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o SENHOR DOS NAVEGANTES

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Ferreira de Castro, 98 Mares

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  • o SENHOR DOS NAVEGANTES

  • FeRReIRA De CASTRO

    o SENHOR DOS NAVEGANTES

  • EXPO'98

    1990. Ilerdclros de Ferreira de Castro e Parque EXPO 98. S.A.

    A publicno de O Senhor dos Navegantes foi gentilmente autorizada

    pelos herdeiros de Ferreira de Castro.

    Ilustrao e Dcsign

    luis FilillC Cunha

    Tiragem

    5000 exemplares

    Composio

    Fo loca 111 pogr fi ca

    Seleco de Cor

    Grafiseis

    III1Jlresso e Acabamento

    Prilller Portuguesa

    Depsito legal

    1/0 594/97

    ISBN

    971.-8]96-)9-Z

    Lisboa, Fevereiro de 1998

  • Branca, airosa, pequenita, erguida sobre o to

    pe de uma colina, a Capela do Senhor dos Na

    vegantes divisava-se de longe, como um farol.

    E a ela, mais do que uma luz que brilhasse na

    noite atlntica, os pescadores enviavam espe

    ranas e desesperos quando em graves riscos

    se viam nas cavas e lombas do mar. Porque

    ficava alta, ao fim de ngreme, pedregoso

    carreiro, raras gentes l iam, salvo em dia de

    festa, com morteiros e filarmnica, uma vez

  • FERREIRA DE CASTRO

    cada ano. Fascinado pela sua solido e lar

    gueza panormica, eu encontrara, porm, ma

    neira de a atingir, naquelas tardes de Estio,

    sem me fatigar. Para subir s montanhas, um

    livro vale mais do que um bordo - e, com

    um livro sob o brao, punha-me a caminho.

    Logo que as pernas se cansavam, sentava-me

    e lia, enquanto os melros iam cantando nas

    velhas rvores da encosta. Sem o livro, pe

    queno seria o meu repouso e continuaria a

    ascenso antes de refeito, que a tendncia de

    quem anda, leve rodas, leve hlices ou ape

    nas, modestamente, os ps com que nasceu, ,

    j se sabe, chegar com brevidade ao ponto de

    destino - mesmo que nada tenha l que fa

    zer. Com um livro, outra coisa. Sendo bom,

    prende-nos mais tempo do que os braos de

    uma mulher e s desejamos interromper a sua

    leitura no final de um captulo ou em par

    grafo onde possamos retom-Ia facilmente.

    Entretanto, as pernas recobram foras.

  • o S E II II O R O O S II A V E G A 111 E S

    Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito

    do Senhor dos Navegantes, demorei-me a con

    templar o mar vasto que dali se descortinava,

    ento muito sereno, com suas velas graciosas

    e fugidias. Em baixo, estendia-se a grande

    praia semi-selvagem. direita, rompendo de entre um pinhal e com o seu verde contras

    tando, espaireciam casitas modernas, todas

    faceiras e coloridas, ao passo que, da banda

    oposta, aglomeravam-se as barracas dos pes

    cadores, em forma de ilha sobre a areia e to

    velhas, negras e rodas pelos anos como se

    fossem as mesmas que deixaram ali os primei

    ros habitantes do litoral. Dir-se-ia que o tem

    po parara do lado onde se trabalhava rude

    mente ao sol, muitas vezes de colaborao

    com a morte, para se activar apenas naquele

    onde se descansava sombra tranquila dos

    pinheiros.

    Aps esse longo olhar de amor com que

  • FERREIRA OE CAS TR O 10

    todos os dias eu envolvia o oceano, a terra e

    o cu, sentei-me e dispus-me a ler, como de

    costume. Logo, porm, que abri o livro, um

    rumor veio de dentro da capela. Surpreendi

    do, voltei-me e notei que a porta estava se

    miaberta. Era a primeira vez que isto me

    acontecia. At ento, eu encontrara sempre

    ali o maior silncio, um abandono total, com

    esse sabor potico, fino, voejante, que parece

    destilado pelo ar e prprio das ermidas que

    padroam as montanhas. Agora, os rumores

    continuavam. Senti passos e vi um homem

    transpor a porta. Trazia os braos fechados

    sobre numerosos ex-votos - barcos de cera e

    pequenos quadros, ingnuas pinturas feitas

    sobre madeira. Ao dar comigo, estacou, con

    trariado; teve, em seguida, uma expresso in

    certa, logo um movimento de indiferena, por

    fim dirigiu-se para o extremo do adro. Desse

    lado, o flanco da colina descia quase a pique,

  • o S EtltlOR DO S IIAVE GAtlTES

    at um matorral que se estendia l em baixo.

    Era um terrvel despenhadeiro e, para defesa

    de quem vinha ao Senhor dos Navegantes, ha

    viam construdo um murozito, que, da banda

    de dentro, formava bancada em semicrculo.

    Ali o homem se sentou, a uns quatro metros

    de mim.

    Descontente com a sua presena inoportu

    na, eu ia baixar, de novo, os olhos sobre o li

    vro, quando ele me disse:

    - Provavelmente, o senhor pensa que sou

    um ladro . . . No verdade?

    certo que eu havia pensado isso, um mo

    mento antes. Havia mesmo avaliado as suas

    foras em relao s minhas e concludo que

    talvez ele me vencesse, em caso de luta. No

    que fosse mais novo; devia ter uns cinquenta

    anos maltratados, enquanto eu no chegara

    ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais

    robusto e os braos muito mais possantes do

  • FERREIRA O E CASTRO 12

    que estes, to franzinos, de que eu me servia

    para pegar no livro. Os seus olhos no preci

    savam de culos, ao passo que os meus, sem

    auxlio de vidros no me permitiriam dar dois

    passos seguros, mesmo para fugir. E embora

    as linhas fsicas dele no se mostrassem ru

    des, o fato que trazia, gasto, poeirento, e no

    sei mais o qu do seu todo, sugeriam a ideia

    de homem habituado a trilhar as estradas do

    mundo, de varapau na mo, ao assalto da vida.

    Hesitei, talvez, alguns segundos a respon

    der-lhe, porque ele, antes de me ouvir, acres

    centou:

    - No, no sou um ladro. Isto - e apon

    tava os ex-votos - pertence-me. Eu que no

    os mereo . . .

    Definitivamente perturbado, respondi, en

    fim, qualquer coisa, no me recorda o qu,

    uma necedade por certo, e ele voltou:

  • 13 o S E 1111 O R O O S II A VE G A tlT E S

    - O senhor no de c, pois no? Est a

    veranear na praia?

    - Estou.

    - Logo vi. A gente da terra no tem tempo

    para vir ler aqui para cima. Bem lhe basta o

    trabalho.

    No entendi logo se ele falava assim para

    me ser desagradvel ou simplesmente para de

    monstrar a sua perspiccia.

    Os seus olhos voltaram a fixar-me. Pare

    ceu-me ver neles um lume de ternura, mas

    senti-me novamente humilhado ao ouvi-lo

    dizer:

    - O senhor esteja sua vontade. Eu no me

    demoro. E no tenha medo de mim. No fao

    mal a ningum. Todos ns, certo, j algum

    dia fizemos mal - e eu fiz um grande mal,

    mas isso foi h muito ano . .. - A sua voz repe

    tiu, de modo profundo: - H muito ano .. .

  • FERREIRA OE CAS T R O 14

    - claro que no tenho medo - declarei,

    num tom frio. Na verdade, porm, eu enerva

    ra-me. Tornei a abrir o livro e fingi ler.

    O homem calou-se. Vergado sobre os ex

    -votos, as suas mos iam desfazendo os barcos

    de cera e arremessando-os para o abismo, pa

    ra o saral que havia l no fundo. Deles rete

    ve apenas a extremidade de um mastrozito

    com a sua bandeirola, que fez voltejar na

    ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice

    que se tem para as coisas frgeis, e logo en

    fiou na botoeira do casaco. Depois, estendeu

    o brao, agarrou uma pedra e deu-se a partir

    os quadros onde se viam embarcaes de pes

    ca em luta com o mar embravecido e o Se

    nhor dos Navegantes de p sobre nuvens.

    Todos eles tinham datas, algumas seculares,

    e legendas de reconhecimento, com muitos

    erros ortogrficos e mal desenhadas letras.

    O homem lia-as antes de despedaar as peque-

  • 15 o S E IIII O R O O S II AVE G A IIT E S

    nas tbuas onde elas estavam inscritas e, em

    seguida, lanava os destroos l para baixo,

    para o mesmo lugar dos barquitos de cera.

    Entretanto, parecia falar sozinho:

    - Nunca salvei ningum.. . Ningum! Eu

    bem o desejaria fazer, mas j no tinha fora

    para isso. Se estes se livraram da morte, foi

    apenas por circunstncias favorveis .. .

    Levantou-se e voltou a entrar na capela.

    Pensei ser o momento de me retirar. Ele ia

    julgar que eu era cobarde, mas isso no me

    importava.

  • FERREIRA OE CASTRO II

    aqueles smiles de membros humanos, que lhe

    acordariam, porventura, remotas supersties,

    ele acercou-se do murozito e lanou os ex

    -votos, de uma s vez, para as profundidades

    do desfiladeiro. Depois, quedou-se um mo

    mento, como eu fizera antes, a contemplar o

    oceano.

    - O senhor gosta disto? - perguntou, vol

    tando-se ligeiramente para mim.

    - Isto bonito - respondi-lhe. um

    magnfico panorama . . .

    Tornou a olhar o mar e a terra, lentamente.

    - Sim, no feio . . . - murmurou. - Podia

    ter sado muito melhor, mas, enfim ... J os

    Romanos gostavam deste stio. Ningum o sa

    be ainda, seno eu, mas a verdade que hou

    ve aqui um crasto. Olhe, acol, esquerda,

    antes de se entrar no adro, se algum esca

    var, encontrar restos de sepulturas . .. E

  • 17 o S E 1111 O R O O S II A V E G A IIT E S

    praia, l em baixo, chegaram a vir muitas ga

    leras .. . Existia, ento, um pequeno porto, que

    o tempo assoreou . . .

    Surpreendiam-me os seus conhecimentos e

    a propriedade com que falava. Tentei exami

    n-lo melhor, mas o homem encontrava-se

    novamente de costas, sempre de olhos fixos

    ao longe.

    - Efectivamente - disse-me, depois - se

    olharmos bem para a terra, para o mar e para

    o cu e se pensarmos na grande variedade de

    seres que h no mundo e em todo este admi

    rvel equilbrio planetrio, parece-nos que

    estamos perante um milagre. No assim?

    A si tambm no lhe parece o mesmo, quando

    pensa, por exemplo, nas vidas submarinas?

    - Sem dvida, o mundo muito variado e . . .

    Ele interrompeu-me:

    - Eu sei que todos os homens pensam, so-

  • FERREIRA DE CASTRO 16

    bre isto, mais ou menos o mesmo. Um simples

    insecto, que encontramos num monte e que

    podemos facilmente esmagar com o p, se ele

    no fugir, capaz de levar-nos a meditar so

    bre o mistrio da criao, capaz de arrastar

    o nosso pensamento por caminhos obscuros

    que, momentos antes, no tnhamos sequer

    admitido percorrer .. .

    O homem interrogou-me bruscamente:

    - O senhor o que ? Qual a sua profisso?

    Eu disse-lha e ele pareceu contente:

    - Ah, muito bem! Ento pode compreen

    der ... No verdade que o mundo parece fei

    to por uma imaginao portentosa? Por uma

    inteligncia que nenhum homem pode igua

    lar?

    - Algumas vezes tenho reflectido sobre

    isso . .. - confessei, modestamente.

    - A est! - exclamou ele. - A est! Mas

    o senhor engana-se! Pelo menos, engana-se

    em metade . ..

  • I' o S E 1111 O R D O S ti A VE G A IIT E S

    Aproximou-se mais de mim. Eu estava sen

    tado, ele de p; eu tinha de olh-lo de baixo

    para cima e sempre com receio de que esten

    desse as mos e me dominasse.

    - Ora diga-me uma coisa . . . Nunca lhe pa

    receu que essa inteligncia havia ficado a

    meio do seu trabalho? Que no tinha ido at

    onde parece que pretendia ir?

    - No sei. A nossa razo tem limites. Para

    alm da nossa razo podem existir outras

    razes, que no so explicveis .. .

    - Era a, justamente, onde eu queria

    chegar!

    Ao dizer isto, o homem sentou-se ao meu

    lado, dobrando-se levemente para a frente,

    com os braos apoiados nas pernas e as mos

    juntas. A sua voz adquiriu, ento, um murmu

    rejar de confidncia e de quem no sente

    pressa alguma:

    - Tudo correu muito bem, a princpio

  • F E RR E IRA D E CASTRO 20

    declarou, como se continuasse uma narrativa

    interrompida. - Eu tinha um poder infinito.

    E uma imaginao para alm de todos os pro

    dgios. At eu me admiro, hOje, disso. Bastava

    pensar uma coisa e o meu pensamento mate

    rializava-se rapidamente, adquirindo forma e

    vida. A minha fantasia no encontrava limite

    algum e os habitantes das profundidades des

    te mar que estamos vendo o atestam. um

    prazer que o senhor no conhece tornar rea

    lidade o prprio absurdo. Mas, nesse tempo,

    tambm eu no sentia esse prazer; eu no fa

    zia ideia alguma do que era absurdo e do que

    era lgico, do que era belo e do que era feio,

    do que era bom e do que era mau. Estas defi

    nies s se estabeleceram mais tarde, justa

    mente quando surgiram os limites . . . Eu cria

    va, criava, como num delrio. E no h dvida

    de que a minha principal obra foi isso a que

    os homens chamam o Universo, a mecnica

  • 2\ o S E II II O R O O S II A V E G A IIT E S

    celeste, o Infinito . .. Os senhores andam, com

    a vossa cincia, a colocar l algumas balizas,

    mas trabalho mais difcil do que se quises

    sem remover com uma colher de ch a terra

    de uma montanha ...

    Enquanto ia falando, o homem olhava para

    o cho, como se no desejasse ver nos meus

    olhos o efeito das suas palavras. Depois, mu

    dou o tom de voz:

    - Um dia, porm, senti-me decadente. As

    aves, por exemplo, so um indcio do meu de

    clnio. No sei se o senhor viajado, se co

    nhece a sia e a Amrica, as grandes florestas

    tropicais onde h aves maravilhosas. Mas se

    no conhece, no importa; tem visto isso, pe

    lo menos, nos livros com estampas multicolo

    res. Parece-lhe - no verdade? - que h

    uma diversidade deslumbrante, uma fantasia

    inesgotvel no mundo das aves. Pois no as

    sim! Se observar bem, ver que no assim.

  • FERREIRA DE CASTRO 22

    A minha imaginao havia j comeado a di

    minuir, comeava j a aproximar-se do que

    viria a ser a imaginao dos homens. Criei um

    pssaro e os outros foram apenas variantes.

    Utilizei o primeiro modelo e fi-lo de todos os

    tamanhos, desde a avestruz, to grande que

    pode ser cavalgada, at o colibri, que, de mi

    nsculo, se confunde com um insecto. A se

    guir, fi-lo de todas as cores e com todas as

    combinaes de cores. Depois, em vez de

    criar, pus-me a exagerar determinadas parce

    las do que j havia feito. E cheguei, assim,

    at a caricatura da minha prpria obra. A al

    gumas das aves limitei-me a esticar-lhes as

    pernas, as caudas ou os bicos, de tal forma

    que estes ficaram grotescos e muito maiores

    do que o corpo. A outras dei-lhes uma ampli

    tude de asas de que no careciam ou deixei

    -lhes apenas uns simples cotos. Variei-lhes,

    tambm, o fulgor dos olhos e a composio

  • 23 o S E 11 11 O R DOS II A V E G A II TE S

    dos seus gorjeios, deixando umas eternamen

    te mudas e obrigando outras a cantarem at

    na hora da morte. Mas tudo isso eram simples

    pormenores, porque, no fundo, a ave, a ideia

    fundamental, eram a mesma. Eu parecia um

    desses artistas que realizou, certo dia, uma

    descoberta feliz e passou, depois, o resto da

    vida a lutar desesperadamente para dar a ilu

    so de que no se repetia, quando, em reali

    dade, no fazia outra coisa seno plagiar-se a

    si prprio ...

    O homem calou-se subitamente e, soer

    guendo a cabea, olhou-me pela primeira vez,

    desde que se havia sentado.

    - O senhor est a pensar que sou um lou

    co, no verdade?

    Foi ento que, por meu turno, baixei os

    olhos, admitindo de novo que ele poderia, em

    qualquer momento, lanar-me por cima do

    murozito de resguardo, como fizera aos ex

    -votos.

  • FERREIRA DE CA'STRO

    - No, senhr. Estou a ouvi-lo com muito

    interesse. O que acontece que se vai fazen

    do tarde .. .

    Ele examinou atentamente o cu, como se

    medisse o Tempo:

    - No, tarde no ... So apenas cinco ho

    ras .. . D c um cigarro.

    Passei-lhe o mao, meteu-lhe os dedos,

    riscou, devagar, um fsforo, soltou o fumo e

    tornou:

    - Com o mundo vegetal aconteceu a mes

    ma coisa. O que uma rvore? O que uma

    planta? Uma raiz metida na terra. Para evitar

    a monotonia, tive de dar variedade s folhas,

    s flores, aos frutos e aos aromas. Mesmo aos

    troncos. Mas, apesar de tudo, sempre uma

    raiz metida na terra. Ora no era isso que eu

    queria. Eu no queria o mundo submetido a

    uma repetio perptua. Eu desejava que ele

    se modificasse constantemente. O senhor j

  • 25 o S E ti H O R O O S II AV E G A IIT E S

    pensou que poderiam perfeitamente existir

    bosques areos e que o homem deveria andar

    no fundo dos mares ou no espao celeste com

    tanta facilidade como anda aqui na terra?

    O senhor no v que os homens esto todos

    os dias a procurar corrigir os defeitos do meu

    trabalho? O que um avio ou um escafandro

    seno um remendo minha obra? Mesmo os

    que me adoram, passam a vida a discordar

    de mim e a tentarem emendar o que eu fiz.

    Quando imploram as minhas graas para as

    suas infelicidades, no fazem, no fundo, ou

    tra coisa do que censurar-me, pois o que

    uma splica seno uma revolta que no se po

    de exteriorizar? - Sorriu vagamente e ajun

    tou. - S no me amaldioam porque ainda

    me julgam mais forte do que eles .. .

    Voltou a calar-se. Depois, calcou o cigar

    ro, ainda quase inteiro, e, com um tom doce,

    melanclico, confessou:

  • FERREIRA OE CASTRO 2d

    - Eles tm razo, coitados! Sucumbi antes

    de realizar integralmente a minha obra. O que

    devia ser mutvel tornou-se imutvel e as leis

    que ficaram a reger o mundo so impiedosas.

    Eu s me lembrei de criar o homem muito

    tarde. J havia feito os outros animais, j ha

    via mesmo esgotado toda a fantasia no exage

    ro dos pormenores, quando me ocorreu uma

    outra variante. A minha tendncia fora, at

    a, dar aos bichos quatro apoios sobre a terra

    ou sobre as rvores. Pois bem! Aos novos se

    res eu daria, como s aves, apenas duas pa

    tas. Mas o senhor no pode imaginar o que

    senti ao ver de p, entre os outros, o novo

    casal. Eu estava a criar o canguru e to im

    pressionado fiquei que lhe pus logo mais dois

    embries de pernas e deixei-o incompleto pa

    ra todo o sempre. No meio dos outros bichos,

    que se moviam alegremente, com jubilosos

    rudos na manh da sua vida, o homem e a

  • 27 o SE IIIIO R DO S IIAV E GAIlTE S

    mulher, nicos que eram verticais, dir-se-iam

    dois pinguins entre um bando de pssaros

    chilreantes. Ele olhava ao longe, sem saber

    como orientar-se. Mostrava-se to triste, to

    incerto no seu destino, que tive de repente

    pena dele. Porque fora talhado ao alto, o seu

    prprio sexo se apresentava menos oculto

    do que o dos outros animais e parecia vex

    -lo. No ocaso do meu poder, eu comeava a

    atribuir, por fraqueza imaginativa, diferen

    tes funes a um mesmo rgo. Para as aves

    bastara-me um tubo de vazo; para os outros

    viventes criei, inutilmente, dois - e ao se

    gundo impus uma dupla utilidade. Quando ve

    rifiquei o erro, era demasiado tarde: dali em

    diante, a prpria vida humana brotaria de um

    cano de esgoto. Assim, a piedade que eu sentia

    pelo homem ia-se tornando cada vez maior.

    Hesitei um momento e decidi: a este que eu

    me darei. a este que eu darei o que ain-

  • FE RREIRA D E CASTRO 28

    da resta de grande em mim. E fundi a minha

    decadncia, o crepsculo da minha potestade,

    naquele melanclico animal. Foi outro erro, o

    meu maior erro. O homem ficara com todas as

    aspiraes de um deus e no era completa

    mente deus. Surgiram, devido a isso, inme

    ros conflitos. O homem queria ser eterno co

    mo o deus que ele guardava dentro de si e

    era, pelo contrrio, to efmero como os ou

    tros animais. Queria ser feliz, impelido por

    aquela obscura reminiscncia de quando uma

    parte dele me pertencia a mim, sua divinda

    de, e havia de passar milnios sobre milnios

    a lutar para ser feliz, sem nunca o poder ser

    por muito tempo. S o era integralmente por

    alguns minutos e justamente quando fecunda

    va novas dores humanas. Eu havia-o deixado

    to desamparado e com tantos problemas a

    resolver, que a prpria caverna, em vez de

    ser apenas um ponto de partida, foi, ao con-

  • o S E tUI o R O O S II A V E G A IIT E S

    trrio, um ponto de chegada - a sua primeira

    conquista. O mundo ficara imperfeito e o ho

    mem com uma nsia de perfeio impossvel.

    O mundo ficara incompleto, injusto e sem fi

    nalidade visvel e o homem deu-se a lutar pa

    ra que o mundo tivesse para ele tudo aquilo

    que o mundo no tinha. Quando no pode lu

    tar de outra maneira recorre s hipteses.

    So as hipteses que o tm amparado desde

    que ele vive. Eu sinto remorsos, creia, por tu

    do quanto fiz . . . Sinto especialmente remorsos

    por tudo quanto no cheguei a fazer.

    O meu interlocutor levantou-se, meteu as

    mos nos bolsos e caminhou, como opresso,

    at a extremidade do muro que nos protegia

    do abismo. Vi-o olhar l para baixo, para os

    destroos dos ex-votos, vi-o, depois, estender

    a vista at ao mar e, em seguida, voltar-se

    para mim:

    - Ento, eu prprio comecei a lutar tam-

  • FERR E IRA DE CAS1RO 30

    bm contra a minha obra. claro que, ao fun

    dir-me no primeiro homem, fiquei mortal

    como ele. Mas gozo, ao contrrio dos outros,

    o privilgio de guardar memria das muitas

    vidas que tenho vivido. Lembro-me de tudo

    desde o comeo do Tempo, desde que fiz o

    mundo. E nisso est o meu principal sofrimen

    to, porque a memria, para quem praticou o

    mal, , como se sabe, o maior castigo que

    existe. Sofro ainda porque os homens levam,

    s vezes, milhares de anos para acreditar no

    que evidente. Quando lhes digo a verdade,

    eles maltratam-me. Quando lhes grito, por

    exemplo: O mundo est mal feito e preciso,

    dentro das vossas possibilidades humanas,

    corrigir o mundo - os mais fracos, os mais

    ingnuos, ficam a olhar para mim, duvidosos

    ainda sobre se ou no verdade o que lhes

    digo, enquanto os mais fortes mandam ime

    diatamente perseguir-me. Se, para me defen-

  • 31 o SE tlllOR OO S tlAVEGAtlTES

    der, declaro: Tenho a certeza de que est

    mal feito, pois fui eu prprio quem o fez -

    ento consideram-me louco, bruxo, herege,

    visionrio, e perseguem-me da mesma manei

    ra. Poucas vezes tenho morrido na cama,

    como morrem os generais e a maioria dos

    outros homens. Ao contrrio, tenho sido es

    quartejado, queimado vivo, crucificado, en

    forcado, fuzilado, guilhotinado, electrocutado

    e gaseado. A cada uma das minhas vidas foi

    sempre aplicada a moda a que cada poca e

    cada povo obedecem para matar os seus ini

    migos. Disso no tenho que me queixar ... -

    acrescentou com um sorriso. - H pouco,

    contei-lhe que, ali, entrada do adro, se en

    contra um velho cemitrio romano. Decerto,

    o senhor no acreditou. Compreendo perfei

    tamente: no seu lugar, eu tambm duvidaria.

    Mas pode ter a certeza de que estou l ... Ou,

    se j no existe resduo algum do meu corpo

  • FERREIRA OE CASTRO 32

    de ento, deve estar l, pelo menos, uma

    fbula que eu usava nesse perodo. Enterra

    ram-me ali depois de me terem supliciado

    brutalmente, s por eu haver dito que, como

    criador que fora do mundo, vivia a peniten

    ciar-me do meu tremendo erro. Eles julgaram

    que eu pretendia, com isso, ser mais impor

    tante do que o imperador de Roma e liquida

    ram-me .. .

    Um bando de gaivotas ladeou a colina, so

    brevoando a praia. A luz ia diminuindo de in

    tensidade e dando cores suaves aos arredores

    da capelinha, ao prprio adro, onde a voz do

    homem prosseguia:

    - Se eu lhe contasse o que observei e so

    fri atravs dos Tempos! Mas nunca mais aca

    baria e vejo que o senhor est com pressa .. .

    O que me valeu nos ltimos sculos foi a in

    terveno da tipografia. Sem isso, teria sofri

    do ainda mais, dado que as minhas ltimas

  • 33 o S E ti II O R O O S ti A V E G A 111 E S

    vidas passei-as, quase inteiramente, nas pri

    ses. Assim, sempre arranjo alguma coisa para

    ler. Tenho lido muito, muito; desde h qua

    trocentos anos quase no fao outra coisa.

    Por um lado, a leitura distrai-me, leva-me a

    esquecer a cadeia; por outro, tortura-me,

    pois pelos livros dos homens que eu vejo,

    sobretudo o drama que criei. .. Ultimamente,

    l no manicmio, s queriam dar-me livros

    optimistas, livros em prol. Os mdicos afirma

    vam que essas obras no me despertariam

    ideias sombrias... Mas eu protestei imedia

    tamente ...

    - Ah, o senhor esteve no manicmio? -

    perguntei, de modo tmido.

    - Estive - respondeu-me ele, com natura

    lidade. - No tenha medo de me ofender,

    pois desde o princpio adivinhei que o senhor

    pensa que eu sou um louco. No me ofende

    nada ... Todos tm pensado de mim a mesma

    coisa, j lhe disse. Estive e l estaria ainda

  • FERREIRA DE CASTRO 34

    se, ontem, no tenho conseguido fugir. Estava

    l ia j para oito anos. E sabe porqu? Por

    que, um dia, entrei numa igreja e gritei aos

    crentes que se encontravam ajoelhados: No

    vos resigneis, pois o mundo que eu fiz mui

    to imperfeito e, portanto, precisa mais do

    vosso esforo do que da vossa resignao. Im

    perfeito h-de ele ser sempre e vs tambm;

    contudo, em muita coisa podeis aperfeioar o

    mundo e a vs prprios. Mas no de joelhos

    que o fareis; de p e a lutar! Quem vos fala

    j foi Deus e sabe por que fala assim .. .

    O homem olhou-me, como se, desta vez,

    lhe interessasse conhecer a minha reaco.

    Vendo que eu continuava calado, teve um sor

    riso melanclico e continuou:

    - O que fui dizer! S as imagens dos san

    tos ficaram impassveis ... Mas o Cristo, no al

    tar-mor, parecia contemplar-me meigamente,

    com um ar secreto de cumplicidade. Dos fiis,

  • 3S o SEtlllOR OO S IIAVEGAtlTES

    uns olhavam para mim, escandalizados, outros

    faziam esforos para no se rir ... Junto do al

    tar da Senhora dos Aflitos encontrava-se,

    ajoelhada, uma pobre mulher, a nica que,

    naquela manh, estava ali com verdadeira un

    o. Ela tinha um filho morte e no tinha

    recurso algum, nem para o mdico, nem para

    os medicamentos - para nada. Viera ali pedir

    ao cu que lhe salvasse o filho, pois era o cu

    a ltima esperana que lhe restava. Senti tan

    ta pena por essa me infeliz, que me aproxi

    mei do altar, estendi os braos para a imagem

    da Senhora dos Aflitos e tirei-lhe do pescoo

    um dos muitos cordes de oiro que os devotos

    lhe haviam oferecido. Ou is entreg-lo mu

    lher, dizendo-lhe: Vende-o e vai a correr cha

    mar o mdiCO! Mas a mulher, depois de limpar

    as suas lgrimas, encarou-me com repugnncia,

    como se eu fosse o prprio diabo - e recusou

    o cordo. Teimei: Despacha-te seno o teu

  • FERREIRA OE CASTRO

    filho pode morrer! Ela continuou a recusar e

    a olhar-me com desprezo. Ento, sempre com

    piedade por ela e pelo filho, resolvi mentir:

    Anda! Pega l! No tenhas escrpulos! Eu sou

    o instrumento de que Nossa Senhora dos Afli

    tos se serviu para te ajudar. Ela hesitou um

    momento. Olhou a imagem, olhou para mim,

    mas no cheguei a saber se se havia decidido

    a aceitar aquilo. A igreja enchera-se de gri

    tos: louco! louco! ladro! ladro! Quer

    roubar a Nossa Senhora dos Aflitos! Um pol

    cia que estava tambm ajoelhado, levantou

    -se, avanou para mim, tirou-me o cordo e

    p-lo, de novo, ao pescoo da imagem. De

    pois, ordenou-me que sasse na sua compa-.

    nhia . .. O senhor est a ver o que aconteceu .. .

    Se, ontem, no apanho um guarda distrado e

    no salto o muro, no estaria agora aqui a fa

    lar consigo . ..

    Ofereci-lhe outro cigarro. Ele recusou-o

    com um gesto.

  • 37 o S E II " O R DOS " A VE G A 111 E S

    - So horas de nos irmos embora - disse,

    empregando O plural, como se estivesse cer

    to de que eu partiria, com ele, do Senhor

    dos Navegantes. Realmente, eu deixara de o

    temer.

    Atravessmos o adro. Ao passarmos junto

    do local que ele me dissera haver sido um ce

    mitrio romano, vi-o deter-se. Os seus olhos

    pareciam buscar, sob as plantas silvestres, um

    determinado stio. Encontrou-o, decerto, por

    que vergando a cabea, gritou para dentro da

    terra:

    - C estou! Ouves? C estou e vou conti

    nuar a lutar!