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O QUE REIVINDICAVAM AS CANAVIEIRAS PERNAMBUCANAS?
ANÁLISE DOS PROCESSOS TRABALHISTAS PRODUZIDOS PELA JUNTA
DE CONCILIAÇÃO E JULGAMENTO DE CATENDE, 1974
Autora: Renata Borba Cahú Siqueira
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da UFPE
e-mail: [email protected]
Orientadora: Dra. Christine Rufino Dabat
Docente/Pesquisadora do Departamento de História da UFPE
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir de que modo inúmeras
canavieiras, que faziam parte do quadro de funcionárias da Usina Catende S/A
(Catende, PE), sofreram diferentes sanções patronais e tiveram direitos trabalhistas
subtraídos unicamente por ser quem eram – mulheres. O estudo em questão está
pautado na análise de fontes primárias, processos judiciais produzidos pela Junta de
Conciliação e Julgamento de Catende, do ano de 1974, e na leitura de bibliografia
produzida por especialistas sobre a temática.
Palavras-chave: Agroindústria Canavieira; Canavieiras; Trabalho das Mulheres.
Introdução
A presença de mulheres na produção açucareira foi uma constante. Inseridas em
um contexto de extrema pobreza, as canavieiras possuíram trajetórias de vida que
estavam imersas no contexto do mundo do trabalho assalariado. Além disso, eram
responsáveis também pela manutenção dos lares e socialização dos filhos. Todavia, todo
o trabalho desenvolvido por elas era entendido como auxílio da produção familiar.
A hipótese que norteia este trabalho baseia-se na assertiva de que a
desvalorização do trabalho das mulheres pode ser manifesta de diferentes maneiras,
sendo as sanções patronais uma delas. No caso em questão, as medidas punitivas foram
expressas de formas diversas e em distintos níveis das relações trabalhistas como, por
exemplo, no não pagamento de direitos trabalhistas básicos.
O método privilegiado na produção deste estudo foi o da história serial1. A partir
desta perspectiva as fontes primárias (cerca de 100 processos trabalhistas da Junta de
Conciliação e Julgamento de Catende, 1974) foram analisadas. Os referidos documentos
encontram-se salvaguardados no arquivo TRT 6ª região – UFPE, situado no quarto
andar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas/CFCH da Universidade Federal de
Pernambuco. O convênio assinado entre o TRT 6ª região e a UFPE foi fruto dos
esforços, no ano de 2004, de um grupo de professores do departamento de História para
salvar a documentação da incineração (seriam transformados em papel reciclado e
doados ao Hospital do Câncer de Pernambuco). Na oportunidade, foram transferidos
para a universidade 63.386 mil processos, transformando o arquivo do Centro de
Filosofia e Ciências Humanas em um precioso local, onde estudantes e pesquisadores
têm a oportunidade de realizarem diversos trabalhos.
As ações produzidas pela Justiça do Trabalho são de imensa importância para a
construção da História do Brasil, nas palavras de Magda Barros Biavaschi:
“os processos são fontes de inegável valor histórico, que além de seus
aparatos jurídicos e dos documentos que contém – os quais podem se
constituir em meio de prova para os cidadãos em outras demandas -, contam,
entre outros enredos do passado, as relações que se estabelecem na
sociedade, o contexto sócio-econômico em que foram produzidos, os modos
e modas de cada época, os vínculos entre trabalhadores e empresas, a vida
cotidiana de uma comunidade em determinado momento. Eliminá-los é
eliminar a história”2.
Dessa maneira, a possibilidade de acessar os processos judiciais permitiu aos
historiadores o contato com as práticas sociais dos trabalhadores e trabalhadoras, tanto
urbanos, quanto rurais.
1 A perspectiva da História Serial que consiste, em linhas gerais, na abordagem de fontes com algum nível
de homogeneidade que se abra para a possibilidade de serializar as informações, no intuito de identificar
regularidades. BARROS, José D’Assunção. História Serial, História Quantitativa e História Demográfica:
uma breve reflexão crítica. In: Revista de Ciências Humanas, Vol. II, N I, p. 163-172, jan. jul., 2011, p.
164. 2 BIAVASCHI, Magda Barros. Apresentação. In: SCHMDIT, B. Trabalho, justiça e direitos no Brasil.
São Leopoldo: Oikos, 2010, p. 7.
Outras fontes utilizadas para a produção do presente artigo foram as obras:
Mulher e Trabalho, de Verena Stolcke; Construindo o Sindicalismo Rural, Lutas,
Partidos, Projetos, de Maria do Socorro de Abreu e Lima, entre outras.
1963: quando a legislação trabalhista chegou ao campo
Os anos de 1930, no Brasil, caracterizaram-se como uma época de ações
políticas que tinham como um de seus objetivos a regulamentação das relações de
trabalho. Anteriormente ao período algumas normas já haviam sido produzidas, como
por exemplo, o Decreto de número 3.550, de 16 de outubro de 1919, que criava o
Departamento Nacional do Trabalho. Todavia, apenas nos anos de 1930 e 1940 foram
elaboradas instituições e leis específicas para gerir essas relações, sendo seu marco
principal: a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – Decreto-lei nº
5.452, de 01 de maio de 1943.
A criação das referidas leis foram regidas a partir de uma fundamentação
ideológica que privilegiava a conciliação entre as classes, evitavam com suas propostas
o conflito entre as mesmas, como concluiu a historiadora Christine Rufino Dabat em
seu artigo intitulado “Uma caminhada penosa: A extensão do Direito trabalhista à zona
canavieira de Pernambuco”:
“A Era Vergas promoveu em ampla escala o papel da autoridade pública na
função de árbitro em caso de conflito e garantia elementos de segurança
(médica, aposentadoria etc.) a muitas categorias de assalariados. Esta tradição
importante na história recente do país reunia ‘medidas de bem-estar social,
atividade política da classe operária e nacionalismo econômico’. O propósito
era harmonizar o corpo social para afastar ‘a possibilidade trágica da luta de
classes’, afirmava Waldemar Falcão, Ministro do Trabalho numa época
fundadora do ponto de vista legal”3.
Seguindo esse mesmo raciocínio e posicionamento político foram criadas as
primeiras Juntas de Conciliação e Julgamento. Preconizava o artigo primeiro do Decreto
nº 22.132, de 25 de novembro de 1932 (que instituía as Juntas de Julgamento e
Conciliação): “Os litígios oriundos de questões de trabalho, em que sejam partes
3 DABAT, Christine Rufino. “Uma caminhada penosa”: A extensão do Direito trabalhista à zona
canavieira de Pernambuco. In: CLIO – Série de Pesquisa Histórica, N. 26-2, 2008, p. 291-320, p. 296.
empregados sindicalizados, e que não afetem a coletividade a que pertencem os
litigantes, serão dirimidos pelas Juntas de Conciliação e Julgamento, estabelecidas
perante a lei, e na forma nela estatuída”4. As Juntas eram organizadas pelo preceito da
conciliação, como anunciava seu próprio nome. Cabia ao presidente fazer a proposta e,
se esta não fosse aceita, os demais membros (advogados, vogais) proferiam julgamento,
que era feito por maioria.
Apesar de todas as discussões, mobilizações e práticas sociais do período, as leis
trabalhistas não alcançaram a totalidade dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.
Diferente de seus colegas urbanos, a classe assalariada rural não foi contemplada pela
CLT. Mesmo sendo cumpridores de todas as obrigações de um trabalhador, não
gozavam de nenhum direito. Não tinham, do ponto de vista jurídico, nenhum apoio
oficial.
Os assalariados e assalariadas rurais eram herdeiros das más condições de vida
de seus antepassados, a população escravizada que trabalhava nas plantações de cana de
açúcar. De 1888 até 1963, permaneceram quase invisíveis em termos de legislação
trabalhista, como sublinhou Christine Rufino Dabat:
“Permitiu-se a República, por mais de setenta e cinco anos, omitir a
regulação jurídica das posteriores relações de trabalho no campo: as mesmas
dinastias, defendidas pelas forças da ordem, possuíam a terra que os
descendentes dos outrora escravos cultivavam sem amparo das autoridades
públicas. Desprovidos de alternativa econômica e voz política – só se
tornariam maciçamente eleitores em 1988 – os assalariados agrícolas
permaneceram nos canaviais, com única liberdade ou direito de poder (
teoricamente?) mudar de patrão”5.
Apenas vinte anos depois da promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho
foi votado o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), em 1963. Após muitas mobilizações
e lutas por parte dos assalariados e assalariadas rurais. Estes estavam organizados em
4 Dados retirados do site do Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-22132-25-novembro-1932-526777-
publicacaooriginal-82731-pe.html> Acesso em: 20 agos. 2018. 5 DABAT, Christine Rufino. “Uma caminhada penosa”: A extensão do Direito trabalhista à zona
canavieira de Pernambuco. In: CLIO – Série de Pesquisa Histórica, N. 26-2, 2008, p. 291-320, p. 294.
Sindicatos, Ligas Camponesas e batalhavam pelo reconhecimento de seus direitos civis
e trabalhistas.
Parte de sua luta foi consagrada no dia 02 de março de 1963, pela promulgação
da Lei nº 4.214 (ETR), que lhes proporcionava garantias legais, tais como: descanso
semanal; férias remuneradas; aviso prévio; indenização por tempo de serviço;
estabilidade no emprego após um ano de trabalho; assinatura da carteira de trabalho.
Para além desses direitos básicos, havia ainda o importante aspecto de que para muitos
trabalhadores e trabalhadoras a carteira de trabalho era seu primeiro registro civil.
Os empregados e empregadas rurais pernambucanos puderam se beneficiar das
leis trabalhistas ainda no ano de 1963, graças às ações governamentais de Miguel
Arraes, então governador do Estado. Apesar de ter tido um curto mandato – 400 dias – o
referido político agiu de forma a garantir aos rurícolas o direito de reivindicação e de
greve, de acordo com a legislação recém-promulgada. Possibilitou também uma maior
atuação dos Sindicatos Rurais.
Nesse mesmo período, foram criadas as Juntas de Conciliação e Julgamento em
Pernambuco. Em 1962, através do Decreto-Lei nº 4.088, foi estabelecida a Junta de
Palmares. E mais tarde, no ano de 1970, por meio do Decreto-Lei nº 5.650, foi
estabelecida a Junta de Conciliação e Julgamento de Catende.
A vigência do Estatuto do Trabalhador Rural e a instalação das Juntas de
Conciliação e Julgamento tiveram impactos significativos nas relações trabalhistas na
zona canavieira de Pernambuco. Pois, era possível, a partir de então, aos assalariados e
assalariadas nas plantações, munidos de documentação que os identificava – a carteira
de trabalho – acionarem os órgãos oficiais com o objetivo de reivindicarem direitos
regulamentados por lei. O brasilianista Thomas Rogers destacou a importância da
existência dessas instâncias oficiais para a regularização das relações trabalhistas no
campo, em suas palavras: “Esses tribunais eram importantíssimos para o novo sistema
de relações trabalhistas, pois constituíam os fóruns privilegiados para conflitos entre
patrões e empregados, com suas próprias normas e uma linguagem usada de modo cada
vez mais autoconsciente por ambas as partes”. (ROGERS, p. 243, 2017).
Mulheres nas plantações de cana de açúcar
Para as mulheres das classes menos favorecidas o trabalho fora do lar sempre se
impôs por efeito das necessidades econômicas. As canavieiras pernambucanas, como as
demais, também exerceram atividades laborais.
Nos engenhos da Zona da Mata, dadas as históricas estruturas sociais e
econômicas, era necessária a participação de todos os membros do grupo familiar no
trabalho nos canaviais. À vista desta situação, as mulheres executavam as mais diversas
tarefas, todavia, os espaços ocupados por elas eram distintos daqueles ocupados por
seus pais, esposos, filhos e irmãos.
Para melhor compreendermos os lugares ocupados e os papéis sociais atribuídos
a homens e mulheres, partimos de uma análise das relações de gênero nos termos
propostos pela historiadora Joan Scott. Para a referida autora, o termo gênero é um
elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os
sexos, e uma forma primeira de significar as relações de poder6.
Devido ao seu contexto histórico, de sociedade fortemente marcada pela herança
escravista e pelo patriarcalismo, o sexo do trabalhador implicava em diferentes
percepções sobre o trabalho desenvolvido e sobre a posição ocupada por cada membro,
tanto por parte do patronato, quanto entre os próprios trabalhadores.
Os papéis idealizados para homens e mulheres eram distintos e hierarquizados,
imputava-se aos primeiros a ocupação dos espaços públicos, fora da casa, enquanto às
mulheres estavam destinadas ao espaço privado, dentro da esfera de seus lares.
O ideal de que às mulheres caberia o trabalho e os cuidados com o lar, com a
socialização dos filhos, estava fortemente presente no cotidiano das canavieiras, como
destacado por Marcela Heráclio Bezerra, em artigo intitulado “Uma, cem mil: cotidiano
das cortadoras de cana do município do Cabo de Santo Agostinho nos anos 1980”:
“Essa ‘obrigação natural’ das canavieiras, comum para a maioria das mulheres pobres,
ocorria em detrimento dos estudos, ocasionando a reprodução dos papéis
6 SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil para a análise. In: Cadernos de História da UFPE, v. 11, nº
11, 2016, p. 9-39, p. 28.
desempenhados pelas mães e avós e dificultando, quando não impedindo, a construção
de um futuro diferente do vivenciado até então”. (BEZERRA, p. 66, 2016).
Deste modo, apesar de desenvolverem desde a mais terna idade trabalhos ligados
tanto ao lar, ao roçado (cultura de subsistência), quanto nos canaviais, todas as tarefas
desenvolvidas pelas mulheres eram entendidas como complemento da renda familiar.
As diferentes avaliações do trabalho do homem e do trabalho da mulher
encontravam eco, como já mencionado acima, não apenas entre a própria comunidade,
como também entre os empregadores. No que diz respeito a estes últimos, as
apreciações no tocante as atividades desenvolvidas pelas mulheres foram traduzidas em
sanções trabalhistas, como verificamos na análise da documentação estudada.
O que reivindicavam as canavieiras pernambucanas?
Dos mais de cem processos analisados sessenta deles foram impetrados por
mulheres, todas trabalhadoras rurais da Usina Catende S/A7. As mesmas desenvolviam
atividades diretamente ligadas ao campo. Em sua maioria, eram trabalhadoras estáveis,
ou seja, trabalhavam para a empresa há mais de dez anos. Nos sessenta processos foram
localizadas a marca da digital das trabalhadoras, o que nos indica que todas elas eram
analfabetas.
Nas atas iniciais da documentação encontramos menções relativas às atribuições
das canavieiras, eram elas: limpa do mato; plantio de cana; adubação; limpa e corte de
cana. Todas constituíam tarefas manuais que exigiam atenção, pois qualquer distração
acarretaria prejuízos; força e técnica, visto que, eram todos afazeres que exigiam
grandes esforços físicos.
No tocante ao conteúdo das reclamações os principais objetos reivindicados
estão organizados na seguinte tabela:
TABELA I – OBJETOS RECLAMADOS PELAS CANAVIEIRAS (1974)
7 Localizada no município de Catende, situado na parte sudoeste da mesorregião da Mata Pernambucana,
distante 142 km do Recife.
Objetos Presença em números e porcentagem nos Processos
Pagamento de férias 36 (33,33%)
Pagamento de décimo terceiro
salário
32 (29,62%)
Pagamento de repouso remunerado 8 (7,40%)
Pagamento de dias santos e
feriados
13 (12,03%)
Pagamento de indenização 10 (9,25%)
Pagamento de aviso prévio 9 (8,33%)
Total8 108 (100%) Fonte: Dados colhidos a partir dos processos trabalhistas da Junta de Conciliação e Julgamento de
Catende do ano de 1974, no acervo do TRT 6ª Região-UFPE, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas
da UFPE.
As informações contidas nos autos dos processos e expostas acima apresentam
que os principais pleitos das trabalhadoras diziam respeito ao não cumprimento do
pagamento de direitos trabalhistas básicos. Mesmo onze anos após a instituição do
Estatuto do Trabalhador Rural, direitos fundamentais não estavam sendo cumpridos.
No grupo documental analisado obtivemos elementos valiosos para o estudo da
hipótese que norteia o presente artigo: trabalhadoras rurais sofreram diferentes sanções
patronais e tiveram direitos trabalhistas subtraídos unicamente por ser quem eram –
mulheres.
Dos sessenta processos judiciais foram selecionados para a presente discussão
dois casos representativos. Os documentos de número 96.74 e 132.74 foram escolhidos
em razão de seus conteúdos, por constituírem retratos precisos das demandas das
trabalhadoras rurais.
Processo 96.74
L. M. C, brasileira, casada, trabalhadora rural, residente no Engenho São João.
Na petição inicial há a explicação de que a Reclamante prestava serviços para a
Usina Catende desde 12 de setembro de 1954, e sempre teve sua remuneração à base do
salário mínimo regional. Porém, nos últimos meses de 1974, vinha a Reclamada
8 O total de processos computados foi de 60.
tratando a Reclamante com flagrante “rigor excessivo”, pois todo o trabalho que a
rurícola executava, por ordens superiores, era “cortado” pela administração do engenho.
Na ata de instrução e julgamento a assalariada declarava:
“(...) que depois de o seu esposo ter sido suspenso do trabalho em 06 de abril
de 1974, por ordem do administrador, o fiscal do engenho São João onde ela
trabalhava vem se negando em apontar as suas tarefas realizadas. (...) pela
manhã recebe o trabalho medido pelo “cabo”, cumpre a tarefa, o “cabo”
mede, dá o ponto e o fiscal não leva o material para a Usina; que por este
motivo desde abril de 1974, não recebe salário; que ela trabalhou até 08 de
abril, quando deixou de trabalhar por não receber, ou melhor não ter sido
apontado; que antes disso ela depoente vinha recebendo regularmente seus
salários”9.
Em sua defesa, o representante da Usina negou que houvesse o fato que ela (a
trabalhadora) imputava, de tratamento com “rigor excessivo”. Na mesma oportunidade,
ainda, intentou Reconvenção-Inquérito contra a sua empregada rural. Suplicou que fosse
declarado rescindido o contrato de trabalho da mesma, justificou o pedido alegando
abandono de emprego da parte dela.
Pelo depoimento da canavieira foi possível perceber que o “rigor excessivo”
estava relacionado ao fato de quando a mesma passou a realizar sua tarefa sozinha, sem
a companhia de seu cônjuge, sua atividade deixou de ser avaliada e apontada pelo
preposto do patrão, o fiscal de campo.
Tal situação condiz com a idealização que se fazia, no período, de quais papéis
sociais cabiam às mulheres, nas palavras da historiadora Maria do Socorro de Abreu e
Lima:
“Dada a sua vinculação à maternidade e ao lar, o ideal de trabalho das
mulheres no campo é que o exerçam na casa e no roçado. No caso de
trabalharem na produção, isto se constituiria enquanto mão de obra familiar,
9 TRT 6ª Região, JCJ Catende. Processo 96.74
auxiliar do marido e sob sua supervisão, de preferência, de forma eventual e
não constante.10”
A visão do trabalho das mulheres como complementar ao dos homens se
caracterizava como um fenômeno recorrente no modo de produção capitalista, a
participação das mesmas na produção era determinada, recorrentemente, pelas
necessidades da família e, além disso, era considerada uma atividade secundária ao
nascimento e criação dos filhos. Já as atividades desenvolvidas pelos homens eram
vistas como atribuições inerentes aos mesmos11.
Dessa feita, as trabalhadoras sofriam uma dupla exploração, a dos trabalhos que
lhe cabiam na esfera doméstica, tais como: cuidado com os filhos, com o esposo, com
os parentes idosos, que, muitas vezes residiam com o casal, cuidado com os animais de
pequeno porte e da lavoura de subsistência. E da exploração das atividades na palha da
cana.
O processo em questão teve como sentença judicial: procedente em parte12. A
Usina foi condenada a pagar para a trabalhadora quinze dias de salário.
A atitude da canavieira de não mais comparecer ao campo para desenvolver seu
trabalho, pois, em seu entendimento se seu salário não estava a ser pago, ela também
não deveria efetivar sua tarefa, denota a resistência da mesma e sua luta para que sua
atividade fosse compreendida como independente do seu cônjuge.
Processo 132.74
D. M. S, brasileira, trabalhadora rural, residente no Engenho Jardim.
A ata inicial indicava que a Usina Catende abriu um inquérito no dia 26 de junho
de 1974 e solicitou a rescisão do contrato de trabalho com sua empregada rural, alegou
para tal que a requerida faltava muito ao trabalho.
10 ABREU e LIMA. Maria do Socorro, Construindo o sindicalismo rural. Lutas, partido, Projetos.
Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 201. 11 STOLCKE. Verena. Mulher e Trabalho. São Paulo. Editora Brasileira de Ciências, 1971, p. 104. 12 Procedente em parte é a sentença na qual a Justiça não aprova o pedido inicial feito pelo reclamante, no
entanto, considera alguns aspectos do que fora pontuado. VAREJÃO, Luciana. Nos fios da resistência
feminina: o labor e o enfrentamento ao patronato no setor têxtil recifense (1960-1964). Dissertação de
mestrado. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011 p.107.
No entanto, nos autos do processo localizamos a contestação de defesa da
trabalhadora em que declarava:
“(...) se encontrava em estado de gestação bastante avançado, tendo, em
consequência de tal estado se afastado de suas atividades. (...) em
consequência do estado de gravidez supra mencionado, veio a Requerida de
dar à luz a uma criança. Posteriormente, procurou a mesma Requerida
serviços no engenho onde trabalha, mas só encontrou negativas por parte dos
dirigentes, abrindo-se apenas as portas aos trabalhos com os empreiteiros13, o
que ainda está a fazer14”.
Por sua vez, o representante legal da Usina alegava que a trabalhadora deveria
provar sua gestação, isso dentro do prazo da lei. Não o fazendo, caracterizado estava seu
abandono de emprego. Por esta razão, não poderia pagar salários vencidos e vincendos,
como foi pedido.
A sentença judicial proferida foi a conciliação 15 , devia a Usina readmitir a
trabalhadora, com os efeitos da readmissão.
O processo 132.74 toca em um aspecto de frequente dificuldade para as
assalariadas, a gestação e a responsabilidade dos cuidados com os filhos. Como avaliou
a socióloga Heleieth Saffioti:
“A condição da mulher nas sociedades de classes tem sido vista por
numerosos estudiosos como o resultado da injunção de fatores de duas ordens
13O empreiteiro é um elemento escolhido pelo proprietário, ou empresário da terra, que ganha, via de
regra, a empreita do serviço a ser realizado. Encarrega-se de arregimentar a “turma” e responsabiliza-se
por todo o trabalho, inclusive pelo pagamento. Paga os trabalhadores por dia de serviço ou pela tarefa
realizada. MELLO, Maria Conceição D’incao e. O bóia-fria: Acumulação e Miséria, 1977, p. 114. Os
trabalhadores que prestavam serviços por através dos empreiteiros eram conhecidos como “clandestinos”.
A categoria “clandestino”, uma categoria dos próprios trabalhadores apropriada por outros grupos sociais
e até mesmo pelo Estado, é empregada para designar sobretudo o trabalhador expulso, sem ficha (carteira
de trabalho assinada), e também todo e qualquer trabalhador, mesmo residente no engenho, que não tenha
ficha. O referente da categoria são os direitos e historicamente parece que a categoria surge com os
próprios direitos, tendo sido forjada para pensar e classificar aqueles que se acham excluídos dos direitos.
SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos. Estudo sobre Trabalhadores da cana de açúcar de
Pernambuco. São Paulo, Duas Cidades, 1979, p. 129. 14TRT 6ª Região, JCJ Catende. Processo 132.74 15 A conciliação é fruto da celebração de um acordo entre as partes envolvidas na ação, mediada pelo
poder judiciário. VAREJÃO, Luciana. Nos fios da resistência feminina: o labor e o enfrentamento ao
patronato no setor têxtil recifense (1960-1964). Dissertação de mestrado. Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2011, p. 107.
diversas: de ordem natural e de ordem social. Dentre os primeiros, o mais
sério diria respeito ao fato de a capacidade de trabalho da mulher sofrer
grande redução nos últimos meses do período de gestação e nos primeiros
tempos que se seguem ao parto. O aleitamento tornaria ainda insubstituível a
mãe junto à criança pequena. Esses fatos biológicos são, muitas vezes,
utilizados para justificar a inatividade profissional da mulher durante toda a
sua existência”16.
Muitos empregadores, como no caso em questão, se utilizavam da necessidade
das mulheres de se afastarem de suas atividades nos últimos meses de gestação e logo
após o nascimento da criança, da descontinuidade do trabalho feminino, como
argumento que justificavam a subalternidade das mulheres nas relações de trabalho,
assim como a preferência destas pelo trabalho masculino para os postos de
responsabilidade17.
O Estatuto do Trabalhador Rural em seu Título III – DAS NORMAS
ESPECIAIS DE PROTEÇÃO DO TRABALHADOR RURAL. Capítulo I – DO
TRABALHO DA MULHER, continha o seguinte artigo:
Art. 55. O contrato de trabalho não se interrompe durante a gravidez, em virtude da
qual serão assegurados, à mulher, ainda os seguintes direitos e vantagens:
a) afastamento do trabalho seis semanas antes e seis depois do parto, mediante atestado
médico sempre que possível, podendo, em casos excepcionais, esses períodos ser
aumentados de mais de duas semanas cada um mediante atestado médico;
b) repouso remunerado duas semanas em caso de aborto, a juízo do médico;
c) dois descansos especiais, de meia hora cada um, durante o trabalho diário, para
amamentação do filho, até que seja possível a suspensão, dessa, mediante, a critério
médico, nunca porém, antes de seis meses após o parto;
16 SAFFIOTI. Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo, Expressão
Popular, 2013, p. 85. 17 Idem, p. 86.
d) percepção integral dos vencimentos durante os períodos a que se referem os itens
anteriores, em base nunca inferior aos dos últimos seis meses, se esta for superior à
aqueles18.
Contudo, mesmo com lei específica que assegurava o afastamento das atividades
laborais de gestantes, no ano de 1974 a empresa agrícola Catende S/A recorreu a Justiça
do Trabalho com o intuito de rescindir o contrato de trabalho de sua funcionária,
justificando a demissão com o número de faltas da mesma. Quando, no entanto, a
ausência ocorreu porque a assalariada estava em estado avançado de gestação, e após o
nascimento da criança procurou retomar suas atividades, o que lhe foi negado.
Outro problema frequentemente enfrentado pelas mulheres em seu ambiente de
trabalho, que não foi encontrado na mostra documental aqui analisada, porém que a
literatura sobre o assunto nos informa era o do assédio sexual.
Marcela Heráclio Bezerra apontou para esse tipo de violência sofrida pelas
mulheres, em suas palavras: “Além dos abusos nas relações de trabalho, as mulheres
sofriam também assédio dos administradores, fiscais e cabos e esse era o principal
motivo apontado pelas famílias para que o trabalho feminino nas lavouras fosse
evitado”. (BEZERRA, p. 70, 2016).
Ainda segundo a pesquisadora, o assédio era uma prática recorrente nos
engenhos. Fossem elas casadas, solteiras, viúvas, as canavieiras encontravam-se a mercê
não apenas dos administradores e cabos, como também dos próprios trabalhadores19.
Por se tratar de um tema delicado e íntimo, muitas trabalhadoras não falavam
sobre o mesmo, “assunto tabu, o assédio sexual era raramente aludido 20 ”, como
sublinhou a historiadora Christine Rufino Dabat. Explicava ainda, que apenas Francisco
18ESTATUTO DO TRABALHADOR RURAL. Brasília: Ministério da Agricultura, 1963. 19 BEZERRA, Marcela Heráclio. Uma, Cem mil: cotidiano das cortadoras de cana do município do Cabo
de Santo Agostinho nos anos 1908. In: Cadernos de História da UFPE, v. 11, nº 11, 2016, 61-81, p. 70. 20 DABAT, Christine Rufino. Dimensões da violência patronal contra as trabalhadoras rurais na zona
canavieira de Pernambuco. In: Marcadas a Ferro: Violência contra a mulher uma visão multidisciplinar.
Brasília, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005, p.165-178, p. 167.
Julião, deputado e líder das Ligas Camponesas, expôs, corajosamente, os graves casos
de abusos21.
Considerações Finais
Os ofícios do campo ligados à produção sucroalcooleira por vezes são
representados como atividades masculinas por excelência. Todavia, mesmo que os
homens no conjunto total de trabalhadores constituam uma maioria numérica, as
mulheres – trabalhadoras rurais – participaram ativamente e em quantidades expressivas
dessa produção.
O presente trabalho teve como objetivo salientar a participação das canavieiras
no mundo assalariado rural, e como, apesar de executarem o mesmo trabalho que os
homens e prestarem serviços para uma mesma empresa, a avaliação por parte do
patronato do trabalho desenvolvido pelo grupo não era igualitária. As diferentes
percepções em relação às práticas laborais de homens e mulheres foram traduzidas em
sanções.
As restrições impostas às mulheres: o não apontamento por parte do fiscal de
campo da tarefa executada (processo 96.74), o pedido de rescisão de contrato de
trabalho e a negação de trabalho para a empregada gestante (processo 132.74), não
podem ser analisadas como uma questão puramente econômica. Nos dois casos, o sexo
do trabalhador exerceu influência direta nas contenções sofridas pelos mesmos. Os
aspectos culturais historicamente definidos – uma sociedade herdeira das marcas do
escravismo e com forte traço patriarcal - relacionados com a definição de papéis sexuais
e posteriores organizações familiares, devem ser levadas em conta por implicarem, no
cotidiano das relações trabalhistas, em problemas concretos.
Faz-se importante destacar o recorte temporal em que as reclamações foram
impetradas, o ano de 1974. Período da Ditadura Militar, nesse momento da história
brasileira os gestos humanos ganharam dimensões políticas profundas. Atitudes, que em
outro tempo de nossa história, poderiam ser vistas como corriqueiras, como por
exemplo, requerer o apoio da Justiça para denunciar más condições de trabalho, era
21Ibidem.
encarada como subversiva e, em muitos casos, os trabalhadores sofriam violentas
represálias, inclusive físicas.
Trazer o contexto do período pesquisado possui uma dupla intenção: a de inserir
os atores sociais em um determinado tempo e espaço em que os mesmos viveram, e
realçar a corajosa atitude das mulheres. Que mesmo em um momento histórico de forte
repressão, autoritarismo, perseguição política e intervenções nos sindicatos, acionaram
as instituições jurídicas com a finalidade de buscarem defender direitos trabalhistas
básicos, todos garantidos por lei. Pleitearam o reconhecimento de seu trabalho como
pessoa independente e autônoma.
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