ocusto da excelencia (the cost of...

8
o CUSTO DA EXCELENCIA (THE COST OF EXCELLENCE) RESUMO Le coüt de I'excellence, livro de Nicole A UBERT et Vincent de GA ULEJAC. Com a comple- xidade tecnológica, a gestão "managerial" das em- presas aparece como sendo uma alternativa liberal à gestão tradicional, burocrática e autoritária. Os exe- cutivos se identificam com a procura da excelência e da qualidade total, como também de uma identidade da empresa. O ego deles "fusiona" com o ideal da empresa. Os autores analisam quais são as conse- qüencias desse novo funcionamento para a empresa e o indivíduo, investindo igualmente, na psicologia dos sujeitos e suas implicações subjetivas. Palavras-chave: Executivos, qualidade total ABSTRACT The recent book by authors Nicole A UBERT et Vincent de GA ULEJA C, titled Le coüt de I' excellence, asserts that with the complexity of modern tecnology, managerial techniques for firms or business is appearing as a liberal alternative to traditional autoritarism burocracy. Executives now seek excellence in work quality as well as idendity with lhe firmo Their "egos" are expected to be one with that of the firmo The authors analyzed lhe consequences of this new form of business management for lhe firm as well as for lhe employee, taking into account the subjetive implications of those involved. Keywords: Executives, work quality. Este livro, Le coüt de l'excellence, foi escrito, em 1991, por dois sociólogos e psicanalistas: Nicole A UBERT et Vincent de GA ULEJAC. SYLVIE DELACOURS LINs 1 GAULEJAC é Professor da Universidade Pa- ris VII- Jussieu. O que justifica a apresentação da presente obra é, de um lado, o fato do livro não ter sido, ainda, traduzido em língua portuguesa, como tam- bém em razão da falta, no Brasil, de uma crítica argu- mentada dos modelos de "Excelência" e "Qualidade total". Vou começar, numa primeira fase, resumindo o tema do livro e expondo a pesquisa realizada pelos dois psicanalistas. A seguir, pretendo analisar as te- ses defendidas ao longo do livro: 1- existência de uma sociedade managerial; 2- de uma lógica da excelência; 3- de um sistema managerial; 4- risco da queimadura do ideal; 5- existência de alternativas latinas. O TEMA DO LIVRO O management é um dos sintomas de nossa so- ciedade pós-moderna: cada um gera seu tempo, sua família e sua vida semelhante à maneira como se ten- ta gerir as motivações de seus colaboradores, o funci- onamento de uma empresa, etc. Mas a capacidade de gestão já não é, agora, suficiente. Se fala de qualidade total, de zero defeito. Estes conceitos, cada vez mais difundidos nas empre- sas, começam a se aplicar à vida das pessoas. A qualidade total se caracteriza por constitui- ção de grupos de melhora da qualidade, formação dos quadros superiores e de multiplicadores, instalação de medidas de satisfação dos clientes e de sistemas de seguro-qualidade. Trata-se de ter boas realizações em tudo, de ser performente na vida. Numa sociedade que valoriza, de forma exacerbada, o sucesso e despreza os perdedores, tem-se que ganhar. I Professora de Psicologia da Educação - Universidade Federal do Ceará. Doutoranda em Educação, pela Université Paris V- Sorbonne 1 8 EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 V 2• NQ 38 p. 178-185 1999

Upload: others

Post on 07-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: oCUSTO DA EXCELENCIA (THE COST OF EXCELLENCE)repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/14426/1/1999_art_sdlins.pdf · que si-próprio. Existe uma busca permanente para ultrapassar seus próprios

o CUSTO DA EXCELENCIA(THE COST OF EXCELLENCE)

RESUMO

Le coüt de I'excellence, livro de NicoleA UBERT et Vincent de GA ULEJAC. Com a comple-xidade tecnológica, a gestão "managerial" das em-presas aparece como sendo uma alternativa liberal àgestão tradicional, burocrática e autoritária. Os exe-cutivos se identificam com a procura da excelência eda qualidade total, como também de uma identidadeda empresa. O ego deles "fusiona" com o ideal daempresa. Os autores analisam quais são as conse-qüencias desse novo funcionamento para a empresae o indivíduo, investindo igualmente, na psicologiados sujeitos e suas implicações subjetivas.

Palavras-chave: Executivos, qualidade total

ABSTRACT

The recent book by authors Nicole A UBERT etVincent de GA ULEJA C, titled Le coüt de I' excellence,asserts that with the complexity of modern tecnology,managerial techniques for firms or business isappearing as a liberal alternative to traditionalautoritarism burocracy. Executives now seekexcellence in work quality as well as idendity with lhefirmo Their "egos" are expected to be one with that ofthe firmo The authors analyzed lhe consequences ofthis new form of business management for lhe firm aswell as for lhe employee, taking into account thesubjetive implications of those involved.

Keywords: Executives, work quality.

Este livro, Le coüt de l'excellence, foi escrito,em 1991, por dois sociólogos e psicanalistas: NicoleA UBERT et Vincent de GA ULEJAC.

SYLVIE DELACOURS LINs1

GAULEJAC é Professor da Universidade Pa-ris VII- Jussieu. O que justifica a apresentação dapresente obra é, de um lado, o fato do livro não tersido, ainda, traduzido em língua portuguesa, como tam-bém em razão da falta, no Brasil, de uma crítica argu-mentada dos modelos de "Excelência" e "Qualidadetotal".

Vou começar, numa primeira fase, resumindo otema do livro e expondo a pesquisa realizada pelosdois psicanalistas. A seguir, pretendo analisar as te-ses defendidas ao longo do livro:

1- existência de uma sociedade managerial;2- de uma lógica da excelência;3- de um sistema managerial;4- risco da queimadura do ideal;5- existência de alternativas latinas.

O TEMA DO LIVRO

O management é um dos sintomas de nossa so-ciedade pós-moderna: cada um gera seu tempo, suafamília e sua vida semelhante à maneira como se ten-ta gerir as motivações de seus colaboradores, o funci-onamento de uma empresa, etc.

Mas a capacidade de gestão já não é, agora,suficiente. Se fala de qualidade total, de zero defeito.Estes conceitos, cada vez mais difundidos nas empre-sas, começam a se aplicar à vida das pessoas.

A qualidade total se caracteriza por constitui-ção de grupos de melhora da qualidade, formação dosquadros superiores e de multiplicadores, instalação demedidas de satisfação dos clientes e de sistemas deseguro-qualidade.

Trata-se de ter boas realizações em tudo, de serperformente na vida. Numa sociedade que valoriza,de forma exacerbada, o sucesso e despreza osperdedores, tem-se que ganhar.

I Professora de Psicologia da Educação - Universidade Federal do Ceará. Doutoranda em Educação, pela Université Paris V- Sorbonne

1 8 • EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 • V 2 • NQ 38 • p. 178-185 • 1999

Page 2: oCUSTO DA EXCELENCIA (THE COST OF EXCELLENCE)repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/14426/1/1999_art_sdlins.pdf · que si-próprio. Existe uma busca permanente para ultrapassar seus próprios

Paralelamente, um outro movimento aparece.Trata-se da dimensão espiritual da empresa que per-mitiria o desenvolvimento pessoal: se fala de identida-de, de alma da empresa. É com ela, graças a ela, que oindivíduo deve se desenvolver e realizar seu ideal.

Ora, a procura incessante da excelência temum custo: o estresse permanente, as depressões, oburn out daqueles que ficam imolados à obsessão dosucesso. A empresa pode também provocar o mal-estar e a angústia.

A PESQUISA

A pesquisa parte das observações dos autores,que evidenciaram uma convergência entre o funcio-namento das organizações e o funcionamento psí-quico dos executivos.

Partiram da seguinte hipótese:

Os indivíduos que se ligama esse tipode organização,nãoprocuram somente asse-gurar sua sobrevivência, mas investem tam-bémnarealizaçãodesuasaspiraçõespessoais.

Nesse contexto e, em certos casos, observa-sea emergência de processos patológicos.

Qual é então o custo da excelência? (custo moral)• Na organização• Nos indivíduos

Os autores pesquisaram, na França, as empre-sas de origem americana: Rank Xerox, IBM,Hewlett-Packard, American Express.

Eles analisam o sistema de management dessaempresas e os efeitos nas pessoas.

É importante porque esses sistemas, mesmo senão são ainda majoritários, são apresentados comomodelos, como referência para o management.

Perfil dos entrevistados:a) jovens executivos em movimento ascendente

na empresa;b) executivos confirmados na empresa e capa-

zes de explicar os vários aspectos;c) executivos em situação difícil na empresa;d) alguns (raros) executivos muito doentes;

(No caso, a raridade se dá devido ao fato deexistir uma dupla resistência: das empresasque ocultam o fenômeno, e das vítimas quepreferem isolar-se, esconder-se).

o LIVRO

1 a Parte: a sociedade managerial

o management: sintoma da sociedade pós-moderna

A onipresença do management, em todas asesferas e domínios da sociedade, constituía uma res-posta às diversas mutações sociais, tecnológicas cul-turais e econômicas de nossa sociedade.

O management incluía uma série de práticas devalores, de receitas que apareceram, primeiro nas empre-sas privadas, particularmente nas empresas de tecnologiasde ponta, exportando-se, a seguir, para outras esferas dasociedade. Esta seria a resposta as conseqüências de con-flitos e contradições da pós-modemidade.

Definição do managementa) A organização managerial vai se opor às

organizações burocráticas, rígidas, hierarquizadas,tradicionais: a taylorização que acompanha essa or-ganização é muito eficiente no que conceme as tare-fas simples, repetitivas, mas inadaptada aos produtoscontemporâneos.

Trata-se agora de poder organizar uma rede en-tre entidades. A organização, até então, comandada porordens, dá lugar a um sistema organizacional regido pelasregras, pela informação e pela comunicação;

b) cabe, pois, produzir mediação entre as exigên-cias do lucro e os interesses do pessoal e encontrarcompromissos entre lógicas financeiras, comerciais,tecnológicas, administrativas e jurídicas que atraves-sam a organização.

A função principal do management é de pro-duzir organização, quer dizer, investir e instalar dis-positivos capazes de gerir os conflitos: regras,modalidades concretas de organização do trabalho;

c) produção de um discurso que veicula umconjunto de representações, de imagens, de valores;

d) criação de um modelo de personalidade fun-dada sobre a vontade de sucesso - espírito de competi-ção, busca deperformance: ser o melhor, o mais eficiente,o executivo de sucesso, aquele que ganha sempre.

Da empresa burocrática à empresa managerial

Há numa dessas empresas (Rank Xerox) a pas-sagem nítida de uma lógica comercial com um únicoproduto fácil de manipular (xerox) para uma políticade vendas mais ampliada: a burótica, que desencadeiauma evolução geral.

EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 • V 2 • NQ 38 • p. 178-185 • 1999· 179

Page 3: oCUSTO DA EXCELENCIA (THE COST OF EXCELLENCE)repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/14426/1/1999_art_sdlins.pdf · que si-próprio. Existe uma busca permanente para ultrapassar seus próprios

Não se trata mais de vender a todo custo, comum contrato simples de manutenção (o que podiacorresponder à organização burocrática, autoritária)porém de analisar a demanda do cliente, vender exa-tamente o que o cliente precisa, porque o serviço pós-venda, o acompanhamento pós-venda vai ser longo ecomplexo.

O melhor executivo deixou de ser aquele quevende mais (como na organização burocrática) e querecebe mais da companhia (dinheiro, recompensasdiversas). O melhor executivo é aquele que sabe fazeras melhores escolhas.

Constatamos uma diminuição do controle ex-terno para o controle interno. Não se trata mais demandar fazer, de mandar vender, mas de mandar fa-zer o melhor.

Aparece, pois, o management do implícito.Num contexto geral de performance de produtivi-dade e de eficácia.

Essas empresas abandonam, pouco a pouco, omodelo tradicional, hierárquico, piramidal. Elas inte-gram o modelo da empresa policelular, ou seja, carac-terizada pela comunicação transversal das diferentescélulas.

O controle que se exerce sobre os indivíduosnão é mais o controle sobre o corpo, contudo.jso-bre o psiquismo e o imaginário.

2" Parte: a lógica da excelência

A busca da excelência

Excellentia é uma palavra latina que vem doverbo excellere = ultrapassar, ser melhor, se sobressair

Antigamente, o conceito de excelência era li-gado a idéia de duração e de ser.

Hoje, ele está ligado ao efêmero e ao fazer. Oconceito de excelência tomou-se um conceito instá-vel, sempre ultrapassado por outra performance.

Não se trata mais de um estado de excelência,mas de um processo. O objetivo é de estar excelenteem vez de ser excelente.

A busca do sentido

A procura da performance pessoal é não somen-te ser melhor que os outros, mas também ser melhorque si-próprio.

Existe uma busca permanente para ultrapassarseus próprios resultados. Podemos pensar que se tratade uma nova forma da busca do Absoluto. Busca doEu Absoluto, que passa a ser, nas sociedades materi-

alistas, o referente supremo, na falta de uma referên-cia espiritual.

Esta busca da excelência é, pois, necessáriano plano econômico (mundialização, intensificação daconcorrência). A excelência encontra no plano indi-vidual uma exigência narcisista de realização pesso-al, de performance, de conquista. Se a vida se tomouum empreendimento a gerir, a empresa é um dos luga-res nos quais se continua a realização de si. Tudo issoparece ser o reflexo de uma sociedade de desafio queengrandece o fenômeno dos novos aventureiros - foio caso de Ayrton Senna, por exemplo (UNS, 1995).

Numa sociedade em aceleração constante, comona história de Alice no País das Maravilhas, "devemoscorrer duas vezes mais rápido para ficar no mesmo lugar."

3- Parte: o sistema managinário

Definição do sistema managinário

Neste contexto, a empresa é, cada vez mais, le-vada à organização e ao controle do psiquismo dosexecutivos.

O imaginário é, nesse novo registro, um objetode management para empresa, o que os autores cha-mam sistema managinário (contração das duas pala-vras management e imaginário). Trata-se depromover motivação, implicação, energia e produtivi-dade. Mesmo porque, sabemos que não se pode orde-nar a alguém para ser criativo ou motivado, isso exige,antes de tudo, uma adesão interna, psíquica.

A produção da excelência no sistema managerial

Princípios e exigências éticas são muitoenfatizados. Existem dispositivos para reforçar a ade-são e os investimentos de cada um: formação, semi-nários de cultura interna para difundir os valores daempresa, e maneiras de vivê-Ias no quotidiano; siste-ma de avaliação para levar o indivíduo "para cima","levantar o seu astral" na empresa.

a) management através da paixão: a empresasolicita uma adesão apaixonada.

Os executivos falam de decepção amorosa quan-do a empresa não corresponde às suas expectativas.Quando o executivo se identifica com a empresa, elese perde nela. Nesse caso, ele deixa de ser interessan-te para a empresa (como no caso de muitas históriasclássicas de amor).

A dialética adesão- frustração é geradora de ener-gia e de investimento a fim de conquistar os favoresdo outro: no caso, da empresa (história de amor).

180 • EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 • V 2 • NQ 38 • p. 178-185 • 1999

Page 4: oCUSTO DA EXCELENCIA (THE COST OF EXCELLENCE)repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/14426/1/1999_art_sdlins.pdf · que si-próprio. Existe uma busca permanente para ultrapassar seus próprios

b) o desafio paradoxalÀs vezes, práticas quase incompatíveis umas

com as outras solicitam sentimentos ou comportamentosde naturezas opostas. Declarações de executivos en-trevistados ilustram o que aqui estamos tentando mos-trar:

A liberdade na IBM é escolher livrementeos tipos de coerção aos quais a gente se sub-mete livremente;No HP a gente é obrigado a comunicar li-vremente;Aqui a gente só tem direito ao sucesso, so-mos condenados ao sucesso;Eu me sinto, ao mesmo tempo, bem e mal;Existe nesse sistema um tipo de diálogo im-possível, quer dizer de adesão e de repulsãosimultâneas.

Vemos nessas contradições um processo de ten-são paradoxal idêntico ao que Bateson e a escola dePaio Alto (USA) identificaram como causa possívelda esquizofrenia Double bind = Coerção dupla.

Na empresa, os processos são contraditórios,obrigatórios, porque a liberdade deixada aos indiví-duos é ilusória, visto que esta "liberdade" está muitoimplicada com as obrigações da empresa.

A mobilização psíquica

Por outro lado, essas contradições são planifi-cadas pela empresa, pois é a resolução dessas tensõespermanentes que gera a energia que permite o funcio-namento "psíquico" da empresa.

Quando o indivíduo consegue ultrapassar o con-flito e aceitar a coerção, ele admite a regra do jogo daempresa, ele pertence à empresa.

Certas empresas suscitam uma relação apaixo-nada e, simultaneamente, planificam licenciamentosalegando que a conjuntura econômica as obriga a re-duzir os efetivos. Trata-se de "enxugar a máquina",podemos dar aqui o exemplo do Banco do Brasil.

Pode-se dizer que na instituição encontramos vida,dinamismo, paixão, mas também angústia e morte. Inú-meros exemplos ilustram essa tese. O funcionário é le-vado à impotência e às vezes ao suicídio - nos USA, noJapão, mas também no Brasil, como se pôde vivenciarrecentemente no Banco do Brasil, Coelce etc.

o homem managerial

O imaginário do HM é agora objeto demanagement, para extrair motivação, implicação, ener-

gia e produtividade. Este imaginário é formado por ummovimento duplo: movimento que o sujeito - elemesmo - produz e leva para a empresa no intuito deencontrar resposta à angústia do vazio e projetar anecessidade de acreditar em alguma coisa, de se reali-zar. Esse movimento vem também da empresa: osujeito é o produto da empresa. A empresa orientaseus valores, suas crenças, seus projetos, seus ideais,suas imagens internas, quer dizer, seu imaginário.

O HM (Homem Managerial) se caracteriza por:• busca do Absoluto;• narcisismo ético;• um certo fanatismo.

4a Parte: a queimadura do ideal

As doenças da excelência

Constatamos uma eficácia total do sistema.Enquanto a empresa e a pessoa funcionam juntas, osistema é extraordinariamente eficiente.

Contudo, às vezes, por uma razão qualquer- re-sultados mais baixos, dificuldades pessoais,reestruturação - de repente, a pessoa não convémmais (ou convém menos) à empresa.

Esta diminuição de aceitação torna-se mais di-fícil quando o Ego da pessoa estava em fusão com oideal da organização. Emergem ou podem eclodir,nesse caso, fenômenos brutais de depressão. Isso podeacontecer com pessoas com Ideal do Ego intenso,muito elevado, e totalmente investido na empresa. Ouainda quando as pessoas acreditavam de maneira quasereligiosa na empresa. Ao se dar conta do imenso sa-crifício que fez durante anos, visto agora por ela comoinútil, o sujeito entra em desespero.

Os autores propõem duas definições interessantes:

O Ideal do Ego se fabrica a partir da conver-gência entre o narcisismo e diversos ideais parentais,coletivos. Esta instância se distingue do Superego. OSuperego é um conjunto de interdições. Obedecemosao Superego por medo, e ao Ideal do Ego por amor.

O Ideal organizacional contém as qualidadespessoais apresentadas ao indivíduo pela organizaçãocomo qualidades necessárias para fazer parte, progre-dir e ter sucesso na empresa.

Exemplo: Caso de Noémie - totalmente identi-ficada com a empresa durante 9 anos (trabalha às ve-zes todos dias da semana; 12 horas por dia, às vezesdas 7 horas até meia-noite). Ela tem muito poderna empresa.

EDUCAÇÃO EM DEBATE' FORTALEZA' ANO 21 • V 2 • NQ 38 • p. 178-185 • 1999· 181

Page 5: oCUSTO DA EXCELENCIA (THE COST OF EXCELLENCE)repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/14426/1/1999_art_sdlins.pdf · que si-próprio. Existe uma busca permanente para ultrapassar seus próprios

Depois de uma reestruturação, a empresa pas-sa de 400 a 200 empregados. Noémie perde uma lar-ga fatia do seu poder, e particularmente, a liberdadesobre o orçamento que ela tinha, a possibilidade defixar os salários dos empregados como também passaa ter um superior hierárquico que ela acha incompe-tente, indigno da empresa.

Durante meses, ela vai, cada vez mais tarde, parao trabalho, com dificuldades. Não consegue acordar, sesente muito cansada, sem ânimo, tem crises de choro.

Um dia, chega ao escritório, começa uma crisede choro incontrolável, como se alguém muito amadotivesse desaparecido, diz ela. Se trata de um senti-mento de perda, de um luto impossível.

Podemos identificar também uma clivageminterna: ela chora a parte dela mesma, identificada,até então, com a organização. A parte essencial desua vida morreu.

Tratada numa clínica, ela não consegue voltara trabalhar. Expressa essa angústia com as seguintespalavras: Se eu voltasse, morreria.

É o burn-out por exaustão psíquica. Exaustãodos recursos físicos e mentais. Incêndio interno. Per-da de uma parte do Ego.

Conhecemos o fenômeno do Karochi no Japão,ou morte brutal por excesso de trabalho, por exaustãofísica, podendo às vezes chegar ao suicídio. Jáexemplificamos o mesmo fenômeno no Brasil com ossuicídios dos bancários.

O problema é complexo. Os mesmos processosque são utilizados pela empresa para funcionar, po-dem ser responsáveis, num determinado momento,pelo desmoronamento total da pessoa: o estresse éutilizado como motor da performance; a idealizaçãoserve para melhorar o investimento.

Vamos mostrar de que maneira a situação doexecutivo evolui:

a) situação antes do ingresso na empresa: oIdeal do Ego, e o ego do indivíduo não seconfundam ainda com o ideal daorganização;exemplo do Ideal de Noémie: Ter suces-so profissional para vingar todas asmulheres da família;

b) contrato narcísico e sentimento de suces-so:Noémie: Eu era muito valorizada na em-presa.

c) captação de uma parte do Ego pelo Idealorganizacional:Noémie: todas avaliações falavam deperfeição.

d) fusão do ideal organizacional e do Idealdo Ego que provoca a formação de umainstância intermediária: o Ego idealorganizacional.Noémie: Eu era tão perfeccionista queme tornava um pouco excessiva.

e) ruptura:• Noémie= Eu perdi, para um homem me-

díocre, meu orçamento e todo poder.f) desmoronamento:

• Noémie: Foi toda minha imagem que sequebrou. Foi como si alguém muito ama-do tivesse morrido.

A dia/ética do ser e do ter

Vamos agora examinar um outro caso, ou seja,algumas das fases da vida de um executivo: X.

X estuda numa Grande Escola, ele investemuito, mas diz sempre para si mesmo: Eu não voume perder.

A vida profissional de X pode ser dividida emvárias fases:

a) ambição: no princípio da carreira ele pensaque vai chegar a ocupar o cargo de PDG, o mais pode-roso, muito mais para não ter ninguém que o controleque para controlar os outros;

bj-fascinação: durante alguns anos, fica fasci-nado pelo poder;

c) desilusão: quando a organização propõe umcargo no interior que ele recusa. Ele não vai mais serescolhido para os cargos que queria. Termina ingres-sando em um cargo um pouco afastado das responsa-bilidades. Nessa ocasião, ele sente que pode muito bemser rejeitado pela empresa caso não precise mais dele;

d) resignação: ele entende que não será jamaisescolhido. Tem uma boa evolução na carreira, muitasresponsabilidades, mas nunca a responsabilidade mai-or, a de PDG. Seria satisfatório para qualquer pessoa,mas, para ele, é decepcionante em relação às ambi-ções da juventude.

Em compensação X vê seus colegas sacrifican-do tudo pela empresa (principalmente a família), nãoencontrando os seus filhos, enfrentando divórcio(s) esolidão. Eles não são outra coisa senão trabalho. Eutenho a dimensão de Ser, em vez de fazer, de ter. Euconsegui preservar minha liberdade pessoal.

É uma evolução que leva X do Ter ao Ser.X não fez uma fusão excessiva com a empresa.

Manteve sempre um pouco de distância. Talvez por issoque a carreira dele não foi o que poderia esperar. Emcompensação, soube preservar sua integridade.

182 • EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 • V 2 • NQ 38 • p. 178-185 • 1999

Page 6: oCUSTO DA EXCELENCIA (THE COST OF EXCELLENCE)repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/14426/1/1999_art_sdlins.pdf · que si-próprio. Existe uma busca permanente para ultrapassar seus próprios

Uma fusão excessiva com o ideal da organiza-ção leva ao processo de desmoronamento individualIle~~k\1\le~\l't%e\lIDa n\\\cu\n'3.ne.

5" Parte: alternativas

Existem nos EUA e nos países anglo-saxões:

uma identificação entre o executivo mo-derno e o guerreiro gerrnânico que só atin-ge o paraíso quando ele é o vencedor. Oobjetivo do ser humano é ser o herói, sesacrificar;a ética protestante se vincula muito bemcom o capitalismo (WEBER). O protestan-te tem que ganhar a sua salvação eterna. Odever é de trabalhar para a glória de Deus.Ele nunca tem certeza de chegar a ser es-colhido. Duvidar é um pecado. Para esca-par à dúvida e se convencer que ele éescolhido por Deus, nada melhor do que osucesso econômico. Esse sucesso vai sejuntar a um modo de vida ascético. Acu-mular sem gastar, reinvestindo tudo naempresa, o que correspondia totalmente aosucesso empresarial do início do século 20.O objetivo do homem é trabalhar muito paraa empresa sem procurar benefícios pesso-ais imediatos;a tradição de liberalismo que favorece onarcisismo. Atualmente, identificamosduas tendências:

§ o cocooning, essa tendência a ficar em casa,num lar confortável e personalizado;

§ a procura dos extremos, essa tendência aprocurar ultrapassar-se, a correr todos ris-cos se necessário para ser o primeiro(Odalia);o darwinismo que nos ensina que só o maisadaptado sobrevive e vai acarretar ideaisde competição, de ser sempre o melhor.

No Japão

O japonês, por viver num país muito povoado,aprende cedo a não atrapalhar o outro, a respeitá-lo.Três filosofias sustentam esse comportamento:

o Shintoismo, sobre o modelo do poderimperial, ensina fidelidade e obediência;o Confucionismo procura sempre o consen-so. O respeito mútuo é valorizado. Não sepode obrigar, mas convencer. WA, o bem é

oposto ao conflito. Essa filosofia vai enfa-tizar a adesão interna;o Budismo, segundo o qual o indivíduopode ultrapassar-se, pode ser melhor. For-nece um ideal de justiça. É uma filosofiado não ser que facilita decisões unânimes.A organização é mais importante que oindivíduo.

Na França:

a) nenhum elemento facilita o modo de vidaligado à otimização managerial.

• a presença do Estado dirigista evita os con-flitos, "como um policial no meio do trânsi-to". Não deixa a economia de mercado fluirà sua maneira. As relações dos francesescom o Estado são ambivalentes. É detes-tado e adorado no mesmo tempo;

• a procura da qualidade de vida e igualdadeentre os cidadãos fazem com que os fran-ceses sejam pouco preparados para a con-corrência internacional;

• o individualismo leva a realizações inte-lectuais excelentes, mas as realizações eco-nômicas sofrem dessa independência doscidadãos.

b) existe uma qualidade total àfrancesa:• os executivos dificilmente sacrificam suavida pessoal. Valorizam a integração do Sere do Ter;

• os proprietários de empresas sacrificamtudo, geralmente com o maior prazer;

• nas empresas com qualidade total, se falasobretudo de um espírito de empresa, devalores comuns:

- o gosto para o trabalho bem feito. Atradição do compagnonnage se perde,na França, mas continua influenciandosobretudo a consciência do alor de umprofissionnal competente. O com-pagnonnage consistia em uma forma-ção de alto nível para artesãos poucoreconhecidos em outros países: marce-neiros, carpinteiros, etc. Existia desdea Idade Média, o artesão era formadopelos seus pares e devia fazer uma voltada França de um ano e realizar umaobra;- a confiança que se dá aos empregados;- os objetivos coletivos e não individuais;- o papel da imaginação.

EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 • V 2 • NQ 38· p. 178-185 • 1999· 183

Page 7: oCUSTO DA EXCELENCIA (THE COST OF EXCELLENCE)repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/14426/1/1999_art_sdlins.pdf · que si-próprio. Existe uma busca permanente para ultrapassar seus próprios

c) especificidades das empresas francesas.As qualidades nas empresas francesas sãoexatamente os seus defeitos:

- a desorganização favorece a imagina-ção, o "jeitinho";- o espírito crítico exacerbado permite acapacidade de iniciativa;- a desconfiança em relação ao espíritomuito racional das grandes escolas exa-cerba a capacidade de duvidar e deixa umespaço para a intuição.

Não existe qualidade francesasem desorgani-zação, criatividade sem jeitinho, gênio sem caos.

CONCLUSÃO

Segundo os autores:

o sofrimento acompanha a guerra econômica.Vivemos numa lógica de guerra econômica atualmen-te nas empresas. Essa lógica supõe adesão dos exe-cutivos e mobilidade das empresas.

Que fazer?Sem o sistema managerial, poderia ser pior. O

sistema burocrático e autoritário é bem pior sob múlti-plos aspectos. É necessário, porém, ficar atento àsdoenças provocadas pelo sistema.

Opinião crítica:

a) os autores não examinaram o caso das em-presas brasileiras. Parece-me que um estudo rápidolevaria a pensar que encontramos uma situação ex-tremamente diversificada no Brasil. Coexistem em-presas que seguem um modelo burocrático, na puratradição do século XIX, e empresas de estilomanagerial, anunciando o século XXI.

A identificação dos executivos com a empresase realiza facilmente, mas os outros funcionários sãoprovavelmente mais próximos dos franceses que dosanglo-saxões e japoneses. Não querem se envolveralém do indispensável. Existe talvez um modelo lati-no de empresa.

• o individualismo é muito presente.• a desorganização acompanha a generalização

do "jeitinho", por exemplo, em muitas empre-sas latinas (sobretudo, brasileiras).

• um certo paternalismo "tempera" as relaçõesinstitucionais.

b) como GAULEJAC e AUBERT observa-ram, a organização managerial inoculou, no em-pregado, a ilusão de que ele era importante para aempresa. Mas, na verdade, ele não passa de umapeça descartável.

Quando a empresa desemprega, ele perde maisdo que o emprego. Quando as relações de trabalhoreaparecem na sua crueldade, ninguém, na empresa,consegue lidar com os perdedores do sistema.

Nesse livro, entretanto, deploramos um certofascínio pelo modelo managerial. As qualidades domodelo não justificam, segundo a minha opinião, essaquase-adesão. Não acredito que prestando atençãoàs queimaduras do sistema seria suficiente para trans-formar esse modelo numa organização "humana".

O modelo managerial comporta em si, sua pró-pria dificuldade. Esse modelo pede uma adesão internado executivo, mexe com suas estruturas psicológicas.A destruição das personalidades não representa umfato controlável. Faz parte do sistema. É parte inte-grante do modelo.

c) como nos outros livros de GAULEJAC, éextremamente interessante a utilização dos modelospsicanalíticos para analisar as empresas. Fornece umavisão nova e pertinente.

La névrose de classe, por exemplo, estuda asconseqüências psicológicas do deslocamento social.Quando a pessoa passa a fazer parte de um segmentosocial menos privilegiado do que sua classe de origem,ela se sente incompetente, mas também, quando elaatinge um segmento mais privilegiado, certos meca-nismos interferem. Sentimentos negativos vão "traba-lhar" contra a ascensão social do sujeito: a impressãode trair seus familiares, de ultrapassar seus própriosdireitos, de não ter lugar no mundo, uma estranha sen-sação de culpa, etc.

Esse método sociopsicanalítico me parece par-ticularmente interessante para organizar nossa percep-ção da complexidade das relações na empresa, numaépoca em que, de uma certa forma, as tranformaçõesse precipitam, sem que nada mude no fundo, na secu-lar relação de exploração econômica.

A psicanálise continua sua expansão, passandode método de investigação, método terapêutico e con-junto de teorias, a referência cultural, ajudando a ana-lisar a sociedade em geral e as empresas em

18 • EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 • V 2 • NQ 38 • p. 178-185 • 1999

Page 8: oCUSTO DA EXCELENCIA (THE COST OF EXCELLENCE)repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/14426/1/1999_art_sdlins.pdf · que si-próprio. Existe uma busca permanente para ultrapassar seus próprios

particular, com uma certa legitimidade. Resta aos psi-cólogos e aos outros inteletuais ficarem atentos paraque ela não ultrapasse essa legitimidade. Um mundodirigido pela psicanálise nos parece tão assustadorquanto um mundo sem psicanálise ... Mas isso é as-sunto para um outro debate.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUBERT, ., GAULEJAC, V. Le coüt del'excellence. Paris: Seuil, 1991.

FORRES TER, V. O horror econômico. São Paulo:Editora da Universidade Estadual Paulista, UNESP,1997, [(1996) Ia edição, França]

GAULEJAC, V. La névrose de classe. Paris: Hommes& Groupes Editeurs, 1987.

UNS, D. S. Ayrton Senna, a imolação de um deusvivo. Fortaleza: Edições UFC, 1995.

WEBER, M., (1967) A ética protestante e o espíritodo capitalismo. São Paulo: Pioneira Editora, 1967.[( 1947) 1a edição Alemanha]

EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 21 • V 2 • NQ 38 • p. 178·185 • 1999· 185