o trabalho socioeducativo do cras e o …temos que questionar, uma vez que compreendemos que a...
TRANSCRIPT
1
O TRABALHO SOCIOEDUCATIVO DO CRAS E O PAPEL DO PSICÓLOGO JUNTO AOS
PAIS FERREIRA, Clarice Regina Catelan
Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Universidade Paranaense (UNIPAR)
FACCI, Marilda Gonçalves Dias (Orientadora)
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Eixo Temático: Psicologia da Educação
INTRODUÇÃO
O presente artigo é resultado de pesquisa desenvolvida para o mestrado e versa sobre o
trabalho socioeducativo, desenvolvido com famílias nos Centros de Referência de Assistência
Social (CRAS), na Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Concebemos que a
prática do Psicólogo, nesse contexto, ao ser proposta na legislação da PNAS como atuação
psicossocial e socioeducativa, tem relação direta com os subsídios da Psicologia e da
Educação, uma vez que, na ação com as famílias, o profissional está lidando, indiretamente,
com aqueles que, na maioria das vezes, têm os filhos na escola.
OBJETIVOS
O objetivo deste texto é discutir sobre o trabalho socioeducativo desenvolvido nos
CRAS pelo psicólogo que atua com as famílias, analisando suas contribuições para a
educação escolar.
METODOLOGIA
Quanto à metodologia utilizada, trata-se de um estudo bibliográfico para o qual foram
considerados os documentos legais que apoiam o trabalho socioeducativo na PNAS e
subsídios teóricos da Psicologia Histórico-Cultural, que têm, dentre seus autores principais, L.
S. Vigotski, A. N. Leontiev e A. R. Luria, que tomam como método de análise o materialismo
histórico, conforme proposto por Karl Marx.
RESULTADOS
A PNAS prevê como trabalhadores da assistência social Psicólogos, Assistentes
Sociais e Pedagogos. Mas, embora este documento valorize a Psicologia e a conceba como
2
necessária nas políticas públicas de assistência social, deixa obscuro aquilo que espera do
profissional que a representa.
No documento oficial de implantação do CRAS, Orientações Técnicas para o Centro
de Referência de Assistência Social (Brasil, 2006), explicita-se que, além de conhecimento da
legislação social brasileira, os profissionais que almejam trabalhar junto ao SUAS devem ser
capazes de:
- executar procedimentos profissionais para escuta qualificada individual ou
em grupo, identificando as necessidades e ofertando orientações a indivíduos
e famílias, fundamentados em pressupostos teórico-metodológicos, éticos
políticos e legais;
- articular serviços e recursos para atendimento, encaminhamento e
acompanhamento das famílias e indivíduos;
- trabalhar em equipe;
- produzir relatórios e documentos necessários ao serviço e demais
instrumentos técnico-operativos;
- realizar monitoramento e avaliação do serviço;
- desenvolver atividades socioeducativas de apoio, acolhida, reflexão e
participação que visem o fortalecimento familiar e a convivência
comunitária. (p. 19).
Não há, nos documentos legais, a especificação do trabalho do Psicólogo junto às
políticas de Assistência Social. O perfil acima descrito é desejável tanto aos Psicólogos
quanto aos Assistentes Sociais e Pedagogos. Desse modo, aparece uma lacuna a ser ocupada
de forma autônoma por cada profissional que compõe essa equipe: tanto o planejamento
quanto as metodologias adotadas à execução das ações são de responsabilidade dos
profissionais. No nosso caso, entendemos que a Psicologia Histórico-Cultural traz subsídios
importantes quando aborda a formação do psiquismo humano dando destaque à apropriação
da cultura no processo de humanização, conforme propõe Leontiev (1978).
Com o intuito de tratar mais especificamente da atuação do psicólogo no CRAS e
oferecer subsídios para uma prática ética e legal, o Conselho Federal de Psicologia – CFP –
juntamente com o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas –
CREPOP – lançaram, em 2007, um documento intitulado Referências Técnicas para a
Atuação do/a Psicólogo/a no CRAS/SUAS, abordando a “(...) dimensão ético-política da
Assistência Social, a relação da Psicologia com a Assistência Social, a atuação da (o)
psicóloga (o) no CRAS e a gestão do trabalho no SUAS” (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA, 2007, p. 7). Entretanto, este documento não contempla uma clareza
3
metodológica sobre as intervenções do Psicólogo. Acreditamos que isso se justifique
fundamentalmente pela existência de diversos referenciais teóricos embasando a Psicologia.
Conforme destaca Vigotski (2004), na Psicologia, ainda carecemos de uma psicologia
geral, uma vez que a variedade de referenciais apresentada é algo a ser considerado. Essa é
uma questão posta aos profissionais. Sem uma única vertente que descreva um percurso para
o entendimento do homem, mas tendo várias descrições de homem diferentes, a
responsabilidade do profissional que representa a Psicologia – tanto no CRAS, como nas mais
variadas áreas de atuação – ganha uma responsabilidade adicional: a de ter um
posicionamento claro frente à compreensão de homem que embasa a sua prática. Se não há,
para a atuação do Psicólogo, uma única descrição de homem, uma única teoria de
desenvolvimento humano e formação de personalidade, não há também uma única indicação
de métodos, técnicas e procedimentos a serem seguidos por ele.
Espera-se que esse profissional trabalhe tendo a família como foco das intervenções;
almeja-se que promova reflexões sobre os vínculos estabelecidos, sobre o papel do homem na
superação das vulnerabilidades vivenciadas; que ofereça um serviço de qualidade aos
usuários do SUAS; e, ainda, que atue em consonância com a ciência que representa.
Entretanto, é conferida autonomia ao profissional desde a concepção de homem que adota até
o planejamento de metodologias que irá usar.
O espaço para a atuação da Psicologia nas políticas públicas de assistência social é
entendido como a possibilidade de que se concretize um trabalho voltado à superação de
vulnerabilidades e à transformação social, a partir da tomada de consciência das relações
estabelecidas na sociedade capitalista.
Para iniciarmos uma análise crítica das PNAS, do nosso ponto de vista, temos que
apresentar alguns questionamentos acerca do que se entende por vulnerabilidades. De acordo
com Pereira (2006), a PNAS propõe que a vivência de situações de risco está relacionada a
circunstâncias de vulnerabilidade. Para o referido autor: “Por vulnerabilidade entende-se as
circunstâncias em que os indivíduos ou famílias não possuem capacidades suficientes para
enfrentar situações de crise decorrentes de insuficiência de renda, de não satisfação das
necessidades básicas ou de violação de direitos” (PEREIRA, 2006, p. 64).
Ainda segundo Pereira (2006), há uma relação muito próxima entre as situações de
risco e as circunstâncias de vulnerabilidade. Nas palavras do autor:
4
Os riscos estão relacionados às circunstâncias de vulnerabilidade, ou seja, as
situações de vulnerabilidade contêm, em si, os riscos que podem levar aos
processos de exclusão social, de isolamento, de segregação. Há riscos
próprios do ciclo de vida (como no processo de envelhecimento), outros
relativos ao contexto e às condições de vida das pessoas e das famílias
(como o desemprego, a exposição a situações vexatórias e degradantes etc.).
(p. 68).
Os documentos legais que norteiam as políticas públicas de assistência social
descrevem o homem como sujeito de direitos. Embora seja comum pensar que essa
concepção do homem, enquanto sujeito de direitos, trata-se de uma concepção revolucionária
e que deva ser entendida como resultado da evolução das Políticas Públicas, se analisada de
forma um pouco menos superficial, pode-se constatar que essa descrição atende a demandas
das políticas públicas administradas numa sociedade capitalista. Nesse aspecto, vale chamar a
atenção para o fato de que não se discute a crise, as contradições da sociedade capitalista, que
leva alguns indivíduos a terem acesso a bens materiais e culturais e outros não, dependendo
da classe social na qual eles estão inseridos; a grande questão é auxiliar esses indivíduos a
enfrentarem os riscos.
Contraditoriamente, o mesmo indivíduo que ora é denominado sujeito de direito, logo
a seguir é concebido como usuário de programas e projetos da assistência social. Como pode
ser, ao mesmo tempo, sujeito e protagonista de um processo – conforme descrevem os
documentos legais – e ser também usuário? Quando pensamos na educação escolar, podemos
dizer que o indivíduo está sendo sujeito de direitos, quanto temos um índice alarmante de
fracasso escolar? A própria nomenclatura utilizada pela PNAS já se apresenta como objeto de
estudo de uma pesquisa na área das ciências humanas. Não nos debruçaremos sobre esse
aspecto no presente trabalho, todavia, salientamos que não ignoramos ou desconsideramos tal
característica.
A atual sociedade reforça o discurso daquilo que se concebe como cidadania e a
concepção de que todo cidadão é um cidadão de direitos. Tal discurso pretende promover a
concepção, nas diversas camadas sociais, de que o capitalismo representa um modo justo de
organização da sociedade, no qual até mesmo quem nada tem (acumulado) é concebido como
portador de direitos. Quando buscamos compreender essa concepção de homem como
cidadão de direitos, apoiados em uma leitura marxista de mundo, desviamos os nossos olhos
de uma leitura da aparência e nos articulamos para nos posicionarmos de um modo crítico
diante do mundo e das políticas públicas. Acreditamos que somente por meio desse
5
pensamento seja possível comprometer-se com uma visão de homem, de fato, voltado à
essência e não apenas à aparência, analisando esse homem como "síntese das relações
sociais", conforme propõe Saviani (2004). Dessa forma, é possível compreender as políticas
públicas como algo não natural, mas como um construto histórico permeado pelas relações
estabelecidas.
Ao propor a centralidade do trabalho na família, a PNAS referencia a concepção de
família como um “(...) núcleo afetivo, vinculado por laços consanguíneos, de aliança ou
afinidade, que circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de
relações de geração e de gênero” (BRASIL, 2005, p. 90). Ao falar sobre o trabalho com os
vínculos propostos pela PNAS, Afonso (2006) afirma que os “(...) vínculos familiares têm
uma dimensão legal, sócio-cultural e afetivo-relacional”. A dimensão legal “(...) implica
obrigações e direitos mútuos, regulados por lei”. A dimensão sociocultural é aquela “(...)
através da qual as pessoas possam atribuir sentido aos papéis que desempenham na família,
por exemplo, atribuindo sentido ao que é ‘ser pai’ ou ‘ser mãe’, que obrigações têm, que
valores estão associados à paternidade e à maternidade, e assim por diante”. E a dimensão
afetivo-relacional do indivíduo é aquela “(...) pela qual são abordadas as relações de cuidado,
afeto e comunicação neste grupo” (p. 170).
Com base nesse modelo de compreensão, a intervenção do Psicólogo junto às famílias
deve ter como propósito, segundo Afonso (2006), trabalhar com uma rede de vínculos dentro
de um contexto sociocultural. Para isto, o profissional deve pautar-se tanto na busca por
esclarecer-lhes o cumprimento destas obrigações e direitos como fortalecer a identidade do
grupo familiar, seus valores, regras, idéias e sua relação com o contexto sociocultural.
Essa proposta de trabalho com famílias fundamenta-se ainda na compreensão de que
“as famílias cumprem ou não as suas funções dependendo das suas relações com o contexto
social e cultural” (Afonso, 2006, p. 169). Assim, entende que uma família que não tem acesso
aos direitos básicos de cidadania “(...) terá dificuldades para realizar bem as suas funções” (p.
169). Desse modo, os documentos legais propõem a concepção de que o trabalho com as
famílias representaria, de fato, uma possibilidade de superação de vulnerabilidades, fato que
temos que questionar, uma vez que compreendemos que a família está inserida em um
contexto povoado de contradições, guiado pelo capital, no qual uma pequena parcela possui
os meios de produção e a grande maioria possui a força de trabalho. Essa família nem sempre
teve possibilidade de ter direito à educação formal, o que reflete, muitas vezes, na forma
como se relaciona com a escola e com o processo de escolarização de seus filhos.
6
Os conhecimentos da Psicologia podem referenciar um trabalho junto às famílias, de
maneira a conduzir à concepção e reflexão do homem, enquanto ser histórico e social, o qual
produz e é produzido pelas relações que estabelece. Também pode contribuir com a escola, na
sua função de socialização dos conhecimentos, conforme propõe Saviani (2003), quando
realiza um trabalho com as famílias, cujo objetivo seja esclarecer que a aprendizagem
promove desenvolvimento (VIGOSKI, 2000), além de destacar a importância do acesso ao
conhecimento para o desenvolvimento cognitivo. Mas, para que tal trabalho seja concretizado
pelo Psicólogo, é necessário que esse profissional não esteja a serviço das relações
capitalistas. Se estiver a serviço do capitalismo, ao invés de superação, o que se promove é
um novo movimento de alienação. É o fortalecimento da concepção de homem apenas
enquanto cidadão de direito, ou seja, trata-se de um trabalho reacionário às demandas do
capitalismo.
O Psicólogo que atua junto ao SUAS necessita ter subsídios teóricos que lhe permitam
propor intervenções voltadas à superação de "vulnerabilidades", como, por exemplo, o
alcoolismo, a violência doméstica, a prática de atos infracionais. Nesse contexto, o
profissional trabalha com a perspectiva de superação do processo de exclusão vivenciado
pelos indivíduos, por meio da reflexão e apropriação de novos valores e sentidos pessoais.
Intervir com famílias implica em trabalhar com a possibilidade real de transformações,
que não fiquem apenas no discurso ou na normatização de novas práticas. A intenção é levar o
indivíduo a avançar na sua compreensão como "sujeitos de direitos", incluindo, aqui, o direito
a uma escola que realmente ensine seus filhos.
Como discorremos anteriormente, defendemos que a concepção de desenvolvimento
humano, proposta pela Psicologia Histórico-cultural, oferece subsídios teóricos ao Psicólogo,
os quais lhe permitem problematizar a concepção de infância, família e educação enquanto
categorias históricas. Embasados por tal referencial, é possível estruturar um trabalho voltado
às famílias, de modo que concebam o adulto como mediador do desenvolvimento da criança,
assumindo uma importante função na constituição de sua personalidade e compreendendo a
escola enquanto uma instituição que muito pode contribuir para o processo de humanização
dos alunos, no sentido de apropriação do legado cultural produzido pelos homens no processo
histórico.
Uma vez que pela própria condição biológica o recém-nascido e a criança pequena
ainda não têm condições de atender as suas próprias necessidades e às funções psicológicas
7
superiores - tais como a atenção concentrada, memória lógica, raciocínio abstrato, por
exemplo -, somente se desenvolvendo pela apropriação da cultura, é fundamental
compreendermos a função do adulto que cuida da criança pequena. Embora Vigotski não
tenha se referido especificamente à família nessa função de mediação, podemos fazer tal
aproximação e entendermos, à luz de seus pressupostos, a função da família diante da
formação da personalidade das crianças que estão sob os seus cuidados.
A mãe e o pai são, comumente, as pessoas de referência à criança em nossa sociedade,
já que a família é compreendida como célula da sociedade e tem subsidiado teorias que
colocam tais papéis como parte integrante da personalidade. Desse modo, um trabalho de
orientação familiar deve priorizar a reflexão acerca de dois pontos fundamentais sobre as
figuras parentais: primeiro, necessariamente, não são o pai e a mãe os responsáveis pelo
exercício dessa função de proteção e de favorecimento da apropriação da cultura, mas quem
convive com a criança e, segundo, esses papéis não são naturais. Então, não é o fato de dar à
luz a um bebê que transforma um pai e uma mãe em portadores de superpoderes, sendo
capazes de desempenhar suas funções de fato.
De acordo com esse argumento, é possível refletir mais especificamente sobre o
projeto pessoal de maternidade e paternidade. Nem sempre um filho é planejado. Nem sempre
se está preparado para assumir uma função tão importante junto a uma criança que nasce.
Entretanto, a sociedade, que prega a família como célula da sociedade, exige que tais funções
sejam assumidas e impõe que quem abrir mão de assumi-las deve ser concebido como um
desvio, uma patologia. Nesse sentido, defendemos que o trabalho voltado à orientação de pais
e familiares deve priorizar a desmistificação da naturalização atribuída ao exercício desses
papéis e ampliar o debate sobre a paternidade e a maternidade como papéis sociais
desenvolvidos, aprendidos e reproduzidos culturalmente, não deixando de lado, no entanto, a
importância das relações afetivas para o desenvolvimento do psiquismo da criança. Desse
modo, possibilita-se um espaço à reflexão e a novas aprendizagens.
Quando um pai ou uma mãe descobrem-se livres da obrigação de saber tudo e passam
a conceber a maternidade e a paternidade como papéis aprendidos, abre-se espaço para a
intervenção profissional, voltada ao apoio e orientação na superação de dúvidas e dificuldades
que possam permear as relações estabelecidas na família, assim como coloca esses pais em
uma posição de potencializadores do desenvolvimento cognitivo dos seus filhos; tal
desenvolvimento será ampliado quando a criança adentrar a escola e começar a aprender os
conteúdos científicos (VIGOTSKI, 2000).
8
É necessário que o adulto responsável pela criança tenha consciência de sua função na
constituição da personalidade que está sob seus cuidados. Nesse sentido, Vygotski (2000)
deixa claro que existe uma relação entre a formação da personalidade e o desenvolvimento
das funções psicológicas superiores. Assim, uma intervenção psicológica que se execute,
voltada à infância e à família, deve utilizar metodologias que possibilitem a ampliação da
consciência das pessoas atendidas sobre esses aspectos, visando provocar autonomia daquele
que está nessa função. Não há regras claras a serem seguidas na educação de filhos,
entretanto, educar não é um processo que possa ser feito sem um planejamento, sem a adoção
de postura específica. As relações familiares são edificadas por meio das relações
estabelecidas entre os seus membros, de maneira que é dos adultos a responsabilidade pelo
modo como essas relações se estabelecem. O maior argumento que subsidia a última
afirmação refere-se ao fato de que, no adulto, supõe-se que as funções psicológicas superiores
estejam em mais elevado desenvolvimento.
Ao considerar um esquema de periodização do desenvolvimento, que vai desde o
nascimento até a idade adulta, Vigotski (1998) explica a personalidade humana como
resultado dialético das inúmeras relações que o indivíduo estabelece com seu meio
circundante ao longo da sua vida. É a relação estabelecida com os outros homens e com o
mundo que permite que todo o avanço conquistado pela humanidade seja compartilhado entre
os indivíduos. “O homem é um ser social, que sem interação social nunca pode desenvolver
nenhum dos atributos e das características que se desenvolvem como resultado da evolução
histórica de toda a humanidade”. (Vigotski, 1998, p. 32).
Quando nos remetemos à compreensão da função da família diante dessa realidade,
percebemos a complexidade da ação que os pais e irmãos exercem diante de toda a vida da
criança. Não se trata apenas de oferecer os cuidados mínimos à sobrevivência. Antes disso, o
recém-nascido está em processo de completa carência de habilidades sociais. É na família que
essa carência é amparada – por meio das atitudes dos adultos que cuidam da criança –, sendo
ela introduzida no universo sociocultural. As funções psicológicas superiores são
desenvolvidas na espécie humana graças à cultura e apropriadas por cada pessoa, por meio de
mediações, de interações sociais.
A família, sob esse ponto de vista, teria não apenas a responsabilidade de atender às
necessidades da criança que está sob seus cuidados, mas também há a responsabilidade pela
humanização de seus membros, o que contribui para o desenvolvimento cultural da
humanidade. Não se trata de tarefa simples. Não se trata apenas de cuidar de seus membros.
9
Trata-se de humanizá-los. Isso, como propõe, só é possível, num primeiro momento, pela
educação da vida cotidiana, mas, depois, esse processo é continuado nas atividades
pedagógicas.
De acordo com Makarenko (1981), podemos conceber a família como tendo uma
função educativa e não apenas de cuidado e atendimento às necessidades básicas de
sobrevivência. Os objetivos da educação dos filhos devem ser encarados com especial
seriedade, uma vez que se trata de uma responsabilidade que a família assume não apenas
sobre seus membros, mas também diante da sociedade como um todo. Apoiado na mesma
concepção de homem, presente na Psicologia Histórico-Cultural, Makarenko destaca a
importância da família para a formação do caráter de cada um de seus membros, interferindo,
por decorrência, na formação moral da sociedade. Segundo ele, a ação desse processo
educativo, mediado pelos pais, nunca é nulo. Ou é positivo – ao promover o processo de
humanização – ou é negativo – ao ignorar tal função, isentando-se de tal responsabilidade. Os
pais, portanto, podem tanto empenhar-se num projeto de educação para seus filhos, como
podem, baseados em noções biologizantes, manterem a crença de que basta cuidar deles,
concebendo todo o processo educativo como natural e que acontece de modo espontâneo.
Apoiados na análise desse autor, podemos afirmar que, muitas vezes, os pais têm
carência de informações e conhecimentos sobre a função que desempenham, uma vez que a
sociedade, tal como está estruturada, não lhes oferece subsídios nesse sentido. As Leis
regulamentam a família como tendo uma função protetiva, mas não explicitam que os pais
tenham essa função educativa na formação da personalidade e no processo de humanização de
seus filhos. A sociedade de classes possibilita pouco acesso desses pais aos bens materiais e
culturais, o que dificulta que os mesmos tenham condições objetivas - tempo, devido ao
excesso de trabalho, por exemplo - e subjetivas - formação em nível de estudo, por exemplo -
para acompanhar o desempenho escolar dos filhos. Muitas vezes, eles se sentem à margem da
escola.
O modo como a infância é concebida atualmente nos programas de educação reforça a
compreensão de que o desenvolvimento humano é produto da maturação biológica. E, diante
disso, a preocupação volta-se para o atendimento das necessidades de ordem biológica:
atenção à alimentação, vestuário, moradia, acesso a bens e serviços, entre outros. Na escola, a
família é chamada a responsabilizar-se pelos fracassos de seus filhos, mas pouco é orientada
sobre o desenvolvimento psicológico e possibilidades de auxílio aos filhos no processo de
escolarização.
10
Quando o CRAS propõe que sejam executadas ações voltadas à superação de
vulnerabilidades, pretende que sejam feitos encaminhamentos e que se promova o acesso às
famílias e aos seus direitos básicos e fundamentais. Dessa forma, entendemos a educação
escolar como um desses direitos e podemos afirmar que, para que as ações especificadas pelos
documentos legais de fato se voltem à superação de vulnerabilidades e protagonismo, é
necessário que as famílias sejam levadas à reflexão sobre sua verdadeira função diante dos
membros que educa e diante da sociedade. Os cidadãos de direitos não devem limitar-se a
entender que têm direitos e que podem participar na elaboração de propostas a serem
apresentadas ao governo, mas sim, devem ser conduzidos à reflexão acerca da indispensável
função que desempenham diante da humanidade como um todo. Devem ser encaminhados
para a compreensão de que são produtores dessa sociedade e, portanto, sujeitos ativos que
podem provocar transformação no meio social em que vivem.
CONCLUSÕES
Apoiados nesses pontos de análise apresentados acima, podemos refletir sobre a
função da família como mediadora do desenvolvimento de seus membros, afirmando que,
quando os pais reconhecem-se como mediadores do processo de desenvolvimento e
constituição da subjetividade de seus filhos, podem agir de modo mais direcionado a tal fim.
Ao se compreenderem como aqueles que desenvolvem potencialidades e que a escola, o
conhecimento científico, é fundamental para o desenvolvimento cognitivo dos filhos, podem
auxiliar ainda mais a escola no encaminhamento da prática pedagógica, com a finalidade da
apropriação dos conhecimentos.
Podemos, de igual maneira, refletir sobre a atuação do Psicólogo junto aos programas
e projetos de assistência social: é necessário que esse profissional reconheça-se como
mediador, tanto no processo de apropriação desse entendimento pela família, como também,
ele mesmo – o Psicólogo – precisa compreender sua própria função como mediador no
processo de desenvolvimento e subjetivação das pessoas atendidas: os indivíduos adultos e as
crianças que são inseridas em projetos socioeducativos.
Makarenko (1981, p.18) afirma que “muitos erros no trabalho familiar se devem ao
fato de que os pais se esquecem de que os tempos são outros” e tentam reproduzir na
educação de seus filhos aquela que receberam em sua própria infância. Podemos acrescentar
que, mais uma vez, as concepções equivocadas acerca do desenvolvimento humano e da
concepção de sociedade alimentam essas práticas. É comum que a infância seja entendida
11
como um conceito imutável, a-histórico. Assim, o pai compreende que a sua função é a
mesma em todos os tempos e as formas utilizadas para propiciar a educação de filhos também
o são. Se, na infância, foi educado por meio do uso de violência física, da imposição de
respeito a qualquer preço, acredita que o mesmo se aplicaria hoje na educação de seus
próprios filhos. Aqui, a Psicologia, que parte da historicidade dos fatos, pode ajudar os pais a
compreenderem o psiquismo dos seus filhos e como ocorre o desenvolvimento nesse contexto
atual. Destacamos a importância de que os programas de acompanhamento e orientação
familiar, desenvolvidos pelo Psicólogo, possam ser embasados em compreensões
problematizadoras e que desmistifiquem a ideia de que as relações são as mesmas em todos os
tempos.
Se falarmos mais especificamente sobre o acesso que os pais atendidos pelo SUAS –
usuários das políticas de Assistência Social – tiveram à educação escolar, podemos, apoiados
em dados de pesquisas, afirmar que foi um acesso precário à escolarização. Percebemos, além
do baixo nível de escolarização e do alto índice de analfabetismo, a ausência de programas
educativos voltados à orientação dessas famílias para que executem o compromisso de
humanização aqui discutido. Não tendo recebido acesso à educação formal, sendo
semialfabetizados ou analfabetos, como esses pais teriam acesso a informações que lhes
permitiriam refletir sobre a importância de um projeto de educação específico para a sua
família? São problematizações que, de modo indireto, podem levar os pais a compreenderem
a vida escolar dos filhos (BRASIL, 2005).
Mais uma vez afirmamos sobre a necessidade de que o Psicólogo que atua junto ao
SUAS esteja comprometido com um projeto de humanização e tenha como norte a
coletividade, não deixando de entender a criança como escolar, conforme propõe a Psicologia
Histórico-Cultural.
De acordo com Makarenko (1981), a essência do trabalho educativo exercido pela
família nesse período não consiste “[...] nas conversas com a criança, na influência direta
sobre ela, mas na organização da família, na organização da vida da criança e no exemplo
que se lhe oferece da nossa própria vida pessoal e social” (p. 24). Dito de outro modo, a
criança carece das condições básicas que lhe permitam organizar a própria vida e tomar
decisões. Quando a família atende tal carência, oferecendo-lhe um ambiente organizado, com
regras claras, instruções compatíveis ao seu entendimento e estimulação à aquisição de novos
aprendizados, está, na verdade, oferecendo subsídios para que organize a sua própria
estrutura de pensamento. Ou seja, a criança apodera-se da organização que lhe é oferecida
12
como uma forma, um modelo de organização do qual ela se apropriará. Tais ações,
certamente, contribuirão para o desempenho escolar dos filhos.
É importante destacar que não estamos centrando nos pais a responsabilidade pelo
sucesso escolar dos filhos; o que estamos refletindo é como o psicólogo pode, no trabalho
junto ao Suas, contribuir para que os pais percebam que são fonte de desenvolvimento dos
filhos e que tomem consciência de que, no processo de educação familiar, o desenvolvimento
do psiquismo e da personalidade está somente começando. A escola, com os conteúdos das
várias ciências, também será fonte de desenvolvimento dos filhos; assim, o trabalho tem que
ser de parceria com as instituições escolares.
Contextualizando essas afirmações com a prática do Psicólogo junto aos SUAS,
reafirmamos a importância de um trabalho voltado à orientação familiar, visando a garantia
de que as famílias tenham acesso a essas informações e possam se apropriar dessa reflexão.
REFERÊNCIAS
Afonso, Maria Lucia. O trabalho com famílias – uma abordagem psicossocial. Cadernos
de Assistência Social: Trabalhador. Belo Horizonte: NUPASS, 2006.
BRASIL. Proteção Social Básica do Sistema Único de Assistência Social. Orientações
técnicas para o centro de referência da assistência social. Brasília, DF: MDS, 2006.
Brasil. Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de
Assistência Social, Sistema Único de Assistência Social e Norma Operacional Básica da
Assistência Social. Brasília, DF: MDS, 2005.
Conselho Federal de Psicologia. Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas
Públicas. Referências técnicas para atuação do/a Psicólogo/a no CRAS/SUAS. Brasília,
DF: CFP, 2007.
LEONTIEV, Alexis N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.
Pereira, M. A. R. A política de assistência social. Cadernos de Assistência Social:
trabalhador. Belo Horizonte: NUPASS, 2006.
SAVIANI, Dermeval. Crítica ao fetichismo da individualidade. Campinas: Autores
Associados, 2004.
Vigotski, L.S. Teoria e método em psicologia. 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
Vigotski, Liev S. La Genialidad Y otros textos inéditos. Editorial Almagesto: Buenos Aires,
1998.
VIGOTSKI, Liev Semióniovich. S. A construção do pensamento e da linguagem. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.