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O RACISMO CONTRA O NEGRO
Osvaldo José da Silva1
RESUMO
Este artigo tem como objetivo contribuir para a reflexão acerca do racismo contra a comunidade
do povo negro no Brasil. O grupo étnico representado pelo negro é o protagonista e pilar na
formação da sociedade brasileira. O artigo irá demonstrar que, em decorrência do Racismo Contra
o Negro, este protagonismo não é reconhecido. Tem como referência o primeiro capítulo da obra A
Condição Humana, que possui o mesmo título: A Condição Humana, obra da pensadora política
alemã Hannah Arendt (1906–1975). Com essa referência, o trabalho traça um paralelo com as
provocações sobre o protagonismo dos negros na formação social, política e econômica do Brasil
lançadas pelo pensador político brasileiro, Manuel Querino (1851–1923), e corroboradas por
autores pensadores da negritude. No primeiro capítulo é abordado A Condição Escravista no
Cenário Imperialista Europeu, no qual é analisado o desenrolar da geopolítica do imperialismo; na
sequência o segundo capítulo O Negro na Condição de Escravizado, contextualiza o processo do
tráfico negreiro; o terceiro capítulo compreende Dimensão da Vita Activa do Negro Escravizado no
Brasil, em que é apresentado o Ser negro no caos da discriminação racial e será finalizado com o
capítulo Condição da Imortalidade e a Eternidade do Ser Negro, no aspecto em que é evidenciada a
identidade negra entre o passado e o futuro. Conclui-se que, é possível desvelar na modernidade os
mecanismos nos quais foram invisibilizados os negros na sua condição humana, mas por outro lado,
evidenciam-se também possibilidades da comunidade do grupo étnico negro aparecer no espaço
público e político, para resgatar seu protagonismo consolidado na sociedade brasileira como forma
de resistência ao racismo estrutural, institucional e de Estado que mantém ações contra esse
próprio negro.
PALAVRAS CHAVE: Condição Humana, Escravismo, Negro, Racismo.
ABSTRACT
This article aims to contribute to the reflection about racism against the black people community in
Brazil. The ethnic group represented by the Negro is the protagonist and pillar in the formation of
Brazilian society. The article will demonstrate that, as a result of Racism Against the Negro, this
protagonism is not recognized. It has as reference the first chapter of The Human Condition, which
has the same title: The Human Condition, the work of the German political thinker Hannah Arendt
(1906-1975). With this reference, the work draws a parallel with the provocations about the
protagonism of the blacks in the social, political and economic formation of Brazil launched by the
Brazilian political thinker, Manuel Querino (1851-1923), and corroborated by black thinkers. In
the first chapter is addressed The Slave Condition in the European Imperialist Scenario, in which
the development of the geopolitics of imperialism is analyzed; following the second chapter The
Negro in the Condition of Enslaved, contextualizes the slave trade process; the third chapter
comprises the Dimension of the Active Vita of Black Enslaved in Brazil in which the Black Being is
presented in the chaos of racial discrimination and will be finalized with the chapter Condition of
Immortality and the Eternity of the Black Being in the aspect in which the identity is evidenced
between the past and the future. It is concluded that it is possible to reveal in modernity the
mechanisms in which blacks were invisible in their human condition, but on the other hand, there
are also possibilities for the community of the black ethnic group to appear in the public and
political space, to rescue their protagonism consolidated in Brazilian society as a form of resistance
to structural, institutional and state racism that maintains actions against this same black.
KEYWORDS: Human Condition, Slavery, Black, Racism.
1 Doutorando em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade de São Paulo PUC – SP. Mestre em
Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista UNESP FCL-Araraquara. Graduado em
Filosofia e Economia pela PUC - SP.
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SUMÁRIO
1. O RACISMO CONTRA O NEGRO......................................... 03
Introdução..................................................................................... 03
1.1 A Condição Escravista no Cenário Imperialista Europeu....... 06
1.2 O Negro na Condição de Escravizado........................................ 23
1.3 Dimensões da Vida Activa do Negro Escravizado no Brasil. 39
1.4 Condições de Imortalidade e a Eternidade do Ser Negro...... 49
Considerações Finais......................................................................... 53
Referências Bibliográficas........................................................... 57
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1. O RACISMO CONTRA O NEGRO
Introdução
A Condição do Racismo Contra o Negro possui seus primeiros registros na
modernidade a partir do sistema político, econômico e social imperialista advindo do
continente europeu contra o continente africano. Em termos de categorias cronológicas,
estamos reportando o período que abrange do século XVI ao XX, bem como suas
consequências no século XXI.
Este artigo objetiva contribuir para a reflexão acerca da comunidade do povo
negro no Brasil, como grupo étnico protagonista e pilar fundante na formação da
sociedade brasileira. Para tanto, mostra que, em decorrência do Racismo Contra o
Negro, este protagonismo não foi e não é reconhecido. Tem como referência o primeiro
capítulo da obra A Condição Humana, que possui o mesmo título: A Condição Humana,
obra da pensadora política alemã Hannah Arendt (1906–1975). Com essa referência,
traça um paralelo com as provocações da tese sobre o protagonismo dos negros na
formação social, política e econômica do Brasil lançadas pelo pensador político
brasileiro, Manuel Querino (1851–1923), e corroboradas por autores pensadores da
negritude.
No primeiro capítulo é abordado A Condição Escravista no Cenário Imperialista
Europeu, no qual é analisado o desenrolar da geopolítica racista do imperialismo
europeu contra os povos negros do continente africano; no segundo capítulo será
analisado, O Negro na Condição de Escravizado, a partir dos desdobramentos do tráfico
negreiro do continente africano especificamente para o Brasil; no capítulo terceiro
busca-se compreender a Dimensão da Vita Activa do Negro Escravizado no Brasil, no
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qual é apresentado o Ser negro no caos da discriminação racial; será finalizado com o
capítulo A Condição de Imortalidade e a Eternidade do Ser Negro, aspecto em que é
evidenciada a identidade negra entre o passado e o futuro. Conclui-se que, é possível
desvelar na modernidade os mecanismos nos quais foram invisibilizados os negros na
sua condição humana, mas por outro lado, evidenciam-se também possibilidades da
comunidade do grupo étnico negro aparecer no espaço público e político, para resgatar
seu protagonismo consolidado na sociedade brasileira como forma de resistência ao
racismo contra os negros. Para tanto, os autores pontuais deste trabalho Manuel Querino
e Hannah Arendt, serão a ponta de lança da análise estabelecida.
O tempo e cenário histórico de Manuel Querino acontecem, segundo Guimarães
(2004), a partir da cidade em que nasceu Santo Amaro (BA) no ano de 1851. Órfão em
1855 foi entregue ao tutor Manuel Garcia, nesta ocasião inicia seu processo de
alfabetização. Aos 17 anos alista-se no exército no contingente destinado a guerrear no
Paraguai no ano de 1865 (guerra do Brasil contra o Paraguai: 1864–1870). Por não
possuir porte físico ficou no Rio de Janeiro, então capital do império. No ano de 1870
foi promovido a cabo de esquadra.
Com o fim do conflito e após baixa no serviço militar, retorna a Salvador (BA).
Nesta cidade desempenha a função de pintor e decorador, estuda no Colégio 25 de
Março e no Liceu de Artes e Ofício, do qual é um dos fundadores e professor de
desenho geométrico. Exerce o magistério também no Colégio dos Órfãos de São
Joaquim. Militou pela causa republicana e abolicionista, nas quais com outros militantes
funda a Sociedade Libertadora Sete de Setembro. Estes organizaram também os
periódicos A Província, e O Trabalho para a defesa das causas republicanas e abolição
da escravatura. Sua luta possui também a visão na defesa das causas trabalhistas e
operárias no contexto soteropolitano no final do século XIX e início do XX. Ao exercer
a função pública com o cargo de 3º Oficial da Secretaria da Agricultura, nas agruras do
cotidiano por ser negro, sente na pele o preconceito racial à mercê da vontade dos
gestores, e tornar-se abolicionista, republicano e líder operário. Como escritor publica
um repertório de obras dentre as quais: A Raça africana e seus costumes (1916), O
Colono preto como fator da civilização brasileira (1918), Candomblé do Caboclo
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(1919), dentre outros títulos; a militância social e literária lhe permitiu tornar-se
conhecido e eleito, vereador e, também reforçar a luta contra o preconceito de cor,
preconceito este que se mantém nos dias de hoje no Brasil.
Em 1916, é administrativamente reformado e encostado, refugia-se na vida
privada, vindo a participar somente das reuniões do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, na cidade de Salvador, até o seu falecimento em 1923.
Os dados biográficos de Hannah Arendt registram seu nascimento na cidade de
cidade Linden, subúrbio da cidade de Hannover, na Alemanha no de 1906. Realizou
seus estudos acadêmicos entre os anos de 1924 e 1929, primeiro na Universidade de
Marburg, sendo aluna orientada pelo filósofo alemão Martin Heidegger (1889 – 1976).
Posteriormente muda-se para a Universidade de Freiburg; e finalmente vai para a
Universidade de Heidelberg, onde em 1929 defende a tese de doutorado: O Conceito de
Amor em Santo Agostinho, sob a orientação do também filósofo alemão Karl Jaspers
(1883 – 1969). Entre os anos de 1930 e 1933, desempenhou ativa militância política na
cidade de Berlim, participando da Organização Sionista Alemã na luta contra o
nazismo; presa pela Gestapo e detida em Alexanderplatz acabou por ser libertada após
oito dias.
Em 1933, Arendt deixou então a Alemanha com sua mãe e sem documentos de
viagem seguiu para Praga, Genebra e, posteriormente Paris. Em Paris, trabalhou para
organizações que ajudavam refugiados judeus a emigrarem para a Palestina, nessas
ações encontrou um grupo de pares que incluía artistas e operários judeus e não judeus,
incluindo seu segundo marido Heinrich Blücher, Walter Benjamin e Bertold Brecht.
Com o cerco nazista se fechando sob a capital francesa, no ano de 1941 escapa da
França, via Espanha, para Lisboa, onde embarca para os Estados Unidos. Nesse mesmo
ano, em maio, chega à Nova Iorque.
Em Nova Iorque como colunista entre os anos de 1941 a 1945 do Aufbau, jornal
dos imigrantes judeu-alemães, passa a defender que os judeus se juntassem para
combater Hitler, como um povo europeu. De 1945 a 1947, leciona História Europeia no
Brooklyn College, em período concomitante Arendt, ocupou o posto de editora sênior
na Schocken Books, Nova York. Ali, pôde conhecer T.S. Eliot e Randall Jarrell. O ano
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de 1951 é o ano em que se torna cidadã americana e marca também a publicação da
obra Origens do Totalitarismo que a projetou internacionalmente. A partir daí, passa a
dar conferências nas universidades de: Yale, Columbia, Harvard, Princeton, Chicago e
também em outras universidades da Europa.
No ano de 1955 Arendt, foi professora visitante na Universidade da Califórnia,
em Berkeley. Em seguida no ano de 1958 publica a obra A Condição Humana. Em
1961, Arendt foi cobrir para a revista The New Yorker, o julgamento do nazista alemão
Adolf Eichmann, em Jerusalém. Para ela, comparecer a esse julgamento era uma
obrigação que ela devia a seu passado, uma cura posterior. Como resultado dessa
atividade, no ano de 1963, publica Eichmann em Jerusalém, talvez o livro mais
polêmico de Arendt, no qual ela traz o conceito da banalidade do mal.
Hannah Arendt também publicou ampla quantidade de textos e obras nas quais
procura compreender o olhar do mundo sob o ponto de vista do outro, sem
complacência ou justificar atitudes, mas distinguir e analisar os fenômenos do mundo
real. Dentre estas, podemos citar algumas traduzidas para o português com os seguintes
títulos: A Dignidade da Política, A Promessa da Política, A Vida do Espírito,
Compreender: formação, exílio e totalitarismo 1930–1954, Crises da República, Da
Revolução, Entre o Passado e o Futuro, Escritos Judaicos, Hannah Arendt – Martins
Heidegger: correspondências 1925/1975, Homens em Tempos Sombrios, Liberdade
Para Ser livre, Lições Sobre a Filosofia Política de Kant, O Conceito de Amor em Santo
Agostinho, O que é Política, Rahel Varnhagen, Responsabilidade e Julgamento e Sobre
a Violência. Nos últimos anos da sua vida Arendt, recolhe-se, procurando uma noção do
pensar que olhasse para o passado e nele encontrasse uma história significativa, até o
seu falecimento que vem a ocorrer em 04 de dezembro de 1975.
Numa análise comparativa, na condição de homens e mulheres no plural os
negros e negras que necessitam interagir no espaço público com as demais pessoas da
sociedade, encontraram e encontram no Brasil um cenário muito semelhante de
perseguição e exclusão social perpetrada pelo nazismo na Europa contra a comunidade
judaica, nazismo este gestado como sistema político na Alemanha (1930–1945)
representou a organização da sociedade totalitária concebida de forma eugênica de
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pessoas brancas “puras” contra pessoas brancas não puras, conforme análise e
compreensão elaborada por Hannah Arendt em suas obras, sobretudo na obra Origens
do Totalitarismo.
A compreensão do cenário do Racismo Contra o Negro, especificamente neste
trabalho, irá abordar o primeiro capítulo da obra a Condição Humana, cujo título
homônimo A Condição Humana poderá engendrar a compreensão da condição humana
do negro escravizado, processo este, originado no cenário imperialista europeu contra os
povos negros do continente africano; ousa também expressar a vita activa do povo
negro escravizado e a concepção de negritude eternizada a despeito de todo o genocídio
que lhe fora imputado.
Deste modo, as provocações lançadas por Manoel Querino adensarão as
concepções Arendtianas da condição humana, quanto às ações dos homens e mulheres
negros, como ações estruturantes da formação social e política da sociedade brasileira;
bem como, o acréscimo de outros textos e obras de cientistas sociais autores da
negritude será a ponta de lança para as novas reflexões acerca de estratégias
antirracistas a serem construídas por parte da comunidade negra.
1.1 A Condição Escravista no Cenário Imperialista Europeu
O mecanismo escravista desenvolvido pela sociedade europeia na era moderna
(do século XVII ao século XX) possui desdobramentos de ideologia racial na forma de
preconceito contra os negros no mundo moderno (séculos XX e XXI). Neste sentido, a
condição do negro escravizado e a condição do racismo contra os negros libertos são
consolidadas como paradoxo e antítese, da condição do negro enquanto grupo étnico da
espécie humana, bem como, na sua condição humana não reconhecida enquanto tal,
pelas pessoas racistas de cor branca.
A questão central colocada pela cientista política Hannah Arendt, na obra a
Condição Humana, reporta sobre a responsabilidade de toda a humanidade quanto ao
seu destino a partir da questão: o que estamos fazendo com o nosso planeta e com a
vida que é dada ao homem na terra a partir da natalidade; momento de ponderações
em que cada um, bem como todo ser da espécie humana, inseridos no mundo pela
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natalidade, que é uma das categorias centrais no pensamento de Arendt, deve analisar e
refletir acerca das ações que são sujeitos, ou questões de que sofrem consequências
nefastas desencadeadas por outros seres humanos, neste trabalho a questão proposta está
incondicionalmente ligada ao racismo contra a comunidade do grupo étnico negro
dentro do jogo das raças..
As construções culturais e ideológicas do jogo das raças, que num primeiro
momento foi adensada por falácias da ciência e de poder, momento no qual se
determinou que a etnia branca por ideologias específicas e aleatórias determinadas a-
priori, seria superior a outras determinadas etnias consideradas inferiores, sobretudo
superior a etnia negra, também por atributos aleatórios à própria realidade humana.
Essas situações foram paulatina e subsequentemente desconstruídas no plano
antropológico da realidade concreta das culturas e da natureza, pois a questão lançada
por Hannah Arendt, acerca das consequências de nossas ações, diz respeito a todo ser
humano e é o mote da reflexão aqui elaborada: o que estamos fazendo com o nosso
planeta e com a vida que é dada ao homem na terra a partir da natalidade comum,
questão que por outro lado, expressa uma contradição real disseminada pela concepção
racista de inferiorização racial contra a etnia do negro; destruindo qualquer
possibilidade de inclusão de seres humanos negros da mesma espécie, negros e brancos,
no espaço comum da vida. Além do racismo destruir o ser do homem negro, destrói
muito mais ainda o ser do homem branco, devido sua dinâmica sócio patológica.
Conforme aponta a Arendt (1989) há dois mecanismos de eliminação do outro
no continente africano, a primeira é a raça, a segunda é a burocracia na sua forma mais
cruel de se apresentar como um deus: onisciente, onipresente e onipotente contra as
comunidades negras do continente africano, estes dois mecanismos combinados
estabeleceram uma das epopeias mais terríveis de crimes contra a humanidade de etnia
negra.
Ambas as descobertas foram realizadas no Continente Negro. A raça foi uma
tentativa de explicar a existência de seres humanos que ficavam à margem da
compreensão dos povos europeus, e cujas formas e feições de tal forma assustavam
e humilhavam os homens brancos, imigrantes ou conquistadores, que eles não
desejavam mais pertencer à mesma comum espécie humana. Na idéia da raça
encontrou-se a resposta dos bôeres à “monstruosidade” esmagadora descoberta na
África – todo um continente povoado e abarrotado de selvagens – e a justificação
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da loucura que os iluminou como “o clarão de um relâmpago num céu sereno” no
brado: “Exterminemos todos esses brutos!” Dessa idéia resultaram os mais
terríveis massacres da história: o extermínio das tribos hotentotes pelos bôeres, as
selvagens matanças de Carl Peters no Sudeste Africano Alemão, a dizimação da
pacata população do congo reduzida de uns 20 milhões para 8 milhões; e, o que é
pior, a adoção desses métodos de “pacificação” pela politica externa europeia
comum e respeitável. (Arendt, 1989, p. 215).
Na reflexão sobre as imbricações entre raça e burocracia, Arendt (1989)
desenvolve a compreensão acerca da distinção histórica no cenário europeu, no qual a
expansão imperialista ultramarina desencadeou no contexto continental africano, o
mesmo modus operandi de que a expansão imperialista perpetrada internamente no
continente europeu foi utilizada pelo Estado-nação da Europa. Estes mesmos moldes,
métodos e práticas na exploração do continente africano, representou o holocausto
negro para os africanos, esta análise principia pela constatação a que iremos nos reportar
a Querino (1955), é a condição de homem e mulher negros africanos escravizados pelas
potências europeias, e neste caso específico transplantado por Portugal para o Brasil.
E, aproveitando o ensejo, deixamos aqui consignado o nosso protesto contra o
modo desdenhoso e injusto por que se procura deprimir o africano, acoimando-o
constantemente de boçal e rude como qualidade congênita e não simples condição
circunstancial, comum, aliás, a todas as raças não evoluídas. (QUERINO, 1955,
p.21-22).
O método imperialista continental utiliza a ideologia racial como arma política
na medida em que a aliança entre o capital e a ralé, faz ressurgir o nacionalismo tribal
excludente. O tribalismo é o nacionalismo dos povos sem emancipação política em
Estado-nação, que não participaram da expansão para fora da Europa.
O referido método é sustentado, sobretudo pelo pan-eslavismo nos moldes do
bolchevismo russo e do nazismo alemão. Essa estrutura do corpo político, Estado-nação
visualiza somente como nacional os integrados institucionalmente legais de nascitura
histórica nacional, possuindo ainda na sua raiz a identidade de classe configurada em
exército nacional.
Do ponto de vista sociológico, o Estado-nação era o corpo político das classes
camponesas europeias emancipadas – isto é, dos proprietários rurais – e é por isso
que os exércitos nacionais só puderam conservar sua posição permanente nesses
Estados enquanto constituíam a verdadeira representação da classe rural, ou seja,
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até o fim do século XIX. “O Exército”, como disse Marx, “era o ponto de honra dos
fazendeiros: transformados em senhores, o Exército os corporificava, defendendo
no exterior sua propriedade recém-adquirida. (...) O uniforme era a sua roupa de
gala, a guerra era a sua poesia; o seu lote de terra era a pátria, e o patriotismo era
a forma ideal da propriedade” O nacionalismo ocidental, que culminou no
recrutamento geral, foi produto de classes firmemente enraizadas e emancipadas.
(ARENDT, 1989, p. 261).
Nesta base, o conflito latente entre Estado e a nação só é manifestado na
modernidade na medida em que a Revolução Francesa instituiu os Direitos do Homem,
representada pela luta de classes, desencadeada pela atomização dos indivíduos. E, por
sua vez reforçada pelo positivismo progressista do século XIX, que insere o conceito
metafísico do homem divino.
A compreensão social do método positivista nacionalista encerra em si mesma
o pré-requisito das ideologias raciais, separando o mundo da ordem interna contra o
mundo oposto e desordenado dos diferentes. Esse equívoco de compreensão positivista
robustecido pela visão de natureza positivista é confrontado por Theodor Adorno (2014)
que aponta a falta de liberdade na racionalização do método no contexto interpretativo
da experiência social europeia, alimentando a linguagem totalitária dos indivíduos
atomizados na sociedade em formação.
Na própria sociedade se deve buscar a razão de que o modelo científico-natural
não lhe resulte aplicável e alegremente e sem limitações. Mas – a diferença do que
sustenta a ideologia e na Alemanha se pretende racionalizar as resistências
reacionárias – não porque seja preciso manter intacta a dignidade do homem, cuja
edificação trabalha laboriosamente a humanidade, frente alguns métodos que o
consideram uma parte da natureza. A humanidade erra quando sua pretensão
dominadora reprime a memória de um ser natural, perpetuando assim a cega
força da natureza, que quando se faz presente para os homens sua condição
natural. “A sociologia não é uma ciência do espírito”. Na medida em que o
endurecimento da sociedade vai reduzindo cada vez mais os homens à categoria de
objetos, transformando sua situação em uma “segunda natureza”, os métodos que
a convencem disso não constituem sacrilégio algum. A falta de liberdade do
método serve à liberdade ao testemunhar sem palavras a falta de liberdade
dominante. (ADORNO, 2014, p. 66-67)
Pode-se ver em Adorno (2014) a crítica que Arendt (1989) aponta quanto ao
resultado da sociologia positivista na unificação ética dos conceitos raciais, a uma
origem divina de um povo, e ao desprezo aos demais, como concebia o racismo nazista.
Por sua vez, também não há dúvidas de que o positivismo científico, a aliança entre o
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estabelecimento da relação raça e burocracia, raça passa a ser uma ideologia fabricada
com o intuído de legitimar e legalizar por parte do Estado-nação a submissão e a
inferiorização do negro africano diferente do branco europeu.
Decorrente desta concepção de mundo é o fato de que as massas flutuantes das
cidades modernas substituem a política pelo espírito da indústria; um povo passa a
representar a humanidade em função da incorporação da doutrina social positivista
burguesa. No fundo é a consciência tribal ampliada, via nacionalismo, para estabelecer
o antissemitismo como ódio contra os judeus. Esse nacionalismo resgata “deus” para a
luta política como verdade evidente. O Estado nacional incorporado pela visão de
mundo positivista agrega na sua constituição política a Razão de Estado.
Há que se ressaltar que o imperialismo no continente europeu tem sua
continuidade do imperialismo ultramarino no continente africano. Os governos
burocráticos, governando por decretos, desrespeitando leis e instituições, se mantêm de
forma invisível para a população, visto que não se sabe o que governa e quem governa,
assim sendo ninguém governa.
A esterilidade política do governo burocrático desencadeia a cultura do regime
totalitário como uma paixão irracional que incorpora nos movimentos e nos partidos,
colocando o apelo para as massas de partido acima dos partidos. E o monopólio político
de Estado desintegra o sistema de partidos europeus, provocando a ruína do Estado-
nação.
Neste cenário a iminente morte da democracia política é anunciada com o fim
da característica dos indivíduos privados de agir em conjunto e para proteger seus
interesses nos negócios públicos é dissolvida. Assim também foram as características do
fascismo e do nazismo, ungidos na ação multipartidária se transformaram em máquina
burocrática totalitária. A idolatria ao Estado totalitário condiciona a opinião pública e o
Estado se sobrepõe à sociedade.
O exército já não é mais constituído como identidade do Estado-nação, que fica
subordinado ao ditador no regime totalitário, as classes sociais e os movimentos de
unificação também ficam subsumidos ao regime imperialista totalitário, e por fim o
sistema multipartidário entra em colapso.
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O Estado - nação na Europa, sobretudo, no caso específico da unificação da
Itália e do Estado alemão na década de 1870, desencadeará na conferência de Berlim
(1884-1885, Alemanha) a concepção de Estado forte no qual o pangermanismo
estabelece que vivendo em Estado continental e sendo povos continentais, deveriam
procurar colônias no continente europeu. Estas nações conquistadoras fortes deveriam
submeter às nações fracas ao jugo das classes fortes e hegemônicas. O racismo (pureza
de uma determinada raça) será o pano de fundo para os movimentos de unificação
geopolítica e na criação do imperialismo continental.
Nesta forma de governo, o imperialismo continental, transformado em
transcontinental estabelecerá também as bases para a conquista colonizadora do Estado-
nação europeia no continente africano, pautado por administração burocrática e leis
racistas, que como consequência última inspirará como exemplo, na segunda metade do
século XX, a forma de racismo contra os negros o regime apartheid (separação entre
negros e brancos) na África do Sul, e na América a Lei Jim Crown nos Estados Unidos.
Os processos de libertação para vivenciar a liberdade, não aconteceram sem que
houvesse lutas de resistências locais e internacionais, tais como as realizadas pelos
direitos civis nos Estados Unidos e, a resistência armada realizada pelo Congresso
Nacional Africano (C.N.A.) na África do Sul.
Para Arendt (1989) a melhor ilustração sobre a desintegração geral da vida é o
ódio universal vago e difuso de todos contra um inimigo estereotipado segundo critérios
racistas, sem que ninguém pudesse ser responsabilizado pela atmosfera de desintegração
social. No ano de 1914 na Europa há a explosão do dia seguinte do conflito deflagrado
da primeira guerra mundial, houve uma reação em cadeia, sem controle social pautada
pela loucura e pelo desespero.
Em cada evento tais como: inflação elevada, desemprego, guerra civil,
migrações e situações de homens e mulheres apátridas como refugo da terra; se revelam
e, antes mesmo da disseminação da política totalitária, já havia um esqueleto de ódio
político.
Os partidos políticos que são a antítese dos próprios partidos descaracterizados
pelo medo, são substituídos pelo movimento totalitário sob a bandeira de que o Estado é
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o povo. As pessoas que passaram a ser consideradas refugos sociais são privadas de
todos os direitos, inclusive dos Direitos do Homem.
Agora todos estavam contra todos, e, mais ainda, contra os seus vizinhos mais
próximos – os eslovenos contra os thecos, os croatas contra os sérvios, os
ucranianos contra os poloneses. E isso não resultava do conflito entre as
nacionalidades e os povos formadores de Estados, ou entre minorias e maiorias: os
eslovacos não apenas sabotavam constantemente o governo democrático de Praga
como, ao mesmo tempo, perseguiam a minoria húngara em seu próprio solo,
enquanto semelhante hostilidade contra o “povo estatal” por um lado, e entre si
mesmas, por outro, animava as minorias insatisfeitas da Polônia. (ARENDT, 1989,
301).
A constatação de Arendt (1989) remete a preocupação teórica da política de
Hobbes (1997), quanto à sua visão do homem no estado de natureza, e o estado de
permanente, de conflito e guerra de todos contra todos. Neste caso, se está frente à
fragmentação do Estado nacional, “nação de minorias”, povos sem Estado, cenário em
que se torna impossível criar tratados de paz.
Os povos considerados como minorias sociais, se tornaram problemas de
apátridas, refugos, sem direito a ter direitos, nem mesmo direito de asilo. Em um
cenário de inversão de direitos, um apátrida para ser considerado cidadão poderia
arriscar-se a cometer um crime para ser preso e visto como humano frente à lei. Um
exemplo deste contexto histórico foram as brigadas de apátridas que lutaram nos
conflitos europeus.
As pessoas passaram a valer menos que um “cão sem pedigree”, essa era a sina
de um apátrida, que corria entre a naturalização e a desnaturalização, assimilação,
fixação ou deportação em massa; o apátrida era visto como uma anomalia social.
Enquanto a discussão do problema do refugiado girava em torno da questão de
como podia o refugiado tornar-se deportável novamente, o campo de internamento
tornava-se único substituto prático de uma pátria. De fato, os anos 30 esse era o
único território que o mundo tinha a oferecer aos apátridas. (ARENDT, 1989, p.
317-318).
A lógica do campo de internação será aplicada no campo de concentração,
configurados na redução linguística das denominadas “minorias” apátridas, mantidos na
ilegalidade de refugiados, ou cidadãos de segunda classe, este fato revela o fim dos
direitos do homem. Frente ao quadro de perplexidade desses direitos do homem, que
antes eram inalienáveis, irredutíveis e indeduzíveis de outros direitos ou leis, em que o
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próprio homem seria a sua origem e seu objetivo último, agora não passava de um
slogan. Nas senzalas no Brasil, Costa (1998) relata sobre a construção na forma de
barracão próximo à casa grande dos donos de escravos, onde eram presos os negros
escravizados a partir do tráfico desde o continente africano, possuía as mesmas
características dos campos de internação, concentração e extermínios estruturados pelos
nazistas na Europa.
Os castigos deixavam estigmas nos ombros, nos rins, nas faces, nas nádegas. Por
eles, conhecia o comprador a índole do negro. Durante muito tempo, esses sinais
não constituíram boa recomendação para o escravo. Às vésperas da Abolição,
quando a campanha pela libertação sacudira a opinião pública denunciando os
horrores da escravidão, eles passaram a ser considerados má recomendação para o
senhor. Os anúncios de escravos fugidos quando mencionavam sinais de castigo
explicitavam: castigos antigos, castigos provenientes de antigo senhor. Foi lenta
essa evolução da opinião pública, essa tomada de consciência da sociedade. Ainda
nas décadas de 1860 a 1870, registravam-se, amiúde, mortes de escravos por
espancamento. (COSTA, 1998, p. 344).
Pode-se abrir aqui um link na narrativa Arendtiana acerca do processo de
construção do campo de concentração, verdadeiras fábricas da morte, desencadeia por
exemplo, uma comparação com que diz o sociólogo Pierre Bourdieu (2003) que a
compreensão acerca do caráter de produção da ciência na sociologia, sem se conter nos
limites da cientificidade e analisar as produções simbólicas como instrumento de
dominação e visão de mundo. Neste caso, o ódio racial e os campos de concentração
puderam ser reconfigurados como imagem do período da colonização de Portugal e
Espanha ultramarina europeia na América Latina e Central, semelhanças processuais do
ódio racial contra a população negra, e a senzala como protótipo do campo de
concentração.
As ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e coletivamente apropriado,
servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais,
comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração
real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os
seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da
sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das
classes dominadas; para a legitimação dessas distinções. Esse efeito ideológico
produz a cultura dominante dissimulando a função de divisão na função de
comunicação: a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a
cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções
compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem pela sua
distância em relação à cultura dominante. (BOURDIEU, 2003, p. 10 -11).
15
A ideologia racista desenvolvida por homens brancos contra homens negros
demonstram claramente que a produção coletiva de extermínio do outro diferente, neste
caso, o negro, deu suporte para a criação de mecanismos de confinamento e de
sofrimento, ficando o dominador com a ideia de naturalização do sofrimento do
dominado, como uma ação de causas e consequências; como o castigo, espancamento e
morte absolutamente normais no processo de dizimação dos corpos dos dominados
escravizados.
Com o viés de compreensão da ideologia racial a pesquisa a partir das ciências
sociais oferece uma multiplicidade de métodos. O que se procura evidenciar neste
trabalho é a característica comum a diversos cientistas sociais quanto à referência da
experiência social dos atores e suas ações políticas. Neste cenário, opta-se pela
compreensão, enquanto caminho de pesquisa (método), que abre a possibilidade de
estudo bibliográfico e analisa no campo indutivo acerca da condição humana do negro
entre o passado e o futuro.
Quando Arendt (1989) busca a compreensão do fato do ódio racial ser
consequência da forma de organização da política imperialista, bem como do
estabelecimento e da promoção do pensamento racista, do racismo enquanto prática da
construção do Estado totalitário, a autora apresenta um homem com direito emancipado
da história e da natureza, por sua vez preso às ideologias totalitárias, se tornando
supérfluo, exatamente pela perda de direitos humanos e dos direitos de cidadão.
A morte civil de um indivíduo (Arendt, 1989) é quando não há, sobretudo, o
reconhecimento de seu direito como homem e este é tratado como animal não dotado de
liberdade e razão, perdendo o seu lar e a proteção social, herança vinculada à condição
humana.
Se um negro numa comunidade branca é considerado nada mais do que um negro,
perde juntamente com o seu direito à igualdade, aquela liberdade de ação
especificamente humana; todas as suas ações são agora explicadas como
consequências “necessárias” de certas qualidades do “negro”; ele passa a ser
determinado exemplar de uma espécie animal, chamado homem. Coisa muito
semelhante sucede aos que perderam todas as suas qualidades políticas distintas e
se tornaram seres humanos e nada mais. Sem dúvida, onde quer que uma
civilização consiga eliminar ou reduzir ao mínimo o escuro pano de fundo das
diferenças, o seu fim será a completa petrificação; será punida, por assim dizer,
por haver esquecido que o homem é apenas o senhor, e não o criador do mundo.
(ARENDT, 1989, p.335).
16
No jogo do poder a partir do discurso elaborado, há que se pensar a partir do
pensar do negro brasileiro, que os espaços de discussão são desdobrados a todo o
momento com da fala e o local da fala do pensar do negro. Nascimento (2009) aponta
caminhos sob a dimensão da afrocentricidade. Certamente a condição de judia, e
apátrida de Arendt, não a faz pensar na singularidade da questão racial contra o negro;
entretanto a estrutura de compreensão que desenvolve, abre espaço também para
questionamentos, da própria causa racismo contra o negro, como o outro, nos discursos
eurocêntricos, possibilitando o pensar do negro a partir da sua própria condição.
A crítica afrocentrista ao multiculturalismo encampa a de MacLaren e vai mais
longe. Para o afrocentrista, a questão não se localiza no reconhecimento das
identidades, mas na capacitação para participar do jogo democrático do poder.
Antes de pleitear o reconhecimento do outro, o afrocentrista quer construir as
bases para o pleno autorreconhecimento de seu povo e sua cultura, condição
necessária a essa capacitação. Prioriza então a crítica aos conceitos dominantes de
história e cultura africanas distorcidas pelo eurocentrismo, bem como a
reconstrução dos conteúdos por eles encobertos. (NASCIMENTO, 2009, p. 192).
E, ainda, o surgimento de governos totalitários é acompanhado pela produção
de homens bárbaros escravistas no seio da civilização global moderna fundamentando o
racismo. Há também o perigo dessas pessoas que pode ser seu número cada vez maior
ameaçar a nossa vida política, quanto à violência produzida por estes, a fim de destruir a
liberdade e a vida social construída pelos demais homens que não viveram e nem
compactuaram com o totalitarismo.
Neste cenário de declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem,
Arendt (1989) examina a cristalização dos fatores imperialistas como base da política
totalitária como destruidora da estrutura da civilização europeia, como um musgo de
ódio e violência que se espalhou pelas demais partes do mundo. Reportando estas
concepções para o cenário, observa-se que o Estado-nação falha na sua mais fundante
concepção. Falha também no século XX, no contexto da sociedade brasileira quando as
instituições oficiais compactuam ou são coniventes com projetos como o da redução da
maioridade penal, com os massacres perpetrados no campo contra a população rural
sem-terra e negra, bem como na área urbana com relação aos jovens negros
17
assassinados na “guerra civil não declarada” no contexto da violência da periferia dos
centros urbanos.
Assim pode-se constatar que o genocídio contra o povo negro possui suas
raízes no período colonial brasileiro e adentra o mundo moderno. Ocorre nos tempos
hodiernos uma naturalização de que espancar e eliminar negros é um hábito do passado,
presente e pode continuar no futuro. Essa crença pode ser encontrada, por exemplo, nas
palavras do jurista e sacerdote católico português Rocha (2017) quando reivindica
princípios cristãos, contudo sem questionar a escravidão.
Nas fazendas, engenhos e lavras minerais, ainda hoje (século XVIII) há homens tão
inumanos que o primeiro procedimento que têm com os escravos e a primeira
hospedagem que lhe fazem, logo que comprados aparecem na sua presença, é
manda-los açoitar rigorosamente, sem causa que a vontade própria de o fazer
assim, e disto se jactam aos mais, como inculcando-lhes que só eles nasceran para
competentemente dominar escravos e serem deles temidos e respeitados, e se o
confessor ou outra pessoa inteligente lho estranha e os pretende meter em
escrúpulo, respondem que é lícita aquela prevenção, para evitar que os tais
escravos no seu poder procedam mal e para que, desde o princípio, se façam e
sejam bons; e que uma vez que são seus, entra a regra de cada um poder fazer do
seu o que mais quiser, na forma que entender. (ROCHA, 2017, p. 136).
E, neste mesmo sentido, chama atenção à observação realizada por parte da
autora (Arendt, 1989) acerca de Portugal que persistiu no atraso nacional na
modernidade mantendo o modelo colonial expansionista e explorador. Fato este
decorrente do poder da igreja e da industrialização e modernização tardia em Portugal
com empresas de cunho liberal, e, quando se compara Portugal, com o modelo
industrial inglês ou de outras nações modernizantes europeias; evento ilustrativo, que
revela aspectos arqueológicos e genealógicos acerca do holocausto do tráfico negreiro
realizado por Portugal a partir do continente africano para o território brasileiro.
Os únicos países onde, ao que tudo indicava a idolatria do Estado e o culto da
nação ainda estavam em moda, e onde os slogans nacionalistas contra as forças
supra estatais ainda correspondiam ao interesse do povo, eram aquelas nações
latino-europeias como a Itália e, em menor intensidade, a Espanha e Portugal, cujo
desenvolvimento nacional havia sido seriamente prejudicado pelo poder da Igreja.
Em parte, devido a esse fator de atraso no desenvolvimento nacional, e em parte
graças à sabedoria da Igreja (que sensatamente reconheceu não ser o fascismo nem
anticristão nem totalitário em seus princípios, e apenas estabeleceu uma separação
entre Igreja e Estado que já havia em outros países), a atitude anticlerical do
nacionalismo fascista rapidamente deu lugar a um modus vivendi, como na Itália,
ou uma aliança, como na Espanha e em Portugal. (ARENDT, 1989, p. 290).
18
A sequência do estudo quanto ao racismo na concepção Arendtiana é
pertinente ao objeto de estudo – o racismo; na medida em que permite vislumbrar a
genealogia do pensamento racial e do racismo como preconceito de cor contra o negro
presente na sociedade brasileira contemporânea.
Em Arendt (1989) o declínio do Estado-nação representará a quebra da
promessa da manutenção do estado de direito e proteção dos indivíduos, na medida em
que não assegura o direito a ter direitos, análise por meio de diferentes caminhos
metodológicos pode ser observada também em Sartre (1978), Foucault (1996) e Moura
(1988).
A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados
da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei
ou da liberdade de opinião – fórmulas que se destinavam a resolver problemas
dentro de certas comunidades – mas do fato de já não pertencerem a qualquer
comunidade. Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais
perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem
oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interessasse por eles.
(ARENDT, 1989, p. 329).
A visão de Sartre (1978) percorre a mesma análise que Arendt (1989) para com
o racismo construído contra o judeu pelo antissemita na Europa, que representou senão
um pretexto para outras formas de racismos posteriores contra o negro, o amarelo, e o
homossexual. O racista tem dificuldade em aceitar o diferente no padrão estabelecido
por seu próprio contexto de crenças e valores. A multiplicidade racial e cultural de certa
forma agride os que concebem a raça pura como uma virtude e a degeneração seria a
miscigenação racial. Sartre (1978) registra ainda que o racista não compreende e não
entende o diferente e por isso o vê como uma ameaça de uma hipotética pureza
biológica; daí cria-se um encurtamento para o ódio e a violência racial, com a
subsequente guerra genocida e exclusão dos que não se enquadram nos padrões pré-
estabelecidos.
Não só a população alemã vê o diferente como ameaça os puritanos ingleses,
bem como a aristocracia francesa difundirá para os demais países europeus, por meio da
concorrência econômica, da ascensão política e dos conflitos sociais nacionais e
internacionais, os outsiders (não integrados) como uma ameaça. A denúncia dos fortes e
19
conquistadores contra os fracos e vencidos cria um cenário de polarizações violentas
sobre debilidades de outras raças que será o mote da ação política racista.
Assim o anti-semita se escolheu criminoso, e criminoso branco: ainda aqui foge às
responsabilidades; censurou os instintos de homicida, mas descobriu o meio de
saciá-los sem confessá-los. Sabe que é perverso, mas como pratica o Mal pelo Bem,
como todo um povo espera dele a libertação, considera-se um perverso sagrado.
Graças a uma espécie de inversão de todos os valores, de que encontramos paralelo
em certas religiões e, por exemplo, na Índia onde existe uma prostituição sagrada,
à cólera, ao ódio, à pilhagem, ao homicídio e a todas as formas de violência inerem,
segundo êle, a estima, o respeito, o entusiasmo; e no próprio momento em que a
maldade o inebria, sente em si a leveza e a paz que a consciência tranquila e a
satisfação do dever cumprido proporcionam. (SARTRE, 1978, p. 29).
Tanto para Sartre (1978) onde o racista antissemita por opção escolhe um
inimigo como portador do mal, neste caso o judeu, quanto para Foucault (2010), numa
visão comparativa as relações conflituosas inter-raciais assumem caráter de força e
motor na luta entre as raças para tanto, aponta que o século XIX terá como mote o
conflito racial como elemento constitutivo do bio-poder, e este irá desembocar no
nazismo. Ao retomar a soberania clássica, o Estado engendra no seio das populações a
guerra das raças com o racismo, estabelecendo o direito de vida e de morte. Neste
contexto há o aparato tecnológico disciplinar do corpo para a instauração da bio-política
com o intuito de eliminar as raças inferiores, as sub-raças, os indivíduos anormais,
degenerados, com o objetivo de esquadrinhar e normalizar os comportamentos. A
estratégia política e pública usa a morte do outro, o classifica como perigoso para a
purificação da raça superior. A guerra das raças, calcada na interpretação da história
oficial de soberania dará origem ao discurso do racismo, no qual as diferenças não se
misturam.
Aparecimento, portanto, no fim do século XIX, daquilo que poderíamos chamar de
racismo de Estado: racismo biológico e centralizado. E esse tema é que foi, se não
profundamente modificado, pelo menos transformado e utilizado nas estratégias
específicas do século XX. Podemos assinalar essencialmente dois deles. De uma
parte, a transformação nazista, que retoma o tema, instituído no final do século
XIX, de um racismo de Estado encarregado de proteger biologicamente a raça.
Mas esse tema é retomado, convertido, de certa forma em modo regressivo, de
maneira que seja reimplantado, e que funcione, no interior de um discurso
profético, que era justamente aquele em que aparecera, antigamente, o tema da
luta das raças. É assim que o nazismo vai reutilizar toda uma mitologia popular, e
quase medieval, para fazer o racismo de Estado funcionar numa paisagem
ideológica-mítica que se aproxima daquela das lutas populares que puderam, em
dado momento, sustentar e permitir a formulação do tema da luta das raças.
(FOUCAULT, 2010, p.69).
20
No Brasil, para Moura (1988) as consequências do pensamento racial
escravista contra a população negra e suas subsequentes formas de preconceito fez
emergir uma provocação no sentido de modernização das relações sociais.
Por mais que o racismo de Estado exerça de forma hegemônica, com força e
violência, políticas públicas e sociais racistas, há que se considerar que os que são
vítimas dessas políticas de Estado, ainda mantém sua condição humana enquanto
indivíduos providos de pensar e capacidade de agir em prol da liberdade e resgate da
vivência negada pela opressão totalitária. Como exemplo em terras brasileiras, um dos
aspectos mais relevantes na dinâmica das lutas contra a escravização do povo negro
foram os quilombos.
O dinamismo da sociedade brasileira, visto do ângulo de devir, teve a grande
contribuição do quilombola, dos escravos que se marginalizavam do processo
produtivo e se incorporavam às forças negativas do sistema. Desta forma, o
escravo fugido ou ativamente rebelde desempenhava um papel que lhe escapava
completamente, mas que funcionava como fator de dinamização da sociedade. As
formas “extralegais” ou “patológicas” de comportamento do escravo, segundo a
sociologia acadêmica, serviram para impulsionar a sociedade brasileira em direção
a um estágio superior de organização do trabalho. O quilombola era o elemento
que, como sujeito do próprio regime escravocrata, negava-o material e
socialmente, solapando o tipo de trabalho que existia e dinamizava a estratificação
social existente. Ao fazer isto, sem conscientização embora, criava as premissas
para a projeção de um regime novo no qual o trabalho seria exercido pelo homem
livre e que não mais simples mercadoria, mas vendedor de uma: sua força de
trabalho. (MOURA, 1988, p. 269).
Retomando o fundamento de Arendt e Foucault e comparando-o à Moura
pode-se compreender em diferentes distinções a análise do pensamento racial. A
primeira compreensão de distinção fenomênica é introduzida na estrutura do contexto
histórico, a partir da emancipação política da burguesia apresentada na formação dessa
mesma classe social dominante, que incorpora e apropria-se da exploração do trabalho
como mecanismo econômico para a produção do lucro e da riqueza financeira e
produtiva; a segunda distinção reflete a linguagem compreensiva, explicitando o
pensamento racial antes do racismo, contexto em que se permite compreender a
arqueologia do fenômeno e das ações da sociedade racista global; a terceira distinção é
definida pela compreensão de raça e burocracia, momento em que o “Grande Jogo” do
exercício de poder burocrático é manobrado a partir da violência, do extermínio e do
21
genocídio de grupos étnicos diferenciados pelo padrão ideologicamente construído pela
classe social dominante; na quarta distinção elabora-se a compreensão na perspectiva
política da construção do imperialismo continental, bem como dos movimentos de
unificação do Estado-nação; a quinta distinção compreende o declínio do Estado-nação
e o fim dos direitos do homem, com a subsequente construção dos regimes totalitários, a
substituição dos partidos e o fim dos direitos do homem com a consolidação do ódio
racial.
É neste cenário apresentado no parágrafo anterior, que governo sobre as raças
inferiores gestou no continente europeu o ressurgimento da política e dos métodos
imperialistas, os herdeiros do poder de consciência tribal ampliada engendraram como
estrutura do homem branco um sistema político opressor, e seu efeito bumerangue
desencadeou a desestruturação do Estado-nação europeia para a abertura do abismo
totalitário.
Em comparação ao governo das raças superiores de que trata a obra
Arendtiana, Origens do Totalitarismo, compreendendo-o como imperialismo colonial
europeu, este possui uma correspondência com a qual se pode compreender a condição
do negro escravizado no Brasil.
A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de
tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação
eficaz. Algo mais fundamental do que a liberdade e a justiça, que são os direitos do
cidadão, está em jogo quando deixa de ser natural que um homem pertença à
comunidade em que nasceu, e quando o não pertencer a ela não é um ato da sua
livre escolha, ou quando está numa situação em que, a não ser que cometa um
crime, receberá um tratamento independente do que ele faça ou deixe de fazer.
Esse extremo, e nada mais, é a situação dos que são privados dos seus direitos
humanos. São privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não
do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem. Privilégios
(em alguns casos), injustiças (na maioria das vezes), bênçãos ou ruinas lhe serão
dados ao sabor do acaso e sem qualquer relação com o que fazem, fizeram ou
venham a fazer. (ARENDT, 1989, p. 330).
É neste sentido que podemos compreender o tráfico negreiro como o
holocausto contra a população negra africana, negros afro-brasileiros e todo o conjunto
de negros da afro-diáspora; ser traficado para uma terra estranha, privado de liberdade
cujo objeto final é ter a vida consumida pelo trabalho escravizado (o trabalho liberta,
dizia slogan nazista); as senzalas no Brasil como campo de internação, concentração e
22
extermínio, verdadeiras fábricas da morte, bem como a sua continuidade nas favelas do
século XX e XXI; a banalidade do mal, nos suplícios e castigos contra o homem e a
mulher negra, sentenciados à morte sem sentido desencadeadora da apatia e do banzo
(tristeza pela incompreensão de ser condenado pelo sistema escravista); o ódio racial
como um sentimento racional elaborado a partir da ideologia racial em que o homem
branco europeu seria superior ao homem negro africano e afro-brasileiro; a condição de
apátrida do negro no Brasil, estar neste paísl, mas não ter direito a ter direitos; o navio
negreiro ou tumbeiros; como metáforas dos trens que transportavam os judeus para os
campos de extermínios na Europa; a riqueza inútil do homem branco supérfluo
conquistador português; a sede de castigo e vingança banal do senhor escravista e dos
seus feitores; bem como o genocídio e o extermínio burocraticamente administrados
pela supremacia racial branca no Brasil.
Do exposto devemos concluir que, somente a falta de instrução destruiu o valor do
africano. Apesar disso, a observação há demonstrado que entre nós, os
descendentes da raça negra têm ocupado posições de alto relevo, em todos os
ramos do saber humano, reafirmando a sua honorabilidade individual na
observância das mais acrisoladas virtudes (QUERINO, 1955, p. 23).
A configuração da formação social brasileira oficial encontrou mecanismos de
dissuasão e dissimulação procurando esconder o ódio racial e a violência contra a
população negra. No contexto dos anos de 1970, é descrito um cenário por Nascimento
(2016) que pode contemplar a narrativa contemporânea para a população negra.
Devemos compreender “democracia racial” como significado a metáfora perfeita
para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos
Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas
institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de governo, assim difuso e
profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e
cultural da sociedade do país. Da classificação grosseira dos negros como selvagens
e inferiores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de
erradicação da “mancha negra”; da operatividade do “sincretismo” religioso à
abolição legal da questão negra através da Lei de Segurança Nacional e da omissão
censitária – manipulando todos esses métodos e recursos – a história não oficial do
Brasil registra o longo e antigo genocídio que se vem perpetrando contra o afro-
brasileiro. Monstruosa máquina ironicamente designada “democracia racial” que
só concede aos negros um único “privilégio”: aquele de se tornarem brancos, por
dentro e por fora. A palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do
capitalismo que lhe é inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação,
aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície teórica
23
permanece intocada a crença na inferioridade do africano e seus descendentes.
(NASCIMENTO, 2016, p.111)
Tomado por Moura (1988) e reforçado por Nascimento (2016) e Querino
(1955), certamente o conflito racial no Brasil na contemporaneidade apresenta aspectos
que ora aparece no ódio racial e na violência muda e silenciosa, ora este conflito mostra
a sua cara tornando explícito o ódio e a violência contra a população negra no Brasil na
forma do preconceito racial no exercício do viver em sociedade, nos espaços públicos e
nas relações de interação social. São nos exemplos micros do cotidiano da vida privada
e pública é que encontramos ações e eventos manifestos de rejeição da comunidade
negra, por parte da comunidade branca.
A perspectiva deste contexto e no seu contraditório é corroborada na análise de
Ware (2004) acerca da categorização de branquitude. A análise pressupõe o pensar
crítico de como a hegemonia da pele de cor branca evidencia muitos indivíduos e os
torna uma força cultural dominante.
A visão sobre o racismo estruturado e estereotipado na branquitude desvela
como a cor da pele branca foi construída sob a ideologia essencializadora, desprovida de
plausibilidade, com concepções metafísicas, naturalizando e normalizando uma visão de
mundo a partir da cor da pele branca.
A superioridade da denominada identidade branca não é autoevidente,
entretanto, fornece elementos visíveis e sistemáticos para hierarquização das diferenças.
Determina quem irá se apropriar da maior fatia renda no trabalho formal, auferir a mais
valia, ocupar espaços geográficos privilegiados, concentrar o capital, deter o poder
político e estar abrigado no Estado de direito.
O conceito de branquidade pode recair no que se propõe a criticar ao manter o
branco em evidência e se permanecer no estereótipo para a análise e objeto de
compreensão política. Há que se recorrer à categorização dinâmica da visão histórica
para entender os processos de mudanças e funções dos indivíduos na sociedade para
problematizar a branquitude na visão de mundo construída socialmente. Como aponta
Fanon (2008) cenários nos quais o negro possuía o sonho onírico de ser branco, sem
poder sê-lo na pureza idealizada.
24
Conhecemos no passado, e, infelizmente, conhecemos ainda hoje, amigos
originários do Daomé ou do Congo que declaram ser antilhanos. Conhecemos no
passado e ainda hoje antilhanos que se envergonham quando são confundidos com
senegaleses. É que o antilhano é mais “evoluído” do que o negro da África:
entenda-se que ele está mais próximo do branco; e esta diferença existe não apenas
nas ruas e nas avenidas, mas também na administração e no Exército. Qualquer
antilhano que tenha feito o serviço militar em um regimento de infantaria colonial
conhece essa atormentante situação: de um lado, os europeus, os velhos colonos
brancos e os nativos; do outro, os infantes africanos. Lembro-me de certo dia,
quando, em plena ação, o problema era destruir um ninho de metralhadoras
inimigo. Por três vezes os senegaleses foram enviados, e três vezes rechaçados.
Então um deles perguntou por que os toubabs (brancos) não iam. É nesses
momentos que o antilhano não sabe ao certo se é toubab ou indígena, mas não
considera a situação preocupante, pelo contrário, a considera normal. Só faltava
essa, sermos confundidos com os pretos! Os antilhanos desprezam a infantaria
senegalesa e reinam sobre a negrada como senhores incontestável. (FANON, 2008,
p. 40).
Por outro lado, a herança do preconceito racial focado na cor de pele negra
contra a população negra afro-brasileira desencadeou reações, lutas e ações por
libertação e a vontade do exercício pleno da liberdade e essa condição é o combustível
das aspirações de igualdade política da condição humana dos negros afro-brasileiros.
O paradoxo entre trabalho e escravidão é descrito por Gorender (2010) na
mesma perspectiva, que Fanon (2008) descreve a alienação da pele negra por máscaras
brancas, e Arendt (1989) demonstra o desprezo do indivíduo por si mesmo.
Nenhum filósofo da Antiguidade Clássica escreveria uma apologia do trabalho
ainda mais nos termos de Hegel, como síntese da própria humanização do homem.
Para os antigos, o trabalho envilecia o ser humano, não era digno de homens livres
e nunca poderia dignificar o escravo. Uma concepção dignificadora do trabalho só
é desenvolvida na economia política burguesa clássica, que nele descobre a
substância do valor. Essa descoberta científica exerceu decisiva influência sobre
Hegel e explica os termos em que estabeleceu a dialética entre senhor e escravo.
Nesse último, encarnou abstratamente a humanidade trabalhadora que dá forma à
natureza, que a domina, com ela estabelecendo uma relação essencial. Não é
preciso encarecer a significação dessa tese para o marxismo.
Mas Hegel – como assinala Sanchez Valdez – via a sociedade indistinta, sob o
prisma ideológico burguês, que obscurecia a existência de classes antagônicas e a
luta de classes. Via o trabalho como objetivação e não como objetivação alienada.
Se nos voltarmos, contudo, à história real, ao escravo real, a dialética apresenta-se
a nós como o oposto da hegeliana. Porque o escravo real só conquistava a
consciência de si mesmo como ser humano ao repelir o trabalho, o que constituía
sua manifestação mais espontânea de repulsa ao senhor ao estado de escravidão. A
humanidade se criou pelo trabalho e, por mediação dele, se concebeu
humanamente – nisto reside a verdade da fenomenologia hegeliana. Já ao homem
escravo só foi dado recuperar sua humanidade pessoal pela rejeição do trabalho.
Tal a dialética concreta, num momento dado do desenvolvimento social.
(GORENDER, 2010, p. 105).
25
A compreensão do declínio do Estado-nação e o fim dos Direitos do Homem
projetará um cenário sombrio no qual o negro na condição de escravizado, teve que
superar duas condições: a primeira lutar pela libertação; a segunda até o presente
momento continuar lutando pelo direito a ter direitos visando o pleno exercício da
liberdade.
O tráfico de negros escravizados do continente africano para o Brasil,
representa o cenário mais completo na modernidade, do declínio do Estado-nação na
Europa, e a consequente expansão ultramarina de Portugal como potência da Europa a
utilizar a estratégia de expansão ultramarina para construir um Estado rico na Europa à
custa do tráfico negreiro e da mão-de-obra escravizada da população de negros e negras
africanos transportados para o Brasil, conforme aponta Querino (1955).
Em 1522, os mouros, rapazes e raparigas, devido ao aperto da fome, ofereciam-se
como escravos, somente para obterem a alimentação; e assim, embarcavam para
Lisbôa e Sevilha, para onde os navios seguiam carregados. As viagens do interior
para o litoral tornavam-se penosas, pois, seguiam os negros algemados, com dupla
canga de madeira que os prendia a dois e dois, pelo pescoço. A marcha durava
semanas e meses através de rios e florestas, mal alimentados, sem repouso, cabeças
descobertas expostas ao sol ardente, até o ponto de embarque como fossem, Lagos
e toda a costa de Guiné, que se constituíam o maior empório de exportação de
africanos para o Brasil. (QUERINO, 1955, p. 27-28).
Dessa maneira, na condição de escravizado o negro foi transportado para o
Brasil e por aqui permaneceu nesta condição formal até o ano de 1888. Entretanto, a
formalidade da abolição da escravização da comunidade negra, não impediu que a
exploração, a desumanização, genocídio e o racismo como forma de exclusão social,
política e econômica, permanecessem e permanecem até a contemporaneidade por
outras formas que não a escravização formal. Entre lutas e resistências à escravização e
contra as formas de racismo na contemporaneidade os negros e negras brasileiros,
constroem mecanismos de lucidez para enfrentamentos contra os aparatos do sistema
racista moderno. Desde as primeiras comunidades especificas negras na forma de
Quilombos com estruturas social, econômica e política para de resistir à opressão por
parte dos brancos no período colonial brasileiro, e mesmo hoje na fase republicana, as
organizações e os enfrentamentos promovidos pelos diversos grupos do movimento
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negro organizados na modernidade, os negros nunca deixaram de resistir ou se
submeteram a alguma forma de cooptação racial hegemônica do mundo dos brancos.
1.2 O Negro na Condição de Escravizado
Compreende-se que a questão posta por Arendt: o que estamos fazendo com o
nosso planeta e com a vida que é dada ao homem na terra a partir da natalidade,
pode aportar o problema específico e singular do negro escravizado e como
consequência a condição de inferiorização racial do negro consolidado no processo de
colonização do continente africano por parte de nações europeias; estabelecimento de
cenários de violência de Estados europeus contra as ações das lutas por independência
dos países do continente africano; cooptação das lutas por libertação do
neocolonialismo no continente africano; sobretudo, com o cenário da modernidade
consolidando o preconceito racial contra os negros da África e da afro diáspora pelo
mundo.
O enfretamento do preconceito racial contra os negros e a questão da exclusão
da etnia da comunidade negra nas sociedades globalizadas da contemporaneidade, se
torna uma questão sine qua non e limite para a vida de toda a humanidade, visto que o
racismo praticado contra o negro é uma violência sócio-política e econômica, que sem
reconhecimento de cidadania e direitos e nem de direito a ter direitos, não possui um lar
autêntico em canto algum, e é visto como pária e apátrida em qualquer território que
sobreviva a partir da afro diáspora.
Visto que, a cultura e natureza intercambiadas no mundo complexo da
modernidade do século XXI, já não aceita mais atitudes e pensamentos irracionais e
falácias como a da supremacia racial de brancos sobre os negros, sobretudo, quando o
racismo é disseminado contra os negros na tentativa de inferiorizá-los é transformado
em uma patologia social que afeta e adoecem brancos e negros como evidenciado neste
trabalho e reafirmamos aqui para que fique bem clara que nesta patologia social, por
mais que o branco insista em criar estereótipos contra os negros, como já denunciava
Frantz Fanon, o racismo desumaniza também o branco.
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Agora podemos propor um padrão. Para a maioria dos brancos, o negro
representa o instituto sexual (não educado). O preto encarna a potência genital
acima da moral e das interdições. As brancas, por uma verdadeira indução,
sempre percebem o preto na porta impalpável do reino de sabás, das bacanais, das
sensações sexuais alucinantes... Mostramos que a realidade desmente todas essas
crenças. Mas tudo isso se acha no plano do imaginário, ou, na pior das hipóteses,
no do paralogismo. O branco que atribui ao negro uma influência maléfica regride
no plano intelectual, pois, como demonstramos, ele se inteirou desses conteúdos
com a idade mental de oito anos (periódicos ilustrados). (FANON, 2008, 152).
A questão colocada por Arendt: o que estamos fazendo com o planeta e com
nossas vidas, imbrica com a citação de Fanon (2008) na medida em que é
necessariamente uma questão política por abarcar também, no caso específico do
racismo contra os negros, o infinito passado descronologizado, bem como um infinito
futuro também descronologizado e desmemoralizado quando da origem da criação dos
racismos nas sociedades; constatando que em um dado momento se é racista sem se
suspeitar quando este teve seu início, e que, portanto, também não há um horizonte para
o seu fim. A saída deste impasse passa pela descolonização do pensamento de brancos e
negros, visa uma nova via para uma humanidade comum.
Arendt inicia a obra A Condição Humana já no prólogo colocando o evento
ocorrido em 1957, que foi o lançamento do satélite artificial (Sputnik) do país da Ex-
República Socialista da União Soviética, atual Rússia, como o marco de um artificio
humano sobre o qual devemos refletir a respeito do mundo comum da humanidade.
Segundo a autora este evento ultrapassa a todos os até então na história, visto que é a
demonstração de a humanidade não permanecerá para sempre presa à Terra.
Se a humanidade engloba negros, brancos, asiáticos e uma pluralidade de
diversidade de múltiplas etnias, consolida-se aqui a questão central deste trabalho, que
analisa o racismo consolidado contra os negros, estruturante na exclusão da comunidade
negra, enquanto parte da espécie humana como o problema do que estamos fazendo
com as comunidades negras local e global, quando as excluímos com a falácia da
inferioridade racial. O racismo, Wieviorka (2007), é uma construção social, política
econômica e ideológica que pode segregar os diferentes em diferentes espaços, ou no
mesmo tempo e espaço ser ativo de forma dissimulada, no racismo:
Noção tão ambígua quanto a de segregação, uma vez ela também designa ao
mesmo tempo um processo e seu resultado, a discriminação racial é suscetível de
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exercer-se em todos os domínios da vida social, no acesso à educação, à saúde, ao
emprego, à moradia, no interior da empresa e nos locais de trabalho, por vezes
também nas associações, até mesmo nos sindicatos, no funcionamento da justiça,
na polícia. Aparece também na maneira como os grupos vítimas do racismo são
tratados nas mídias, na televisão, no cinema, na publicidade, quando são
esquecidos, ignorados, tal como o “Homem Invisível” do belo livro de Ralph
Ellison, apresentados sob uma luz particularmente negativa, ou, ao contrário,
estetizados de uma maneira que acentua características físicas particulares.
(WIEVIORKA, 2007, p. 68-69).
Denota-se aqui uma preocupação tanto em Wieviorka (2207), quanto em
Arendt (1989) representada pelo divórcio que acaba ocorrendo entre o pensamento e
conhecimento, é a trava que coloca também o racismo contra os negros em segundo
plano, dissimulando como se não fosse um problema da realidade concreta da
organização social na modernidade. Este divórcio entre o pensamento e conhecimento
obnubila a própria capacidade dos homens em perceber as consequências de suas ações,
permeadas, por exemplo, como desenvolvimento extremo da produção industrial das
máquinas de produção e serviços, que de certa forma tecnicamente descarta os homens
como seus criadores, possibilitando a condição de escravos indefesos para a toda a
humanidade.
Há o discurso lógico da ciência, discurso este questionável quando se examina
mais profundamente as tautologias do seu início no cartesianismo, no darwinismo e no
positivismo; que fora antes estabelecido para consolidar as prerrogativas do advento da
automação como sendo a libertação do homem do fardo do trabalho, extenuante e
mecânico suscitado desde a Revolução Industrial da era moderna, atingindo seu auge no
mundo moderno.
A condição humana dentro destes parâmetros aponta para o horizonte:
O que nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores
sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada
poderia ser pior. (ARENDT, 1991, p. 13).
O desafio aqui posto é analisar os eventos para entender a alienação no mundo
moderno nos seus aspectos culturais e naturais, para tanto é necessária à compreensão
das ações e eventos dos homens na história. A questão central complementada por
Arendt (1991): o que estamos fazendo? Pode ser alargada com a pergunta o que
estamos fazendo contra o negro? Racismo, escravização e preconceito racial, são
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manifestações elementares da condição humana, que estão presentes como eventos
históricos, sobretudo, pela suspensão do livre pensar. O pensar instrumentalizado
causou a derrota do livre pensar ao estereotipar o negro como um não humano. Impediu
por exemplo, a capacidade de criar novas relações sociais e políticas para além do
mundo do trabalho do sistema de produção capitalista. Considera-se para tanto, os
aspectos da vida privada construída para as relações sociais dos homens entre seus pares
mais próximos, e, também as contradições, conflitos, transformações e enfrentamentos
nas comunidades, nos espaços públicos e nas mediações políticas para além dos
sistemas pré-determinados. O destino comum de uma sociedade de trabalhadores sem
trabalho passa pelo esgotamento da própria forma como o trabalho foi concebido, e
antes deste cenário a mão de obra escrava foi o condicionante para exercer o trabalho
em condições desumanas, conforme atesta Querino (1955):
Se o escravizado não podia seguir o bando, era esfaqueado, enforcado ou deixado
ao abandono, exausto de fome “Sempre o mesmo motivo para o assassínio; furioso
pela perda do seu dinheiro, o dono alivia a sua cólera matando o escravo que não
pode continuar” (Livingston – Viagens de exploração, p. 95). Os traficantes, ao
receberem a mercadoria, marcavam-na com um ferro em brasa, nos peitos, nas
costas, nos braços e no ventre, de acordo com a senha convencionada pelos
consignatários no Brasil. De modo que, aqui chegando, cada qual distinguia o que
era seu. Está averiguado que os primeiros escravizados chegaram ao Brasil em
1538, em uma nau pertencente ao famigerado Jorge Lopes Bixorda, que, muito
antes, em 1512, levara para a Europa alguns indígenas como espécie do tráfico, ao
preço de três mil e quinhentos réis, por cabeça. (QUERINO, 1955, p. 28).
Nessa perspectiva e tomando a expressão A Condição Humana apresentada por
Hannah Arendt, que visa compreender o conceito de condição mais como qualificação
da condição para a existência, do que um condicionamento histórico a-priori ou pré-
determinado inevitavelmente, portanto, é o próprio homem que se condiciona a viver a
partir de suas próprias criações, e não por um sistema metafísico histórico determinante.
A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi
dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles
entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. O
mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas
atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência
exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos. Além
das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a
partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições que, a
despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força
condicionante das coisas naturais. (ARENDT, 1991, p.17)
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É, neste sentido citado que os homens são seres condicionados, independente
do que façam, o que adentra o mundo humano é a ele incorporado pelo esforço humano
faz parte da condição humana. É exatamente aqui que entra a questão central deste
trabalho quando se elabora a questão do Racismo Contra o Negro, ser uma questão
condicionante das relações sociais, econômicas e políticas quanto à relação das etnias
branca e negra em conflito permanente mudo ou alvoroçado, violento fisicamente e
moral ou pela violência muda da omissão e da alienação.
Mas é, sobretudo, uma ideologia criada de superioridade da etnia branca contra
a inferiorização etnia negra. É nesta parte do trabalho que o título central terá a
incorporação da narrativa do Negro na Condição de Escravizado. Tendo em vista que
nenhum homem ou mulher negra tenha uma condenação original de nascer
escravizados, fica evidenciado que o negro é reduzido à condição de escravizado pela
construção social dos homens brancos racistas. As ações na amplitude do cenário da
vida humana, ou que esteja na relação com esta vida é caracterizado pela condição da
existência humana, a condição humana é complementar à existência humana pelo
próprio impacto da realidade do mundo. Dito isto, será evidenciado que a escravização e
o preconceito racial são uma condição humana criada pelo próprio homem branco,
condicionante da existência humana dos homens e mulheres negros.
Pela primeira vez na história humana, o nome Negro deixa de remeter unicamente
para a condição atribuída aos genes de origem africana durante o primeiro
capitalismo (predações de toda a espécie, desapossamento da autodeterminação e,
sobretudo, das duas matrizes do possível, que são o futuro e o tempo). A este novo
caráter descartável e solúvel, à sua institucionalização enquanto padrão de vida e à
sua generalização ao que mundo inteiro chamou o devir-negro do mundo.
(MBEMBE, 2014, p 18).
A partir da concepção do escravismo visando destituir o negro de sua condição
humana, criado pelo próprio homem branco, é que será analisado o Negro na Condição
de Escravizado, bem como os modos de resistências criados pela comunidade negra
como mecanismo de luta política no espaço público, por trabalho formal, inserção junto
à tradição do conhecimento público e comum da humanidade altamente tecnologizada.
Este fato, se assim for concebido pela não alienação entre o pensamento e o
conhecimento, poderá fazer com que a comunidade negra possa interagir e propor como
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parte da tradição cultural comum da humanidade e da natureza, alternativas à destruição
do planeta Terra e da aniquilação da vida em comum, e das sociedades livres dos
racismos. Visto que, como afirma Mbembe (2014) o devir negro escravizado pela
tecnologia irá escravizar a todos negros e brancos, pois o divórcio entre conhecimento e
pensamento suspende a capacidade de pensar o que estamos fazendo. Mesmo que
incertas consequências da ciência tenham grande significado político a relevância do
discurso que faz do homem um ser político, fica comprometido.
A automação das atividades humanas na modernidade subjuga as verdades que
ficam além da linguagem e que possuem grande relevância para o homem no singular,
poderá transformar a sociedade, numa sociedade de operários, situação na qual a
liberdade perde o significado por estruturar uma sociedade de trabalhadores sem
trabalho. Esta é a questão proposta: pensar o que estamos fazendo, e pensar é a
atividade mais pura da mente humana, que sem a liberdade não pode ser exercida
plenamente no mundo moderno.
Escravizar o negro no e a partir do continente africano não foi uma escolha
aleatória por parte da comunidade dos povos brancos dos países europeus, no século
XVI. Trata-se antes de tudo de um projeto de expansão econômica comercial e
marítima, visando à expansão do Estado-Nação, da Europa, que estava em declínio,
sobretudo, para abrir novas fronteiras ao modo de produção capitalista incipiente
naquele momento no contexto europeu, mas que já necessitava de matérias prima e
novos mercados para exploração e negócios.
Foi dentro do conjunto dos eventos sínteses do espirito do tempo da era
moderna, identificada por Arendt (XVII-XX) consolidados com a ocupação das
Américas pelos países europeus, com a invenção do telescópio, e a reforma protestante;
distinto do mundo moderno, registrada a partir do ano de 1945 do século XX com o fato
das explosões da bomba atômica, cenário este que podemos compreender nestes últimos
quase quinhentos anos que a escravização dos negros como mão de obra escrava e o
tráfico negreiro foram concebidos e suas terras no continente africano foram
ambicionadas e invadidas para suprir os anseios da fúria devoradora do capital mercantil
e industrial europeu.
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O que para a narrativa dos historiadores constituía a era moderna, tempo
histórico também da invasão no continente africado pelas potencias europeia, no mesmo
espaço de tempo, para os negros do continente africano era o abismo do inferno, que se
abria ao ser traficado do continente africano para outras terras, aqui neste caso singular
para o Brasil.
Nada igualmente pode dar ideia exata da imundice horrível de um navio carregado
de escravos. Acumulados, ou antes, embarrilados como se acham os negros, torna-
se quase impossível limpar o navio, que é de ordinário abandono, à falta de um
Hércules assáz temerário para varrer essas novas estribarias d’Augias ...Não resta
dúvida de que , si um branco fosse mergulhado na atmosfera em que vivem os
desgraçados negros, seria imediatamente asfixiado. (QUERINO, 1955, p. 30).
Neste cenário é estabelecida a ocupação, exploração escravização dos homens,
mulheres, crianças e idosos negros africanos sob a ideologia das raças. Na qual a raça
branca dita superior e civilizada, irá dominar, cristianizar e capturar os negros
inferiorizados como peça de reprodução do capital, num primeiro momento capital
mercantil como mão de obra escrava, e depois como mão de obra não remunerada para
extração de matéria prima, e uso intensivo na produção dos primeiros engenhos de cana
de açúcar, minérios e plantacion (plantação/agricultura) vindo a constituir a exploração
mercantil nas Américas para o comércio internacional.
A captura para o tráfico de negros e negras no continente africano para as
Américas no contexto interno africano podem ser compreendidos, por exemplo, a partir
da narrativa da escritora camaronesa Leonora Miano (2017) cuja resenha da obra: A
Estação das Sombras foi desenvolvida por mim e está indicada nas referências
bibliográficas.
A autora, Miano, descreve os eventos internos no continente antes das partidas
das embarcações para os continentes americanos. Para negros e negras afro-brasileiros
da afro diáspora por exemplo, ao rememorarmos as origens se encontra o imaginário
coletivo do tráfico transatlântico negreiro como herança de nossa ancestralidade de
tempos imemoriais, como referência e fundamento consolidado quanto às nossas
origens.
Percebe-se que o registro do evento do tráfico transatlântico negreiro fica mais
latente, solidificado e identificado, por carregar a tradição da imaterialidade oral e
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revelar na materialidade da escrita que possui o dom de permanecer imortal no tempo
conhecido, visto que tem um início, contudo não tem um fim. É como se a história do
tráfico transatlântico perpassasse a cada um que foi escravizado e chegasse aos afros
descendentes contemporâneos com uma força discriminatória descomunal, e ao mesmo
tempo revelasse parte de nossas origens.
A compreensão pode fluir a partir da Aurora Fuliginosa, descrita por Miano na
qual se introduz o cenário de destruição, violência, amargura e holocausto provocado
por conflito entre Clãs, na África camaronesa trazida pela tradição oral e outros
documentos. Neste caso específico o clã Bwele contra o Clã Mulongo, que possuíam a
mesma matriz original na formação, porém divididos a partir da expansão geográfica e
política das monarquias que eram unificadas.
O motivo do ataque, não é evidenciado no primeiro episódio da obra citada,
entretanto, vai se revelando como sendo a estratégia dos “homens de pés de galinha”
(assim chamados pela roupa que cobriam os seus corpos e adereços colocados nas
canelas e nas botas) que eram os europeus colonizadores que buscavam num primeiro
momento o escambo com as comunidades afros do litoral de subsaariano do continente
africano; e, posteriormente num segundo momento com troca de especiarias e armas de
fogo. Passaram a exigir então que, escravizassem homens e mulheres negros, que
servissem de mão de obra para as colônias europeias. Os Bwele entregaram os seus
próprios serviçais, para posteriormente atacarem o Clã Mulongo, escravizar homens e
mulheres e entregá-los aos europeus.
A narrativa de Miano dá a sensação de continuidade, e que esse tempo de
colonialismo imperialista não se esgota e está presente nos testemunhos da oralidade
conforme ela própria utiliza deste recurso, ao buscar explicações de sua mãe, nos
tempos atuais sobre o esclarecimento quanto aos aspectos culturais da raiz de seu povo,
trazidos na memória dos ancestrais. Assim, descreve a massa fuliginosa que cobria as
casas do povoado Mulongo, após o incêndio e destruição das casas, inserindo nesse
cenário o desaparecimento de doze homens da aldeia e o subsequente desespero de suas
mães. É interessante observar todos os aspectos dos rituais e da tradição afro presentes
no pós-tragédia. A partir da narrativa das mulheres personagens Eyabe e Ebusi têm a
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descrição da saga da mãe ao buscar o filho sequestrado entre os doze homens, levado
como escravo pelos Bwele para ser comercializado com os europeus.
Destaca-se também o papel feminino como rompedor de fronteiras e desafios no
sentido de esclarecer o fio da história desconhecido neste cenário específico, antes de
fazer parte dessa obra. Nesse ponto, não há como não lembrar e transpor para o Brasil
um paralelo, rememorando a saga de Luísa Mahin, ao procurar seu filho Luis Gama,
negro afro brasileiro escravizado, vendido a diversos senhores em diferentes cidades
brasileiras, cuja desestruturação familiar, humana e pessoal é narrada pela escritora Ana
Maria Gonçalves (2006).
Retomando a obra de Miano e num estudo comparativo, há um mesmo ambiente
de sombra e escuridão provocada pelo sequestro e desaparecimento, a priori sem
explicação e que necessita ser esclarecido, na narrativa que não é só contar um evento,
mas trazer à tona todo um ciclo de desumanização e holocausto provocado por ações
políticas e econômicas do povo branco sobre o povo negro.
Na narrativa de Miano, se encontra o chefe de Mukano que também sai na
tentativa de resgate dos seus companheiros Mulongos e ao adentrar o território Bwele,
encontra seu irmão Mutango, agora rendido, servidor e traidor junto aos Bwele, tendo
ajudado no ataque a aldeia Mulongo. No jogo de conflitos e traições, o guerreiro
Bwemba, explica a Mukano que assim que os Bwele, não precisar mais de Mutango,
este será emasculado ou terá sua língua cortada e será serviçal do Bwele ou será
entregue como escravo aos homens de pés de galinha. Mukano recorda que o seu irmão
Mutano, traidor, havia praticado também incesto e pedofilia com a própria filha, e que o
castigo do irmão não seria desproporcional.
Como sequencia deste enredo Miano, expõe as formas de resistência das
comunidades afros mais fragilizadas, em termos de armas de guerra, para fugir dos
inimigos de Clãs armados pelos estrangeiros que caçavam negros e negras para
escravizar. Neste cenário há a descrição da narrativa de Eyabe que na luta da busca
pelos homens sequestrados e pelo filho também vítima do sequestro da aldeia Mulongo,
depara-se com ambientes hostis da floresta, e caminhando em direção ao oceano
encontra os povos das águas; assim denominados por construírem suas habitações sobre
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palafitas, aproveitando das marés, estabelecem um mecanismo natural de defesa contra
os inimigos oportunos.
Descreve Miano ainda que, num acidente Eyabe é salva por habitantes deste
povoamento, quando estava cansada e sem forças quase afundara no lamaçal que
protegia o lugar. Há ai, o encontro com Mutimbo, um dos homens sequestrados pelos
Bwele, que ao oferecer resistência foi ferido na coxa por uma flecha envenenada e
deixado para morrer, o qual também foi salvo pelos habitantes aquáticos. Mutimbo
descreve para Eyabe o cenário da noite de incêndio ocorrido na aldeia dos Mulongos, e
como os doze foram capturados, acorrentados e levados para serem comercializados
como escravos. Esta parte da obra de Miano é carregada de narrativas, lembranças das
personagens, o valor das Leis da comunidade, a tradição como estruturadora da vida
cotidiana dos povos afros.
A narrativa segue para que se possa compreender o cenário escolhido como
exemplo, para demonstrar as tragédias causadas pelo processo de invasão e ocupação de
comunidades negras no continente africano. Há a representação de fagulhas espalhadas
pelos estrangeiros escravocratas para dividir os Clãs, provocar guerras e mobilizar
inimigos, aproveitando-se do cenário caótico capturar, escravizar e traficar o maior
número possível de homens e mulheres afros para as colônias europeias.
Neste cenário Miano, descreve a crença religiosa, sobretudo na força de Inyi,
representação feminina do criador que encarna o mistério da gestação e do
conhecimento, na qual esclarece o sentido das sombras, que paira sobre as
comunidades. A aliança do mal de Clãs caçadores de homens e mulheres, com os
homens de pés de galinha (estrangeiros) será desvelada, e todas as formas de destruição
das terras africanas virão à tona. Há que se ressaltar serem os homens de pés de galinha,
como “galinhas” são homens agindo no afã da cobiça e da destruição, contrariando a
própria condição humana.
Por fim Miano descreve com maestria o processo de destruição física e material
dos Mulongos; entretanto, fica evidente que o patrimônio imaterial, e a memória
herdada na tradição oral são resgatados. Eyabe e Ebusi personagens que caracterizam o
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recebimento das falas, da memória e das narrativas dos cativos que escaparam do navio
negreiro, mais tarde denominado tumbeiro, no sentido de tumbas de sepultamento.
Há também a descrição de um segundo ataque perpetrado pelos Bwele contra os
Mulongos, que havia destruído fisicamente por definitivo a aldeia. Restara as essas
mulheres o sepultamento dos corpos deixados expostos. Os cadáveres nutriram o solo
do país, “gerações se passaram, mas nós continuamos a ser o seu sangue”. As
considerações traçadas até aqui são parte de uma resenha reelaborada que desenvolvi da
obra de Miano, cujo título: A Estação das Sombras, possui contundência impar sobre a
construção dos eventos da história dos negros no processo da afro diáspora, que
permanece no tempo presente como o agora de um passado que ainda não passou, e de
um tempo presente de liberdade plena e exercícios de direito a ter direitos, que custa a
chegar para as comunidades de povos negros, nas Américas e ainda em partes
significativas do continente africano.
Nessa perspectiva o cenário da chegada dos negros africanos escravizados no
Brasil (Querino, 2955) reporta mais negros mortos no trajeto desde a saída do
continente africano, do que os que realmente aportaram em terra:
Para fazer chegar 65 mil negros ao Brasil, fora preciso arrancar 100 mil da Costa
d’África, e desses 65 mil morreram comumente 3,4 ou 5 mil nos dois meses
subsequentes à sua chegada. “Se as antigas matanças de prisioneiros de guerra a
fio de espada: se o degolamento dos inocentes; se as fogueiras ou autos de fé da
inquisição, crimes perpetrados na praça pública e no meio do povo parecem-nos
horríveis, não obstante a diferença dos tempos, o que diremos desse novo gênero de
suplícios consumado, em grande parte, nas praias desertas ou nas solidões do
oceano, entre o algoz e a vítima, e perante a majestade do supremo vingador de
todas as vitimas?” (Cartas do Solitário – do Dr A.C. Tavares Bastos, 1863).
(QUERINO, 1955, p. 31).
Neste cenário há o forte quadro de escravização do negro no Brasil. Embarcado
como peça para as Américas, e especificamente se reportando ao tráfico negreiro entre
Portugal e Brasil, o negro constituiu o ser inferiorizado, não humano que deveria servir
de mão de obra para ocupação, trabalho escravo e mais valia para o capital mercantil em
desenvolvimento nas terras brasileiras. A relação de raça dita superior do branco
português contra a raça inferiorizada do negro africano e escravizado no Brasil, é o pilar
que sustenta nos tempos atuais a exclusão social política e econômica dos negros da
afro diáspora que nascidos no Brasil serão objetos do genocídio racial engendrado na
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política de exclusão do tecido social, que por sua vez, estruturará o Racismo Contra os
Negros, na contemporaneidade.
Na era moderna, período de 1817– 1818 a população de negros escravizados no
Brasil era de 1.930.000 aproximadamente, esses números constituem a metade da
população do total de brasileiros que era de 3.818.000, conforme, Malheiro (1944)
citado por Conrad (1985). Esse dado é significativo na medida em que trezentos anos
após o início do tráfico negreiro a população de negros e negras sobreviventes ao
holocausto negreiro era de quase dois milhões, de uma estimativa de aproximadamente
5.000.000 de negros e negras traficados entre o continente africano.
Em estudos anteriores por mim desenvolvidos Osvaldo (2018) traço algumas
considerações sobre este itinerário, conforme apontamentos a seguir.
A história do povo negro no Brasil é intrínseca a constituição do território
geográfico, bem como a formação social da nação. Vítima do tráfico negreiro europeu,
sobretudo de Portugal imperial, para povoamento e colonização das terras brasileiras, os
negros e as negras oriundos de vários pontos do território do continente africano,
traficados como escravizados e escravizadas ocuparam as terras coloniais da metrópole
portuguesa como indivíduos realizadores de trabalho forçado na condição de sub-
humanos desprovidos da liberdade política e com a única certeza de um caminho sem
volta.
Para o sociólogo Moura (1989), referenciado a partir da obra: “História do
Negro Brasileiro”, a história tem início por volta do ano de 1549, quando o primeiro
contingente de negros africanos escravizados é desembarcado no litoral brasileiro, em
São Vicente(SP). Entretanto, como o tráfico não é um processo econômico e comercial
regulamentar e legal há múltiplas interpretações históricas sobre o início e registros de
negros desembarcados em terras brasileiras, como por exemplo, a afirmação na quais
Moura (1989) aponta dados do início do tráfico negreiro da África para o Brasil muito
próximo daquele pesquisado por Querino (1955):
Na nau Bretoa, para aqui enviada em 1511 por Fernando de Noronha (traficante
português de escravos) já se encontravam negros no seu bordo. Essa presença,
como vemos, confunde-se com a formação da Colônia e, depois, do Império.
(MOURA, 1989, p. 8).
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Distingue-se aqui a presença do negro no Brasil como escravo aleatoriamente
traficado, com a fase da exploração econômica de povoamento e colonização como
política econômica de exploração de terras e território com o trabalho escravizado dos
negros.
A contabilidade sobre a quantidade de negros escravizados e traficados para o
Brasil também possui grande controvérsia entre os pesquisadores com relação ao
número exato de indivíduos traficados, relativizados segundo o método estrutural de
pesquisa, tempo histórico, dados disponíveis e fontes primarias da pesquisa. De acordo
com o crescimento da colônia brasileira atrelada a Portugal, o fluxo demográfico aponta
para um crescimento exponencial de indivíduos negros escravizados assentados nas
terras brasileiras.
Para fins didáticos da abordagem sobre a quantidade de negros traficados e do
evento histórico do tráfico negreiro para o Brasil, tendo em vista que o objeto de estudo
é demonstrar o negro real e vítima do racismo, bem como sua luta por libertação para
poder agir livremente, seguindo o referencial do sociólogo Moura parte-se aqui da
premissa quantitativa do quadro apresentado a seguir (MOURA, 1989, p.10).
NÚMERO DE ESCRAVOS ENTRADOS NO BRASIL
(avaliação feita baseada em estatísticas aduaneiras)
Período Região Entradas anuais Total ano Total da importação
século XVI todo o Brasil - - 30.000
século XVII Brasil holandês 3.000 8.000 8.000
Pará 600
século XVIII Recife 5.000
Bahia 8.000
Rio de Janeiro 12.000 25.000 2.500.000
Século XIX Rio de Janeiro 20.000 50.000 1.500.000
(até 1850)
Durante o - - - 4.850.000
tráfico
Fonte: MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. São Paulo, Nacional, 1935.
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Este quadro apoiado em critérios estatístico aduaneiro citado por Moura (1989)
apresenta uma dimensão referencial de cálculos que variam, se considerar o
contrabando de cinco milhões de negros, a de dez milhões de negros escravizados e
transportados da África continental para o Brasil, dependendo da fonte consultada.
Entretanto, as divergências quanto à quantidade da população negra africana traficada
para o Brasil, não elimina o evento auto evidente da escravização e do tráfico negreiro
realizado pela nação portuguesa para o território brasileiro entre os séculos XVI ao XIX.
Necessariamente não somente a nação portuguesa tinha os navios tumbeiros,
mas houve um processo vinculado à iniciativa privada no tráfico. O traficante não era
agente público, mas tinha o seu próprio negócio. Além disto, é importante frisar que
nem todos os traficantes eram portugueses ou brasileiros, mas de várias outras nações,
inclusive norte-americanos participaram do comércio atlântico como traficantes. O
Estado português apenas legaliza o processo comercial.
Os dados oficiais na história brasileira, comumente, não são plenamente
confiáveis, sobretudo, do período histórico referente ao escravismo, período que o
próprio Estado brasileiro fez questão de destruir os dados e as informações disponíveis,
com o objetivo de tentar apagar as evidências do tráfico negreiro e do escravismo.
Entretanto, a história do holocausto do tráfico negreiro e do escravismo virou memória
coletiva, pois ainda que se tentasse negá-lo, a recuperação dos testemunhos oral, ou não,
bem como registros paralelos dos sobreviventes nos diversos momentos da história do
período alimentaram e cristalizaram vivências, mesmo não tão rica de detalhes.
Assim, a entrada de africanos escravizados no Brasil não computa enquanto
dados não declarados do movimento do tráfico que saíram dos diversos pontos do litoral
africano. Nem todos os portos africanos de saída de população africana para o Brasil
eram portos legais e, nem mesmo os legais tinham controle aduaneiro sobre a população
que estava embarcando, submetida ao escravismo nacional brasileiro, daí poder-se falar
em tráfico não legal, pois houve contrabando de população africana após o ano de 1831
e, mesmo posterior a 1850. Fato este observado na referência de Conrad (1985) abaixo
citada.
O aumento natural de negros, escreveu um visitante estrangeiro por volta de 1820,
“é desencorajado pela avaliação de que é mais barato importar escravos adultos do
40
que criar os jovens. Assim, qualquer estímulo para suavizar sua condição ou
torna-la mais confortável é substituído pelo abominável tráfico”. “O Brasil”,
declarou uma petição do Conselho Provincial da Bahia em 1839, “acostumado a
empregar escravos há quase três séculos e a ser abastecido por eles, como uma
provisão anual da África, deu pouca atenção ao encorajamento de seu aumento
progressivo pela produção” Com a grande preferência dos brasileiros pelo
trabalho escravo, escreveu outro estrangeiro por volta do mesmo período, “e seu
irresponsável descaso para com aquelas medidas que assegurariam um auto
abastecimento interno, estamos preparados para atender por que tanto tráfico
ultramarino de criaturas humanas continua a existir” (CONRAD, 1985, p.23).
Outra questão relevante é que nesta estatística aduaneira que apresenta no
quadro não se contabiliza a população, estimada em até 30% média, que ficou no
Atlântico, em decorrência de mortes, ferimentos, naufrágios e doenças contagiosas. Daí
considerar-se que os navios tumbeiros traziam carga excessiva e não declarada,
justamente para suprir a perda de população de escravizados ao longo da viagem.
Considerando estes dados, ainda faz-se necessário contabilizar que, em torno de
50% ou mais da população que saiu da África chegou ao Brasil; além de colocar mais
30% em média a população que saiu, mas que não chegou. Por esta mensuração pode-se
aventar: algo em torno de 20 milhões de africanos que saíram do continente africano do
início do século XVI ao final do século XIX e foram estabelecidos no Brasil. Ressalte-
se que com Pedro Alvares Cabral navegador português do século XVI, constata-se que a
parcela da população africana embarcada nas naus e submetida ao jugo escravista
português, era de origem litorânea, originária da Guiné, leia-se atual Cabo Verde, Guiné
Bissau, Guiné Conacri, Senegal, Costa do Marfim. Encontra-se também na obra de
Mbembe (2014) referências acerca do modus operandi que Portugal irá desencadear no
trafico negreiro advindo de ações do Estado colonial português, já desenvolvido
anteriormente no seu espaço geográfico interno, bem como no século XV ações de
sequestros de negros no continente africano como mecanismo de expansão e exploração
da mão de obra.
A transformação de Espanha e de Portugal – de colónias periféricas do mundo
árabe em motores de expansão europeia para além do Atlântico – coincide com o
afluxo de africanos à própria Península Ibérica, que participam na reconstrução
dos principados ibéricos a seguir à Grande Peste (Black Death) e à Grande Fome
do século XIV. A maioria são escravos, mas nem todos, também há alguns homens
livres. Se até então o aproveitamento de escravos na Península era efectuado
através das rotas transarianas controladas por mouros, uma reviravolta vai
operar-se por volta de 1440, quando os ibéricos inauguram contatos directos com a
África Ocidental e Central via oceano Atlântico. Os primeiros nergos, vítimas de
41
pilhagens e transformados em objetos de venda pública, chegam a Portugal em
1444. O número de capturados aumenta sensivelmente entre 140 e 1500. Nesse
processo, a presença africana cresce, e milhares de escravos desembarcam
anualmente em Portugal, até o ponto de o seu afluxo desestabilizar o equilíbrio
demográfico de certas cidades ibéricas. É o caso de Lisboa, Sevilha e Cádis, nas
quais, no início do século XVI, cerca de 10 por cento da população é composta por
africanos. À maioria são-lhe atribuídoas tarefas agrícolas e domésticas. Em todos
estes casos, quando tem início a conquista de terras da América, afro-ibéricos e
escravos africanos integram tripulações marítimas, postos comerciais, plantações e
centros urbanos do Império. (MBEMBE, 2014, p.31-32).
A análise social aponta que os escravistas portugueses aperfeiçoaram o sistema
imperialista escravista concebido pelo Estado-nação europeu, para o contexto de
exploração do território brasileiro na medida em que ocupava o espaço territorial. A
ocupação territorial desenvolveu um modelo econômico mercantil próprio da
exploração baseada num primeiro momento na formação de vilas e cidades,
administradas pela coroa portuguesa, utilizando para tal feito, milícia de homens
inescrupulosos e obsoletos, na busca de riquezas e dinheiro supérfluo, gasto inutilmente
no modo de vida supérfluo português no contexto europeu. Fixam também no território
brasileiro grupos de famílias portuguesas adversa do espírito de cidadania, bem como
desprovidas do pensamento liberal disseminado na modernidade europeia.
A exploração de ocupação territorial portuguesa busca utilizar a mão de obra
trabalhadora com a escravização dos povos indígenas que habitavam a terra recém-
invadida e ocupada por portugueses e denominada por estes conquistadores de Brasil.
Com a resistência cultural do trabalho não ordenado, segundo a lógica da produção
expropriatória por parte das comunidades indígenas; logo os portugueses mudam a
figura do trabalhador escravizado, e, paulatinamente iniciam a dizimação dos índios
brasileiros, e buscam expandir o modelo imperialista europeu praticado no continente
africano por outras nações europeias, conforme apresentado na primeira parte deste
artigo é utilizada para tal finalidade exploratória a mão de obra escravizada de
populações negras africanas.
A viagem para o Brasil era das mais infortunadas, não tanto pelas tormentas do
Oceano, como pela estranha alimentação, resultando daí que, às vezes, o valor real
da mercadoria não compensava os esforços e trabalhos do contrabandista de carne
humana. (QUERINO, 1955, p. 32).
42
Ao povoar e colonizar com seu trabalho escravo o Brasil, o negro africano
configurou a única força de trabalho que realmente produziu riquezas no território
brasileiro, explorado pelas forças imperialistas portuguesas. Há que se ressaltar que
pode soar estranho falar em escravo desprovido de liberdade como colonizador.
Diferente da concepção da distinção de colono como aquele homem livre desbravador
de terras inóspitas, que desencadeia ações para fundar novas comunidades baseadas nos
livres acordos entre si e na Lei, como forma de vida em grupos e sociedade ampliada. E,
que este colono, por sua vez, realiza o labor e o trabalho para criar estruturas produtivas
onde antes não havia um circuito de extração, produção e comércio dos produtos
criando mercados. Há que se ressaltar que a atividade da ação, sob a ótica Arendtiana,
fica suspensa pela falta da liberdade do negro enquanto escravo.
Na concepção de Querino (1955) o negro africano traficado para o Brasil como
escravizado e posteriormente aqui nascido também escravizado, é o agente que irá
realizar todas as tarefas do labor e do trabalho, mesmo não possuindo a liberdade é o
elemento colonizador no sentido de operar as formas produção e circulação de bens e
produtos, ou seja, labor e trabalho, é o negro os pés e as mãos do branco europeu
português que o escravizava. O paradoxo é que a mulher e o homem negro não eram
livres, entretanto os produtos resultado do labor e trabalho, estes eram negociados pelos
homens escravocratas.
Assim, o negro colocado ausente do mundo dos negócios da construção das
estruturas produtivas e de criação de mercados, bem como, do espaço público e político
foi ficando confinado às senzalas que representava os campos de internação,
concentração e extermínio da etnia negra. Conseguindo a liberdade somente a partir do
momento que se rebelava e fugia para os quilombos, que representava os espaços
comunitários de negros livres. Por sua vez, deixava para traz toda a estrutura de
exploração e produção construída por suas mãos de homem negro escravizado e
destituído da sua condição humana pelo branco europeu português escravocrata.
É desta forma que na era moderna e no mundo moderno a esteriotipização do
negro inferiorizado e escravizado no trabalho e na vida pública e privada, irá alimentar a
ideologia do preconceito racial de homem negro inferiorizado, sem direito a ter direitos
43
como cidadão desprovido de humanidade, numa terra estranha que não o acolhe como
humano. A mesma lógica ideológica racial criada e desenvolvida no cenário imperialista
das nações europeias no continente africano, desde a expansão do estado nação,
aplicada no continente africano como ação política de inferiorização do outro, é
estruturada no Brasil, pelos brancos portugueses contra as comunidades dos negros. A
finalidade é muita clara, explorar a mão de obra escrava para acúmulo de riquezas e do
capital, para infindáveis lucros, para homens supérfluos para negócios supérfluos, e essa
é a herança que nos tempos modernos todos os homens, negros e brancos deverão
enfrentar.
1.3 Dimensão da Vita Activa do Negro Escravizado no Brasil
Na sua obra A Condição Humana Hannah Arendt designa com a
expressão Vita Activa três atividades humanas fundamentais especificamente: labor,
trabalho e ação. O homem cria o mundo para a sua existência e por esta criação é
condicionado, e ao mesmo tempo condiciona as atividades da criação, alargando a
condição humana para uma dimensão maior do que a vida que lhe é dada. A
qualificação da condição da existência humana da vita activa está associada
simultaneamente à condição da vida contemplativa (vida da mente/espírito) retratada
por Arendt na obra: A Vida do Espírito texto no qual trabalha as atividades práticas do
espírito no sentido kantiano (Immanuel Kant, 1724-1804) sobre as atividades do pensar,
do querer e do julgar, que terá as duas partes; do pensar e do querer, elaboradas por
Hannah Arendt, antes do seu falecimento, deixando o julgar não iniciado. Entretanto,
para críticos e apreciadores da sua obra, Lições Sobre a Filosofia Política de Kant
(1993) pode ser considerado um ensaio que ocupa o lugar da terceira parte que é a do
julgar.
No presente trabalho foca-se somente a obra: A Condição Humana e o
seu primeiro capítulo: A Condição Humana, no qual Arendt introduz em breves
44
comentários sobre o que ela compreende como vita activa e a condição humana das
atividades: labor, trabalho e ação que serão desenvolvidas e explicitadas de forma mais
ampla, em capítulos específicos ao longo da obra, além de explicitar o modo como a
distinção das circunstâncias da condição humana como sendo as condições nas quais a
vida foi dada ao homem.
O que também projeta a obra de Hannah Arendt para além do seu tempo
é a perspectiva que abre para se pensar o mundo moderno a partir de um duplo voo: da
Terra para o universo e do mundo para dentro do homem para que se possa
compreender a cultura da sociedade que segue para uma nova era desconhecida. Para o
negro é evidente que se a era moderna lhe faz um deslocado como homem num mundo
comum, no contexto de valores hegemônicos brancos, neste tempo denominado mundo
moderno não há como conceber uma sociedade racista, por mais que o racismo insista
em se consolidar; como racismo contra o negro, marca da condição humana do ser
negro.
A atividade da condição humana compreendida na vita activa como labor
é a ação para a preservação da própria vida, no caso do negro escravizado no Brasil o
labor representa bem a concepção da luta pela sobrevivência, segundo Arendt (1991) o
labor:
O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano,
cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio tem a ver com as
com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da
vida. A condição humana do labor é a própria vida. (ARENDT, 1991, p. 15).
O metabolismo mecânico do labor como atividade da vita activa
fundamental para a manutenção e reprodução da vida, reflete a dimensão da vita activa
do negro escravizado no Brasil no tempo e espaço geográfico a ser reelaborado para
sobreviver. A estrutura desumana da escravidão desde a captura do negro no continente
africano, passando pelo tráfico negreiro, até aportar nas terras brasileiras, o negro foi
desafiado a sobreviver.
No caso específico do labor o negro ao ser desembarcado do navio
negreiro, totalmente desnorteado por prolongadas jornadas na travessia do atlântico,
com seu corpo subjugado, identidade descontruída e fragmentada, numa terra inóspita e
45
estranha, tempo espaço e geograficamente o negro é um deslocado, é transformado num
apátrida, pária social, um humano negro desprovido de humanidade básica. Só lhe
restam a vida e o ar que respira, é neste contexto que o negro deve se reestruturar. Em
Querino (1955) há a descrição que a atividade do labor para o negro é construída
também por uma luta insana e desesperada para manter o próprio corpo.
O tripulante que escapava era submetido ao castigo do calabrote ou içado nas
vergas a dois cabos de mergulho por baixo da quilha da embarcação. Ao chegarem
as levas de africanos nas águas da Bahia, davas-lhes desembarque franco no cais
d’Agua de Meninos, onde existiu, por muito tempo, um velho engenho. A despeito
da proibição expedida em ordens régias, o tráfico negreiro avultava assombroso.
(QUERINO, 1955, p. 32-33).
O cenário descrito por Querino (1955) reflete o espaço geográfico da
Bahia, entretanto, pode ser concebido como um dos parâmetros de desembarque
universais do negro escravizado em outros pontos oficiais e não oficiais de desembarque
do tráfico negreiro. O labor que num primeiro momento é o cuidado de si próprio, passa
subsequente a ser uma estratégia de produção e reprodução de insumos básicos
mantenedores do corpo e da vida humana do negro. O labor possui como condição
humana de atividade e finalidade a preservação da vida biológica, são produtos e objeto
de consumos cujo tempo é finito se desgasta e acaba pelo uso.
No Brasil desde a invasão dos portugueses em 1500 até o século XIX na
exploração da terra e da mão de obra dos povos indígenas refletiu a distinção de labor
aqui apresentada, quando da exploração dos povos indígenas por mecanismos de
subsistência dos conquistadores portugueses. Com a chegada dos primeiros homens
negros escravizados e traficados do continente africano para as terras brasileiras, o
labor, senão, quase na sua totalidade passa a ser desenvolvido pela mão de obra dos
negros escravizados. Da necessidade do labor nasce o modelo, segundo Mattoso (1990),
de acumulação primitiva do capital que é introduzido, sobretudo, na região nordeste do
país, no modelo de plantation:
Dessa necessidade nasce um complexo agro-industrial, o engenho, que exige
considerável grau de racionalização. Tarefas agrícolas e industriais esperam os
escravos. O engenho é uma verdadeira empresa e a divisão de trabalho necessária
ao sucesso econômico. O escravo ver-se-á cercado por um sistema fortemente
estruturado, no qual dominação e controle se adaptam às necessidades da
exploração. Toda a sociedade agrária brasileira, mesmo após passar do açúcar ao
46
café, ao algodão, aos produtos de subsistência, conservará por muito tempo a
marca indelével de seus começos. (MATTOSO, 1090, p.108).
As atividades mecânicas do labor que se inserem na necessidade, na
repetitividade e na multiplicação, na interdependência dos corpos e no anonimato
fundamental dos seus agentes; tem a única finalidade de satisfazer as necessidades
básicas da vida e não deixa nenhuma marca durável cujo resultado desaparece no
consumo. A atividade de labor desenvolvida pelas comunidades negras de homens e
mulheres escravizados no Brasil consumiu e foi consumido por várias gerações de parte
da humanidade de raízes africanas aqui instaladas, e que simultaneamente garantiu a
sobrevivência dos escravagistas brancos, bem como a precariedade da vida dos
escravizados. Quando instados à fuga para as florestas, os escravizados construíam seus
espaços de liberdade a partir das fortalezas comunitárias denominadas quilombolas, os
negros também tinham que buscar sobrevivência nos recursos naturais disponíveis,
conforme Carneiro (1988) depara-se com uma narrativa dentre várias descrições destas
formas de sobrevivência.
Das matas, os negros retiravam o seu sustento. Dos cachos da palmeira pindoba,
que contém côcos do tamanho de um ôvo de ganso, os palmarinos (moradores do
Quilombo de Palmares) podiam retirar azeite, trabalhando a polpa e a amêndoa;
nos frutos e no palmito, encontravam “farto e substancioso alimento”; dos côcos
faziam uma espécie de manteiga “muito clara e branca” e certa espécie de vinho; e
no Diário da expedição Blaer-Reijmbach há referência a “uns vermes da grossura
dum dedo”, que se geravam no tronco das palmeiras, que os negros comiam.
(CARNEIRO, 1988, p. 47).
Se no campo as atividades laborais foram densamente estruturada pela
relação casa grande e senzala, local no qual o branco poderia separar-se fisicamente do
negro colocando-o na senzala ou nos trabalhos do campo; no meio urbano as atividades
laborais é a explicitação da violência dissimulada de homens e mulheres crianças e
idosos negros que espelhará, na modernidade dos tempos hodiernos espelho das
relações do preconceito racial. Fato este determinado não só por proximidade física,
mas, sobretudo, o preconceito racial que discrimina e inferioriza o negro físico e
psicologicamente, será o mecanismo da separação real entre o escravo e o livre, bem
como a linha arquetípica do branco dito superior e do negro escravizado ou ex-
escravizado dito inferiorizado. Assim Mattoso (1990) descreve.
47
Falou-se muito que os senhores escolhiam para seu serviço pessoal os escravos
próximos do modelo branco, os nascidos no Brasil, por vezes na própria família do
proprietário, nela nascidos e educados, os criados, vale dizer, literalmente
“criados” e moldados na casa grande. Quando se treta de vendê-los, os senhores
não economizam elogios às suas qualidades e os periódicos os descrevem em seus
anúncios como indivíduos estimáveis e capazes. Além disso, os escravos domésticos
tornam-se facilmente indispensáveis aos seus senhores aos quais se devotam
cotidianamente ou lhes proporcionam o fruto do trabalho que executam fora, além
das tarefas da casa. (MATTOSO, 1990, p.111).
Deve-se ressaltar que as atividades do labor distinto do trabalho e da ação
compõe a condição humana, são assim concebidos para fins didáticos para que se possa
compreender na vita activa, como cada uma dessas condições correspondem a uma
condição básica e são fundamentais no entendimento das condições sob as quais a vida
na Terra foi dada ao homem. E cada uma destas três condições se configura
simultaneamente segundo eventos históricos específicos nas suas épocas, sem que haja
uma diferenciação rigorosamente cronológica. Evidencia-se, entretanto, que o labor está
implicitamente ligado ao animal laborans, ao passo que o trabalho está associado ao
homo faber, circunscrito aos espaços da vida privada; ao passo que a ação se manifesta
no espaço público. Recorre-se à Querino (2011) para ilustrar o quanto a distinção do
labor é representativa como herança estruturante da tradição brasileira quanto aos
aspectos dos hábitos alimentares consolidados no gosto e no sabor que demarca a
determinação da culinária de tradição dos povos africanos na mesa dos brasileiros.
O português abastado destinava, de preferência, os escravos que adquiria aos
trabalhos agrícolas; mas o comerciante, o capitalista, mandava-lhes ensinar as
artes mecânicas, conservando sempre um africano ou africana para o serviço
culinário, e daí as modificações modernas no arranjo das refeições à moda do
Reino, com a carne, peixe, mariscos, aves e animais domésticos. As iguarias em
que o português fazia uso do azeite de oliveira, o africano adicionava, com eficácia,
o azeite de dendê ou de cheiro. (QUERINO, 2011, p.31).
Pode-se observar que a descrição relativas à distinção do labor a partir da
compreensão proposta por Arendt, como uma das condições nas quais a vida é dada ao
homem, que o homem negro e a mulher negra afro-brasileiros mesmo na condição de
escravizados foram e são as bases da manifestação da subsistência do caráter nacional
brasileiro enquanto da existência da identidade de ser brasileiro e brasileira.
48
A atividade da condição humana do trabalho para Arendt (1991) é
compreendida como a condição humana da permanência e existência do homem no
mundo, possui como finalidade a construção artificial do mundo, o produto do trabalho
objeto de uso tem a característica de solidez e permanência no tempo e é concebido para
perdurar.
O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana,
existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja
mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo
“artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro
de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a
sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do
trabalho é a mundanidade. (ARENDT, 1991, p 15).
A distinção em Arendt de compreender o trabalho como a construção
artificial do mundo, subverte a tradição do pensamento político econômico clássico na
medida em que se distância do círculo conceitual de perceber o trabalho como mera
técnica produtiva objetivando mercado e consumo, bem como organização sistêmica da
racionalidade técnica produtiva. Para a autora, o trabalho é ação prática que contém
relações reais e simbólicas de conflitos e organização de mundo que para o qual
necessita de estratégias elaboradas pela estrutura do pensamento.
O trabalho também compreendido por Arendt (1991) como obra
corresponde a atividade não natural da existência humana, não está intercambiada no
ciclo vital da espécie. A produção artificial do mundo erigido pelo trabalho, pelas obras
das mãos humanas, garante à permanência e a durabilidade sem as quais o mundo não
seria possível sem a objetividade das coisas produzidas para visando a estabilização da
vida humana. A vida humana é designada como lapso de tempo entre o nascimento e a
morte, quando nascemos chegamos ao mundo e deparamos com uma dada estrutura
construída pelo pensamento e pelo trabalho das mãos humanas, podemos contribuir
como nossas obras neste ciclo; e ao morrer deixamos para os que ficam uma
contribuição da herança comum desse mundo construído artificialmente pela cultura
intercambiado com a natureza.
Para Querino (1955) que nasceu no período anterior à abolição da
escravatura (1853), viveu as agitações, concepções de mundo, nação política, e o desejo
49
de liberdade para o negro no período abolicionista (1888); e faleceu vivenciando as
contradições de homem negro muitas vezes pária, apátrida ou sem direito a ter direitos
no ano de 1923, condição esta que no século XXI é uma mera formalidade, onde o
negro de fato não está inserido no contexto social brasileiro, resta-lhe o enfrentamento
contra o racismo em todas as suas formas para a conquista de cidadania.
O homem negro após ser escravizado, sequestrado no continente africano
e traficado para o Brasil, não teve outra saída senão a de sobreviver na terra estranha.
Para tanto, foi o único elemento verdadeiramente econômico, criador do país e
quase o único (QUERINO, 1955, p.40). A dimensão do trabalho enquanto obra
criadora do mundo no qual se viveu no Brasil por mais de trezentos anos foi realizado
pela mão de obra negra escravizada, o sentido do mundo do trabalho também foi
construído pela comunidade negra escravizada, resignificando o sentido da vida na
construção de uma nova nação afrodiásporica com o rosto de uma nova nação negra
pluriétnica fora do continente africano.
“O Brasil é um país sem riquezas reais, sem indústrias, sem trabalho. A população
se compõe de nobres orgulhosos e semi-bábaros, de comerciantes ávidos, de
nômades selvagens e de negros que sofrem o peso rigoroso da escravidão”. De fato
assim era. Só o africano era obrigado ao trabalho, amanhando as terras e colhendo
os produtos da sementeira, porque o regimen estabelecido neste país era a ambição
do ouro sem amor ao trabalho. Até o clima servia de desculpa aos ociosos, e por
isso dizia José d’Alencar: “O europeu não resistia: o índio não se sujeitara;
compraram o negro”. Conduzidos os escravos às casas dos compradores, ai
ficavam por algum tempo, não se lhes permitindo sair à rua, enquanto não
compreendessem alguns vocábulos da língua portuguêsa. (QUERINO, 1955, p. 36).
Por ser morada dos homens durante a sua vida, a Terra é o lugar próprio
para a ação e a fala, para a construção do mundo as atividades de fabricação são as que
constroem todas as coisas que nele são produzidas e dão objetividade e sequência à vida
de um homem junto à vida dos homens no tempo transcorrido entre o passado e o
futuro. É neste sentido que podemos apontar o trabalho do homem negro escravizado
africano, Jacino (2018), na dimensão de fabricação e construção artificial do mundo que
projeta um homem negro escravizado no seu tempo, como herdeiro de uma tradição do
passado que lança as bases por meio do seu trabalho, para a memória do futuro.
Marceneiros, carpinteiros, ferreiros, oleiros artistas das mais diversas áreas,
trabalhavam com madeira, matéria-prima de usos múltiplos, disponível no Brasil e
na África. Utilizada na construção das máquinas dos engenhos de açúcar, dos
50
teares, nas estruturas das construções civis, no mobiliário, nos acabamentos, na
fabricação de carros, carroças, carruagens, cadeira de carregar gente, barcos e
embarcações e nas artes em geral. Por séculos no Brasil, a madeira seria
determinante para a sobrevivência, até ser substituída pelo ferro e pelo aço e, mais
recentemente, pelo plástico. De uso abundante no País, a madeira encerra
propriedades estruturais bastante importantes, cujo emprego constitui
conhecimento profundo de engenharia e arte. (JACINO, 2018, p.103-104).
Continua o autor quanto à especificidade da mão de obra africana
hegemônica na estruturação do mundo do trabalho na sociedade brasileira no período
colonial, coparticipe estruturante deste processo no período de independência do Brasil,
e mão de obra explorada e vilipendiada na atual conjuntura republicana.
Assim a quantidade de mão de obra especializada introduzida no Brasil através da
escravidão teria sido imensa e fundamental para os diversos momentos da
economia brasileira considerando que aqui chegaram escravizados especialistas
em plantação, colheita e beneficiamento de cana de açúcar e do café, construtores
de barcos e técnicos em navegação, mineradores, vaqueiros e profissionais no abate
de animais e na utilização de seu couro e carne; artesãos têxteis e químicos com
conhecimento de tintas, ourives, fabricantes de sabão e marceneiros, entre outros.
Este profissionais, eram classificados de “artífices mulatos” e sua presença foi
grande em Minas, Rio, Bahia e Pernambuco, deixando vestígios muito evidentes de
seu trabalho na música, na escultura e na pintura. Até mesmo na produção
cultural erudita, como na música clássica, no teatro e nas artes plásticas os
africanos e seus descendentes estiveram presentes, como ilustram expoentes que
representavam a regra e não a exceção como Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho, os “mestres mulatos” de Minas Gerais, o Frei Jesuíno de Monte
Carmelo, de São Paulo e incontáveis anônimos, como os descritos em documentos
recentemente descobertos. (JACINO, 2018, p.104-105).
Como parte integrante da vita activa junto do labor e do trabalho; a ação
é apresentada por Arendt (1991) como estruturante da condição humana. A atividade da
condição humana da ação tem como finalidade o exercício da pluralidade da existência
humana, testemunhada pela excelência das singularidades. A concretude da ação é a
política e a relação entre os homens acerca dos negócios humanos comuns para a
produção da história individual e social.
A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação
das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato
de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os
aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta
pluralidade é especificamente a condição - não apenas a conditio sine qua non, mas
a condition per quam – de toda vida política. (ARENDT, 1991, p. 15).
51
E complementando Arendt (1991), aponta que viver é estar entre os
homens e toda atividade por mais elementar que seja a condição humana da ação está
implícita desde o nascimento até a morte dos indivíduos. Ação é a condição humana
para existir e é produzida pelos próprios homens na medida em que se manifesta para
preservar os corpos políticos, é pela ação que se inicia algo novo. É pela compreensão
da ação e da liberdade que identificamos nas ideias da autora, o quão inócuo é a
separação por raças.
A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos,
isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que
tenha existido, exista ou venha a existir. As três atividades e suas respectivas
condições têm intimas relação com as condições mais gerais da existência humana:
o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. O labor assegura não apenas
a sobrevivência do individuo, mas a vida da espécie. O trabalho e seu produto, o
artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da
vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano. A ação, na medida em que se
empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a
lembrança, ou seja, para a história. (ARENDT, 1991, p.16-17).
A condição humana na perspectiva Arendtiana, não é algo que se
assemelhe à natureza humana, visto que o pensamento e a razão são características
essenciais da existência humana, percebidos pelo labor, trabalho e a ação que
condicionam e são condicionantes da condição humana. Para a autora, nada nos autoriza
a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido que outras
coisas as têm. Torna-se um problema insolúvel querer definir a nós mesmos como
portadores de uma natureza seria o mesmo que querer pular sobra à própria sombra. A
cognição nos permite no máximo dizer quem somos o que somos, e, por sua vez possui
um caráter teológico e não puramente político.
Pelo fato de não sermos condicionados de modo absoluto as condições
para a existência humana: natalidade, mortalidade, mundanidade, pluralidade e mesmo
o planeta Terra não podem explicar ou responder a pergunta sobre o que somos, é nesta
tradição filosófica que Arendt (1991) se insere diferentemente de outras ciências que
trabalham o homem tais como: a antropologia, a psicologia ou a biologia. Embora,
vivamos em condições terrenas, não somos meras criaturas terrenas o mérito dessas
ciências é apanhar a condição humana no seu caráter universal.
52
O evento histórico da escravização e do tráfico de homens e mulheres
negros, a partir do continente africano, representou a ação de homens brancos europeus,
no caso específico do tráfico negreiro para o Brasil, maioria do tráfico foi realizada por
homens brancos portugueses. É inquestionável o fato de que a ideologia racial
supremacista branca alinhada à burocracia, estruturou o imperialismo europeu para a
conquista e submissão das comunidades negras africanas. Assim, não houve espaço para
que a mais necessária condição dos homens para agir em conjunto: a liberdade, não
existiu para que as comunidades negras pudessem agir politicamente em conjunto. Ao
escravizar e traficar os negros africanos aponta Junior (2010), os imperialistas
portugueses perderam qualquer possibilidade de compreender a dimensão comum dos
povos pluriétnicos do continente africano, e agirem em conjunto para equilíbrio do
planeta Terra como habitação comum de todos os seres humanos, e não humanos.
A ideia de “Escravo” empregada na educação e na cultura brasileira limitou o
pensamento dos historiadores brasileiros. Africanos e afrodescendentes foram
sempre vistos como seres originários das tribos de homens nus. Ou seja, seres
incultos despossuídos de conhecimentos e incapazes da edificação de uma cultura,
de protagonismo político e de realizações importantes históricas. Os produtos da
colônia brasileira não eram de conhecimentos dos europeus de como produzi-los.
Sendo Portugal a primeira nação europeia a explorar com intensidade a mão de
obra africana, o Brasil passa a ser fonte de tecnologias, da qual a da produção do
açúcar é mais conhecida e depois exportada para o Caribe holandês. Estas
observações nos abrem um horizonte para procurar os conhecimentos de origem
africana que foram fundamentais na construção do Brasil. O quadro revela um
número enorme de contribuições originais e de registros de africanos e
afrodescendentes realizando os diversos ofícios e empreendendo as diversas
construções. (JUNIOR, 2010, p. 35).
Por vita activa se compreende a tradição do pensamento político a vida
dedicada a assuntos políticos, é necessário dispor de liberdade e movimento das ações
para se ocupar do belo. Nem a interferência produtiva nem o consumo humano podem
interferir na contemplação e na investigação das belezas perenes, tanto Arendt, quanto
Querino propugnam essa base de existência comum dos homens.
O fundamento para exercer a condição humana da ação na comunidade é
resgatado por Arendt (1991), a partir da polis grega, na qual as atividades do labor e a
do trabalho restringiam a liberdade e a capacidade de agir livremente em conjunto.
Somente homens livres, e não artífices que laboravam ou trabalhavam, e nem mesmo os
53
escravos poderiam participar explicitamente da ação enquanto práxis da vida coletiva. A
compreensão posterior aos gregos subverte esta compreensão da vita activa.
Com o desaparecimento da antiga cidade-estado – e Agostinho foi, aparentemente,
o último a conhecer pelo menos o que outrora significava ser um cidadão – a
expressão vita activa perdeu o seu significado especificamente político e passou a
denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo. Convém lembrar
que isto não queria dizer que o trabalho e o labor houvessem galgado posição mais
elevada na hierarquia das atividades humanas e fossem agora tão dignos quanto a
vida política. De fato, o oposto era verdadeiro: a ação passara a ser vista como uma
das necessidades da vida terrena, de sorte que a contemplação, (o bios theoretikos,
traduzido como vida contemplativa) era o único modo de vida realmente livre.
(ARENDT, (1991, p.22).
Para a modernidade após o século XV a concepção da estrutura de
trabalho braçal, enquanto atividade humana que necessitará de um maior vigor físico,
será considerado de menor valor e será inferiorizado enquanto status social e mesmo
enquanto remuneração das atividades desenvolvidas, o trabalho braçal é destinado à
massa da população ignorante. Em oposição ao trabalho braçal, o trabalho intelectual
terá o status de maior valor e mais sublime, enquanto atividade do pensamento e da
contemplação tende a ser desenvolvido por uma restrita elite da elite social e com alta
remuneração. Para Arendt (1991) a superioridade da contemplação (atividades mais
intelectualizadas) sobre outros tipos de atividades incluindo ai, a própria ação, reporta a
um período anterior ao cristianismo, são referências do filósofo grego Platão (427a.C.-
347a.C.) Em Platão o exercitar as ideias possui uma dimensão mais sublime do que as
atividades que necessitam das habilidades manuais.
Observa-se que há no período da era moderna e do mundo moderno no
tempo é criado um significativo processo de transformação material e concepção da
organização do trabalho. Fazemos aqui referência de processos tais como, a paulatina
substituição da agricultura pela indústria e do trabalho artesanal para o trabalho na sua
forma de processamento de matéria prima em manufatura industrializada. Recuperando
uma citação utilizada em um trabalho anterior de minha autoria, quanto à atividade do
trabalho escravizado é notório que enquanto força de trabalho escravizado no Brasil, o
indivíduo negro torna-se chave para a compreensão do modo de exploração de trabalho muito
bem definido por Marx (s.d.) citado na obra Rebeliões na Senzala (MOURA, 1988, p.17).
54
A força de trabalho nem sempre foi uma mercadoria. O trabalho nem sempre foi
trabalho assalariado, isto é, o trabalho livre. O escravo não vendia a sua força de
trabalho ao possuidor de escravos, assim como o boi não vende o produto do seu
trabalho ao camponês. O escravo é vendido, com a sua força de trabalho, de uma
vez para sempre a seu proprietário. É uma mercadoria que pode passar de mãos
de um proprietário para as de outro. Ele mesmo é uma mercadoria, mas sua força
de trabalho não é sua mercadoria. (MARX, s.d., p.63).
Acerca da passagem acima continua a compreensão de que o negro ao ser
utilizado como trabalhador escravizado no Brasil tem aviltada a sua dignidade. Deste
negro africano é tirada a intrínseca característica humana dos indivíduos, que é a
liberdade. A liberdade é a prática da experiência política do homem exercitada entre os
homens no plural. Considerado como se fosse um animal de carga a ser explorado no
trabalho e na vida, o indivíduo negro escravizado não realiza o fenômeno da ação da
liberdade na sua condição humana. O negro é um humano, por mais que o racismo tente
descaracterizá-lo como humano, o negro é um humano.
Por vita activa (Arendt, 1991) compreende-se também um desassossego,
ou seja, todas as atividades humanas definidas a partir do ponto de vista da absoluta
quietude, os movimentos do corpo e da alma devem cessar frente à absoluta quietude do
pensamento. Um exemplo dessa concepção, para Arendt (1991) foi o cidadão ateniense
que livre das preocupações do labor e do trabalho poderia estar livre para a
contemplação das ações políticas.
Entretanto, Arendt (1991) pretende na obra a condição humana expor o
uso da expressão vita activa em oposição à tradição, enquanto uma ordem hierárquica
de valoração entre mais valor e importância das atividades contemplativas e reveladas,
em oposição a concepção de menos valor ou importância das atividades práticas de
ordem concretas e verdadeiras. No fundo o homem só pode conhecer o que ele mesmo
realiza.
Portanto, não haveria um primado da contemplação sobre a atividade do
trabalho, mas mãos humanas, a distinção entre quietude e desassossego só podem ser
percebidas pelos olhos mortais do homem. Mesmo quando o cristianismo tenha
exaltado a contemplação, em detrimento da vita activa que esgotada, levaria à
contemplação essa posição não poderia excluir o movimento do pensamento
55
(desassossego) plenamente por parte da cognição. A inversão hierárquica na era
moderna não pode prevalecer sobre nenhuma ordem previamente estabelecida, não é
necessário ou axiomático que haja valoração hierárquica entre vita activa e vita
contemplativa.
1.4 Condição de Imortalidade e a Eternidade do Ser Negro
A questão a ser abordada nesta etapa do trabalho é a dimensão que ocupa
na vida e para a vida as coisas que fazemos. Ou seja, em nome de que pensamos,
agimos, laboramos e trabalhamos. Mesmo que na modernidade os homens de
pensamento e os homens de ação tenham se enveredado para concepções diferentes no
modo de compreender o estar no mundo, ou de outro modo, compreender a
materialização das nossas ações políticas, como os filósofos compreenderam no
contexto da polis grega, e o que as ações políticas deixaram como legado ou herança
pode ser lembrada pela diferença entre imortalidade e eternidade.
Para os gregos, como no cenário do tempo de Homero, pelo menos havia
a compreensão de que os deuses gregos que transcendiam os homens possuíam uma
mesma forma humana. A preocupação dos gregos com a imortalidade resultou na
concepção dos deuses imortais, e num primeiro momentos os homens perseguiram esta
dimensão teológica.
A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual,
com uma história vital identificável desde o nascimento até a morte,
advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as
outras coisas pelo curso retilíneo do seu movimento que, por assim
dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a
mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em
que tudo o que se move o faz num sentido cíclico. (ARENDT, 1991,
p.27).
Ao oposto da mortalidade, a imortalidade significa continuidade no
tempo, uma vida sem morte nesta terra e neste mundo como foi dada ao homem e a
maneira de tornar a mortalidade em imortalidade é a capacidade de produzir coisas,
obras, feitos e palavras, que merecem ficar para a eternidade. Ao desenvolver a
56
comparação compreensiva entre Querino e Arendt entende-se, por exemplo, outros
autores da negritude que apontam a eternidade do feito imortal da obra do negro
escravizado. Nesse aspecto aponta-se o trabalho desenvolvido por Tebas, Abilio (2018)
negro escravizado, que ao término de inúmeros trabalhos eternizados pelos feitos na
memória e nos escritos dos homens compra sua liberdade interrompendo mesmo que
momentaneamente, o sentido do ciclo dentro da estrutura social escravocrata vigente.
A publicação reafirma a versão de que o negro arquiteto “construiu também a
torre do recolhimento de Santa Teresa”, além da informação de que, antecipando-
se às “atuais técnicas, (...) bolou a canalização subterrânea para abastecer o
chafariz que instalara no Largo da Misericórdia, destinado ao uso público de água
potável e o retorno das águas excedentes”. (ABILIO, 2018, p. 16).
.
A citação Abilio (2018) tem o intuito de demonstrar que os feitos
imortais do negro, mesmo que escravizado, podem deixar atrás de si vestígios
imorredouros, que diferentemente dos outros animais o homem produz concepções
imortais às coisas mortais. Se, entretanto, tanto Sócrates, quanto Platão propõem a
compreensão do eterno como centro do pensamento metafísico, esta compreensão vem a
partir do entendimento de que certas obras mortais devem não só possuir a condição de
imortais, mas fundamentalmente ser apreciadas e incorporadas por futuras gerações
agregando a condição de eternidade. A materialidade destas obras se recupera na
medida em que o negro se reconhece nelas, Souza (1983), e as projeta como coparticipe
na construção de si próprio enquanto Ser e, enquanto homem negro e da comunidade
em que vive.
O negro brasileiro que ascende socialmente não nega uma presumível identidade
negra. Enquanto negro, ele não possui uma identidade positiva, a qual possa
afirmar ou negar. É que, no Brasil, nascer com a pele preta e/ou outros caracteres
do tipo negroide e compartilhar de uma mesma história de desenraizamento,
escravidão e discriminação racial, não organiza, por si só, uma identidade negra.
Ser negro é, além disto, tomar consciência do processo ideológico que através de
um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que
o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse
desta consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às
diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração.
Assim ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é
tornar-se negro. (SOUZA, 1983, p. 77).
Vejamos bem que a eternidade do Ser negro é concebida num primeiro
momento na dimensão dos eventos e feitos que ficaram a condição de imortais para os
57
homens e realizadas pelos próprios homens. Dessa forma o imortal possui um começo e
não um fim, e o eterno adquire uma compreensão de evento sem inicio e também sem
um fim a ser contemplado pelos homens. Para registrar esta diferenciação (Arendt 1991)
busca precisão na língua grega onde há um entendimento para o termo fazer, obra
durável proposta pelos negócios humanos. Em oposição ao agir, feito memorável a ser
lembrado para a imortalidade.
Desta forma se pode compreender como o racismo contra o negro foi
construído como estratégia ideológica de ocupação do território africano, dominação,
escravização e tráfico humano das mulheres negras e dos homens negros para várias
partes das Américas, Europa e muitas outras partes da Terra a partir do evento
econômico e politico da expansão marítima e comercial do Estado Nação da Europa.
Foi uma obra imortal dos negócios humanos, imortal porque teve um começo com a
escravização do negro e não possui um fim, visto que permanece enquanto preconceito
racial contra o negro. O contraponto para que se possa compreender este evento como
eterno, é justamente pelo paradoxo causado da resistência do negro contra a
escravização e contra o racismo do qual é o alvo na modernidade globalizada. Nas
raízes históricas da escravização o legado do negro se constitui como força motora de
mudanças.
Se o elemento africano não teve notória influência, no que diz respeito à moral, no
meio em que viveu também não destruiu o que encontrou; ao contrário, foi um
sustentáculo persistente dos bons costumes, no regimen doméstico. Como é sabido,
refere conceituoso escritor nacional – a raça preta não só tem modificado o caráter
nacional, mas, tem até influído nas instituições, nas letras, no comércio e nas
ciências do país, “Vivendo conosco no tempo e na ação os escravos dominaram às
vezes tão alto que a eles devemos ensino e exemplos” (Mello Moraes e Filho).
(QUERINO, 1955, p 43).
No caso específico do Brasil, o holocausto negro foi construído pelo
Estado português a partir do tráfico negreiro, e imortalizado como racismo de Estado,
estrutural e institucionalizado. A questão que passa ser eternizada é a negritude como
forma de resistência do homem e da mulher negros nos diferentes territórios de tempo e
espaço da diáspora negra.
O enfrentamento e a resistência do negro contra o racismo estão
presentes na eternidade do fato de que a vida lhe foi concebida para que como homem o
58
negro seja livre e portador de direito a ter direitos, dentro de uma coletividade humana
culturalmente estabelecida a partir do Estado de direito.
A condição de imortalidade do ser negro advém primeiro da condição na
qual foi escravizado pelo branco, depois o evento do racismo, bem como os eventos que
esta escravização produz a partir das obras e feitos imortais de resistência contra a
escravização e ações desencadeadas de enfrentamento ao racismo que o negro produziu.
A condição de eternidade do ser negro vem da sua condição de homem que deve ser
livre, assim como todos os homens, esta eternidade está presente na contemplação sua
condição humana indentitária eterna enquanto natureza e cultura de homem negro,
conforme Arendt (1991):
A teoria, ou “contemplação”, é a designação dada à experiência do
eterno, em contraposição a todas as outras atitudes que, no máximo,
podem ter a ver com a imortalidade. Talvez a descoberta do eterno,
feita pelos filósofos, tenha sido favorecida pelo fato de que eles, muito
justificadamente, duvidavam das possibilidades da polis no tocante à
imortalidade ou até mesmo à permanência; e talvez o choque de tal
descoberta tenha sido tão grande que eles não puderam deixar de
olhar como vaidade ou vanglória qualquer busca de imortalidade, o
que certamente os colocava em franca oposição à antiga cidade-
estado e à religião que as inspirava. Contudo, a posterior vitória da
preocupação com a eternidade sobre todos os tipos de inspiração à
imortalidade não se deveu ao pensamento filosófico. A queda do
Império Romano demonstrou claramente que nenhuma obra de
mãos mortais pode ser imortal, e foi acompanhada pela promoção do
evangelho cristão, que pregava uma vida individual eterna, à posição
de religião exclusiva da humanidade ocidental. Juntas, ambas
tornavam fútil e desnecessária qualquer busca de imortalidade
terrena; e conseguiram tão bem transformar a vita activa e o bios
polítikos em servos da contemplação que nem mesmo a ascendência
do secular na era moderna e a concomitante inversão da hierarquia
tradicional entre a ação e contemplação foram suficientes para fazer
sair do oblívio a procura da imortalidade que , originalmente, fora a
fonte e o centro da vita activa. (ARENDT, 1991, p.29-30).
O evento constituinte da era moderna de escravização do negro não foi
capaz de eliminar o ser negro, do homem negro e da mulher negra, mesmo sendo um
evento constituído de modo a ser imortal na sua concepção de inferiorização e
59
desumanização do grupo étnico negro, não foi o suficiente para fazer desaparecer da
face da terra o grupo étnico negro.
Por sua vez o grupo étnico negro preservou sua eternidade a partir dos
enfrentamentos e da resistência contra os eventos da escravização e do racismo
construídos socialmente. A eternidade está nos feitos e obras realizadas pelo labor e
trabalho, que persistentemente insiste em permanecer no mundo contemporâneo como
forma de resistência eterna contra o racismo existente contra o negro.
O paradoxo da escravização formal e/ou informal imortal tomada como
apartação social e inferiorização do grupo étnico negro, revelou a distinção da
eternidade da negritude. Isto significa que no mínimo podemos dizer que a negritude
surge a partir do momento em que o primeiro homem negro foi desumanizado pelo
homem branco, o homem negro sempre existiu, mas nem sempre fora escravizado e
racialmente pelo branco vivendo há muitas gerações anteriores ao que se conhece como
história; e partir da sua existência se constituiu a dimensão da negritude na qual não se
pode precisar seu início, nem muito mesmo o seu fim, distinção, aliás, na qual a
negritude é eternizada com sua natureza e cultura por todo o tempo em que o homem
negro existir.
A contemplação é a capacidade que desenvolvemos para buscar
compreender a singularidade dos eventos históricos nos quais o negro foi considerado
um não humano e escravizado como um animal não humano. O enfrentamento por vir
será o exercício hercúleo teórico e prático de desconstruir o racismo contra o negro,
para que a eternidade da negritude seja incorporada às sociedades e culturas constituídas
com sua própria natureza, e o negro seja reconhecido de fato e de direito como um
homem portador de direitos, em um Estado de direito e a ter plenos reconhecimentos de
cidadania legitimados e legalizados.
Considerações Finais
Este texto é um primeiro momento para uma compreensão a ser ampliado
acerca do Racismo Contra o Negro, racismo contra o negro no caso específico,
60
sobretudo no Brasil. É fato que o racismo contra o negro é um fenômeno global
construído a partir de ideologias que na modernidade assumem o cunho político, social,
econômico e em certos eventos até mesmo de justificação cientifica questionável e
contraditória aos fatos estabelecidos de uma humanidade comum a todos os homens.
O racismo é uma tentativa de separar a espécie humana a partir das
características dos fenótipos, naturais, sociais ou culturais em grupos a serem excluídos
da condição humana. Ledo engano, visto que o comum é o fato autoevidente de que no
principio o homem possui uma condição humana comum.
Na condição humana do ser negro, evidenciado por traços físicos e
culturais, sociais e geográficos, há o paradoxo do homem autodenominado de cor
branca estruturar condições raciais de escravismo, inferiorização, discriminação,
preconceito e exclusão social, política e econômica contra a etnicidade de pele negra.
É neste contexto que se desvela o racismo contra o negro, sobretudo em
três diferentes formas; na primeira se observa o racismo estrutural que como o próprio
nome indica estrutura os meandros das relações sociais entre as pessoas e toma a forma
de preconceito racial contra o negro, nas vertentes sociais politicas e econômicas de
determinadas sociedades; a segunda forma de racismo é o institucional que
assumidamente e veladamente está presente nas organizações constituintes das
organizações sociais estabelecidas; a terceira forma do racismo é o racismo de Estado,
talvez o mais contundente, contudo, nem menos perverso, por ser aplicada a partir de
política de governo, na forma de lei racista, ação e/ou discursos de ódio construído sub-
repticiamente pelas autoridades governamentais, legitimando ou legalizando o
preconceito racial contra o negro.
Neste trabalho são evidenciadas algumas considerações acerca do
Racismo contra o Negro, com a problematização singular do racismo contra
comunidade do povo negro no Brasil, que por sua vez, no seu principio não foge as
características do preconceito racial contra o negro em qualquer parte do planeta Terra.
No caso do Brasil o negro representa o grupo étnico protagonista e pilar
na formação da sociedade brasileira. O se propõe a demonstrar que, em decorrência do
Racismo Contra o Negro, este protagonismo não é reconhecido.
61
Para tanto, se opta pela metodologia comparativa utilizando como
parâmetro e referência o primeiro capítulo da obra A Condição Humana, que possui o
mesmo título: A Condição Humana, obra da pensadora política alemã Hannah Arendt
(1906–1975). Com essa referência, o trabalho traça um paralelo com as provocações
sobre o protagonismo dos negros na formação social, política e econômica do Brasil
lançadas pelo pensador político brasileiro, Manuel Querino (1851–1923), e
corroboradas por autores pensadores da negritude.
No primeiro capítulo é abordado A Condição Escravista no Cenário
Imperialista Europeu, no qual é analisado o desenrolar da geopolítica do imperialismo;
seguindo do segundo capítulo O Negro na Condição de Escravizado, contextualizando o
processo do tráfico negreiro; o terceiro capítulo compreende a Dimensão da Vita Activa
do Negro Escravizado no Brasil, em que é apresentado o Ser negro no caos da
discriminação racial; é finalizado com o capítulo A Condição da Imortalidade e a
Eternidade do Ser Negro, momento em que é evidenciada a identidade negra entre o
passado e o futuro para compreensão e enfrentamento das formas de racismo no Brasil
contra a comunidade negra.
É possível desvelar na modernidade os mecanismos nos quais foram
invisibilizados os negros na sua condição humana, mas por outro lado, evidenciam-se
também possibilidades da comunidade do grupo étnico negro aparecer no espaço
público e político, para resgatar seu protagonismo consolidado na sociedade brasileira
como forma de resistência ao racismo estrutural, institucional e de Estado a que o negro
se vê a mercê em todo tempo e espaço histórico da sociedade moderna.
A guisa de comparação como metodologia elegida para desenvolver a
compreensão do Racismo Contra o Negro se pode ilustrar o mal causado contra o negro
pelo racismo. Não se compara neste cenário para generalizar, Lévi-Strauss, (2008), mas
se pretende generalizar o racismo para comparar os mecanismos que levaram à
construção do holocausto contra o povo judeu, para demonstrar similaridades e
diferenças que há na construção do holocausto do tráfico negreiro, da escravização do
negro, bem como do preconceito racial contra o negro, assim a comparação se
estabelece com o seguinte fundamento:
62
Assim, tanto em etnologia como em linguística, não é a comparação que funda a
generalização, e sim o contrário. Se, como cremos, a atividade inconsciente do
espírito consiste em impor formas a um conteúdo, e se essas formas são
fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos,
primitivos e civilizados (como mostra tão claramente o estudo da função simbólica
tal como expressa na linguagem), é necessário e suficiente atingir a estrutura
inconsciente, subjacente a cada instituição e a cada costume, para obter um
princípio de interpretação válido para outras instituições e outros costumes,
contanto, evidentemente, que se avance o suficiente na análise. (LÉVI-STRAUSS,
2008, p.35).
Este mal será analisado a partir das ideias desenvolvidas por Hannah
Arendt pode ser denominado como mal banal. O mal banal penetra no seio da sociedade
como um fungo e destrói o tecido das relações sociais. Este mal banal é causado
segundo Arendt, pela suspensão por parte dos indivíduos da sua capacidade de pensar,
elaborar juízos e tomar decisões de maneira livre a partir do pensar, que ela define a
partir da concepção socrática do diálogo sem som, de mim comigo mesmo.
No filme Hannah Arendt – Ideias Que Chocaram o Mundo, dirigido pela
cineasta Margarethe Von Trotta, segundo a sinopse: Depois de acompanhar o
julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt ousa
escrever sobre o Holocausto como nunca havia sido feito antes. Seu trabalho provoca
um escândalo imediato, e Arendt permanece firme enquanto é atacada por amigos e
inimigos na mesma medida. Mas enquanto a imigrante judia alemã luta para romper
suas ligações dolorosas com o passado, a sedutora mistura entre arrogância e
vulnerabilidade de sua personalidade é exposta, revelando uma mulher lapidada pelo
exílio. O que a sinopse não revela é a questão central colocada pelo roteiro quanto à
questão da Banalidade do Mal, amplamente analisada na obra; Eichmann em Jerusalém,
Arendt enfrenta a direção da instituição acadêmica à qual estava vinculada na época,
que fazia coro com a comunidade judaica, não só de Nova Iorque, mas de outras partes
do mundo, sobre a qual pesava a acusação de ter sido complacente com a pessoa de
Eichmann, e dado mais visibilidade aos judeus que cooperaram com os nazistas do que
deviam.
A argumentação de Arendt, interpretada pela atriz Barbara Sukowa, é um
primor do pensamento Arendtiano colocado no roteiro acerca da culpa quanto às
63
tragédias dos crimes contra a humanidade, reproduzo a seguir algumas palavras do seu
discurso apanhadas segundo a visão de expectador:
Quando a New Yorker (revista) me convidou para cobrir o julgamento de Adolf
Eichmann, fui com a ideia de que o tribunal tinha apenas um propósito: fazer
justiça. Minha tarefa não foi fácil, o tribunal se viu diante de um crime que não
existia nos códigos penais e diferentes dos julgamentos que antecederam o
julgamento de Nuremberg. Mesmo assim cabia ao tribunal julgar Eichmann como
um homem. Não se julgava a história nem nenhum “ismo”. Nem mesmo o
antissemitismo, somente a pessoa. O problema de um criminoso como Eichmann é
que ele se recusa a renunciar a nenhum traço pessoal, dizendo que nada era
iniciativa pessoal, e que a culpa era do sistema nazista, do qual dizia ter sido um
eficaz servidor profissional, nada foi de sua iniciativa pessoal. Esta é a questão,
segundo Arendt, o mal perpetrado por ninguém, que tenha convicção, ou razão
maligna. Esta desculpa torna claro o maior mal do mundo: seres humanos que se
recusam a ser pessoas. Este mal perpetrado por “ninguém”, é este o fenômeno da
banalidade do mal. Quanto a evidenciação da cooperação de lideres judeus para
com os nazistas, Arendt se defende afirmando que os cooperadores judeus
poderiam ter agido de forma diferente, mesmo o nazismo não estando restrito
apenas às fronteiras alemãs. O fato de ela mesma ser judia a faz entender que o
nazismo foi um crime contra a humanidade porque o judeu é um ser humano.
Entender não é perdoar, desde Sócrates e Platão, afirma ela, o pensar é entendido
como um diálogo silencioso travado consigo mesmo. É um assunto de caráter, nas
palavras de Eichmann fica evidenciada a incapacidade de pensar, incapacidade de
fazer juízos morais. É uma análise filosófica o ato de pensar que caracteriza o
humano, ser capaz de distinguir o bem do mal, o belo do feio, para evitar a
catástrofe na hora da verdade. (TROTTA, Arendt, 2012).
Conclui-se que, é possível desvelar na modernidade os mecanismos nos
quais foram invisibilizados os negros na sua condição humana, mas por outro lado,
evidenciam-se também possibilidades da comunidade do grupo étnico negro aparecer no
espaço público e político por meio de obras e ações desencadeadas em diferentes
tempos e espaços geográficos, para resgatar seu protagonismo consolidado na sociedade
brasileira como forma de resistência ao racismo estrutural, institucional e de Estado a
que o negro se vê a mercê em todo tempo e espaço histórico da modernidade. Não se
trata de procurar culpados, pois segundo Arendt (1999) há um Eichmann em cada um de
nós, e onde todos são culpados pelo racismo ninguém o é. O que se busca nesta reflexão
é estabelecer caminhos para compreensão do fenômeno do racismo contra o negro,
visando, sobretudo consolidar estratégias para combater o mal banal racista contra o
negro.
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Referências Bibliográficas
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