os antropológos e a luta pelo direito

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SÉRIE ANTROPOLOGIA 374 EM MEMÓRIA DE TEMPOS MELHORES: OS ANTROPÓLOGOS E A LUTA PELO DIREITO Rita Laura Segato Brasília 2005

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Texto da antropóloga da Universidade de Brasília, Rita Laura Segato. Trata-se de texto importante para discutir as relações entre direito e antropologia.

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  • SRIE ANTROPOLOGIA

    374

    EM MEMRIA DE TEMPOS MELHORES:OS ANTROPLOGOS E A LUTA

    PELO DIREITO

    Rita Laura Segato

    Braslia2005

  • 2Em Memria de Tempos Melhores: os antroplogos e A Luta pelo Direito

    Em resposta ao texto: Poltica de cotas raciais, os 'olhos da sociedade e os usos daantropologia: o caso da Universidade de Braslia" de Marcos Chor Maio e RicardoVentura 1 (Revista Horizontes Antropolgicos N 23, seo Espao Aberto, junho de2005).

    Rita Laura SegatoDepto. de Antropologia,

    Universidade de Braslia.

    So vrias as perguntas e francas objees que surgem medida que passo as folhasdo texto de Marcos Chor Mario e Ricardo Ventura nesta, minha segunda leitura domesmo. Por tratar-se de questes de ordens muito diferentes, procedo a numer-lasnuma hierarquia que v das mais pontuais relativas a problemas na argumentao,metodolgicos e factuais -, at questes mais filosficas sobre o contedo mesmo dasafirmaes dos autores.

    Agradeo aos editores deste nmero da Revista Horizontes Antropolgicos, CarlosSteil e Srgio Teixeira, por haver-me convidado e finalmente convencido a participar dodebate, dando-me com isso a oportunidade de tornar pblica a minha crtica ecompartilhar com os leitores a srie de incorrees que identifico no texto sobescrutnio.

    1. A primeira, que tambm ser certamente a ltima a ficar na esteira da leitura, sobre o pretendido carter cientfico e disciplinar do artigo onde avaliam o mtodo deidentificao racial utilizado pela Universidade de Braslia. Pergunto-me: o exame dosfatos e das citaes por eles cuidadosamente escolhidos num recorte contextual pelomenos discutvel tenta responder uma pergunta autntica, da qual no se conheciaresposta antes do exerccio disciplinar? Ou trata-se de uma estratgia para instilar umaopinio maquiada de resultado laboratorial? inevitvel para mim, uma vez interpeladae atrada pelos editores da Revista a mergulhar nesta segunda leitura, mencionar advida que paira sobre o sentido e a finalidade da diligncia dos autores.

    1 Somente para facilitar a leitura da minha resposta aos autores, lembro que estes tentam abalar apossibilidade de instituir aes afirmativas mediante o seguinte argumento:

    Somente e vlida a auto-declarao como membro do grupo racial "negro". Nenhum critrio objetivo ou julgamento externo sobre a pessoa vlido para classific-la como

    negra.

    Portanto, qualquer um pode se auto-classificar como negro, e nenhuma instncia pode recusaressa auto-declarao.

    Fica implcito que, com isso, a ambigidade fica to alta que os nveis de fraude e distoro setornam impossveis de controlar, e a poltica de cotas fica inviabilizada.

  • 3 Parece-me aceitvel que eles tenham opinio, e que a opinio deles seja diferente minha, mas no que apresentem sua opinio sob as vestes de neutralidade de umargumento cientfico. Concordar ou no concordar com uma Poltica de Cotas paraEstudantes Negros para a universidade brasileira so duas posies valorativas eideolgicas frente sociedade e a universidade, so diferenas de ponto de vista sobre oque melhor para o pas. No so resultados de um exerccio disciplinar. Se o exercciodisciplinar deve, necessariamente, acompanhar a opinio para demonstrar que ela possuifundamento, isso, contudo, no autoriza os autores a omitir a explicitao da suaposio sobre o assunto e substitu-la pelo que apresentado como exerccio puramentedisciplinar e neutro, a risco de que o resultado suscite a dvida que estou justamentedescrevendo: que se trata de um contrabando ideolgico embrulhado no linguajar deaparncia sistemtica e laboratorial. A opinio de Ventura e Chor Maio chega a nsnum invlucro, dissimulada por trs de um recortado conjunto de citaes de textosautorais ou institucionais, assim como de depoimentos de pessoas, que acabafuncionando como uma verdadeira cortina de fumaa para esconder o que no teriaporque estar oculto: o que eles pensam sobre abrir as portas da universidade a um tipode pessoas que no a freqentam atualmente e cuja marca de excluso radica na cor dapele em associao com outros dados fenotpicos. Se, por um lado, a opinio deveamparar-se em fatos; o recorte dos fatos no pode tentar escamotear a opinio que lhedita o rumo.

    Uma variedade de tticas de indefinio e ocultamento como a apontada revela-serecorrente na construo do texto aqui analisado.

    2. Por exemplo, ao traar seu recorte do processo que levou instalao de umsistema de cotas na Universidade de Braslia, os autores, prisioneiros de um preconceitocomum a muitos dos que abraaram recentemente o estudo das polticas pblicas numaperspectiva antropolgica, as abordam j em andamento, como se ditas polticaspudessem surgir de um vcuo sociolgico e histrico ou resultaram da espontneamagnanimidade daqueles que ocupam os cargos de governo neste caso, do governo dainstituio universitria. Um pouco de histria bastaria para constatar que doaes destetipo, que acabam inaugurando um novo perodo na histria de um pas, so sempreconseqncia de presses emanadas de atores sociais ao exterior do grupo doador. Noestamos no campo da caridade, estamos no campo da poltica.

    O processo que culmina com a instalao das Cotas na UnB no foi diferente. Ele o resultado da luta iniciada pelo estudante negro de doutorado do Departamento deAntropologia da Universidade de Braslia, Ariovaldo Lima, que fora penalizadoinjustamente por um dos seus professores e vitimizado pela indiferena anacrnica epouco informada da maioria dos docentes desse Departamento. Estes, desconhecendoConvenes, Declaraes, Recomendaes e uma variedade de outros instrumentos dalegislao internacional relativa importncia da promoo da igualdade racial, dadiscriminao positiva e da incluso racial nas profisses e na educao j existentes poca, permaneceram ignorantes da importncia da sua presena diferenciada no meioacadmico em razo da sua cor e de um conjunto de outras caractersticas que, comoconseqncia da histria da escravido no Brasil, emolduram seu fentipo. A lutasolitria de Ari - que no entregou seus direitos, no acatou a suspeita por momentos

  • 4generalizada sobre sua capacidade de obter o ttulo mximo numa instituio deexcelncia, no se amedrontou com as ameaas e obstculos que lhe foram interpostos,e acabou vencendo na sua luta pessoal e coletiva at se doutorar com louvor no mesmoclaustro acadmico que o tinha maltratado -, somada dos poucos que com ele sesolidarizaram, instala, na Universidade de Braslia, to cedo como 1998, a luta porconceber, projetar e conseguir implantar o primeiro sistema de cotas para estudantesnegros que surge da vida interna de uma universidade, da intimidade mesma de seucotidiano institucional e no exerccio pleno da sua autonomia. Mais tarde, asautoridades e todos aqueles por elas designados, fizeram eco desse clamor que vinha debaixo e que j tinha alcanado os corredores ministeriais e as pginas da imprensa nacidade e no Brasil. Era necessrio mostrar que a Universidade de Braslia era umauniversidade com capacidade de auto-correo e dignidade institucional.

    O primeiro momento desta histria - de conseqncias escala nacional na pocaimprevisveis - no assim to remoto ou irrelevante como para ter sido omitido porMarcos Chor Maio e Ricardo Ventura de seu prolixo relatrio: foi a elevao do CasoAri ao cenrio poltico dentro da Universidade por parte do professor Jos Jorge deCarvalho, em colaborao comigo, quando apresentamos o primeiro rascunho da nossaProposta de Cotas para estudantes Negros (em seguida ampliada para incluir candidatosindgenas), inicialmente em evento organizado pelo Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros(NEAB) da UnB, em 17 de novembro de1999, e logo depois no Auditrio da Reitoriada Universidade de Braslia, em 6 de dezembro de 1999. O segundo momento foi asinalizao positiva dada pela comunidade universitria quando o Conselho de Ensino,Pesquisa e Extenso, na sesso de 19 de maio de 2000, reconheceu oficialmente que anota que Ari tinha recebido era injusta, mudou a avaliao do professor e restituiu aoestudante os crditos perdidos sem necessidade de cursar novamente a disciplinaobrigatria. As autoridades competentes, representadas aqui pelo Vice-Reitor daUniversidade, Prof. Timothy Mulholand, e os representantes de Departamentos eInstitutos, com atuao destacada do Prof. Volnei Garrafa do Depto. de Biotica, semostravam, fora de qualquer dvida, sensveis ao problema do negro na Universidadede Braslia. Foi essa luta, de baixo para cima, detonada por um caso ocorrido em 1998 eformalizada com a primeira apresentao oficial da nossa proposta em 1999, que levouas Cotas ao debate interno da universidade e ao debate nacional, vindo a convergir como processo da Conferncia Mundial Contra o Racismo, de Durban, at alcanar sua atualdimenso de poltica pblica num projeto nacional de incluso racial nas instituiesacadmicas.

    Gostaria tambm de esclarecer, para o benefcio dos leitores, que, finalmente, otexto Proposta de Cotas para Estudantes Negros e Indgenas na Universidade deBraslia, elaborado por mim e por Jos Jorge de Carvalho, foi votado e aprovado nantegra e sem modificaes pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extenso da UnB em 6de junho de 2003 e circulou - e ainda circula - no site da Universidade de Braslia emuitas outras pginas da WEB como o Nmero 314 da Srie Antropologia do (Braslia:Depto. de Antropologia - Universidade de Braslia, 2002). Mais uma vez, resultainconcebvel sua ausncia nas quatro pginas da bibliografia apresentada por Chor Maioe Ventura. No somente ele no previa a prova fotogrfica da negritude, como osautores reconhecem, mas inclua trs rgos suplementares para o acompanhamento doprocesso: uma Ouvidoria universitria para estudantes e outros membros dacomunidade acadmica em situao vulnervel, uma Comisso de Acompanhamento

  • 5Psico-Pedaggico e uma Comisso de Monitoramento da medida, o que mais tarde veioa coincidir com uma das Recomendaes da Conferncia de Durban (voltarei a referir-me a esta ltima). Nenhuma delas foi considerada no processo de implementao. Noseu defeito, uma Comisso Especial foi constituda para fazer a triagem dos quequalificam para o benefcio, da qual nem o professor Jos Jorge de Carvalho nem eufazemos parte.

    3. O mesmo esprito discricionrio na seleo e apresentao dos fatos at aquiapontado afeta um dos argumentos centrais do artigo em questo. Trata-se do supostoengano da Universidade de Braslia ao tentar definir quem negro e, portanto, qualificaao ingresso por cotas, e da sua infrao ao princpio de auto-atribuio ou auto-declarao. Mais uma vez, para tratar este ponto, Chor Maio e Ventura se poupam dorisco de exibir sua voz autoral num texto que, com efeito, a todas vistas interessado, eoptam por escudar-se na palavra da Associao Brasileira de Antropologia sobre otema. Ao faz-lo, induzem tambm o leitor a desistir de toda e qualquer dvida arespeito dos mecanismos de ordem corporativa que investem essa palavra de umaautorizao disciplinar. De novo, os autores tentam passar gato por lebre, fazendo queos incautos acreditem que o papel da ABA cientfico, no sentido de que a sua palavrarepresenta a postura terico-metodolgica e os resultados de todos os seus membros.Ora! Seria esta a pior Associao Cientfica do mundo se ela contasse com tal unidadedos procedimentos, abordagens e posturas de toda a comunidade disciplinar querepresenta! E mais grave ainda, no resulta claro para o leitor se deve ou no supor quea ABA citada porque os autores so scios dela, por presumi-la cientificamenteautorizada, ou por eles concordarem com o parecer emitido pela Associao e tentarem,ento, mais uma vez, introduzir sua prpria voz ao abrigo de outra.

    De qualquer forma, o citado texto da Comisso de Relaes tnicas e Raciais daABA (CRER-ABA) diz ter decidido adiar para alguma outra ocasio umpronunciamento a respeito da Poltica de Cotas e permite assim que seus membrosevitem assumir uma posio pblica a respeito, mas faz um gesto por demaisconfortvel e no muito diferente ao dos autores comentados: se pronunciaobliquamente, indiretamente, atacando o aspecto mais frgil do procedimento posto emprtica pela UnB: fotografar os candidatos e constituir uma Comisso de triagem,alegando que tais procedimentos constrangem o direito individual, notadamente o dalivre auto-identificao. A isto, acrescenta uma enigmtica aluso ao arcabouoconceitual das cincias sociais, e, em particular, da antropologia social e antropologiabiolgica que a UnB, com seu procedimento, estaria desconhecendo, e de passoinsinua, com isso, que a Associao conta com a unanimidade conceitual monoltica deseus membros.

    possvel que o leitor pouco iniciado nos processos de fundao da antropologiabrasileira tal como hoje a conhecemos fique perplexo ao perceber que tanto Chor Maioe Ventura como os antroplogos que assinam o documento da ABA encontrem a idiade raa to misteriosa (mais misteriosa que a definio de tipos ou classes em qualquersistema conhecido de classificao, com seu habitual margem de erro e ambigidade) . realmente difcil de explicar que uma cincia que transita assiduamente pela noo darepresentao social e de smbolo se mostre to incapaz de entender que, numa histriaparticular como a histria da conquista e a colonizao da frica e da conseqenteescravizao de parte de sua gente, o signo da pele negra lido como diacrtico de

  • 6pertencimento ao povo subalternizado por esses processos, e que isto nada tem a vercom quantidade ou tipo de genes. A proximidade daqueles marcados por este signodesvaloriza os cenrios da vida social, a no ser que se encontrem num claro papel desubservincia, e faz tremer de pnico social a todos aqueles que pouco atrs exibiam suamarca e conseguiram, graas miscigenao programada no seio das famlias, deix-lapara trs. Ento, ser negro, ser racialmente marcado com a marca da frica no Brasilno ser afro-descendente, j que no Brasil existem milhes de afro-descendentes hojepercebidos como brancos. Mas ser algum que, at s vezes em conseqncia daloteria gentica que entra em ao sempre que se gera vida, exibe a marca do passadomais temido, de uma inferioridade historicamente herdada e cuidadosamente ocultadano fundo do ba das melhores famlias. Ento, o racismo brasileira fala disto: de quedeterminados signos fenotpicos tomam seu significado de uma histria de guerra,escravizao e, j neste sculo, sistemtica excluso, e que o que importa destes signos somente seu impacto visual num cdigo de leitura intensamente influenciado por essahistria. Impressiona tambm que certos antroplogos que dedicaram boa parte de suavida profissional a gerenciar programas de apoio para os escassos estudantes negros quefreqentam a universidade, hoje se neguem a aceitar o critrio de raa, no sentido literalde cor e fentipo, como suporte para uma poltica de cotas nas universidades. O leitorpode se perguntar, ento: como estes professores definem os beneficirios dosprogramas que eles mesmos dirigem? No , por acaso, segundo um critrio tambmbaseado na cor?

    4. Chego, finalmente, ao ponto da auto-declarao, cerne do argumento dos autorescomentados na sua velada tentativa de convencer-nos de que um sistema de Cotas paranegros na universidade no pode ser vivel se somente a auto-declarao legtima eo fentipo se dilui como parmetro para a poltica inclusiva, ento estamos expostos atodo tipo de argumento por parte dos interessados e ampliao indefinida dos critriosque qualificam para participar. Com isso, sem clientela claramente definvel, toda apoltica cai por terra. H, aqui, muito a dizer para mostrar que as perspectivas no soto sombrias assim como os autores querem supor. Em primeiro lugar, chamar a ateno do leitor de que as lideranas negras no semanifestaram, at hoje, to ofendidas quanto os membros da comunidade antropolgicaa respeito da necessidade de cercar critrios objetivos para definir quem pode e quemno pode ser beneficirio da medida. Cabe-se perguntar o porqu da imensasensibilidade antropolgica perante o suposto cerceamento da liberdade de se auto-declarar por parte dos candidatos negros, quando nos prprios grupos interessados namedida isto se apresenta como um problema menor e insuficiente para fazer uma crticaimportante ao processo como um todo. Gostaria de saber onde se origina a pressasbita destes antroplogos em oferecer aos negros brasileiros sua proteo perante osmales de um sistema de cotas que lhes abrira as portas da educao superior.

    Nem Jos Jorge de Carvalho nem eu inclumos o critrio da fotografia e oprocedimento da comisso de triagem no projeto submetido ao Conselho, mas uma dasrazes pelas quais no o inclumos que previmos que a funo de vigilncia estaria acargo do que chamamos, no nosso texto, de Comisso de Monitoramento. Ou seja, ocontrole do universo dos candidatos iria a se processar depois do ingresso e no antes, eo mtodo consistiria na sano social e na reprovao da ao fraudulenta pela

  • 7comunidade acadmica. Esta Comisso teria a seu cargo avaliar, a partir da primeiraexperincia, os nveis de fraude e propor critrios de auto-correo da medida, nodescartando eventualmente algum processo prvio de seleo dos que qualificam. Istoporque, conhecendo as prticas e orientaes dominantes da disciplina antropolgica noBrasil de uma forma que a Reitoria da UnB no poderia conhecer, queramos evitarjustamente o que ocorreu: oferecer alvos s vozes que com certeza iriam se levantartentando invalidar o processo posto em marcha. De fato, basta uma linha para esclarecer o bvio: que o critrio de exclusiva auto-declarao racial adotado pelo IBGE responde a uma finalidade de mediodemogrfica e dele no depende nenhum benefcio direto para os auto-declarantes; eque nenhum instrumento internacional que recomenda a incluso racial estabelece comomandatrio o critrio de auto-atribuio, exceto a Conveno 169 da OIT, ratificadapelo Brasil em 2002, que no legisla para indivduos, mas para coletividades os povosindgenas originrios.

    A presente conveno aplica-se:

    a) aos povos tribais em pases independentes, cujas condiessociais, culturais e econmicas os distingam de outros setores dacoletividade nacional, e que estejam regidos, total ouparcialmente, por seus prprios costumes ou tradies ou porlegislao especial;

    b) aos povos em pases independentes, considerados indgenaspelo fato de descenderem de populaes que habitavam o pas ouuma regio geogrfica pertencente ao pas na poca da conquistaou da colonizao ou do estabelecimento das atuais fronteirasestatais e que, seja qual for sua situao jurdica, conservam todasas suas prprias instituies sociais, econmicas, culturais epolticas, ou parte delas.

    Para eles, sim, a Conveno garante que A conscincia de sua identidade indgenaou tribal dever ser considerada como critrio fundamental para determinar os gruposaos que se aplicam as disposies da presente Conveno.

    5. Certamente j houve melhores tempos para a Antropologia, como aqueles dagrande amizade e luta conjunta do eminente ativista e intelectual negro W.E.B. Du-Boiscom o antroplogo alemo e judeu emigrado Franz Boas. E houve tambm pocas maisinteressantes para a reflexo sobre identidade tnica e racial, como a da chegada deFranz Fanon a Paris e a do encontro de Hans Maier/Jean Amry com o nazismo.

    E com as lies de este ltimo autor, a quem considero o Fanon judaico e cujaleitura recomendo, que encerro esta resposta a Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura.

    sob a forma de condena que Jean Amry se encontra com sua identidade judia.Antes das leis de Nuremberg no h, nele, nenhum trao de cultura que o distinga dojovem tirols mais comum; sua me, catlica, reza e executa os rituais natalinos de cadaano. Seu sangue judeu vem do pai. Amry, que ao terminar a guerra adota este outronome, no marcado pela germanicidade traioeira, conta: eu adquiri realidade emAuschwitz. E somente uma total cegueira social e histrica poderia negar que esta

  • 8identidade , contudo, real. 2 Ele pertencia ao grupo que Sartre sem formular nenhumjulgamento de valor, chama de judeu inautntico, isto , aquele que sucumbiu ao mitodo homem universal. Da mesma forma, o negro brasileiro de nossos dias estaria certose dissesse de si: Eu adquiri realidade na escravido, e este sentimento de realidade sereafirmou com a chegada dos imigrantes europeus e a excluso dela resultante. Umdestino de sofrimento e subalternidade comum e seu reconhecimento, a posteriori daao destrutiva iniciada e imposta pelo outro (alemo ou portugus) , em ltimainstncia, quando no h a positividade da diferena dos costumes compartilhados nemuma clara herana cultural diacrtica, o que constitui uma identidade. Nesse sentido, emalguns casos, o pertencimento a um coletivo racial conseqncia do olhar externosobre ele, resultado da excluso, da discriminao, do maltrato.

    O fentipo judeu que tal vez, eu no sei, me sejaprprio, concerne, como problema, aos outros esomente se torna assunto meu na relao objetivaque eles pretendem me impor (p. 187).

    H, segundo Amry, o que considero ser a nica grande vantagem nesta identidadenegativa: que o anti-semitismo e a questo judaica como constelao de fenmenoshistricos, sociolgicos e ideolgicos nem me interessavam nem me interessam. Soexclusivamente assunto dos anti-semitas, sua infmia ou sua doena. So os anti-semitas os que devem super-la, no eu (op. cit.: 181). Da mesma forma, eu disse quea enfermidade do racismo e de todas as formas de discriminao residem naqueles queas exercem, e no em suas vtimas (quando estas so capazes de se reconhecerem comotais), sendo, portanto, a humanidade daqueles, com todos os seus reais privilgiosassociados, a que se deteriora e no, como comumente se pensa, a destes. [...] (As)fronteiras da confrontao e do estranhamento (so) perniciosamente inscritas pelosmecanismos de dominao.3

    A vtima de discriminao racial sempre ser, em alguma medida, ingnua edesprevenida frente a quem a discrimina, porque ela somente a depositria de umprocesso que no se origina nela e do qual ela conhece menos que o discriminador.Nesta perspectiva, o critrio auto-adscritivo fica em parte comprometido, relativizado, ano ser como possibilidade de se reconhecer nesse lugar resultante de sculos deopresso imposta de fora. A identificao pura negatividade que se reverte empositividade para reclamar devolues, direitos, reparao.

    2 Amry, Jean: Ms All de la Culpa y la Expiacin. Tentativas de superacin de una vctima de laviolencia. Valencia: Pre-Textos, 2001 (1977), p. 190.3 Segato, Rita Laura: Cidadania: Por que no? DADOS, Revista de Cincias Sociais. 38/3, 1995, p. 598.

    2005Em Memria de Tempos Melhores: os antroplogos e