o que quer dizer acordar ricardo goldenberg
DESCRIPTION
psicanaliseTRANSCRIPT
-
!!
O QUE QUER DIZER ACORDAR? !
Neo como Alice !Com The Matrix, os irmos Wachovski relem Lewis Carroll em
chave de pesadelo. Tomando assuntos que estavam em pauta na
virada do milnio, o filme de 1999 revela uma intuio formidvel
sobre a funo da fantasia de configurar a realidade. E o mais
interessante, eles fazem a pergunta fundamental: o que quer dizer
acordar?
!No caso de Alice, tratava-se de voltar do Pas das Maravilhas para
Londres de finais do sculo XIX. Aqui, Alice homem, profissional
da informtica e hacker nas horas vagas. A histria comea com a
descoberta de que sempre esteve no Pas das Maravilhas. S que,
o Pas das Maravilhas coincide com Nova Iorque de finais do
sculo XX. Como Alice, o hacker, que atende pelo nome de "Neo",
deve escolher entre duas plulas. Uma para continuar acreditando
na realidade l fora, a outra para que lhe seja revelado o que est
detrs dela.
!A promessa de levantar um vu serve para enganar melhor ainda,
como ilustra a anedota do duelo dos pintores Zeuxis e Parrasios.
Os Wachavski apenas expandiram a escala mundial o que um ano
antes Peter Weir mostrara em escala individual em seu O Mundo
de Truman (The Truman Show). A diferena de grau apenas:
neste um s ludibriado; naquele estamos todos iludidos. Em todo
caso, a promessa de uma verdade a ser revelada permanece firme
! 1
-
e forte. Seriam os ares do tempo? O lema da srie Arquivos X,
tambm dos 90, era "a verdade est l fora". Mostrar a realidade
real por trs da cortina nada tem porm de subversivo. O
realmente espantoso teria sido mostrar a fantasia na sua funo de
suporte da realidade. No de uma falsa realidade, como se
houvesse outra, mas da realidade nua e crua. A nica que h.
!O Mestre, ento, intima seu discpulo a acordar desta vida de
sonho. E sua intimao no esconde o esprito platnico que a
anima: "passemos da falsa realidade de sombras para a
verdadeira realidade que jaz detrs". O ditado "ver para crer"
continua valendo: "no adianta contar", ele diz, "voc deve conferir
por voc mesmo".
!Confiramos, pois...
The real reality [cena do acordar de Neo e da sua sada do casulo] !
O espanto de Neo deve-se a duas descobertas simultneas: uma,
que "a vida sonho", o que no seria l muito original, j que esta
frase do sculo XVIII, mas tambm, e isto, sim, original, que ele
est atrelado a uma mquina gigante movida pela energia dos
seus sonhos; quer dizer, que se alimenta com a matria dos seus
desejos: movida a libido, em suma. O hacker no s descobre que
a realidade virtual como que a sua funo garantir um gozo
necessrio par o sistema funcionar!
!Em que pese a originalidade The Matrix fracassa em revelar um
ponto sensvel da estrutura, qual seja, o verdadeiro enigma que
precisa de explicao que haja uma realidade comum. Que a
realidade dependa da idiossincrasia de cada um algo que
! 2
-
suspeitamos de vez em quando sem ajuda, mas o fato de a
maioria das vezes acreditarmos estar vivendo dentro do mesmo
mundo, o mesmo universo, isto um milagre. Quem se deu conta
disso, e do modo mais sofrido, j que era clinicamente um
paranico, foi Philip Dick. Nenhum escritor faz sentir melhor a
impossibilidade de termos certeza de compartilhar a mesma
realidade. Leiam Ubik e sentiro agudamente o problema que me
colocava um amigo: "Como sei que o que eu chamo de amarelo
a mesma coisa que vc chama de amarelo?" De fato, quando
concordamos em denominar algo de amarelo, como saber se a
experincia sensorial frente cor a mesma para ambos? Pois
bem, no podemos saber, mas tambm comear a fazer este tipo
de reflexo j termos perdido a certeza na comunidade da
experincia.
!Em literatura, ento, Philip Dick. E em cinema, David Lynch. A
estrada perdida pe em cena algo que a psicanlise constata na
clnica: quanto mais a realizao da fantasia se aproximar da
realidade, tanto mais esta se torna irreal e se aproxima da
alucinao. Nem preciso lembrar que se trata de um momento de
angstia.
!Onde est a estrada perdida? !
Cinema e psicanlise so contemporneos no por terem sido
inventados ao mesmo tempo, mas por responderem ambos ao
mesmo real. Ambos tratam do modo como a fantasia enquadra o
real para configurar a realidade.
!No uso a palavra "enquadrar" levianamente j que o que o
cinema ao mesmo tempo mostra e esconde a funo da tela que,
por sua vez, depende daquilo que conhecemos como janela. O
! 3
-
tema imenso e estou preparando um curso de um semestre
sobre ele. Baste dizer aqui que a imagem tem menos a ver com a
luz que com a geometria, ou seja, com o significante, como
demonstram os cegos de nascena, que esto bem providos das
regras da perspectiva. A cena do mundo, por outro lado, nos
aparece j equadrada, emoldurada, ainda que seja pelo limite das
nossas plpebras. E o artefato que denominamos "janela" reproduz
artificialmente esta condio, introduzindo tambm o que no pode
ser visto, o que est fora do quadro, criando com isso a vontade de
ver mais ou alm.
!Por outro lado, no podemos subestimar a funo do vu e do
velado na constituio fsica da imagem, e isso, sim, concerne
luz. E, com a luz, descortina-se toda a temtica do olhar como um
objeto pulsional. A tela de projeo um objeto ambguo, de uma
parte participa ilusoriamente da qualidade da janela, como um
quadro, ao mesmo tempo que presentifica e oculta o vu.
!A idia de uma tela que no apenas vemos mas que nos v,
embora seja uma fantasia da era da televiso, atualiza esta
ambigidade do velado e bem anterior ao uso das cmeras
particulares nos computadores: o livro 1984 (Orwell, 1948) e os
filmes Videodrome (Cronenberg, 1983) ou Poltergeist (Tobe
Hooper, 1982) so exemplos disso. O cinema costuma esconder o
olhar que existe na tela, a no ser quando ele intencional ou
inadvertidamente manipulado pela montagem, como no caso de
Hitchcock.
! O tratamento da fantasia pelo cinema e pela psicanlise no o
mesmo, evidentemente. Eles vo em direo contrria. No a
menor das ironias que o Mestre que manda acordar, dentro do
! 4
-
filme The Matrix, atenda pelo nome de Morfeu deus dos sonhos e
filho de Hypnos, deus do sono, j que o cinema, afora rarissimas
excees, induz a continuar dormindo, no a despertar. Vou
mencionar apenas, para concluir, uma destas excees que
mereceria uma reunio inteira para seu comentrio: Barril de
plvora (Bure Baruta, 1998), de Goran Paskaljevic.
!Poderiamos dizer, apressadamente, que esta coproduo turca,
macednica, grega, francesa e iugoslava sobre a situao social
dos balcs no fim do sculo vinte. Seria no obstante um erro, j
que este filme faz algo mais que mostrar, ele provoca
concretamente um mal-estar, difcil de evitar, por pouco que o
espectador no se defenda dele. O incmodo mesmo contudo a
prova de que, por uma vez, se deixou de ser um passivo
espectador; que o filme o obrigou a passar por uma experincia
parecida com a que os habitantes de Sarajevo viviam no seu
cotidiano naqueles dias. Nada que um paulista ou um carioca no
tenham sentido alguma vez, quando a barreira que os separa das
favelas cai durante um arrasto, um assalto ou uma batida policial.
Mas, e este o ponto, se esta experincia de violncia deixa de
ser pontual para tornar-se constante, o efeito ... Sarajevo-1998.
!Em todo caso, o que me interessa salientar agora que se trata de
um filme que faz o que diz. Foi montado de tal modo que consegue
realizar aquilo de que fala. Estamos frente a um verdadeiro ato
cinematogrfico em que o filme se anula a si mesmo como cinema,
j que se os filmes em geral so sonhos, este, em especial, um
pesadelo. E como tal faz fracassar a funo do sonho, forando o
sonhador a despertar para algo que teria preferido continuar
ignorando. E, como no pesadelo, no se trata de tomar
conscincia de nada, reflexivamente falando, mas de fazer
! 5
-
diretamente uma experincia de angstia. Este filme, literalmente,
fra de srie consegue a faanha de angustiar o espectador, mas
no pelo tema, seno pelo modo como manipula as identificaes
do pblico. No poderia por isso mesmo contentar-me em mostrar
aqui apenas um fragmento, j que pela repetio da operao
que o efeito finalmente acontece. E isto se deve, insisto, no ao
contedo, aos fatos mostrados, mas forma adotada para mostr-
los. Digamos que Paskaljevic est para a angstia como Hitchcock
para o medo.
! 6