o teatro performativo: a construção de um operador conceitual
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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes/Teatro. Área de concentração: Arte e Tecnologia da Imagem.Orientador: Prof. Dr. Luiz Otávio Carvalho Gonçalves de SouzaAutor: Leandro Geraldo da Silva AcácioTRANSCRIPT
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Leandro Geraldo da Silva Accio
O TEATRO PERFORMATIVO:
a construo de um operador conceitual
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Artes da Escola de Belas Artes
da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial para obteno do ttulo
de Mestre em Artes/Teatro.
rea de concentrao: Artes Cnicas - Teorias
e Prticas
Orientador: Prof. Dr. Luiz Otvio Carvalho
Gonalves de Souza
Belo Horizonte
2011
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Para o Arthur e para todos aqueles que,
de alguma forma, contriburam para a
construo deste trabalho.
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AGRADECIMENTOS
CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), pela bolsa
que financiou a pesquisa.
Ao programa de Ps-Graduao da Escola de Belas Artes, seu corpo docente, discente e
funcionrios, em especial a Zina Pavlowski.
Ao meu orientador, prof. Luiz Otvio Carvalho.
prof. Sara Rojo.
Aos professores Fernando Mencarelli, Ernani Maletta, Antnio Hildebrando.
A Tarcsio Ramos Homem, Rita Gusmo, Denise Pedron, Nina Caetano, Clvis
Domingos, Luiz Carlos Garrocho, Guilherme Frossard.
Central de Produo do ECUM (Encontro Mundial de Artes Cnicas), em especial a
Guilherme Marques.
Aos amigos e companheiros do mestrado: Julia Guimares, Michelle Braga, Letcia
Castilho (Leca), Joo Valadares, Daniel Furtado, Raquel Castro.
Aos amigos de sempre: Roberson Nunes, Samiri Coelho (em especial, pela reviso do
trabalho), Viviane Ferreira (Viva), Leonardo Santiago, Carlos Eduardo Guerra Silva
(Cadu), Eliane Abreu, Rodrigo Fidelis, Wanderley Moreira, Rita Maia, Elenimar
Accio, Elisa Belm, Marzia Morais Vieira, Fernanda Abreu, Daniel Borges, Bruno
Cuiabano, Mnica Ribeiro, Jonnatha Horta Fortes, Escandar Alcici Curi, Henrique
Mouro, Fbbio Guimares, Lcio Honorato, Ricardo Augusto Carvalho, Eliette
Aleixo, Thiago Franco, Cristiane Lima, Thales Bedeschi, Saulo Salomo, Lissandra
Guimares, Erica Vilhena, Matheus Silva, Joyce Malta, Davi Pantuzza, Ana Haddad,
Adrilene Nunes, Gustavo Braga.
A minha me, Elizabete Conceio de Carvalho Accio; meu pai, Jorge da Silva
Accio, e meus irmos, Marcelo Henrique da Silva Accio e Ricardo Augusto da Silva
Accio.
A Ione de Medeiros e ao Grupo Oficcina Multimdia (BH/MG).
Ao Ah! Coletivo.
Ao Obscena - Agrupamento Independente de Pesquisa Cnica (BH/MG).
Agradecimento especial a Josette Fral.
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RESUMO
O objeto desta dissertao o operador conceitual teatro performativo, formulado pela
pesquisadora franco-canadense Josette Fral. O teatro performativo abordado como
uma ferramenta de reflexo e anlise sobre algumas prticas cnicas contemporneas.
Nosso objetivo o de mapear a pesquisa de Fral, que ainda se encontra em processo de
elaborao.
Para Fral, o conceito de performatividade est no centro da discusso da arte e do
teatro contemporneos. A autora faz uso de duas vises de performance para construir
sua noo de performatividade. A primeira cultural e antropolgica e segue na esteira
dos Performance Studies, difundidos pelo diretor e estudioso americano Richard
Schechner. A segunda viso mais voltada para a esfera artstica/esttica e tem como
fonte o campo da performance art.
A dissertao apresenta, ainda, uma reflexo sobre uma das marcas do teatro
perfomartivo atual, que trabalhar com o recurso ao real, instalando na cena a ideia
de evento (acontecimento). Ao trazer o real para a cena, a obra pode gerar uma quebra
momentnea com a iluso (teatralidade), provocando um embaamento nos paradigmas
da representao tradicional no teatro.
Palavras-chave: Teatro Performativo. Performatividade. Teatralidade.
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ABSTRACT
The object of this dissertation is the conceptual analyzer, performative theater,
formulated by Franc-Canadian researcher Josette Fral. The performative theater is
approached along this research as a tool of reflection and analysis of some scenic
contemporary practices. In these circumstances, our goal is to systematize Frals
research, which is still in process of elaboration.
To Fral, the concept of performativity is the center of the debate about art and the
contemporary theater. Fral uses two visions of performance to construct her notion of
performativity. The first vision is cultural and anthropologic and follows a course by
Performance Studies, divulged by the American director and intellectual Richard
Schechner. The second vision is focused around artistic/aesthetic concepts, and it
sources from the field of performance art.
The dissertation also shows a reflection of one of the hallmarks of the current
performative theater which is working with features of the tangibleestablishing the
idea of event (occurrence). By bringing the tangible (real) to the scene, the performance
can create a sudden break of illusion (theatricality), thus creating a disorder in the
paradigms of the traditional representation in theater.
Key-words: Performative Theater. Performativity. Theatricality.
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LISTA DE ILUSTRAES
QUADRO 1 Atos rituais e artsticos segundo Cohen (1989) .............................. 24
QUADRO 2 reas e respectivos conceitos relativos ao teatro performativo ........ 59
QUADRO 3 Alguns aspectos, procedimentos e conceitos relativos ao performer e ao
ato performativo ................................................................................................. 70
QUADRO 4 Principais conceitos estudados durante o desenvolvimento desta
dissertao ................................................................................................................ 71
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SUMRIO
INTRODUO ...............................................................................................................9
Do percurso e das motivaes .................................................................................... 9
Do processo de pesquisa ........................................................................................... 10
Entrevistas ................................................................................................................. 11
A estrutura do trabalho ............................................................................................ 11
CAPTULO 1 .................................................................................................................13
ESPECULAES SOBRE TERMOS NO CAMPO DA PERFORMATIVIDADE13
1.1 Leituras sobre as noes de performatividade ................................................... 13
1.2 O conceito de performatividade aplicado ao teatro........................................... 25
CAPTULO 2 .................................................................................................................30
ABORDAGENS TERICAS SOBRE TEATRALIDADE .........................................30
2.1 Breve histrico sobre a origem do termo teatralidade ..................................... 30
2.2 Reflexes sobre acepes em torno do termo teatralidade .............................. 31
2.3 Teatralidade e mmesis ...................................................................................... 37
2.4 O espao potencial como fundamento da teatralidade ................................. 39
2.5 Ideias relativas a teatralidade e ao sujeito performer, por Josette Fral ...... 41
CAPTULO 3 .................................................................................................................50
DO TEATRO PERFORMATIVO: A POTICA PERFORMATIVA DE JOSETTE
FRAL............................................................................................................................50
3.1 O teatro performativo: aproximaes e caractersticas .................................... 50
3.2 O performer e o ato performativo ...................................................................... 56
3.3 A teatralidade e a circunstncia do real no teatro performativo .................... 61
3.4 O procedimento da colagem relacionado ao teatro ......................................... 68
... CONSIDERAES FINAIS? ..................................................................................72
REFERNCIAS ............................................................................................................74
Entrevistas ................................................................................................................. 76
Internet ...................................................................................................................... 77
Mensagens eletrnicas .............................................................................................. 77
ANEXOS ........................................................................................................................78
ANEXO I Correspondncia com Josette Fral ...................................................... 78
ANEXO II Entrevista com Josette Feral (Professora e pesquisadora) ................ 80
ANEXO III Conferncia de Josette Fral ............................................................... 87
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9
INTRODUO
Vrias motivaes podem levar escolha de um tema e
delimitao de um feixe de interesses: motivaes ideolgicas,
estticas e at afetivas. Evidentemente existe uma combinao
desses fatores, mas, talvez, o mais importante seja mesmo a
identificao afetiva atravs da empatia com a obra e o
processo criativo de alguns artistas.1
Do percurso e das motivaes
No surpreende que grande parte das pesquisas acadmicas esteja inevitavelmente
inserida em processos passveis de modificao. Seguramente, o trabalho aqui
apresentado tambm no foge regra: percalos, indagaes, mudana do foco e da
especificidade do objeto de pesquisa, recortes e mais recortes. Algo no sentido de
repetir, repetir, at ficar diferente, como j disse o poeta Manoel de Barros. Contudo,
desde o incio do trabalho, um desejo se mostrava claro: o de pesquisar o trabalho do
ator/performer em uma linha de teatro que tivesse aproximao com a performance.
Acredito que esse desejo vem ao encontro de minha trajetria no teatro arte na qual
mais me engajei , em que me identifiquei com certo tipo de teatro conhecido como
teatro de pesquisa ou teatro experimental.
A pesquisa de que resulta esta dissertao apoiou-se em alguns fundamentos
estabelecidos no trabalho terico da pesquisadora francesa radicada no Canad, Josette
Fral, em que ela apresenta a noo de teatro performativo. O trabalho de Fral tem-se
difundido mundialmente no campo da pesquisa em teatro por meio de suas diversas
publicaes, bem como por suas palestras, cursos e conferncias.
A sugesto do operador conceitual teatro performativo pode ser vista como uma
tentativa de definio que d conta das prticas teatrais contemporneas. O que sustenta
a essncia do estudo de Fral a reflexo de que um espetculo se configura como um
jogo de tenses entre teatralidade e performatividade, a depender de suas propores e
dosagens dentro de uma obra. Nesse vis, o teatro performativo coloca-se de forma
distinta diante da questo da iluso e da referencialidade, trazendo a caracterstica de
evento(acontecimento), ou seja, daquilo que acontece em cena com e sem mediaes.
O evento busca no se ater ficcionalidade da narrativa e, por esse motivo, valoriza
1 COHEN, 1989, p. 19.
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10
mais a ao em si realizada pelo performer e pelas mquinas performativas do que o
aspecto da representao, no sentido mimtico do termo.
Do processo de pesquisa
Lidamos com algumas dificuldades ao pesquisar sobre o operador conceitual teatro
performativo. Constatamos, desde o incio da pesquisa, a existncia de um vcuo terico
sobre o tema. Para conceitu-lo de forma mais apurada, utilizamos o artigo de Fral
Performance et Thtralit: le sujet dsmeystifi (1985) Performance e
Teatralidade: o sujeito desmistificado, considerado pela prpria autora como um dos
primeiros passos que ela trilhou para chegar ao termo teatro performativo. Nesse texto,
a autora aproxima e diferencia o teatro da performance art. Fral parte de trs
caractersticas fundadoras da performance: o corpo do performer, o
trabalho/manipulao do corpo do performer, a construo do espao.
Valemo-nos tambm da obra Cuadernos de teatro XXI, editada na Argentina, em
2003. Essa publicao traz uma coletnea de textos de Fral intitulada Acerca de la
teatralidad, em que ela faz uma anlise pormenorizada da questo da teatralidade. O
estudo de Fral aponta para uma tentativa de definio do termo e, entre outros
importantes tpicos, a autora comenta a relao entre teatralidade e mmesis.
Atenta para o estudo da teatralidade h mais de uma dcada, Fral atualmente um dos
principais expoentes do pensamento sobre essa questo. Como podemos perceber ao
longo de sua obra, a teatralidade impulsiona a pesquisa de Fral a limites que
extrapolam o teatro, j que, em seu estudo, encontramos a interlocuo da teatralidade
com aspectos da vida cotidiana, das artes (teatro, cinema, artes visuais), da linguagem
artstica da performance.
Para discutir a questo da importao do real para a cena, aspecto ligado de forma
bem particular ao teatro performativo, recorremos a outras duas valiosas fontes. A
primeira foi a entrevista2 que Josette Fral concedeu a mim e jornalista e pesquisadora
em teatro Julia Guimares, durante o 6 Congresso da ABRACE (Associao Brasileira
2 A entrevista com Josette Fral foi publicada na revista Urdimento (do Programa de Ps-graduao em
Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina), n 16, em julho de 2011, perodo em que este
trabalho estava em fase de finalizao. Disponvel em: .
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de Pesquisa e Ps-graduao em Artes Cnicas), na cidade de So Paulo, em novembro
de 2010. A segunda foi a conferncia O real na arte: a esttica do choque (2010),
ainda no publicada, proferida por Fral na mesma ocasio.
Entre os autores brasileiros, utilizamos como referncia a pesquisadora Slvia
Fernandes, que tambm tem desenvolvido uma importante pesquisa sobre a questo da
teatralidade. No livro Teatralidades contemporneas (2010), ela tambm recorre
abordagem de Josette Fral.
Entrevistas
Durante a pesquisa, foram realizadas entrevistas com representativos artistas e
pesquisadores, radicados em Belo Horizonte, que possuem em suas trajetrias um
interesse (terico ou prtico) tanto pelo teatro quanto pela arte performtica. O material
resultante dessas entrevistas, embora no tenha sido abordado explicitamente nesta
dissertao, certamente nos oferece informaes e pontos de vista valiosos sobre
conceitos, linhas de pensamento, processos criativos.
Os artistas entrevistados foram: Rita Gusmo (atriz performativa e professora da Escola
de Belas Artes da UFMG), Denise Pedron (artista, pesquisadora e professora do Teatro
Universitrio da UFMG), Nina Caetano (dramaturga, pesquisadora, professora da
Universidade Federal de Ouro Preto/MG e integrante do Agrupamento de Pesquisa
Obscena/BH/MG), Clvis Domingos (ator, pesquisador e integrante do Agrupamento de
Pesquisa Obscena/BH/MG).
A estrutura do trabalho
O texto da dissertao est dividido em trs captulos e trs anexos contendo a
correspondncia via e-mail que estabelecemos com Josette Fral, a transcrio da
entrevista e de sua mais recente conferncia realizada no Brasil, O real na arte: a
esttica do choque (2010).
Com o intuito de formular algumas reflexes que nos norteassem antes de chegarmos ao
termo cunhado por Fral propriamente dito, estudamos, no captulo um, artigos e obras
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que trazem noes sobre os termos performativo e performatividade. Buscamos, nas
origens etimolgica e terica dos termos, uma sustentao conceitual, baseando-nos em
artigos e obras dos seguintes autores: Richard Schechner (2003, 2006), Diana Taylor
(2008), Giorgio Agamben (2009), Renato Cohen e Jac Guinsburg (1992), Renato
Cohen (1989), Hans-Thies Lehmann (2007).
No nos comprometemos, entretanto, em nos aprofundar nas teorias apresentadas no
primeiro captulo. Nosso interesse foi levantar alguns aspectos das teorias que embasam
os conceitos a partir dos quais Fral vai desenvolver sua pesquisa acerca do teatro
performativo, j que esse sim constitui o objeto da dissertao.
No captulo dois, focamo-nos nos pressupostos tericos sobre o teatro performativo.
Nele procuramos traar um panorama do estudo de Fral sobre as questes da
teatralidade.
No captulo trs, procuramos ressaltar as principais caractersticas e fundamentos do
operador conceitual teatro performativo. Tomamos como referncia principal o ensaio
Por uma potica da performatividade: o teatro performativo (FRAL, 2008). Alm do
ensaio, recorremos aos seguintes autores: Richard Schechner (2006), Patrice Pavis
(1999) e Sara Rojo (2010).
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CAPTULO 1
ESPECULAES SOBRE TERMOS NO CAMPO DA PERFORMATIVIDADE
Segundo Austin, para que exista um ato
performativo necessrio que sempre exista
coincidncia entre a palavra e a ao, como no
enunciado eu batizo. Transladado ao teatro, trata-se, ento, de uma palavra que designa uma
ao ou de uma ao que performativiza a palavra. Qualquer outro emprego da noo de performatividade uma extenso metafrica.
por isso que a incorporao desta noo nos
Estudos da Performance uma total alterao da noo original enunciada por Austin.
3
Neste captulo, realizamos apontamentos sobre os termos performativo e
performatividade, que vo nortear nossas reflexes sobre o termo teatro performativo,
sugerido por Josette Fral (1993, 2008). No nos comprometemos em nos aprofundar
nas teorias dos autores trazidos aqui. Essa iniciativa visa apenas tornar o estudo sobre o
teatro performativo cada vez mais esclarecedor. Para isso, nos valemos de artigos e
obras dos seguintes autores: Richard Schechner (2003, 2006), Diana Taylor (2008),
Giorgio Agamben (2009), Renato Cohen e Jac Guinsburg (1992), Renato Cohen
(1989), Hans-Thies Lehmann (2007).
1.1 Leituras sobre as noes de performatividade
Etimologicamente, o vocbulo performativo nasce da palavra inglesa performative,
criada entre 1950-55, e do verbo to perform, no sentido de executar, realizar, levar a
cabo; desempenhar-se (como ator, como jogador, msico, danarino etc.)4. Assim, o
termo performativo indica, por um lado, um adjetivo que qualifica o evento/espetculo
em que a performance possa ser identificada. Por outro, o termo possui uma conotao
muito prxima do verbo performar, que sugere um sentido de execuo,
desempenho.
A forma objetiva e sinttica como o vocbulo apresentado no dicionrio revela,
porm, um sentido vernacular um pouco estreito, principalmente quando confrontado
3 TORO, 2010, p. 159.
4 PERFORM. In: DICIONRIO Michaelis. Disponvel em:. Acesso em
25/03/2010.
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com os sentidos que os Performance Studies/Cultural Studies, difundidos mundialmente
por Richard Schechner, atribuem ao termo.
Richard Schechner (2003, 2006), ao inserir o termo performatividade no campo dos
Performance Studies/Cultural Studies, inclui nele os rituais, os esportes, o cinema, os
eventos espetaculares, a poltica, a vida cotidiana, alm de outras abordagens
antropolgicas.
Os Performance Studies ou Cultural Studies nasceram nos anos 70, das colaboraes
entre o ento diretor de teatro Richard Schechner e o antroplogo Victor Turner, e tm
crescido como um campo de pesquisas acadmicas. Atualmente esses estudos se
integram a um conjunto de cincias sociais/humanas (sociologia, antropologia,
lingustica, filosofia, histria) e tambm compem, por si, uma disciplina. Para
Schechner, performances so aes5. Ele acrescenta que os Performance Studies
analisam seriamente tais aes em quatro diferentes campos: (1) Comportamento, (2)
Recepo, (3) Arte, (4) Vida Social e Cultural.
Alguns se referem aos Performance Studies como uma interdisciplina ou como uma
ps-disciplina, o que enfatiza a definio segundo a qual a performance se situa entre
o teatro e a antropologia, e muitas vezes salienta a importncia de serem estudadas
performances interculturais (rituais indgenas, xamnicos, religiosos), performances
terroristas (atentados, guerras), performances da vida diria (maneira como os sujeitos
realizam os aspectos da vida cotidiana), entre outras manifestaes do comportamento,
como performances ou como se fossem performances.
Dentro desse amplo estudo de Schechner considerado por muitos pesquisadores uma
disciplina de incluses , o que nos interessa so os aspectos relativos posio do
autor acerca do termo performatividade, que contribuir para a anlise sobre a noo de
teatro performativo.
5 SCHECHNER, 2006, p. 23.
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15
Schechner, em Performance Studies: an Introduction (2006)6, obra ainda no traduzida
integralmente para o portugus, dedica todo um captulo ao estudo da performatividade.
Ele evidencia que tanto esse vocbulo quanto seu termo irmo performativo esto
em todo lugar: no comportamento cotidiano [na vida cotidiana], nas profisses, na
internet e nos media [TV, rdio, web, cinema, jornais, revistas], nas artes, [nos rituais],
na linguagem7.
A performatividade um tema fundamental dos Performance Studies, por se tratar de
um campo de pesquisa que forma elos com uma grande variedade de conceitos, teorias,
termos, discusses. Tais conexes entre disciplinas so, tal como afirma Schechner, por
vezes complementares, por outras antagnicas, por abranger e colocar lado a lado a
cincia, as foras armadas, a questo dos gneros (masculino e feminino), a questo das
raas, a gentica, a filosofia, a performance art 8.
Nesse importantssimo estudo, Schechner chama ateno para o fato de que, se
quisermos entender o conceito de performatividade, precisamos nos debruar sobre a
teoria dos atos da fala segundo os linguistas J. L. Austin e Searle (1962); as diversas
questes acerca dos media (TV, cinema, rdio, mdia escrita); a simulao; o ps-
modernismo; o ps-estruturalismo/desconstruo; a construo de gnero (masculino e
feminino); a construo de raa; e o que ocorre antes, durante e depois da performance
art.
Comecemos, ento, por explicitar como Schechner se apropria dos temas ps-
modernismo e ps-estruturalismo/desconstruo, pois, segundo esse autor, tanto o
ps-modernismo quanto o ps-estruturalismo so as bases para as teorias acadmicas
da performatividade9. Ele diz que a prtica do ps-modernismo encontra eco nas artes
visuais, na arquitetura, na performance art, etc. O ps-estruturalismo, ou
desconstruo, por sua vez, configura-se como uma resposta acadmica ao ps-
6 Dessa obra, apenas o captulo 2 foi, at o momento, traduzido para o portugus na revista O Percevejo
(2003). So nossas as tradues dos trechos dos demais captulos da obra de Schechner. Achamos
conveniente transcrever, na lngua original (em rodap), apenas as citaes mais longas. 7 SCHECHNER, 2006, p. 123.
8 A performance art um movimento artstico que surge nos anos de 1960 - 70. Nascida do happening e
de outras prticas conceituais, a performance art caracteriza-se como uma vertente que abarca um enorme
guarda-chuva metodolgico e prtico, cujos limites com outras artes (msica, pintura, escultura, cinema,
vdeo, dana, literatura, fotografia, artes circences, teatro, etc.) no se esgotam. 9 SCHECHNER, 2006, p. 141.
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16
modernismo. Assim, tomados juntos, eles constituem as prticas e teorias da
performatividade10. Schechner ainda ressalta que os estudiosos e artistas que criaram o
ps-estruturalismo e praticaram o ps-modernismo foram enfaticamente antiautoritrios.
Eles reelaboraram as ideias de Austin sobre o conceito de performatividade em
caminhos outros, que foram filosfica, poltica e esteticamente anti-autoritrios11.
Para Schechner,
os ps-estruturalistas [Jacques Derrida, Flix Guatarri e Gilles
Deleuze, Lyotard, por exemplo] consideram cada fenmeno como
parte de um fluxo sem fim de repeties e destitudo de uma primeira voz com autoridade mxima. Insistem no processo, pois [...] tudo est em fluxo. O fluxo da experincia e histria o campo de batalha
para a luta de poder contnua. Quem tem a autoridade de falar na voz do pai? a no ser que haja um pai.12
Ao mencionar a questo da antiautoridade, Schechner est fazendo uma aluso perda
da ideia da autoria. No caso dos ps-estruturalistas, por exemplo, essa uma questo
crucial, pois caracterstico desse pensamento no basear uma anlise em oposies
binrias entre os objetos analisados. Decerto, o grande mrito do pensamento ps-
estruturalista instaurar uma ideia de rede e de fluxo, onde no existe mais uma voz
originria ou a voz do pai, da a necessidade de se formular um pensamento
antiautoritrio. Schechner acrescenta que hoje os ps-estruturalistas e ps-modernistas
continuam esse trabalho de subverter a ordem das coisas j estabelecidas13.
Especulando um pouco mais, o pesquisador considera o termo performativo,
mutuamente, um substantivo e um adjetivo. Para explicar o performativo como
substantivo, Schechner parte dos estudos do linguista e filsofo J. L. Austin,
responsvel por cunhar o termo performative em meados de 1955, quando o conceito
comea a se configurar como teoria, na poca voltada somente s aes encontradas nos
enunciados da expresso falada, como podemos perceber na prpria definio de Austin
para o termo:
10
SCHECHNER, 2006, p. 141. 11
Traduo nossa de [] philosophically, politically, and and aesthetically anti-authoritarian. (SCHECHNER, 2006, p. 141) 12
Traduo nossa de Poststructuralists regard each phenomenon as part of an endless stream of repetitions with no first voice of ultimate authority. [] In their insistence on process [] everything is in flux. The flux of experience and history is the battleground for ongoing power struggle. Who has the
authority to speak in the fathers voice except there is no father. (Ibidem, p. 143) 13
Traduo nossa de Todays poststructuralists and postmodernist continue this work of subverting the established order of things. (Ibidem, p. 141)
-
17
O termo [...] performativo derivado, obviamente, do verbo performar [...]: isso implica que a emisso do enunciado a execuo de uma ao. [...] O ato de pronunciar as palavras , de fato,
o acontecimento principal na execuo do ato.14
O interesse de Austin era o de pesquisar o performativo somente como contedo
implcito no enunciado das palavras. Para o linguista, alguns enunciados, por si ss, j
fazem alguma coisa, j so aes, como podemos observar nas frases lapidares
citadas por Schechner: Eu denomino esse navio de Rainha Elizabeth, ou Eu aposto
com voc 10 dlares que vai chover amanh15. Nesses exemplos, a ao j est
implcita nos prprios enunciados. No entanto, outros enunciados precisariam ser
confirmados ou se tornariam mais fortes por meio de aes complementares. Tal como
o sim dito pelos noivos em uma cerimnia de casamento, que normalmente seguido
pela troca de anis e pela assinatura do casal e de testemunhas para a confirmao do
ato. De modo geral, tais enunciados estudados por Austin podem ser facilmente
identificveis nas promessas, apostas, pragas, contratos e julgamentos16. Importante
observar que Austin j enfatizava a noo de ao como ncleo de sua ideia acerca do
performativo, como elemento importante para seus estudos sobre os enunciados/atos da
fala.
Ao aplicar a teoria dos atos da fala de Austin e Searle ao teatro, a discusso fica
subordinada ao texto pronunciado pelos atores no momento da representao. No campo
teatral, Austin considera falsos todos os enunciados ditos por atores/personagens. O
linguista usava os termos infelicitous (imprprio) ou unhappy (infeliz) ao dizer
sobre os atos performativos da fala no palco.
[...] todos os enunciados performativos no teatro eram infelizes. As
personagens juram, apostam e casam; mas, sendo fico, nada daquilo
que eles fazem realmente acontece. De acordo com Austin, os enunciados performativos das personagens so parasitas [...] definhamentos da linguagem17.
14
Traduo nossa de The term [...] performative is derived, of course, from perform []: it indicates that the issuing of the utterance is the performing of an action. [] The uttering of the words is, indeed, usually a, or even the, leading incident in the performance of the act [] (AUSTIN, 1962, apud SCHECHNER, 2006, p. 124) 15
Ibidem, p. 123. 16
Ibidem, p. 123. 17
Traduo nossa de Austin carried this reasoning further when He argued that all performatives uttered in theater were unhappy. Characters swear, bet, and marry; but, being fictions, none of what they do
really happens. According to Austin, the performative utterances of characters are parasitic [] etiolations of language. (Ibidem, 2006, p.124)
-
18
Para Austin, os atos da fala no teatro tornam-se verdade por estarem dentro dos
limites de uma conveno. Ele afirma que os atos performativos da fala seriam
manchados quando aproximados dos limites do teatro. Entretanto, Schechner
pergunta: A necessidade de os atos performativos da fala serem auxiliados por aes
aponta para um enfraquecimento ou incompletude deles prprios?18. Alm disso, ele
afirma:
Austin no entendia, ou se recusava a apreciar, o poder nico da
imaginao teatral que se torna verdade cnica [...] O que acontece no
palco tem consequncias emocionais e ideolgicas para atores e
espectadores. Os personagens so reais dentro de seu prprio territrio
e tempo. Tanto atores quanto espectadores identificam-se com as
personagens, derramam lgrimas reais pelo destino deles, e ficam
profundamente envolvidos com eles. Na medida em que as
personagens compartilham suas realidades especiais, seus enunciados
performativos so eficazes.19
Por outro lado, a ideia do performativo como adjetivo mais flexvel, e se modifica
de acordo com o(s) aspecto(s) de uma performance que o termo ir qualificar. Tais
aspectos podem ser relativos tanto s questes conceituais, filosficas, polticas que
uma performance suscita por meio de suas aes, quanto s transformaes ou
atualizaes que uma performance motiva em quem a realiza e/ou presencia.
Nem todo evento distribui programas ou libretos explicativos e autorreferenciais, porm
subentende-se que o que compartilhado entre artistas e espectadores foi previamente
elaborado pelo artista. Por meio dessa elaborao prvia realizada pelos artistas,
podemos tambm entender o performativo como adjetivo, que, para Schechner, se
assemelha ao conceito de performative writing (escrita performativa), o qual, na viso
de Peggy Phelan (1997)20
,
18
Traduo nossa de Does the need to have performative utterances backed up by actions point to a weakness or incompleteness in the performatives themselves? (SCHECHNER, 2006, p.124) 19
Traduo nossa de Austin do not understand, or refused to appreciate, the unique power of the theatrical as imagination made flesh. [...] What happens on stage has emotional and ideological
consequences for both performers and spectators. The characters are real within their own domain and
time. Both actors and audiences identify with the characters, shed real tears over their fate, and become
deeply involved with them. Insofar as the characters partake of theirs special reality, their performative
utterances are efficatious. (Ibidem, p. 124) 20
Peggy Phelan (EUA) uma das fundadoras do Performance Studies International; ocupou uma cadeira
na Universidade de Nova York (NYU), no Departamento de Performance Studies, de 1993 a 1996. Ela
tambm autora das obras Unmarked (1993), Mourning Sex (1997) e Art and Feminism (2001).
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19
[...] diferente de uma resenha crtica ou de um ensaio autobiogrfico,
embora ela deva muito a ambos os gneros. A escrita performativa
uma tentativa de encontrar uma forma para o que a filosofia, no obstante, deseja expressar. Em vez de descrever o evento performance em uma significao direta, tarefa que eu acredito ser impossvel e terrivelmente desinteressante, eu quero que essa escrita
legitime novamente a fora afetiva do evento performance, como ela
tem sido autenticamente reconhecida h sculos, ativando-se pelos
processos de alterao psquica (represso, fantasia e algazarra geral
do inconsciente individual e coletivo), e revigorando-se pela fora
muscular da represso poltica de toda violncia que muda ao longo
dos tempos. [...] A escrita performativa impressiona e cheia de
emoo at mesmo quando ela enrgica e experimental. Alterna o
ousado e o tmido, o controlador e o involuntrio, essa escrita volta-se
para si mesma e para as cenas que a motivam.21
Dessa forma, estamos entendendo aqui que o performativo como adjetivo sugere, de um
lado, sublinhar as ideias, as questes sobre as quais uma performance artstica se
sustenta, na tentativa de dizer algo, de passar uma ideia para os que participam da
experincia. Nesse sentido, o performativo parece cumprir a tarefa de reafirmar e
reforar a performance enquanto evento e salientar, com essa reflexo, sua fora afetiva
por meio da relao do pblico e do artista com a obra. A pesquisadora americana Diana
Taylor (2008), no breve e interessantssimo artigo Hacia una definicin de
performance22, compara as colocaes de Austin com as de Judith Butler, a qual
tambm escreve sobre o performativo como adjetivo:
Sin embargo, el marco en que se basa el uso del trmino
performativity que hace Judith Butler el proceso de socializacin por el gnero de identidad sexual (por ejemplo) son producidos a
travs de prcticas regulatrias e citacionales es difcil de identificar porque el proceso de normalizacin lo ha invializado. Mientras que en
Austin, lo performativo apunta al lenguaje que hace, en Butler va en
direccin contraria, al subordinar subjetividad y accin cultural a la
prctica discursiva normativa. En esta trayectoria lo performativo
21
Traduo nossa de Performative writing is different from personal criticism or autobiographical essay, although it owes a lot to both genres. Performative writing is an attempt to find a form for what philosophy wishes all the same to say. Rather than describing the performance event in direct signification, a task I believe to be impossible and not terrifically interesting, I want this writing to enact the affective force of the performance event again, as it plays itself out an ongoing temporality made
vivid by the psychic process of distortion (repression, fantasy, and the general hubbub of the individual
and collective unconscious), and made narrow by the muscular force of political repression in all its
mutative violence. [] Performative writing is solicitous of affect even while it is nervous and tentative about the consequences of that solicitation. Alternately bold and coy, manipulative and unconscious, this
writing points itself and to the scenes that motivate it. (PHELAN, 1997, apud SCHECHNER, 2006, p.123) 22
No caso das citaes dos textos lidos em lngua espanhola, optamos por transcrev-las na lngua
original, traduzindo-as em rodap.
-
20
deviene menos una cualidad o adjetivo de la performance que del discurso.
23
H, tambm, o fato de que o termo assemelha-se noo de performance difundida por
Schechner em Performance Studies: an Introduction, mais exatamente no captulo O
que performance?. Nesse texto, Schechner amplia o olhar sobre o conceito de
performance, e ento nos deparamos com um territrio de hibridismos. Tudo pode ser
performance, ou melhor, tudo pode ser estudado como se fosse performance,
conforme podemos perceber na seguinte passagem:
Alguma coisa performance quando o contexto histrico-social, as
convenes e a tradio dizem que tal coisa performance. [] Pelo ngulo de observao do tipo de teoria da performance que proponho,
qualquer coisa performance. Mas sob o ngulo da prtica cultural,
algumas coisas sero vividas como performances e outras no; e isto
ir variar de uma cultura ou de um perodo histrico para outro.24
Nos Performance Studies, os termos performativo e performatividade so tratados
como conceitos no sistematizveis, que adquiriram um largo campo de significaes.
Um desses campos de que Schechner nos d indcios em sua teoria da
performatividade a aproximao entre arte e vida. Essa aproximao tem fomentado
um grande debate sobre o entendimento da arte e do comportamento humano no mundo
contemporneo25
.
23
Com certeza, o marco em que se baseia o uso do termo performatividade como faz Judith Butler o processo de socializao pelo gnero de identidade sexual (por exemplo) produzido atravs de prticas
regulatrias e citacionais difcil de identificar, porque o processo de normalizao tornou-o invivel. Enquanto em Austin o performativo aponta linguagem que faz, em Butler vai em direo contrria, ao
subordinar subjetividade e ao cultural prtica discursiva normativa. Nessa trajetria o performativo
define menos uma qualidade o adjetivo da performance que do discurso. traduo nossa (TAYLOR, 2008, p. 31-32). 24
SCHECHNER, 2003, p. 37. 25 J que estamos nos referindo questo do contemporneo, parece-nos pertinente, neste trabalho, trazer uma sntese sobre o que se tem discutido sobre o tema. Como referncia para o assunto, temos o breve e
denso ensaio O que o contemporneo? (2009), do filsofo italiano Giorgio Agambem. Na tentativa de responder s perguntas o que o contemporneo?, bem como o que significa ser contemporneo?, Agambem coloca em dilogo autores que, para ns, se encontram a certa distncia temporal (Friedrich
Nietzsche, Roland Barthes, Michel Foucalt, Walter Benjamin). Para o autor, somente podemos ver a
temporalidade do presente de maneira imperfeita, suspensa. Nesse sentido, o contemporneo configura-se
como um eterno retorno que se repete interminavelmente. Esse repetir incessante nunca alcana uma
origem e, com isso, se aproxima da noo de anacronismo. Agambem cita Roland Barthes, que resumiu a
questo do contemporneo com a sentena: O contemporneo o intempestivo. Com essa afirmao, Barthes nos lana a ideia do contemporneo numa perspectiva do imprevisto, do sbito, do inoportuno. A
colocao de Barthes ganha ressonncia com as Consideraes intempestivas de Nietzsche em O
Nascimento da Tragdia, quando este quer ajustar-se ao seu tempo e posicionar-se diante dele. Para
Agambem, Nietzsche reivindica sua contemporaneidade, sua atualidade em relao ao presente, mantendo-se ao mesmo tempo desconectado e dissociado deste. Desse modo, verdadeiramente contemporneo aquele que no coincide perfeitamente com este, nem est adequado s suas pretenses e
-
21
Para ilustrar esse fenmeno, Schechner recorre a exemplos que podemos encontrar nos
eventos ao vivo e nos eventos mediados pelos meios de comunicao, sobretudo a TV;
distino entre digital e original e a toda a discusso cientfica sobre clones biolgicos; a
performances no palco e performances na vida diria. Com respeito a essas ltimas,
Schechner diz: Toda a gama de experincias [lutas, revolues, atos polticos]
compreendidas pelo desenvolvimento individual da pessoa humana, pode ser estudada
como performance26. No contexto do pensamento de Schechner, a performance est
tambm ligada s dimenses socioculturais e simblicas do agir humano. Para ele,
decidir se algo ou no arte, ou se ou no performance, ir depender, sobretudo,
de contexto, circunstncia histrica, uso e convenes locais27. Como exemplo, o
autor comenta sobre objetos ritualsticos que em determinada poca eram tidos como
sagrados e em outros contextos socioculturais foram tidos como obra de arte, tal como
nos mostram atualmente os museus de artes visuais, repletos de objetos antes
pertencentes a rituais religiosos ou sagrados.
Na proposta dos Performance Studies, virtualmente tudo pode ser estudado como se
fosse performance28. Porm, o fato de um objeto de estudo ser performance tambm
ir variar de uma cultura ou de um perodo histrico para outro29. Por isso, Schechner
afirma que rituais, brincadeiras, jogos e papis do dia-a-dia so performances porque
, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente atravs desse deslocamento e
desse anacronismo, ele capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (AGAMBEM, 2007, p. 58-59). Paradoxalmente, o deslocamento e o anacronismo citados por Agambem nesse trecho sugerem tambm um confronto entre o contemporneo e o passado, para a
exigncia de enxergar o seu tempo. Contudo, o autor no quer propor nenhuma ideia de saudosismo ou
nostalgia, mas, pelo contrrio, sua investigao est ancorada numa viso que pressupe um total
pertencimento do sujeito que no pode fugir ao seu tempo (AGAMBEM, 2007, p. 59). Na discusso do filsofo, o sujeito que experimenta contemporaneidade aquele que dirige fixamente o olhar no seu tempo para nele perceber no as luzes, mas o escuro. O escuro ou as trevas do tempo presente a que se refere o filsofo diz respeito ao sujeito contemporneo e dele exige, alm de coragem, um
constante questionamento, para tentar perceber uma luz que teima em distanciar-se infinitamente.
Relacionando a discusso de Agambem com outras de pesquisadores brasileiros, podemos sublinhar uma
reflexo de Christine Greiner, conceituada pesquisadora e professora do departamento de Linguagens do
Corpo da PUC-SP, que, em palestra em Belo Horizonte, afirmou: para ser contemporneo preciso no ter muita aderncia ao seu prprio tempo. preciso antever o futuro. Renato Cohen reencontra a questo na obra Work in Progress na cena Contempornea (1998, p. XXVII) e afirma que o contemporneo contempla o mltiplo, a fuso, a diluio de gneros: trgico, lrico, pico, dramtico, epifania, crueldade
e pardia convivem na mesma cena. Na mesma obra (p. 2), encontramos uma abordagem etimolgica para o termo: contemporneo d uma medida de sincronia de tempo: com (tempo) rneo = sincrnico. Cohen ainda cita trecho da letra da cano Tudo ao mesmo tempo agora, da banda de rock brasileira Tits. 26
SCHECHNER, 2003, p. 27. 27
Ibidem, p. 27. 28
Ibidem, p. 37. 29
Ibidem, p. 37.
-
22
convenes, contexto, uso e tradio dizem que so30. Tomando como referncia o
teatro, Schechner lembra que a concepo que temos hoje dessa arte (performance
teatral) no a mesma que a da Grcia antiga, onde as tragdias eram encenadas em
festivais religiosos e cerimnias competitivas. At mesmo no contexto grego, as
convenes sociais determinantes sobre o lugar do teatro foram se modificando, pois, ao
longo do tempo, os aspectos do entretenimento foram se tornando mais fortes, em
detrimento dos aspectos ritualsticos. Portanto, para Schechner, ser ou no ser
performance independe do evento em si mesmo, mas do modo como este recebido e
localizado num determinado universo31.
Schechner aprofunda sua discusso e busca exemplos mais sutis, observados das aes
simples, corriqueiras ou ordinrias, como vestir-se, caminhar, conversar com um
amigo ou, ainda, o modo como uma refeio preparada, ou observando as pegadas
deixadas por algum ao caminhar no deserto 32. Percebemos, aqui, ecos das ideias do
americano Allan Kaprow33
que, segundo Schechner, em meio indefinio em que seu
trabalho teria sido colocado, como no sendo nenhuma forma de arte, aproveitou o
ensejo para falar de uma arte-como-vida, diferentemente de uma arte-como-arte. Se
essa ltima segue a tradio da obra de arte, a outra tem por necessidade o interesse
pelas sutilezas das pequenas ritualizaes cotidianas, que podem formar, a partir dessas
experincias possveis, experincias estticas.
A diluio dos limites entre arte e vida uma importante questo trazida pelos estudos
da performance. Encontramos, no sculo passado, uma explicao histrica para isso.
Conforme observado por Schechner, ao longo do vigor artstico localizado no sculo
XX, no faltaram esforos para tentar fazer desaparecer os limites entre o que era
performance e o que provavelmente no era uma tentativa que tambm buscou
distinguir a arte da no-arte e at mesmo os limites entre vida e arte.
Tal aproximao entre arte e vida procura ver a primeira em relao direta com a
segunda. Por isso, podemos dizer que se trata de um desmoronamento das fronteiras,
30
SCHECHNER, 2003, p. 37. 31
Ibidem, p. 37. 32
Ibidem, p. 37. 33
Allan Kaprow (1927-2006) foi o criador e realizador dos primeiros Happenings em 1959. Os
Happenings de Kaprow so considerados os precursores da performance art.
-
23
que, trazido para o mundo contemporneo, possibilita uma nova viso da arte como
tambm uma nova viso da vida. Esse novo olhar desencadeia, como consequncia,
uma interpenetrao desses limites. De um lado desse espectro, est muito claro o que
uma performance, o que uma obra de arte; do outro essa clareza no existe34,
escreve Schechner. Nessa colocao, o autor nos lana um problema, pois, se tudo
performance e se todos ns temos a capacidade (como performers) de transformar
nossas aes cotidianas em performances, corremos o risco de enfraquecer nossos
parmetros de anlise.
Schechner enfrenta, ainda, o problema por outra variao e diz: Na arte, performar
atuar em um show, num espetculo de teatro, numa dana, num concerto, e acrescenta:
Na vida cotidiana, performar ser exibido ao extremo, sublinhando uma ao para
aqueles que a assistem35. O pesquisador se refere ao fato de que ser exibido ao
extremo, na vida cotidiana, tem se mostrado um forte trao comportamental dos
indivduos, ou at mesmo uma estratgia cotidiana cada vez mais comum em um mundo
globalizado. Decerto, o acesso crescente aos aparatos tecnolgicos (webcams, mquinas
fotogrficas digitais, celulares multifuncionais), usados em parceria com as
ferramentas que os media proporcionam (internet, TV), contribuem para fortalecer esse
tipo de estratgia comportamental/performtica. Por toda essa abrangncia de reas e
interesses, criou-se um amplo leque de significados para a ideia de performatividade, o
que leva Schechner a caracteriz-lo como um termo difcil de definir36.
O artista e pesquisador Renato Cohen tambm aborda a discusso sobre arte e vida em
Performance como linguagem (1989). Para Cohen, a aproximao entre arte e vida
uma ontologia da performance37. A direo para a qual o termo ontolgico aponta
nos d a dimenso da relevncia que a discusso sobre os limites entre arte e vida
impe, sobretudo no campo da arte da performance. Ao voltar-se para o termo
ontologia, Cohen parece propor uma reflexo a respeito do sentido abrangente do ser
humano, ou daquilo que torna possvel nossas mltiplas existncias. O autor nos d um
breve panorama crtico e reflexivo sobre a questo dos limites entre arte e vida no
seguinte trecho:
34
SCHECHNER, 2003, p. 39. 35
Ibidem, p. 25. 36
SCHECHNER, 2006, p.123 37
COHEN, 1989, p. 37.
-
24
Tomando como ponto de estudo a expresso artstica performance,
como uma arte de fronteira, no seu contnuo movimento de ruptura
com o que pode ser denominado arte-estabelecida, a performance acaba penetrando por caminhos e situaes antes no valorizadas
como arte. Da mesma forma, acaba tocando nos tnues limites que
separam arte e vida.38
Podemos relacionar essa passagem de Cohen com alguns aspectos j mencionados
acima, a partir das colocaes de Schechner, principalmente no que se refere a uma
valorizao de situaes cotidianas antes no tidas como arte. Cohen encara essa
valorizao tambm como um movimento dialtico que quer tirar a arte de uma
posio sacra e vai buscar a ritualizao dos atos comuns dormir, comer, movimentar-
se, beber um copo de gua39 , que passam a ser analisados como atos artsticos.
Para alm da performance art, Cohen recorre a exemplos que perpassam a dana, a
msica, a literatura, as artes visuais. Cada linguagem artstica, a seu modo, incorpora ao
seu processo de criao elementos inspirados no cotidiano, que possibilitam um
aumento de seus potenciais criativos. Organizamos os exemplos dados por Cohen40
em
cada campo especfico, no quadro a seguir:
QUADRO 1
Atos rituais e artsticos segundo Cohen (1989)
Linguagens
artsticas
Dana Msica Literatura Artes visuais/plsticas
Teatro/Artes
Cnicas Elementos
incorporados
do cotidiano
Andar, parar,
trocar de roupa.
Personagens
dirias (e no
mticas) passam
a fazer parte das
coreografias
(operrios,
guardas,mulheres
gordas).
Referncias: Isadora Duncan,
Merce
Cunningham.
Silncio, rudos
passam a ser
vistos como
formas
musicais.
Aleatoriedade.
Referncias: Eric Satie,
Stockhausen,
John Cage.
Experincias
tais como a
proposta
surrealista da
escrita
automtica, em
que vale o jorro,
o fluxo e no a
construo
formal.
Referncia: James Joyce.
Relao
modificadora com
o objeto
representado.
Referncias: Movimentos da
arte moderna
(cubismo,
dadasmo,
abstracionismo,
etc.).
Quebra com o
formalismo, com
as convenes
que amarram a linguagem.
Referncias:
Happening,
Living Theatre.
Tambm em artigo posterior, Do Teatro Performance: aspectos da significao da
cena (1992), Cohen, junto ao professor e pesquisador brasileiro Jac Guinsburg,
examina tais limites entre arte e vida. Nesse artigo, os autores apontam, como
38
COHEN, 1989, p.38. 39
Ibidem, p. 38. 40
Ibidem, p. 38-39.
-
25
caractersticas desses territrios, a sobreposio das ideias de ato de vida e ato
artstico. Eles partem da anlise de conceituao mnima do ato teatral, sintetizado pela
frase um ser atuando num espao/tempo. Com isso, ressaltam o tempo, o espao
como elementos matriciais das Artes Cnicas, que entrelaam o tnue limite entre arte e
vida, pois um ser atuando num espao/tempo tanto pode referir-se a um ato de vida,
como uma pessoa andando na rua, quanto a um ato artstico: um ator caminhando no
palco. Para eles, a diferena se dar na natureza da inteno41
.
Parece-nos bastante til a ideia de intencionalidade trazida por Guinsburg e Cohen, pois,
por trs de uma inteno, pressupe-se um propsito de algo que o artista queira
alcanar, um objetivo, um desejo, uma escolha. Assim, pensamos que a inteno do
artista de colocar em dilogo fragmentos de sua vida e o processo de criao da obra
contribui com a escrita cnica sob mltiplos aspectos: a representao, a dramaturgia, a
encenao. Nesse caso, podemos dizer que o artista cnico pode lanar mo de
materiais de seu cotidiano e de sua prpria vida (habilidades, tcnicas, sentimentos,
ritualizaes do cotidiano) e us-los como estratgia para tentar fazer disso argumento,
fazer disso linguagem, fazer disso arte.
Podemos dizer que esse artista cnico parte de seus elementos autobiogrficos, contudo
ele tambm pode ir alm. O que dizer das grandes questes abstratas que perpassam a
vida do homem contemporneo em torno das quais nossa existncia obrigada a girar: a
Velocidade, a Famlia, o Poder, a Autoridade, etc.? Nesse sentido, arriscamos dizer que
a performatividade quer unir arte e vida, pois o ato criativo, ao instaurar poticas a
partir do cotidiano, singular o eu artista passa a ser, simultaneamente, sujeito e
matria-prima de sua obra.
1.2 O conceito de performatividade aplicado ao teatro
Para Fral (1993), em La performance y los media: la utilizacon de la imagen42 (A
performance e os media: a utilizao da imagem), com a aproximao da
41
COHEN; GUINSBURG, 1992, p. 227- 236. 42
Esse artigo foi escrito por Fral originalmente em francs. Utilizamos como referncia a traduo em
espanhol publicada em PICAZO, 1993, p. 197-219. Optamos por transcrever na lngua original as
citaes dos textos estudados em espanhol e traduzi-las em rodap. A traduo nossa, assim como a de
-
26
performance, ocorre uma ruptura entre as fronteiras dos gneros e, consecutivamente,
na relao entre arte e vida. A pesquisadora argumenta que
toda performance rompe las fronteras entre los gneros e instituye una
continuidad entre zonas consideradas irremediablementes exclusivas
de cada gnero; el arte y la vida; las artes mayores y las artes menores,
los gneros nobles y los gneros vulgares; de igual modo que rompe
las distinciones, en otro tiempo juzgadas como indiscutibles, entre la
musica y el ruido, la poesia y la prosa, la realidad y la imagen, el
movimiento y la danza. Rehusando la ruptura y los comportamientos
estancos, la performance hace suyo lo que el siglo XIX afirma en su
totalidad: que la progreson de un nivel a otro, en el seno de la misma
disciplina, es continua y se hace sobre el modo analgico y no digital;
afirma que de la danza al andar no hay ms que un paso (cf. el trabajo
de Pina Bausch), que el sonido de la voz, el martilleo del metal
son/tienen componentes musicales fundamentales (cf. Meredith
Monk).43
Fral destaca duas questes sobre a vasta noo de performance proposta por Schechner
nos Performance Studies. A primeira delas : Por tanto querer abarcar, no nos
arriscamos a diluir a noo [de performance] e sua eficcia terica?44. A autora
defende que a inteno de incluir a ideia de performance no territrio da cultura reflete
aspectos de uma ideologia originada nos Estados Unidos na dcada de 80 e que ainda
hoje mantida. Essa ideologia sociolgica e antropolgica quer, sobretudo, investir
radicalmente contra a separao binria entre cultura popular e cultura de elite, ou
cultura nobre e cultura de massa. Para alm da arte, os interesses dessa ideologia visam
o poltico, o cotidiano, o comum, o real. Segundo essa perspectiva artstica, o
afastamento que ocorre entre a cultura popular e seu contexto poltico e social deve-se a
uma viso elitista da arte e da cultura popular e que igualmente responsvel pelo
afastamento da arte das esferas poltica, econmica e social45. Os questionamentos
sobre a diviso entre cultura popular e cultura de massa so retomados posteriormente,
todos os outros textos citados em lngua estrangeira. As tradues foram feitas com o intuito de facilitar a
leitura. 43Toda performance rompe as fronteiras entre os gneros e institui uma continuidade entre zonas consideradas irremediavelmente exclusivas de cada gnero; a arte e a vida; as artes maiores e as artes
menores; os gneros nobres e os gneros vulgares; de igual modo que rompe as distines, em outro
tempo julgadas como indiscutveis, entre a msica e o rudo, a poesia e a prosa, a realidade e a imagem, o
movimento e a dana. Recusando a ruptura e os comportamentos estanques, a performance faz seu o que
o sculo XIX afirma em sua totalidade: que a progresso de um nvel a outro, no seio da mesma
disciplina, contnua e se faz sobre o modo analgico e no digital; afirma que da dana ao andar no h
mais que um passo (cf. o trabalho de Pina Bausch), que o som da voz, o martelo de metal so/tm
componentes musicais fundamentais (cf. Meredith Monk). traduo nossa (FRAL, 1993, p. 203) 44
FRAL, 2008, p. 199. 45
Ibidem, p. 199.
-
27
mais exatamente no fim dos anos 80. Dessa vez, as bases que sustentam a reflexo sero
estticas e filosficas.
Para Fral, essa noo expandida de performance anuncia, ou pelo menos quer
anunciar, a morte de um certo teatro, principalmente o teatro dramtico. Da, Fral
lana a segunda questo: Mas esse teatro est realmente morto, apesar de todas as
declaraes que afirmam seu fim?46. Para a pesquisadora, a questo merece ser
colocada, mesmo que ainda no haja resposta para ela. A implicao do teatro
dramtico estar morto ou no toca em uma questo j anunciada por Lehmann (2007).
Para ele, essa relao entre teatro ps-dramtico e dramtico no ocorre somente dentro
de uma postura de negao. Para o pesquisador, considerar o teatro ps-dramtico
considerar a presena, a readmisso e a continuidade de velhas estticas, incluindo
aquelas que j tinham dispensado a idia dramtica no plano do texto ou do teatro47.
Assim, o conceito de performance aplicado ao teatro pressupe uma des-
codificao/desconveno dos elementos teatrais.
Na verdade, o que realmente nos interessa compreender no a suposta morte do teatro
dramtico, mas o tipo especfico de relao que as colocaes sobre o teatro
performativo (Fral) mantm com o teatro dramtico.
A noo de teatro performativo48
apresentada por Josette Fral desenvolveu-se
principalmente a partir de uma pesquisa que trabalha com duas vises de performance.
A primeira abarca uma perspectiva antropolgica e intercultural, fundamentada nos
Performance Studies, de Richard Schechner, que levam em conta aspectos como
competncia, experincia, poltica, comportamento. A segunda viso, esttica e artstica,
preserva o legado dos movimentos de vanguarda e da performance art. A partir da,
Fral prope o operador conceitual teatro performativo, com o objetivo de redefinir o
teatro que se faz hoje, que, segundo a autora, carrega em seu cerne estas duas
noes49: teatro e performatividade.
46
FRAL, 2008, p. 199. 47
LEHMANN, 2007, p. 34. 48
FRAL, 2008, p. 197-210. (Tal abordagem foi tambm apresentada na conferncia realizada na 6
edio do Encontro Mundial das Artes Cnica (ECUM) - nas cidades de Belo Horizonte e So Paulo, em
20 e 27 de maro de 2008, respectivamente.) 49
Ibidem, p. 197.
-
28
Para Fral, muitas das caractersticas apresentadas por Hans-Thies Lehmann como
ps-dramticas, na obra Teatro ps-dramtico, so, sem dvida, performativas. A
ensasta no se ope anlise de Lehmann, apesar de a palavra-conceito ps-
dramtico parecer, para ela, inadequada.
Por certo, o foco da pesquisa de Fral no o de desqualificar o esforo de Lehmann em
discutir e analisar o teatro contemporneo. No entanto, pareceu-nos relevante trazer, em
linhas gerais, o ponto de divergncia conceitual entre os dois tericos, para, talvez,
elucidar melhor o operador conceitual proposto por Fral.
A inadequao apontada por Fral sobre o conceito de teatro ps-dramtico comea
pela prpria definio dada por Lehmann para o termo. Citando o pesquisador, a autora
afirma: O teatro ps-dramtico um teatro que exige um evento [acontecimento]
cnico que seria, a tal ponto, pura representao, pura presentificao do teatro, que ele
apagaria toda idia de reproduo, de repetio do real50. Na argumentao de Fral,
torna-se evidente que no pode existir pura representao do teatro, no mais no
teatro ps-dramtico que no teatro performativo51. A ensasta defende que o epteto
ps-dramtico aplica-se a um teatro a operar para alm do drama; isto , que o drama
nele subsiste como estrutura do teatro normal, numa estrutura enfraquecida e em perda
de crdito (...)52. A crtica de Fral tese sobre o conceito ps-dramtico parte, a
princpio, da insistncia de Lehmann em considerar a ideia do drama (como norma
dramatrgica) como elemento definidor das rupturas que ocorrem nos meios teatrais a
partir de 1900. Dessa forma, podemos dizer que o ps-dramtico est pautado em outro
conceito anterior a ele (drama), ou seja, na ideia de ler/pensar a cena a partir de seu
deslocamento do texto.
No dilogo entre os dois tericos, encontramos linhas de pensamento comuns, como
confirma Fral, sobretudo no que diz respeito discusso de Lehmann sobre a
aproximao entre performance e teatro. Entretanto, apesar das aparncias, para Fral a
ideia de um teatro ps-dramtico ainda est por vir, pois ela constitui um horizonte
de espera mais que uma realidade, na medida em que impossvel, para uma forma
50
FRAL, 2008, p. 208n. 51
Ibidem, p. 208n. 52
Ibidem, p. 208n.
-
29
teatral, qualquer que seja, escapar narratividade e, de fato, representao53. Por isso,
Fral sugere um conceito menos amplo e mais efetivo o de teatro performativo , que
abarque algumas das prticas cnicas contemporneas.
53
FRAL, 2008, p. 208n.
-
30
CAPTULO 2
ABORDAGENS TERICAS SOBRE TEATRALIDADE
En el teatro dos por dos son tres o bien cinco en
funcin del grado ms o menos grande de la
teatralidad puesta en obra.54
Neste captulo, procuramos traar um panorama do estudo de Fral sobre as questes da
teatralidade. Utilizamos como fontes principais a obra Cuadernos de teatro XXI
(2003) de que faz parte a transcrio de um seminrio intitulado Acerca de la
teatralidad, ministrado por Josette Fral na Argentina, em 2001 , alm de outros
artigos. O estudo de Fral aponta para uma tentativa de definio do termo teatralidade
e, entre outros importantes tpicos, a autora comenta sobre a relao entre teatralidade
e mmesis.
2.1 Breve histrico sobre a origem do termo teatralidade
O conceito de teatralidade tem presena constante na pesquisa de Josette Fral. Boa
parte do material dessa investigao fonte essencial para quem quer estudar o assunto
foi compilada em um seminrio de cinco dias, ministrado pela prpria pesquisadora
na Argentina, intitulado Acerca de la teatralidad (Acerca da teatralidade). Nessa
ocasio, o esforo de Fral foi o de buscar uma definio mais precisa para o termo
teatralidade, tendo em vista um modo de compreender melhor o teatro (e tambm as
artes) na atualidade. Para isso, ela utilizou-se tanto de abordagens tericas (filosofia,
antropologia, artes) quanto de exemplos prticos oriundos de reas como teatro, cinema,
performance art. A transcrio desse seminrio foi publicada em 2003, na edio
Cuadernos de Teatro XXI, na Facultad de Filosofa y Letras de Buenos Aires (UBA).
A origem do conceito de teatralidade atribuda a textos dos encenadores russos
Nicolas Evreinov e Vsvolod Meyerhold, do final do sculo XIX. Cada um deles,
porm, utilizou o vocbulo com um significado diferente, conforme consta na
investigao de Fral55
. Posteriormente, o vocbulo tambm foi utilizado nos escritos de
Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Adolph Appia. Segundo Fral, nas obras de Constantin
Stanislavski, nunca foi encontrada alguma referncia ao termo.
54
No teatro dois mais dois so trs, ou melhor, cinco, em funo do maior ou menor grau de teatralidade presente na cena (DOSTOIEVSKI apud FRAL, 2003, p.106). 55
Segundo Fral, a questo da teatralidade como entendida hoje surge nos anos 80. A criao da palavra
teria se inspirado na literatura, que, a partir dos anos 50, comeou a utilizar a palavra literalidade.
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A procedncia do conceito est atrelada a um processo de mudana na maneira de se
trabalhar a questo da imagem no teatro. No incio do sculo XX, houve um interesse
em rediscutir a especificidade do teatro, pois suas bases, assim como as de outras
artes56
, sofreram mudanas considerveis.
No caso do teatro, um dos motivos da mudana foi a interferncia progressiva das artes
visuais na cena. Fral afirma que, de fato, la cuestin de la teatralidad est vinculada
con la disolucin de los gneros, porque los lmites se hicieron borrosos57. Assim, da
dificuldade de determinar o que realmente especfico do teatro, surge a necessidade de
cunhar um termo globalizante (teatralidade), que ajude o teatro a definir-se a si
mesmo.
En la medida que se torn ms dificil determinar la especificidad del
teatro, se intent an ms definirla. No solamente porque la
teatralidad puede ser encontrada en otros gneros, sino tambin
porque otras prcticas pueden ser incluidas en el teatro. De manera
que el teatro se vio obligado a definirse a si mismo.58
A retomada da importncia do termo teatralidade, principalmente no decorrer do sculo
XX, se deu pela necessidade de reexaminar as prticas teatrais do sculo anterior,
pautadas sobretudo no texto, num momento em que, aps as experincias teatrais
herdadas dos movimentos de vanguarda (futurismo, dadasmo, construtivismo), a
teatralidade passa a ser vista como um fenmeno visual, ou seja, um fenmeno
oriundo mais de uma estilizao do que de uma imitao ou cpia da realidade. Fral
afirma que foram os encenadores Gordon Craig e Meyerhold que defenderam que o
teatro se convertira en arte a travs de la imagen59, sendo os anos de 1930/40 um
momento importante para se pensar a questo da teatralidade aps o sculo XIX.
2.2 Reflexes sobre acepes em torno do termo teatralidade
56
A apario da fotografia obriga a pintura a redefinir-se, assim como o advento do cinema (e, junto com
ele, um novo modo de reproduzir a realidade), exige uma redefinio do teatro. 57
[...] a questo da teatralidade est vinculada com a dissoluo dos gneros, porque os limites ficaram misturados. traduo nossa (FRAL, 2003, p.47) 58
Na medida em que se tornou mais difcil determinar a especificidade do teatro, se tentou ainda mais defini-la. No somente porque a teatralidade pode ser encontrada em outros gneros, mas tambm porque
outras prticas podem ser includas no teatro. De modo que o teatro se viu obrigado a definir-se a si
mesmo. traduo nossa (Ibidem, p.47) 59
[...] se converteria em arte atravs da imagem traduo nossa (Ibidem, p. 49)
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Fral parte de algumas questes preliminares para aprofundar a discusso sobre a
teatralidade. Seria a teatralidade um fenmeno especfico do teatro ou tambm existiria
fora dele? Ou, ainda, seria a teatralidade algo que permite que el teatro exista o, por el
contrario, si es precisamente porque hay teatro que existe la teatralidad60?
A ensasta explica que, certamente, o termo teatralidade possui como referncia
contnua a noo de teatro como lugar de onde se olha. O teatro, dessa forma, carrega a
noo de teatralidade em seus domnios, quer seja no sentido figurado quer seja no
sentido literal do termo. Assim, o fenmeno da teatralidade engloba los rituales, el
carnaval, las cerimnias religiosas, las celebraciones nacionais, las coronaciones, los
cumpleaos, los desfiles de moda, los deportes, la religin61, extrapolando os limites
especficos do teatro, devido amplitude de sua aplicabilidade.
Devido a essa abrangncia, o termo vem sendo utilizado com sentidos muitas vezes
imprecisos, confusos, em acepes rasteiras, fceis. Da a dificuldade de Fral (e de
todos os tericos que se debruam sobre o assunto) em definir precisamente a
teatralidade; trata-se de um conceito amplo e pode ser facilmente confundido com
outros termos prximos, tais como teatral e teatralizao.
Tomando como base escritos de filsofos, antroplogos, tericos del
teatro, nos preguntaremos acerca del concepto mismo de teatralidad,
tratando de percibir si es una calidad en s misma, si es algo que
podemos definir con tales o cauales categoras, o si es una cosa
distinta a una categora tal vez una serie de categoras -, o tal vez un proceso de alguien que trabaja en arte. [...] Es decir, cules son los
aspectos que se califican con la palavra teatralidad en la
representacin teatral. Si es el decorado, la escena, el vesturio, la
actuacin, el uso del espacio, etc. Entonces, un aspecto que vamos a
estudiar es la teatralidad como producto.62
Observando-se aspectos como ornamentao, figurino, atuao, uso do espao, a
teatralidade estar sendo analisada enquanto produto, isto , como resultado do que
60
[...] algo que permite que o teatro exista, ou, ao contrrio, se precisamente porque h teatro que existe a teatralidade. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 49) 61
[...] os rituais, o carnaval, as cerimnias religiosas, as celebraes nacionais, as coroaes, os aniversrios, os desfiles de moda, os esportes, a religio. traduo nossa (Ibidem, p. 11) 62
Tomando como base escritos de filsofos, antroplogos, tericos do teatro, nos perguntaremos acerca do conceito mesmo de teatralidade. Tratando de perceber se uma qualidade em si mesma, se algo que
podemos definir com tais ou quais categorias, ou se uma coisa distinta a uma categoria talvez uma srie de categorias ou, talvez, o processo de algum que trabalhe com arte. [...] Quer dizer, quais so os aspectos que se qualificam com a palavra teatralidade na representao teatral. Se a ornamentao, a
cena, o figurino, a atuao, o uso do espao, etc. Ento, um aspecto que iremos estudar a teatralidade
como produto. traduo nossa (Ibidem, p. 10)
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mostrado/visto em cena. Mas, para Fral, a teatralidade deve ser estudada no somente
como produto, mas tambm como processo. Para isso, tendramos que estudiar
dnde se inicia y hacia dnde se va y cmo trabajar desde el principio hasta al final del
proceso teatral63, o que nos possibilita refletir sobre o teatro tanto no aspecto de
produo quanto no de recepo, conforme iremos discutir mais adiante.
Fral aponta duas perspectivas, uma negativa e outra positiva, que comumente so
lanadas sobre a noo de teatralidade. Na viso negativa, a teatralidade se refere a uma
imagem teatral, ou ainda a pessoas que fazem teatro na vida cotidiana64. Aqui, a
teatralidade vista como uma atitude de desprezo/desdm. Outra viso negativa do
termo a sobrestimao, ou seja, a valorizao da teatralidade como uma manera de
actuacin que no es natural adecuada para formas de teatro que son muy teatrales,
como a Commedia dellArte65. Ou seja, na viso negativa, ou h desprezo/desdm, ou
h sobrestimao, e a teatralidade entendida como pouca naturalidade, afetao,
fingimento, ou ainda associada a uma imagem teatral com apelo ao exagero, ao
falso, ao caricatural. No entanto, ainda vale perguntar se, no extremo oposto, a cena que
opta pelo pouco (pelo vazio) estaria se distanciando da teatralidade.
O grande problema dessa viso de teatralidade que nela est embutido um juzo de
valor sobre a cena observada. Por que a Commedia dellArte mais teatral? O que
faz com que um personagem seja mais teatral, nesse sentido pejorativo? Pensando
dessa forma, tendramos que tener algo para medir la intensidad y cmo podemos
entonces definir los grados de teatralidad?66. E, aqui, Fral est fazendo uma crtica ao
usual entendimento de teatralidade, ancorado no sculo XIX, que carrega uma acepo
antiquada e primeira da palavra, imbuda de velhos parmetros, que, no fundo, querem
dizer sobre uma imitao, uma cpia malfeita, um teatro.
Pela viso positiva, o conceito de teatralidade examinado desde sua concepo como
algo esttico hacia una idea dinmica de la misma67. Nessa perspectiva, a teatralidade
63
Teramos que estudar onde se inicia e at onde vai e como trabalhar desde o princpio at o final do processo teatral. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 10) 64
Fral alerta para um cuidado com as palavras. Pessoas histrinicas (Salvador Dali, por exemplo)
possuem aspecto teatral, mas, para esse caso, existem outras palavras como teatralizao. 65
[...] maneira de atuao que no natural adequada para formas de teatro que so muito teatrais, como a Commedia dellArte. traduo nossa (Ibidem, p. 12) 66
[...] teramos que ter algo para medir a intensidade, e como podemos ento definir os graus de teatralidade? traduo nossa (Ibidem, p. 15) 67
[...]como algo esttico at uma idia dinmica da mesma. traduo nossa (Ibidem, p. 11)
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passa a ser vista, ento, como estrutura, ao, movimento, inserida em um jogo de
relaes no qual entra a figura do espectador, e o sentido de artificialidade colocado
em segundo plano. Ou seja, para entender a teatralidade como processo, seria necessrio
levar em conta aspectos intrnsecos ao teatro, tais como o olhar do espectador, a
inteno de se fazer teatro, a conveno, a representao, a ao construda sobre a
cena.
Definir la cuestin de la teatralidad no nos informa sobre la
teatralidad misma, pero nos permite lograr el anlisis de los cambios
que afectaron al sujeto y al teatro a travs de los siglos. En otras
palabras, nos permite hacer um recorrido, la teatralidad aparece como
un hilo conductor para estudiar el teatro y su historia.68
A maneira como Fral se refere ao conceito nessa passagem nos leva a perceber que s
possvel estudar a teatralidade levando em conta os aspectos sociais, culturais, ticos
e polticos de uma poca. A teatralidade no deve ser considerada, nesse sentido, como
um conceito universal e imutvel. Talvez da venha certa dificuldade em capt-lo, em
defini-lo com mais preciso. Fral ainda argumenta que, se se muda a noo de sujeito,
a noo de teatralidade tambm muda. La nocin de teatralidad nos va a permitir ante
todo definir nuestra posicin como sujetos69. E, no caso do teatro, tal afirmativa est
diretamente relacionada com a maneira como o vemos, com os nossos parmetros
sociopoltico-culturais, e com a ligao que existe entre todas essas questes. Essa
constatao nos leva a refletir sobre a existncia de uma gramtica teatral ancorada na
questo da conveno, que se relaciona com a maneira de ver/codificar/decodificar o
que se est vendo no palco.
Para que uma conveno se torne efetiva, preciso que haja consenso entre os sujeitos
nas mais diferentes esferas das atividades sociais. Fral explica que la vida social es
el resultado de convenciones, de la misma manera que lo es el teatro, significa que los
68
Definir a questo da teatralidade no nos informa sobre a teatralidade em si mesma, mas nos permite obter uma anlise das mudanas que afetaram ao sujeito e ao teatro atravs dos sculos. Em outras
palavras, nos permite fazer um trajeto; a teatralidade aparece como um fio condutor para estudar o teatro
e sua histria. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 17) 69
A noo de teatralidade nos permitir, antes de tudo, definir nossa posio como sujeitos. traduo
nossa (Ibidem, p. 17) (Fral se refere ao sujeito no sentido psicanaltico.)
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individuos se ponen de acuerdo sobre las convenciones como en el teatro70. As
convenes sociais so classificadas por Fral em trs tipos principais:
- Convenes que autenticam/legitimam: o casamento, a primeira comunho na
religio catlica, as arguies, etc. Esse tipo de conveno autntica perante a Igreja
(religio), o Estado, as instituies.
- Convenes retricas: cerimnias de entrega de prmios em olimpadas ou
jogos, o ritual de ficar em p quando entra o juiz no tribunal, a tradio de vestir toga e
capelo em cerimnias acadmicas, etc.
- Convenes como aes: engloba todos os tipos de tratados, sejam eles
econmicos, militares, de matrimnio, etc.
Dessa maneira, o estudo das convenes tambm nos fala dos papis que
desempenhamos em nossa vida social, de nossas representaes, e, por essa razo,
podemos dizer que tanto o teatro quanto a teatralidade podem ser pensados no como
sendo a vida, mas como uma metfora da vida. No caso do teatro, estamos nos
referindo a uma representao duas vezes exercida (representao da vida encenada),
que assim possibilita gerar a iluso. Fral, refletindo sobre a conveno no teatro de
Bob Wilson, cita o exemplo de um ator que falava enquanto realizava gestos
estranhos, sem conexo com o que estava sendo dito. Essa ao tambm consiste numa
conveno, pois o que est sendo mostrado no deixa de ser uma artificialidade. Nesse
caso seria uma forma de entender o teatro como um lugar aberto para uma experincia
relacional da sensorialidade. E nesse sentido que la teatralidad no tiene que ver
solamente con la historia del teatro, sino que tiene que ver con la historia y con la
cultura 71. A teatralidade vai depender da forma como ela vista, bem como da forma e
do meio pelos quais mostrada:
[...] necesitamos una mnima brecha para construir la teatralidad entre
la realidad y la ilusin. Esta divisin es fundamental. Donde quiera
que la encontremos, cualquiera sea su dimensin y su importancia, es
un principio bsico del teatro y de la teatralidad. Ahora podemos
plantearnos una pregunta: se debe a que existe esa brecha que existe
el teatro, y entonces la teatralidad? O es que porque existe la brecha
70
[...] a vida social o resultado de convenes, da mesma maneira ocorre com o teatro, significa que os indivduos se pem de acordo sobre as convenes como no teatro. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 21) 71
O que significa que a teatralidade no tem a ver somente com a histria do teatro, mas com a histria e com a cultura. traduo nossa (Ibidem, p. 16-17)
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es que existe la teatralidad y luego el teatro? El espectculo mismo es
que crea la divisin entre la realidad y la no realidad. Esto me lleva a
una idea de la cual todavia no hemos hablado: la teatralidad
presupone un acuerdo entre el actor y el espectador.72
O acordo entre ator e espectador ao qual a autora se refere mais importante para a
criao da iluso no teatro do que qualquer tcnica ou procedimento (de atuao ou
esttico) utilizado no palco. Fral cita uma estudiosa americana, Elizabeth Burns, que,
ao abordar a teatralidade como um estudo das convenes no teatro e na vida social, em
1972, traz tona o conceito de situao. Podemos compreender a situao como la
creencia compartida de que nuestras acciones tendrn consecuencias y resultados
precisos73. Essa ideia de situao pode ser aplicada da mesma maneira no teatro e na
vida cotidiana. Portanto, essa crena compartilhada entre o ator e o pblico que
permite ao espectador voltar sua ateno para uma determinada ao realizada em cena.
Por meio da situao, podemos definir um contexto, um enquadramento.
La situacin en el teatro es algo totalmente claro. Sabemos que hay
normas, que hay reglas. Lo interesante es que tambin se aplica a la
vida real. En sta lo que crea la situacin es la doble conciencia de la
emergencia de la realidad social y de su relatividad. De manera que la
situacin en la vida real tambin es en parte ilusin, lo mismo que en
el teatro.74
E dessa forma que a situao tambm est ligada ao processo. Havamos
mencionado a teatralidade vista em seu sentido comum, como resultado ou produto
(cenrio, figurino, maquiagem, corporeidade e gestos dos personagens). Agora,
considerando o problema da situao, podemos compreender a teatralidade como um
processo, tal como proposto por Fral, que consiste fundamentalmente em darle un
marco a la accin, hecho por el cual concentramos la atencin en una situacin
72
[...] necessitamos de uma mnima brecha para construir a teatralidade entre a realidade e a iluso. Essa diviso fundamental. Onde quer que a encontremos, qualquer que seja a sua dimenso e sua
importncia, um princpio bsico do teatro e da teatralidade. Agora podemos fazer uma pergunta: Seria
por causa dessa brecha que existe o teatro, e ento a teatralidade? [ou vice versa]. [...] O espetculo mesmo que cria a diviso ente a realidade e a no realidade. Isso me leva a uma idia da qual ainda no
havamos falado: a teatralidade pressupe um acordo entre o ator e o espectador. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 34) 73
[...] a crena compartilhada de que nossas aes tero consequncias e resultados precisos. traduo nossa (Ibidem, p. 34) 74
A situao no teatro algo totalmente claro. Sabemos que existem normas, que existem regras. O interessante que isso tambm se aplica vida real. Nesta, o que cria a situao a conscincia dupla da
emergncia da realidade social e de sua relatividade. De modo que a situao na vida real tambm em
parte iluso, tal como no teatro. traduo nossa (Ibidem, p. 35)
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especfica75, o que nos permite considerar a teatralidade tambm como um
denominador comum da equao cultura/convenes sociais/ teatro/espectador. Por
esse motivo que Fral, citando Elizabeth Burns (1972), fala de uma teoria da
teatralidade que deveria ser lida como uma teoria da percepo. Uma percepo do
sujeito que olha a cena, sabendo que ali vai haver/h teatro. A teatralidade representa
tambm o aspecto ldico do teatro, pois
La teatralidad es el resultado del trabajo potico del artista. Ella es
juego de ilusiones y de aparncias para el espectador que es llamado a
centrar su atencin sobre la relacin sujeto/objeto, sobre el
desplazamiento de los signos que tal relacin presupone.76
2.3 Teatralidade e mmesis
Fral estabelece em seu estudo uma aproximao entre os conceitos de teatralidade e
mmesis, esse ltimo tomado em seu sentido de imitao, conforme a acepo que o
termo ganhou no campo terico ocidental. Dessa forma, nosso entendimento de
mmesis, conforme explica Fral, determina a forma como vemos e pensamos a noo
de representao, conceito que ser importante para nosso estudo a partir deste ponto.
No iremos nos deter profundamente na questo da mmesis propriamente dita, porm
parece importante apresentar aqui algumas caractersticas compartilhadas pela mmesis
e pela teatralidade, segundo a argumentao de Fral:
1) A abrangncia dos conceitos de mmesis e teatralidade, que extrapolam o
campo das artes, obriga-nos a refletir tambm sobre aspectos culturais de uma dada
sociedade.
2) Os dois conceitos exigem um aprofundamento sobre a ideia de sujeito: a
mmesis pressupe um sujeito que representa ou interpreta; a teatralidade, um sujeito
que v.
3) Tanto na tradio terica filosfica quanto na teatral, mmesis e teatralidade
so consideradas como pertencentes essncia humana ou ainda como elementos
fundamentais no modo de funcionamento do ser humano. Em textos antigos,
75
[...] dar um enquadramento ao, por meio do qual concentramos a ateno em uma determinada situao especfica. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 35) 76
A teatralidade o resultado potico do trabalho do artista. Ela um jogo de iluses e de aparncias para o espectador, que chamado a centrar sua ateno sobre a relao sujeito/objeto, sobre o
deslocamento dos signos que tal relao pressupe. traduo nossa (Ibidem, p. 75)
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menciona-se o instinto mimtico (que fala de nossa tendncia a imitar ou a
representar) e tambm o instinto teatral (que fala de nossa tendncia a nos
transformar). Esse nosso prazer pela representao uma das tpicas diferenas entre os
humanos e os outros animais.
4) Mmesis e teatralidade, devido a sua amplitude conceitual e abrangncia de
campos em que esses conceitos podem ser aplicados, so ferramentas de anlise de
quaisquer discursos da representao cnica: texto, iluminao, cenografia, figurino,
atuao.
5) A forte relao entre as duas noes com o conceito de representao no
teatro ocorre por duas vias: a primeira a ideia da representao sustentada pela
trade texto, atuao, histria; a segunda, a ideia de antropomorfismo do ator, j que
este, conforme explica Fral, faz aluso ao homem em geral, o que no permite ao
teatro libertar-se da representao.
Apesar dessa evidente aproximao entre os conceitos de mmesis e teatralidade, Fral
tambm indica as principais diferenas entre eles, que se do tanto historicamente
quanto em relao ao funcionamento de cada um dentro do procedimento teatral. Uma
dessas diferenas est centrada na questo do sujeito, pois
en efecto, la teatralidad no es outra que una de las modalidad