

    8 Partes da farmacia que tratam, respectivamente, dos efeitos e da forma dos medicamentos. (N. do T )

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    truir uma ordem especfica ao funcionamento molar, uma nova ordem em que o papel de cada um bem definido. Encontraremos assim muitos termos militares (ou aparentados aO mundo militar) e admi-nistrativos nas descries metodolgicas desse tipo de estudos: alvo, coorte, recrutamento, populao, voluntrio, alistamento, ritmo de progresso, controle, planificao, regulamentao, instrues, dossi, interrogatrio, elaborao de um plano, testes de performance, infor-maes, fatores de ambiente, excluso, responsabilidades administra-tivas) registro, organograma, formulrio, questionri09 ... que a noo de preconceitos remete a uma situao diretamente social e poltica em que o dispositivo experimental visa coagir humanos em relao, e no objetos indiferentes ao que lhes fizerem.

    Temos a uma pea essencial do laboratrio do estudo contra-placebo: conseguir criar uma "formao gregria", reunio de seres humanos doentes at ento dispersos. Assim se forma a mquina molar que transforma pacientes individuais, doentes de maneira especfica, em populao agregada. A instituio militar representa o prprio paradigma da passagem do molecular ao molar com o ideal da uni-formizao. H uma violncia inevitvel nessa operao, um verda-deiro ato de fora que o vocabulrio utilizado testemunha. A consti-tuio de um conjunto molar sempre uma operao prtica arrisca-da e no apenas uma maneira de tratar as pessoas sua revelia, sem que elas percebam: cumpre "descontextualizar" cada paciente para fazer dele um "caso". No surpreendente que nesse ponto preciso intervenha a questo tica, cuja pea essencial doravante o "consen-timento esclarecido" dos pacientes.

    A adio do efeito placebo ao efeito qumico tem incio no mo-mento em que se combatem os preconceitos. O laboratrio onde es-tamos revela-se de novo bastante especfio: um laboratrio tcnico moderno e no um laboratrio cientfico. Evidentemente, isso no implica que haja menos rigor: pelo contrrio, deve-se mesmo assina-lar. Reconhecemos aqui uma das caractersticas do laboratrio tcni-co de inveno: o carter extremamente rigoroso das metodologias pode ter como conseqncia eliminar cada vez mais aquilo que faz um

    9 Ver tambm esta citao selecionada entre muitas outras: "O grupo ISIS participou de um nmero considervel de ensaios clnicos em cardiologia, efetuados em escala internacional com uma preciso militar" (Peter Sleigh, "Calling the shots in clinicai trials", Scrip Magazine, n 40, novembro de 1995, p. 62).

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  • grupo de pacientes selecionados assemelhar-se a um grupo de pacien-tes reais em toda a sua diversidade. Nele inventam-se permanentemente novos subgrupos selecionados de uma realidade patolgica a priori muito mais ampla. Nesse laboratrio tudo est por um fio, pois nada facilmente reprodutvel. No h uma teoria que garanta por um certo tempo a reprodutibilidade da experincia. A fragilidade da experimen-tao encontra-se no auge. Essa fragilidade torna as controvrsias per-manentes: o resultado de um estudo contra-placebo sempre pode ser questionado, sobretudo quando negativo, isto , quando vem con-trariar toda a cadeia de influncia que foi neutralizada (do patrocina-dor sobre o experimentador, do experimentador sobre o paciente), mas apenas durante o tempo da experincia.

    Somente um resultado positivo permite chegar a uma soluo no laboratrio do estudo contra-placebo, deixando todos os atores de acordo. Se os resultados forem negativos, os atores passaro a olhar-se com desconfiana. O protocolo, tal como foi negociado, ser ree-xaminado e sempre se achar um meio de abrir uma controvrsia, pois ele foi negociado em funo de exigncias muito diferentes. Para os que definiram as regras do funcionamento do laboratrio, trata-se de um no-acontecimento, mas para os outros trata-se de um drama. Ao se retomarem o protocolo, os mtodos de incluso, os critrios de diagnstico, os modos de avaliao dos sintomas, a lista dos experi-menta dores ou a dos pacientes includos, sempre poder haver dvi-das sobre os resultados de um estudo contra-placebo. preciso, por exemplo, saber se no chegou o momento de procurar redefinir a pa-tologia inicial, segment-la para descobrir subgrupos nos quais a molcula testada poderia tornar-se um medicamento10. Por isso to difcil eliminar produtos do "pipeline" de um laboratrio farmacu-tico com todas as esperanas de que eram portadores aps terem sido o objeto de mltiplas experincias qumicas, fsicas, biolgicas e far-

    10 Eis um exemplo recente, relacionado aos traumatismos cranianos: "O dr. Alan Faden, do Institute for Cognitive and Computational Sciences, do Centro Mdico de Georgetown, declarou que esses ltimos resultados de ensaios clnicos se inscreviam numa longa histria de estudos realizados em casos graves de trau-matismo craniano, os quais sempre fracassaram em mostrar qualquer benefcio. Uma razo disso poderia ser que os pacientes includos constituam uma popula-o por demais heterognea. Elaborando com preciso esrraggias de tratamento, os investigadores devero definir melhor os subgrupos de pacientes a estudar". (Scrip, n 2.158,27 de agosto de 1996).

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    macolgicas (que necessitam de grandes investimentos e mobilizam equipes de pesquisadores por um perodo da ordem de dezoito me-ses). Basta ver como a imprensa especializada para os dirigentes da indstria farmacutica, como a Scrip Magazine, no cessa de voltar a essa dificuldade.

    A FALSA SIMETRIA DO DUPLO CEGO OS pacientes jamais empregam a frmula: "Fui curado por um

    efeito placebo". Em contrapartida, eles admitem de bom grado dizer: fui curado (ou meu estado melhorou) por esta ou aquela tcnica de sugesto, por menos ortodoxa que ela seja, e qual do sempre um nome preciso, recusando qualquer generalizao, por natureza des-qualificadora nesse domnio, e sem se importarem com as zombarias dos profissionais. A noo de efeito placebo e a recusa de sua utiliza-o pelo paciente para explicar sua cura remetem claramente, portanto, a uma relao de fora construda entre os terapeutas e os pacientes, que no podem ter o mesmo ponto de vista sobre a cura ou a melhora ocorrida em tal quadro. Essa relao de fora com freqncia dissi-mulada sob a outra relao de fora que os mdicos constroem entre suas diferentes especialidades e que levar, no melhor dos casos, a uma repartio sutilmente negociada das patologias pelas quais se respon-sabilizaro ou, no pior, utilizao de nosso vago conhecimento do efeito placebo como um instrumento de desqualificao das prticas de outros terapeutas, sejam ou no colegas.

    Voltemos agora diferena entre efeito placebo e a sugesto. No mais ntimo das experincias de sugesto, os pacientes sabem que so o objeto de uma experimentao, e aceitam o fato de que nela sero eventualmente modificados. O que se torna impossvel de utilizar (o que se procura neutralizar) durante uma experimentao com um pla-cebo justamente o mecanismo com o qual se vai agir na experincia de sugesto (hipnotizando um paciente, por exemplo). Revendo a his-tria da criao da psicanlise, Mikkel Borch-Jacobsen retomou essa questo da simulao:

    "A hiptese do inconsciente, no final, s ter sido uma forma de no levar em considerao a hiptese da simula-o, concluindo que o que faz a mo esquerda do histri-co, sua mo direita o ignora (ou esquece, ou recalca). Bertha Pappenheim afirmava o contrrio. Ela sabia claramente que,

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  • se seu brao se contraa, porque ela havia decidido assim - e que isso de maneira alguma impedia essa contrao de ser real. A simulao no a mentira. a criao de uma nova realidade, como se constata que no se pode desem-penhar um papel sem encarn-lo [. .. ]. Mais ainda, como simular uma anestesia sem ficar realmente insensvel dor? No por serem simuladas que a histeria e a hipnose so menos 'reais'. Ao contrrio, elas so surreais, no sentido em que levam a simulao at o ponto em que o prprio corpo participa. ,,11

    exatamente esse papel de "passagem" que faz malograr todos os dispositivos de laboratrio que tm por vocao compreender "real-mente" a hipnose enquanto estado do paciente, distinguindo os simu-ladores dos outros.

    A experimentao contra-placebo extraordinariamente diferen-te: uma espcie de operao em branco, sem instrues, na qual o paciente no precisa "ajudar" o experimentador, na qual sua colabo-rao reduzida ao mnimo. Se quisesse ajudar a cura, ele correria o risco de enganar o terapeuta ou de mostrar o carter muito relativo de seu distrbio, j que a cura dependente ao menos em parte de sua vontade e, sendo ele, portanto, suscetvel de ser curado com um placebo (que o desmascararia). Ele tambm correria o risco, igualmente tem-vel, de mostrar-se sob a forma pouco invejvel de um "placebo-res-pondedor" , nova figura fantasmtica do histrico. No limite, nada nos permite dizer que a prescrio de um mdico necessria para que haja um efeito placebo, pois o objeto medicamento j est construdo, in-dependentemente do mdico, quando este o prescreve. As "instrues" dadas numa experincia de sugesto so, em nosso caso particular, "envolvidas" pelo medicamento objeto.

    No estamos portanto numa situao clssica de sugesto entre um terapeuta e um paciente, qual se acrescentaria (como um supr-fluo), ou da qual seria testemunha, o placebo. A existncia do objeto medicamento abala a relao entre o terapeuta e o paciente: mais ne-nhuma tcnica de sugesto necessria. Toda a tcnica est concen-trada no medicamento que deve ser suficientemente construdo para

    11 M. Borch-Jacobsen, Souvenirs d'Anna o. Une mystification centenaire, Paris, Aubier, 1995, p. 91.

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    bastar-se a si mesmo. A nica tcnica que subsiste o modo de usar o objeto. O objeto medicamento transporta o efeito placebo assim como transporta molculas, independentemente de tudo e d