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O SIGNIFICADO DO DIREITO À LIBERDADE PARA A APLICAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
Amanda Danielle de Oliveira Norbiato1
RESUMO:
Este trabalho aponta a falha da efetivação dos direitos humanos universais pela falha do
direito primordial, que aqui destacamos o direito à liberdade, através da compreensão da
lógica da linguagem por meio das investigações realizadas pelo filósofo Wittgenstein e
pela teoria do signo em Saussure. A Declaração Universal dos Direitos Humanos garante
que todos nascemos “livres e iguais em dignidade e direitos”. Analisamos nesse trabalho o
quão problemático é essa afirmação. Nossa pesquisa persegue o significado das palavras. O
que conceitualmente o direito nos garante quando sabemos o que ele significa e,
principalmente, a quem ele significa.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Linguagem; Significado; Liberdade.
1 INTRODUÇÃO
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada em 1948 em
Paris, temos então um documento que traz em seu conteúdo o que seria talvez a mais nobre
proposta de direitos inalienáveis ao ser humano.
Quanto a Declaração Bobbio afirma:
Com essa declaração, um sistema de valores é – pela primeira vez na história –
universal, não em princípio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre sua
validade e sua capacidade para reger os destinos da comunidade futura de todos
os homens foi explicitamente declarado. (...) Somente depois da Declaração
Universal é que podemos ter a certeza histórica de que a humanidade – toda a
humanidade – partilha alguns valores comuns; e podemos, finalmente, crer na
universalidade dos valores, no único sentido em que tal crença é historicamente
legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não algo dado
objetivamente, mas subjetivamente acolhido pelo universo dos homens
(BOBBIO, 1992, p. 28).
1 Atriz, graduada em Filosofia e mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná
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Existe uma crença implícita com a Declaração, de que gerações atuais e vindouras
compartilharão de valores comuns aos seres humanos, universalizando valores e
partilhando o que é convergente a todos.
Como afirma Bobbio, a Declaração Universal, não deve estar estagnada, mas
sempre se renovando, com o passar dos anos e em cada sociedade:
A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem
dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma
síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram
gravadas de uma vez para sempre.
Quero dizer, com isso, que a comunidade internacional se encontra hoje em
diante não só do problema de fornecer garantias válidas parta aqueles direitos,
mas também de aperfeiçoar continuamente o conteúdo da Declaração,
articulando-o, especificando-o, atualizando-o, de modo a não deixá-lo cristalizar-
se e enrijecer-se em fórmulas tanto mais solenes quanto mais vazias Esse
problema foi enfrentado pelos organismos internacionais nos últimos anos,
mediante uma série de atos que mostram quanto é grande, por parte desses
organismos, a consciência da historicidade do documento inicial e da
necessidade de mantê-lo vivo fazendo-o crescer a partir de si mesmo. Trata-se de
um verdadeiro desenvolvimento (ou talvez, mesmo, de um gradual
amadurecimento) da Declaração Universal, que gerou e está para gerar outros
documentos interpretativos, ou mesmo complementares, do documento inicial
(BOBBIO, 1992, p. 34).
Nesse sentido, "interpretativo", a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
talvez não atinja seu objetivo de universalizar direitos inalienáveis devido interpretações
do que seria determinado conceito para povos distintos. Neste momento de divergência no
que deveria ser universal por diferenças de sentidos até mesmo de valores e termos, que a
linguagem pretende cumprir seu papel, entendendo como diz Wittgenstein que a palavra é
uma forma de vida, e que precisa ser compreendida dentro de cada contexto para que o
jogo possa ser entendido e jogado, ou seja, é preciso por intermédio de uma compreensão
da linguagem, aplicar os direitos humanos a todos os povos partindo da compreensão do
significado e significante para estes mesmos povos.
2 CONCEITO DE LIBERDADE
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Para Abbagnano, o autor do Dicionário de Filosofia, a liberdade tem três
significados fundamentais. A primeira concepção é da “liberdade como autodeterminação
ou autocausalidade, segundo a qual a liberdade é a ausência de condições e de limites”
(ABBAGNANO, 2012. Art. Liberdade, p. 699), desse modo a liberdade seria absoluta, ou
seja, seríamos livres em nós mesmos. Encontramos essa concepção em Aristóteles e
também em Epicuro, segundo eles nós determinamos nossas escolhas, o que fazemos ou
não fazemos depende exclusivamente de nós mesmos, somos regentes das nossas ações. É
através de nosso poder e vontade que todas as coisas se movem. Nesse sentido também se
entende a liberdade como uma ausência de leis, que segundo Hobbes, seria nosso estado de
natureza, quando sem normas, vivíamos como queríamos (ABBAGNANO, 2012. Art.
Liberdade, p. 699-702).
A segunda concepção vê a “liberdade como necessidade” e se baseia no mesmo
conceito da anterior, também é como uma autodeterminação, “mas atribuindo-a à
totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substância, Estado)”, nesse sentido a
liberdade está voltada ao exterior onde só o sábio é livre, pois compreende a “necessidade
da ordem cósmica”. Esse conceito está principalmente nos estóicos, segundo o qual nossa
existência é determinada pela natureza, ou por Deus segundo Espinosa, ou pelo Estado
como destaca Hegel. Isso significa que nossa liberdade se realiza através das decisões
superiores de modo universal. Nos tornamos livres quando guiados pela razão
compreendemos que nossas necessidades são uma adequação entre nosso desejo e a
vontade do “Absoluto” (Mundo, Substância, Estado), quando nos identificamos com uma
totalidade (ABBAGNANO, 2012. Art. Liberdade, p. 699-703).
A liberdade na terceira concepção é uma possibilidade ou escolha, “segundo a qual
a liberdade é limitada e condicionada, isso é, finita” (ABBAGNANO, 2012. Art.
Liberdade, p. 699). O primeiro a conceituar a liberdade como uma possibilidade foi Platão
que declarou que somos livres para escolher, mas somos limitados nessa escolha, pois
escolhemos o que está disponível para nosso estilo de vida escolher, somos condicionados
a ela. Mais tarde Hobbes afirmou que não somos livres para “querer”, pois não podemos
querer não ter fome quando temos, mas segundo ele somos livres no “fazer”, logo,
sentimos fome mas escolhemos o que faremos dela, se vamos comer ou não e o que
(ABBAGNANO, 2012. Art. Liberdade, p. 699-705).
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O contratualista John Locke em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil afirma
que o Estado de Natureza do homem é um estado de liberdade e que o governo civil
deveria apenas garantir e ampliar esses direitos civis que são inerentes à existência
humana, independente de classe social, segundo o qual todos os indivíduos têm direito à
vida, à liberdade e à propriedade (LOCKE, 1973). Porém essa visão de direitos não é o
modo como a produção capitalista atual nos percebe.
Mesmo que após a segunda guerra um mundo abalado tenha redigido em 1948 a
Declaração Universal dos Direitos Humanos que proclamou a dignidade de todo e
qualquer ser humano como primordial para a existência, e que “todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (ONU, 1948, art. 1), e que estes direitos
são “inalienáveis”, não conseguimos hoje, após tantos avanços, evitar a indignidade, a
injustiça e a desvalorização do humano.
Nosso ponto de partida compreende a falha do não cumprimento dos direitos
humanos como uma falha da linguagem, uma falha da compreensão humana que atravessa
gerações.
Entendemos que a linguagem é a possibilidade que seres humanos têm de imaginar
um signo e expressá-lo por meio da língua, e ainda, que esta expressão tem limites, ou seja,
regras para que seja entendida não somente pelo emissor, mas também pelo receptor do
discurso.
É a linguagem que permite que as coisas sejam expressas, às vezes de forma clara
ou não. A linguagem assinala o limite do pensamento. A sua “forma lógica” nos permite
representar a realidade com precisão e falar de forma significativa sobre o mundo.
Logo no prólogo do Tratado lógico-filosófico, Wittgenstein afirma que os
problemas da filosofia consistem em uma “má compreensão da lógica da linguagem” e que
estes se sanariam se utilizássemos uma linguagem lógica incapaz de conter erros
(WITTGENSTEIN, 2002a).
A concepção de linguagem formulada por Wittgenstein, em sua análise filosófica é
explicada pela expressão “jogos de linguagem”:
Mas quantas espécies de proposições há? Talvez asserção, pergunta e ordem? Há
um número incontável de espécies: incontáveis espécies diferentes da aplicação
daquilo a que chamamos “símbolos”, “palavras”, “proposições”. E esta
multiplicidade não é nada de fixo, dado de uma vez por todas; mas antes novos
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tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, surgem
e outros envelhecem e são esquecidos. [...]
A expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o fato de que falar uma língua
é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida (WITTGENSTEIN,
2002b, §23).
Wittgenstein realça que existem “incontáveis” maneiras de expressar uma palavra e
que seria simples conceber uma linguagem com apenas uma forma delas, mas nenhum tipo
de linguagem é constituído apenas por ordens, mas por manifestações distintas e múltiplas,
“conceber uma linguagem é conceber uma forma de vida” (WITTGENSTEIN, 2002b,
§19). O termo “jogos de linguagem” expressa essa diversidade dos usos que fazemos da
linguagem, eles mostram que o nosso uso da linguagem de forma significativa se integra
com as atividades da nossa vida, e este uso, não pode ser definido de uma única maneira,
uma vez que “falar uma língua” é uma atividade. Cada expressão é uma forma de vida, e
essas formas não podem ser fixas, não estão estagnadas, pois são formas vivas. Usar uma
linguagem é muito mais do que conhecer e aplicar as definições de palavras e expressões.
Wittgenstein nos conduz ao significado das palavras no seu uso cotidiano, segundo ele, as
palavras só podem ser entendidas no contexto das atividades em que são usadas, pois “o
significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN, 2002b, § 43).
E como afirma Moreno “sem as indicações a respeito do contexto da aplicação e da
finalidade, o mesmo gesto poderá ser interpretado de qualquer maneira: poderá ser
qualquer coisa, e até absolutamente nada” (MORENO, 1995, p. 19).
O uso incorreto da linguagem abre brechas para o não entendimento das regras/leis
e posteriormente a sua abertura para interpretações.
A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que
muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou
pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias,
entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso. (HART,
2009, p. 148).
Segundo Hart existem nas leis espaço para dúvida acerca do que se quer dizer. Daí
então a conclusão da ideia de textura aberta do direito, pois como uma textura aberta as leis
podem ser analisadas caso a caso e interpretadas pelos juristas.
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Para Wittgenstein “as confusões que nos ocupam surgem quando a linguagem está
como que em ponto morto, não quando funciona” (WITTGENSTEIN, 2002b, §132).
Sendo assim, as “confusões” ditas por ele são apenas causadas quando estagnamos uma
palavra dando a ela somente o significado que fora demarcado em sua “etiqueta” e
esquecemos que elas só podem ser entendidas no contexto das atividades em que são
usadas, pois “o sentido de uma palavra é seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN,
2002b, §43).
[...] Por isso a nossa investigação é uma investigação gramatical. E esta
investigação ilumina o nosso problema por afastar uma possível má-
compreensão. Uma má-compreensão que diz respeito ao uso das palavras,
provocada, entre outras coisas, por certas analogias entre formas de expressão
em domínios diferentes da nossa linguagem. – Algumas podem ser eliminadas
substituindo uma forma de expressão por outra; pode chamar-se a isto uma
“análise” da nossa forma de expressão, porque o processo se assemelha às vezes
a uma decomposição. (WITTGENSTEIN, 2002b, §90).
Portanto, só há compreensão, como constata Wittgenstein, “quando existe uma
concordância, uma harmonia entre o pensamento e a realidade” (WITTGENSTEIN, 2002b,
§429a), quando levamos em consideração o contexto social e histórico que dirá o modo de
utilização determinada expressão pode ser compreendida pela forma de vida humana.
A filosofia para Wittgenstein, é, como ele próprio afirma, “um combate contra o
enfeitiçamento do intelecto pelos meios da nossa linguagem” (WITTGENSTEIN, 2002b,
§109).
Saussure também critica a língua como nomenclatura. Segundo ele a língua não é
simplesmente um termo que corresponde a uma coisa, essa concepção "faz supor que o
vínculo que une um nome a uma coisa constitui uma operação muito simples, o que está
bem longe da verdade". No entanto, essa visão nos aproxima da verdade, "mostrando-nos
que a unidade linguística é uma coisa dupla, constituída da união de dois termos"
(SAUSSURE, 2002, p. 79).
O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma
imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a
impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o
testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegarmos a chamá-
la "material", é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da
associação, o conceito, geralmente mais abstrato (SAUSSURE, 2002, p. 80).
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Para Saussure signo é "a combinação do conceito e da imagem acústica", termos
esses que foram posteriormente substituídos por significado e significante, respectivamente
(SAUSSURE, 2002, p. 81). Enquanto o significado é o conceito do signo, a ideia que dele
fazemos; o significante é a junção da imagem que temos dele com o som que as letras
produzem, como fonemas.
No nosso estudo trabalhamos a liberdade como esse signo conhecido e almejado
pela humanidade, dividido-o como fez Saussure. A liberdade enquanto significado dona de
uma definição universal, e significante a imagem que esse conceito remete a cada sujeito.
Nesse sentido, a teoria do signo em Saussure nos auxilia a compreender a liberdade
como um signo, possuinte de “duas faces” onde cada cultura possui um significante da
liberdade, uma imagem concebida que lhes diz algo, porém, universalmente a liberdade
possui apenas um significado.
3 DIREITO À LIBERDADE
Um dos múltiplos fatores que ameaçam os direitos humanos, que foram
estabelecidos como direitos, mas são diariamente violados perdendo sua qualidade de
direito humano fundamental e universal, inerente a todo ser humano, sem dúvidas, é a
falha na sua interpretação e compreensão.
Apenas quando compreendemos o que o direito à liberdade significa e o que o
cumprimento desse direito traz consigo podemos vivenciar um mundo livre de forma mais
efetiva, podemos buscar e lutar por sermos o “ser de direito” mencionado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Com relação aos direitos de liberdade, vale o princípio de que os homens são
iguais. No estado de Natureza de Locke, que foi o grande inspirador das
Declarações de Direitos do Homem, os homens são todos iguais, onde por
"igualdade" se entende que são iguais no gozo da liberdade, no sentido de que
nenhum indivíduo pode ter mais liberdade do que outro. Esse tipo de igualdade é
o que aparece enunciado, por exemplo, no art. 1º da Declaração Universal, na
afirmação de que "todos os homens nascem em liberdade e direitos", afirmação
cujo significado é que todos os homens nascem iguais na liberdade, no duplo
sentido da expressão: "os homens têm igual direito à liberdade", "os homens têm
direito a uma igual liberdade". São todas formulações do mesmo princípio,
segundo o qual deve ser excluída toda discriminação fundada em diferenças
específicas entre homem e homem, entre grupos e grupos, como se lê no art. 3º
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da Constituição italiana, o qual - depois de ter dito que os homens têm "igual
dignidade social" - acrescenta, especificando e precisando, que são iguais "diante
da lei, sem distinção de sexo, de raça, de língua, de religião, de opinião política,
de condições pessoais ou sociais". O mesmo princípio é ainda mais explícito no
art. 2º, I, da Declaração Universal, no qual se diz que "cabe a cada indivíduo
todos os direitos e todas as liberdades enunciadas na presente Declaração, sem
nenhuma distinção por razões de cor, sexo, língua, religião, opinião política ou
de outro tipo, por origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou outra
consideração" (BOBBIO, 2004, p. 85).
Para Bobbio os homens são iguais em liberdade, todos tem direito de pensar e agir
livremente. Segundo ele "é possível dizer, realisticamente, que todos são iguais no gozo
das liberdades negativas" (BOBBIO, 2004, p. 86), quando o Estado não interfere nas ações
do indivíduo, somos mais livres na medida em que o Estado deixa de nos regular.
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 vemos Marx projetar uma nova
sociedade, socialista-comunista, onde os homens são livres da exploração, e vivem em
condições de liberdade, igualdade e dignidade, sendo assim capazes de regerem suas
próprias existências.
Essas questões nos desafiam a cada dia, pois nos faz perceber o quão distantes
estamos dessa realidade perante a um capitalismo tão desenfreado e excessivo.
Embora Marx nunca tenha sistematizado uma definição de liberdade, conseguimos
perceber por meio de suas afirmações traços de sua intenção:
A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em
si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida empírica, no
trabalho e nas suas relações individuais, tiver se tornado um ser genérico; e
quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres)
como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social
como força política (MARX, 1980, p. 63).
Marx acredita que a emancipação humana é possível através da força da produção
material, da atividade produtiva do homem, no qual torna-se capaz de abarcar todas as
esferas da existência humana.
A transformação em homem livre ocorre através da objetivação de sua natureza
humana em um objeto através do trabalho, transformando-se em ser universal, em ser
genérico. O trabalho, neste caso, é o não-alienado.
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Marx afirma que o homem é um ser genérico consciente, que não necessita
produzir; o homem produz de um modo universal, mesmo liberado da necessidade física.
Assim, o homem é livre quando produz liberado da necessidade. Quando não está alienado
pelo trabalho, sua produção é o produto de sua liberdade, sua emancipação.
Em seus Manuscritos encontramos uma crítica radical ao capitalismo, onde,
segundo Marx, o homem é tomado como uma “máquina de consumir e produzir”. Na
crítica direcionada às concepções de David Ricardo, ele reforça:
Ricardo, em seu livro (Renda da Terra): as nações são apenas oficinas da
produção, o homem é uma máquina de consumir e produzir; a vida humana, um
capital; as leis econômicas regem cegamente o mundo. Para Ricardo, os homens
são nada; o produto, tudo (MARX, 2004, p. 56).
Marx enfatiza que a atividade humana é vista como um mero produto e o trabalho,
uma atividade material objetiva.
O projeto de Marx nessa obra visa a emancipação total de todos os sentidos
humanos. Emancipação essa, que só se torna possível com o reconhecimento do homem
em seu papel social que elimine a ideia de alienação do homem em relação ao seu trabalho,
sua existência e natureza.
Para o homem moderno o trabalho é a fonte fundamental do sentido de sua
existência. É o com o trabalho que o homem alcança sua dignidade, portanto, ele não pode
ser pensado como externo ao homem, onde suas atividades se tornam estranhas.
Max explica:
Em que consiste, então, a exteriorização do trabalho? Primeiro, que o trabalho é
externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se firma,
portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz,
que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua
physis e arruína o seu espírito. [...] O trabalho não é, por isso, a satisfação de
uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua
estranheza evidencia-se aqui de forma tão pura que, tão logo inexista coerção
física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho
externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-
sacrifício, de mortificação (MARX, 2004, p. 82-83).
Isto posto, para alcançar sua dignidade e plena felicidade como humano, o homem
necessita emancipar-se do modelo capitalista que aliena o produto de seu trabalho,
causando repulsão em si mesmo diante de seu objeto. Libertando-se do processo de
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mortificação no qual sobrevive todos os dias que arranca sua essência para programá-la
conforme os moldes do mundo moderno.
Marx disserta em sua obra claramente acerca da defesa do direito universal do
homem de ser livremente ativo e de alcançar com seu trabalho alguma coisa que lhe
satisfaça, não apenas em suas necessidades físicas, mas sua carência emocional, espiritual
e racional, onde o homem se descobre livre em si mesmo, não alienado do que é e do que é
capaz em relação aos demais seres humanos e à natureza.
4 SOBRE A AUTO EVIDÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS
A Declaração da Independência dos Estados Unidos da América de 1776 redigida
por Thomas Jefferson inspirou os documentos sobre os direitos humanos pelo mundo e
mesmo que de forma distinta, esta e a Declaração Universal dos Direitos Humanos
afirmam de forma auto evidente que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos” (ONU, 1948, art. 1). Mas nos perguntamos como é possível que seja
tão evidente possuirmos esses direitos, se é claro que precisamos lutar por eles?
Nesse contexto de questionamento acerca da auto evidência dos direitos humanos
nas declarações, Lynn Hunt nos apresenta a empatia como solução para o reconhecimento
do outro como ser humano, também digno de direitos.
Hunt nos leva a compreensão do contexto social em que essas declarações foram
redigidas. O que nos permite questionar a quem a declaração foi destinada.
Como é que esses homens, vivendo em sociedades construídas sobre a
escravidão, a subordinação e a subserviência aparentemente natural, chegaram a
imaginar homens nada parecidos com eles, e em alguns casos também mulheres,
como iguais? Como é que a igualdade de direitos se tornou uma verdade "auto
evidente" em lugares tão improváveis? É espantoso que homens como Jefferson,
um senhor de escravos, e Lafayette, um aristocrata, pudessem falar dessa forma
dos direitos auto evidentes e inalienáveis de todos os homens (HUNT, 2009, p.
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Logo, é auto evidente que os seres humanos que nasceram iguais e livres, e a qual
essa declaração era destinada, eram os cidadãos, homens brancos e livres, assim como o
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próprio Jefferson. Uma declaração excludente, que por seres humanos livres e dignos não
abrangiam mulheres, crianças ou escravos.
Para Hunt “o que sustentava essas noções de liberdade e direitos era um conjunto
de pressuposições sobre a autonomia individual. Para ter direitos humanos, as pessoas
deviam ser vistas como indivíduos” (HUNT, 2009, p. 25-26), então se são cidadãos,
reconhecidos como indivíduos autônomos, possuem direitos.
Para que houvesse esse reconhecimento era necessárias duas qualidades: “a
capacidade de raciocinar e a independência de decidir por si mesmo”, apenas dessa forma
um indivíduo era “moralmente autônomo” (HUNT, 2009, p. 26), por isso, mulheres,
crianças ou escravos, por exemplo, que não possuíam autonomia sobre suas vidas não eram
classificados como indivíduo.
Então a Declaração não era para todos os seres humanos. “Os direitos humanos
dependem tanto do domínio de si mesmo como do reconhecimento de que todos os outros
são igualmente senhores de si” (HUNT, 2009, p. 28) e na época em que foi redigida não
havia esse reconhecimento.
Os direitos humanos requerem três qualidades encadeadas: devem ser naturais
(inerentes nos seres humanos), iguais (os mesmos para todo mundo) e universais
(aplicáveis por toda parte). Para que os direitos sejam direitos humanos, todos os
humanos em todas as regiões do mundo devem possuí-los igualmente e apenas
por causa de seu status como seres humanos (HUNT, 2009, p. 19).
A questão da universalidade dos direitos humanos também é colocada à prova. Para
Boaventura de Sousa Santos “os direitos humanos só poderão desenvolver o seu potencial
emancipatório se se libertarem do seu falso universalismo e se tornarem verdadeiramente
multiculturais” (SANTOS, 1997). A multiculturalidade dos direitos humanos para ele é
obtida através da organização de diálogos interculturais, onde através da hermenêutica
diatópica torna-se possível a comunicação e a compreensão de culturas distintas.
Mas é só através do autoconhecimento de cada indivíduo, enquanto autônomos que
encontramos o reconhecimento da auto evidência dos direitos humanos, pois, estes, não
são apenas leis expressas em documentos, os direitos humanos, como afirma Lynn Hunt
“baseiam-se numa disposição em relação às outras pessoas, um conjunto de convicções
sobre como são as pessoas e como elas distinguem o certo e o errado no mundo secular”
(HUNT, 2009, p. 25).
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Mas houve um avanço repentino no desenvolvimento dessas práticas na segunda
metade do século XVIII. A autoridade absoluta dos pais sobre os filhos foi
questionada. O público começou a ver os espetáculos teatrais ou a escutar música
em silêncio. Os retratos e as pinturas de gênero desafiaram o predomínio das
grandes telas mitológicas e históricas da pintura acadêmica. Os romances e os
jornais proliferaram, tornando as histórias das vidas comuns acessíveis a um
amplo público. A tortura como parte do processo judicial e as formas mais
extremas de punição corporal começaram a ser vistas como inaceitáveis. Todas
essas mudanças contribuíram para uma percepção da separação e do autocontrole
dos corpos individuais, junto com a possibilidade de empatia com outros
(HUNT, 2009, p. 28-29).
Para Lynn Hunt “a autonomia e a empatia são práticas culturais e não apenas
ideias” (HUNT, 2009, p. 27) e durante um longo período “os novos tipos de leitura (e de
visão e audição) criaram novas experiências individuais (empatia), que por sua vez
tornaram possíveis novos conceitos sociais e políticos (os direitos humanos)” (HUNT,
2009, p. 32).
Os romances apresentavam a ideia de que todas as pessoas são
fundamentalmente semelhantes por causa de seus sentimentos íntimos, e muitos
romances mostravam em particular o desejo de autonomia. Dessa forma, a leitura
dos romances criava um senso de igualdade e empatia por meio do envolvimento
apaixonado com a narrativa (HUNT, 2009, p. 39).
Através do conhecimento de novas leituras as pessoas se tornaram capazes de se
reconhecerem no outro como iguais. Uma identificação psicológica com os personagens de
um romance, por exemplo, fizeram um patrão se identificar com sua empregada por meio
do sentimento de empatia.
Para Hunt aprender a sentir empatia abriu o caminho para os direitos humanos, pois
é por meio dela que nos aproximamos do outro e percebemos que somos iguais, ainda
sendo tão diferentes. E como ela constata, a empatia não é uma invenção do século XVIII.
“A capacidade de empatia é universal, porque está arraigada na biologia do cérebro:
depende de uma capacidade de base biológica, a de compreender a subjetividade de outras
pessoas e ser capaz de imaginar que suas experiências interiores são semelhantes às nossas
(HUNT, 2009, p. 39). Para a autora os direitos humanos se tornam auto evidentes quando
pessoas compreendem os sentimentos de outras.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra de Wittgenstein foi chamada por Glock de “uma cura para a doença do
entendimento” (GLOCK, 1998). Entendemos assim que a falta de compreensão se alastra
como uma doença que devemos tratar.
O uso incorreto da linguagem abre brechas para o não entendimento das regras/leis
e posteriormente a sua abertura para interpretações.
A palavra é uma forma de vida, não está morta. Por isso seu significado está em
constante mutação e só compreendemos seu significado se compreendermos o contexto em
que ela for usada.
A nossa compreensão dos fatos, além de depender do domínio que possuímos da
técnica da linguagem e de seguirmos suas regras para tal, dependerá também da visão que
temos do mundo ao nosso redor, e essa visão não é a imagem que fazemos dos fatos, mas
da interpretação deles. Como argumenta Wittgenstein, “entre a ordem e a sua execução há
um abismo, que será coberto pelo ato da compreensão. [...]” (WITTGENSTEIN, 2002,
§431).
É o nível de compreensão que temos do outro através do uso da linguagem que
construiu nossa identidade presente e continua a construir. A palavra e o objeto estão
ligados através de um sentido e nós só precisamos compreendê-lo.
Apenas quando compreendemos o que o direito à liberdade significa e o que o
cumprimento desse direito traz consigo podemos vivenciar um mundo livre de forma mais
efetiva, podemos buscar e lutar por sermos o “ser de direito” mencionado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Uma declaração para se tornar universal, de fato, e conseguir garantir a vida
humana com dignidade na terra, precisa passar por uma reformulação de linguagem que
considera a liberdade de expressão de cada povo, a justiça nas decisões e o mais
importante, a paz, consequência da compreensão da linguagem da vida humana.
A liberdade enquanto um conceito e um direito deve ser compreendida e alcançada
por todo ser humano para que a dignidade seja garantida em todas as esferas.
Uma liberdade absoluta claramente não existe, mas lutamos para uma liberdade
individual, a essência do sentido de liberdade, a que cada um carrega dentro de si e que
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está, de certo modo “mortificada” pela atual configuração de sociedade, a liberdade de
pensar e sentir como um indivíduo único, isso é a autonomia tão almejada.
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Gulbenkian, 2002a.
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