observatório da constituição e da democracia

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ANO III Nº 32 Agosto de 2009 Constituição & Democracia C&D n Boaventura Santos: história e justiça social n Dilema do Direito Penal: Lei Maria da Penha n Entrevista: Professora Ela Wiecko Criminologia: Estado, sociedade e lógica punitiva

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Edição nº 32 - Criminologia

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Page 1: Observatório da Constituição e da Democracia

ANO III Nº 32Agosto de 2009 Constituição & DemocraciaC&DnBoaventura Santos:história e justiça social

nDilema do Direito Penal:Lei Maria da Penha

nEntrevista: Professora Ela Wiecko

Criminologia: Estado, sociedadee lógica punitiva

Boaventura de Sousa Santos

Ao voltar do período de férias, osMinistros do Supremo Tribu-nal Federal enfrentarão uma

questão crucial para a construção daidentidade do Brasil pós-constituin-te: é possível adoptar um sistema deacções afirmativas para ingresso nasuniversidades públicas que destineparte das vagas a negros e indígenas?

Ao rejeitar o pedido de liminar emacção movida pelo DEM, ex-PFL,que pretendia ver suspensa a matrí-cula dos alunos aprovados na UnB noâmbito de uma política de selecçãocom estes contornos, o Ministro Gil-mar Mendes sugeriu que a respostaa esta questão fosse buscada emfunção do impacto das acções afir-mativas sobre um dos elementosque acompanha o constitucionalis-mo moderno desde as suas origens,na Revolução Francesa: a fraterni-dade. Perguntou o Ministro se, como advento de programas como o daUnB, o país estaria abrindo mão daidéia de um país miscigenado e adop-tando o conceito de uma nação bi-color, que opõe “negros” a “não-ne-gros”. E indagou se não haveria for-mas mais adequadas de realizar “jus-tiça social”, tal como a adopção de co-tas pelo critério da renda.

A proposta de situar o juízo deconstitucionalidade no horizonte dafraternidade representa uma impor-tante inovação no discurso do STF.Mas assim como o debate sobre aadopção de acções afirmativas ba-seadas na cor da pele não pode serdissociado do modo como a socie-dade brasileira se organizou racial-mente, o debate sobre a concretiza-ção da Constituição não pode des-prezar as circunstâncias históricasnas quais ela se insere. Como já es-crevi nesta secção, a enunciação doideário da fraternidade nas revolu-ções iluministas européias cami-nhou de par com a negação da fra-ternidade fora da Europa (“Tendên-cias/Debates”, 21/08/2006). Nesse“novo mundo”, do qual o Brasil se tor-nou parte desde que a Carta de Ca-minha chegou ao Rei de Portugal, aprosperidade foi construída à base dausurpação violenta dos territóriosoriginários dos povos indígenas e

da sobreexploração dos escravos quepara aqui foram trazidos. Por essa ra-zão, no Brasil, a injustiça social temum forte componente de injustiçahistórica e, em última instância, deracismo antiíndio e antinegro. (“Ten-dências/Debates”, 10/06/2008).

É claro que na organização dassuas relações raciais o Brasil difere depaíses como os EUA, na medida emque apresenta um grau bem maior demiscigenação. A questão é saber seesse maior grau de miscigenação foisuficiente para evitar a persistênciade desigualdades estruturais asso-ciadas à cor da pele e à identidade ét-nica ou, em outras palavras, se o fimdo colonialismo como relação polí-tica acarretou o fim do colonialismocomo relação social. Indicadores so-ciais de toda ordem dizem que essasdesigualdades não apenas persis-tem, como prometem seguir ator-mentando as gerações futuras. Umestudo recente divulgado pela Se-cretaria Especial de Direitos Huma-nos da Presidência da República,por exemplo, mostra que o risco deser assassinado no Brasil é 2,6 vezesmaior entre adolescentes negros doque entre brancos.

Falar em fraternidade no Brasil sig-nifica, essencialmente, enfrentar opeso desse legado, o que representaum grande desafio para um país emque muitos tomam a idéia de demo-cracia racial como dado, não comoprojecto. Mas se o desafio for en-frentado na sua inteireza pelas insti-tuições sem que se busque diluir agravidade do problema em categoriasfluidas como a dos “pobres”, o país ca-minhará não apenas para a consoli-dação de uma nova ordem constitu-cional, no plano jurídico, como tam-bém para a construção de uma or-dem verdadeiramente pós-colonial,no plano sócio-político.

Ao estabelecer e monitorar um sis-tema de acções afirmativas que des-tina parte das vagas a pretos, pardose indígenas, a UnB tem oferecidotrês grandes contribuições para essatransição. Em primeiro lugar, o sis-tema de educação superior pode re-cusar-se a reproduzir as desigual-dades que lhe são externas e mobili-zar a comunidade para a construçãode alternativas de inclusão de seg-

mentos historicamente alijados dasuniversidades em razão da cor dapele ou identidade étnica. Em se-gundo lugar, a construção e adopçãode alternativas com este recorte nãoacarreta prejuízo para a qualidade dostrabalhos acadêmicos; ao contrário,traz mais diversidade, criatividade edinamismo ao campus. Em terceirolugar, apesar de levantar reacçõespontuais, como a do DEM, e de in-cluir decisões que sempre serão po-lêmicas, como a do critério de iden-tificação dos beneficiários, acçõesafirmativas baseadas na cor da peleou identidade étnica conseguem de-senvolver um elevado grau de legiti-midade na comunidade acadêmica.Basta ver como diversos grupos depesquisa e sectores do movimento es-tudantil se articularam em defesado sistema da UnB quando este se viuconfrontado pela acção do DEM.

Para os estudiosos das reformasuniversitárias, seria fundamental queo programa da UnB pudesse com-pletar o ciclo de 10 anos previsto noPlano de Metas da instituição. Sobreo posicionamento a ser adoptadopelo STF diante do problema, a res-posta não está clara. O Tribunal po-derá desprezar a experiência da UnBsob o receio de que ela venha a dis-solver o mito de um país fraterno,porque mais miscigenado que ou-tros. Mas o Tribunal também pode-rá conceder que o programa da UnBrepresenta, bem ao contrário, umatentativa válida de institucionalizara fraternidade ao reconhecer a exis-tência de grupos historicamente des-favorecidos, contribuindo, assim,para a efectivação da justiça social.Somente a segunda resposta permi-te combinar justiça social com justi-ça histórica.

24 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | AGOSTO DE 2009

Justiça Social e Justiça Histórica

Page 2: Observatório da Constituição e da Democracia

EDITORIALObservatório da Constituição e da Democracia

Acrise do sistema penal é assunto de permanente discussão na mídia, na universidade,nos setores responsáveis pela execução de políticas públicas. Fala-se em alternati-vas ao sistema penal, mudanças na legislação, tratamento digno aos presos, políti-

cas de segurança pública. A Constituição Federal assegura essa dignidade, quando impõeque nenhuma pena passará da pessoa do condenado, vedando, ainda, a pena de morte.

Neste número do Observatório da Constituição e da Democracia, realizado em parce-ria com o Grupo Candango de Criminologia (GCCrim), lançaremos um olhar crítico sobre avivência das garantias constitucionais do campo penal. Luciana Ramos aborda a difícil si-tuação das mulheres encarceradas e a luta por seus direitos sexuais e reprodutivos. Os im-pactos da Lei Maria da Penha são novamente tema de artigo do Observatório, agora emtexto de autoria de Mayra Cotta. Em entrevista, a Professora Ela Wiecko de Castilho falade assuntos caros à criminologia crítica, como o processo de reforma do Código Penal, etambém sobre a ocupação pelas mulheres de espaços públicos de poder.

Os textos que compõem este número adotam a perspectiva de que a Criminologia Críticapropõe outro olhar à questão penal – e estes novos caminhos se iniciam nos bancos da fa-culdade. Estudar e compreender a Criminologia são fundamentais ao estudante de Direito.

Trazemos à discussão também o tema das ações afirmativas, que já foi objeto de umnúmero específico do Observatório. O Prof. José Geraldo de Sousa Junior chama a aten-ção para o importante debate em torno do sistema de cotas da Universidade de Brasília,que foi impugnado perante o STF. Na mesma linha de afirmação da importância das cotasno processo de reconhecimento do caráter emancipatório do direito, Boaventura de SousaSantos destaca a relevância de combinar justiça social e justiça histórica.

Com essas propostas, este número do Observatório da Constituição e da Democracia,lançado no momento em que se discutem políticas de segurança pública na CONSEG –Conferência Nacional de Segurança Pública, em Brasília – DF, traz pontos de partida paraalgumas discussões, esperando que a relação entre sistema penal, justiça social e Cons-tituição seja, um dia, real.

Gru po de pes qui sa So ci e da de, Tem po e Di rei toFa cul da de de Di rei to – Uni ver si da de de Bra sí lia

02 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | AGOSTO DE 2009

Cotas raciais em universidadesJosé Geraldo de Sousa Junior - Reitor da Universidade de Brasília, professor da Faculdade de Direito ecoordenador do projeto O Direito Achado na Rua 03

Por que ensinar criminologia?Carolina Costa Ferreira - Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango deCriminologia (GCCrim); professora voluntária de “Criminologia e Justiça Restaurativa” (2008-2009) na graduaçãoem Direito da UnBMarina Quezado Grosner - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango deCriminologia; Professora voluntária de “Criminologia” (2005-2007) na graduação em Direito da UnB 04

A experiência de CeilândiaLei Maria da Penha: proteção integral da mulher ou punição do agressor? Mayra Cotta - Graduanda em Direito pela UnB, integrante do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) e doProjeto de Extensão de Atendimento de Mulheres em situação de violência doméstica na Ceilândia 06

Justiça Restaurativa: uma resposta possível aos conflitos penaisMarina Lopes Rossi - Membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM). Cursando o Máster de Criminologia e Execução Penal na Universidade Autônoma de Barcelona 08

A audiência única no processo penalPedro Ivo - Advogado, bacharel em Direito pela UnB, membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) 10

Dos grilhões ao satyagrahaRicardo Luiz Barbosa de Sampaio Zagallo – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) 11

Entrevista com a professora Ela WieckoReforma penal, lei Maria da Penha e segurança pública: (im)possibilidades para uma justiça criminalCarolina Ferreira - Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango deCriminologia (GCCrim); professora voluntária de “Criminologia e Justiça Restaurativa” (2008-2009) na graduaçãoem Direito da UnBEneida Vinhaes Bello Dultra - Mestranda em Direito, Estado e Sociedade, consultora do Centro Feminista deEstudos e Assessoria – CFEMEA Noemia Porto - Mestranda em Direito, Estado e Constituição na UnB, especialista em Direito Constitucional pelaUnB, diretora da Escola de Magistratura do Trabalho da 10ª Região (Ematra-X) e juíza do Trabalho 12

OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO A feminilidade encarceradaLuciana de Souza Ramos - Pesquisadora do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) da Universidade deBrasília. Foi pesquisadora-membro do Grupo de Trabalho Interministerial sobre sistema carcerário feminino de2008 14

OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO A cruel mecânica das sentenças criminais condenatóriasVinicius Machado - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango deCriminologia 16

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAISA presença do GCCrim no Fórum Social Mundial de 2009Diogo Machado - Advogado e membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCrim) 18

OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICOO Ministério Público e a execução da pena criminalPaula Bajer Fernandes Martins da Costa - Procuradora Regional da República; doutora em direito processualpenal-USP; coordenadora do Grupo de Trabalho Sistema Prisional da Procuradoria Federal dos Direitos doCidadão; diretora da Associação Nacional dos Procuradores da República 20

DIREITO ACHADO NA RUAAs janelas quebradas da democraciaPaulo César de Sales Júnior - Graduando da Faculdade de Direito da UnB 22

NOTA DO CORRESPONDENTEAs diferentes melodias da AméricaAna Luiza - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB 23

Justiça Social e Justiça HistóricaBoaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra 24

EXPEDIENTE

Caderno mensal concebido, preparado eelaborado pelo Grupo de PesquisaSociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq). ISSN 1983-8646

CoordenaçãoAlexandre Bernardino CostaArgemiro MartinsCristiano PaixãoJosé Geraldo de Sousa JuniorMenelick de Carvalho NettoValcir Gassen

Comissão executivaMariana CirnePaulo Rená da Silva SantarémRicardo Machado Lourenço FilhoSilvia Regina Pontes LopesSven Peterke

Integrantes do ObservatórioAdriana Andrade MirandaAline Lisboa Naves GuimarãesBeatriz VargasDamião Alves de AzevedoDaniel Augusto Vila-Nova GomesDaniela DinizDaniele Maranhão CostaDouglas Antônio Rocha Pinheiro

Douglas LocateliEneida Vinhaes Bello DultraFabiana GorensteinFabio Costa Sá e Silva Giovanna Maria FrissoGuilherme ScottiJean Keiji UemaJorge Luiz Ribeiro de MedeirosJudith KarineJuliano Zaiden BenvindoLeonardo Augusto Andrade BarbosaLúcia Maria Brito de OliveiraMariana Siqueira de Carvalho OliveiraMarthius Sávio Cavalcante LobatoNatália DinoNoemia Porto Paulo Henrique Blair de OliveiraRamiro Nóbrega Sant´AnaRaphael Augusto PinheiroRenato BigliazziRosane Lacerda

Projeto editorialR&R Consultoria e Comunicação Ltda

Editor responsávelLuiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

Editor assistenteRozane Oliveira

Diagramação - Gustavo Di AngellisIlustrações - Flávio Macedo Fernandes

[email protected] www.fd.unb.br

Assine C&Dhttp://www.unb.br/fd/ced/Preço avulso: R$ 2,00

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | AGOSTO DE 2009 UnB – SindjusDF | 03

José Geraldo de Sousa Junior

“As cotas deram concretudea objetivos de justiça social,equilibrando as propor-

ções étnicas presentes na sociedade,e fizeram circular no ambiente do en-sino e da pesquisa novos temas, cos-mologias mais complexas e um diá-logo mais amplo entre saberes”.

Volto a um tema que já havia sidoobjeto de abordagem neste espaço(Cotas contra a desigualdade racial).E o faço em razão de ADPF (Arguiçãode Descumprimento de Preceito Fun-damental) proposta pelo Democra-tas (DEM), ex-PFL, contra os atos nor-mativos que estabelecem o sistemaadotado pela UnB para ingresso denegros na universidade.

Submetida ao presidente do STFainda no recesso de julho, o autor re-quereu liminar para suspender o re-gistro dos alunos aprovados no últi-mo vestibular, tanto pelo sistemauniversal quanto pelo sistema decotas, para assim obter nova listagemde aprovados; e também para imporque os juízes e tribunais de todo opaís determinassem a suspensãoimediata de todos os processos queenvolvam a aplicação de sistemas decotas em universidades.

Ao prestar informações, a UnBreafirmou a convicção acerca daconstitucionalidade do sistema porela adotado, tanto mais que em con-sonância com as diretrizes de direi-to internacional dos direitos huma-nos, às quais o Brasil se vincula,além de explicar o alcance acadêmi-co do modelo autonomamente apli-cado. Mostrou como, política e epis-temologicamente, a instituição deuconcretude a objetivos de justiça so-cial, “amorenando” a universidade eequilibrando as proporções étnicaspresentes na sociedade, de um lado,enquanto, de outro, a experiênciaabriu condições para fazer circular noambiente do ensino e da pesquisa no-vos temas, cosmologias mais com-plexas e um diálogo mais amplo en-tre saberes.

Contra o argumento de que a me-dida proporciona um racismo in-vertido, salientou que o modelo ado-tado não deriva de uma concepçãobiologista restrita, mas, tal como o

próprio STF já fixou em julgamentoparadigmático, “a divisão dos sereshumanos em raças resulta de um pro-cesso de conteúdo meramente polí-tico-social”, e é desse pressuposto, fe-nótipo, que se origina “o racismoque, por sua vez, gera a discrimina-ção e o preconceito segregacionista”(Habeas Corpus nº 82.424, DJU de19/3/2004, seção 1, p. 17).

Na manifestação apresentada aoSupremo, a AGU defendeu que asmedidas de ação afirmativa desti-nam-se a reduzir as desigualdades fá-ticas registradas entre os estudantesque competem para ingressar noensino público superior. A peça ela-borada pela Secretaria Geral de Con-tencioso (SGCT) lembrou a tradi-cional posição da jurisprudência doSTF, no sentido de garantir a partici-pação das minorias no processo de-mocrático de formação de opinião evontade, em todas as suas esferas.

Em seu parecer, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel,afirmou que as cotas não só respei-tam o princípio da igualdade comotambém ajudam a alcançar esse pre-ceito constitucional. O procurador ci-tou também a Convenção Interna-cional sobre a Eliminação de Todasas Formas de Discriminação, da qualo Brasil é signatário desde 1968. Aconvenção recomenda às nações aimplantação de políticas de açãoafirmativa para reverter a trajetória deminorias que sofrem discriminação.

Para o procurador-geral, “o mitoda democracia racial transformou-seem retórica oficial, passando a servircomo um álibi para que o Estado e asociedade brasileira nada fizessem arespeito da discriminação”. Além dis-so, ele sustentou que as cotas aten-dem ao chamado princípio da justi-ça distributiva e ajudam a quebrar es-tereótipos e a promover maior plu-

ralismo. Ainda segundo o procurador,“o quadro de dramática exclusão donegro justifica medidas que o favo-reçam e que ensejem uma distribui-ção mais igualitária de bens escassos,como são as vagas em uma univer-sidade pública, visando à formaçãode uma sociedade mais justa”.

O presidente do STF, Gilmar Men-des, não concedeu a liminar e reme-teu o debate ao Plenário, que é o maisapropriado para a dimensão do temaque foi levado ao Supremo, assegu-rando um auditório amplo, que per-mita ao país mobilizar-se para dis-cussão tão relevante.Trata-se, agora,de participar fortemente desse de-bate, procurando dar sustentação aações afirmativas enquanto reco-nhecimento de um direito emanci-patório com o qual, como lembraBoaventura de Sousa Santos,“a dife-rença não nos inferiorize e a igual-dade não nos descaracterize”.

Cotas raciais em universidades

Advocacia e Consultoriawww.yamakawa.adv.br

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Carolina Costa Ferreira e Marina Quezado Grosner

Ensinar Criminologia é um de-safio. Os estudantes de Direito,acostumados às visões frag-

mentadas das disciplinas que seapresentam ao longo de todo o cur-so, resistem à proposta de um saberque extrapola métodos ou teorias,propondo um novo modo de pensar.Para exercitar esta habilidade, alunose professores precisam ver, com-preender, refletir. É preciso, funda-mentalmente, reagir à realidade dosistema penal.

O senso comum – presente no dis-curso dos telejornais, na posição dosórgãos de governo, nas leis propostasno Congresso – é uma forte barreiraimposta àqueles que se aventuram aensinar Criminologia. Os “pré-con-ceitos” são perceptíveis em qualquerambiente – na universidade, no tra-balho, em conversas entre amigos.

Nesta perspectiva, contrariar osenso comum pressupõe o (re)co-nhecimento das teorias criminoló-gicas, da evolução do discurso puni-tivo na sociedade e, principalmente,refletir sobre as razões pelas quais de-terminados pontos de vista ganhamespaço na mídia, e outros nem tan-to. Discute-se, por exemplo, a apli-cabilidade da “Criminologia de Am-bientes” ou da “Criminologia Clínica”,tipologias que insistem em se rein-ventar para discutir “causas” do cri-me e “perfis” de criminosos, paramanter em evidência políticas pú-blicas com poucas soluções e muitopreconceito: surtos de ciência a ser-viço do discurso punitivo.

Estes exemplos remontam ao pa-radigma criminológico, chamadopositivista; herança do século XIX,preocupa-se com o sujeito crimino-so, buscando (somente) nele as cau-sas para o cometimento de crimes. Aspesquisas dessa Criminologia co-meçaram pela procura de traços an-

tropológicos da criminalidade, me-diante a observação de indivíduos se-gregados em cárceres e manicômios,em que características como altura,textura do cabelo, tamanho do crânioe do maxilar eram fundamentaispara identificar um padrão no perfildo delinqüente.

Dessa Criminologia, as pesqui-sas ampliaram seu objeto, passandoàs causas físicas, sociais e psicológi-

cas determinantes da conduta deli-tuosa, que revelavam uma persona-lidade perigosa de uma classe depessoas - os delinqüentes - sujeitosdiferentes dos indivíduos “normais”e dos quais a sociedade deveria se de-fender. Até hoje se percebe a in-fluência destes conceitos: em muitosEstados, as secretarias responsáveispela segurança pública são chamadasde Secretarias de “Defesa Social”.

Esse discurso cumpre sua fun-ção segregadora e racista, em prol dasclasses dominantes e dos grupos depoder. Na América Latina, a Crimi-nologia positivista se manifestou for-temente na teoria do homem delin-qüente, atribuindo aos índios e ne-gros, nossos primeiros criminosos na-tos, a condição de inferiores e, por-tanto, perigosos. Naquele momento,o discurso da delinqüência foi sinô-

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nimo de patologia e degeneração. No início do século XX o ensino da

Criminologia ligou-se à MedicinaLegal, mas permaneceu como disci-plina acessória ao Direito Penal. O cu-rioso é que dita “cientificidade” daCriminologia acabou por afastá-laainda mais do estudo do Direito.

A partir da década de 1930, o es-tudo teórico da Criminologia perdeuum pouco de seu aspecto médicopara despontar como ramo da So-ciologia. Indicavam-se como “causas”da delinqüência aspectos sócio-eco-nômicos, ambientais e culturais, re-lacionando-os às estatísticas crimi-nais. Mas a Criminologia ainda per-manecia positivista, etiológica.

Porém, nos anos 1960, uma novateoria mudou relativamente os estu-dos criminológicos, despertando opensamento crítico. Constatou-seque a criminalidade não poderiamais ser considerada um comporta-mento minoritário na população,praticado por alguns indivíduos pe-rigosos, diferentes, anormais. Aocontrário, comprovou-se que todosna sociedade cometem crimes: exer-cícios de autodenúncia e vitimizaçãomostraram várias condutas violado-ras de normas penais que não des-pertaram a máquina punitiva estatale, portanto, não trouxeram conse-qüência alguma para seus autores. Acriminalidade é um comportamen-to observado na maioria da popula-ção, cuja conduta, para ser crimino-sa, depende da reação a ela, do inte-resse desta sociedade em satisfazerseus ideais de punição.

Neste raciocínio, tal reação se tra-duz numa “etiqueta” atribuída a es-ses indivíduos e condutas previa-mente selecionados. E se apenasparte da criminalidade é apreendidapelo sistema penal, o objeto de es-tudo da Criminologia positivista tam-bém se torna fragmentado, pois cui-da apenas dos casos que entraram nosistema penal.

A partir destas constatações, aCriminologia deixa de perguntarcomo ocorre o crime e quem são oscriminosos – porque, afinal, o crimee os criminosos conhecidos sãoaqueles selecionados pelo sistemapenal – para perguntar, agora, por

que algumas pessoas são conside-radas criminosas, e como é realiza-da essa seleção.

Com esse novo olhar, a Crimino-logia da Reação Social passa a pes-quisar o controle penal. Como são es-colhidas as condutas que passarão aser crimes e as que deixarão de sê-lo?Como age a polícia na apuração doscrimes de que tem conhecimento?Quais fatores influenciam a vítima alevar ou não ao conhecimento da po-lícia determinado crime? Como é adecisão do Judiciário por iniciar ounão um processo, ou condenar ou ab-solver determinada pessoa? Qual oimpacto que a passagem pelo siste-ma prisional tem sobre o indivíduoencarcerado? O enfoque presentenestas questões não conseguiu afas-tar, por completo, o paradigma po-sitivista. A Criminologia, então, ain-da fica dividida.

E este conflito é revelado nos cur-sos de Direito. O Direito Penal é con-siderado a “verdadeira” ciência cri-minal, tendo a Política Criminal e a

Criminologia como ciências acessó-rias, repetindo um antigo “modelo in-tegrado das ciências penais”. A dis-ciplina de Criminologia, quando ofe-recida aos graduandos, é optativa etratada de forma secundária. DireitoPenal e Processo Penal têm maior re-levância no currículo acadêmico. Oresultado é um total desconforto – ini-cial – dos alunos que, ao fim do cur-so, desafiam a si mesmos a pensar deforma diferente, questionando umsistema penal que lhes foi ensinadocomo se perfeito fosse, nas intençõesde “recuperação” e “ressocialização”dos “indivíduos”.

Para romper tantos preconceitosem torno do tema, é preciso mostrara realidade, usando todos os instru-mentos possíveis. Discutem-se teo-rias através de textos, filmes, músicas.O objetivo é praticar ações para des-pertar reações, discussões e apren-dizado mútuo. Professores e alunosse abrem a um universo diferente depossibilidades, com o objetivo defortalecer o interesse acadêmico no

desenvolvimento de pesquisas quepossam revelar a verdadeira realida-de do sistema penal, ou a forma pelaqual essa visão é construída.

Aquele que realmente com-preende os postulados da Crimino-logia se modifica e se torna capaz detransformar, ainda que minima-mente, o mundo à sua volta, refle-tindo sobre os estereótipos que an-tes reproduzia. Alunos e professorestornam-se mais iguais – estabelecemuma relação de proximidade, cúm-plices na descoberta de novos sa-beres. Passam, sobretudo, a com-partilhar uma perspectiva mais hu-mana do Direito.

Estudar Criminologia, hoje, naperspectiva da reação social e crítica,mostra-se imprescindível à formaçãodos juristas, em especial daqueles queoptam por atuar na área criminal,para que tenham coragem de propornovos modelos de diminuição docontrole penal e de solução de con-flitos, para minimizar o sofrimentoque o sistema penal proporciona.

A Criminologia deixa de perguntar como ocorre o crime e quem são os criminosos para perguntar,agora, por que algumas pessoas são consideradas criminosas, e como é realizada essa seleção.

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | AGOSTO DE 2009 UnB – SindjusDF | 05

Por que ensinar Criminologia?

Page 4: Observatório da Constituição e da Democracia

06 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | AGOSTO DE 2009

A experiência de CeilândiaLei Maria da Penha: proteção integral da mulher ou punição do agressor?

Mayra Cotta

Completados três anos da en-trada em vigor da lei 11.464,que ficou conhecida como

Lei Maria da Penha, muitos come-moram supostas conquistas possi-bilitadas por este instrumento nosentido de redução dos eventos deviolência doméstica e familiar. E,de fato, há alguns aspectos que de-vem ser comemorados – o fenôme-no da violência de gênero no âmbi-to da família e das relações inter-pessoais ganhou perspectiva nacio-nal e nunca se viu, especialmente

dentro da Universidade, uma dis-cussão tão intensa em relação a estetema. A violência doméstica e fami-liar, a partir da Lei Maria da Penha,deixou de pertencer entre as quatroparedes do casal para se transformarem fenômeno jurídico próprio.

Chama a atenção, contudo, a ên-fase dada ao caráter punitivo da lei.Criada como um mecanismo de pro-teção integral à mulher, voltado, es-pecialmente, à prevenção da violên-cia doméstica de gênero e ao aten-dimento multidisciplinar das víti-mas, a Lei Maria da Penha parece ca-minhar em direção ao mesmo fra-

casso experimentado pelo Estatutoda Criança e do Adolescente. Assimcomo a aplicação desta legislaçãoabandonou seus principais objetivosde proteção e promoção da cidada-nia das crianças e adolescentes parase transformar em meio eficaz de pu-nição penal dos menores, a Lei Ma-ria da Penha encontra dificuldadesem implementar suas diretrizes pre-ventivas e educativas, assumindoum papel de intervenção pontualdo Estado por meio da lógica punitivado direito penal.

A lei, de fato, trouxe mudançasque apontam para um rigor mais

intenso da legislação punitiva – aoscrimes ocorridos no contexto da vio-lência doméstica e familiar foi veda-da a aplicação de penas pecuniárias,a lesão corporal leve nestas situaçõesteve sua pena aumentada e foi pre-vista a possibilidade de prisão pre-ventiva para o cumprimento das me-didas protetivas de urgência – masseus principais objetivos vão muitoalém do aumento da repressão dosagressores. Basta ver as diversas no-vidades desenvolvidas pela Lei Mariada Penha no sentido de buscar aprevenção da violência domésticabem como a emancipação da mulher.

Como medidas de prevenção, a leiprocurou fomentar a integração dosestudos de gênero, a promoção decampanhas educativas e de progra-mas educacionais que enfoquem estatemática, a criação de atendimentopolicial especializado para as víti-mas, a capacitação dos aplicadores dalei e até mesmo a coibição, na mídia,de papéis estereotipados que legiti-mem a violência de gênero. Tambémfoi pensada uma série de medidas deassistência à mulher em situação deviolência doméstica, como a manu-tenção por seis meses do vínculo tra-balhista, o acesso prioritário da ser-vidora à remoção e a inclusão da ví-tima em programas sociais.

Ainda além, um dos principaisavanços da lei foi a criação das equi-pes de atendimento multidiscipli-nar, integradas por profissionais es-pecializados nas áreas psicossocial,jurídica e de saúde, que devem for-necer subsídio ao juiz, ao MinistérioPúblico e à Defensoria Pública bemcomo desenvolver trabalhos de orien-tação, encaminhamento, prevençãoe outras medidas, voltados para aofendida, o agressor e seus familiares,com especial atenção às crianças eadolescentes.

Como se vê, portanto, a Lei Mariada Penha foi concebida para com-bater de forma eficaz a violência do-méstica e familiar, ciente da com-plexidade deste problema e com-preendendo que não há respostassimples e imediatas para a questão.Foram imaginadas diversas maneirasde se proteger integralmente a mu-lher e de se promover meios para a in-terrupção dos ciclos de violência,possibilitando à vítima – e ao agres-sor – uma vida sem violência. O prin-cipal aspecto, contudo, que parece serdestacado por parte dos entusiastasda lei, infelizmente, é a maior puni-ção dos autores. O Ministério Públi-co, inclusive, se apropria da lei paraenfatizar este viés – afinal, agora é lei:quem bater em mulher vai preso.

Até mesmo a implementação dalei se dá por meio da lógica punitivado direito penal, seja na atuação po-licial, seja na prática judiciária. In-teressante notar, entre os policiais, aambivalência de suas abordagensnas questões de violência doméstica,observada a partir do acompanha-mento de alguns plantões na 15ªDelegacia de Polícia, em Ceilândia.

Quando uma mulher procura umaDelegacia alegando que o marido

disse que iria matá-la, ou que seucompanheiro a puxou pelos cabelosdesde o bar em que estava até a casaonde moram, o mais provável é quereceba pouca atenção dos policiais.De fato, pode-se perceber na fala dealguns a idéia de que há brigas nor-mais entre os casais, não merecedo-ras da proteção policial. Por outrolado, quando a mulher chega apre-sentando em seu corpo sinais evi-dentes da violência, os agentes pa-recem mais estimulados a tomarprovidências que consideram efica-zes – entram na viatura e vão atrás doagressor para realizar o flagrante.

No Judiciário, a reprodução des-ta lógica punitiva do Estado-penal semostra evidente já de partida, umavez que as demandas geradas pela LeiMaria da Penha são levadas aos Jui-zados Especiais Criminais nos Fórunsque ainda não criaram os Juizados deViolência Doméstica e Familiar con-tra a Mulher, conforme a previsão le-gal. Dessa forma, os juízes que deci-dem os conflitos abarcados pela leitransitam também pelos crimes demenor potencial ofensivo – entre

uma mulher que há anos se subme-te às agressões do marido, eles julgamum crime de desacato e uma con-travenção penal de perturbação àtranqüilidade, por exemplo.

Isso leva a uma prática que acabasendo nefasta aos propósitos da lei,pois a violência doméstica e familiarcontra a mulher – uma questão com-plexa, cujo enfrentamento requeratuação multidisciplinar e reflexãopara muito além da mera punição doagressor – é reduzida à tipificação decondutas isoladas, retiradas pon-tualmente da dinâmica de relacio-namento dos envolvidos. O juiz, por-tanto, não procura uma soluçãoabrangente e eficaz para o problemaa ele exposto, mas, ao contrário, ten-de a dar uma resposta estatal ade-quada à ameaça, à injúria ou à lesãocorporal descritas no inquérito. O fe-nômeno da violência doméstica con-tra a mulher é traduzido em tipos pre-vistos no Código Penal, simplificadonuma linguagem mais familiar aosaplicadores do direito.

Também no momento de decidi-rem acerca das medidas protetivas de

urgência, os juízes parecem se iden-tificar mais com a lógica típica do di-reito penal. Nos Juizados de Ceilân-dia, por exemplo, a partir dos aten-dimentos realizados de forma inter-disciplinar entre os cursos de Direi-to e Psicologia da UnB, no Projeto deExtensão de Atendimento de Mu-lheres em situação de violência do-méstica, é possível perceber umahesitação dos magistrados em defe-rirem as medidas protetivas de ur-gência próprias do direito de família.Realmente, uma análise exploratóriarealizada nos dois Juizados Espe-ciais Criminais de Ceilândia mostrouque estas medidas são pouco deferi-das – prestação de alimentos provi-sórios, separação de corpos e sus-pensão das visitas (requeridas em43%, 34% e 21% dos casos, respecti-vamente) são deferidas numa fre-qüência de 3%, 9.5% e 5.5%.

Isso pode ser entendido comouma resistência dos magistrados emtocar nas questões afetas às áreas quenão pertencem ao direito penal.Igualmente, a medida protetiva deafastamento do lar acaba depen-dendo quase exclusivamente da gra-vidade da tipificação dada a cadaocorrência – a mesma análise explo-ratória constatou que o 75% dosafastamentos do lar são deferidosem situações que envolvem o crimede lesão corporal.

O momento de realização da au-diência, por sua vez, poderia servir deoportunidade para a compreensão doproblema submetido ao judiciário,por meio da escuta da vítima e doagressor, bem como dos demais en-volvidos no conflito. Também seria naaudiência a ocasião mais adequadapara a atuação conjunta dos profis-sionais especializados nas áreas psi-cossocial, jurídica e de saúde naorientação e encaminhamento vol-tados à ofendida, ao agressor e aos fa-miliares. Nos Juizados de Ceilândia,contudo, o que se vivencia nas salasde audiência é a reprodução daspráticas típicas dos JECrims – muitacorreria para o encerramento decada audiência e pouco espaço paraque sejam ouvidos os envolvidos.

A lei Maria da Penha, pensadaespecialmente como forma de pre-venção e repressão da violência do-méstica e familiar contra a mulher erepleta de mecanismos para se ten-tar atingir estes objetivos, acaba sen-do moldada, na prática, à lógica pu-nitiva do Estado-penal.

A Lei Maria da Penha encontra dificuldades em implementar suas diretrizes

preventivas e educativas, assumindo um papel de intervenção pontual do Estado

por meio da lógica punitiva do direito penal.

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Marina Lopes Rossi1

“Aampliação das práticas dejustiça restaurativa é umdesafio, que pode ajudar

na construção de um novo sistema dejustiça criminal, menos punitivo, emque se busca promover a responsa-bilidade e a consciência de cada ci-dadão e não a repressão e a obe-diência”.

“Cinco estudantes moram jun-tos. Num determinado momento,um deles se arremessa contra a tele-visão e a danifica, quebrando tam-bém alguns pratos. Como reagemseus companheiros? É evidente quenenhum deles vai ficar contente.Mas, cada um, analisando o aconte-cido à sua maneira, poderá adotaruma atitude diferente. O estudantenúmero 2, furioso, diz que não quermais morar com o primeiro e fala emexpulsá-lo de casa; o estudante nú-mero 3 declara: ‘o que se tem que fa-zer é comprar uma nova televisão eoutros pratos e ele que pague’. O es-tudante número 4, traumatizadocom o que acabou de presenciar,grita: ‘ele está, evidentemente, doen-te; é preciso procurar um médico,levá-lo a um psiquiatra, etc...’. O úl-timo, enfim, sussurra: ‘a gente acha-va que se entendia bem, mas algumacoisa deve estar errada em nossa co-munidade, para permitir um gestocomo esse... Vamos juntos fazer umexame de consciência”.

A parábola acima, citada por LoukHulsman no seu livro “Penas Perdi-das”, evidencia que existem váriasmaneiras possíveis de se lidar comum conflito. No âmbito penal, porém,durante muito tempo, admitia-seapenas uma solução: o modelo re-pressivo do sistema de justiça crimi-nal, com a aplicação da pena de pri-são. O crescimento das práticas dejustiça restaurativa começa a ques-tionar este monopólio.

A justiça restaurativa propõe umanova forma de solução dos conflitospenais, com uma maior participação

das partes envolvidas. Não há entreos autores um consenso sobre a de-finição deste modelo, mas podem-secitar alguns elementos que são es-senciais para a sua caracterização: oprocesso dialogado, a participaçãodas partes e o acordo restaurador.

A grande diferença entre a justi-ça restaurativa e o processo penal tra-dicional é a existência de um diálo-go que permite alcançar um acordo.Este processo é muito positivo paraas vítimas, pois elas podem expres-sar os seus sentimentos ao seu agres-sor, o que as ajuda a superar o trau-ma do delito. Também traz benefíciospara o infrator, pois após ouvir a ví-tima ele ficaria mais consciente dodano que provocou. Este encontroajuda a romper as visões estereoti-padas e auxilia as partes a enxerga-rem o outro.

O processo dialogado permiteainda uma participação maior dacomunidade na resolução dos con-flitos, que é um valor democráticobastante deficiente no sistema penaltradicional.

Além do diálogo, por meio doqual as partes envolvidas chegam auma solução para o conflito, o resul-tado final também é importante. Oacordo restaurador tem como obje-tivo reparar simbólica e/ou mate-rialmente a vítima e permitir a rein-tegração do infrator e a restauraçãoda comunidade afetada.

É essencial, porém, o estabeleci-mento de limites para este acordo.Não se pode admitir, por exemplo,que ele tenha como objeto a execu-ção de medidas degradantes para oinfrator, pois, apesar da concordân-cia de ambas as partes, ainda há umcaráter de castigo, que deve ser limi-tado legalmente.

O Conselho da Europa elaboroualguns princípios que devem seraplicados em qualquer processo emque se permita à vítima e ao infrator,com consentimento mútuo, partici-par ativamente na solução das con-seqüências do delito, com a ajuda deum terceiro facilitador. Entre estes sepode citar: a necessidade de con-sentimento, a confidencialidade dasdiscussões e a disponibilidade damediação em todas as fases da justi-ça penal.

No Brasil há alguns projetos-pilotoque buscam implementar práticasrestaurativas, mas este modelo nãoestá institucionalizado. Foi firmadoum acordo de cooperação entre o Mi-

nistério da Justiça e o PNUD (Pro-grama das Nações Unidas para oDesenvolvimento) que objetiva pro-mover estas práticas no país.

Com o apoio das Nações Unidas,a Secretaria de Reforma do Judiciá-rio tem procurado fomentar o de-bate sobre o tema, além de contri-buir com alguns projetos-piloto jáexistentes com o objetivo de incen-tivar a replicação destas experiên-cias. Foram apoiados três projetos:na Vara da Infância e da Juventudede São Caetano do Sul-SP; na 3ªVara da Infância e da Juventude dePorto Alegre-RS e no Juizado Espe-cial Criminal do Núcleo Bandeiran-tes, em Brasília-DF.

É importante destacar que os trêsprojetos são distintos, mas todosaplicam os princípios da justiça res-taurativa. Nos dois primeiros, estessão aplicados em casos envolvendocrianças e adolescentes. Já em Bra-sília, o projeto se dirige aos crimes demenor potencial ofensivo pratica-dos por adultos.

A ampliação das práticas de justiçarestaurativa é um desafio, que podeajudar na construção de um novo sis-tema de justiça criminal, menos pu-nitivo, em que se busca promover aresponsabilidade e a consciência decada cidadão e não a repressão e aobediência.

É importante lembrar, porém,que a justiça restaurativa não é (e não

pretende ser) a panacéia de todos osmales do sistema de justiça criminale que não são todos os casos que po-dem ser resolvidos por meio destemodelo.

Trata-se de uma alternativa quepropõe um novo olhar sobre os con-flitos penais, buscando não a culpa-bilidade individual, mas o enfrenta-mento de todas as questões relativasao conflito. Procura-se não a punição,mas a responsabilização pelo danopraticado e a reparação. O foco nãoestá no passado, na ação já pratica-da, mas no futuro, no que pode serfeito para restaurar as partes envol-vidas e a comunidade.

Para a construção de um sistemade justiça justo é essencial que se pro-movam diferentes formas de soluçãodos conflitos penais. É preciso retiraros óculos da retribuição para poder

enxergar novas alternativas, que po-dem proporcionar soluções mais sa-tisfatórias para as partes e para a todaa sociedade.

Como já afirmava Hulsman, umconflito pode ser resolvido de dife-rentes maneiras e não se deve pre-tender construir um único modelopara ser imposto a todos os casos. Aocontrário, é necessário se promovere incentivar diferentes estratégiasmais compatíveis com a pluralidadee a complexidade da sociedade mo-derna.

Nesse contexto, a justiça restau-rativa surge como uma resposta pos-sível, que não destaca apenas o quehá de negativo nos conflitos penais,mas aproveita o seu potencial trans-formador e incentiva o protagonismoda comunidade na solução dos seusproblemas.

Justiça Restaurativa: uma respostapossível aos conflitos penais

O crescimento das práticas de justiça restaurativa começa

a questionar o modelo repressivo de justiça criminal.

Um conflito pode ser resolvido de

diferetes maneiras e não se deve

pretender construir um único

modelo para todos os casos.

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Pedro Ivo

No ano de 2008, foram editadasas Leis 11.689/2008,11.690/2008 e 11.719/2008,

que instituíram profundas modifi-cações, respectivamente, no Tribunaldo Júri, no regime de provas do pro-cesso penal e no procedimento penalordinário. Com pouco mais de umano da Reforma Processual Penal, in-tensas discussões têm sido travadassobre a interpretação dessas novasdisposições. No meio acadêmico,discute-se se o propósito da Reformade modernizar o processo penal,tornando-o célere, não traz o risco desacrifício aos postulados do devidoprocesso legal e da ampla defesa. Nostribunais, o dia-a-dia das varas cri-minais tem originado uma série dediscussões sobre a aplicabilidade dedispositivos das novas leis.

Um dos institutos que mais tem sidoobjeto de debates é a audiência única.A nova audiência, antes cindida em trêssessões distintas, passou a compreen-der a realização de toda a instrução pro-cessual, a realização de alegações finaisorais pelas partes e o proferimento desentença em audiência. Em razão des-sa abrangência, a audiência única temsido chamada de “superaudiência”por autores que analisaram a Reformade 2008. A proposta de uma audiênciaúnica está diretamente vinculada aoobjetivo de acelerar a tramitação dosprocessos criminais. Nesse contexto, aestratégia encontrada pela Lei paraque o processo seja célere e, ao mesmotempo, resguarde, ao menos formal-mente, o devido processo legal e aampla defesa, foi fortalecer a oralida-de. Para tanto, a Reforma não apenasrobusteceu o emprego da palavra fa-lada (alegações finais orais), como im-pôs a concentração dos atos proces-suais (audiência única) e instituiu oprincípio da identidade da física do juiz(o juiz que acompanha a instrução pro-fere a sentença). Somente com a con-fluência desses três elementos res-guarda-se a oralidade. Por outro lado,qualquer transgressão, ainda que tênue,a tais requisitos, ocasiona uma quebrairreparável da oralidade.

Pelo fato de a cisão da instrução ea substituição de juízes serem bas-tante comuns no cotidiano das varascriminais, a aplicação do rito da au-

diência única tem gerado situações.Os Tribunais têm se deparado com si-tuações em que as garantias consti-tucionais do devido processo legal eda ampla defesa impõem a inovaçãodo procedimento da audiência única.Nesse contexto, o Tribunal de Justiçado Distrito Federal – TJDFT decidiu,recentemente, em habeas corpus im-petrado pelo Núcleo de Prática Jurí-dica da Universidade de Brasília –NPJ/UnB (habeas corpus nº2009.00.2.002622-7), que, na hipóte-se de realização de diversas audiên-cias, presididas por diversos juízos di-ferentes, deve ser oportunizado àspartes o oferecimento de alegações fi-nais escritas – ainda que a Lei preve-ja de modo diverso, pelo fato de as ale-gações finais orais não se mostraremsuficientes para o resguardo da am-pla defesa. É que, no caso de quebra

da oralidade, as atas de audiência e osdemais atos documentados tornam aser a principal fonte informativa doprocesso, o que impõe, por conse-qüência, o emprego da linguagem es-crita por todos os atores envolvidos.

Em outro julgado, também de ini-ciativa do NPJ/UnB (habeas corpus nº2009.00.2.005529-1), o TJDFT enten-deu que a cisão da audiência - co-mum por razões práticas - pode serdeterminada também se estiveremsob perigo garantias constitucionais.Foi o que ocorreu na hipótese anali-sada pela Corte, em que o acusado,por ser morador de rua, não foi loca-lizado por seus advogados dativos an-tes do oferecimento da defesa preli-minar (momento em que são indi-cadas as testemunhas). O Tribunal de-cidiu por resguardar o direito do acu-sado de indicar testemunhas para

um momento posterior, ainda que aconsequência disso seja a cisão da au-diência: “o instituto da audiência unadeve ser respeitado se garantidos ospostulados de maior grandeza comoa ampla defesa e o contraditório”.

Os julgados acima citados pos-suem, em comum, o fato de teremencontrado soluções constitucionaispara dificuldades práticas na aplica-ção do instituto da audiência única.As decisões mencionadas fornecemum norte para a interpretação dos di-nâmicos institutos da Reforma de2008. Nas hipóteses em que a obser-vância das novas disposições legaisfavorecer tão somente o projeto deceleridade e deixar de atender aodevido processo legal e à ampla de-fesa, adaptações são necessárias,ainda que, em algumas hipóteses,contra a literalidade da Lei.

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A audiência única no processo penalRicardo Luiz Barbosa de Sampaio Zagallo

“Ao afirmar que o ideal de-mocrático é o cidadão res-ponsável, e não o obedien-

te, o satyagraha de Gandhi nos per-mite enxergar o conflito como ele-mento estruturador da própria vidasocial e a não-violência como uma vi-tória em si, independente do resul-tado alcançado”.

Resultado da união dos termossânscritos satya (verdade) e agraha(firmeza), a palavra satyagraha fi-cou nacionalmente conhecida comoo nome dado à operação da PolíciaFederal que, em julho de 2008, pren-deu o banqueiro Daniel Dantas, omegainvestidor Naji Nahas e o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta,entre outros, sob a suspeita de en-volvimento em crimes financeiros ecasos de corrupção. Não obstante ocontexto em que empregado, a ori-gem do conceito em nada diz com arepressão ou o uso das prisões comomeio de se alcançar determinadosfins. Pelo contrário, está em polodiametralmente oposto.

Seu desenvolvimento deve-se aMahatma Gandhi e está ligado aomodo não violento de vida. ParaGandhi, o objetivo da vida deve sera busca pela verdade, entendidacomo “voz da consciência” e exis-tente em todas as pessoas. Dissodecorrem duas premissas caras aosatyagraha: o homem deve ele pró-prio promulgar as leis que orientemseus pensamentos, palavras e ações,o que implica tanto na possibilida-de de incorrer em erros como tam-bém corrigi-los quantas vezes fornecessário. Essa autonomia é fun-damental na busca do justo, pois émaior o risco daquele que obedececegamente a uma autoridade exteriorpersistir no erro do que quem pen-sa por si. O indivíduo que busca averdade deve convencer-se tambémque esse é um caminho sem fim, e averdade será sempre fragmentária,parcial e imperfeita. Logo, o homemnão deve nunca tentar impor sua ver-dade aos outros, imperativo que ele-va a tolerância à regra de ouro daconduta humana.

Por essa razão, a verdade se en-

contra na relação com o outro, no res-peito às suas concepções, tomando-se o cuidado de evitar qualquer ati-tude violenta contra ele. Nessa saga,a não-violência é o meio e a verdadeo fim, e o essencial não é ter razão,mas ser bom.

Isso não significa, no entanto,que o homem não-violento devaser omisso e covarde. Para Gandhi,a necessidade de forçar o adversá-rio a reconhecer as exigências dajustiça não justifica todos os meios.A não-violência é mais efetiva naluta contra o mal do que a lei de ta-lião, que ao usar de violência só fazaumentar a perversidade. As práti-cas não-violentas de Gandhi ficarammundialmente conhecidas durantea campanha pela libertação colonialda Índia nas décadas de 1930 e1940, quando estratégias de resis-tência passiva e não cooperaçãoforam utilizadas buscando fins po-líticos, baseadas na constataçãoque a maior força do império bri-tânico não estava nos fuzis ou nonúmero de soldados, mas na capa-cidade de resignação e cooperaçãovoluntária do povo indiano. Em 12de março de 1930, no que ficou co-

nhecido como “A marcha do sal”,Gandhi e mais setenta e nove com-panheiros deixaram a cidade deAhmedabad numa caminhada de390km até o povoado de Dandi, nacosta do oceano Índico, pregando o“dever de deslealdade” para com umgoverno de leis desumanas que seapoiava na exploração de milhõesde indianos. Chegando ao destino,com um punhado de sal apanhadoda praia na mão, conclamou seusconterrâneos a abertamente deso-bedecerem à lei que obrigava ao pa-gamento do imposto sobre o salaté que a Índia e seu povo se tor-nassem independentes. Em agostode 1947 a Índia finalmente se livroudo julgo britânico, sem a necessi-dade de qualquer levante armado.

Mas o que a filosofia e as práticasnão-violentas podem ter a ver com oDireito? Afinal, segundo a teoria clás-sica, o Estado é o detentor do mo-nopólio da violência legítima e o Di-reito o regulador do seu uso, neces-sário quando determinadas práti-cas colocarem em risco o próprioconvívio social. Certamente não se-ria realista conceber uma sociedadesem um governo ao qual se reco-

nheça o direito e os meios de coagiros cidadãos.

Todavia, a sociedade brasileiradesta primeira década do Séc. XXI vê-se imersa numa espiral aparente-mente sem fim de violências, fruto deséculos de iniquidades e cultura au-toritária, para a qual a resposta ha-bitual tem sido o incremento do po-der punitivo estatal, numa lógica demeios e fins em que a violência co-metida hoje contribuiria para umalongínqua e incerta paz. Estariam jus-tificados assim os sofrimentos e asrestrições a direitos.

Ao afirmar que o ideal democrá-tico é o cidadão responsável, e não oobediente, o satyagraha de Gandhinos permite enxergar o conflito comoelemento estruturador da própriavida social e a não-violência comouma vitória em si, independente doresultado alcançado. Trata-se de es-tabelecer um Estado de Direito no ci-vismo dos cidadãos que voluntaria-mente renunciam à violência, e nãona repressão de governo. Somenteentão, em uma dinâmica da não-vio-lência, será possível falar efetiva-mente em uma economia da violên-cia e em Direito Penal mínimo.

Dos grilhões ao satyagraha

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ENTREVISTA COM A PROFESSORA ELA WIECKO qual o instrumento adequado paraser utilizado, se civil ou penal. Nestesentido eram importantes os JuizadosInterdisciplinares. Foi difícil na tra-mitação da proposta no Congressoque essa complexidade fosse com-preendida, daí porque a propostainicial foi modificada. Também o Ju-diciário não conseguiu compreenderainda a aplicação dessas dimensõescomplexas para enfrentar o proble-ma. Em razão disso, hoje prevalece alógica criminal. Então, houve simmais criminalização.

Para que se consiga romper esse ci-clo de violência é preciso reconhecerque se trata de violência de gênero.Mais de 90% dos casos de violênciadoméstica é praticada por homenscontra mulheres. Essa situação foiobservada e estudada, daí concluímosque para combater esse quadro épreciso ação afirmativa. Então, a leinão é inconstitucional e não fere oprincípio da isonomia. Os homens po-dem reivindicar as medidas protetivas– e o juiz pode e deve decidir basea-do no seu poder geral de cautela.

Quanto à retratação, ela tem queser feita em audiência. A idéia, apartir de uma experiência daqui doDF, era de que a retratação fosse se-gura e que não ocorresse em decor-rência de constrangimento à mu-lher. A polêmica se dá nos crimes delesão corporal leve em que a ação eracondicionada à representação pelaLei 9.099/95. A LMP mudou o pro-cedimento para ação penal públicaincondicionada. Isto é polêmico paranós feministas e também foi no pro-cesso legislativo. Existem duas li-nhas de entendimento: a primeira éde que não se deve tratar as mulhe-res como “vítimas”, mas como pes-soas que se encontram em situaçãode violência, devendo ser fortalecidoseu direito à autonomia e à liberda-de; a segunda corrente entende quea mulher ainda está dominada pelaestrutura de uma sociedade ma-chista, e o Estado, de certa forma, ain-da deve “protegê-la”. No entanto,chegamos a um consenso de queno Brasil deveria prevalecer a açãopenal pública incondicionada, porcausa da condição dominante devulnerabilidade ainda vivida pelamulher. Assim, a tutela gera uma si-tuação de equilíbrio.

No Poder Judiciário, essa polê-mica encobre um discurso baseadona defesa da família, na tentativa demanter a harmonia familiar, mesmo

que impondo sacrifício às mulheres.Por uma questão de coerência, amedida protetiva só se justifica pelasituação vulnerável, mas é preciso es-tar atenta a um discurso em defesa daautonomia das mulheres.

Qual é a sua opinião sobre osimpactos atuais do PRONASCI e a or-ganização da Conferência Nacionalde Segurança Pública (CONSEG)?

Estou vendo com muito entu-siasmo a CONSEG; a questão dasconferências livres é um avanço nadiscussão. Por outro lado, tenhopreocupação pois a maioria das pes-soas que vão participar são da polí-cia. O próprio Ministério Públiconão se articulou com a devida ante-cedência e terá um espaço mínimona Conferência. A visão mais repres-siva deve prevalecer; faltam policiaisque tenham uma visão mais huma-nista da questão da segurança pú-blica e com um trabalho interdisci-plinar. A concepção do PRONASCI éótima. A política de segurança pú-blica deve ser conjugada a outras,como saúde, educação, etc. Recen-temente, ouvi de pessoas atuantesnas favelas do Rio de Janeiro, que nãosão da área de segurança pública, queos projetos do PRONASCI já conse-guiram bons resultados. Acho que o

caminho é este mesmo: mostrar apresença do Estado não apenas pelapolícia, mas com outros setores tam-bém. Isso evidentemente leva tempoe também não podemos nos esque-cer de que há uma “indústria do cri-me” por trás disso tudo, à qual inte-ressa vender produtos e não investirem segurança pública.

Algumas iniciativas estatais temtomado uma forma repressiva fortecontra Movimentos Sociais. Há umacriminalização dos movimentos?

Não acho exagerada a expressãocriminalização dos movimentos so-ciais. É o que está acontecendo, nãosó no Brasil. Trata-se de um fenô-meno global, expressivo na AméricaLatina, e que decorre de um conflitoideológico. Os movimentos sociaisquerem a implementação de direitossociais como o acesso à terra, à edu-cação, à comunicação, à liberdade. OEstado cria óbices muito fortes, comoé o caso das rádios comunitáriasque não têm regulamentação. As es-truturas de poder usam a lei mais for-te, que define infrações penais e ad-ministrativas, para punir as condutas.Sabemos que em alguns casos osmovimentos sociais infringem a lei,e por isso mesmos fica difícil para oMinistério Público não atuar. Mas há

uma tendência de usar a forma maisgravosa para as condutas dos movi-mentos, a fim de evitar que aconte-ça a alteração da realidade que elespretendem. É preciso lembrar que alei penal como é conservadora é fei-ta para punir. No caso das mulheres,por exemplo, há repressão quando sepretende designar a ocorrência deapologia ao crime em eventos que naverdade orientam e auxiliam a im-plementação dos casos de abortolegal nos serviços públicos.

A revolução que está em anda-mento hoje no mundo é aquela fei-ta através do direito, por isso pres-siona-se pela implementação dosainda não-realizados.

Como a senhora se posiciona so-bre a ocupação dos espaços públicose políticos pelas mulheres? O que di-ficulta estar nos espaços de poder edecisão?

No espaço político a defasagem émais grave e não corresponde à per-centagem das mulheres na popula-ção. No Ministério Público Federal, semantém, há mais de 10 anos, apenasem torno de 30% de mulheres. No Ju-diciário tem aumentado mais a pre-sença feminina. Mas os concursospúblicos para determinadas carreirassão muito difíceis. Exigem tempo depreparação e isso é mais difícil paraas mulheres. A exigência ou as prio-ridades familiares, dos companheiros,dos filhos - cujos cuidados predo-minantes são dispensados pelas mu-lheres - afetam as mulheres queacabam deixando seus estudos parasegundo plano. Além disso, no inícioda carreira normalmente é necessá-rio permanecer no interior do país, oque é bastante complicado tambémpara elas. A verdade é que as mulhe-res assumem mais que os homens oscompromissos familiares. Elas vãoentrando pelas beiradas, ocupandocargos que são considerados como ti-picamente femininos. A discrimina-ção enfim ainda permanece.

As coisas vão mudando. Temosmulheres onde antes não havia.Aparentemente houve avanço, masse for analisado, mesmo quandoelas estão em altos cargos, depen-dem de uma rede masculina que dásustentação naquele espaço e elasprecisam precisam fazer conces-sões. As etapas para se chegar aoscargos de destaque são dominadaspor homens. O masculino não per-deu o controle ainda.

Reforma penal, lei Maria da Penha esegurança pública: (im)possibilidades

para uma justiça criminal

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | AGOSTO DE 2009 UnB – SindjusDF | 13

Carolina Ferreira, Eneida Dutra e Noemia Porto

Considerando as possibilidadesde alterações legislativas ao CódigoPenal (PL 1069/95 entre outros), es-pecialmente na parte dos crimescontra os costumes, a senhora con-sidera que tais iniciativas atendemà expectativa de atualização? E emque medida?

A chamada reforma do CódigoPenal não tem acontecido de formasistemática, há vários projetos deleis ao mesmo tempo. Foram criadasduas comissões de especialistas, ins-tituídas pelo Ministério da Justiçapara apresentarem proposta de re-visão do CP. A Comissão Especial de1998 se dedicou a rever a parte es-pecial, da qual participei como úni-ca mulher. Logo foi abandonada aidéia de se fazer mudanças no siste-ma de penas, por exemplo, modifi-cando em alguns tipos previstos compena privativa de liberdade parapena substitutiva. Isso exigiria umgrande esforço de revisão geral. Acompreensão era de que a socieda-de veria tais modificações como um“afrouxamento” do sistema. Esse já foium sinal de que não conseguiríamosfazer uma verdadeira reforma. Paramexer nos crimes da parte especialera preciso enfrentar questões polê-micas, a exemplo do crime de abor-to, a eutanásia. Havia muita pressãode setores da sociedade, nestes casos,das igrejas. A Comissão decidiu nãoexcluir o crime de aborto, mas deli-berou por ampliar as hipóteses dochamado aborto legal. Na segundaComissão, conseguimos propor amudança do nome do título dos cri-mes contra os costumes, para chamá-los de crimes contra a dignidade se-xual. Ainda queríamos que esse títu-lo compusesse a parte dos crimes

contra a pessoa, mas isso tambémnão foi adiante. A proposta aparen-tava ser mais uma “maquiagem” doque verdadeira reforma.

Há um aspecto interessante da-quele período, o então Ministro Cer-nichiaro do STJ conversava bastantecom a imprensa sobre os trabalhos dacomissão, na tentativa de abrir e pu-blicizar o debate e receber sugestõesda sociedade. Eram enviadas cor-respondências para universidades,pois na época ainda não se tinhamdisponíveis meios tecnológicos de co-municação. Recebemos diversas con-tribuições do movimento feminista,articulado pelo Conselho Nacional deDireitos da Mulher. Como era a úni-ca mulher, é como se eu pudesse sera voz do movimento feminista. Po-rém, nós que estudamos Criminolo-gia Crítica não acreditamos nos au-mentos de penas, na excessiva cri-minalização. Senti certa dificuldadeem dialogar, pois os movimentos demulheres pretendiam descriminali-zar o crime de aborto, mas crimina-lizar, de forma mais pesada, outroscrimes sexuais.

Concluídos os trabalhos, o proje-to foi encaminhado para o Ministroda Justiça e de lá seguiu para a CasaCivil, de onde não mais saiu. Váriosprojetos de lei posteriores foramapresentados tendo como ponto departida discussões e estudos realiza-dos pela comissão. É muito difícil noBrasil realizar uma reforma totalcomo a que já aconteceu em outrospaíses, em razão da diversidade cul-tural e da profunda desigualdade.Para enfrentar questões polêmicas eter discussão ampla vai demorarmuito tempo. Cada ano ao sair umanova lei, temos um fatiamento quefaz com que se perca a idéia de sis-tema penal em que se distingue o queé mais ou menos grave. Observa-se

também que a criminalização decondutas não acontece mais de den-tro para fora, isto é, da sociedade parao legislador. Há modelos conven-cionados internacionalmente, comoé o caso da lei da lavagem de dinheiro,do crime organizado, do enfrenta-mento ao terrorismo. Quando se fazalterações parciais, ou a partir deconsensos particularizados, a socie-dade perde a visão do conjunto, o queaprofunda ainda mais a injustiçaque o sistema representa.

Fazendo um balanço dos 3 anosda Lei Maria da Penha-LMP, na suaaplicação prática, houve criminali-zação de condutas? Na sua observa-ção, a lei gerou um empoderamen-to das mulheres? Quanto à desis-tência da denúncia pela mulher noscasos de lesão leve, qual sua opinião?

É difícil fazer um balanço porquenão temos coleta de dados padroni-zada que permita uma análise. NoDistrito Federal talvez fosse possívelrealizar este balanço, então, na dis-ciplina do Mestrado em Direito daUnB as pesquisas se dirigiram para abusca destes dados nas delegacias,para se saber como estavam rece-bendo as mulheres que sofriam vio-lência doméstica. Descobriu-se jus-tamente que não há dados disponí-

veis que torne possível uma compa-ração com a fase anterior. É verdadeque há uma discussão pública maiorsobre o tema da violência doméstica,mas se a lei está proporcionandoum aumento das denúncias e dimi-nuindo os casos por causa da apli-cação de medidas que ela estabele-ce, não sabemos com certeza. O Gru-po Candango de Criminologia quefunciona no Núcleo de Prática Jurí-dica – NPJ da UnB começou a atuarem 2007/2008 com atendimentosjurídicos às mulheres vítimas de vio-lência doméstica. Em 2009, os aten-dimentos passaram a ser jurídicos epsicológicos. Este novo formato foianalisado no trabalho de monogra-fia de uma aluna da graduação daUnB, Sarah Raquel, que estudou e re-latou três casos de atendimentos noNúcleo. Nos casos estudados, a par-tir do atendimento interdisciplinar, asmulheres ficaram mais empoderadase não têm mais medo.

Essa lei decorreu de uma propos-ta apresentada por mulheres à Se-cretaria de Política para as Mulheresda Presidência da República-SPM.Não se queria aumento de tipos-cri-me, mas sim a existência de umaequipe interdisciplinar que estaria ha-bilitada a escolher, com a vítima daviolência doméstica, em cada caso,

Os movimentos sociais querem a implementação dedireitos sociais como o acesso à terra, à educação, àcomunicação, à liberdade. Mas há uma tendência de

usar a forma mais gravosa para conter osmovimentos, a fim de evitar que aconteça aalteração da realidade que eles pretendem.

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A feminilidade encarceradaLuciana Ramos

Osistema penitenciário brasi-leiro é titular de muitas vio-lações aos direitos humanos,

no que tange as mulheres presas o ce-nário é pior, pois a múltipla puniçãodada às mulheres por “agirem comohomens” é mais cruel. Abandono dafamília, marido e filhos, bem como aimpossibilidade de serem mulheres– não garantia da visita íntima, im-possibilidade de permanência com fi-lhos nascidos no cárcere – são algu-mas das punições sofridas, para alémda pena.

Embora o número de mulherespresas no Brasil seja diminuto fren-te ao número total de presos 308.786(houve um aumento de 135% da po-pulação feminina) 1, a situação car-cerária dessas mulheres revela o graude discriminação e de criminalizaçãopelo qual vivem.

O sistema penitenciário brasilei-ro abriga, aproximadamente, umapopulação carcerária feminina de14.058 (4,55%) mulheres, sendo que6.522 (25%) estão em delegacias pú-blicas, contra apenas 13% dos ho-mens, o que demonstra falta de po-lítica penitenciária voltada especifi-camente para as mulheres encarce-radas.

As mulheres presas no Brasil hojesão jovens, mães solteiras, afro-des-cendentes e, majoritariamente, con-denadas por tráfico de drogas. Quan-do presas, são abandonadas pela fa-mília, sem garantia do direito a visi-ta íntima e de permanecerem com osfilhos nascidos no cárcere, o que de-monstra a dupla (múltipla) puniçãoda mulher, quer pelo sistema penal,quer pela sociedade.

Assim, quando a mulher é encar-cerada as conseqüências são de di-versas ordens. Não repercutem ape-nas na pessoa da detenta, mas atin-gem os núcleos familiares, comuni-tários e sociais; repercutem de formaespecífica nos filhos: crianças e ado-lescentes.

Conseqüências da criminaliza-ção feminina no cárcere

As mulheres são tratadas maisseveramente que os homens e tam-

bém são duplamente condenadas: le-galmente, por infringirem a lei, e so-cialmente, por serem consideradasbiológica e sexualmente anormais(quando delinqüem). Os motivosbiológicos que se costumam apre-sentar para a baixa criminalidadefeminina é relacionada a sua “natu-ral” docilidade e passividade decor-rentes da “imobilidade dos óvulos”.

Desse modo, quando as infraçõesse realizam em um contexto diferentedaquele imposto pelos papéis femi-ninos, as infratoras são tratadas maisseveramente que os homens. Com amudança no perfil da “delinqüência”feminina, conseqüentemente, dostipos penais, aumentam as formas depunição e de controle, pois elas nãoapenas infringem regras sancionadaspenalmente, mas, sobretudo, ofen-dem a construção dos papéis de gê-nero, pois se “comportam como ho-mens”.

Verifica-se diante dos dados apre-

sentados que o sistema carcerárionão foi pensado para as mulheres atéporque o sistema de controle dirigi-do exclusivamente ao sexo femininosempre se deu na esfera privada. O di-reito penal foi constituído visando oshomens enquanto operadores depapéis na esfera (pública) da produ-ção material.

O perfil do encarceramento fe-minino, detalhado acima, demonstraclaramente a desigualdade de gêne-ro, não só na aplicação da pena (to-das as esferas da execução penal),bem como na não concretização dedireitos básicos às detentas.

Toda forma de amor é puniçãodentro do cárcere: Direitos sexuais ereprodutivos nós também temos!

Discutir os direitos sexuais ereprodutivos é falar não só do direi-to de decidir quando e como ter fi-lhos, mas também do direito de es-colher com quem manter relações se-xuais e quando. A efetivação desses

direitos passa pela garantia de aces-so aos serviços de saúde da mulher.

A desigualdade entre gêneros sefaz de forma perversa na privação se-xual imposta às mulheres presas, ouseja, de maneira mais contundente einflexível que para os homens presos.Poucas unidades prisionais femininasadmitem a visita íntima, constata oRelatório do Grupo de Trabalho In-terministerial, coordenado pela Se-cretaria de Política para as Mulheres,quer sob a alegação de evitar a gra-videz – o que geraria maiores atri-buições aos servidores penitenciáriose necessidade de adequação dos es-tabelecimentos -, quer pelo baixoíndice de visitas dos companheiros.

Percebe-se a violação ao direito se-xual da mulher sob duas vertentes: naindividual, pela restrição à liberdade,privacidade, intimidade e autonomia,ou seja, ao livre exercício da sexuali-dade e da reprodução, sem qual-quer discriminação, coerção ou vio-

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lência. Sob a dimensão coletiva, naausência de políticas públicas que as-segurem a concretização desses di-reitos, como acesso à informaçãoem educação sexual e reprodutiva,discussão e oferta de métodos con-traceptivos, prevenção à violência degênero.

Em muitas unidades prisionaisfemininas, as mulheres são punidasquando flagradas tendo relações ho-mossexuais. A negação de visitas ín-timas e de relacionamentos dentro docárcere representa de forma muitopeculiar a discriminação de gênero.

A negação do direito de visita ín-tima impossibilita também à mulhero direito de escolher engravidar, deser mãe, e aqui se observa outras con-seqüências da violação ao direito deexercer a maternidade. Recente-mente fora aprovada a Lei nº11.942/09 que determina que as pe-nitenciárias de mulheres sejam do-tadas de seção para gestantes e par-turientes e de creches para os me-nores cuja responsável esteja presa.

Apesar de existir desde 2003 oPlano Nacional de Saúde no SistemaPenitenciário, que objetiva organizaro acesso das populações privadasde liberdade sob a tutela do estadonas ações e serviços de saúde doSistema Único de Saúde – SUS, deforma integral, era urgente a regula-mentação da situação das mulheresno cárcere.

Desta forma a referida lei está emperfeita sintonia com o relatório finalapresentado pelo Grupo de TrabalhoInterministerial instituído em 2007com a finalidade de elaborar pro-postas para a reorganização e refor-mulação do Sistema Prisional Femi-nino, bem como concretiza o PlanoNacional de Saúde no Sistema Peni-tenciário.

Um novo olhar para o encarcera-mento feminino pautado na questãode gênero, respeitando as mulheressob suas diversas faces, e garantindoa ela resignificar seu tempo na prisãoe possibilitar novas expectativas paraalém da criminalidade, faz-se ur-gente, pois a violência institucionalsó reproduz a violência estruturaldas relações sociais patriarcais e deopressão.

As mulheres encarceradas sofrem com dupla (múltipla) punição, seja pela pena,

seja pela ausência de políticas penitenciárias.

OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

Na sutileza da perversão de um sistema presidiário,que desrespeita o homem preso, que parcela cabe às

mulheres presas, que são obrigadas ao uso de uniformesemelhante ao deles? Calças compridas, sempre. Nadade uso de saias! Nada de olhar-se no espelho e ver-semulher, quiçá ter desejos. Nada de “estereótipos” femi-ninos. Nada de sonhos, de auto conhecimento como ser

humano e ser mulher.

(Dora Martins, Juíza de Direito do Estado de São Paulo)

Site de acesso ao Relatório da CPI do sistema carcerário:http://pfdc. pgr.mpf.gov. br/grupos- de-trabalho/ sistema-prisiona l/CPIsistemacarc erario.pdf/ view

1Dados de 2006 apresentados no Relatório Final do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) sobre“Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino”, Brasília: Dezembro/2007. Dados re-tirados do INFOPEN

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Vinicius Machado

Cada caso é um caso e o sensocomum não contraria essamáxima. Cada fato social car-

rega consigo um sem-número devetores, de particularidades e de pos-sibilidades. Cada indivíduo é umcosmos próprio e, por isso, as tenta-tivas de sua redução a uma categoriapodem até satisfazer a tentação de sesimplificar a compreensão desse ser,mas também o mutilam. Diante daatual prática judicial, esse sujeito édestituído de suas singularidadespara se tornar um dado analisável,num contexto em que a prioridade éconferida mais ao processo de exameque ao indivíduo.

Assim se dá a atuação do sistemade justiça criminal que, antes de cui-dar de específicos conflitos sociais ede sujeitos únicos, enquadra-os emmódulos para os quais já há respos-tas prontas. Nesse programa, tais in-divíduos devem se ajustar à mecâni-ca judicial e não o contrário. Assim,como resultado de uma produção emsérie de condenados, a sentença re-presenta hoje o êxito dessa perspec-tiva reducionista do sistema de jus-tiça criminal. Para chegar a esse es-tágio da ação excludente da máqui-na judiciária, o indivíduo já foi mar-cado com o estigma de criminoso ejá foi selecionado, diante de tantosoutros indivíduos que praticam con-dutas criminalizadas. Como mo-mento crucial da atividade punitiva,a sentença condenatória resume a es-tratégia de quantificação, massifi-cação e exclusão do sujeito.

Em pesquisa feita com sentençascriminais condenatórias proferidasno Distrito Federal nos anos de 2006e 2007, impressionou a capacidadetecnológica desenvolvida pelos jul-gadores ao redigirem suas sentenças.Os textos já estão prontos antes mes-mo de o caso ser submetido a julga-mento, fenômeno que não é exclusi-vo da justiça criminal, esfera em que,entretanto, seus efeitos são ainda

mais ofensivos ao direito de defesa doréu. Tal prática mecanizada se tornamais fácil quando se constata quemais da metade (53%) da atividadejudicial penal – à exceção dos crimesjulgados nos Juizados Especiais Cri-minais – dedica-se a perseguir auto-res de apenas três comportamentoscriminalizados: roubo, furto e porteilegal de arma de fogo. Isso mesmo:dos incontáveis tipos penais referidosna legislação brasileira, apenas trêsdeles concentram o foco da perse-cução penal. Seria coincidência ofato de que comportamentos ordi-nariamente atribuíveis a setores so-ciais marginalizados da sociedadeconstituam o principal objeto daatuação repressora do Estado? Ora, seos crimes são basicamente os mes-mos, os casos em análise se asseme-lham e, principalmente, os crimi-nosos fazem parte do mesmo redu-to “homogeneizado” da sociedade, oato de decidir se transforma na au-tomatizada tarefa de preencher la-cunas no texto pronto da sentençacondenatória. O sujeito acaba sendoapenas uma peça acessória do gran-de maquinário de produção de con-denações.

Para indivíduos sem rosto sob a vi-são judicial, oferece-se uma senten-ça condenatória que mais pareceum resultado de exame laboratorialautomatizado. Isso porque o relato dadecisão também trata do grau deanormalidade de um sujeito que, jáde forma abstrata, atenta contra a or-dem social. São maçãs podres, seresdoentes que atraem a necessidade deextirpação do que é mal. Assim, de-vidamente categorizados, distin-guem-se entre si apenas pela quali-ficação jurídica dada no processo:nome, idade, filiação, endereço. Bas-ta então buscar um modelo de sen-tença, mudar o nome do réu, o nú-mero do processo, a data. Está pron-ta a decisão condenatória que irá de-finir o direito de liberdade do indiví-duo, cujo futuro será o mesmo de ou-tros sujeitos sobre os quais a tecno-logia judicial já tenha testado sua efi-ciência.

Ampla defesa? Contraditório?Como exercer plenamente tais di-reitos se o discurso judicial da sen-tença trata de um ser abstrato e es-quece a concretude do indivíduoque está sendo julgado? Não hácomo contrapor argumentos quenão enfocam o caso específico, masque apenas se traduzem em formu-

lações genéricas sobre gravidade docrime e necessidade de repreensãoda conduta, tudo em forma de ter-mos técnicos que pretensamentejustificam a si mesmos. É o sucessodos jargões.

Já que os fatos e as teses podemser padronizados, os indivíduos tam-bém podem. A sinistra figura do “ho-mem médio” continua se reprodu-zindo no ideário dos juízes, ainda quese repagine em definições como “ci-dadão de bem” e similares. O “ho-mem médio” é uma entidade exem-plar, correta, ideal e falsa. É um enteabstrato que, na percepção judicial,regula a medida da ação humanacontrária à lei penal. Qual é a refe-rência para se definir o comporta-mento padrão de um ser fantasiosocomo o “homem médio”? Surge daía possibilidade de o juiz fazer pre-dominar seu próprio código de con-duta, informal, associando-o ao có-digo legal de punição. O preceito detolerância a determinada prática sefixa nas particulares concepções domagistrado, de acordo com um có-digo punitivo paralelo, um secondcode. O “homem médio” acaba se re-velando na figura do julgador quesentencia naquele caso. Diante de umindivíduo marginalizado, não há em-patia por parte de um magistrado quenão se identifica com aquela reali-dade que lhe é tão distante. Para umser humano de categoria inferior,um semicidadão, não é necessário sedeter em análises detalhadas acercade sua conduta. É suficiente que, nasentença, proceda-se ao copiar e co-lar do discurso judicial corriqueiroacerca da marginalidade, com direi-to a bastantes termos técnico-jurí-dicos e a alusões cerimoniosas a en-tendimentos de tribunais. Em se-guida, aplica-se a pena.

Após conhecer o veredicto de suacondenação, o indivíduo recebe apena correspondente à conduta cri-minalizada por si praticada. É o mo-mento da individualização judicial dapena, um direito fundamental se-gundo o qual a sanção penal deve serparticularizada para aquele específicocaso e para aquele específico sujeito.Todavia, a mesma compreensão mas-sificada que se desenvolveu na aná-lise da autoria e da materialidade docrime também repercute na fase deindividualização. Valendo-se de mi-nuciosos critérios legais de cálculo dapena, ao juiz é conferida a prerroga-tiva de avaliar a punição adequada se-

gundo sua própria convicção. As-sim, ao examinar questões como cir-cunstâncias e consequências do cri-me, grau de culpabilidade, perso-nalidade do agente, antecedentes econduta social, o magistrado dispõede ampla margem para aferir a con-duta criminalizada e, principalmen-te, para investigar o ser do indivíduo“delinquente”, uma vez mais, de acor-do com o regramento de seu códigode valores. Mas o cálculo da pena aca-ba por também não ser individuali-zado. Ao contrário, as análises acer-ca da essência do condenado e docomportamento criminalizado se re-petem entre casos distintos. Por isso,mesmo na fase de individualização dapena, o argumento também é robo-tizado, vazio e genérico, os jargões ju-rídicos transbordam e o resultado daequação é o mesmo. Antes de se re-ferir ao indivíduo concreto, a priori-dade é dada à manutenção da me-cânica retórica das sentenças crimi-nais condenatórias.

Pode-se creditar essa situação ao

pragmatismo, ao volume de proces-sos que abarrotam os gabinetes dejuízes, tirando-lhes a capacidade dese deterem a cada caso, ou à merapreguiça. De qualquer forma, o fatoé que a ampla defesa, o contraditó-rio e a individualização da pena setornam direitos fundamentais piso-teados por uma atividade judicialque se preocupa mais com a repro-dução de sua tecnologia da puniçãodo que com a vida humana que estáem julgamento.

Contra esse cenário de devastaçãode direitos, é imprescindível que seconfira à humanidade do sujeito aprioridade que lhe é devida. Umolhar mais preocupado em com-preender o contexto do indivíduopode ser o primeiro passo para ame-nizar os efeitos de uma prática puni-tiva tão reducionista e mutiladora. Ne-nhum método, cálculo ou engessa-mento mecânico de sentenças podeser mais importante que o destino deum ser humano prestes a ter seu di-reito de liberdade restringido.

Nenhum método, cálculo ou engessamento mecânico

de sentenças pode ser mais importante que o destino

de um ser humano prestes a ter seu direito

de liberdade restringido.

OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

A cruel mecânica das sentençascriminais condenatórias

Ora, se os crimes são basicamente os mesmos, os casos em análise se assemelhame, principalmente, os criminosos fazem parte do mesmo reduto “homogeneizado” da

sociedade, o ato de decidir se transforma na automatizada tarefa de preencherlacunas no texto pronto da sentença condenatória. O sujeito acaba sendo apenas uma

peça acessória do grande maquinário de produção de condenações.

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acordo com as conclusões apresen-tadas, parece haver uma lacuna en-tre as previsões formais de direitos ea experiência concreta e diária do sis-tema penal. Um exemplo - em menosde 12% dos processos de furto ana-lisados pelos pesquisadores houve in-terposição de recurso. Isso significaque na quase totalidade dos casos fo-ram descartadas eventuais oportu-nidades de o réu condenado vir a serabsolvido ou ter a pena condenató-ria suavizada. Além disso, segundodados levantados pela pesquisa, réusnão assistidos por advogados parti-culares foram condenados, em mé-dia, a maiores períodos de encarce-ramento quando comparados com osréus representados por advogadosparticulares. Este último grupo teveprisões provisórias decretadas por pe-ríodos mais breves e os condenadosforam sentenciados a regimes maisbrandos. A situação é especialmen-te preocupante quando se tem notí-cia de que mais de 90% dos acusadosde furto não foram defendidos poradvogados particulares e, no casodos acusados de roubo, o índice é su-perior a 70%. Não se pode falar empleno gozo do direito de defesa dian-te desse quadro.

Acerca da prisão cautelar, foi ob-servado que a prática tem sido regra,a despeito da excepcionalidade quea legislação lhe atribui. A maioria ab-soluta dos réus de furto e de roubo épresa antes de ser julgada. Quasemetade dos réus de roubo é presa emrazão de flagrante. No caso de réus defurto, esse motivo leva ao encarce-ramento provisório de 75% deles.Essa distorção viola o princípio dapresunção de inocência, uma vezque finda por encarcerar por perío-dos muito longos acusados não sen-tenciados. O sistema age em relaçãoao suspeito como se sobre ele pesassepresunção de culpabilidade. Na ver-dade, o que se observou é que o sis-tema penal não consegue oferecer àsociedade e à vítima outra respostasenão a prisão provisória do suspei-to pela prática do furto ou roubo. Ele-mentos como a falta de estruturaçãoda agência judiciária, a prescrição dapretensão punitiva, a demora pro-longada para a prolação da sentençaou mesmo a não execução da sen-tença condenatória contribuem paraesse quadro de uso abusivo da prisãoprovisória.

O direito à igualdade, garantidopela Lei Maior, também parece ca-

recer de efetividade material. A Pes-quisa Distrital por Amostra de Do-micílios – 2004 divulgou que 56,61%da população do Distrito Federal écomposta por pessoas pardas e pre-tas. Nos casos de furto e roubo ana-lisados, aproximadamente 74% dosréus eram pretos e pardos. Logo, soainapropriado afirmar que a lei penalé igual para todos diante de dadosque indicam a sobre-representaçãoda população negra dentre a popu-lação criminalizada nos processos es-tudados. O perfil de réu mais comu-mente encontrado foi do homemnegro, jovem e desempregado.

Outro ponto de relevância dis-cutido durante o evento foi a de-pendência estabelecida entre a gra-vidade do regime da pena e os índi-ces de reincidência. A relação é di-retamente proporcional – quantomais grave a pena aplicada, maior éo índice de reincidência. Mais dametade dos réus que cumprirampena em regime fechado reincidi-ram. Foi o mais alto índice registra-do. Em contraposição, o menor ín-dice de reincidência (24,2%) foiapresentado pelos réus que tive-ram suspensão condicional do pro-cesso, a mais branda das penas. Osdados parecem indicar, portanto,que a pena de prisão contribui paraa permanência da criminalidade. Odiscurso dos réus ouvidos durante apesquisa vem ao encontro dos nú-meros apresentados nas estatísticas.Em relação aos que cumpriram pe-nas restritivas de direitos, a fala dosréus que foram efetivamente presosé mais intensamente marcada pelosimpactos negativos da condenaçãono convívio social, para conseguiremprego e para a vivência familiar.Esse quadro parece indicar que a pri-são, como primeira medida puniti-va, precisa ser repensada.

Mas a discussão não girou so-mente em torno dos réus. As vítimasdos casos analisados também foramouvidas. E manifestaram bastanteinsatisfação com o rumo do proces-so penal. Isso porque, ao noticiar o

furto ou o roubo, as vítimas espera-vam, sobretudo, a reparação dos da-nos que sofreram. Essa resposta,contudo, não é oferecida pelo siste-ma penal, que, no máximo, condenao acusado à prisão. Mesmo nas hi-póteses em que a legislação proces-sual penal previa como possível a re-paração dos danos, principal de-manda das vítimas, a condição foieleita em apenas 3,17% dos casos. Oresultado não poderia ser diferentequando se observa que apenas 2,31%das vítimas foram ouvidas durante aaudiência de suspensão condicio-nal do processo, momento em que épossível determinar os termos dareparação dos danos causados. Ao fi-nal, veem-se vítimas feridas no exer-cício da cidadania que procuravamquando noticiaram o furto ou rouboàs autoridades competentes. A posi-ção que o sistema de justiça penal re-serva à vítima ratifica e nutre um di-reito penal fundamentado no sofri-mento. Em suma, ninguém é bene-ficiado pelo sistema penal – vítimas,

réus ou sociedade. As vítimas ficamfrustradas em suas expectativas, osréus não são ressocializados e os ín-dices de reincidência desmentem aafirmação de que a sociedade estariamais segura.

O evento no Fórum Social Mun-dial encontrou espaço de legitimaçãosocial para a formulação de uma po-lítica alternativa à pena de prisão.Como etapa preparatória da 1ª Con-ferência Nacional de Segurança Pú-blica – CONSEG, a oficina atingiu seuobjetivo de ampliar a diversidade desegmentos envolvidos para debateros eixos temáticos propostos e enviarcontribuições à etapa nacional. Apartir das discussões travadas, foramencaminhadas ao Ministério da Jus-tiça formulações de princípios e di-retrizes para uma nova política cri-minal brasileira, atenta a que, aomenos nos crimes contra o patri-mônio, medidas não privativas de li-berdade têm maior possibilidade deoferecer respostas para uma inter-venção penal salutar.

Diogo de Oliveira Machado

OGrupo Candango de Crimi-nologia (GCCrim) apresen-tou em Belém, por ocasião do

Fórum Social Mundial de 2009, con-clusões da pesquisa realizada acercade “roubo e furto no DF: avaliação daefetividade das sanções não privati-vas de liberdade”. O evento consistiuem conferência livre sobre seguran-ça pública e foi realizado em prepa-ração à 1ª Conferência Nacional deSegurança Pública, que deverá ocor-rer entre os dias 27 e 30 de agosto. Asdiscussões foram travadas com base

na divulgação de estudo desenvolvi-do pelos pesquisadores do GCCrim,que examinaram 2.806 casos de fur-to e 2.416 casos de roubo, referentesa processos iniciados entre 1997 e1999 no Distrito Federal. Os dados co-lhidos a respeito dos réus denuncia-dos e das vítimas, em cada um des-ses processos, permitiram analisarem que medida as alternativas àpena privativa de liberdade podemcontribuir para conter os malefíciosinerentes ao sistema penal.

O fato de a conferência ter se rea-lizado durante o Fórum Social Mun-dial agregou grande variedade de

experiências relatadas por partici-pantes residentes em diversos esta-dos do País e atuantes em momentosdistintos do sistema penal. O eventofoi organizado de modo a permitir in-tervenções a cada seção da pesquisaapresentada. Assim, a presença de au-toridades em segurança pública per-mitiu contribuições bastante quali-ficadas a respeito do tema. Dessa for-ma, além de publicizar a pesquisarealizada pelo grupo de pesquisa, aconferência permitiu o encontro deestudiosos da segurança pública e dapolítica criminal, o que, sem dúvida,trouxe contribuição de grande valia.

O encontro instigou o diálogo e per-mitiu a formação de parcerias pararealização de eventos futuros. O es-paço de promoção do debate, per-mitido pelo Fórum Social Mundial,também foi de importância funda-mental para agregar pessoas sensíveisa uma nova perspectiva a ser lança-da sobre as políticas de segurança pú-blica, que prevejam a profunda re-formulação da estrutura instituída edo discurso jurídico-penal vigente.

A efetividade de algumas garantiasconstitucionais foi questionada napesquisa. É o caso do direito à defe-sa e à presunção de inocência. De

A presença do GCCrim noFórum Social Mundial de 2009

Ao menos nos crimes contra o patrimônio, medidas não privativas

de liberdade podem oferecer respostas para uma

intervenção penal salutar.

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

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Paula Bajer Fernandes Martins da Costa

AConstituição impõe ao Minis-tério Público o dever de pro-mover a ação penal de inicia-

tiva pública. No sistema punitivobrasileiro, a maioria das condutascriminosas é reprimida pela perse-cução pública e oficial, significandoisso que a vontade da vítima em ter ounão punido o autor da infração é ir-relevante.

Há exceções, evidentemente. Empoucas hipóteses a lei permite à ví-tima decidir se a persecução penal,sempre pública, pode acontecer (in-júria, dano a bem privado, entre ou-tros). Mas a regra geral é a de que oMinistério Público promove a açãopenal e, assim, garante-se igualdadena aplicação da lei, pois os agentespúblicos não podem optar entre agirou não agir segundo critérios subje-tivos, pessoais. Se praticada a con-duta descrita na lei como criminosae descoberto seu autor, a persecuçãopenal é inevitável.

O Ministério Público tem impor-tante papel no controle e na repres-são da criminalidade. Promove aação penal, judicial, pois a própriaConstituição afirma que, sem devidoprocesso legal, com pleno contradi-tório e ampla defesa, a punição nãopode acontecer.

Mas a Constituição impõe outrorelevante dever ao Ministério Públi-co: a defesa aos direitos sociais e in-dividuais indisponíveis. Assim, sepor um lado ele deve impulsionar apersecução penal, deve fazê-lo res-peitando os direitos do autor do fato.E mais: deve agir para que, cada vezmais, direitos individuais sejam res-peitados pelo Estado em todas as suastarefas e esferas de intervenção.

O Ministério Público não concluisuas atribuições no momento emque condenado o autor da infraçãopenal. A condenação e a execução dapena devem ser acompanhadas, fis-calizadas. O Ministério Público temo dever de verificar se a pena está sen-do executada adequadamente, nos li-

mites em que imposta, bem como sedireitos não atingidos pela conde-nação são suprimidos ou violados.Por isso é que a Lei de Execução Pe-nal estabelece, no artigo 68, parágrafoúnico: “O órgão do Ministério Públi-co visitará mensalmente os estabe-lecimentos penais, registrando a suapresença em livro próprio”. Essa vi-sita não deve ser formal ou simbóli-ca. O Ministério Público tem o deverde adotar providências para prevenirou reprimir maus tratos, superlota-ção, tratamento que prejudique a

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saúde física e mental das pessoas pre-sas.

Mas, independentemente do de-ver específico de fiscalizar os esta-belecimentos prisionais, o MinistérioPúblico precisa estar estruturadopara provocar, no Estado, a adoção depolíticas públicas voltadas para ofim da superlotação e violação dos di-reitos das pessoas presas.

Os estabelecimentos prisionaissão mantidos pelo Estado e cabe a eleacautelar pessoas que cumprem penaou devam ficar presas durante o pro-cesso em condições que lhes garan-ta a dignidade.

A Procuradoria Federal dos Direi-tos do Cidadão, no Ministério Públi-co Federal, mantém Grupo de Tra-balho com finalidade de estudar epropor alternativas de ação que me-lhorem o sistema prisional e contri-buam para o término da superlotaçãonos presídios. As memórias e reali-zações deste Grupo podem ser en-contradas na página da internethttp://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos-de-trabalho/sistema-prisional.

O Ministério Público Federal podee deve concentrar atenção no siste-ma prisional como um todo. A Uniãorepassa, aos Estados, recursos desti-nados aos presos e à saúde dos pre-sos. A utilização adequada dessesrecursos precisa ser fiscalizada.

O Conselho Nacional de Políti-ca Criminal e Penitenciária elabo-rou plano diretor nacional do sis-tema penitenciário e as unidadesda federação também têm planosdiretores correspondentes. Na pá-gina do Conselho na internet(http://www.mj.gov.br/ cnpcp) estãoPlano Diretores Nacional, Planos Di-retores dos Estados, bem como in-formações úteis relacionadas ao sis-tema prisional brasileiro. União e Es-tados devem trabalhar juntos paraque metas e objetivos sejam alcan-çados, para que o sistema, como umtodo, promova cumprimento da penaem condições que permitam a rein-serção do indivíduo em sociedade.

Não obstante o estabelecimentode normas e metas de ação por quemdeve promover correta execução dapena, atrocidades continuam a exis-tir. Na já não tão recente CPI do Sis-tema Carcerário (2008) relataram-se situações de graves violação a di-reitos humanos em diversos locais dedetenção no Brasil. O relatório apre-sentado pelo Deputado DomingosDutra pode ser consultado em link na

página da Procuradoria Federal dosDireitos do Cidadão na internet(http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos-de-trabalho/sistema-prisional/CPI-sistemacarcerario.pdf/view). Em Por-to Velho, Rondônia, situação de ab-soluta miserabilidade humana noPresídio Urso Branco gerou pedido deintervenção no Estado ajuizado peloProcurador-Geral da República noSupremo Tribunal Federal em outu-bro de 2008. Recentemente, o Con-selho Nacional de Política Criminal ePenitenciária constatou condiçõesinsalubres e estado de violência empresídios no Espírito Santo (relatóriona página do CNPCP na internet:http://www.mj.gov.br/cnpcp).

Os relatos são terríveis e geramdesconforto àqueles que aplicam odireito penal. Infelizmente, não há

como minimizar essa sensação deincapacidade de solução dos pro-blemas detectados que, em maior oumenor escala, despertam descrençano sistema punitivo. Essa descren-ça, porém, é pessoal e não institu-cional, porque as instituições per-manecem sob as variadas turbu-lências e conflitos.

E, sob o ponto de vista institu-cional, cabe ao Ministério Público:”I- promover, privativamente, a açãopenal pública, na forma da lei;II - ze-lar pelo efetivo respeito dos PoderesPúblicos e dos serviços de relevânciapública aos direitos assegurados nes-ta Constituição, promovendo as me-didas necessárias a sua garantia” (ar-tigo 129 da Constituição). Este dis-positivo é contextualizado pela nor-ma do artigo 127 da Carta:” O Mi-

nistério Público é instituição per-manente, essencial à função jurisdi-cional do Estado, incumbindo-lhe adefesa da ordem jurídica, do regimedemocrático e dos interesses sociaise individuais indisponíveis”. A dig-nidade do homem é indisponível e éum dos fundamentos da RepúblicaFederativa do Brasil (artigo 1º daConstituição).

Sob qualquer ponto de análise, aconclusão é inarredável: o Ministé-rio Público deve fiscalizar a execu-ção da pena no processo judicial deexecução e deve fiscalizar, também,o sistema carcerário, cobrando, doPoder Executivo, medidas que de-monstrem aplicação de recursospúblicos adequada à conquista epreservação da dignidade da pessoaencarcerada.

O Ministério Público e a execução da pena criminal

O Ministério Público tem importante papel nocontrole e na repressão da criminalidade.

Promove a ação penal, judicial, pois a própriaConstituição afirma que, sem devido processolegal, com pleno contraditório e ampla defesa, a

punição não pode acontecer.

OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Page 12: Observatório da Constituição e da Democracia

Paulo César de Sales Júnior

Segurança pública e política cri-minal são temas recorrentes nosnoticiários internacionais. As

preocupações crescem em torno doaumento dos custos de gestão dosistema prisional. O debate passaentão a girar em torno do melhora-mento de técnicas e da ampliação dosefetivos policiais, ficando de lado osfundamentos do sistema penal.

A criminologia, como matériacrítica ao sistema punitivo e aosseus fundamentos, é a porta-vozdo discurso crítico em relação ao sis-tema penal, tendo sempre por con-traponto o discurso oficial elabora-do pelas agências formais de con-trole penal.

No seio dos estudos criminológi-cos, formaram-se algumas correntesna busca por estabelecer uma fun-damentação filosófica legitimadorada persecução penal. A escola posi-tivista, inauguradora do que se de-nominou ciência criminal, teve apreocupação de definir aspectos pa-tológico-normativos da criminali-dade, apresentando modelos anatô-mico-fisiológicos daqueles que se-riam os criminosos natos.

Posteriormente, a teoria socioló-gica da criminologia, apresentandouma definição sociológica do desvio,superou o rígido determinismo dosconceitos positivistas para concluirque a estrutura dos conflitos sócio-econômicos representa o cerne doproblema da criminalidade.

Surge então a ideia de periculosi-dade social, que levada ao extremo noséculo XXI chegou a eclodir em cons-truções como o “direito penal doinimigo”. A teoria sociológica da cri-minologia teve como preocupaçãoprincipal a tentativa de superar oparadigma da reação social, núcleo domodelo positivista, na medida em queapontou para a assimetria mani-queísta de divisão entre bem e mal,delinquente e demais indivíduos.

No bojo dessa teoria, ficou bas-tante conhecida a teoria das jane-las quebradas, surgida por voltados anos oitenta, com o funda-mento na ideia de que a desordeme o abandono urbano teriam re-sultado direto no incentivo à práticade novos delitos, com crescimentovertiginoso dos índices de crimi-nalidade. Seus defensores faziamanalogia à seguinte situação: quan-do a janela de uma casa é quebra-da, mas não é logo reparada, cria-se uma sensação de descaso e de-sordem com base na qual as demaispartes da casa serão também aban-donadas.

Com esse fundamento foram apli-cadas severas medidas de política cri-minal em cidades norte america-nas, entre as quais ficou famosa a po-lítica de tolerância-zero aplicada nacidade de Nova York. Condutas pou-cos lesivas passaram a ser criminali-zadas com o intuito de conter qual-quer atividade delitiva. A despeito deaparentemente bem sucedida, essapolítica teve como conseqüência acriação de um regime de “lei e or-dem”, sem, no entanto, providen-

ciar uma erradicação harmônica esustentável da criminalidade.

Ainda que superada a visão abs-trata e ideológica do sistema puni-tivo e da própria realidade social, acriminologia sociológica não con-seguiu superar as contradições pró-prias do sistema repressivo, ope-rando apenas uma atualização des-se modelo.

Desse modo, pela perspectiva daeficácia das medidas repressivas,resta claro que a tentativa de mudara realidade da criminalidade pormeio das mais diversas políticas depersecução penal resultou em ine-quívoco fracasso.

Como ressalta Juarez Cirino, nãohaveria, ademais, como dar certo atentativa, tendo em vista que não é osistema repressivo que vai modificara sociedade. E questiona: como es-tabelecer um sistema punitivo de-mocrático se não temos uma socie-dade democrática?

Não há como escapar da conclu-são de que confiar na atuação do sis-tema penal para controlar o amplocrescimento da criminalidade que seobserva nos dias de hoje é uma gran-

de perda de tempo.A pena, observada tanto pelo mo-

delo preventivo, como pelo repres-sivo, perde o caráter de “prevençãogeral”. A própria ideia de ressociali-zação se concretiza como mascara-mento da matriz retributiva. Assim,somente pelo discurso oficial é quea ampliação do poder político decriminalização expressa instrumen-to hábil a conter o avanço da crimi-nalidade.

O que se deve consertar primei-ramente são os vícios dos Estadosque se dizem democráticos, permi-tindo uma inclusão social que não dêmargem a seleções criminais desi-guais. Que desse modo o desvio so-cial não se torne a regra, como se ob-serva atualmente.

E no que diz respeito a democra-cia, imprescindível recorrer à nossacarta constitucional, na qual se es-tabelecem os fundamentos e os prin-cípios do Estado Democrático deDireito brasileiro. E assim, que aconcretização dos direitos indivi-duais e sociais ali previstos seja, estasim, a principal arma no combate àcriminalidade.

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As janelas quebradas da democracia

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DIREITO ACHADO NA RUA

Ana Luiza

Ficam no mesmo pedaço dechão. Esse que resolveram cha-mar de continente e depois re-

talhar em pedacinhos, só para depoisnos cobrarem assinatura e pedágiopara atravessar fronteiras. Como par-te desse lote batizado America, Bra-sil e Estados Unidos não poderiam sermais diferentes nas suas semelhanças.

O país do racismo e da segregação,da luta pelos direitos civis e do mo-vimento black power ficou abaladopela morte prematura de um dosmaiores símbolos da música mundialdo séuclo XX. Michael Jackson: umhomem deformado por processosde despigmentação da pele e cirur-gias plásticas, um homem atingidoem cheio pela força do racismo e daviolência intra-familiar. Esse mes-mo homem, que recusa o espelho eafasta sua identidade racial na pri-meira pessoa, tem aqui a consciên-cia coletiva de sua filiação racial, fazclips considerando prioritariamentea população negra e como negro éenterrado.

Já transformado nessa espécie depersonagem de cera, Jackson grava,em 1996, um videoclip no Brasil. Vaia Salvador e canta no Pelourinhocom os negros meninos do Olodumbradando no refrão: “eles não se im-portam mesmo com a gente”. Sim, Mi-chael Jackson cantou a violência po-licial, a tortura e a falta de solidarie-dade entre e para com o contingen-te negro, em mais uma vívida de-monstração do alcançe da consciên-cia racial produzida nos Estados Uni-dos. E como é bonito rever aquela im-placável cena se desdobrando pelasruas de Salvador, sem espaços para asreticências da democracia racial.

Nós, no país das mulatas e docarnaval, da convivência harmonio-sa e pacífica, vivemos a experiência deJackson da maneira como fomos en-sinados: com eficiência e discrição.Que dizer de personagens como Cae-

tano Veloso, por exemplo, que aindame faz suspirar com suas letras ins-piradas? Esse, até pouco tempo atrás,sabia quem era negro no Brasil. Recitatrecho de seu livro no álbum PrendaMinha: ao Vivo (1998), cena em quesua mãe o chama para ver o preto(Gilberto Gil) que ele gosta cantandona Tv. Depois, como num passe demágica, tudo se apaga quando entramem cena a discussão das ações afir-mativas. Não há mais negros no Bra-sil para Caetano. Ao menos nenhumidentifícável para receber o benefíciode políticas públicas específicas. En-xergo muito de Jackson nesse tipo decontradição, apesar do sentido estarinvertido. É a negação do coletivo, dapossibilidade de reconhecimento nooutro, o que boneco de cera “moreno”produz com esse tipo de discurso e fi-liação política.

O que parece à primeira vista en-redo menor, é símbolo emblemático daforma como se assumiu viver o racis-mo e, principalmente, lidar com seus

efeitos nesses territórios aparentados.Não nos deixa mentir a análise deseus sistemas penitenciários.

De um lado, temos o maior siste-ma carcerário do mundo, com maisde 2 milhões de presos para o ano de2008, de acordo com o Departa-mento de Justiça americano. Ho-mens negros sobram nas estatísticas:são três vezes mais do que o núme-ro de brancos e a pena de morte le-galmente aplicada em alguns estadosda federação tem um viés racial depeso. Nós, que não descobrimosqualquer potencial econômico parao aprisionamento, vamos levando acoisa orientados por seu objetivomaior sem maiores problemas: o ne-gócio é neutralizar e exterminar. Onúmero de corpos negros, princi-palmente da juventude, se amon-toam sem qualquer tipo de censuraconsequente.

Se o resultado é semelhante porcaminhos distintos, me chama aten-ção o fato de que a explicitação do ra-

cismo abriu caminho para que umdiagnóstico mínimo possa ser siste-maticamente questionado no quese refere às violências vividas dentroe fora do cárcere nos Estados Unidos.Trata-se de um mundo de ações dis-criminatórias seguidas por cons-trangimentos públicos que tendem agerar impacto político.

Algo, sem dúvida, muito diferen-te de nosso discurso tropical abafa-do que o pudor não alcança. No Bra-sil, vivemos numa lógica em quetudo pode, desde que as intençõesnão se revelem, e a extinção da vidanegra vai se dando sem maiores em-baraços.

Por hora, sem as respostas devi-das, sigo me consolando na arte.Saboreio as músicas de Jackson eCaetano enquanto me ressinto por al-gumas de suas escolhas. Espero asperguntas certas me assaltarem sa-bendo que melodias, dados e cená-rios diferentes refletem realidadesque se aproximam.

As diferentes melodias da América

NOTA DO CORRESPONDENTE

Page 13: Observatório da Constituição e da Democracia

ANO III Nº 32Agosto de 2009 Constituição & DemocraciaC&DnBoaventura Santos:história e justiça social

nDilema do Direito Penal:Lei Maria da Penha

nEntrevista: Professora Ela Wiecko

Criminologia: Estado, sociedadee lógica punitiva

Boaventura de Sousa Santos

Ao voltar do período de férias, osMinistros do Supremo Tribu-nal Federal enfrentarão uma

questão crucial para a construção daidentidade do Brasil pós-constituin-te: é possível adoptar um sistema deacções afirmativas para ingresso nasuniversidades públicas que destineparte das vagas a negros e indígenas?

Ao rejeitar o pedido de liminar emacção movida pelo DEM, ex-PFL,que pretendia ver suspensa a matrí-cula dos alunos aprovados na UnB noâmbito de uma política de selecçãocom estes contornos, o Ministro Gil-mar Mendes sugeriu que a respostaa esta questão fosse buscada emfunção do impacto das acções afir-mativas sobre um dos elementosque acompanha o constitucionalis-mo moderno desde as suas origens,na Revolução Francesa: a fraterni-dade. Perguntou o Ministro se, como advento de programas como o daUnB, o país estaria abrindo mão daidéia de um país miscigenado e adop-tando o conceito de uma nação bi-color, que opõe “negros” a “não-ne-gros”. E indagou se não haveria for-mas mais adequadas de realizar “jus-tiça social”, tal como a adopção de co-tas pelo critério da renda.

A proposta de situar o juízo deconstitucionalidade no horizonte dafraternidade representa uma impor-tante inovação no discurso do STF.Mas assim como o debate sobre aadopção de acções afirmativas ba-seadas na cor da pele não pode serdissociado do modo como a socie-dade brasileira se organizou racial-mente, o debate sobre a concretiza-ção da Constituição não pode des-prezar as circunstâncias históricasnas quais ela se insere. Como já es-crevi nesta secção, a enunciação doideário da fraternidade nas revolu-ções iluministas européias cami-nhou de par com a negação da fra-ternidade fora da Europa (“Tendên-cias/Debates”, 21/08/2006). Nesse“novo mundo”, do qual o Brasil se tor-nou parte desde que a Carta de Ca-minha chegou ao Rei de Portugal, aprosperidade foi construída à base dausurpação violenta dos territóriosoriginários dos povos indígenas e

da sobreexploração dos escravos quepara aqui foram trazidos. Por essa ra-zão, no Brasil, a injustiça social temum forte componente de injustiçahistórica e, em última instância, deracismo antiíndio e antinegro. (“Ten-dências/Debates”, 10/06/2008).

É claro que na organização dassuas relações raciais o Brasil difere depaíses como os EUA, na medida emque apresenta um grau bem maior demiscigenação. A questão é saber seesse maior grau de miscigenação foisuficiente para evitar a persistênciade desigualdades estruturais asso-ciadas à cor da pele e à identidade ét-nica ou, em outras palavras, se o fimdo colonialismo como relação polí-tica acarretou o fim do colonialismocomo relação social. Indicadores so-ciais de toda ordem dizem que essasdesigualdades não apenas persis-tem, como prometem seguir ator-mentando as gerações futuras. Umestudo recente divulgado pela Se-cretaria Especial de Direitos Huma-nos da Presidência da República,por exemplo, mostra que o risco deser assassinado no Brasil é 2,6 vezesmaior entre adolescentes negros doque entre brancos.

Falar em fraternidade no Brasil sig-nifica, essencialmente, enfrentar opeso desse legado, o que representaum grande desafio para um país emque muitos tomam a idéia de demo-cracia racial como dado, não comoprojecto. Mas se o desafio for en-frentado na sua inteireza pelas insti-tuições sem que se busque diluir agravidade do problema em categoriasfluidas como a dos “pobres”, o país ca-minhará não apenas para a consoli-dação de uma nova ordem constitu-cional, no plano jurídico, como tam-bém para a construção de uma or-dem verdadeiramente pós-colonial,no plano sócio-político.

Ao estabelecer e monitorar um sis-tema de acções afirmativas que des-tina parte das vagas a pretos, pardose indígenas, a UnB tem oferecidotrês grandes contribuições para essatransição. Em primeiro lugar, o sis-tema de educação superior pode re-cusar-se a reproduzir as desigual-dades que lhe são externas e mobili-zar a comunidade para a construçãode alternativas de inclusão de seg-

mentos historicamente alijados dasuniversidades em razão da cor dapele ou identidade étnica. Em se-gundo lugar, a construção e adopçãode alternativas com este recorte nãoacarreta prejuízo para a qualidade dostrabalhos acadêmicos; ao contrário,traz mais diversidade, criatividade edinamismo ao campus. Em terceirolugar, apesar de levantar reacçõespontuais, como a do DEM, e de in-cluir decisões que sempre serão po-lêmicas, como a do critério de iden-tificação dos beneficiários, acçõesafirmativas baseadas na cor da peleou identidade étnica conseguem de-senvolver um elevado grau de legiti-midade na comunidade acadêmica.Basta ver como diversos grupos depesquisa e sectores do movimento es-tudantil se articularam em defesado sistema da UnB quando este se viuconfrontado pela acção do DEM.

Para os estudiosos das reformasuniversitárias, seria fundamental queo programa da UnB pudesse com-pletar o ciclo de 10 anos previsto noPlano de Metas da instituição. Sobreo posicionamento a ser adoptadopelo STF diante do problema, a res-posta não está clara. O Tribunal po-derá desprezar a experiência da UnBsob o receio de que ela venha a dis-solver o mito de um país fraterno,porque mais miscigenado que ou-tros. Mas o Tribunal também pode-rá conceder que o programa da UnBrepresenta, bem ao contrário, umatentativa válida de institucionalizara fraternidade ao reconhecer a exis-tência de grupos historicamente des-favorecidos, contribuindo, assim,para a efectivação da justiça social.Somente a segunda resposta permi-te combinar justiça social com justi-ça histórica.

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Justiça Social e Justiça Histórica