operários em construção: as experiências sindicais dos ... · um processo dialogado que deveria...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL
Operrios em construo: As experincias
sindicais dos trabalhadores da construo civil de
Fortaleza entre as dcadas de 1970 e 1990
YURI HOLANDA DA NBREGA
FORTALEZA DEZEMBRO 2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL
Operrios em construo: As experincias
sindicais dos trabalhadores da construo civil
de Fortaleza entre as dcadas de 1970 e 1990
YURI HOLANDA DA NBREGA
Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de mestre em Histria Social Comisso Julgadora da Universidade Federal do Cear, sob orientao do Prof. Dr. Luigi Biondi
FORTALEZA DEZEMBRO 2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTRIA MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL
Operrios em construo: As experincias
sindicais dos trabalhadores da construo civil
de Fortaleza entre as dcadas de 1970 e 1990
YURI HOLANDA DA NBREGA
Esta dissertao foi julgada e aprovada, em sua forma final, pelo orientador e demais membros da banca examinadora, composta pelos professores:
_____________________________________________ Prof. Dr. Luigi Biondi (Orientador UFC)
_____________________________________________ Prof. Dr. Antonio Luigi Negro (UFBA)
_____________________________________________ Prof. Dr. Frederico Castro Neves (UFC)
FORTALEZA DEZEMBRO 2006
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Agradecimentos
Meus sinceros agradecimentos
Aos professores do Departamento de Histria da UFC pela dedicao e conhecimentos compartilhados. Ao professor Luigi Biondi pela orientao preciosa durante o desenvolvimento da pesquisa e pacincia histrica com os atrasos nos prazos que estabelecamos. Ao professor Frederico Castro Neves pela orientao fundamental quando ainda tatevamos na constituio do projeto de pesquisa, pela disciplina ministrada no Programa, pelas reflexes feitas na banca de qualificao e ainda por participar da banca de defesa. professora Edilene Toledo pelo incentivo dado no momento da constituio do projeto de pesquisa, pelas disciplinas ministradas no Programa, pela ajuda dada em alguns momentos pessoais difceis, pelo conhecimento e pela gentileza demonstrada no trato pessoal. Aos professores Eurpides Funes e Ruth Needleman, pelas disciplinas ministradas e pelo interesse demonstrado por nossas pesquisas.Ao professor Frank Ribard, por ter gentilmente aceitado em fazer parte da banca de defesa. Ao professor Antonio Luigi Negro por ter aceitado fazer parte da banca de dissertao e compartilhar suas experincias e conhecimentos conosco. Aos companheiros dessa jornada trilhada, particularmente Lindercy, Tcito e Teresa, pelas risadas coletivas e preocupaes compartilhadas diante da presso em desenvolver nossas pesquisas. A todos os funcionrios do Departamento de Histria: sem eles, o desenvolvimento da pesquisa seria impossibilitado. A todos os intelectuais relacionados na dissertao, que nos ajudaram a refletir e expandir a nossa compreenso do mundo em que vivemos. minha famlia querida: Tain (luz de minhalma), Erika (companheira pro que der e vier), meus irmos Marcos, Ana e Jlio e meus sobrinhos: so base de tudo. minha me (mulher extraordinria) e ao meu pai, que nos deixou durante o desenvolvimento da pesquisa, deixando as nossas percepes diferenciadas quanto aos valores que realmente importam nessa vida. Aos trabalhadores da construo civil de Fortaleza, seus exemplos de vida, de lutas e sonhos que nos fazem acreditar nas enormes possibilidades de construirmos uma sociedade diferente. A voc, que est lendo essas linhas. O conhecimento no um fim em si, mas um processo dialogado que deveria sempre ser desenvolvido para transformar e melhorar as vidas das pessoas.
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Resumo
Esta dissertao analisa as experincias sindicais dos trabalhadores da construo civil de Fortaleza no perodo compreendido entre meados da dcada de 70 e 90. Analisando as peculiaridades do mundo do trabalho na construo civil, particularmente o cotidiano operrio nos canteiros de obras, o estudo procura destacar o desenvolvimento da oposio sindical no ano de 1988 com uma proposta de reorganizao das relaes sindicais que eram desenvolvidas pela direo do sindicato desde 1976, e assim refletir sobre o estabelecimento de uma convergncia de interesses em relao aos operrios da categoria. Assim, analisamos como foram construdas as primeiras experincias nessa categoria a partir das concepes poltico-sindicais da nova diretoria: o I congresso dos trabalhadores da construo civil, as primeiras greves gerais, a elaborao do novo estatuto e suas diretrizes poltico-jurdicas, o projeto de educao popular, a construo do jornal operrio, as atividades de lazer e o desenvolvimento de redes de solidariedade nos momentos de agudizao nos embates com os empresrios do setor so algumas dessas experincias que, ao serem construdas pelos operrios, eles acabavam por se construir enquanto agentes protagonistas no seu mundo de trabalho.
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Abstract
This composition analyzes the syndical experiences of the workers of the civil construction of Fortaleza in the period between the 70s and the 90s. Analyzing the peculiarities of the world of the work in the civil construction, particularly the daily laborer in the seedbeds of workmanships, the study wants to detach the development of the syndical opposition in 1988 with a proposal of reorganization of the syndical relations that were developed by the direction of the union since 1976, and this way reflect on the establishment of a convergence of interests in relation to the laborers of the category. Thus, we analyze how the first experiences in this category from the politician-syndical conceptions of the new direction had been constructed: the I congress of the workers of the civil construction, the first general strikes, the elaboration of the new statute and its politician-legal lines of direction, the project of popular education, the construction of the laboring journal, the leisure activities and the development of nets of solidarity at the moments when the conflict with the entrepreneurs of the sector became hard are some of these experiences that, when being constructed by the laborers, finished for constructing themselves agents protagonists in their world of work.
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quem faz a histria da vida com ela rompeu as entranhas no cho quem quer saber do que est escondido procura no fundo dos olhos do povo
e dentro do seu corao vo com o vento as palavras, so como pombos-correio
mas esto sempre atrasadas pois o seu vo lento e o meu pensamento ligeiro! (Ednardo Pastora do tempo)
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Sumrio
Introduo..................................................................................................... 10
Captulo I O mundo do trabalho na construo civil: histria,cotidiano e identidade operria................................ 26
1.1 - Um perfil histrico da indstria da construo e do trabalhador............ 27 1.2 - As (aviltantes e perigosas) condies de trabalho................................. 42 1.3 - As relaes sindicais desenvolvidas na categoria na dcada de
1970 at 1988.......................................................................................... 59
Captulo II Novo tempo na construo civil de Fortaleza...................... 83
2.1 - A formao da oposio sindical: organizao, programas e propostas................................................................................................. 84
2.2 - As eleies sindicais de 1988: entre manobras e denncias, a disputa... palmo a palmo?........................................................................ 103
2.3 - Operrios sendo e tornando-se............................................................. 115 2.3.1 - O I Congresso dos Trabalhadores da Construo Civil...................... 116 2.3.2 - As diretrizes poltico-sindicais presentes no novo estatuto................. 122 2.3.3 - As primeiras experincias de campanha salarial e greve geral da
categoria.................................................................................................. 136 2.3.4 - O Projeto de Educao Popular dos trabalhadores da construo
civil........................................................................................................... 151 2.3.5 - O jornal A Voz do Peo....................................................................... 160 2.3.6 - Espaos de lazer, espaos de organizao e luta: entre festas,
jogos, cinema e discursos polticos, o lazer operrio ressignificado....... 171
Captulo III As relaes extra-muros estabelecidas pelo sindicato..... 178
3.1. As relaes de alianas e/ou conflitos do sindicato com os partidos polticos.................................................................................................... 187
3.2 Um mais um sempre mais que dois: a construo de alianas entre trabalhadores e as relaes com a CUT................................................. 209
3.3 As relaes entre trabalhadores e capitalistas na Construo Civil: concepes e estratgias polticas entre 1990 e 1995............................ 223
Concluso...................................................................................................... 276
Arquivos e fontes.......................................................................................... 279
Bibliografia.................................................................................................... 283
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Introduo
Em 2004, o rgo oficial de comunicao do Sindicato dos
Trabalhadores da Construo Civil de Fortaleza divulgava na primeira pgina
aos trabalhadores da categoria os resultados do dissdio coletivo julgado pelo
Tribunal Regional do Trabalho do Cear. Nesse julgamento, a jornada de
trabalho continua de segunda a sexta, sem os sete sbados, como era
anteriormente; permaneceria o desconto de um e meio por cento do vale
transporte e a maioria das clusulas anteriores e obrigava os patres
colocarem no nosso contracheque o nome da seguradora na qual foi feito o
nosso seguro de vida. Quanto ao dia do Trabalhador da Construo Civil, esse
ns vamos comemorar como todos os anos fazemos, independente que seja
feriado ou no.1 A comemorao seria com um torneio de futebol de campo,
de domin em dupla, banda de forr, sorteio de brindes e banho de piscina no
Clube do BIC Banco, em Messejana;2 nessa edio havia tambm outra
informao: com o ttulo A CUT mudou de lado!, o Sindicato foi desfiliado da
CUT em assemblia no dia 29 de Setembro de 2004, com a participao de
mais de 300 trabalhadores presentes.3
No ano seguinte, durante uma greve da categoria, dois trabalhadores
foram baleados por seguranas privados ao fazerem piquetes num canteiro de
obras; a conseqncia foi imediata: os trabalhadores invadiram o canteiro e
balanaram a obra com vigor, deixando-a em estado desolador.4
Essas experincias dos trabalhadores da construo civil de Fortaleza,
pautadas em disputas judiciais com os empresrios por interesses econmicos
ou pelo direito de dispor para si o dia do trabalhador da categoria, na busca por
se organizar com os movimentos sindicais e sociais que consideravam
combativos e os mtodos de ao direta radicalizados nos conflitos dentro dos
1 Jornal A Voz do Peo, outubro de 2004. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores na Indstria da Construo Civil de Fortaleza - STICCF. 2 Idem. 3 Idem. 4 Balanar a obra um cdigo utilizado pelos trabalhadores da construo civil de Fortaleza indicando a destruio de equipamentos, instalaes eltricas, paredes, materiais de construo etc.
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canteiros de obras, so desenvolvidas desde o final da dcada de 1980,
perodo caracterizado pela pujana dos movimentos sociais e sindicais no pas,
constituindo-se um novo cenrio por onde os sujeitos engendravam suas
concepes polticas e buscavam reorganizar-se para encontrar estratgias
profcuas para a realizao de suas demandas.
Este contexto histrico, no entanto, possui suas razes na
reorganizao e ascenso dos movimentos sociais e sindicais brasileiros no
final da dcada de 70, perodo de transio poltica e redemocratizao da
sociedade brasileira aps dcadas de represso estatal. O movimento de
reorganizao do sindicalismo brasileiro deste perodo ficou conhecido como
novo sindicalismo ou sindicalismo autntico, termos cujo sentido contm
uma idia de ruptura com algumas prticas e concepes que, segundo Eder
Sader,5 para estes novos personagens que entravam em cena vinham
marcando pejorativamente a estrutura sindical no pas durante a segunda
metade do sculo XX.
As propostas desses sujeitos histrico-sociais esto centradas na
construo pela base de um instrumento forte, capaz de satisfazer os anseios
dos trabalhadores no que diz respeito s suas demandas trabalhistas atravs
de poderosas mobilizaes de sua categoria - condenando o assistencialismo
de suas entidades e ressaltando a importncia da autonomia operria sindical
frente ao Estado, burguesia e aos projetos polticos dos partidos numa crtica
cida s concepes da velha estrutura sindical construda desde o perodo
do varguismo: todas as experincias sindicais de meio sculo seriam, portanto,
alocadas neste nico sentido, traduzindo as relaes entre o Estado e os
sindicatos a partir do conceito de populismo e que, segundo Jorge Ferreira,
pelo alargamento dos seus significados atribudos as diversas experincias e
concepes as quais procura dar inteligibilidade, acaba por se constituir num
conceito a-histrico.6
As concepes propostas pelo novo sindicalismo e pelas oposies
sindicais influenciaram profundamente os movimentos sindicais do pas,
5 Ver SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experincias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande So Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. 6 Ver FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na poltica brasileira. In O populismo e sua histria: debate e crtica. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 2001.
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fazendo com que surgissem diversas oposies em muitas e diferentes
categorias de trabalhadores e culminando com a construo, no incio da
dcada de 80, do Partido dos Trabalhadores, em 1982, e da Central nica dos
Trabalhadores, em 1983.
Da mesma forma, o processo de formao da oposio sindical na
construo civil de Fortaleza encontra elementos que tambm se diferenciam
da proposta (ao menos inicial) de autonomia frente a partidos polticos.
Enquanto que a reorganizao dos movimentos sociais e sindicais culminaria
com a construo do PT e da CUT, a construo da oposio sindical na
construo civil de Fortaleza desenvolvida a partir do apoio efetivo do
Coletivo Gregrio Bezerra - CGB.
Este coletivo tem a sua gnese a partir das divergncias internas do
PCB no final de 1979: com a volta do exlio dos dirigentes do partido, explodem
as lutas polticas internas que j existiam, mas que eram abafadas devido a
sua estrutura clandestina. O tom das divergncias inclua a posio do partido
sobre as greves do ABC paulista, j que vrios membros do Comit Central
condenavam essas greves operrias na Voz da Unidade (semanrio legal do
PCB), defendendo o no acirramento de tenses que poderia ocasionar um
fechamento do regime, sob o governo do ento presidente Joo Figueiredo.7 O
momento de ruptura ocorre no incio do ano de 1980, quando Luiz Carlos
Prestes escreve a sua Carta aos Comunistas, cujo contedo denunciava o
controle do que chamava de oportunismo, carreirismo e da poltica a reboque
da burguesia e, portanto, da incapacidade (desta) de compreender a
realidade brasileira e conclamando a uma mudana na poltica do partido por
uma nova direo que pusesse fim a estas concepes. A resposta da direo
teria sido inequvoca, proibindo a discusso do documento e ameaando de
expulso os militantes que no se submetessem a sua deciso.
A partir da impossibilidade dessa discusso interna, h um rompimento
nacional de militantes com a inteno de organizar coletivos estaduais que
iniciariam uma discusso interna e com outros indivduos e organizaes
polticas objetivando a construo de um partido revolucionrio, organizado na
7 A trajetria histrica do CGB, a sua verso sobre a sada do PCB, sua auto-definio poltica e todo o seu programa de tticas e estratgia, aqui mencionadas, so compreenses e citaes das Resolues do II Congresso Estadual do Coletivo Gregrio Bezerra do Rio de Janeiro, sem editora, de 1987.
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concepo entendida como leninista (de vanguarda, com um rgido controle
interno atravs do centralismo democrtico) e desenvolvendo uma interveno
nos movimentos sociais e sindicais defendendo a revoluo proletria socialista
como a soluo das contradies da sociedade brasileira.
Assim, surgiriam os Coletivos Gregrio Bezerra, em 1986, de onde
sairiam trs militantes que iniciariam a construo da oposio no sindicato dos
trabalhadores da construo civil de Fortaleza, derrotando em 1988 o grupo
poltico que estava frente da diretoria desde 1975.
Esse contexto histrico em que ocorreu a reorientao das relaes
sindicais na construo civil de Fortaleza e o desenvolvimento das suas
experincias sindicais diferenciado daquela conjuntura poltica em que se
iniciou o novo sindicalismo. De fato, se no final da dcada de 70 o pas vivia
um processo de redemocratizao poltica ainda marcado pela violncia do
Estado ditatorial e pelos grupos paramilitares formados principalmente por
membros do exrcito e da polcia civil, que tentavam inviabilizar a abertura
poltica atravs de diversos atos terroristas, o final da dcada de 80 foi
caracterizado pela consagrao das liberdades polticas e civis (dentro das
limitaes de um sistema capitalista, como se percebe claramente no episdio
do massacre dos operrios da siderrgica de Volta Redonda, em 1988, e o
assassinato sistemtico de trabalhadores no campo, alm de esquadres da
morte, tortura contra presos comuns nas delegacias etc.), cujo marco simblico
a Constituio de 1988 e o recrudescimento dos conflitos promovidos pelos
trabalhadores do campo e da cidade contra a burguesia.
Nesse perodo, h tambm outros elementos que condicionam as
experincias dos operrios da construo civil de Fortaleza: a queda dos
regimes socialistas no Leste Europeu e o final da experincia de um modelo de
sociedade, as dificuldades de reproduo do capital no mbito da produo,
provocando o redirecionamento cada vez maior dos investimentos para o
mercado financeiro e atingindo o poder de presso dos sindicatos, explicitando
as contradies dessas instituies, a fragilizao crescente das instituies
estatais com o fim do perodo entendido por Hobsbawm como a poca de
ouro do capitalismo (1946-1973), e assim as dificuldades dos capitalistas em
realizar as condies para o movimento de auto-valorizao do capital,
provocando um recrudescimento da explorao sobre os trabalhadores: todos
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esses elementos que fazem parte do processo de recomposio orgnica do
capitalismo mundializado, demandando uma reflexo maior dos movimentos
sociais e sindicais nesse processo.
As experincias sindicais desenvolvidas pelos operrios da construo
civil so condicionadas por todos esses elementos acima expostos, e assim, o
nosso tema ser a reconstituio das experincias sindicais dos trabalhadores
da construo civil de Fortaleza entre meados da dcada de 1970, quando se
inicia a redemocratizao do pas, at o ano de 1995, quando a aprendizagem
obtida por meio das tais experincias desenvolvidas culminaria na organizao
de uma greve geral que se tornaria um marco simblico para toda a categoria.
Reflexes sobre estudos do movimento
operrio sindical na histria recente
A pesquisa realizada possui uma clara inspirao nas tradies da
historiografia inglesa recente, representada particularmente pelos historiadores
Edward Thompson e Eric Hobsbawm, e tambm nos historiadores brasileiros
cujos estudos em histria social do trabalho partem de um esforo em repensar
algumas interpretaes cristalizadas na historiografia brasileira, tais como
Alexandre Fortes, Fernando Teixeira da Silva, Cludio Batalha, e Paulo Fontes,
entre outros, e tambm da histria poltica, tais como ngela de Castro Gomes
e Jorge Ferreira, alm de intelectuais na rea de sociologia do trabalho e
cincia poltica, como Ricardo Antunes e Eder Sader, respectivamente.
Dos historiadores brasileiros mencionados, seus estudos apresentam a
necessidade de contextualizaes que envolvam uma interdisciplinaridade, por
exemplo, entre a histria, a economia poltica e a sociologia, cujo propsito
seria reconstituir as experincias do movimento sindical brasileiro do sculo XX
que fujam de explicaes generalizantes e simplificadoras, como por exemplo,
a influncia da Teoria da Modernizao e o fenmeno do populismo,
produtores de percepes estruturalistas e fatalistas sobre os sindicatos
atrelados ao Estado, manipulando-os a seu bel-prazer e padronizando a
conscincia dos trabalhadores frente a esta situao.
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Analisando a produo historiogrfica sobre a classe operria brasileira
dentro do perodo da nossa pesquisa, Cludio Batalha8 identifica mudanas
significativas na trajetria dessa produo. O final da dcada de 70 e incio de
80 foi marcado por um grande alento histria operria, devido ao novo
sindicalismo, a liberdade acadmica, o interesse dos editores, a produo
historiogrfica vinda do exterior (Thompson, Hobsbawm, Castoriadis etc.), e a
mudana de enfoques. Uma grande transformao seria a histria operria
deixando de ser confundida como a do movimento organizado: sindicatos,
partidos, correntes ideolgicas deixariam de ocupar o primeiro plano dando
lugar para a classe, momentos excepcionais que cederiam espao para o
cotidiano operrio, a histria operria, que ultrapassaria os anos 30, e temas
anteriormente no colocados ou tratados como secundrios ganhariam um
novo espao, tais como condies de trabalho, de vida do operariado, cultura
operria, mulheres operrias etc. Entretanto, segundo Batalha, o campo da
histria operria chegaria ao final dos anos 80 em crise devido a fragmentao
do seu campo de estudos e sua aproximao com outras reas, conduzindo-a
para uma crise de identidade, alm da diminuio do interesse acadmico, a
mudana na conjuntura, com o final das experincias do socialismo-estatista
do Leste europeu, e o declnio do movimento operrio sindical, com alguns
intelectuais defendendo inclusive o desaparecimento da classe operria.
Essa crena ltima, no entanto, por ele refutada: as modificaes na
composio orgnica do capital provocam significativas alteraes na classe
operria, mas nada indica, neste momento, o seu desaparecimento, mas a sua
reestruturao que desafiaria as prticas e discursos sindicais e polticos.
De fato, Ricardo Antunes9 tambm analisa que tais modificaes
tiveram repercusses no apenas na sua materialidade, mas tambm na sua
subjetividade, no seu construir-se. O grande desenvolvimento cientfico-
tecnolgico se traduziria tambm em modificaes racionalizantes em prol de
uma maior produtividade, com conseqncias nefastas para o trabalhador e
seus direitos trabalhistas. Porm afirma que se poderia presenciar um processo
8 Ver BATALHA, Cludio. A historiografia da classe operria no Brasil: trajetria e tendncias. In Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo: Editora Contexto, 2003. 9 Ver ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. So Paulo: Editora Boitempo, 1999; e Adeus ao trabalho?: Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. So Paulo: Editora Cortez; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.
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mltiplo, com uma necessidade de requalificao profissional em alguns ramos
da indstria e diminuio da classe operria tradicional (trabalho manual), por
um lado, e sua expressiva terceirizao, concomitante a heterogeneizao
(trabalho feminino) e subproletarizao (precarizao), do outro.
Sua anlise nos remete a uma percepo da prpria lgica de
reproduo capitalista, pois esta s se realiza dentro da esfera trabalho-
consumo e, portanto, a impossibilidade de se extinguir a classe operria
enquanto perdurar a lgica do capital.
Assim, o que nos interessa, a partir das reflexes de Cludio Batalha e
Ricardo Antunes, seria tentar entender os significados dessas tendncias no
mundo do trabalho da construo civil em relao atividade produtiva, as
transformaes de prticas e discursos dos trabalhadores e na
intersubjetividade das suas relaes sindicais e polticas.
A tendncia majoritria dos sindicatos diante desse processo, segundo
Antunes, seria o de abandono das perspectivas de transformao social e
controle da produo, institucionalizando-se e se distanciando de suas bases,
aderindo ao sindicalismo de participao e negociao com o Estado e os
patres, dentro do iderio capitalista.
Tambm analisando a trajetria terico-conceitual da historiografia dos
movimentos sindicais, Alexandre Fortes afirma que
"do final da dcada de 70 e incio da de 80 enfatizou a importncia
do resgate da autonomia operria, focalizando os processos de
resistncia explorao e de luta espontnea contraposta s
orientaes de partidos e sindicatos. No que diz respeito ao
sindicalismo corporativista, este deixava de ser entendido apenas
como uma imposio do Estado ao movimento operrio, passando a
ser tambm encarado como o resultado de contradies internas
desse movimento, como aquele entre base e direo".10
O autor enfatiza que na
10 FORTES, Alexandre. Revendo a legalizao dos sindicatos: metalrgicos de Porto Alegre (1931 1945). In Na luta por direitos: leituras recentes em histria social do trabalho.Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999, p. 21.
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"medida (em) que a dcada de 80 caminhava para o seu final, a
situao vivenciada no interior do movimento sindical passava a
colocar em questo as teses que estabeleciam uma associao
excessivamente estreita entre projetos polticos e caractersticas
organizacionais dos sindicatos. De um lado, consolidava-se a
hegemonia das correntes sindicais que pretendiam operar uma
ruptura radical com o modelo corporativista. De outro, a
transformao da estrutura sindical esbarrava tanto nos hbitos e
concepes sedimentados nas rotinas internas como nas
expectativas e demandas dirigidas pelas prprias categorias
profissionais s suas entidades".11
O desenvolvimento do seu raciocnio o leva a problematizar, porm, a
persistncia de
"muitas das caractersticas institucionais consagradas na
Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT): unicidade, fornecimento
de assistncia, sustentao por meio do imposto sindical etc. Estas
contradies (...) traziam tona os limites das abordagens
historiogrficas sobre o processo de implantao daquela estrutura.
medida que bases mobilizadas e direes combativas no
representavam condies suficientes para a sua superao, difcil
seria sustentar que sua gnese se devera apenas imposio de um
poderoso agente heternomo, fosse ele Estado ou partido poltico".12
Sua concluso, portanto, que se torna necessrio um reexame de
tais processos "dando nfase na relao entre a formulao de demandas
sociais pelos trabalhadores e seu impacto na definio da prtica sindical".13
Assim, dialogando com Hardman,14 a construo e o desenvolvimento
das instituies da classe operria s podem ser percebidas dentro do sistema
de significaes culturais dos operrios e que, portanto, a burocratizao do
11 Idem, p. 22. 12 Idem, pp. 22 e 23.13 Idem, p. 23. 14 Ver HARDMAN, Francisco F. Nem ptria, nem patro!: Memria operria, cultura e literatura no Brasil. So Paulo: Editora da UNESP, 2002.
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sindicalismo brasileiro ocorreria de forma complexa e mltipla. Sua anlise o
leva a problematizar as relaes entre a cultura das classes dominantes e a
das classes subordinadas, pois a primeira seria o modelo prtico desta, sendo
a nica que elas conhecem. Esta percepo nos parece extremamente
estimulante, pois redimensiona os estudos de fenmenos presentes nos
movimentos sociais, como as contradies de suas prticas e discursos pelo
condicionamento dos valores dominantes. Assim, a persistncia de
caractersticas do sindicalismo corporativista, tais como a contribuio sindical
compulsria e a questo da autonomia sindical podem ser refletidas como
resultado no somente de uma imposio do Estado, mas de contradies
internas do prprio movimento operrio sindical, como mentalidades coletivas e
hbitos cristalizados historicamente atravs da internalizao subjetiva de
valores da burguesia.
J o historiador Fernando Teixeira da Silva faz uma anlise crtica da
chamada "teoria cupulista" de cooptao e manipulao de classe,
questionando a abordagem de Francisco Weffort, que apesar do mrito de ser
o pioneiro na desconstruo do modelo interpretativo das teorias da
"modernizao" e da "dependncia", acabou por deslocar o foco das anlises
dos eixos econmico e culturalista para o poltico. Assim, se tal perspectiva
teria acenado para a apresentao da classe operria como sujeito histrico,
enterrando as anlises deterministas desenvolvidas a partir de "automatismos
estruturalistas", por outro lado o desempenho dos trabalhadores passava a
depender fundamentalmente das avaliaes e opes polticas de suas
lideranas.15
Essa expectativa estaria dialogando com Eder Sader, cujas reflexes
sobre os movimentos sociais operrios que surgem no final da dcada de 70
significam a criao de um novo sujeito social e histrico coletivo e
descentralizado porque criam e so criados pelos prprios movimentos a partir
de suas prticas e discursos, sem a moral individualista burguesa ou tutela
partidria, mas ligados Igreja, aos sindicatos e s esquerdas, instituies
estas em crise e que procuravam refazer suas ligaes com estes movimentos.
15 SILVA, Fernando Teixeira. Direitos, poltica e trabalho no Porto de Santos. In Na luta por direitos: leituras recentes em histria social do trabalho. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991, p. 56.
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Eder Sader utiliza o conceito de sujeito coletivo no sentido de uma coletividade
protagonista da sua identidade, organizando prticas nas quais seus membros
defendem seus interesses e expressam suas vontades, constituindo-se nessas
lutas e recriando espaos polticos novos: a experincia do cotidiano.16
Por ltimo, algumas reflexes de Hlio Costa nos parecem pertinentes
para algumas concepes que possumos do novo sindicalismo. Analisando o
que chama de progressivo processo de enquadramento da memria dos
trabalhadores no perodo anterior a 1964, ele tece crticas viso
historiogrfica da era populista: tratar-se-ia de um sindicalismo em que os
trabalhadores seriam refns da poltica ditada por suas lideranas.17 E,
referindo-se a Marcelo Badar, argumenta que este
salienta como a imagem cupulista do sindicalismo no pr-64
cristalizou-se ainda mais a partir do reaquecimento das lutas
operrias no final da dcada de 70, que mais tarde desembocaram
no fortalecimento e na consolidao do chamado novo sindicalismo.
Conforme o autor, a idia do novo foi cunhada em dois sentidos:
primeiro, no contraponto ao peleguismo esto predominante no
movimento sindical e segundo, na oposio ao velho sindicalismo
vigente at 64. Carregada de juzos de valor, a oposio entre velho
e novo, foi sendo paulatinamente cristalizada no meio acadmico.18
Todavia, o chamado novo sindicalismo no teria sido capaz, segundo
sua anlise, de acabar com muitos dos fundamentos que caracterizam o
sindicalismo pr-64, preservados at hoje; citando novamente Marcelo Badar,
este observa que
as distintas expectativas sobre suas novidades, manifestadas
sobretudo entre 1978 e meados de 1980, bem como as mais rspidas
crticas a no efetivao de seu potencial transformador, que
emergiram nos anos 90, pautaram-se igualmente pela construo de
16 Ver Sader, Eder. Op. Cit.17 COSTA, Hlio. Trabalhadores, sindicatos e suas lutas em So Paulo (1943-1953). In Na luta por direitos: leituras recentes em histria social do trabalho. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991, p. 90. 18 Idem, ibdem.
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19
uma caracterizao negativa do movimento sindical anterior ao
golpe. Este era tomado como parmetro, do qual o novo sindicalismo
primeiro se distanciaria (despertando esperanas), para mais tarde
se mostrar pouco diferente (gerando decepo).19
Metodologias, fontes e captulos
Se a fragmentao do campo de estudo e a aproximao com outras
reas conduziu a histria operria a uma crise de identidade, por outro lado,
segundo Cludio Batalha,20 esta se beneficiou da diversificao das fontes
tradicionais (jornais, textos literrios e outras fontes escritas), com o recurso s
fontes judiciais, documentao policial, aos arquivos de empresa, histria oral
etc. e a prpria forma de utiliz-las, em relao abordagem do tema.
Alm disso, por se tratar de um tema recente, a enorme variedade de
fontes por ns verificadas constituiu-se num grande desafio em cruz-las, e
assim podermos obter o conhecimento pretendido. Dentre essas fontes,
destacamos aquelas que teriam sido emitidas pelo sindicato dos trabalhadores
da construo civil, tais como atas de reunio, de assemblia, de eleio
sindical, relatrio do projeto de educao popular, o jornal do sindicato A Voz
do Peo, trs estatutos da entidade, feitos nos anos de 1975, 1989 e 1993,
panfletos informativos por ocasio de greves ou convocao para eventos e
boletins propagandsticos da oposio sindical nas eleies para a renovao
da diretoria do sindicato no ano de 1988; tambm utilizamos depoimentos
transcritos de trabalhadores, diretores e ex-diretores por ocasio do I
Congresso da categoria, em 1989, e de uma entrevista com o ento diretor
sindical Jnio Vidal, em 1994, feitas pelo pesquisador Jos Ernandi Mendes,
que doou esse material para o sindicato dos trabalhadores.
Outras fontes arquivadas no sindicato seriam aquelas emitidas pela
Justia do Trabalho, como um processo de expulso de um trabalhador do
quadro de associados, em 1982, acordos, convenes e dissdios coletivos por
ocasio de greves e das campanhas salariais da categoria.
19 MATTOS, Marcelo Badar apud COSTA, Hlio. Op. Cit., p. 91.20 Ver BATALHA, Cludio. Op. Cit.
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20
Pesquisamos tambm na Biblioteca Menezes Pimentel edies de
jornais da grande imprensa, tais como O Povo, Dirio do Nordeste e Tribuna do
Cear, compreendidos entre o ano de 1982 a 1995.
No Instituto de Desenvolvimento do Trabalho - IDT/CE, pesquisamos
estatsticas de dados econmicos e sociais sobre o setor da construo civil
em Fortaleza e sobre seu trabalhador. Estas estatsticas versam sobre a
quantidade de trabalhadores, o gnero, o nmero de trabalhadores divididos
por funes, idade, escolaridade, a representao perante a economia geral e
o nmero de desempregados em Fortaleza, no perodo entre 1988 a 1993. E
por ltimo, do Anurio Estatstico do Brasil, produzido pelo IBGE, pesquisamos
dados sobre a participao da construo civil no PIB do pas.
Deste modo, ao reconstituir as experincias dos trabalhadores da
construo civil de Fortaleza, partimos de sinais e indcios deixados
intencionalmente ou no por aqueles que vivenciaram o processo sobre o qual
nos debruamos. Estas fontes tambm so relacionadas a elementos
subjetivos, como comportamentos, hbitos, rituais, aspiraes etc., exigncias
protocolares, forma de conduo de reunies, de assemblias, o modo como
dialoga um diretor com outro, ou com um trabalhador, a construo das
experincias sindicais, as exigncias de uma conduta a ser obedecida (ou no)
tornaram-se indcios que proporcionaram um determinado tipo de
conhecimento histrico.
Assim procuramos desenvolver cuidados em no cairmos em
armadilhas que poriam em risco a inteligibilidade do processo histrico; uma
delas, comum histria do tempo presente segundo Chartier, seria a liberdade
voluntria de mulheres e homens no fazer-se histrico, desprezando as
circunstncias e os condicionamentos (em uma palavra, processo e estrutura)
que limitam as possibilidades de suas escolhas e desejos.
Tambm nos utilizamos da memria e da histria oral como partes da
problemtica, e assim percebendo-as como matrizes de significados. A
importncia delas no estaria necessariamente na veracidade daquilo que os
sujeitos histricos lembram ou dizem, mas como e porque lembram,
compreendendo que, mesmo quando as lembranas esto erradas, elas
esto psicologicamente certas. A construo de mltiplas maneiras de
record-las em desafio histria, o que de fato teria acontecido, tornando a
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21
memria como um campo de tenses, uma arena de conflitos que envolvem a
prpria identidade individual e coletiva dos sujeitos.
Refletindo a partir das consideraes de Alessandro Portelli,21 no se
trata de esnobar os depoimentos das pessoas porque constroem verses que
no refletem o que teria acontecido, mas tentar explicar o porqu dessa
construo, os rituais e os smbolos que emergem desse processo,
problematizando a memria e extraindo significados da percepo que os
indivduos possuem de si e da sua histria. Nesse sentido, perceber a memria
em constante movimento, que constitui processos sociais compartilhados e
conflituosos e que se assume, portanto, como um fato da histria.
A construo de memrias, pois, demanda uma escolha de valores,
uma tomada de posio e a insero poltica do indivduo no mundo. H,
portanto, um forte componente de identidade pessoal e pertencimento social.
Quando a memria foi redimensionada como uma arena de lutas
polticas, a histria oral adquiriu um status de respeitabilidade cada vez maior
entre a comunidade dos historiadores.
A utilizao da histria oral se desenvolve na medida em que se
alargam os objetos e os campos de estudo da histria. A vida cotidiana, a
histria domstica, das mulheres ou da famlia so exemplos que podem ser
melhor refletidos com a sua utilizao. Isso no foi feito de maneira pacfica: os
historiadores sociais que utilizavam fontes orais tiveram que enfrentar a
desconfiana e as crticas de muitos historiadores, algumas bem pertinentes,
principalmente quando alguns trabalhos utilizavam-nas de forma no-rigorosa,
sem o entrecruzamento com outras fontes, ou percebendo-as de maneira
objetiva, como se os relatos demonstrassem a veracidade dos fatos por si, ou
quando se perde a viso totalizante do processo histrico, ou ainda como uma
alternativa histria oficial, como se a mera utilizao das fontes orais
produzisse uma outra verso necessariamente diferente. Da mesma forma,
algumas dessas utilizaes careciam de um maior refinamento para o seu
21 Ver Portelli, Alessandro. O massacre de Civitella Val de Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e poltica, luto e senso comum. In: Usos & abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000; As fronteiras da memria: o massacre das fossas ardeatinas. Histria, mito, rituais e smbolos. Revista Histria & Perspectivas. Uberlndia, MG: n 25 e 26, 2001; Sonhos Ucrnicos. Memrias e possveis mundos dos trabalhadores. Revista Projeto Histria, n 10. So Paulo: 1993; Forma e significado na Histria Oral. A pesquisa como um experimento em igualdade. Revista Projeto Histria, n 14, 1997.
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22
desenvolvimento plenipotencirio, e os historiadores sociais passaram ento a
refletir sobre a sua metodologia.
As fontes orais no devem ser pensadas como alternativas aos
documentos escritos, mas ambos devem interagir continuamente de forma a
ampliar os seus significados. Alessandro Portelli reflete que a histria oral nos
informa menos sobres eventos que sobre significados (o que no quer dizer
que ela no tenha validade factual). Portanto o man da histria oral est na
possibilidade de entender a subjetividade das pessoas, no apenas o que elas
fizeram, mas o que queriam fazer, o que acreditavam estar fazendo e o que
agora pensam que fez. Dessa forma, as narrativas podem abstrair significados
que seriam mais difceis de obter nos documentos escritos.
Seguindo o raciocnio de Walter Benjamin, um dos problemas
intrnsecos histria oral a tenso entre a narrativa oral, livre e selvagem, e a
escrita, presa e domada. De fato, o surgimento da narrativa escrita ocorre
historicamente a partir do advento da civilizao, da perspectiva da construo
da ordem, do controle das experincias humanas, da administrao das
relaes de explorao e suas conseqentes diferenciaes sociais.
Essa reflexo histrico-filosfica pertinente se refletirmos na
contradio entre os relatos orais e a transcrio escrita. O discurso oral, por
envolver elementos da tradio e da memria das pessoas, torna-se impossvel
de ser plenamente captvel quando se torna um texto escrito. Isso ocorre
simplesmente porque no se pode transcrever plenamente as experincias dos
narradores. Quando o relato retirado do contexto em que ele foi produzido,
ele passa a ser responsabilidade do historiador, que ir mold-lo e interpret-lo
a partir da sua subjetividade (e legtimo que isso seja feito, caso contrrio no
haveria a produo do conhecimento). No entanto, por possurem lgicas
dimensionais distintas, a narrativa perde a sua caracterstica selvagem: os
signos se transformam em sinais, e a narrativa situa-se como um peixe fora
dgua.
Isso ainda mais explcito se a transcrio for feita por outra pessoa,
ou se um historiador utilizar fontes orais de uma outra pesquisa, j que a
performance, as exaltaes, as entonaes, os lapsos, as divagaes, o que
dito ou no e com que nfase, a hesitao, enfim, os elementos psicolgicos e
psicossociais que envolvem o dilogo entre o historiador e os narradores
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23
tambm so de grande importncia. Assim, sabendo da importncia disso,
percebemos que as entrevistas transcritas de trabalhadores e diretores do
sindicato da construo civil e citaes que tambm fizemos de outras
pesquisas possuem estas importantes limitaes.
Por ltimo, a escolha do historiador em utilizar fontes orais tambm
uma opo poltica. Como a maior parte dos documentos escritos foi emitida
por instituies e entidades que mantm o controle em suas sociedades (o que
no quer dizer que no se possa criar estratgias para perceber os setores
oprimidos nesses documentos), os relatos podem possibilitar um encontro
direto com eles. Para Mikhail Bakhtin,22 a perspectiva dialogal da narrativa
possui uma dimenso social importantssima, pois o prprio trabalhador iria
pensar sobre si, idia esta que nos remete proposta marxiana de acabar com
a separao entre o pensar e o trabalhar.
Nessa perspectiva do materialismo histrico, a fala , portanto, prxis.
Ela a palavra (sinais) em movimento (signos), adquire um potencial
subversivo por sua dimenso libertria. Ela prxis porque remete a dimenso
da vida concreta, pois no trabalho com a histria e a memria orais, estas
partem de uma atmosfera social concreta.
O captulo 1 da dissertao procura adentrar o mundo do trabalho na
construo civil em geral e em Fortaleza, particularmente. Os subsetores da
construo, a caracterizao manufatureira do subsetor de habitaes e a
diviso social do trabalho nos canteiros de obras so de grande relevncia para
a familiarizao das peculiaridades inerentes ao trabalho e ao prprio
trabalhador da categoria, particularmente a questo da sua rotatividade nesse
setor produtivo e as frgeis relaes estabelecidas com os empresrios. Assim,
desenvolvemos um perfil histrico-social dos trabalhadores que compem o
nosso objeto de estudo: os profissionais e os serventes, cuja maioria formada
por migrantes com pouco conhecimento escolar, sendo esta caracterstica o
principal motivo para a sua entrada neste setor de produo, alm do cotidiano
de trabalho nos canteiros, as condies de trabalho e as relaes dos
trabalhadores com os engenheiros e mestres de obras. O captulo termina com
22 Ver BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. So Paulo: Editora HUCITEC, 1995.
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24
a reconstituio das relaes sindicais desenvolvidas entre a categoria e a sua
direo sindical a partir de meados da dcada de 1970 a 1988.
No captulo 2, reconstitumos o contexto histrico da sociedade e a
formao da oposio sindical na construo civil em 1988, desenvolvendo um
perfil histrico de alguns membros e suas experincias de vida, os embates
entre as concepes poltico-sindicais da diretoria e da oposio, as eleies
sindicais e o desenvolvimento das relaes scio-polticas com os
trabalhadores da categoria, as primeiras experincias sindicais dos
trabalhadores, tais como a discusso do novo estatuto da entidade, as
primeiras experincias de greve geral e os embates contra os empresrios, a
construo dA Voz do Peo, do projeto de educao popular e os espaos de
lazer desenvolvidos pela diretoria sindical, compreendendo, portanto, como tais
experincias teriam sido gestadas, quais as intencionalidades dos sujeitos
envolvidos e como se desenvolviam as relaes entre a direo e a base.
E por ltimo, no captulo 3, desenvolvemos uma compreenso sobre as
relaes estabelecidas pelos membros do sindicato e a categoria com outras
entidades, instituies e movimentos sociais e sindicais. Assim, analisamos as
relaes entre foras polticas e o sindicato dos trabalhadores da construo
civil de Fortaleza e sua categoria, compreendendo as tenses, as influncias e
o estabelecimento dos espaos sociais entre si. A concepo poltico-sindical
que os membros do sindicato iriam procurar expressar objetivava o
desenvolvimento por parte dos trabalhadores de uma conscincia de classe
anticapitalista e a construo de estratgias de embates que variavam de
alianas com outros segmentos da sociedade, atravs do estabelecimento de
redes de solidariedade, imprescindveis nos momentos de embates mais
agudos, e tambm de manobras, blefes, falsas deferncias e mesmo aes
diretas radicalizadas; assim, analisamos como os operrios da construo civil
compreendiam essa concepo norteadora das intencionalidades da sua
direo e como teriam construdo uma greve que faz parte do seu imaginrio
poltico: a greve de 1995.
O incio dos captulos vem acompanhado de citaes musicais do
perodo por ns refletido e que nos remetem s anlises que sero feitas um
tributo pela companhia feita durante as madrugadas em que escrevamos a
pesquisa.
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25
Captulo I
O mundo do trabalho na construo civil:
histria, cotidiano e identidade operria
Quem o trabalhador da construo civil de Fortaleza na segunda
metade do sculo XX? Como e por que ele entrou para este mundo do
trabalho? Quais so as peculiaridades deste setor da produo e como elas se
relacionam com as mentalidades dos operrios, criando e recriando um
imaginrio psicossocial de si mesmos e do prprio trabalho que realizam?
Estas so algumas das problematizaes que procuramos explicar
neste momento. Compreender quem so os trabalhadores, o seu cotidiano de
trabalho nos canteiros de obras e as relaes de poder dentro deles so
importantes, j que desejamos saber sobre a identidade operria que
constroem de si e da categoria que fazem parte.
Esses elementos so imprescindveis para a compreenso de suas
demandas relacionadas ao trabalho que executam, tendo assim o seu sindicato
assumindo um papel estratgico (mas no nico) para a realizao delas.
Deste modo, entender como os trabalhadores se relacionavam com os
membros da diretoria da sua entidade no contexto do regime militar e da
progressiva redemocratizao da sociedade, a percepo que estes possuam
dos trabalhadores, as concepes poltico-sindicais e os encaminhamentos
com os quais pretendiam responder s demandas da categoria possibilitou-nos
entender o contexto e o processo histrico-social desenvolvido nas relaes
sindicais na categoria e o momento de ruptura verificado nas eleies sindicais
de 1988.
-
26
1.1 Um perfil histrico da indstria da construo e do trabalhador
(...) chegando de madrugada na chapada de cimento
procurando com os olhos o que no fingimento
assustado de ver o medo no olhar do
companheiro
procurando saber dos segredos desse curral
grande de gado sem boiadeiro (...)
(Ednardo Boi Mandigueiro)
A partir da segunda metade do sculo anterior a cidade de Fortaleza
experimentava um rpido processo de crescimento populacional e urbanstico,
alcanando a condio de regio metropolitana com a incorporao das
chamadas cidades-dormitrio (Caucaia, Maranguape, Maracana e
Pacatuba), concentrando 28% da populao do estado, com quase um milho
e 800 mil habitantes, segundo o censo demogrfico de 199123.
Nesse processo de crescimento acelerado, a cidade passou por
inmeras transformaes de sua feio: bairros novos emergiram como que do
nada - com ou sem o apoio das instncias governamentais, com novas ruas e
avenidas cortando a cidade, alm do recrudescimento dos problemas infra-
estruturais, tais como o saneamento pblico, os transportes, a sade e
educao pblicas, as moradias populares, o sistema de empregos etc.
Todo esse processo de crescimento urbano foi em grande parte
estimulado pelas correntes migratrias interioranas do prprio estado,
fenmeno social cujas razes esto ligadas ao processo de concentrao e
centralizao urbanas que se verificou no apenas em Fortaleza, mas tambm
em outras cidades brasileiras da poca, corroborando para o desenvolvimento
de grandes metrpoles a partir da segunda metade do sculo passado.
Assim, por demais evidente que tambm em Fortaleza, dentre os
diversos ramos da produo, a indstria da construo civil torna-se um dos
23 Censo demogrfico da cidade de Fortaleza. Dados do IBGE de 1991.
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27
setores estratgicos para o crescimento e desenvolvimento do pas. Quando
verificamos os dados do IBGE para a formao do PIB nacional, temos24:
ANO Participao da CONST. CIVIL no PIB
1988 6,92%
1989 7,38%
1990 6.89%
1991 6,53%
Tabela 1. Fonte: Anurio estatstico do IBGE, Rio de Janeiro, 1992.
Segundo Marta Farah, este ramo industrial est dividido no Brasil em
trs subsetores:
O subsetor construo pesada inclui entre suas atividades a
construo de infra-estrutura viria, urbana e industrial
(terraplanagem, pavimentao, obras ligadas construo de
rodovias, de aeroportos e da infraestrutura ferroviria, vias urbanas
etc.); a construo de obras estruturais e de arte (pontes, viadutos,
conteno de encostas, tneis etc.); de obras de saneamento (redes
de gua e esgoto); de barragens hidroeltricas; a perfurao de
poos de petrleo etc. O subsetor montagem industrial, por sua vez,
o responsvel pela montagem de sistemas de gerao,
transmisso e distribuio de energia eltrica, de sistemas de
telecomunicaes, pela montagem de sistemas de explorao de
recursos naturais etc. O subsetor edificaes, finalmente, inclui entre
suas atividades a construo de edifcios residenciais, comerciais,
institucionais e industriais; a construo de conjuntos habitacionais; a
realizao de partes de obras, por especializao, tais como
fundaes, estruturas e instalaes, e ainda a execuo de servios
complementares, como reformas.25
24Alm da construo direta desses valores, este ramo de atividade tambm responsvel pelo desenvolvimento de outros setores, como a indstria de transformao, que fornece matrias primas para a realizao da construo civil. 25 FARAH, Marta F. S. Processo de trabalho na construo habitacional: tradio e mudana. So Paulo: Editora ANNABLUME, 1996, p. 52.
-
28
Como a nossa pesquisa tem como objeto de estudo os trabalhadores
da construo habitacional de Fortaleza, sobretudo este ltimo subsetor que
assume uma importncia maior de reflexo. Citando Islede Arruda sobre
algumas especificidades deste:
A construo de edificaes tem como mercado alvo o setor
privado, sendo que grande parte destas construes s se torna
acessvel populao caso haja participao do Estado, mediante
concesso de financiamentos, atravs da utilizao de recursos
provenientes de suas fontes de capacitao: cadernetas de
poupana e FGTS. Este subsetor caracterizado como o segmento
da construo onde as mudanas no plano tecnolgico e
organizacional se processam de forma mais lenta. 26
Esta citao importante porque, como analisaremos posteriormente,
as polticas governamentais para o setor da construo influenciam
decisivamente na sua oferta de empregos, alterando fortemente os aspectos
relacionados ao mundo do trabalho do subsetor da construo habitacional
inclusive as relaes sindicais.27 Assim, procurando compreender como as
mudanas tcnicas e organizacionais provocam tais modificaes nas relaes
de trabalho no setor da construo civil a partir da segunda metade do sculo
XX, a sociloga faz uma reflexo a partir da anlise de Nilton Vargas sobre
este subsetor, registrando que neste segmento ocorre
um processo produtivo onde h o predomnio do trabalho manual,
configurando-se, assim, como uma base manufatureira. Nesse
processo de construo convencional no se pode dizer que a base
tcnica seja artesanal, dado que o ofcio do arteso pressupe a
fabricao de um objeto como um todo o que exige uma alta
qualificao, tanto manual quanto intelectual no havendo
separao entre concepo e execuo. No caso especfico da
construo, o trabalho j se encontra parcelado, havendo uma 26 ARRUDA, Islede Gomes. A mo que faz a obra: um setor em mudana e um novo cotidiano em discusso. Dissertao de Mestrado em Sociologia, UFC. Fortaleza: 1993, p. 33. 27 Quando analisarmos as relaes entre os sindicatos dos trabalhadores e o patronal, no contexto do Plano Collor, poderemos apreender melhor essas influncias. Ver o captulo III, ponto 3.
-
29
diviso tcnica do trabalho bastante complexa. Nesse sentido, h
uma desqualificao operria, onde o exerccio da funo se d por
determinao de outrem, ao mesmo tempo em que a dependncia
do setor fora de trabalho humana faz com que esta categoria seja
a mola propulsora do processo produtivo.28
Portanto, o trabalhador dispe de uma importncia que lhe
potencializaria um relativo poder dentro dos canteiros de obras. Afinal, o
trabalho braal, trao fortemente peculiar deste setor ainda na segunda metade
do sculo XX, no pde ser facilmente substitudo por mquinas, fazendo-se
necessrio por parte dos empresrios e seus lugares-tenentes nos canteiros o
desenvolvimento de estratgias de domnio para fazer frente a estas
perspectivas, como veremos adiante.
Outro predicado deste setor possibilitar a gerao de renda com a
criao de empregos para setores sociais com pouca qualificao profissional,
a ponto de representar, sozinha, cerca de 5% da populao economicamente
ativa de Fortaleza, que no incio da dcada de 1990 situava-se em torno de
pouco mais de 500 mil habitantes29.
Quando percebemos os indicadores mdios anuais de ocupao por
setores de atividades, entre os anos de 1988 e 1991, temos:
ANO SUBSETOR DE
ATIVIDADE 1988 1989 1990 1991
Indstria de
transformao 16,52 18,17 17,71 16,09
Construo Civil 4,96 5,01 4,64 4,75
Comrcio 21,10 20,48 23,44 25,56
Servios 42,00 43,93 45,34 44,65
Outros 15,42 12,42 8,87 8,95
Total 100,00 100,00 100,00 100,00
Tabela 2. Fonte: IDT/CE, Fortaleza, 2005.
28 VARGAS, Nilton. Organizao do trabalho e capital um estudo da construo habitacional. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 1979. Apud ARRUDA, Islede G., op. cit., p. 35. 29 Destes, cerca de 52% eram de empregos informais, e 48%, formais. Dados emitidos em 2005, pelo Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT/CE). Este rgo, criado em 1998, uma organizao social no-governamental qualificada para a realizao de polticas pblicas na rea do trabalho, a partir das aes do programa SINE (Sistema Nacional de Emprego).
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30
Adentrando o mundo do trabalho na construo civil, percebe-se a
imensa variedade de funes desempenhadas: desde engenheiros, arquitetos,
pessoal de escritrio (praticamente a nica funo desempenhada pela mo de
obra feminina), mestres de obras, encarregados, e aqueles que compem o
nosso objeto de estudo pedreiros, carpinteiros, pintores, armadores,
eletricistas, estucadores, serventes etc. Cada uma dessas funes exercida
por um dos trabalhadores atravs de etapas, onde o trabalho de um s pode
ser iniciado aps a realizao anterior do trabalho de outrem. Assim, o
servente, por exemplo, carrega a matria prima para o estucador, que prepara
a massa feita com gesso, gua e cola que ser utilizada pelo pedreiro na
construo das paredes, mas isso aps o ferreiro-armador erguer a infra-
estrutura de metal, sob a qual a parede ser erigida.
Este ramo da produo cresceu tanto em novas empresas do setor,
como tambm em operrios que nelas trabalhavam, a ponto de, em 1988,
aproximadamente vinte mil operrios trabalharem formalmente na indstria da
construo civil em Fortaleza, recebendo uma baixa remunerao pelos seus
esforos em erguer a cidade, alm de cerca de seis mil trabalhadores, que
trabalhavam informalmente. Os dados oficiais atentam para a imensa
rotatividade dos trabalhadores nos canteiros de obra, o que confere a esta
categoria condies especiais prprias de organizao.
Esse trabalho dirio executado, portanto, em troca de um pagamento
em mdia de 1,72 do salrio mnimo em 198830, mas esta estatstica leva em
considerao os salrios maiores recebidos por funes tcnicas ou de
gerenciamento nos canteiros de obras, como a dos desenhistas, encarregados
ou mestres de obras, por exemplo. De fato, como veremos adiante, o salrio
mdio dos principais profissionais que compem o nosso universo reflexivo se
situa numa mdia pouco maior de um salrio mnimo, e isso sem contar com os
serventes, cuja renumerao quase sempre no chega a ser de um salrio
mnimo. 31
30 Dados fornecidos pelo Instituto de Desenvolvimento do Trabalho IDT/CE em 2005. 31 Os serventes so trabalhadores que normalmente no possuem nenhum saber especfico das diversas funes neste ramo. Seriam basicamente aqueles trabalhadores recm chegados do interior, ou de outras profisses, ou ainda aqueles que se iniciam no mundo do trabalho. O
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31
Da mdia de idade dos operrios, reproduzimos abaixo uma tabela
com as suas especificaes:
Faixa Etria Construo Civil
10 a 14 anos 09
15 a 17 anos 112
18 a 24 anos 4.436
25 a 29 anos 3.805
30 a 39 anos 5.805
40 a 49 anos 3.066
50 a 64 anos 1.747
65 anos ou mais 69
Ignorado 249
Total 19.298
Tabela 3. Fonte: IDT/CE, Fortaleza, 2005.
Podemos perceber, portanto, que o maior nmero de trabalhadores
est situado entre aqueles que acabam de deixar a adolescncia e aqueles que
j esto na faixa dos trinta anos, e assim j enfrentam problemas para se
empregarem em outros ramos de atividade:
(...) Eu sou de Jaguaribe, e antes de vir pra c, eu tinha trabalhado
na Cione (fbrica de leo de castanha), ali perto de Quixad, no
Tringulo. L foi o meu primeiro trabalho com carteira assinada, eu
comecei a trabalhar com carteira muito tarde, antes eu trabalhava,
mas sem carteira. E isso ruim pra gente se aposentar, n? A eu
vim pra Fortaleza. 32
Desta forma, a construo civil seria uma porta de entrada para os
jovens trabalhadores no mundo do trabalho, sendo assim uma oportunidade
para aqueles que procuram por um primeiro emprego, como tambm para
servio executado o de carregar as ferramentas, as matrias primas, ou faz-las chegar aos outros profissionais etc. 32Depoimento de Eluizito Alves, carpinteiro e ex-diretor sindical entre 1988-1991, dado em 2006.
-
32
aqueles que, devido sua idade mais elevada para os padres do mercado,
teriam dificuldades suplementares de arranj-lo em outro ramo de atividade
industrial e contando com proteo dos direitos da carteira de trabalho.
Essa caracterstica est relacionada com o fato de que a experincia
nesse ramo pode influir menos na obteno de um emprego em relao a
outras atividades industriais principalmente na funo dos serventes, que
compem cerca de um quarto dos trabalhadores33, configurando-se no maior
grupo neste setor.
Porm, uma das caractersticas mais intensas do perfil humano desta
categoria seria a de trabalhadores advindos das correntes migratrias rurais,
absorvidos pela necessidade de um grande nmero de trabalhadores para a
execuo das obras. Esta caracterstica pode ser aproveitada pelos
empresrios para aumentar a explorao sobre estes trabalhadores, cuja
grande maioria se emprega como serventes:
Eu vim do interior, peguei um nibus. Um empreiteiro, o cara fez o
que quis comigo, trabalhei 22 dias, um ms, eu no estou bem
lembrado, e me mandou embora, me mandou procurar meus direitos
trabalhistas. Eu nem sei andar, onde ser o lugar que a gente
procura a lei?. 34
Percebe-se, na fala do trabalhador, que a sua inexperincia para a
realizao do trabalho na categoria e tambm no estranhamento com a
realidade com a qual se depara nesse ambiente urbano constitui-se num
empecilho para a busca dos seus direitos, e que tal fato se constitui tambm
numa oportunidade de abuso dos empresrios. No estamos querendo afirmar
que os trabalhadores no conseguem se organizar devido a uma pretensa
ingenuidade em se deparar com um meio que lhes um tanto estranho, como
expressaram diversos cientistas sociais que se propuseram a analisar a
organizao dos trabalhadores provenientes de migraes dentro ou entre os
estados, durante a segunda metade do sculo passado. Como j refletimos na
33 Segundo Islede Arruda, em Fortaleza o percentual mdio desta funo situa-se em 27% na dcada de 1980. 34 Depoimento de um operrio que trabalhava como servente. Apud Mendes, Jos Ernandi. Trabalhadores da construo civil de Fortaleza: uma histria de luta e aprendizado. Dissertao de Mestrado em Educao, UFC. Fortaleza: 1994, p. 129.
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33
introduo da pesquisa, queremos apenas afirmar que esta situao confere
caracteres prprios nas relaes desenvolvidas entre capitalistas e
trabalhadores, contribuindo para a constituio do cenrio aonde se
desenvolve a nossa histria, e condicionando as maneiras com as quais os
sujeitos coletivos construiro as suas estratgias para obter aquilo que
intencionam. O historiador Paulo Fontes afirma que
a influncia da origem rural como fator explicativo estrutural para
uma suposta passividade e ausncia de iniciativa poltica dos
trabalhadores nos pases de acelerada industrializao e
urbanizao da Amrica Latina atravessou fronteiras e tornou-se um
paradigma analtico largamente influente, particularmente aps a
derrota do movimento operrio com o golpe militar de 1964 no Brasil
e os que o seguiram seus passos nos anos seguintes na Amrica
Latina (...) Os novos trabalhadores urbanos recm sados do campo,
em matria de ao poltica, entenderiam apenas a liderana pessoal
e o paternalismo. Seus laos familiares e comunitrios seriam teis
para sua mudana e instalao na grande cidade, transferindo
tradies camponesas de ajuda para o mundo urbano, mas
certamente no os auxiliariam como um guia poltico35
Assim, tambm queremos corroborar com a problematizao das
matrizes interpretativas que simplificam as aes e relaes poltico-sociais dos
trabalhadores com a burguesia e o Estado brasileiros, partindo ento de uma
perspectiva onde os trabalhadores, mesmo possuindo uma origem rural e com
a possibilidade de no terem um saber escolar desenvolvido, constroem com
inteligibilidades os mecanismos que os orientam dentro do novo contexto com
o qual se deparam, e assim tais caractersticas no so impeditivas para o
desenvolvimento de conscincias de classe que possam ter uma lgica de
confrontao.
De fato, estas caractersticas estariam presentes na identidade coletiva
dos trabalhadores da construo civil de Fortaleza. Nos documentos de filiao
ao sindicato, nos relatos dos atuais dirigentes e de ex-dirigentes, nos trabalhos
35 FONTES, Paulo R. R. Comunidade operria, migrao nordestina e lutas sociais: So MiguelPaulista (1945-1966). Tese de Doutorado em Histria, UNICAMP. So Paulo: 2002, p. 18.
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34
desenvolvidos nos programas de ps-graduao, nos depoimentos dos
trabalhadores etc., estes so em sua maioria pessoas vindas do campo,
fugindo das secas e das difceis condies de vida, ou descendentes daqueles
migrantes que vieram tempos atrs, em busca de melhores condies de
sobrevivncia.
A maioria desses migrantes no possui um grau avanado de
escolarizao, o que explica sua entrada relativamente fcil na construo civil,
proporcionada pela dispensabilidade de conhecimentos e diplomas de
instituies de ensino, como podemos perceber na tabela abaixo relativa ao
ano de 1988:
Escolaridade Masculino Feminino
Analfabeto 2.793 39
Fundamental menor
incompleto 9.917 77
Fundamental menor completo 2.373 28
Fundamental maior
incompleto 733 26
Fundamental maior completo 496 50
Ensino mdio incompleto 341 72
Ensino mdio completo 736 364
Superior incompleto 159 59
Superior completo 391 92
Ignorado 577 29
Total 18.462 836
Tabela 4. Fonte: IDT/CE, Fortaleza, 2005.
Se a dispensabilidade de um saber sistematizado de educao
estimula a entrada de pessoas que no o possuam no subsetor da construo
civil, isso no quer dizer que elas no tenham nenhum conhecimento
necessrio para tal trabalho. Primeiro, porque muitos desses migrantes
construam suas prprias casas nos seus locais de origem, ou mesmo quando
chegam em Fortaleza, nos bairros da periferia. E assim, mesmo sem um saber
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35
qualificado e formal, em termos proporcionais o trabalhador j opera com
noes de espao, de equilbrio etc. que o faz ter algum conhecimento do
trabalho em construo. Ademais, se normalmente eles ingressam como
serventes, atravs da observao do trabalho dos profissionais que os
possibilita a aprendizagem de mecanismos mais sofisticados para a construo
de edifcios, prdios etc., e assim acabam aprendendo empiricamente os
ofcios de vrias funes nos canteiros de obras.
E se o operrio j possui alguma experincia de ter participado de uma
construo, a procura por empregos neste setor lhe facilitada, e dada s
caractersticas deste - sua imensa rotatividade - isso importante, pois ele est
sempre procura de se empregar. Esta procura desenvolvida atravs de
redes de solidariedade familiares e de amizades, construdas desde o
momento em que se dispe a migrar para Fortaleza, e tambm nos locais de
moradia e de trabalho nesta cidade:
Eu me chamo Ednilson de Freitas, sou pedreiro, atualmente sou
funcionrio da construtora Colmia, n? E t a na categoria h
quase 26 anos. Eu cheguei do interior, sou natural de Morada Nova.
Ento eu cheguei em 80, eu tinha colegas meus que j eram da
categoria. Ento, me chamou pra trabalhar com eles, e eu entrei
como auxiliar, n, de bombeiro hidrulico. Trabalhei uns anos como
auxiliar e depois passei a ser profissional. (Entrou na construo civil)
Porque eu no tenho um grau de leitura, n, e eu acho que dessas
profisses que no tem estudo, uma das que paga melhor.
Eu me chamo Srgio Gomes, eu sou de Itapipoca, mas no meu
documento t como sendo de Pentecoste. Nessa poca os pais no
se interessavam muito pelo registro... (...) Eu nasci na zona rural (...)
e vim pr c em 52. Vim de trem, de maria fumaa, (...) e comecei a
trabalhar no ramo da construo civil em 76. (Por que neste ramo?)
Porque at por escolaridade, primeiro, n? Eu no tenho
escolaridade... A fbrica eu achava que era muito ruim pra se
trabalhar na poca, e eu j entrei na construo civil achando que l
eu ia ganhar mais, n, porque o salrio era baixo mas a gente
ganhava por produo. Porque quando eu cheguei aqui eu j tinha
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36
um irmo que era empeleiteiro, n, e ele j me levava diretamente...
e eu acompanhava ele. E a, com dois ou trs anos que eu tava com
ele, eu sa e me desliguei pra assinar a carteira, que eu tinha a maior
vontade de assinar a carteira, a quando eu me desliguei dele eu j
sabia fazer tudo (...).36
O pouco saber escolar deste ramo de produo de que dispe a
maioria dos trabalhadores da construo civil no ir impedi-los de desenvolver
uma prxis sindical como estratgia de obteno de suas necessidades, de
seus interesses e desejos, como personagens principais de suas vidas, como
demonstraremos no decorrer da nossa pesquisa, mas conferiu caractersticas
prprias neste desenvolvimento.
Tais caractersticas devem ser percebidas juntamente com as
transformaes operadas neste setor da produo e sua importncia
estratgica para o desenvolvimento econmico do pas.
No Brasil, este ramo foi impulsionado principalmente a partir da dcada
de 1950, com o programa rodovirio, a construo das grandes usinas
hidreltricas, a formao das grandes metrpoles e a construo de Braslia.
A criao da infra-estrutura necessria para a implantao destas
novas indstrias privilegiou a construo civil ao mesmo tempo em que
agigantou o endividamento do pas no exterior. Outra ampliao do setor da
construo civil ocorreu a partir de 1964 com a criao do Banco Nacional de
Habitao, financiado com recursos do FGTS dos trabalhadores, motivando o
setor com crditos mais baratos e trazendo a quase total dependncia da
indstria das construes residenciais para com o Estado.
Assim, a poltica habitacional serviu como suporte do modelo de
crescimento econmico implantado pelo Estado, que intencionava a ampliao
do consumo como necessidade para a estratgia desenvolvimentista do
capitalismo na segunda metade do sculo XX.
Esta dinamizao da produo da construo civil, no entanto, no
teria sido acompanhada por grandes inovaes tecnolgicas incorporadas ao
processo do trabalho, como aconteceu nas indstrias de transformao
36 Depoimentos dos trabalhadores Ednilson de Freitas e Srgio Gomes, respectivamente, dados em 2006.
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37
(indstrias onde ocorrem as transformaes das matrias-primas, por meio de
processos qumicos ou mecnicos, em outros produtos). Refletindo tambm
sobre a no introduo de novas modalidades tecnolgicas na construo civil
brasileira, Marta Farah argumenta que o problema se relaciona ao
papel atribudo construo habitacional na poltica nacional de
empregos. (...) Assim, at meados dos anos 70, a insero
macroeconmica da construo habitacional tendeu a articular a
meta de produo de moradias de absoro de mo-de-obra no-
qualificada, poltica que contribuiu preservao da base tcnica e
do padro organizacional tradicionais no setor. Um segundo fator
interfere tambm para a definio do processo de trabalho no mbito
da promoo estatal: a instabilidade caracterstica do mercado de
habitao do pas. Tal instabilidade associa-se, de um lado, forte
dependncia da construo habitacional com relao ao
desempenho global da economia, em face das repercusses deste
sobre a gerao de empregos e de renda, variveis diretamente
ligadas demanda por moradias e estrutura de financiamento para
o setor. (...) Finalmente (...) contribui tambm o fato de as iniciativas
de inovao serem assistemticas, propostas de fora para dentro
(pelo contratante o Estado), de forma episdica, no chegando a
constituir uma nova cultura das empresas.37
Esta caracterizao feita por Farah sobre o desenvolvimento da
construo civil no pas tambm poderia ser relacionada ao Cear. Segundo
Furtado, at a dcada de 50 existiam no estado poucas empresas de
construo civil.
somente com a interveno do Estado neste subsetor, atravs do
BNH e do Sistema Financeiro de Habitao, que passa a financiar
diretamente a produo e o consumo de moradias, que a atividade
habitacional se expande no Cear. O impulso na produo de
habitaes no estado se faz sentir no apenas na criao de
moradias para atender a populao de baixa renda (conjuntos
37 FARAH, Marta F. S. Op. Cit., pp. 114 a 116.
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38
habitacionais), como tambm para atender as camadas de renda
mdia e alta, que coincide com o crescimento vertical da cidade de
Fortaleza, em fins da dcada de 60 e incio da dcada de 70. (...) Na
realidade o subsetor habitacional absorve uma parcela significativa
da mo-de-obra no estado do Cear. Para manter relativamente
razovel as taxas de emprego, o governo incentiva a manuteno de
processos produtivos manuais, altamente tradicionais na produo
habitacional.38
Em sua pesquisa, Furtado entrevistou empresrios que confirmam a
intencionalidade do poder pblico estadual em no financiar o desenvolvimento
tecnolgico do subsetor da construo civil como estratgia para amortizar o
impacto do desemprego.
Assim, no processo de trabalho no subsetor de edificaes, as
mudanas ocorriam menos na esfera tcnico-cientfica e de forma mais
importante na organizao e na velocidade empregada no processo,
encontrando seu fundamento na habilidade do trabalhador, ao contrrio de
outros ramos da indstria, que apelam para a tecnologia e a cincia. A
ausncia de mquinas que aumentem o ritmo de trabalho compensada pelo
trabalho parcelado e pela jornada coletiva, que divide, combina e complementa
vrias tarefas individualizadas, simples e semelhantes.
Portanto, a explorao dos trabalhadores se configuraria num aumento
da jornada e do ritmo de trabalho, alm de uma superexplorao salarial dos
mesmos e facilitada pela enorme quantidade de mo-de-obra disponvel devido
s levas de migrantes do campo e dos trabalhadores desempregados dos
outros ramos de produo.
Contudo, existem outras questes relacionadas ao mundo do trabalho
na construo civil que seriam de extrema importncia para a nossa reflexo, a
comear pela rotatividade dos trabalhadores nos locais de trabalho e a
fragmentao destes. Assim, a entrada e sada dos trabalhadores durante a
construo ou ao final desta dificulta a organizao da categoria; se pensarmos
38 FURTADO, Maria J. de A. A construo da misria: um estudo sobre trabalhadores da construo habitacional de Fortaleza. Dissertao de Mestrado em Sociologia, UFC. Fortaleza, 1985, pp. 50 e 51.
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39
nas dezenas de canteiros de obras39 em que se espalham os trabalhadores,
que num momento trabalham numa obra e meses depois trabalham em outra,
possivelmente numa outra construtora, ou mesmo abandonando a categoria
por um trabalho em outro setor de produo, percebemos que tudo isso se
configura num desafio enorme para a organizao dos trabalhadores.
Diferentemente do trabalho fabril, por exemplo, os locais de trabalho se
modificam com imensa rapidez no tempo e no espao urbano, exigindo
estratgias para lidar com tais caractersticas.
Contudo, dialeticamente elas corroborariam tambm em algumas
vantagens para os trabalhadores, pois parecem contribuir para o
desenvolvimento de matizes psicolgicos e polticos coletivos interessantes
para os membros da categoria. Fernando Teixeira da Silva nos oferece uma
perspectiva importante das potencialidades de organizao e combatividade
dessa categoria:
Empregados sob contrato em diferentes canteiros de obras, os
operrios da construo encontravam-se em condies mais ou
menos semelhantes s de outros trabalhadores ocasionais. Assim,
em primeiro lugar, trocavam freqentemente de trabalho e no
estavam ligados a qualquer tipo de emprego bem definido. Segundo,
por no estarem engajados nos servios por contratos de longo
prazo e vinculados a um empregador especfico, viam-se livres de
constrangimentos que caracterizavam os trabalhadores com fortes e
permanentes vnculos empregatcios. Terceiro, as reivindicaes
esbarravam no problema do curto espao de tempo dos contratos
para o trmino das obras, o que levava os operrios a agirem
rapidamente se quisessem ver satisfeitas suas demandas. Era-lhes
mais difcil organizar a sustentao de uma ao coletiva de longa
durao, devendo evitar a perda de tempo em interminveis
procedimentos de mediao e arbitragem. Em sntese, suas
condies de emprego no podiam seno encorajar o recurso
paralisao quase imediata como arma contra os patres. Assim, a
39 Segundo os dados que obtivemos no sindicato dos trabalhadores da construo civil, no final da dcada de 1980 e incio de 1990 havia um nmero estimado entre 150 a 200 canteiros de obras espalhados na cidade de Fortaleza, onde trabalham cerca de 15 a 20 mil trabalhadores.
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40
ttica da ao direta tinha entre eles incontestvel eco, alimentando
a idia de um trabalho livre e a luta para eliminar a tirania patronal.40
Fernando Teixeira argumenta sobre a combatividade dos operrios da
construo civil da cidade de Santos e sua propenso em utilizar mtodos de
ao direta no perodo entreguerras e, portanto, num contexto histrico
diferente do nosso, mas os elementos por ele refletidos podem ser
perfeitamente relacionados nossa pesquisa, pois tais elementos tambm
estariam presentes, caracterizando o mundo do trabalho na construo civil de
Fortaleza no contexto por ns compreendido.
Assim, teremos oportunidades para aprofundarmos todas essas
peculiaridades que personalizam o mundo do trabalho na construo civil, e
que sero de extrema importncia para compreendermos as experincias
sindicais desenvolvidas pelos seus sujeitos histrico-coletivos em Fortaleza.
40 SILVA, Fernando Teixeira da. Operrios sem patres: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas, So Paulo: Editora da UNICAMP, 2003, pp. 61 e 62.
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41
1.2 - As (aviltantes e perigosas) condies de trabalho.
(...) e tropeou no cu como se ouvisse
msica
e flutuou no ar como se fosse sbado
e se acabou no cho como um pacote tmido
agonizou no meio do passeio nufrago
morreu na contramo atrapalhando o pblico (...)
(Chico Buarque Construo)
Como j expusemos, a caracterstica manufatureira no setor da
construo civil possibilita que o trabalhador alargue sua importncia na
produo por deter o conhecimento prtico do ofcio, em comparao com
outros setores de produo em que o nmero de trabalhadores foi
sistematicamente diminudo com o processo de implementao de novas
tecnologias produtivas. Para anular esta particularidade, a sociloga Islede
Arruda sugere duas estratgias patronais: por um lado,
(...) exige uma forma de controle extremamente rgida, dominada por
fortes estruturas hierrquicas que comandam o trabalhador sob
coero direta. Junto ao uso da disciplina, a empresa oferece
incentivos econmicos que motivam o operrio a trabalhar mais,
intensificando a extrao de excedente de capital. 41
Estas duas estratgias agem conjuntamente para produzir uma
realidade sinistra nos locais aonde so erguidas s construes, quando se
percebe um perigoso jogo de vida e morte para os operrios diariamente,
sujeitados a realizarem tarefas arriscadas e se acidentarem devido falta de
equipamentos de segurana, alm de aleijamentos e doenas que so prprias
a esse ofcio.
comum, pois, deparar-se com diversas fontes que retratam esse
quadro tenebroso sobre as condies de trabalho do operrio da construo
civil. Dois exemplos citados por jornais da grande imprensa podem ilustrar bem
41 ARRUDA, Islede G. Op. Cit., p.36.
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42
uma espcie de guerra silenciosa e surda, travada entre o capital e o
trabalho:
O operrio Jos Maria Pereira, 32 anos, casado, natural de
Pacatuba, que residia rua Delmiro Jnior, n 100, Pajuara, teve
morte violenta quando despencou do dcimo andar de um prdio em
construo, fato acontecido s 10 hs, de ontem, prximo a
Assemblia Legislativa. Jos Maria se encontrava desempregado e
um amigo o convidou para trabalhar sem carteira de trabalho
assinada, com o mestre de obra. A vtima topou e ao executar as
tarefas determinadas pelo mestre de obras, desequilibrou-se e caiu,
tendo morte imediata. No local ningum quis dar informaes mas
ficou patenteado que todos que trabalhavam na obra no tinham as
mnimas condies de segurana e os parentes da vtima, bastante
revoltados, contaram que vo exigir os direitos trabalhistas junto ao
Tribunal Regional do Trabalho.42
E diante de denncias de insegurana dos trabalhadores da construo
civil de Fortaleza e a despeito de verificar as condies de trabalho neste
ofcio, com o ttulo A morte continua rondando as construes, uma
reportagem de um outro jornal da grande imprensa da cidade noticia que
completamente desprovido de qualquer material de proteo (botas,
capacetes e principalmente cintos de segurana), o operrio
desafiava sua prpria sorte, erguendo-se entre armaes de madeira
at atingir o topo da placa de concreto, num autntico jogo de
cintura para no perder o equilbrio e projetar-se no vazio, como
aconteceu aos carpinteiros Miguel de Abreu Lopes, Edmar de Sousa
e Ananias Francisco da Silva mortos quando despencaram de um
andaime do 20 andar do prdio da Caixa Econmica Federal.43
A precarizao das condies de trabalho tambm denunciada pelo
jornal do sindicato. Em 1991, com a manchete Construo Civil: roleta da
morte, este denuncia que
42 Jornal Tribuna do Cear, 30 de agosto de 1988. 43 Jornal O Povo, 28 de junho de 1991.
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43
no final do ms de junho e comeo de julho aconteceram quatro
acidentes com morte na construo civil de Fortaleza. No dia 22 de
junho, Otaclio Ferreira Gomes, pintor, 31 anos, casado, caiu do
stimo andar por causa do rompimento de uma balana com
parafuso enferrujado. Otaclio trabalhava na Construtora Estrela. Dia
27 de junho morreram de choque eltrico Ccero Alexandre da Silva,
33 anos, e Joo Oliveira Alves, 30 anos. Eles trabalhavam na
reforma da agncia Central do Banco do Brasil, da Construtora
Barma. E, no dia primeiro de julho faleceu Antnio Maciel da Costa,
carpinteiro da damo Construtora por falta de bandeja de
proteo.44
Mas as mortes por despencarem dos prdios no so as nicas a
contriburem para a estatstica que d construo civil o triste ttulo de
campe de acidentes de trabalho: a falta de equipamentos de segurana seria
responsvel tambm por doenas tpicas desse ofcio, como as respiratrias, e
dentre elas destaca-se a silicose, doena obtida pela absoro de poeira de
cimento, pois que o trabalho sem as mscaras necessrias para lidar com este
material acaba por provocar o entupimento de seus pulmes, dificultando a
respirao e levando-o a morte, alm de doenas de pele causadas por esta
mesma matria-prima. Uma outra doena familiar aos trabalhadores o ttano,
provocada pela ausncia de botas, luvas e capacetes adequados para um
trabalho que envolve materiais perfurantes (eu mesmo, ao entrar num canteiro
de obras desprovido de material de segurana, tive a experincia de receber na
minha cabea uma carrada de cimento, mas que por sorte ainda estava
fresco).
Num artigo sobre a construo de um conjunto de casas populares no
Conjunto So Cristvo, este continha denncias em relao segurana no
trabalho:
No geral, as construtoras no fornecem material de segurana para