oliveira lima - secretario d'el-rei (1904)

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Oliveira Lima: Secretário D’El-Rei Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. Publicado na Gazeta de Notícias, 02/06/1904. O Sr. Dr. Oliveira Lima, entre um e outro livro de história, dá-nos agora uma comédia. Que vos não assuste este nome, vós que não amais as formas fáceis de literatura; nem esta é tão fácil, como podeis crer, nem deixa de envolver um caso psicológico interessante. Acrescentai-lhe o quadro e a língua, e tereis um volume de ler, reler e guardar. Com razão chama o autor ao seu Secretário d´El-Rei uma peça nacional, embora a ação se passe na nossa antiga metrópole, por aqueles anos de D. João V. É duas vezes nacional, em relação à sociedade de Lisboa. A aventura que constitui a ação é do lugar e do tempo; as pessoas e os atos que figuram nela caracterizam bem a capital dos reinos, com as máscaras dos namorados noturnos, a gelosia de sua dama, o encontro de vadios, capas enroladas, espadas nuas, mortos, feridos, a ronda, todo o cerimonial de uma aventura daquelas. Meteu-lhes o autor o próprio irmão do rei, infante D. Francisco, ainda que o não traga à cena, e a própria amada do secretário, que entra a pedir a absolvição do outro amado por ela, e com esta complicação política e pessoal dividiu o interesse da ação. O centro dela é naturalmente Dom Alexandre de Gusmão, em quem o autor quis pôr o nosso próprio interesse nacional. Nasceu-lhe a afeição já em anos maduros, não foi aceita, não foi reiterada, sem por isso esquecer nem acabar. Solicitado a servir a dama por outra maneira e para outro fim, Gusmão não o faz menos lealmente que em seu mesmo favor, se a tivesse de haver para si. A última palavra da comédia resume o caráter do secretário, livrando e casando o preferido de D. Luz, mandando-os para o seu Brasil, e acabando por lhes ensinar o segredo da vida, que é "levar as coisas... a rir, mesmo quando elas hão de fazer-nos chorar". Aqui sente o leitor o que Gusmão quisera ocultar já de todos, e admira a força da alma de um homem talhado para grandes desígnios. Gusmão, D. Luz, D. Fernando formam assim as três principais pessoas da comédia; mas era impossível uma história daquela gente sem frades. Assim o queria Garrett, que não via em Portugal coisa pública ou particular sem eles e usou deles. Aqui há um, nem podia deixar de havê-lo em pleno D. João V; há também um embaixador, — o inglês naturalmente, — e finalmente uma ama, ama de todas as peças, ainda trágicas, como a da Castro: "Ama, na criação; ama no amor de mãe". Esta, a Assunção, parece ser igualmente ambas as coisas. Ponde-lhe o convento a que se acolhe o namorado ferido, o lausperene, as touradas, o santo ofício, as contendas, as namoradas do rei, e reconhecereis,

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Livros de contos, e de literatura de Machado de Assis, os melhores livros do autor disponibilizados aqui no scrib.

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  • Oliveira Lima: Secretrio DEl-Rei

    Texto-Fonte:

    Obra Completa de Machado de Assis,Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994.

    Publicado na Gazeta de Notcias, 02/06/1904.

    O Sr. Dr. Oliveira Lima, entre um e outro livro de histria, d-nos agora uma comdia. Que vos no assuste este nome, vs que no amais as formas fceis de literatura; nem esta to fcil, como podeis crer, nem deixa de envolver um caso psicolgico interessante. Acrescentai-lhe o quadro e a lngua, e tereis um volume de ler, reler e guardar. Com razo chama o autor ao seu Secretrio dEl-Rei uma pea nacional, embora a ao se passe na nossa antiga metrpole, por aqueles anos de D. Joo V. duas vezes nacional, em relao sociedade de Lisboa. A aventura que constitui a ao do lugar e do tempo; as pessoas e os atos que figuram nela caracterizam bem a capital dos reinos, com as mscaras dos namorados noturnos, a gelosia de sua dama, o encontro de vadios, capas enroladas, espadas nuas, mortos, feridos, a ronda, todo o cerimonial de uma aventura daquelas. Meteu-lhes o autor o prprio irmo do rei, infante D. Francisco, ainda que o no traga cena, e a prpria amada do secretrio, que entra a pedir a absolvio do outro amado por ela, e com esta complicao poltica e pessoal dividiu o interesse da ao. O centro dela naturalmente Dom Alexandre de Gusmo, em quem o autor quis pr o nosso prprio interesse nacional. Nasceu-lhe a afeio j em anos maduros, no foi aceita, no foi reiterada, sem por isso esquecer nem acabar. Solicitado a servir a dama por outra maneira e para outro fim, Gusmo no o faz menos lealmente que em seu mesmo favor, se a tivesse de haver para si. A ltima palavra da comdia resume o carter do secretrio, livrando e casando o preferido de D. Luz, mandando-os para o seu Brasil, e acabando por lhes ensinar o segredo da vida, que "levar as coisas... a rir, mesmo quando elas ho de fazer-nos chorar". Aqui sente o leitor o que Gusmo quisera ocultar j de todos, e admira a fora da alma de um homem talhado para grandes desgnios. Gusmo, D. Luz, D. Fernando formam assim as trs principais pessoas da comdia; mas era impossvel uma histria daquela gente sem frades. Assim o queria Garrett, que no via em Portugal coisa pblica ou particular sem eles e usou deles. Aqui h um, nem podia deixar de hav-lo em pleno D. Joo V; h tambm um embaixador, o ingls naturalmente, e finalmente uma ama, ama de todas as peas, ainda trgicas, como a da Castro: "Ama, na criao; ama no amor de me". Esta, a Assuno, parece ser igualmente ambas as coisas. Ponde-lhe o convento a que se acolhe o namorado ferido, o lausperene, as touradas, o santo ofcio, as contendas, as namoradas do rei, e reconhecereis,

  • como ficou dito, que o quadro serve bem de fundo ao enredo inventado pelo autor. Quanto ao dilogo, tem as qualidades que poderamos exigir da composio e das pessoas. Dizem-se por ele, desde aquele escudeiro Joo Brs, todas as mincias e circunstncias precisas para a notcia dos caracteres e da ao. H facilidade e naturalidade, vida e interesse, a reflexo que no pesa e a graa que no enfastia. V-se bem a lealdade do escrivo da puridade, ouve-se o sonho imperial de Gusmo, sem que a linguagem enfie a pompa intil ou dispa a compostura que lhe d unidade. A consagrao cnica diz o Sr. Oliveira Lima que merece, como poucas, a figura de Dom Alexandre de Gusmo; ele acaba de lha dar, com a conscincia do personagem e do assunto. Sabemos que os estudos histricos e de observao social e poltica so prediletos do nosso ilustre patrcio. O talento brilhante e slido, a instruo paciente e funda, o amor da verdade, tudo isto que o Sr. Oliveira Lima nos tem dado em muitas outras pginas, acha aqui, ainda uma vez, aquele lao de esprito nacional que lhe assegura lugar eminente na literatura histrica e poltica da nossa terra. Folgamos de o dizer agora, e esperamos repeti-lo em breve.