os arquivos e o ofício do historiador - anpuh-rs · sua produção à guarda permanente ou...

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900 OS ARQUIVOS E O OFÍCIO DO HISTORIADOR MARCIA ECKERT MIRANDA Universidade Federal de São Paulo [email protected] Propriedades dos monarcas, os arquivos eram, até o final do século XVIII, instrumentos, cujo acesso era restrito, subordinado ao sigilo e ao arbítrio dos governantes. A Revolução Francesa (1789) transformou essas instituições em patrimônio nacional cujo acesso tornou-se direito de todo cidadão francês. A abertura dessas instituições, os debates seguidos sobre a organização desses acervos com a definição do princípio da proveniência 1 e a publicação do “Manuel de Arquivistas Holandeses” em 1898 marcaram o surgimento da Arquivologia como área autônoma em relação à História (REIS, 2006). 2 Ao longo do século XIX, os arquivistas assumiram o papel de agentes neutros e passivos, cuja função principal era a preservação dos documentos, sem qualquer influência direta sobre os processos de produção, eliminação e destinação desses à guarda permanente. 3 Os historiadores, sob a influência do Positivismo, passaram a valorizar as fontes documentais textuais como base para a determinação da verdade sobre o passado e a considerar a Arquivologia uma ciência auxiliar da História ao lado da Paleografia e da Diplomática. Posturas essas que contribuíram para o distanciamento entre essas áreas de conhecimento e para que os historiadores, confinados às salas de pesquisas, deixassem de refletir sobre os arquivos e seus acervos, atribuindo, a esses últimos, naturalidade nos processos de acumulação e recolhimento e neutralidade no seu arranjo e descrição. Seguindo trajetórias paralelas, as últimas décadas do século XX impuseram novas perspectivas teóricas e metodológicas à Arquivologia e à História. A abordagem pós-moderna, desenvolvida principalmente pela Arquivologia canadense a partir dos anos de 1980, abriu o debate sobre o papel dos arquivistas, sobre a natureza dos arquivos e dos documentos e sobre sua relação com a memória. Advogando a necessidade de releitura dos princípios da Arquivística, essa corrente negou a postura de neutralidade e colocou em evidência o contexto frente ao texto, as relações de poder, os significados e a necessidade de desnaturalizar tudo que era tomado como natural (COOK, 1991). Na História, a terceira geração dos Analles, na década de 1970, redefiniu a concepção de documento, adotando instrumentos e abordagens teóricas de outras ciências sociais (BOUTIER, 1998). 1 Princípio adotado no arranjo dos acervos nos arquivos franceses a partir da circular do Ministério do Interior de 24 de abril de 1841. Segundo esse princípio, os documentos produzidos por uma administra- ção/entidade/pessoa/família devem ser mantidos separados daqueles produzidos por outras (BELLOTTO, 2006, p. 130 e ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 136). 2 Sobre a história da Arquivística, ver REIS (2006), JIMERSON (2008) e KETELAAR (2007). 3 Postura defendida por Sir Hilary Jenkinson (1882-1861) no Manual de administração de arquivos, publicado em 1922 (JIMERSON, 2008).

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Page 1: Os arquivOs e O OfíciO dO histOriadOr - ANPUH-RS · sua produção à guarda permanente ou eliminação” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 47). 902 903 monumentalização e de outros

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Os arquivOs e O OfíciO dO histOriadOr

Marcia EckErt Miranda

Universidade Federal de São [email protected]

Propriedades dos monarcas, os arquivos eram, até o final do século XVIII,instrumentos,cujoacessoerarestrito,subordinadoaosigiloeaoarbítriodosgovernantes.A Revolução Francesa (1789) transformou essas instituições em patrimônio nacionalcujoacessotornou-sedireitodetodocidadãofrancês.Aaberturadessasinstituições,osdebates seguidos sobre a organizaçãodesses acervos comadefiniçãodoprincípio daproveniência1eapublicaçãodo“ManueldeArquivistasHolandeses”em1898marcaramosurgimentodaArquivologiacomoáreaautônomaemrelaçãoàHistória(REIS,2006).2

AolongodoséculoXIX,osarquivistasassumiramopapeldeagentesneutrose passivos, cuja função principal era a preservação dos documentos, sem qualquerinfluênciadiretasobreosprocessosdeprodução,eliminaçãoedestinaçãodessesàguardapermanente.3Oshistoriadores,sobainfluênciadoPositivismo,passaramavalorizarasfontesdocumentaistextuaiscomobaseparaadeterminaçãodaverdadesobreopassadoeaconsideraraArquivologiaumaciênciaauxiliardaHistóriaaoladodaPaleografiaedaDiplomática.Posturasessasquecontribuíramparaodistanciamentoentreessasáreasdeconhecimentoeparaqueoshistoriadores,confinadosàssalasdepesquisas,deixassemderefletirsobreosarquivoseseusacervos,atribuindo,aessesúltimos,naturalidadenosprocessosdeacumulaçãoerecolhimentoeneutralidadenoseuarranjoedescrição.

Seguindo trajetórias paralelas, as últimas décadas do século XX impuseramnovasperspectivasteóricasemetodológicasàArquivologiaeàHistória.Aabordagempós-moderna,desenvolvidaprincipalmentepelaArquivologiacanadenseapartirdosanosde1980,abriuodebatesobreopapeldosarquivistas,sobreanaturezadosarquivosedosdocumentosesobresuarelaçãocomamemória.AdvogandoanecessidadedereleituradosprincípiosdaArquivística,essacorrentenegouaposturadeneutralidadeecolocouemevidênciaocontextofrenteaotexto,asrelaçõesdepoder,ossignificadoseanecessidadede desnaturalizar tudo que era tomado como natural (COOK, 1991). Na História, aterceirageraçãodosAnalles,nadécadade1970,redefiniuaconcepçãodedocumento,adotandoinstrumentoseabordagensteóricasdeoutrasciênciassociais(BOUTIER,1998).

1 PrincípioadotadonoarranjodosacervosnosarquivosfrancesesapartirdacirculardoMinistériodoInteriorde24deabrilde1841.Segundoesseprincípio,osdocumentosproduzidosporumaadministra-ção/entidade/pessoa/famíliadevemsermantidosseparadosdaquelesproduzidosporoutras(BELLOTTO,2006,p.130eARQUIVONACIONAL,2005,p.136).2 SobreahistóriadaArquivística,verREIS(2006),JIMERSON(2008)eKETELAAR(2007).3 PosturadefendidaporSirHilaryJenkinson(1882-1861)noManual de administração de arquivos, publicadoem1922(JIMERSON,2008).

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Essas novas perspectivas historiográficas aliadas à crescente valorização damemóriaestimularamosurgimentodenovos“lugaresdamemória”(NORA,1993),osquaissedistinguemdosarquivosporseremessencialmenteinstituiçõesdedicadasàproduçãoereuniãodecoleçõesdedocumentosemdiferentessuportes4eproveniências.5

Nessecenáriodetransformações,aposturadoshistoriadoresfrenteaosarquivostemmudado, aindaque lentamente,passandoda saladepesquisaaosdemais espaçosdessas instituições.A valorização da memória e as novas temáticas da historiografiaestimularam a criação de centros de memória e documentação e transformaram ohistoriadoremumagenteativonaconstituição,organizaçãoedisponibilizaçãodeacervos,obrigando-oarepensarseupapelnasinstituiçõesdememóriaeabuscarodiálogocomoutrasdisciplinasdaCiênciadaInformação.Mas,aindahoje,quandoessesprofissionaisselimitamàsaladepesquisadosarquivos,questõescomoorigemdosdocumentos,seucontexto de produção, avaliação, história custodial, arranjo e descrição raramente sãoobjetosdereflexão(BOSCHI,2011).Assim,apesardeosprincípiosdaArquivologia,deseusmétodoseteoriasteremimplicaçõesrelevantessobreoofíciodohistoriador,essestemassãoexploradosporpoucosprogramasdegraduaçãoemHistória.

Seja na sala de pesquisa ou nas salas destinadas à guarda do acervo e a seutratamento técnico, é importante que o historiador amplie seus conhecimentos acercadessaárea.Nestetexto,essasquestõessãoabordadasbuscandosalientaraimportânciadareflexãosobrearelaçãoentreessasinstituiçõesdememória,seusacervoseoofíciodohistoriador, pois

Osarquivos são, aomesmo tempo, o elementomais importante e omenosdiscutido da construção histórica.A ausência de um diálogo efetivo entrehistoriadoresearquivistas,bemcomoafaltadeconhecimentotécnicoeteóricosobreaciênciado“outro”sãoresponsáveispelasituaçãolamentávelemqueseencontramduaspontasdamesmarealidade,assimcomopelaenormedistânciaqueassepara(LOPEZ,1996,p.33).

O histOriadOr na sala de pesquisa

Apesquisaemfontesprimárias,especialmenteemfontestextuaismanuscritas,éatividadecomumaotrabalhodohistoriador.ComoobservouMarcBloch,osdocumentostemsuahistóriaenãopodemsertomadoscomoresultadosimplesdadecantaçãonaturaldoprocessodeproduçãodocumental:

Nãoobstanteoqueporvezesparecempensarosprincipiantes,osdocumentosnãoaparecem,aquiouali,peloefeitodeumqualquerimperscrutáveldesígniodosdeuses.Asuapresençaouasuaausêncianosfundosdosarquivos,numabiblioteca,num terreno,dependemdecausashumanasquenãoescapamdeformaalgumaàanálise,eosproblemaspostospelasuatransmissão,longedeseremapenasexercíciosdetécnicas,tocam,elespróprios,nomaisíntimodavida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo é nada menos do queapassagemdarecordaçãoatravésdegerações(BLOCH,1941/42apudLEGOFF,1996,p.544).

4 Suporte:“Materialnoqualsãoregistradasasinformações”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.159).5 Sobreosurgimentodecentrosdememóriaedocumentaçãojuntoàsuniversidadesbrasileirasver,SILVA(1999ae1999b).

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Nosarquivos,independentedasindagaçõesqueoshistoriadorespretendamfazeraosdocumentos,oshistoriadoreslidamcomumasériedevariáveisexternas(ascausashumanascitadasporBlochnotrechoacima),asquaispodemimporlimiteseviesesaoscaminhosquetencionampercorrereàsconclusõesquepossamchegaremsuaspesquisas.Apoucaclarezadoshistoriadoresacercadarotinainternadasinstituiçõesarquivísticascontribuiparaqueessesentravesocultosseinterponhamentreoacervoesuapesquisa. SegundoLeGoff(1996,p.547),tododocumentoé“antesdemaisnadaoresultadodeumamontagem,conscienteouinconsciente,dahistória,daépoca,deumasociedadequeoproduziram[sic.]”;noentanto,cabemalgumasreflexõessobreessafirmação. Umdocumentoésempremonumento?Oqueéodocumentodearquivo? Osarquivosnãosãocriadoscomoobjetivoúltimodesubsidiarapesquisa.Umdocumentodearquivoéumainformaçãosobreumsuporteequepossui,dentreoutrasqualidadesespecíficas,aimparcialidadenasuaprodução,anaturalidadenaacumulaçãoeaorganicidade.6Aimparcialidadedecorredofatodequeosdocumentosdeumarquivonãosãoproduzidoscomoobjetivodepromoverumadeterminada leituradopassado,masemdecorrênciadasatividadesdaentidadeprodutora.Essesdocumentosproduzidose/ourecebidosporessa instituição, famíliaoupessoasão“naturalmente”acumulados,formando um arquivo (ARQUIVO NACIONAL, 2005).7 Desse processo decorre a organicidadequecaracterizaessesdocumentos,ouseja,arelaçãodeinterdependênciaqueexisteentreasunidadesdesseconjunto,emreflexodasatividadesdaentidadeprodutora/acumuladora.8 Assim,considerandoaimparcialidade,umdocumentodearquivo,nasuaorigem,nãoéummonumento.Noentanto,omesmonãopodeserditoemrelaçãoaoutrasetapasdotratamentodosconjuntosdocumentaisrecolhidosaosarquivospermanentes,9pois:Os critérios de seleção e os métodos de arranjo e descrição dos documentos são portadores de cargaideológicaepodemcondicionaraconstruçãodeumamemóriaembasadaemelementosexógenos;podemainda, a despeito da seriedade e espírito crítico do historiador, propiciar uma visão restrita da história(LOPEZ,1996,p.16).

Pensar sobre os arquivos é, pois, requisito para que os pesquisadores possam exploraropotencialinformativodessesacervos,paraquetenhamclarezasobreoslimitesimpostos à análise desses documentos e para que possam ter consciência de que osdocumentosdearquivopodemser,emalgumamedida,ummonumento.Adesmontagemdesse“monumento”temporrequisitoacompreensãodosmecanismoqueoperaramessatransformação.Assim,acompreensãodociclovitaldosdocumentos,10dosprincípiosdaArquivologiaeaanálisedahistóriacustodialdosconjuntosdocumentaissãoimportantespara o que o historiador possa explorá-los, furtando-se dos vieses decorrentes da

6 Sobreascaracterísticasdeumdocumentodearquivo(imparcialidade,autenticidades,naturalidadenaacumulação,organicidadeeunicidade)verBELLOTTO(2011).7 Acumulação:“reuniãodedocumentosproduzidose/ourecebidosnocursodasatividadesdeumaenti-dadecoletiva,pessoaoufamília”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.20).8 Organicidade:“relaçãonaturalentredocumentosdeumarquivo(1)emdecorrênciadasatividadesdaentidadeprodutora”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.2).9 ArquivoPermanente:“1. Conjuntodedocumentospreservadosemcaráterdefinitivoemfunçãodeseuvalor.2Arquivo(2)responsávelpeloarquivopermanente(1).Tambémchamadoarquivohistórico”.(ARQUIVONACIONAL,2005,p.34).10 Ciclovitaldosdocumentos:“Sucessivasfasesporquepassamosdocumentosdeumarquivo(1),dasuaproduçãoàguardapermanenteoueliminação”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.47).

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monumentalizaçãoedeoutrosobstáculos. A partir da segundametade do séculoXX, com o crescimento do volume dedocumentosproduzidos,aeliminação11passouaserconsideradaummalnecessário.Aavaliaçãodocumentaléumrecursotécnicoquebuscaestabelecerosprazosdeguardadosdocumentosedeterminarseudestino:aeliminaçãoouorecolhimentoaumarquivopermanente.Assim,aavaliaçãobusca,atravésdoestabelecimentodecritériosobjetivose transparentes, viabilizar a redução do volume de documentos a serem preservados,minimizando o impacto sobre a perda de informações. No entanto, como salientaJardim (1995), esse processo tem uma dimensão política importante. A pretendida“destruiçãocontrolada”(NORA,1993,p.15)envolvecritériosdefinidoshistoricamenteecorrespondentesaumadadaculturapolítica(LOPEZ,1996).

Oprocessode avaliaçãoenvolve a aferiçãodevaloresprimário e secundáriodosdocumentos.Ovalorprimáriorelaciona-seaovalorjurídico,administrativoefiscal,refletindoaimportânciadodocumentoparaseuprodutor;ovalorsecundárioéassociadoaosinteressesdeoutrosusuáriospelosdocumentoscomoevidência/provaecomofontedeinformação(COOK,1997).Osdocumentoscomvalorsecundáriosãoacessadosporpesquisadoresdiversos,queosusamparadiferentesfinsenelesencontramsignificadose sentidosdistintosdaquelesparaosquais foramproduzidos.12Mas, aoarbitrar o que deveserpreservadoounão,oarquivistaeosdemaismembrosdacomissãodeavaliaçãode documentos13 tambématribuem, intencionalmenteounão,significados,narrativasesentidosaessesregistros(KETELAAR,2001). Seaavaliaçãodocumentaléummalnecessário,asuarealizaçãosemcritériosouporpessoasincapacitadas,assimcomoadestruiçãosemquaisquerconsideraçõestécnicas,sãoaindamaisprejudiciais.Daíanecessidadedequeessaavaliaçãosejarealizadaporcomissõesmultidisciplinares, que, alémdasquestões administrativas e legais, possamutilizarcritériosdiversosparaaferirovalordosdocumentos. Para além da eliminação, outros problemas podem envolver os conjuntosdocumentaisrecolhidosaosarquivospermanentes,taiscomoadispersãodefundos14 e o arranjoinadequado. Nemtodososdocumentosconsideradosdevalorsecundárioe,porisso,destinadosàguardapermanente,encontramnamesmainstituçãodecustódia.Aindaqueaprincípioumarquivoseja“umaespéciededuplodainstituição”(CAMARGO,2003,p.5),questõesrelativasàorigemdessaeàstransformaçõesnassuasfunçõeseestruturapodemimplicarnumaduplicidadedistorcida.ComoobservaCosta(2000),em1838,quandodafundaçãodoArquivo Público do Império e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, asconcepçõesacercadopapeldecadaumadessasinstituiçõesnaformaçãodanacionalidade

11 Eliminação:“Destruiçãodedocumentosque,naavaliação,foramconsideradossemvalorpermanen-te.Tambémchamadaexpurgodedocumentos.”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.81).12 ExemplodissosãoosdocumentosExemplodissosãoosdocumentosproduzidospelosórgãoseestruturasvinculadasàperseguiçãoeaoextermíniodejudeusedeoutrossegmentosdasociedadeequeforamutilizadosnosjulgamentosdeNurembergcomoprovadoscrimescometidospelasautoridadesnazistasnodecorrerdaIIGuerra(QUIN-TANA,2008).13 Comissãodeavaliaçãoedestinação:“Grupomultidisciplinarencarregadodaavaliaçãodedocumen-tosdeumarquivo(1),responsávelpelaelaboraçãodetabeladetemporalidade”(ARQUIVONACIO-NAL,2005,p.53).14 Fundo:“Conjuntodedocumentosdeumamesmaproveniência.Termoqueequivaleaarquivo”(AR-Fundo:“Conjuntodedocumentosdeumamesmaproveniência.Termoqueequivaleaarquivo”(AR-QUIVONACIONAL,2005,p.97).

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edeassessorjurídico-instrumentaldoEstadoimplicaramnodirecionamentodiferenciadodedocumentos:

...o Arquivo brasileiro limitou-se a recolher os documentos legislativose administrativos que diziam respeito quase que exclusivamente à rotinaadministrativadogovernoimperialeaoaparatolegalnecessárioàorganizaçãodanovasociedade.ParteconsideráveldadocumentaçãoreferenteaoEstado,enquanto instância política e jurídica definidora das relações do governocomosoutrosEstados-nações, istoé,documentos relativos,porexemplo,àdelimitaçãodas fronteirasnacionaiseàpreservaçãodaunidade territorialepolíticadoImpério,permaneceramnoMinistériodosNegóciosEstrangeiroseintegramhojeofundodoArquivoHistóricodoItamaraty.Damesmaforma,acorrespondênciapolíticaentremembrosdaclassedirigente,relatando,porexemplo,asmedidasrepressivasadotadaspelogovernoemfacedasrebeliõesprovinciaisqueameaçavamaunidadenacional,integraascoleçõesprivadashoje sobaguardado IHGBoudoMuseu Imperial emPetrópolis (2000,p.11-12).

Opçõesfeitasnopassadopodemtermotivadoadispersãodefundos.Ocasodosdocumentosproduzidos/recebidoseacumuladospelaCâmaradePortoAlegrenoperíodocolonialilustraessapossibilidade.Ascâmarasmunicipaisnoperíodocolonialexerciamfunções administrativas, judiciais, policiais e fazendárias,15 daí o fato de seus acervosseremformadosporumadiversidadedetiposdocumentais16 decorrentes dessas diversas atividades/funções.Hoje,essesdocumentosencontram-sedispersosporduasinstituçõesdistintas:oslivrosderegistrosedetransmissõesdoPrimeiroedoSegundoTabelionato,oslivrosderegistrogeraleoslivrosderegistrodecorrespondênciadaCâmaraencontram-se noArquivo Público doRioGrande do Sul (APERS), já os livros de registros dos provimentosdos corregedoresda comarcanaviladePortoAlegre e os livrosde atasdevereançafazempartedoacervodoArquivoHistóricoMunicipalMoysesVellinho.17 As razões dessa dispersão não estão claras; possivelmente relacionam-se, emparte, àleide1ºdeOutubrode1828que transformouascâmarasmunicipaisemcorporaçõescomfunçõesexclusivamenteadministrativas, subtraindo-lhesa jurisdiçãocontenciosa,levandoàseparaçãodosarquivosdeacordocomcadafunção.Hipótese,noentanto,quenãoexplicaapresençadoslivrosderegistrodacâmaranoAPERS. Essesfatosdemonstramque,aoutilizarumconjuntodedocumentos,éimportantequeohistoriadorprocurecompreenderquestõesrelacionadasaesseacervo,ouseja,ahistóriaadministrativadainstituiçãoqueoproduziueahistóriacustodialouarquivísticadesteconjuntodocumental. Ahistóriaadministrativadainstituiçãoprodutorapermiteidentificarasfunçõesque esta exercia, as transformações em sua estrutura, quais as tipologiasdocumentaisdevemserencontradaseosfluxosdessesdocumentos.Aomesmotempo,tambémpermite

15 SobreacâmaramunicipaldePortoAlegrenoperíodoverMIRANDA(2000).16 Tipodocumental:“Divisãodeespéciedocumentalquereúnedocumentosporsuascaracterísticascomunsnoquedizrespeitoàfórmuladiplomática,naturezadeconteúdooutécnicadoregistro.Sãoexemplosdetiposdocumentaiscartasprecatórias,cartasrégias,cartas-patentes,decretossemnúmero,decretos-leis,decretoslegislativos,daguerreótipos,litogravuras,serigrafias,xilogravuras”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.136).17 SobreoacervodoAPERSverositedainstituiçãoemhttp://www.apers.rs.gov.br/portal/index.php?menu=notas>;sobreesseacervoverARQUIVOHISTóRICODEPORTOALEGREMOySéSVELLINHO(2009).

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identificarlacunaseinclusões,mudançasnastipologiasdocumentaiseatemporalidadedoprocessodeproduçãodocumental.Jáahistóriacustodialouarquivísticacontribuiparaqueopesquisadorcompreendacomosedeuaproduçãodesseconjuntodocumental,seuprocessodeacumulaçãoecustódia,explicitandoaocorrênciaounãodedispersãodosdocumentos(ARCE,2011;BRASIL,2006).18 No caso de arquivos pessoais, como observa Heymann (1997), o sentido daacumulação dos documentos ganha destaque. Ao trabalhar com esses documentos,o historiador deve romper com as ideias preconcebidas de que esses arquivos sejam portadoresdeumaunidadeetotalidade,jáqueoprocessodeacumulaçãoenvolvediversossentidos,obedecendoadiferentescritériosatribuídospelotitularaolongodasuavidaoupor terceiros.Assim o arquivo pessoal ou familiar tambémpode ser objeto de váriosreordenamentoseexclusõespromovidasnãoapenaspelotitular,masporseusfamiliaresou terceiros. Essas características permitem questionar a naturalidade da acumulaçãode alguns desses “arquivos” privados, o que torna essencial a análise da sua históriacustodial,caminhonecessárioparadesvendarasintençõesocultasemsuaconformaçãofinal. Obstáculopodesergeradopelaformacomoforamclassificadososdocumentosdeumfundoinstitucionaloupessoal.Oprocessodearranjo19 nos arquivos permanentes énorteadopeloprincípiodaproveniênciaedaordemoriginal,20 os quais preservam a integridadedoconjunto,seucontextodeproduçãoeaorganicidade. Aindaquenopassadoosacervosfossemorganizadosobedecendoaclassificaçõestemáticase/oucronológicas,jánofinaldoséculoXVIIIobservaram-seasdificuldadese equívocos que esse sistema poderia causar seja pela diversidade de interesses, sejapelosinúmerossentidosqueospesquisadorespodematribuiraosdocumentos.21 Assim, aoadotar-seoprincípiodaproveniência,oarranjodosfundosdocumentaispassouatercomoalicerceumatributointrínsecoepermanenteaosdocumentos(SOUZA,2003).Esseprincípioimplicaemmanterjuntososdocumentosproduzidosporumaentidade/família/pessoa,semmisturá-losaquelesproduzidosporoutrosagentes.Quandonãoobservado,pode-segeraradispersãodosdocumentosproduzidosporumamesmainstituição/família/pessoapordiferentesgruposdocumentaiseatribuir-seequivocadamenteorganicidadeaconjuntosquenãoatem. O chamado “fundo Requerimentos” doArquivo Histórico do Rio Grande doSul (AHRS) é um caso exemplar. Esses documentos de umamesma tipologia foramcoletados em diferentes fundos documentais, por um antigo gestor dessa instituiçãopara subsidiar suas pesquisas de genealogia.22 Assim, esse conjunto documental foi

18 Ahistóriacustodialeahistóriaadministrativadoórgãoprodutorsãoelementosdecontextualizaçãonaproduçãodedescriçãodedocumentosarquivísticos,conformeNormaBrasileiradeDescriçãoArqui-vística(BRASIL,2006).19 Arranjo:“Seqüênciadeoperaçõesintelectuaisefísicasquevisamàorganizaçãodosdocumentosdeumarquivo(1)oucoleção,deacordocomumplanoouquadropreviamenteestabelecido”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.37).20 Princípiodorespeitoàordemoriginal:“Princípiosegundooqualoarquivo(1)deveriaconservaroarranjodadopelaentidadecoletiva,pessoaoufamíliaqueoproduziu”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.137).21 SobreahistóriadaArquivologiaedosmétodosdearranjoverSOUZA(2003).SobreahistóriadaArquivologiaedosmétodosdearranjoverSOUZA(2003).22 ConjuntosconstituídoscomosmesmoscritériosnoacervodoAHRSsãoodossiêaçorianoseoConjuntosconstituídoscomosmesmoscritériosnoacervodoAHRSsãoodossiêaçorianoseodossiêRealFeitoriadoLinhoCânhamo.écomumaexistênciadecoleçõesnosarquivospúblicos,no

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criado artificialmente para atender os interesses de um pesquisador, sem qualquerrespeito à origem administrativa dos documentos.Nesse processo, documentos foramdesmembradosedescontextualizados,fundosdocumentaisdiversostiveramdocumentossubtraídos.Ainda que esses documentos sejam portadores de informações relevantes,outrasseperderamparasempre, taiscomo:os fundosoriginaisdecadadocumento,arelaçãocomoutrasunidadesdocumentaiseoseucontextodeprodução.Nestecaso,apesquisarequercuidadosredobradosdohistoriador,principalmenteporquenãosetratadeumfundodocumental,masdeumacoleção.23Aocontráriodosfundos,ascoleçõessãoresultadodaaçãointencionaldeseucriador.Asinformaçõesquetrazempodemserdeextremaimportânciaaopesquisador,noentanto,éprecisoqueessetenhaclarezadasrazõesquelevaramàconstituiçãodesseconjuntodocumentaledaartificialidadedesuaconstituição.Noexemplocitadoacima,nãoépossívelqueopesquisadorfaçaquaisqueranálisesquantitativasacercadasáreasmaisdemandadaspelos súditosàsautoridadesrégias,pois a representatividadedaamostra,ou seja,dos requerimentosdacoleção, éincertaemrelaçãoà totalidadedaquelesque teriamsidoencaminhadosàsautoridadesrégiasnoperíodo. Esse caso particular chama a atenção para outra questão: a imprecisão daterminologiaempregada.ComoobservaBosch(2011,p.16):

...emsetratandodefundos, coleções, séries, ouqualqueroutradenominaçãoque tenham os volumes mais alentados de documentos escritos, torna-seimprescindível que, antes demais, verifiquemos a pertinência e a correçãodessasterminologias,sobpenadecomprometermosasinferênciasquedelasextraímos.

Emparte,essasquestãopodeseresclarecidasapartirdaanálisedahistóriaadministrativae a história custodial de um conjunto documental, as quais devem estar a disposiçãodo pesquisador nos instrumentos de pesquisa. Esses instrumentos (guias, catálogos,inventários, índices, etc.) são as vias de acesso aos documentos, por isso, a definiçãode uma política de descrição documental24 deve ser balizada por critérios que visemaoatendimentodasdemandasdopúblico,considerandoadisponibilidadederecursos,as prioridades de conservação das informações, a política de difusão do acervo e astendênciashistoriográficas(BELLOTTO,2009).Masnemsempreissoocorre.Apolíticade descrição, ou seja, as definições de quais conjuntos documentais serão descritos ecomqualníveldeprofundidade,podeenvolverum“projetodefazerhistória”,influindocomoopassadodeveserinvestigadoequaisfontesdevemserutilizadas(SALOMONI,2011,p.45).Assim,aeleiçãode fundos,gruposou sériesdocumentais25 merecedoras dedescriçõesdetalhadaspodeimplicarnamonumentalizaçãodepartesdeacervosemdetrimentodeoutras(JARDIM,1995,p8).Destemodo,autilizaçãodefonteseditadasoudaquelasdigitalizadasedisponibilizadason-linetambémexigealgunscuidadospor

entanto,osinstrumentosdepesquisadevemalertaraopesquisadoracercadanaturezaeorigemdosdocu-mentosdestesconjuntosdocumentais.23 Coleção:“Conjuntodedocumentoscomcaracterísticascomuns,reunidosintencionalmente”(AR-QUIVONACIONAL,2005,p.52).24 Descrição:“Conjuntodeprocedimentosquelevaemcontaoselementosformaisedeconteúdodosdocumentosparaelaboraçãodeinstrumentosdepesquisa”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.67).25 Série: “Subdivisãodoquadrodearranjoquecorrespondeaumaseqüênciadedocumentosrelativosaumamesmafunção,atividade,tipodocumentalouassunto”(ARQUIVONACIONAL,2005,p.153).

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partedohistoriador. 26 Ao analisar osDocumentos interessantes para História de São Paulo, série defonteseditadasepublicadasapartirde1894pelaentãoRepartiçãodeEstatísticaeArquivodoEstadodeSãoPaulo,Mendes(2010)observouqueaseleçãodosconjuntosdocumentaisobedeceuacritériosvariados,diversastemáticasecortescronológicos,noentanto, esta seleção envolveu “a (re)construção constante de representações diversassobreumdeterminadopassado”,reafirmandoaposiçãoautônomaepioneiradeSãoPaulo(MENDES,2010,p.12). No Rio Grande do Sul, a eleição da Coleção Varela como fonte documentalmerecedora da publicação da transcrição de todas suas unidades documentais pareceobedeceracritériossimilares.Essacoleçãodecercadetrezemildocumentostemsidoobjeto prioritário da política de publicações doArquivoHistórico do RioGrande doSul(AHRS)atravésdeseusAnaisdesde1978.27Interessanteobservarque,emnenhumdosdezessetevolumespublicados,háinformaçõessobreaorganizaçãodesseconjuntodocumentalousobreesseprojetodeedição.Comrelaçãoàhistóriacustodial,emalgumasdas apresentações dos Anais reafirma-se apenas que essa coleção teve origem nosdocumentosreunidosporDomingosJosédeAlmeidaequeforaacrescidapelacoleçãodeAlfredoVarela,servindodesubsídioàelaboraçãodaobramaisextensadessehistoriador,os seis volumes de a “História da grande revolução: o cyclo farroupilha no Brasil”,publicadosem1933.Mas,outrasinformações,taiscomoatrajetóriadessacoleçãodasmãosdeDomingosJosédeAlmeida,passandoporseusherdeirosatéchegaraVarela,assimcomoocontextodesuadoaçãoaoAHRSem1936,seuarranjooriginaleatual,nãosãodisponibilizadasaopesquisadornosAnais.28 A opção de dedicar uma grande quantidade de recursos à divulgação dessacoleçãoevidenciaavalorizaçãodesseconflitopelahistoriografiaenoimagináriogaúcho.Noentanto,amanutençãodesseprojetodepublicaçãoporumperíodotãoprolongadoeaindainconclusoinstigaalgumareflexãosobreasdiretrizesseguidaspelainstituiçãonadefiniçãodassuaspolíticasdedescriçãoedivulgaçãodoacervo. Assim, mesmo que os fundos documentais sejam formados por um processo“natural”deacumulação,osarquivospermanentesguardamemsiumamultiplicidadedesignificados,osquaisdevemserobjetodereflexãoeanálisepelosprofissionaisquecom

26 AsfontesdigitalizadasdisponíveisnosarquivosbrasileirosfoiobjetodepesquisadoGrupodoPro-gramadeEducaçãoTutorial(PET)doDepartamentodeHistoriadaUniversidadeFederaldeSãoPaulo(UNIFESP)esuasconclusõespodemserverificadasnoartigo“Fonteson-lineemarquivosbrasileiros:ReflexõessobreaInternetnoofíciodohistoriador”(BAUMANN,etali.,2012).27 AColeçãoVarelaéformadapor10.884documentosmanuscritose2.064exemplaresdejornais,dosAColeçãoVarelaéformadapor10.884documentosmanuscritose2.064exemplaresdejornais,dosquaisamaiorpartefoitransferidaparaoMuseudeComunicaçãoSocialHipólitoJosédaCosta.ApenasoprimeirovolumedosAnaisdoArquivoHistóricodoRioGrandedoSul,publicadoem1977,nãotrazastranscriçõesdosdocumentosdaColeçãoVarela,trazendoatranscriçãodoLivrodeRegistrodoComis-sáriodeMostrasdaExpediçãodeJosédaSilvaPaesedaProvedoriadaFazendadoRioGrande.Osvol-umes11(1995)e12(1998)trazem,alémdaColeçãoVarela,respectivamenteoInventáriodosRegistrosGeraisdaFazendadaCapitaniaeaCorrespondênciaExpedidapeloGovernadoreCapitãoGeneralPauloJosédaSilvaGama.Interessanteobservarque,nosseustrêsúltimosvolumes,essapublicaçãopassouaapresentartítulosdiferenciados,seguidosdeummesmosubtítulo:“AColeçãoVarela–documentossobreaRevoluçãoFarroupilha(1835-1845)”.Essesvolumes,publicadostodosem2009,apresentamosseguintestítulos:“UmaRepúblicacontraoImpério”(volume16),“GuerraCivilnoBrasilMeridional(1835-1845)”(volume17)e“OssegredosdoJarau”(volume18).28 SobreahistóriacustodialdaColeçãoVarela,verARCE(2011).SobreahistóriacustodialdaColeçãoVarela,verARCE(2011).

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elesserelacionam(KETEELAR,2001).Aindaquepontuais,osexemplosacimabuscamdemonstrarqueconhecimentosbásicosdeArquologia eumdiálogoampliadocomosprofissionaisdessaáreapodemauxiliarohistoriadorcomopesquisadoracompreendermelhorosarquivoseseusacervos.

para além da sala de pesquisa

Mas outras possibilidades de trabalho para o historiador surgiram nas últimasdécadasdoséculoXX,levando-oaoutrosespaçoserompendocomoconfinamentoàsaladepesquisadosarquivos.Arenovaçãodahistoriografiaapartirdadécadade1970estimulou a descoberta de novos documentos, novas abordagens e temáticas. Essastransformaçõesimplicaramnavalorizaçãodeconjuntosdocumentaisatéentãoraramenteencontrados nos arquivos públicos, tais como os arquivos escolares, de associaçõespatronais,sindicatosdetrabalhadores,movimentossociais,partidospolíticos,arquivospessoaisdeescritores,atores,militantespolíticos,etc.Principalmentenasuniversidades,essemovimentodeuorigemacentrosdedocumentaçãoememória,osquaisassumiramuma posição ativa na identificação e aquisição desses fundos e coleções relacionadosa projetos de pesquisa específicos e, em alguns casos, também passaram a custodiararquivosproduzidospelopoderpúblico(SILVA,1999b).29. Paralelamente, nesses anos marcados pela crescente valorização da memória,foramcriadoscentrosdememóriavinculadosadiferentesesferasdopoderpúblicoeàiniciativaprivada.Enquantoaquelescentrosdememórialigadosàsuniversidadesvisamprioritariamenteosubsídioàsatividadesdeensino,pesquisaeextensão,aquelesoutrosatendiamademandasdegruposemovimentossociaisoufaziampartedeestratégiasdeempresariais. Assim, ainda que similares e relacionados a uma proposta de preservação dopatrimôniodocumental,arazõesquemotivamacriaçãodessescentrossãodiversas,assimcomoopapelquerepresentame,consequentemente,aligaçãoquemantemcomdiversospúblicos,fatosqueinfluenciamnosprocessosdeformação,tratamentoedivulgaçãodeseusacervos. Mas,independentedasmotivaçõesparaacriaçãodessesespaços,estesbuscamcustodiar e/ou formar coleções de documentos textuais, fundos de arquivos, acervosmuseológicosebibliográficos,fatosqueimpõemodesafiodotrabalhointerdisciplinarelevaramohistoriadorparaalémdasaladepesquisa. Assim, essas instituições de memória se colocam como espaços de trabalhodo historiador, instigando questões relativas à coleta, à classificação, à descrição e àdivulgaçãode acervos documentais de naturezas e suportes variados (SILVA,1999a).Aindaqueemdiversoscentros,principalmentenaquelesvinculadosàsuniversidades,hajaapreocupaçãoemdifundiroconhecimentoacercadotratamentodessesacervos,com

29 EssessãooscasosdoCentrodeDocumentaçãoeApoioàPesquisadaUniversidadeEstadualPaulistaEssessãooscasosdoCentrodeDocumentaçãoeApoioàPesquisadaUniversidadeEstadualPaulista“|JuliodeMesquitaFilho”(CEDAP,UNESP-Assis),oqualcustodiaosfundosdocumentaisdoFórumdaComarca,daCâmaraMunicipaledaPrefeituradacidadedeAssis(http://www.cedap.assis.unesp.br/menu/acervo.html)edoCentrodeMemóriadaUniversidadeEstadualdeCampinas(UNICAMP)quecustodiaogrupodocumentaldaColetoriaeRecebedoriadomunicípioeosfundosdoCorpoMunicipaldeBombeirosedoTribunaldeJustiçadeCampinasedeJundiaí(http://www.centrodememoria.unicamp.br/arqhist/fundos_colecoes.php#Peo).

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arealizaçãodeoficinas,cursosecomacriaçãodeoportunidadesparaquegraduandosemHistóriapossam, atravésdeprojetosde iniciação científica, estágios emonitorias,vivenciaro trabalhodohistoriador,osprofissionaisdeHistóriaestãodesbravandoumcamponovo,queexigenovasperspectivasnasuaformação. Esses espaços de custódia documental colocam ao historiador uma sériede desafios, para os quais é preciso um novo currículo.O conhecimento a cerca dosprincípiosdaArquivologiaedarotinadessasinstituiçõessãopontosdepartidaparaquehistoriadorespossamtrabalharemarquivoseemcentrosdedocumentaçãoememória,atuandoemcomissõesdeavaliação,contribuindoparaoarranjoapartirdaanálisedahistóriaadministrativadainstituiçãooudabiografiadotitulardeumfundodocumental,auxiliandonaproduçãodeinstrumentosdepesquisaapartirdaanálisedahistóriacustodialeatuandonadivulgaçãodessesacervosatravésdaelaboraçãodeprogramasdeeducaçãoparaopatrimônioeparaoensinodeHistória. Decertaforma,osdesafioscontemporâneosimpostospelaArquivologiaepelaHistória,assimcomoasquestõesrelacionadasàmemória,aopatrimôniodocumentaleàpesquisahistórica,colocamemdestaqueanecessidadedoresgatedeumaparceriahámuitoperdida.Desdeofinaldo séculoXIX,quandoambasasdisciplinaspassaramatrilharcaminhosseparadosedivergentes,ocrescentedesconhecimentoentreaHistóriaeaArquivologiatrouxegrandesperdasaambas.NãosetratadecapacitaroprofissionaldeHistória a exercer as funções de um arquivista,mas de salientar a importância deaprofundaraformaçãodoshistoriadoresparacapacitá-losaatuarcomopesquisadoresecomoprofissionaisnasinstituiçõesdecustódiadocumentalaoladodosarquivistas.

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