o reverente irreverente a espirituosidade em rituais de umbanda.pdf

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FFCLRP DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O Reverente Irreverente: A espirituosidade em rituais de umbanda Alice Costa Macedo Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Ciências; Área: Psicologia. RIBEIRÃO PRETO SP 2011

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FFCLRP DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    O Reverente Irreverente:

    A espirituosidade em rituais de umbanda

    Alice Costa Macedo

    Dissertao apresentada

    Faculdade de Filosofia, Cincias e

    Letras de Ribeiro Preto da

    Universidade de So Paulo para

    obteno do ttulo de Mestre em

    Cincias; rea: Psicologia.

    RIBEIRO PRETO SP 2011

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FFCLRP DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    O Reverente Irreverente:

    a espirituosidade em rituais de umbanda

    Alice Costa Macedo

    Prof. Dr. Jos Francisco Miguel Henriques Bairro (orientador)

    Dissertao apresentada Faculdade de

    Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro

    Preto da Universidade de So Paulo

    para obteno do ttulo de Mestre em

    Cincias; rea: Psicologia.

    RIBEIRO PRETO SP 2011

  • AUTORIZO A REPRODUO TOTAL OU PARCIAL DESTE

    TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU

    ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE

    CITADA A FONTE.

    FICHA CATALOGRFICA

    Macedo, Alice Costa

    O Reverente Irreverente: a espirituosidade em rituais

    de umbanda. Ribeiro Preto, 2011.

    262 p. ; 30 cm

    Dissertao de Mestrado, apresentada Faculdade de

    Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto USP. Orientador: Bairro, Jos Francisco Miguel Henriques.

    1. Etnopsicologia. 2. Humor. 3. Psicanlise.

    4.Umbanda

  • FOLHA DE APROVAO

    Nome: Alice Costa Macedo

    Ttulo: O Reverente Irreverente: a espirituosidade em rituais de umbanda

    Dissertao apresentada Faculdade de

    Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto

    da USP, como parte das exigncias para a

    obteno do ttulo de Mestre em Cincias;

    rea: Psicologia.

    Aprovado em: ______________

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ________________________________________________________

    Instituio: _______________________________________________________

    Julgamento: ______________________________________________________

    Assinatura: ______________________________________________________

    Prof. (a) Dr.(a) ____________________________________________________

    Instituio: ______________________________________________________

    Julgamento: ______________________________________________________

    Assinatura: ______________________________________________________

    Prof. (a) Dr.(a) ____________________________________________________

    Instituio: ______________________________________________________

    Julgamento: ______________________________________________________

    Assinatura: ______________________________________________________

  • Promessas so promessas, assim cumpria o Arcanjo

    a sua orientao de travessias sertanejas: portanto,

    dedico minhas andanas mais uma vez minha av

    Maria, por ter atribudo sentido ao que existe de

    mais nuclear em mim (minhas razes, minhas

    histrias). Ao Antonio Henriques, que me permitiu

    ser parte de algum, de algum lugar, ensinando que

    o amor pode ser, sim, contnuo e ininterrupto.

    minha me, por ser sempre vermelha e vibrante: sem

    ela, eu no poderia imprimir esse trabalho, muito menos me imprimir nele. Ao Rafael, enfim, porque

    este Mestrado assim como a minha vida inteira (a

    partir de ento) passaram a ser absolutamente

    permeados por ele e por seu amor presente (obrigada

    por ter aparecido em meu caminho).

  • Agradecimentos

    Agradeo ao Miguel, em primeiro lugar, por ser Orientador de travessias, um incansvel significante que se repete e reverbera em minha histria, quando arcanjos cumprem promessas antigas de ancestrais distantes. Agradeo ao Miguel por sua maneira fina

    de ensinar um mtodo: permitir-se queimar, afinar a pele, olhar em silncio a fim de escutar os atabaques que ecoam por dentro.

    Ao Marcelo Mendes, protagonista deste trabalho, e a todo o seu fascinante panteo

    pessoal, pela sabedoria com que me presentearam ao longo de minha jornada como

    pesquisadora e como ser humano. O meu reconhecimento ao Patrono deste Mestrado: o Exu

    Tiriri, com quem tive a oportunidade de aprender grande parte do que sei hoje sobre a

    umbanda e seu esprito. E toda Fraternidade de Umbanda Esotrica Caboclo Pena Branca, em especial, Njla Mendes, por ter me acolhido e me ajudado no desenvolvimento de todo o

    meu trabalho. Alm disso, no poderia deixar de mencionar a colaborao indispensvel de

    cinco pessoas (filhos dessa Casa), pelas conversas profundas que inspiraram minha anlise:

    Flvia, Bacconi, Alex, Nria e o pequeno Pablo.

    Ao Joaquim... por ter me tornado novamente viva no momento em que eu esquecia

    completamente o que era estar vivo. Por ter cuidado de mim e devolvido tudo o que eu havia

    perdido. Acompanhou o meu Projeto de Mestrado, desde o seu incio: enquanto ele dormia, ia

    me acordando aos poucos e me ensinava a retomar os passos. Daniela Godoy, que me

    manteve to perto dela... longe de tudo o que descaminho... quando o que eu mais precisava,

    naquele momento, era ter algum como ela por perto de mim.

    Socorro... Caadora de penas... Vida em busca da mulher-sol-leoa, dos ventos e

    guas salgadas nos olhos de ventania da Cabocla Pena Ligeira. Era preciso voltar. Regressou

    s guas claras dos Ilhus. Azuis. Transparentes? Comedidamente cristalinas. Sob as guas

    claras dos Ilhus no se respira... um caldo de ondas salgadas na beira do mar... sem ar, sem

    sopro... somente cinzas... o cheiro de alfazema... Mas penas brancas no afundam... E ento?

    O que sentes? A medida sempre em tempo, no esqueas: Para sempre.

    Ao meu pai, Marinheiro de Ogum, pelo seu amor desmedido, sem rgua e compasso, um amor impresso em alicerces de edifcios concretos, to vivos dentro de mim.

    Clarinha, por ter brotado no primeiro dia da primavera, clareando minha vida (at mesmo o mar serenou quando ela pisou na areia... na beira da praia de Itaparica). Mara, minha companheira de dores na alma e no peito, minha melhor amiga nos momentos mais preciosos

    de minha infncia (a quem tenho uma gratido profunda por ter feito tudo parecer sempre

    mais doce e mais sereno do que realmente conseguiramos). A Fillipe: de tudo o que eu fui

    deixando em minha terra, esse , sem dvida, um pedao de mim mesma... e o que de mais

    importante deixei na Bahia.

    Bartira, filha legtima das ondas claras de Janana, pela sua presena marcante na

    minha vida como irm duas vezes e herdeira da minha promessa de resposta em tempo (nunca me esquea) e pequena Marina, pela sua luz (que eu sinto daqui, mesmo to distante de voc e que no poderia ter outro nome diante de sua origem das guas salgadas).

    minha famlia paulista, por tudo o que representam para mim e ao meu lado durante

    oito anos de distncia da Bahia. Hoje eles so parte do meu enraizamento em novos ares: Eduardo Name Risk, Vitor Hugo de Oliveira e Augusta Name Risk. Amanda, novamente (e

    sempre), por ser poesia, quando a vida da gente precisa de sentido, ritmo e cores vivas.

    Agradeo a todo o laboratrio de Etnopsicologia e, em especial, a quatro pessoas em

    ordem de ancestralidade. Mariana Leal de Barros: agradeo a orientao onrica que alicerou a anlise deste trabalho (nas palavras dela em meu sonho: Alice, nada to alto que no se possa alcanar e nada to rasteiro que venha te ameaar). Obrigada por ter aberto todas as portas em minha trajetria, tornando-se uma madrinha to presente, embora

  • por vezes geograficamente distante. Lgia Pagliuso, por sua escuta fina e pelas sensveis

    contribuies ao meu trabalho (devo a ela muitas das minhas consideraes finais, inclusive sobre as razes deste texto). Raquel, pela sua firmeza (no mais somente cabocla), mas por sua firmeza feminina. Jlia, pela sua encantada participao em meus trabalhos sobre Alices e Jurubebas, porque ela anda to presente neles que nem sequer se d conta...

    Aos amigos: Ju (pelo seu carinho, sua presena e pelo amparo tcnico no fim do percurso), Daniela (por toda a ajuda que tem me dado no fechamento do meu trabalho e de outras pontas soltas na vida), Marina Girardi, Arthur e Rodrigo.

    Almerinda, a minha me preta, como ela gostava de dizer para mim, quando ficvamos noites e noites sozinhas na casa do Rio de Janeiro.

    Ao Circo S Riso, onde possvel perder a pele, transmutar-se, ser dentro e fora, sem

    lona. Agradeo s serias, tigres e seres alados que l conheci e que devem estar, neste

    momento, enquanto escrevo esse texto, metamorfoseando-se sem fim, porque esse, de fato,

    o movimento mgico desse povo que l habita. Meu carinho especial a Carmen Pott, Anglica

    e Iago.

    Agradeo imensamente ao Wilson Mestriner, por ter me proporcionado um retorno a

    terras misteriosamente minhas e por ter me dito as coisas mais pungentes que algum pode

    ouvir (em torno da mesa de madeira xinguana). Um dia ele vai me levar de volta para que eu

    possa buscar o cheiro de ndio perdido na beira do rio. Lucila: quando eu puder, ela

    prometeu que me leva para voar, me empresta suas asas, me abriga em sua aldeia.

    Michele Candiani: por me permitir escrever e me inscrever em palavras, revelando (ou trivelando?) a emergncia de um ponto final, pois h sempre algo que

    simplesmente no se imprime. Agradeo seu modo prprio e diferente dos outros, sem ter

    nunca deixado de ser ela mesma.

    Maria de Lurdes (muito alm de uma professora de Francs), pelo seu carinho, suas

    palavras de alento, por ser um pouco de paz em meses e sbados tumultuados de escrita e

    leituras intensas.

    Aos amigos do COC, que tornam meu trabalho mais humano e mais vivo: Silvana,

    Ana Carolina, Thauana, Renata, Ludmila, Roselaine e Cludia. Agradeo a Marina Caprio,

    que me ajudou (sem saber, mas sabendo de alguma forma) e veio (desde l) abrindo meus caminhos.

    Agradeo a todo o terreiro de umbanda Oxal e Yemanj por ter me acolhido e me

    recebido em sua Casa, especialmente ao Toninho, Lus, Patrcia, a pequena Jlia, Silvinho, S.

    Altamiro (sangue do meu sangue baiano), Janana, Cleide e Jairo (por tudo e principalmente

    pelas caronas cuidadosas de volta at a minha casa).

    Agradeo minha banca: Profa. Dra. Valria Barbieri, em sua refinada sensibilidade

    na leitura e escuta dos dizeres que atravessam o meu trabalho (desde os meus tempos de

    graduao at o fechamento deste Mestrado); Profa. Dra. Liana Trindade por trazer ao meu

    texto toda a sua experincia, suas ricas contribuies e um cuidadoso olhar em profundidade.

    Agradeo ao apoio financeiro da CAPES e FAPESP.

  • O Reverente Irreverente: Gargalhada do

    Patrono deste Trabalho, Exu Tiriri, recebido

    pelo pai-de-santo Marcelo Mendes.

  • RESUMO

    MACEDO, A. C. O Reverente Irreverente: a espirituosidade em rituais de umbanda. 2011.

    Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto.

    O humor revela-se frequentemente como uma caracterstica marcante nos rituais umbandistas.

    Diante disso, este estudo prope-se investigar, numa perspectiva etnopsicolgica, se e em que

    medida as teses psicanalticas (freudianas e lacanianas) sobre o chiste e o cmico podem

    ajudar a compreender o humor na umbanda. A pesquisa de campo foi realizada na

    Fraternidade de Umbanda Esotrica Caboclo Pena Branca, em Ribeiro Preto, cujos rituais se

    mostraram comumente bem humorados. Procedeu-se a uma escuta participante, que implica

    em uma escuta psicanaltica, na qual a participao entendida e utilizada como instrumento

    de refinamento da audio. Nessa medida, a implicao do pesquisador em campo foi

    indispensvel, pois o efeito de sentido tambm produzido nele, que escuta e ri. Aps a

    anlise dos episdios espirituosos, foi possvel constatar que a compreenso psicanaltica do

    humor aplicvel s suas ocorrncias no ritual umbandista. Nas falas dos prprios adeptos do

    terreiro, o riso revela seu uso teraputico, parte de um tratamento que quebra defesas, o que se coaduna com a perspectiva freudiana de descarga de catexias. No entanto, segundo as

    teses psicanalticas, frequentemente os chistes permitem a expresso de impulsos agressivos

    dirigidos ao ouvinte, enquanto na umbanda a funo de ser objeto do riso deslocada para

    personagens cmicos que representam o que poderia haver de repreensvel no outro,

    deslocando a censura sobre os seus filhos para o enredo de uma comdia atuada por espritos. Alm disso, ao brincar com metforas e sentidos novos, os espritos do eco

    complexidade do sujeito humano, refletindo-a alm de intelectualizaes.

    Palavras-Chave: etnopsicologia, humor, psicanlise, umbanda.

  • ABSTRACT

    MACEDO, A. C. The Irreverent Reverence: humor in umbanda rituals. 2011. Dissertation

    (Masters Degree) Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto.

    Humor frequently reveals itself as an outstanding feature in Umbanda religious rituals. Given

    that, this study seeks to investigate, from an ethnopsychological perspective, if and to what

    extent psychoanalytic theories (Freudian and Lacanian) about wits and comic may help to

    understand Umbanda humor. The field research was conducted at Fraternidade de Umbanda Esotrica Caboclo Pena Branca in Ribeiro Preto, where the rituals generally proved to be humorous. The method was the participant listening, that involves a psychoanalytic listening

    in which participation is understood and utilized as an instrument of audition refinement.

    Thus, the researcher's involvement while in the field was essential since the effect of meaning

    is also produced on this individual who listens and laughs. After analyzing the witty episodes,

    it was concluded that the psychoanalytic understanding of humor is applicable to these

    occurrences in Umbanda ritual. In the religious own speeches, the laughter exposes its therapeutic uses; it is part of a "treatment" for "breaking defenses", which is consistent with

    the Freudian idea of catharsis. However, according to psychoanalytic theories wits regularly

    allow the expression of aggressive impulses, while in Umbanda the objects of laughter are

    comic characters that represent what could otherwise be considered objectionable, displacing

    the "censure" to a comedy plot acted by spirits. Moreover, while playing with metaphors and

    new meanings, the spirits mirror non-rational aspects of human complexity.

    Keywords: ethnopsychology, humor, psychoanalysis, Umbanda.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ......................................................................................................... 19

    1.1 Pisa na umbanda, pisa devagar..................................................................................... 21

    1.2 A comdia e os rituais de possesso .................................................................................. 33

    1.3 Psicanlise ............................................................................................................................. 38

    1.3.1 Os chistes em Freud .............................................................................................................. 38

    1.3.2 Os chistes em Lacan .............................................................................................................. 60

    2. MTODO ............................................................................................................................. 89

    2.1 Psicanlise sem reducionismos: etnoteorias e escuta analtica ..................................... 91

    2.2 A pesquisadora em campo: do fogo baiano leveza do humor ................................... 95

    3. RESULTADOS E DISCUSSO ..................................................................................... 121

    3.1 O templo esotrico aos olhos do velho de raiz .......................................................... 123

    3.2 Uma umbanda e dois lados do muro ..................................................................... 131

    3.3 A elevao da pena e a raiz incandescente ................................................................... 133

    3.4 Fraternidade de Umbanda Esotrica Caboclo Pena Branca ..................................... 137

    3.5 A trajetria de Marcelo .................................................................................................... 144

    3.6 A Fraternidade e seus laos fraternais ........................................................................... 150

    3.7 Peneira fina que no sabe peneirar: me d a mo que eu te passo na pinguela.. 152

    3.8 Humor em palavras: concepes da comunidade umbandista .................................. 158

    3.9 A Aldeia Circense do Caboclo Pena Branca ............................................................. 167

    3.9.1 Marinheiro ncora e Joo da Gvea .................................................................................. 169

    3.9.2 Z do Coco e Baiano Severino ........................................................................................... 173

    3.9.3 Encruzilhadas do Humor: os exus do Pena Branca ........................................................... 180

    3.9.3.1 O Exrcito do Guardio Tiriri ............................................................................................ 184

    3.9.3.2 Div na Encruza: Psiclogas de f, Psiquiatras de jaleco preto ................................ 196

    3.10 O Humor em Cena ............................................................................................................ 202

    3.10.1 Da Gvea ncora: o humor em terra firme .................................................................... 202

    3.10.2 Farinha do mesmo saco: cura, cobra e feitio .................................................................... 208

    3.10.3 Advogados do Diabo: o jogo das contradies ................................................................. 222

    3.10.4 A comdia na tronqueira ..................................................................................................... 233

    4. CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................... 249

    5. REFERNCIAS ................................................................................................................ 257

  • 19

    1. INTRODUO

  • 20

  • 21

    1.1. Pisa na umbanda, pisa devagar

    A umbanda revela sua condio essencial (e muito cara aos seus adeptos) de religio

    genuinamente brasileira devido sua matriz negra, ao lado da indgena e da europeia, sendo,

    dessa forma, o fruto da fuso dos cultos das trs raas que constituiriam a nacionalidade

    (NEGRO, 1996, p. 147).

    Na umbanda, o sagrado se compe a partir da elaborao de elementos profanos da

    cultura popular brasileira. o que Brumana e Martinez (1991, p. 117) denominam de

    transposio do profano ao sagrado sem perdas nem renncias ou profano diretamente

    sacralizado. De acordo com ambos, esta bricolagem religiosa do imediato uma das

    chaves da Umbanda (p. 117).

    Segundo Concone (2006, p. 8):

    A Umbanda de fato mltipla. No religio de uma classe ou etnia, seu

    trabalho sincretizador nunca se esgota e as combinaes so to variadas

    quanto o peso relativo do material de que lana mo nesse processo.

    Malgrado essa plasticidade profundamente popular nos smbolos que

    congrega e na esttica que atualiza.

    A possibilidade inerente ao imaginrio religioso umbandista de refletir a realidade

    social propicia um carter dinmico ao surgimento de novos personagens no panteo, j que a

    umbanda estabelece um ntimo dilogo com a sociedade, atento s suas necessidades e

    mudanas, sacralizando universos profanos e dando expresso a grupos sociais

    marginalizados. nesse contexto que se d o surgimento das linhas, definidas por Magnani

    (1986) como divises que agrupam entidades, atendendo aos seguintes critrios: afinidades

    intelectuais e morais, origem tnica e estgio de evoluo espiritual. Essas entidades dividem-

    se em diferentes tipos particulares, so chefiadas pelos Orixs identificados aos santos

  • 22

    catlicos que os enviam como mensageiros e agentes, para entrarem em contato com os

    homens e auxili-los (NEGRO, 1996, p. 202).

    Concone (2006, p. 5) refere-se da seguinte forma ao surgimento das entidades

    umbandistas:

    De onde vm estes grandes tipos? So evidentemente retirados da realidade nacional. Do nosso ponto de vista, exatamente aqui que est o grande

    interesse da religio umbandista: o fato de mergulhar to profundamente na

    realidade brasileira, de buscar a sua fonte de inspirao, transformando em

    smbolos sociais figuras do cotidiano popular e buscando a seu modo o

    significado mais profundo de tais figuras.

    Negro (1996, p. 201) esclarece que nas giras1 descem os espritos, genericamente

    chamados de guias, orixs ou santos. Essas entidades incorporam em seus mdiuns para

    atender consulentes que trazem mltiplas qualidades de aflies, entre elas, questes

    relacionadas vida financeira, afetiva, ao trabalho, sade etc.

    De acordo com Negro (1996, p. 202), uma outra diviso dentro do universo mtico

    umbandista a que ope os espritos em duas categorias: de esquerda e de direita:

    A questo relativa ao bem e ao mal corresponde diviso direita-esquerda

    do panteo umbandista, agrupando bons e maus espritos em duas linhas

    bastante diferenciadas, mas no exclusivas. Quanto direita, (quase) no h

    polmica: agrupa os orixs, guias de luz ou mentores espirituais,

    inquestionavelmente bons, apesar de diferenciados em termos de graus

    quanto evoluo espiritual (p. 337).

    Porm, Negro (1996, p. 337) esclarece que a questo axiolgica sobre o bem e o mal

    na umbanda no uma questo teologicamente equacionada, como no universo simblico

    cristo, plenamente definido [...] na Umbanda, tal como afirma um pai-de-santo, Deus bom

    e o Diabo no mau.

    1 As giras so, segundo Brumana e Martinez (1991), as cerimnias religiosas da umbanda, a ao mstica de um

    orix ou de uma entidade. Portanto, existem as giras de pretos velhos, as giras de caboclos, as giras de baianos,

    as giras de desenvolvimento (quando os mdiuns da casa desenvolvem sua mediunidade), as giras de cura e

    assim por diante.

  • 23

    As entidades da direita so definidas resumidamente a seguir:

    Caboclos: segundo Negro (1996), normalmente o caboclo representa a chefia do centro de

    umbanda. So espritos de ndios, conhecedores das matas e dos seus segredos de cura,

    apresentam-se como guias srios, francos e firmes, s fazem o bem e se caracterizam por sua

    retido moral e por suas virtudes guerreiras.

    Pretos-Velhos: Negro (1996) explica que so espritos de negros escravizados. Vm sempre

    curvados, so calmos, pacficos e acolhedores. Benze e abenoam seus consulentes.

    Crianas: so os Ers ou Ibejis. Trata-se de espritos infantis, associados inocncia e

    alegria; dirigem-se aos seus consulentes muitas vezes de forma jocosa e descontrada, porm

    em tom de ingenuidade (NEGRO, 1996). Em suas giras, so homenageadas com doces,

    bolos, refrigerantes, brinquedos e chupetas. Segundo Brumana e Martinez (1991), as crianas

    apresentam-se na umbanda em estado de natureza, sem normas nem responsabilidades, em

    oposio ao rigoroso e rgido mundo adulto.

    Alm da direita e da esquerda, Negro (1996) ressalta que, no panteo, h tambm

    referncia aos espritos intermedirios, ou seja, aqueles que esto no meio termo entre os

    dois extremos da umbanda. Pertencem s linhas mistas, auxiliares ou intermedirias. A seguir

    sero definidos dois representantes dessas linhas:

    Baianos: Segundo Souza (2001), os baianos podem aparecer como guias irreverentes,

    encrenqueiros, brincalhes e valentes, que fumam, pedem cachaa e batida de coco. Souza

    (2001) apresenta ainda os tipos de trabalhos que se dispem a realizar, inclusive aqueles

    recusados por pretos-velhos e caboclos, tais como de ordem financeira ou ligados

    intimidade, como adultrio e desavenas. Alm disso, Concone (2006) tambm define o

    baiano da umbanda a partir de aspectos tpicos a ele associados, tais como a alegria, a festa, a

    briga, a malandragem, o sotaque baiano, a ginga do corpo, o xaxado, a postura ereta, porm

  • 24

    descontrada. Para Brumana e Martnez (1991, p. 280), o baiano expressa-se como de trato

    ainda mais acessvel do que o preto-velho, tratado com maior intimidade por tu, pede

    para fumar e beber, no repreende seus clientes ou agentes e assume um tom jocoso em suas

    conversas com os consulentes.

    Marinheiros: de acordo com Negro (1996), so alcolatras e mulherengos (p. 239),

    dirigem-se s mulheres com galanteios pouco sutis, so bem humorados, embora seus

    chistes sejam, por vezes, grosseiros [...] no obstante bbados inveterados, so considerados

    excelentes curadores, realizando operaes espirituais (p. 241).

    J a esquerda povoada por personagens ambguos, os exus e as pombagiras:

    Exus: Segundo Trindade (1985), o exu o heri africano trickster e ambguo, vem ao

    terreiro com o corpo curvado e retorcido, os ps virados para dentro, os braos nas costas, as

    mos como se fossem garras e as faces retorcidas: estas expresses traduzem a noo que

    define exu como a oposio. Conforme os depoimentos declaram Exu o avesso, o contrrio,

    a negao (TRINDADE, 1985, p. 188). Eles foram em sua existncia terrena, malandros,

    prostitutas, alcolatras, delinquentes sociais etc. (p. 137) e por isso os exus configuram e

    simbolizam os conflitos dos indivduos pertencentes a grupos sociais instveis, produtos de

    estruturas sociais ambguas e contraditrias (TRINDADE, 1985, p. 141). Segundo Trindade

    (1985, p. 115), o exu se apresenta como personagem dual do panteo, um heri mgico e

    religioso a identificao de Exu com o demnio se faz principalmente ao nvel da magia,

    porm essa associao rechaada em terreiros com forte influncia kardecista. Trindade

    (1985) destaca que o assentamento do exu detm o poder mgico, a defesa do terreiro, de

    modo que essa entidade passa a ser popularmente conhecida como o compadre, o guardio,

  • 25

    o protetor. Trindade (1985, p. 134) sublinha que o cavalo2 se identifica frequentemente com

    seu exu ao nvel de sua personalidade: exu identificado com os homens, o seu universo a

    terra e, como os seres humanos, ele ao mesmo tempo bom e mau. possvel afirmar que o

    exu torna desejveis formas comportamentais socialmente negadas (agressividade,

    irritabilidade, impulsividade), visto que, no contexto religioso da umbanda, esses traos esto

    organizados em uma experincia cultural que propicia segurana e aceitao social

    (TRINDADE, 1985, p. 158-159). Desse modo, concebe-se, a partir do Exu, a ambiguidade e

    a dinmica do comportamento social divergente (TRINDADE, 1985, p. 159).

    Segundo Negro (1996), embora isso no seja to comum, alguns exus podem

    aparecer, em alguns terreiros, agrupados na mesma linha intermediria dos baianos e

    marinheiros: em alguns casos, os exus que em regra so considerados ambivalentes, isto ,

    que, embora de esquerda, tambm podem trabalhar na direita, so includos na tal linha mista

    (p. 338).

    Exus Mirins: Os mirins refletem a delinquncia infanto-juvenil das crianas de rua, sem

    disfarces ou recondicionamentos (BAIRRO, 2004, p. 63). No pertencem linha dos exus

    adultos, tampouco representam as puras crianas da direita. Suas narrativas mticas so

    normalmente temperadas de tragdias e, contraditoriamente, de um refinado senso de

    humor. As suas giras habitualmente so ainda mais hilariantes do que o habitual numa

    religio que, com o povo brasileiro, aprendeu a referir solenidade a opresso (BAIRRO,

    2004, p. 63). Segundo esse autor, os mirins so bocudos, jocosos, gostam de fazer gozao

    com seus adeptos e consulentes, tocando-lhes as feridas, atravs de verdades ferinas. O

    senso da dor, prpria ou alheia, ou mais exatamente o senso de medida, parece passar ao largo

    das suas cogitaes (BAIRRO, 2004, p. 63).

    2 O mdium que recebe suas entidades em estado de transe pode ser chamado, em terreiros de umbanda, de

    cavalo, burro ou aparelho (nesse ltimo caso, se o centro tiver influncias kardecistas fortes).

  • 26

    Pombagiras: Segundo Concone (2006, p. 7), trata-se da verso feminina do exu, conquanto

    relacionadas a uma atividade definidora do status de subalternidade da mulher, tambm o

    seu resgate. Concone (2006, p. 7) destaca ainda que para alm da associao com a

    prostituta, a dimenso simblica da pombagira (que ela define como libertria) apresenta

    uma mulher que responsvel pela sua prpria sexualidade.

    Brumana e Martinez (1991) sugerem que cada linha de entidades apresenta seu estilo

    prprio e atribui s suas giras um tom caracterstico, seja ele tenso, circunspecto ou alegre:

    H Orixs que quando baixam3 transformam o terreiro num lugar festivo e distendido; outros, com seu descaramento ameaador, inspiram cautela; e

    outros, a compostura e discrio. H algumas giras em que todos, guias e

    humanos, riem; h aquelas em que ningum o faz; h outras em que s aos

    espritos lhes dado faz-lo (p. 282).

    Brumana e Martinez (1991) defendem que h no panteo trs estilos, que se opem

    um ao outro e que se relacionam contraposio entre privado e pblico, entre a ordem

    domstica e ordem/desordem externa: o sardnico, associado aos exus e pombagiras, no

    domnio da Marginalidade (a Rua); o srio, representado pelos caboclos, oguns e boiadeiros,

    no universo da Lei; e o jocoso, no qual se apresentam as crianas, os baianos e os

    marinheiros, na dimenso da Casa.

    Frente a essa caracterizao, possvel refletir sobre o riso presente nas giras de

    entidades da esquerda e de guias intermedirios. O riso do baiano e do marinheiro

    debochado, jocoso; a gargalhada do exu colrica, sardnica, agressiva, um riso insultante; a

    pombagira provocativa; e o riso dos ers assume um carter mais prximo da comicidade.

    Desse modo, as entidades do panteo revelam-se mltiplas, em roupagens variadas,

    atravs de um processo malevel, no qual novos guias surgem e se misturam fluidamente aos

    3 O verbo baixar empregado, neste caso, no sentido de incorporar, entrar em transe.

  • 27

    outros espritos considerados tradicionais e fundantes. nesse sentido que, segundo Negro

    (1996, p. 28), o universo simblico reelabora popular e espontaneamente mitos originais,

    apresentando-se como um reflexo imediato da vivncia de seus elaboradores, para que, a

    partir da, seja devidamente apropriado por intelectuais, acadmicos, pesquisadores ou lderes

    umbandistas que o redefinem em funo de padres exgenos.

    Essas apropriaes podem ocorrer tanto no sentido de lembrar e marcar as razes

    mltiplas da umbanda (que se misturam em tradies negras, indgenas e europeias), quanto

    no sentido de neg-las na prtica, na medida em que alguns de seus adeptos a cristianizam ou

    kardecizam (NEGRO, 1996). O elemento europeu foi acolhido e incorporado 4 pelo

    universo religioso umbandista medida que aspectos culturais do estilo de vida europeia

    foram ao poucos reproduzidos no Brasil.

    Influncias religiosas e concepes espiritualistas trazidas da Europa, tais como o

    espiritismo cientfico kardecista, o cristianismo esotrico, o tar, a cabala e o fascnio por

    tradies orientais de uma maneira geral, ganharam fora entre os membros da classe urbana

    no Brasil, principalmente no incio do sculo XX, quando a ideologia positivista dos

    republicanos proclama a necessidade da erudio contra a barbrie das supersties

    (TRINDADE, 2000, p. 111-112).

    Segundo Trindade (2000), os princpios esotricos da maonaria tambm alcanaram

    grande popularidade na poca, principalmente entre os militares republicanos. Alm disso,

    buscavam-se na literatura e nas publicaes norte-americanas, britnicas e francesas,

    conhecimentos considerados modernos e que harmonizavam cincia e f, magia natural e

    cientificismo: o ocultismo, a cabala, as doutrinas da Rosa Cruz, a magia natural dos elementos

    da natureza, o magnetismo pessoal e a confluncia dos astros (TRINDADE, 2000).

    4 Muitas vezes incorporar literalmente. Vide as linhas de mdicos do astral, por exemplo, em alguns terreiros

    com fortes influncias kardecistas e esotricas.

  • 28

    Delineava-se na poca um impasse entre a erudio e a sabedoria popular:

    A medicina farmacolgica afirma sua legitimidade em oposio ao

    curandeirismo da medicina tradicional. A constituio de 1889 introduz, em seus artigos 156 e 157, penalidade contra as prticas do espiritismo, a

    condenao falsa medicina dos curandeiros, s normas comportamentais e

    aos valores racionalizadores em substituio ao provincialismo tradicional

    da nao (TRINDADE, 2000, p. 112).

    Na mesma linha, Magnani (1986) sublinha a tendncia de outras instituies e setores

    da sociedade, alm da medicina farmacolgica, em desqualificar a umbanda, a saber, a Igreja

    Catlica, a cincia, a imprensa e a polcia. Como apontam Magnani (1986), Negro (1996) e

    Tramonte (2001), os umbandistas, em busca de sua legitimao, multiplicaram o nmero de

    federaes no pas a partir da dcada de 1950, organizaram congressos e passaram a divulgar

    suas doutrinas e fundamentos rituais atravs de livros, revistas, jornais e programas de rdio.

    A partir de um outro recorte, Brumana e Martinez (1991) tambm desenvolveram um

    estudo sobre a umbanda, mas especificamente em terreiros da periferia paulistana. Para ambos, a

    umbanda um culto subalterno, o sentido subalterno da realidade social brasileira (p. 380):

    A Umbanda a manifestao direta da subalternidade. No a nica, mas

    a mais imediata, a mais natural, a subalternidade em estado selvagem, seu grau zero religioso (p. 117). O carter subalterno da Umbanda se reflete no s externamente mas a

    penetra em suas tramas mais ntimas e profundas. A proposio que temos

    sustentado desde o incio, segundo a qual a Umbanda uma elaborao da

    subalternidade, adquire assim todo o seu sentido (p. 286).

    Para Brumana e Martinez (1991), existem indcios de que a umbanda (tomada como

    um culto subalterno) aproxima-se da ideia de protesto simblico contra a sociedade, de

    modo semelhante ao que props Lewis (1977) em seu estudo sobre cultos perifricos: Em

    outras palavras, os cultos subalternos tm um carter antiestrutural expresso em diferentes

    planos, desde os mais gerais da doutrina aos concretos e especficos dos cerimoniais

    (BRUMANA; MARTINEZ, 1991, p. 79).

  • 29

    Lewis (1977, p. 33) defende que os cultos perifricos expressam os protestos dos

    politicamente impotentes, emergindo como uma estratgia agressiva oblqua e como um

    ataque mstico. Lewis (1977, p. 33) opta pela denominao cultos perifricos para as

    manifestaes religiosas que abarcam categorias oprimidas de homens que esto sujeitos a

    fortes discriminaes em sociedades rigidamente estratificadas; embora destaque, em sua

    obra, que no gosta de usar tal definio para cultos populares.

    Para Lewis (1977), a possesso, nos rituais populares, possui uma funo social na

    medida em que o entusiasmo religioso revela-se como uma ameaa ordem estabelecida.

    Porm, argumenta que, embora expresse insubordinao, a insurgncia excessiva

    devidamente controlada pela ordem hierrquica estabelecida, de modo que esses cultos de

    protesto apenas ventilam suas animosidades reprimidas sem questionar a legitimidade

    ltima das diferenas de status [...] (LEWIS, 1977, p. 34), e so permitidos apenas dentro de

    certos limites, devidamente contidos por mecanismos sociais de defesa.

    Tocando assim o tema de rebelies ritualizadas que, aqui como em outros

    lugares, est indubitavelmente presente nesses cultos dos pouco

    privilegiados, devemos ser cuidadosos para no concluir que essas

    expresses de insubordinao canalizadas representem uma catarse

    completamente satisfatria que exaura totalmente ressentimentos e

    frustraes reprimidos (LEWIS, 1977, p. 141).

    Frente a esse controle da ordem estabelecida, Lewis (1977) aponta que, sob pena de

    perder sua autoridade como voz de protesto, a crena na existncia e eficcia desses poderes

    rebeldes deve incluir a participao, nos rituais, no apenas dos subordinados, mas

    tambm de seus superiores; ou seja, os cultos perifricos normalmente acolhem adeptos

    de toda e qualquer classe social. Caso contrrio, quando o carter transgressor corre o risco de

    exceder os limites da tolerncia, tais prticas recebem acusaes de bruxaria, caindo no

    descrdito popular e perdendo o seu status.

  • 30

    No caso particular da umbanda, Brumana e Martinez (1991, p. 379) afirmam que pode

    existir uma suposta funcionalidade, mas que nunca poderia ser detectado atravs de estatsticas:

    No nosso caso, os resultados de prticas e crenas msticas, quaisquer que

    sejam, no alteram a realidade em que os protagonistas vivem. No

    produzem uma ordem ou um reordenamento social emprico, mas produzem

    esta ordem to-somente para o olhar de seus adeptos. Em outras palavras,

    no ordenam ou reordenam a sociedade materialmente mas conceitualmente

    (p. 379).

    Segundo Brumana e Martinez (1991), o ritual umbandista no apresenta a funo

    especfica de absorver os conflitos da sociedade ou o meio atravs do qual seus adeptos so

    conformados ordem social. Dizer isso negligenciaria toda a riqueza do fenmeno e imporia

    aos subalternos a glida e estigmatizante viso dos eruditos (BRUMANA; MARTINEZ,

    1991, p. 379).

    Sobre essa questo largamente discutida na literatura sobre a possesso no que tange

    ao seu aparente carter de ameaa e conformao ordem estabelecida, Concone (2006, p. 8)

    defende que a oposio alienao-cooptao X contestao nos parece no dar conta de uma

    dialtica sutil interna ao campo umbandista. Segundo Concone (2006, p. 8), as sagradas

    figuras mticas do panteo, na condio de figuras mximas, so buscadas nas camadas

    populares, subalternas, dominadas. Esses personagens mticos so subalternos no nvel

    do real, mas so exatamente o oposto no nvel simblico e religioso (CONCONE, 2006).

    Nesse sentido, Concone (2006, p. 7) sublinha que:

    No estamos entendendo, contudo, que estejamos aqui diante de mera ao catrtica ou de uma ao duplamente alienante. So smbolos polmicos,

    contestadores e densos, portanto, de possibilidades. No descartamos,

    evidente, a questo da alienao ou da catarsis, mas acreditamos que seu

    significado maior est no seu aspecto dinmico, contestador.

    Neste mesmo trabalho citado acima (O ator e seu personagem), Concone (2006)

    prope que, no ritual umbandista, os aspectos dinmicos e contestadores so interpretados

  • 31

    por filhos e filhas de santo (os atores sagrados, ou seja, os mdiuns que incorporam

    espritos) e por suas entidades (os personagens mticos):

    Este termo incorporar particularmente feliz para o tema que nos mobilizava desde o incio, pois no corpo e atravs do corpo do ator que

    falam os personagens (as entidades). atravs de um ator que personagens

    genricas vo ganhando identidades especficas (p. 3)

    Segundo a mesma autora, a partir dos tipos do panteo (as linhas da umbanda, tais

    como pretos-velhos, caboclos, baianos, exus), cada personagem (por exemplo, Caboclo Pena

    Branca, Pai Congo, Exu Tiriri) emerge com caractersticas individualizadas, que vo sendo

    pouco a pouco buriladas, isto , expressando suas personalidades nicas. Ganhando

    personalidade prpria, ou melhor, expressando suas idiossincrasias (p. 17).

    Trindade (1985) nomeia esse processo de interpretaes individualizadas do mito,

    nas quais, de acordo com Concone (2006, p. 16), o personagem emerge graas a um processo

    de objetivao e subjetivao, em que os elementos sociais objetivados so trabalhados no

    nvel individual, ganhando nova densidade. o comportamento do ator/mdium quem

    representa e compe o perfil de cada personagem (CONCONE, 2006) 5.

    Nesse enredo ritual, a autoria, para Concone (2006, p. 18), francamente social.

    Por outro lado, ela sublinha que a autoria annima, social, que se cristaliza nas figuras

    mtico-simblicas da umbanda, passa pelo filtro do ator/cavalo enquanto um membro situado

    desta e nesta sociedade (p. 23). Alm disso: embora a execuo de seu papel ocorra de

    modo privilegiado num espao sagrado, montado para receb-lo, tal espao tambm cabe no

    meio social mais amplo da crena que lhe d sentido (CONCONE, 2006, p. 23 e 24).

    Brumana e Martinez (1991) concordam que possvel encontrar, tambm na

    umbanda, aspectos teatrais da possesso (p. 278). Segundo eles, muitos consulentes

    5 Concone (2006) esclarece ainda que, neste trabalho, no se refere ao ator social, que desempenha papis

    sociais, nem ao ator de teatro, em seu sentido lato, mas ao ator de um drama sagrado, j que a crena que sustenta sua atuao.

  • 32

    frequentam os terreiros mesmo sem apresentar um problema concreto a resolver. Vo, muitas

    vezes, no apenas para solucionar questes aflitivas, mas porque gostam, porque o trabalho

    bonito (critrios estticos). Tambm nesse aspecto a umbanda revela seu carter de

    espetculo (BRUMANA E MARTINEZ, 1991):

    Esta teatralidade no homognea; no s uma pea o que se representa

    ou, se se quiser ver a cerimnia como uma pea nica, preciso reconhecer

    que montada sobre atos muito dspares. Cada um destes atos ou esquetes fruto da presena de membros de uma linha de Orixs e tecido com os elementos dos repertrios prprios a cada esteretipo (p. 278).

    Por outro lado, esse espetculo no se refere a uma representao clssica, cuja

    plateia se comporta como um espectador passivo. Para Brumana e Martinez (1991), a

    assistncia dos terreiros um pblico ativo, at porque , em si, a razo da atuao das

    entidades e, alm disso, apresenta atitudes diante de cada guia que passam a ser verdadeiros

    emblemas: o limite entre o lugar do pblico e os dos atores ultrapassado por uns e por

    outros como tambm o primeiro tem um papel essencial na ao que se desenrola (p. 278).

    Discusses sobre o carter de contestao e sua conformao na cena umbandista

    com destaque aos aspectos teatrais da possesso como um enredo ritual de autoria coletiva

    j foram desenvolvidas e comentadas nos estudos sobre umbanda, porm nunca foram

    abordadas, especificamente, pelo vis do humor atravs do qual seria possvel sugerir que se

    veiculam, nesses cultos, confrontos s represses socioculturais. Nem sequer seguro que

    essa seja a finalidade precpua do riso nos rituais, mas o fato que, independentemente de sua

    funo, o prprio humor em si, enquanto fenmeno presente e assduo na umbanda, nunca foi

    investigado em profundidade.

    Outros cultos de possesso tambm recorrem ao humor, a exemplo dos rituais no Sri

    Lanka pesquisados por Obeyesekere e Obeyesekere (1976) e por Kapferer (1983) com base na

    teoria da performance e nas teses sobre drama ritual. Nesse sentido, interessante apresentar

  • 33

    os principais argumentos desses autores, para que posteriormente possamos discutir o humor

    no caso dos rituais de umbanda.

    1.2 A comdia e os rituais de possesso

    Para Obeyesekere e Obeyesekere (1976, p. 5):

    quase um trusmo dizer que os rituais religiosos so frequentemente

    dramticos na forma: as pessoas desempenham papis diferentes daqueles do

    cotidiano e relacionam-se mutuamente (interagem) em um contexto especial,

    claramente separado da realidade secular e mundana6 (traduo nossa).

    Segundo eles, no drama ritual os atores personificam seres sagrados e heris da

    mitologia. Desse modo, frequentemente o drama, em si mesmo, considerado uma

    representao do mito, desde que essa performance seja sempre interpretada como religiosa, o

    que significa que aqueles que a testemunham so crentes ou fiis (OBEYESEKERE;

    OBEYESEKERE, 1976). Porm a natureza sagrada de um drama religioso no exclui o fato

    de que ele pode ser tambm um jogo ou um espetculo (OBEYESEKERE; OBEYESEKERE,

    1976).

    De acordo com Obeyesekere e Obeyesekere (1976), muitos rituais exigem um ator,

    uma funo ou regra, uma posio ou representao dramtica e uma cena, palco ou rea onde

    a performance deve ocorrer, de modo que em muitos desses casos o contedo do drama uma

    parte da tradio religiosa de um grupo.

    6 It is almost a truism to say that religious rituals are often dramatic in form: individuals take on roles different

    from their everyday ones and relate to each other (interact) in a special area clearly marked out from secular and

    mundane reality (OBEYESEKERE; OBEYESEKERE, 1976, p. 5).

  • 34

    O drama ritual bem diferente de outros tipos de atos rituais religiosos, porque, no

    primeiro caso, aquele que testemunha tanto participante como espectador (presencia a

    performance ou representao de mitos sagrados), de modo que no segundo caso (por

    exemplo, uma orao, uma reza ou comunho) o religioso tem uma participao pessoal direta

    em seu envolvimento no ritual.

    Embora em dramas religiosos a participao seja indireta, o fiel tem a possibilidade de

    se relacionar intimamente com os eventos sagrados que esto sendo representados. por isso

    que a descrena seria axiomaticamente impossvel em uma representao ou performance

    religiosa (OBEYESEKERE; OBEYESEKERE, 1976).

    H tambm outro aspecto sublinhado por Obeyesekere e Obeyesekere (1976) nos

    dramas rituais que merece destaque: o fato de apresentarem no raramente aspectos de uma

    aparente irreverncia, stiras, humor vulgar e obscenidades. Os rituais que se mostram

    apimentados por uma deliberada irreverncia geralmente revelam a participao indireta dos

    adeptos, j que, nesses casos, comum que apenas os sacerdotes representem o ato religioso.

    Ao discutir a irreverncia, a vulgaridade e a obscenidade em rituais religiosos,

    Obeyesekere e Obeyesekere (1976) consideram a natureza teraputica do drama ritual. Ao

    utilizar a teoria freudiana, Obeyesekere e Obeyesekere (1976) ponderam que a obscenidade

    coisa sria e que o humor pode ser uma forma de tratamento da ansiedade, sendo, portanto,

    coerente (se esse for mesmo o caso) afirmar que a anlise do humor pode levar anlise das

    tenses psicolgicas e das ansiedades que lhes do suporte.

    No obstante, eles no deixam de considerar que Freud trabalhava com a ventilao

    individual de tenses, enquanto que o drama ritual um fenmeno coletivo. Isso no fez,

    entretanto, Obeyesekere e Obeyesekere (1976) descartarem a hiptese psicanaltica,

    considerando que as ansiedades psicolgicas locais de um grupo so tratadas atravs da

    obscenidade no drama ritual, o que seria, segundo eles, uma forma de catarse. A catarse

  • 35

    aqui utilizada no sentido freudiano como purificao, purgao; ou, como propem alguns

    estudiosos, no sentido de clarificao:

    O grupo, pela virtude de uma religio compartilhada, indiretamente participa

    da performance ritual e purga seus prprios terrores e ansiedades internas

    atravs do humor comunitariamente vivenciado (OBEYESEKERE;

    OBEYESEKERE, 1976, p. 6, traduo nossa)7.

    Alguns estudiosos buscam reconstruir uma teoria da comdia, com base nos textos

    aristotlicos: consideram a catarse cmica como sendo o reverso da catarse trgica.

    Porm, sob a perspectiva da obra de Aristteles, a distino entre ambas clara: na segunda,

    h uma identificao com o heri, o que estimula piedade e terror, dois sentimentos liberados

    ou purgados pela catarse trgica (OBEYESEKERE; OBEYESEKERE, 1976). No segundo

    caso, as caractersticas so engraadas; o erro, o torpe, as despropores da vida cotidiana so

    exageradas, criando, dessa forma, uma distncia e no uma identificao, o que provoca no

    espectador o riso e o consequente efeito catrtico:

    Sentimos que certos problemas psicolgicos chave e ansiedades do grupo

    podem ser expressos simbolicamente no drama ritual, ventilados atravs da

    evocao do humor cmico (no da piedade ou do medo) e purgados no

    sentido Aristotlico (OBEYESEKERE; OBEYESEKERE, 1976, p. 7,

    traduo nossa)8.

    Kapferer (1983) tambm desenvolveu seus estudos no Sri Lanka, porm focou sua

    investigao nos rituais de exorcismo. Entre os inmeros aspectos rituais que investigou,

    Kapferer (1983) discute o drama cmico de exorcismo, imprescindvel para o entendimento

    da funo transformacional do cmico em cerimnias demonacas.

    7 The group, by virtue of a shared religion, vicariously participates in the ritual enactment and purges their own

    internal terrors and anxieties through communally shared humor (OBEYESEKERE; OBEYESEKERE, 1976, p.

    6). 8 We feel that certain key psychological problems and anxieties of the group can be expressed in symbolic form

    in ritual drama, ventilated through evoking of comic humor (not pity and fear) and purged in the Aristotelian

    sense (OBEYESEKERE; OBEYESEKERE, 1976, p. 7).

  • 36

    Segundo ele, a comdia apresenta muitos traos de um anti-rito dentro do ritual

    como um todo. No caso do exorcismo no Sri Lanka, por exemplo, o endemoniado

    considerado como o irracional no interior de uma perspectiva cultural cingalesa. Eis a um

    alvo ideal para a comdia. Nas cerimnias de dramas cmicos de exorcismo, os demnios so

    satirizados e ridicularizados: o que comea como uma celebrao e como uma honraria aos

    demnios se transforma em significados para a sua completa desonra, de modo que eles so

    sempre os alvos de cidas piadas (KAPFERER, 1983). O aparentemente dominador se

    transforma em subordinado, e aqueles que determinam e controlam so determinados e

    controlados, restaurando a hierarquia do cosmo (KAPFERER, 1983).

    Nesse sentido, Kapferer (1983) concorda que a piada, em si, um anti-rito cujo valor

    consiste em desvelar o processo transformacional da comdia exorcista. Atravs da

    comdia, significados so rearranjados e o contexto da pessoa endemoniada

    substancialmente transformado, o que permite dizer, portanto, que a comdia destrutiva e,

    ao mesmo tempo, regenerativa (KAPFERER, 1983).

    Para Kapferer (1983), o cmico, assim como a excitao e o prazer que ele provoca,

    depende do reconhecimento de um mundo objetivo e racional sua volta, mas que pode no

    aparecer explicitamente no discurso cmico. Embora a comdia revele-se como forma de

    desafiar a ordem racional, romp-la, desestrutur-la; a comdia que implicitamente restaura

    essa mesma ordem (KAPFERER, 1983).

    Kapferer (1983) no deixa de sublinhar tambm o cenrio poltico e social da

    comdia, pois, segundo ele, nesse campo que ela recebe muito de seu ritmo vital (p. 317).

    Os exorcistas dedicam grande ateno a questes como a falsidade, a mentira e o ilusrio na

    ordem social cotidiana, pois so caractersticas destrutivas e opressoras de agentes

    controladores.

  • 37

    Tanto os exorcistas como os comediantes de forma geral so marginalizados de vrias

    maneiras, porm, apesar dessa excluso, esto submetidos ordem do mundo atual e ao

    poder, autoridade e coao de quem o domina (KAPFERER, 1983). Na sociedade do Sri

    Lanka, por exemplo, os exorcistas ocupam as baixas castas na ordem social hierrquica, sendo

    considerados por alguns como os palhaos do grupo, embora Kapferer (1983) os defina

    como homens sbios, j que, afinal, so eles que apaziguam demnios, invocam deuses e

    aliviam o sofrimento de homens e de mulheres (p. 317).

    Kapferer (1983) concorda com a hiptese de Feibleman (1939 apud KAPFERER,

    1983)9, que considera o cmico e a piada como um ataque a formas limitantes e restritivas.

    Dando sequncia a esse argumento, a comdia confronta e subverte ideias e prticas que

    estabelecem controle, coaes e restries na vida.

    O drama cmico do exorcismo expande sua crtica aos limites e s coaes na vida

    cotidiana: restries a que muitas vezes se submetem as classes populares, ou obstculos

    estabelecidos pela burocracia governante. Desse modo, para Kapferer (1983), no limite, a

    comdia nos rituais de exorcismo ataca a dissimulao que provoca exatamente o mesmo que

    os demnios em suas vtimas. Nesse sentido, por isso que polticos so satirizados nesses

    rituais como tendo um lado demonaco descoberto dentro de si, assim como monges que

    costumam fazer falsas declaraes sobre uma moralidade que nem eles mesmos praticam

    (KAPFERER, 1983).

    Por esse motivo que a comdia parece to bem vinda em rituais de exorcismo,

    sobretudo porque revela a natureza finita e restritiva do demonaco, e expe como falsas as

    declaraes sobre sua ilusria essncia infinita que supostamente reuniria tudo em seu ser

    (KAPFERER, 1983). Por outro lado, a comdia apropriada para a emergncia do divino,

    9 FEIBLEMAN, J. In Praise of Comedy: A Study in its Theory and Practice. London: George Allen and Unwin,

    1939.

  • 38

    que infinito, capaz de conter e ordenar tudo em sua presena e em sua ideia (KAPFERER,

    1983).

    possvel desenvolver uma investigao do humor no caso da umbanda a partir das

    teses de Kapferer, Obeyesekere e Obeyesekere, a propsito do que eles fizeram com rituais de

    possesso cingaleses? Sem dvida, importante a leitura desses autores, j que so obras

    voltadas anlise do humor em rituais de possesso, tal qual o que se prope este presente

    trabalho. Alm disso, alguns aspectos de suas teorias poderiam ser teis para a anlise dos

    episdios divertidos que sero aqui apresentados; porm o objetivo desta pesquisa exige outro

    recorte: uma investigao em profundidade de como se configura e qual a compreenso do

    cmico e do chiste nos rituais de umbanda a partir de uma perspectiva etnopsicolgica e, para

    efeito de contraste e de dilogo com as concepes umbandistas, a psicanlise e mais

    especificamente as suas teses sobre o humor e o cmico vo ser a principal referncia.

    Metforas e sentidos produzidos na cena espirituosa dos rituais podem ser

    analisados luz da psicanlise? possvel afirmar que, na umbanda, a espirituosidade

    estaria a servio da expresso de contedos inconscientes?

    1.3 Psicanlise

    1.3.1 Os Chistes em Freud

    A obra de Freud Os Chistes e sua Relao com o Inconsciente (1905) divida em

    trs grandes seces: a parte analtica, onde ele faz uma anlise das tcnicas dos chistes e de

  • 39

    seus propsitos; uma parte sinttica, onde se discutem os mecanismos do prazer associados

    origem dos chistes, assim como define a piada como processo social; e por fim uma parte

    terica destinada exposio das relaes do chiste com os sonhos e com o inconsciente, bem

    como as espcies do cmico.

    A Anlise dos chistes: a tcnica verbal e conceitual

    Na introduo da parte analtica, Freud faz uma reviso bibliogrfica sobre os chistes

    entre os autores contemporneos a sua obra. Diferentes de Freud, os tericos da poca

    definiam o chiste sempre em conexo com o cmico de um ponto de vista subjetivo, tal como

    uma evocao consciente.

    As hipteses freudianas propem alguns critrios teis para definir se uma expresso

    chistosa ou no, elencando alguns requisitos: a capacidade de encontrar uma semelhana entre

    coisas diferentes; habilidade de juntar ideias completamente opostas (quanto ao contedo e ao

    nexo) em uma mesma sentena; conter elementos lingusticos como contraste de ideias,

    sentido no nonsense, e o desconcerto seguido de esclarecimento; por fim, a brevidade de um

    chiste, que diz tudo o que h para ser dito em mnimas palavras.

    Freud buscou todas as propostas tericas da literatura para concluir que, mais

    importante do que a definio do chiste em si, era necessrio destacar as caractersticas

    consideradas essenciais presentes nele: a habilidade de desvelar algo oculto ou escondido,

    produzindo novos sentidos, apresentando sempre um outro sentido por trs e alm daquilo que

    se mostra a primeira vista.

    Mezan (2005, p. 135) afirma: Fino clnico, Freud percebe que a abertura da

    linguagem para o equvoco, para o duplo sentido e para a aluso sutil um dos meios pelos

    quais as fantasias inconscientes podem se manifestar.

  • 40

    Posteriormente, Freud delineia a anlise da tcnica e d uma infinidade de exemplos

    de chistes, o que garante a leveza de sua leitura. A primeira questo que se coloca : um chiste

    est vinculado ao pensamento presente na sentena (no contedo) ou reside na prpria

    expresso desse pensamento (na forma)? Para responder a essa pergunta ele prope a anlise

    daquilo que batizou como tcnica verbal, revelando que uma grande parte dos chistes reside

    na verbalizao da prpria sentena e por isso depende de uma estrutura verbal.

    Os chistes que dependem de uma estrutura verbal normalmente submetem a sentena a

    uma fora compressora, sempre suprimindo um pensamento, provavelmente porque no seria

    adequado diz-lo, por se tratar, por exemplo, de colocaes constrangedoras. o que ocorre

    na formao de palavras compostas, ou formao de um substituto por condensao,

    revelando que a brevidade a essncia principal desse tipo de chiste.

    Para exemplificar esse caso de tcnica verbal por condensao e formao de um

    substituto, tomemos o prprio exemplo clssico de Freud:

    (...) Heine10

    introduz a deliciosa figura do agente de loteria e calista

    hamburgus, Hirsch-Hyacinth, que se jacta ao poeta de suas relaes com o

    rico Baro Rothschild, dizendo finalmente: to certo como Deus h de me

    prover todas as coisas boas, Doutor, sentei-me ao lado de Salomon

    Rothschild e ele me tratou como um seu igual bastante familionariamente (FREUD, 1905/1969, p. 29).

    Esse chiste utiliza-se de uma tcnica de abreviao, permitindo que algo esteja oculto.

    Ao propor a reduo desse chiste (explicao da piada), Freud desfaz a condensao,

    revelando que um pensamento inconfessvel (talvez porque seria inadequado diz-lo em

    determinado contexto) estava escondido na formao da palavra composta familionrio:

    Heine, como o entendo, pretende significar que ele [Hyacinth] fora recebido com uma

    10 Christian Johann Heinrich Heine (1797-1856): poeta romntico alemo. Licenciou-se em Direito em 1825,

    concluindo seus estudos na Universidade de Berlin. Apesar disso, o grande interesse acadmico de Heine era a

    Literatura. Heine era de uma famlia judia de comerciantes alemes. Quando seu pai faliu, o tio Salomon, um

    rico banqueiro em Hamburgo, financiou seus estudos e encorajou-o a seguir a carreira de comerciante, na qual

    ele no teve sucesso algum.

  • 41

    familiaridade de espcie no rara, e que em regra no favorecida por ter um tempero de

    milionria riqueza (FREUD, 1905/1969, p. 30).

    Freud ainda prope outras tradues para o chiste: Rothschild tratou-me como um

    igual, muito familiarmente, isto , na medida em que isso possvel a um milionrio ou

    ainda A condescendncia de um homem rico (...) sempre envolve alguma coisa pouco

    agradvel para quem a experimente (FREUD, 1905/1969, p. 30).

    Freud destaca que, quando promove tal reduo (ou explicao da tirada em outras

    palavras), o chiste desaparece automaticamente, a partir do que conclui: de fato essa tirada

    espirituosa depende de sua expresso verbal cuja origem, neste caso, o processo de

    condensao. Seguem-se, em sua obra, inmeros outros exemplos de tcnicas verbais que

    apresentam uma tendncia compresso ou, em termos legitimamente freudianos, uma

    tendncia economia, classificando-os em grupos, a saber, condensao (ou por formao de

    palavra composta, como o caso do familionrio, ou por uma pequena modificao no

    material verbal); mltiplo uso do mesmo material (quando h uma modificao na ordem das

    palavras na sentena, seja uma ou outra letra ou ainda a separao de slabas que criam novos

    sentidos); os duplos sentidos e ainda os famosos jogos de palavras.

    Se todos esses grupos apresentam a mesma tendncia supresso ou compresso,

    possvel afirmar, tal como prope Freud, que a condensao a categoria mais ampla entre

    todas as outras apresentadas.

    Porm ele percebe que no qualquer abreviao capaz de provocar o efeito chistoso,

    trata-se de uma compresso ou uma brevidade em especial. Diante disso, voltemos ao termo

    legitimamente freudiano (economia), e questionemos o que de fato economizado na tcnica

    verbal do chiste?

    Freud discute que a condensao parece suprimir palavras que viriam naturalmente

    sem quaisquer dificuldades. No lugar dessas palavras o criador do chiste tem todo o

  • 42

    trabalho de buscar um leque menor de material lingustico (sejam neologismos ou no) para

    dar conta do tal pensamento suprimido e produzir com todo o refinamento intelectual um

    sentido novo no chiste. O que economizou ento o artista? Quem lucra com isso? Freud

    deixa a questo suspensa para retom-la mais adiante. Aps fazer uma anlise de chistes que

    dependem de sua expresso verbal, a obra d continuidade anlise passando a trabalhar com

    aqueles chistes que no podem ser classificados nos grupos propostos at ento, pois no

    revelam o uso da condensao. Freud d o exemplo de um chiste contado por Fischer em

    1889:

    Conta-se a estria de que, em certo fim de tarde, Heine conversava em salon

    de Paris com o dramaturgo Souli, quando adentrou sala um dos reis das

    finanas de Paris, comparados popularmente a Midas e no apenas por sua riqueza. Logo foi cercado por uma multido que o tratava com a maior

    deferncia. Veja! observou Souli a Heine, Veja como o sculo XIX cultua o Bezerro de Ouro! Com uma rpida mirada ao objeto de tanta admirao, Heine replicou, como que a bem da correo: Oh, sim, mas ele j deve ser mais velho agora! (FREUD, 1905/1969, p. 64)

    O Familionrio e o Bezerro de Ouro so chistes que exemplificam

    respectivamente um caso de condensao e um caso de deslocamento. Diferentemente do

    primeiro, o segundo chiste resiste reduo, ou seja, por mais que expliquemos em outras

    palavras a piada do Bezerro de Ouro, seu sentido engraado no se esvai.

    O bezerro tratado no metaforicamente, mas em seu sentido literal e da provm o

    chiste. Portanto h um desvio e posteriormente uma aluso, pois a inteno do autor referir-

    se ao objeto do chiste (um homem rico e admirado) como um quadrpede adulto.

    Esse chiste no depende de sua expresso verbal, pois o que ocorre um

    deslocamento, um desvio no curso do pensamento, visto que a nfase psquica deslocada do

    sentido metafrico da palavra para surpreender o ouvinte com o seu sentido literal (o bezerro

    como o prprio animal). importante destacar tambm que o deslocamento nesses casos

    pertence prpria produo e criao do chiste e no apenas ao processo de compreenso

  • 43

    (como ocorre no caso do duplo sentido): o deslocamento habitualmente ocorre entre um

    comentrio e uma rplica que prossegue o curso do pensamento em direo distinta da

    iniciada no comentrio inicial (FREUD, 1905/1969, p. 71).

    Freud cita outros exemplos de chistes de deslocamento e de chistes conceituais, tais

    como: o nonsense (apreende-se o sentido a partir de uma rplica completamente sem sentido);

    os chistes que envolvem a revelao de uma ideia absurda ou estpida atravs de um desvio

    do curso do pensamento normal; os raciocnios falhos (um raciocnio sofisticado torna-se

    falacioso e por isso engraado); a tcnica da resposta pronta (uma rplica de defesa ou de

    contra-ataque que devolve a agressividade a algum que o ofendeu primeiro); a ironia

    (representao pelo oposto); representao indireta quando algo no pode ser dito diretamente

    e apenas aludido; representao de algo pequeno (a nfase dada a um insignificante

    detalhe que sozinho expressa uma caracterstica inteira de maior relevncia).

    A que se propem os chistes?

    Freud (1905/1969) distingue um chiste abstrato (que ele prefere chamar inocente) do

    chiste tendencioso. Em um caso, o chiste um fim em si mesmo, no servindo a um objetivo

    particular; em outro caso, o chiste serve a um fim torna-se tendencioso (FREUD,

    1905/1969, p. 109).

    Segundo Freud, um chiste tendencioso requer trs pessoas: o criador da piada, o objeto

    do riso (de quem se ri) e aquele que escuta e gargalha. Os chistes tendenciosos tornam

    possvel a satisfao de um instinto (seja libidinoso ou hostil) em face de um obstculo.

    Evitam esse obstculo e assim extraem prazer de uma fonte que o obstculo tornara

    inacessvel (FREUD, 1905/1969, p. 121).

    Mais adiante, Freud (1905/1969, p. 155-156) afirma que:

  • 44

    Os chistes nunca so efetivamente no tendenciosos, mesmo se o

    pensamento neles contido no tendencioso e apenas serve aos interesses

    intelectuais tericos. Eles perseguem um segundo objetivo: promover o

    pensamento, aumentando-o e guardando-o da crtica.

    Essa classificao til para compreender o mecanismo do prazer procedente dos

    chistes. No caso dos chistes tendenciosos, o prazer provm da satisfao de algum propsito.

    Entre os propsitos mais comuns, citam-se os de desnudamento aqueles associados ao sexo

    e os propsitos hostis, cnicos e cticos.

    A anlise freudiana do humor busca entender este propsito cuja satisfao gera um

    prazer, que, de outro modo, no ocorreria. Quando h um propsito (um insulto, por exemplo)

    possvel que exista algo que se oponha sua satisfao, algum obstculo que contornado

    pelo chiste.

    Os obstculos podem ser internos, quando no podemos dizer algo aberta e

    conscientemente por uma objeo esttica invectiva (FREUD, 1905/1969, p. 124), ou

    obstculos externos, quando, por exemplo, produzem-se crticas contra figuras de autoridade

    ou pessoas de status elevado, de modo que o chiste se torna uma rebelio contra esse poder,

    uma liberao de sua presso (FREUD, 1905/1969, p. 125).

    Atravs da escuta psicanaltica, talvez seja possvel compreender de que modo, no

    registro do inconsciente, os fantasmas sexuais e agressivos se ordenariam, fazendo-se

    patentes pelo enunciado do chiste (BIRMAN, 2005, p. 102), pelo qual o desejo inconsciente

    se realizaria e se manifestaria a cu aberto na relao do sujeito com o outro, apesar dos

    limites impostos pelo recalque (BIRMAN, 2005, p. 103).

    Pereda (2005, p. 123) discute os mecanismos inconscientes do chiste ao destacar o que

    ele chama de relaxamento parcial do recalque, uma brecha na vigilncia e na coero por

    parte da censura psquica.

  • 45

    Bergson (1940/1991) 11

    usa o diabo de mola como alegoria para discutir o recalque

    suplantado pelo humor. Trata-se de um brinquedo cujo mecanismo consiste em um diabo

    preso a uma mola que pula para fora de uma caixa, de modo que quando o carregamos para

    baixo, ele salta para cima; e importante destacar que quanto mais o empurramos para baixo,

    mais alto ele salta:

    Imaginemos agora uma mola de ordem predominantemente moral, uma

    ideia que se exprime, que reprimida, e que volta a exprimir-se, uma vaga

    de palavras que se precipita, que detida e que volta a avanar. Teremos de

    novo a viso de uma fora que se obstina e de uma outra teimosia que a

    combate (BERGSON, 1940/1991, p. 51).

    Dessa forma, Bergson (1940/1991, p. 51) conclui: Trata-se do conflito de duas

    obstinaes, das quais uma, puramente mecnica, acaba todavia de um modo geral por ceder

    outra, que com isso se diverte. Partindo desse olhar, possvel destacar que o impossvel de

    dizer, o inconfessvel e o inaceitvel emergem atravs do humor, suplantando obstculos

    externos (censura externa provocada por aquilo que se associa a um poder social legitimado e

    a uma ordem moral hegemnica) e internos (pela represso interna agresso e

    obscenidade; pela razo ou pelo julgamento crtico).

    Para Bergson (1940/1991), h uma cena cmica quando ocorre inverso dos papis,

    quando a situao se vira do avesso: assim que rimos do acusado que prega moral ao juiz,

    da criana que pretende dar lies aos pais, enfim de tudo o que cabe na rubrica do mundo de

    pernas para o ar (BERGSON, 1940/1991, p. 64).

    11 Embora este captulo do trabalho se proponha a fazer uma reviso bibliogrfica apenas de teses psicanalticas,

    a obra de Bergson (1940/1991) foi aqui inserida porque se trata de um autor com quem Freud (1905) dialoga no

    livro dos chistes e sua relao com o inconsciente.

  • 46

    Os chistes, seu mecanismo de prazer e sua psicognese

    Os casos de um obstculo externo e interno s diferem em que, no ltimo,

    seja suspensa uma inibio interna j existente e no primeiro se evite o

    aparecimento de uma nova. Sendo assim, no estamos confiando demais na

    especulao se afirmamos que tanto para erigir como para manter uma

    inibio psquica se requer alguma despesa psquica. E j que sabemos que em ambos os casos de uso dos chistes tendenciosos obtm-se prazer

    plausvel supor que esta produo de prazer corresponde despesa

    psquica que economizada (FREUD, 1905/1969, p. 140).

    Na tcnica dos chistes verbais, o princpio da economia refere-se ao uso das palavras

    (o aspecto da brevidade no witz, quando palavras so utilizadas em menor nmero em uma

    piada), enquanto que posteriormente, na teoria freudiana, a economia passa a ser

    interpretada no sentido da despesa psquica em geral.

    Mas no caso dos chistes inocentes (em que a graa no reside nos propsitos ou nos

    contedos), a prpria tcnica que origina o prazer. Porm possvel questionar se estaria

    esse prazer (oriundo dos chistes inocentes) tambm vinculado economia de despesa

    psquica. Freud responde a essa questo, esclarecendo que essa economia na despesa psquica

    a melhor explicao para a psicognese do prazer, no apenas no caso dos chistes

    tendenciosos, mas tambm nos chistes inocentes.

    No jogo de palavras, por exemplo, em um caso de chiste inocente, o foco de nossa

    ateno sobre o som da palavra e no sobre o seu sentido:

    Pode-se justificadamente suspeitar que ao fazer isso estamos operando um

    grande alvio no trabalho psquico e que, ao utilizar as palavras seriamente,

    obrigamo-nos a um certo esforo ao nos abstermos desse procedimento

    confortvel (FREUD, 1905/1969, p. 141 e 142).

    possvel que haja um curto-circuito, em que uma mesma palavra conecta e transita

    entre diferentes crculos de ideias. Os chistes promovem a conexo de coisas distantes,

    embora esse mtodo seja rechaado e evitado pelo pensamento srio.

  • 47

    Alguns chistes em particular apresentam outra fonte de prazer: o ouvinte est na

    expectativa de escutar uma expresso verbal (ou um chiste) que traga elementos novos, que o

    surpreenda; porm o que ocorre uma redescoberta do familiar (ou sua rememorao), dando

    origem portanto e novamente a uma economia na despesa psquica. o caso da aluso a

    citaes, modificao de expresses familiares, similaridade de som, uso mltiplo do mesmo

    material lingustico.

    A fonte de prazer que reside na descoberta do familiar o que permite o destaque de

    outro recurso dos chistes, o fator atualidade: Tais chistes contm aluses a pessoas e eventos

    que foram quela poca atuais despertando o interesse geral e ainda o mantendo vivo

    (FREUD, 1905/1969, p. 145). O fator atualidade uma caracterstica efmera dos chistes,

    mas suplanta a ideia do familiar descrita acima, pois introduz o aspecto da novidade, o

    recente, o que ainda nem passou perto de ser esquecido. Porm o fator atualidade s entra na

    equao do chiste quando o sujeito pertence parquia (conceito de BERGSON,

    1940/1991), ou seja, quando est dentro do contexto e os elementos dos chistes lhe so

    familiares, de modo que ele ri porque entendeu a piada.

    Quanto aos chistes conceituais (deslocamentos, raciocnios falhos, absurdo,

    representao pelo oposto), Freud afirma que tambm so casos de economia da despesa

    psquica, pois, segundo ele, mais cmodo desviar o curso de um pensamento do que mant-

    lo, ou confundir ideias completamente diferentes, aceitar inferncias absolutamente ilgicas

    ou conectar palavras e ideias de modo que no faam sentido algum.

    Segundo Freud (FREUD, 1905/1969), as tcnicas do chiste que utilizam o absurdo

    retomam prazeres infantis de brincar livremente com seus prprios pensamentos e com as

    palavras, sem a interveno da crtica. Com o tempo, na vida adulta, introduz-se a compulso

    da lgica, a razo e a distino do que falso ou verdadeiro na realidade. Poucas vezes o

  • 48

    adulto permite-se entregar ao nonsense e ao livre jogo de palavras. O prazer nesses casos

    oriundo de uma economia da despesa psquica ou de um alvio da compulso da crtica.

    Slavutzky e Kupermann (2005, p. 8) discutem essa perspectiva freudiana:

    Os que sabem o humor libertam a criana que os habita, aquela que acredita

    ser ainda possvel o fazer. Cultivar o esprito uma forma, portanto, de o sujeito manter sua capacidade de brincar e de constituir a realidade.

    Em sntese, Freud conclui que as duas tcnicas de chistes (verbais e conceituais)

    sinalizam duas formas diferentes de obteno de prazer, respectivamente: o alvio da despesa

    psquica j existente e a economia na despesa psquica que se h de requerer (FREUD,

    1905/1969, p. 150).

    Em seguida Freud argumenta que as chamadas tcnicas dos chistes no so exclusivas

    deles, mas utilizadas tambm por outros procedimentos. Porm os chistes parecem depender

    delas, pois, quando reduzidos (ou quando a piada explicada), essas tcnicas somem e

    junto com elas toda a graa da piada, suas caractersticas essenciais e sua possibilidade de

    gerar prazer. Tais tcnicas so, portanto, antes as fontes a partir das quais os chistes

    fornecem prazer (FREUD, 1905/1969, p. 153).

    A tcnica que , entretanto, caracterstica dos chistes e peculiar a eles,

    consiste no procedimento de salvaguardar o uso desses mtodos de produo

    de prazer contra as objees levantadas pela crtica que poriam um fim ao

    prazer (FREUD, 1905/1969, p. 153).

    Revestir um pensamento em um invlucro chistoso uma tcnica interessante para

    torn-lo mais importante e mais valioso, sobretudo porque o poder da graa consegue

    driblar a compulso da crtica, confundindo-a. muito comum, segundo Freud, nos

    enganarmos, atribuindo grande mrito ao pensamento contido no chiste, porque esse nos

    causou grande prazer. Assim como pode ocorrer o inverso: admiramos muito um chiste

    porque eventualmente nos identificamos com o contedo que ele transmite. O certo que

  • 49

    onde a argumentao tenta aliciar a crtica do ouvinte, o chiste se esfora por tir-la de

    campo. Sem dvida o chiste escolhe o mtodo psicologicamente mais efetivo (FREUD,

    1905/1969, p. 156).

    Para Freud, mais importante do que verificar o efeito do chiste em quem o escuta,

    compreender as funes desempenhadas por ele em quem os inventa; porm no incomum

    encontrarmos o mesmo processo psquico provocado pelo chiste tanto no ouvinte quanto em

    seu criador: Ao obstculo externo a ser vencido no ouvinte corresponde uma inibio interna

    no elaborador do chiste. Pelo menos a expectativa de um obstculo externo est presente no

    ltimo como uma ideia inibidora (FREUD, 1905/1969, p. 157).

    O mais importante tipo de inibio ou supresso interna a represso, cuja funo

    no permitir que os impulsos que se submetem a ela tornem-se conscientes. A superao de

    um obstculo externo corresponde superao de inibies e represses internas. por isso

    que os chistes tendenciosos provocam prazer, pois descartam inibies, sendo capazes

    inclusive de gerar prazer mesmo de fontes que j foram um dia reprimidas.

    Se acaso houver um impulso de insultar algum, haver possibilidade de faz-lo (com

    prazer) atravs de um chiste. H um propsito suprimido (o insulto) que ganha fora com a

    colaborao do prazer oriundo do chiste (como uma bonificao de incentivo),

    conseguindo, dessa forma, suplantar a inibio e se concretizar. Mas o prazer aqui muito

    maior do que aquele provocado apenas pelos chistes, pois fato que o propsito, at aqui

    suprimido, tenha conseguido esgueirar-se, talvez sem a mnima diminuio. Em tais

    circunstncias que o chiste recebido com a melhor gargalhada (FREUD, 1905/1969, p.

    159).

    Estes [chistes tendenciosos] se pem a servio de propsitos de modo que,

    utilizando o prazer originrio dos chistes como prazer preliminar, possam

    produzir novo prazer suspendendo as supresses e represses. (...) O prazer

    que produz, seja prazer no jogo [infantil] ou na suspenso das inibies,

    pode ser invariavelmente referido economia na despesa psquica (...)

    (FREUD, 1905/1969, p. 160 e 161).

  • 50

    O chiste em sntese: o chiste e suas motivaes principais

    Quais os determinantes subjetivos do chiste? Quais so seus motivos? Qual seu

    objetivo principal? O que define o criador de um chiste? Em um primeiro momento, Freud se

    ocupa com apenas um dos pontos levantados anteriormente: caracterizar quem esse artista,

    criador e executor de piadas. Seu trao essencial o esprito (o Witz):

    O esprito aparece nessa conexo como uma capacidade especial mais que como uma das velhas faculdades mentais; parece emergir inteiramente independente das outras, tais como inteligncia, imaginao, memria, etc.

    Devemos, portanto, presumir nessas pessoas espirituosas a presena de disposies especiais herdadas ou de determinantes psquicos que permitem

    ou favorecem a elaborao do chiste (FREUD, 1905/1969, p. 163).

    Sugere-se que os determinantes subjetivos intimamente associados criao do chiste

    esto muito prximos dos fatores que determinam as neuroses. Por outro lado:

    A insuficincia de evidncia documentria, entretanto, decerto h de impedir

    que postulemos a hiptese de que uma constituio psiconeurtica desse tipo

    uma condio subjetiva necessria ou habitual para a construo de chiste

    (FREUD, 1905/1969, p. 160 e 161).

    A hiptese de Freud que os motivos que caracterizam os artistas criadores de

    chistes inocentes so completamente diferentes daqueles que cabem ao elaborador de chistes

    tendenciosos. No primeiro caso, a motivao determinante o exibicionismo no campo

    sexual: exibir a prpria inteligncia, mostrar-se.

    No segundo caso, o criador do chiste revela forte represso dos instintos, de modo

    que, na perspectiva freudiana, essa inibio provoca uma instabilidade que favorece a

    elaborao de chistes mais tendenciosos do que inocentes: Assim os componentes

    individuais da constituio sexual de uma pessoa podem, particularmente, aparecer como

    motivos para a construo de um chiste (FREUD, 1905/1969, p. 166).

    Freud d o exemplo dos chistes obscenos e dos chistes hostis. As piadas de cunho

    sexual revelam que seu criador tende a um certo exibicionismo. Os chistes tendenciosos e

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    agressivos desvelam em seu inventor uma sexualidade cujas inclinaes demonstram uma

    forte tendncia ao sadismo, que no se mostra na vida diria do sujeito.

    Tem-se claro na obra freudiana que no possvel construir um chiste nica e

    exclusivamente para si mesmo. O maior sabor de uma piada reside no momento em que ela

    passada adiante, quando se escuta a gargalhada do outro. Para Freud, no caso dos chistes,

    necessrio que haja pelo menos duas pessoas: a primeira pessoa (o inventor da piada, aquele

    que cria), e a terceira pessoa12

    (o ouvinte que d risada, aquele que sanciona o chiste como

    tal), para quem a piada um presente, pois, sem precisar cri-la, o maior beneficirio dos

    efeitos chistosos. Segundo Freud, o prazer maior na terceira pessoa que no prprio

    construtor do chiste.

    Pode haver uma segunda pessoa nesse esquema, que seria aquele de quem se ri, ou o

    objeto da piada. Porm um personagem absolutamente prescindvel quando se trata do

    chiste. No caso do cmico, o esquema se modifica um pouco: quando a primeira pessoa

    identifica a comicidade em alguma coisa (que pode ser, por exemplo, um objeto

    personificado), ele pode rir sozinho. No necessrio que haja algum, um terceiro, que

    gargalhe do objeto cmico. Porm o que realmente indispensvel no cmico o objeto do

    riso (o que ocupa o lugar da segunda pessoa).

    Em sequncia, Freud passa a analisar o prprio fenmeno do riso, em si mesmo:

    Devamos dizer que o riso se d quando uma cota de energia psquica, usada anteriormente

    para a catexia13

    de trajetos psquicos particulares, torna-se inutilizvel, de modo que essa

    (energia) pode encontrar descarga livre (FREUD, 1905/1969, p. 170 e 171).

    Embora Freud enfatize que nem todo riso constitui-se como indicativo de prazer, no

    caso particular do chiste trata-se de uma despesa catxica suspensa e posteriormente

    12 Insiro aqui a terceira pessoa, porque a segunda (prescindvel nesta equao sugerida por Freud neste momento)

    seria aquela de quem se ri. 13

    Catexia: investimento de energia psquica em um dado objeto.

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    descarregada, provocando portanto a gargalhada. Por outro lado, o autor do chiste no ri, pois

    nele no ocorre a suspenso da catexia e por isso no h possibilidade de descarga. O que

    acomete o criador uma outra espcie de prazer associado tambm suspenso de uma

    catexia, porm uma catexia inibitria.

    No caso do ouvinte, ele no precisa despender esforo algum de criao; no utiliza

    energia psquica para fazer suspender inibio ou represso de uma ideia que ir veicular no

    chiste. Ele economiza essa despesa psquica, porque o chiste simplesmente lhe acontece,

    como um prmio: a energia catxica no caso do ouvinte tambm inibitria (tal como a do

    criador). A catexia utilizada para a inibio se torna suprflua e passa a ser descarregada pelo

    riso.

    Quando uma catexia se torna suprflua, ela remanejada de um trajeto a outro. O

    chiste lana mo de estratgias especficas para atribuir a essas energias novo emprego

    endopsquico, no permitindo que se perca nem sequer uma parte, pois sero descarregadas

    posteriormente no riso.

    A metfora do diabo de mola de Bergson pode ser til para a compreenso: a

    catexia, neste caso, precisamente a fora que pressiona a mola do diabo para dentro da

    caixa, sendo empregada no processo de represso daqueles sentidos que se mantm recalcados

    (o diabo dentro da caixa). A mola fica comprimida na caixa, at que sentidos antes

    suprimidos e ocultos vm tona, tornando suprflua a catexia inibitria: a fora e a presso

    que mantinham o diabo escondido se desvanecem, permitindo que o diabo salte para fora

    causando o espanto e o efeito cmico. Desse modo, possvel afirmar que a catexia se torna

    suprflua e descarregada pelo riso porque o sentido reprimido ou o contedo recalcado pode

    aflorar.

    Em sntese, as tcnicas do chiste mencionadas acima so descritas a seguir: utiliza-se

    de sua caracterstica brevidade para que o recurso da ateno no tenha possibilidades de

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    atac-lo; evita maior esforo intelectual criando facilidade de entendimento, para que no haja

    grande emprego do pensamento ou despertar da ateno; dribla a concentrao e ateno do

    ouvinte, omitindo detalhes na prpria verbalizao e induzindo o preenchimento de lacunas;

    suplanta obstculos, permitindo a produo de novos sentidos, desvelando o que estava oculto

    ou escondido sempre por trs daquilo que se mostra primeira vista.

    Em ltima instncia, os chistes destinam-se a dois fins: provocar prazer em seu criador

    atravs de propsitos satisfeitos a partir da elaborao de uma pilhria (os motivos para a

    primeira pessoa elaborar um chiste); e proporcionar segunda pessoa um absoluto

    contentamento (o melhor possvel). Ao propiciar a descarga e o consequente prazer, o chiste

    tambm permite que sentidos inaceitveis, inconfessveis venham tona atravs do humor.

    Dessa forma, Freud faz uma provocao bem humorada: o chiste assim um velhaco

    hipcrita, servidor, a um s tempo, de dois amos (FREUD, 1905/1969, p. 179).

    Sugere-se que na primeira pessoa as inibies so imensamente resistentes, de modo

    que o objetivo dos chistes de proporcionar prazer visa principalmente terceira pessoa, o

    ouvinte. Esse ouvinte imprescindvel porque ele que sanciona a piada como tal, ele diz

    se o chiste foi ou no bem sucedido e, em caso positivo, gargalha, permitindo que o criador e

    contador de piadas possa rir tambm, porm moderadamente.

    O criador no ri com intensidade, pois nele no h condies favorveis descarga da

    catexia tornada suprflua. Mas no quer dizer que tambm no sinta prazer, ou que tambm

    no se divirta dando risadas por contgio, diante da reao de seu ouvinte, porm de fato est

    longe de gargalhar. No caso de um chiste cuja autoria no lhe pertence, o contador (e no

    construtor) apenas passa a piada adiante, para que no perca seu carter de novidade e sua

    possibilidade de gerar prazer, j que, segundo Freud, o chiste s causa impacto e provoca riso

    apenas na primeira vez.

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    O chiste em teoria: chistes, sonhos e inconsciente

    Quando Freud se prope a investigar as relaes que se estabelecem entre os chistes e

    os sonhos, ele sublinha inicialmente as duas partes constituintes da elaborao onrica, sendo

    a primeira delas ausente no caso dos chistes e a segunda, muito semelhante ao que acontece

    na construo das piadas. Trata-se, respectivamente, da regresso dos pensamentos em

    imagens sensrias e dos processos de deslocamento e condensao.

    O deslocamento, tanto no