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OS CAMINHOS DA TECNOLOGIA AGRÍCOLA: PASSADOS E PERSPECTIVAS
YOHANNA VIEIRA JUK
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MARCOS PAULO FUCK2
Resumo: O trabalho pretende apresentar as principais características das trajetórias
tecnológicas na agricultura, dando maior atenção à co-evolução e à relação entre as fontes de
instituições públicas e as fontes privadas de pesquisa e extensão agrícola. O fio condutor que
auxiliará na análise será a literatura neo-schumpeteriana, dando destaque especial aos
aspectos relacionados ao processo de inovação e as formas de articulação de seus principais
atores. Procura-se evidenciar os elementos técnicos, econômicos e políticos inerentes aos
seguintes momentos: a partir da década de 1950/1960 apresentando a Revolução Verde,
seguindo-se da Revolução Genética em 1980/1990 e expondo aspectos de uma trajetória
alternativa que vem se destacando nas últimas décadas. A Revolução Verde criou um modelo
muito específico de transferência entre centros de pesquisa, o que contribuiu para a
consolidação de um sistema nacional de pesquisa agrícola, com o protagonismo de
instituições públicas. A Revolução Genética possui uma estrutura radicalmente diferente do
modelo anterior, com a atuação de grandes empresas privadas guiadas por elementos
comerciais ancorados nos direitos de propriedade intelectual. O artigo faz uma avaliação das
trajetórias alternativas como a agroecologia e as possíveis parcerias e redefinições de papéis
dos setores público e privado em relação às atividades de pesquisa e extensão rural.
Palavras-chave: Trajetórias Tecnológicas; Produtivismo; Biotecnologia; Agroecologia.
INTRODUÇÃO
Os padrões inovativos na agricultura possuem características específicas que foram
por muito tempo ignorados. Até a década de 1960 as análises direcionadas ao assunto
focavam principalmente na dinâmica inovativa dos setores à jusante (empresas de
fertilizantes, sementes, pesticidas e máquinas agrícolas). Possas, Salles-Filho e Silveira
(1994), no entanto, questionam se a análise agrícola não demanda um olhar mais específico e
direcionado, focando a análise para as peculiaridades do processo inovativo da agricultura per
se. A literatura neo-schumpeteriana torna-se o fio condutor da análise de Possas, Salles-Filho
e Silveira (1994), assumindo que as mudanças técnicas bem como as inovações na agricultura
de fato se devem em grande medida às indústrias fornecedoras, no entanto, a presença
constante e considerável de políticas públicas e instituições públicas dispondo de fundos e
1Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Brasil. E-mail:
[email protected]. 2Universidade Federal do Paraná, Professor no Departamento de Economia e Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas , Brasil. E-mail: [email protected].
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realizando pesquisas não podem ser ignorados.3 Desta forma, os autores apresentam uma
classificação que se propõe a auxiliar a análise do processo inovativo na agricultura,
apresentando instituições que promovem ou auxiliem as inovações. Destas seis instituições
que serão apresentadas mais adiante, será dada maior atenção justamente a co-evolução entre
as fontes de instituições públicas e as fontes privadas de organização de negócios industriais
junto às tecnologias.
A breve contextualização acima auxilia no entendimento do objetivo do presente
artigo, este se tratando da análise da evolução da dinâmica relacional entre instituições
públicas e privadas na pesquisa agrícola. Tomando como base a argumentação de Buainain et
al. (2013), atém-se então a temporalidade do processo (datando da evolução a partir da década
de 1950 e 1960) e aos catalisadores e oportunidades, como a evolução dos direitos de
propriedade intelectual que contribuíram para a mudança significativa da dinâmica inovativa
na agricultura e às críticas recentes à agricultura moderna e às mudanças profundas nos
ecossistemas ancoradas no fenômeno global das mudanças climáticas que sustentam
trajetórias alternativas. O fio condutor que auxiliará na análise proposta será, em consonância
às análises de Possas, Salles-Filho e Silveira (1994), a literatura neo-schumpeteriana, dando
especial destaque ao conceito de trajetórias tecnológicas aplicadas a agricultura.
O artigo está dividido em quatro seções, incluindo esta introdução. A seguir será
apresentada brevemente a literatura neo-schumpeteriana e sua aplicação agrícola, junto dos
principais conceitos que auxiliarão na discussão. A seção seguinte apresentará a
temporalidade do processo, destacando a dinâmica no período da Revolução Verde (1950-
1960), seguindo-se das principais alterações na relação entre os atores nas últimas décadas
junto à Revolução Genética, em grande medida catalisadas pela ascensão dos direitos de
propriedade intelectual, e seguidas da discussão da consolidação das trajetórias alternativas e
dos impactos ambientais da agricultura moderna na dinâmica relacional na agricultura, junto
as possíveis parcerias e redefinições de papéis dos setores público e privado em relação às
atividades de pesquisa e extensão rural. E por fim, as considerações finais.
3 “Esta visão sistêmica que vê nas atividades agrícolas um campo privilegiado de incorporação de inovações não
significa que possamos aplicar a ela noções especificamente desenvolvidas para setores em que a inovação é um
elemento fundamental do processo de concorrência capitalista. Possas, Salles-filho e Silveira fazem uma
interessante tentativa de aplicação do arcabouço neo-schumpeteriano ao caso da agricultura, não sem enfrentar
algumas dificuldades advindas das características de seu processo inovativo.” (BUAINAIN, SOUZA FILHO,
SILVEIRA, 2002: 61)
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REFERENCIAL TEÓRICO
Esta seção apresenta os trabalhos dos autores da teoria neo-schumpeteriana, visando à
exposição dos principais conceitos que vão nortear a análise do presente artigo, seguida da
aplicação dos mesmos na agricultura.
Diversos autores retomaram as discussões da abordagem schumpeteriana acerca da
inovação. A visão schumpeteriana destaca a competição e a busca contínua de lucros pelas
empresas como a motivação essencial para a adoção de inovações. Os autores neo-
schumpeterianos, como Richard Nelson, Sidney Winter, Giovanni Dosi, Chris Freeman, entre
outros, procuraram aprofundar as discussões acerca da inovação e do crescimento econômico
dando destaque “às causas e aos impactos estruturais do progresso técnico no sistema
produtivo” (LA ROVERE, 2006:285). Os conceitos desenvolvidos pelos autores citados
contribuem para a consciência de que a inovação não depende unicamente da capacidade da
firma ou da natureza do setor, e fatores institucionais contribuem para a geração e difusão de
inovações.
Por esta ótica, as inovações são entendidas como processos dependentes da trajetória,
por meio do qual o conhecimento e a tecnologia são desenvolvidos a partir da interação entre
vários atores e fatores. As trajetórias mencionadas dizem respeito ao que Giovani Dosi (1984)
compreende por “trajetórias tecnológicas”: escolhas contidas em determinado arcabouço
técnico e produtivo que direcionam os possíveis caminhos pelos quais as tecnologias podem
percorrer. O conjunto de trajetórias e soluções possíveis estão ancoradas em um paradigma
tecnológico específico, o qual determina justamente respostas e modelos técnicos e
econômicos feitos por agentes econômicos em determinadas situações. A compreensão de
paradigma tecnológico é importante, pois este define contextualmente as necessidades a
serem atendidas, os padrões científicos a serem incorporados e o tipo de tecnologia utilizada –
ou seja, determina os possíveis caminhos a serem seguidos, ou ignorados, no que diz respeito
a possíveis mudanças técnicas.4 Desta forma, o paradigma tecnológico “é um padrão de
solução de problemas tecnológicos selecionados, baseados em princípios selecionados,
derivados das ciências naturais, e em tecnologias materiais selecionadas” (DOSI, 1984:41,
4 A noção de paradigma tecnológico foi inspirada no paradigma científico de Thomas Kuhn, argumentando que o
progresso técnico ocorre com base na busca por respostas às questões que estão inseridas dentro de um sistema
específico de abordagem de problemas técnicos (POSSAS, 2006).
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grifo do autor).5 Assim, as soluções possíveis já se encontram dentro do paradigma, e
determinados caminhos ou trajetórias são mais prováveis de serem seguidos que outros.
Conforme destaca Possas (2006), alterações podem ocorrer dentro de um mesmo paradigma,
no entanto a maior parte dos atores, das atividades, dos materiais envolvidos permanece os
mesmos – apenas uma mudança drástica nesses elementos pode resultar um novo paradigma
tecnológico.
O progresso dentro de trajetórias e as próprias mudanças de paradigmas são
condizentes com o argumento defendido pelos autores neo-schumpeterianos de que elementos
organizacionais e institucionais são essenciais na dinâmica inovativa e no progresso técnico.
Apresentando assim o último conceito a ser exposto na presente seção: a noção de co-
evolução entre instituições e tecnologias. Conforme destacado por Salles-Filho (1993:96), as
instituições assim como as tecnologias, possuem capacidade de transformação baseadas em
seu processo histórico, “as instituições teriam, nesta perspectiva, trajetórias institucionais,
mais ou menos vinculadas às trajetórias e aos paradigmas tecnológicos”. Richard Nelson
(2007), já citado como um dos principais nomes da teoria neo-schumpeteriana, ressalta que
instituições como universidade, centros de pesquisa, podem se alterar junto às tecnologias,
bem como instituições jurídicas como os direitos de propriedade intelectual. Desta forma, “as
forças políticas devem ser levadas em conta explicitamente não apenas ao influenciar o
desenvolvimento transitoriamente ou a curto prazo, mas como determinantes de caminhos
amplos pelos quais a tecnologia vai proceder” (NELSON, 2007:316).
A literatura neo-schumpeteriana de acordo com Possas, Salles-Filho e Silveira (1994),
ajuda a enquadrar a análise das especificidades da agricultura de uma forma menos arbitrária,
apontando os conceitos expostos da natureza dos paradigmas tecnológicos, as próprias
respostas comportamentais (aplicadas às unidades agrícolas) e a seleção de processos como
elementos que auxiliam na análise econômica de atividades relacionadas à agricultura. Desta
forma, em harmonia com os elementos apresentados, os autores destacam que o processo
inovativo da agricultura deve se ater às fontes de inovação e a natureza e dinâmica relacional
entre esses atores. As fontes identificadas são: (a) fontes privadas de organização de negócios
industriais; (b) fontes de instituições públicas; (c) fontes privadas relacionadas à
agroindústria; (d) fontes privadas, organizações coletivas e organizações sem fins lucrativos;
(e) fontes privadas relacionadas ao serviço de fornecedores; (f) e as unidades produtivas
5 Ademais, conforme destacado por Giovanni Dosi (1984) o paradigma tecnológico possuí um alto grau de
exclusão, ou seja, as soluções encontradas e as próprias pesquisas focam em direções precisas, no entanto ficam
cegas para outras possibilidades tecnológicas (p.42).
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agrícolas. Assim, o regime tecnológico da agricultura moderna envolve não apenas as
indústrias químicas, de agrotóxicos, de sementes, de máquinas, e ferramentas mecânicas;
envolve também pesquisa pública, instituições de educação, organizações de produtores e
também fundações de pesquisa pública e privada. Os autores compreendem que a maneira
como essas fontes evoluem e se relacionam umas com as outras é a grande força institucional
que desenvolve as trajetórias tecnológicas na agricultura e fornecem um padrão
compreensível e coerente para o regime tecnológico moderno agrícola (POSSAS, SALLES-
FILHO e SILVEIRA, 1994).
A próxima seção visa destacar o regime tecnológico da agricultura moderna,
destacando a dinâmica relacional entre as indústrias e as instituições de pesquisa pública no
processo inovativo agrícola, a partir da Revolução Verde.
A DINÂMICA INSTITUCIONAL NA AGRICULTURA: OS CAMINHOS DA
TECNOLOGIA AGRÍCOLA
A partir das décadas de 1950 e 1960 se inicia a base produtiva da agricultura moderna.
O processo produtivo e inovativo que se inicia nesse período passou a ser conhecido como
Revolução Verde, que ampliou a intensificação do uso da terra, visando a maximização de sua
produção em geral em países populosos com recursos escassos, como a Índia, Paquistão,
China e México (BUAINAIN et al., 2013). Segundo Buainain et al. (2013), as mudanças
apresentadas viabilizaram o crescimento da produção agropecuária, “tendo afastado o
fantasma malthusiano que ameaçava aquelas sociedades, além de terem contido a ameaça da
fome catastrófica e disseminada”. A promessa nesse sentido se ancora na argumentação da
erradicação da fome no mundo, viabilizada pela produção e padronização dos produtos
agrícolas. Assim, a Revolução Verde pode ser vista como a indução de um programa de
transferência de tecnologia agrícola e de assistência técnica para aumentar a produtividade
dos países em desenvolvimento.
O foco da presente análise diz respeito à difusão da tecnologia e do conhecimento
nesse período, sendo criado um modelo muito específico de transferências entre centros de
pesquisa. Segundo Salles-Filho (1993), esse processo de reorganização institucional da
pesquisa agrícola vai do período de 1950 à 1970 (sendo este o período destacado
anteriormente da Revolução Verde). Desta forma, o uso intensivo de sementes melhoradas de
alto rendimento e de fertilizantes exigia que fossem criados centros de pesquisa nos países em
desenvolvimento para que pudessem desenvolver e adaptar localmente as variedades
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melhoradas. A pesquisa e a inovação formaram o cerne da mudança agrícola nesse período e
suas atuações na difusão das novas práticas influenciaram sobremaneira os sistemas agrícolas,
estimuladas e financiadas por agências públicas de pesquisa (SALLES-FILHO, 1993) e com a
criação de centros de pesquisa que visavam a difusão e a adaptação do conhecimento agrícola
às condições nacionais (HAYAMI RUTTAN, 1988).
Desta forma, um dos grandes legados da Revolução Verde ou do padrão produtivista
foi a consolidação e a disseminação do padrão moderno produtivo, em grande medida como
ainda se vê nos dias atuais, baseado em uso intensivo de insumos agrícolas, ancorado em
bases científicas multidisciplinares, “com uma forte complementaridade entre insumos e
técnicas e elevada especificidade relacionada às condições naturais de solo e clima”
(SALLES-FILHO, 1993:31).
O contexto econômico e político que envolve a Revolução Verde foi descrito por
Parayil (2003). O autor enfatiza que este processo contribui e muito para a consolidação do
modelo inovativo agrícola, este ancorado por um cenário de políticas pós-coloniais e da
argumentação do “fim da fome” durante a Guerra Fria. Além disso, o autor também enfatiza
que muito embora a transferência de tecnologias durante o período seja considerado um
sistema inovativo bem sucedido, os aspectos distributivos e os riscos ambientais resultantes
da Revolução Verde não eram tidos como preocupações prioritárias dos desenvolvedores de
tecnologia. Assim, outro legado da Revolução Verde diz respeito aos diversos impactos
ambientais e sociais cujos efeitos se manifestam até os dias de hoje e sustentam algumas
trajetórias alternativas, como é o caso da agroecologia.
Os efeitos ambientais e principalmente o papel da agricultura produtivista na
intensificação das mudanças climáticas vêm mobilizando desde 1980 encontros científicos e a
incorporação dessa pauta na agenda de pesquisa internacional (VANLOQUEREN e BARET,
2009), especialmente ao considerar que agricultura é diretamente responsável por 15% das
emissões de gases de efeito estufa (GEE) (WORLD BANK, 2009). A característica agrícola
nesse contexto é que, além de ser uma das causas das mudanças climáticas, a agricultura
também é afetada por este condicionante, e as mudanças produtivas necessárias para a
sustentabilidade da agricultura, ao contrário de cenários anteriores, não se dá por uma
imposição do mercado e sim por imposições da natureza. Assim, o papel fundamental da
pesquisa e da inovação destacados anteriormente na consolidação da agricultura produtivista
é, como apontam Lybbert e Sumner (2012), ainda mais central – e desafiador – nesse novo
contexto.
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Salles-Filho (1993) conclui que o padrão tecnológico moderno é resultado de um
processo cumulativo, que se inicia muito antes da Revolução Verde, ou seja, a ideia de que
este é um pacote tecnológico concebido ex ante não corresponde ao processo histórico que de
fato ocorreu. Argumentação que se confirma com as características de trajetórias tecnológicas
de Dosi, em que é questionável a possibilidade de se definir a priori a superioridade ou a
escolha entre trajetórias. Ou seja, “ele (o padrão tecnológico) é um processo de
desenvolvimento tecnológico cujas origens, desdobramentos, caminhos, estímulos e
obstáculos só podem ser entendidos à luz dos momentos históricos em que se deram”
(SALLES-FILHO, 1993:35).
Conforme destacado por Fuck (2009) acerca da organização da pesquisa agrícola no
período, a consolidação de uma rede internacional de pesquisa foi fundamental para a
transferência internacional de materiais genéticos. No entanto, atualmente são questionadas as
capacidades das grandes organizações internacionais, como o Grupo Consultivo para a
Pesquisa Agrícola Internacional em continuar as atividades de disponibilização de tecnologias
agrícolas para os países em desenvolvimento. Em grande medida, o grande obstáculo que
modifica a dinâmica de difusão do conhecimento diz respeito aos direitos de propriedade
intelectual. Ou seja, neste momento, o protagonismo do desenvolvimento de novas
tecnologias agrícolas na pesquisa e na comercialização de produtos se alterou, com destaque
para as grandes empresas transnacionais (FUCK, 2009). As questões decorrentes dessa nova
configuração dos direitos de propriedade intelectual configuram um problema que deve ser
amplamente debatido. Como indicam Salles-Filho e Bin (2014), enquanto as empresas e as
grandes multinacionais estão preparadas para garantir e para explorar a apropriabilidade de
suas inovações tecnológicas, as organizações de pesquisa pública estão preparadas apenas
para serem detentoras da propriedade. Parayil (2003) argumenta que a Revolução Genética
não foi desenvolvida naturalmente a partir da Revolução Verde – o desenvolvimento e a
difusão de inovações estão situadas em sistemas inovativos profundamente distintos,
moldadas por diferentes aspectos políticos, econômicos e sociais. Ou seja, a Revolução
Genética possui uma estrutura radicalmente diferente do modelo característico apresentado na
Revolução Verde, ancorada pela globalização e por um “capitalismo intelectual” (PARAYIL,
2003: 986):
O processo de produção e difusão de inovações na agropecuária mudou
completamente sua natureza, quando comparado com o de algumas décadas
passadas. É hoje um desafio gigantesco, pois opõe distintos interesses sociais e
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econômicos (rurais e não rurais). Considerando-se o tema das mudanças climáticas,
ultrapassa inclusive as fronteiras nacionais. (BUAINAIN et al., 2013:1169)
Salles-Filho (1993) destaca que a agricultura passa a partir da década de 1990 por um
momento de transformação, que ao chegar ao seu limite, diminui assim a sobrevida do
modelo produtivista. Fuck (2009) aponta justamente para o processo de co-evolução entre as
inovações institucionais e tecnológicas que passam a estruturar um novo modelo, baseado nas
culturas geneticamente modificadas. Com a perda do protagonismo público na transferência
de materiais genéticos, que foi essencial na consolidação do modelo durante a Revolução
Verde, a partir de então as grandes empresas multinacionais são as principais responsáveis por
estas atividades, no entanto, as pesquisas se direcionam ao mercado de sementes mais
atrativo, como a soja, o milho e o algodão. Salles-Filho e Bin (2014) apontam que, no caso
brasileiro, as instituições de pesquisa científica e tecnológica se encontram um tanto
deslocadas nesse novo contexto, justamente porque o modelo de produção produtivista ainda
está presente, mas a atuação dos principais atores foi realocada. Os autores destacam a
abordagem de Atkinson et al. (2003), que atribuem a mudança dessa dinâmica e da alteração
do protagonismo da pesquisa pública às mudanças nas condições de apropriabilidade de
tecnologias.
Com a nova configuração institucional questiona-se quais atividades devem ser
desenvolvidas por qual ator específico, evitando a sobreposição de atividades ou o efeito
crowding-out, que seria um processo em que o investimento público em pesquisa deslocaria
investimentos do setor privado (SALLES-FILHO e BIN, 2014). O novo contexto incorpora a
entrada de novos atores e o questionamento dos papéis das instituições tradicionalmente
atuantes, além de questionamentos futuros no desenvolvimento inovativo baseado em uma
fraca conexão entre as instituições chaves e à perda de espaço da pesquisa pública agrícola
(BONACELLI, FUCK, CASTRO, 2015). No entanto, Vanloqueren e Baret (2009) indicam
uma sobrevida à pesquisa agrícola que engloba justamente o legado dos efeitos ambientais e
das mudanças climáticas na agricultura. Em um contexto em que as inovações e a pesquisa
podem estar direcionadas para um novo padrão produtivo, que não visa exatamente a
produtividade, mas principalmente a sobrevivência das atividades agrícolas em um contexto
ambientalmente instável, a ciência e a inovação assumem novamente papel fundamental –
justamente pela incerteza e pela falta de incentivo econômico relacionado às pesquisas
ambientais, o protagonismo público será maior nesse momento do que a atuação privada
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(BIN, 2004).6 No entanto, as dificuldades nesse cenário se dão justamente pela imposição de
diversas restrições que não são economicamente atrativas aos produtores, exigindo assim
incentivos para a adoção de novas práticas (SMITH et al., 2008). Dessa forma, como
destacam Smith et al. (2007) serão necessárias políticas inovadoras e interdisciplinares que
reconheçam e removam as barreiras que dificultam a difusão de tecnologias e conhecimento
aos produtores.
A consolidação desse paradigma, ultrapassando apenas progressos incrementais, pode
ser resolvido ao se observar a trajetória decorrente da Revolução Genética como
complementar a trajetória agroecológica, de acordo com Vanloqueren e Baret (2009). “Por
exemplo, espera-se que plantas transgênicas tolerantes a seca possam ser incorporadas em
sistemas agroecológicos concebidos para maximizar a resistência às condições climáticas
extremas” (VANLOQUEREN e BARET, 2009: 981). No entanto, existe ainda um debate
sobre o misto entre a agricultura intensiva e a agricultura sustentável e agroecológica, em
especial no que diz respeito introdução de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs).
Bin (2004) destaca justamente que muito embora argumentem sobre uma possível
contribuição das práticas biotecnológicas na agricultura sustentável, o conhecimento sobre os
efeitos e riscos potenciais envolvidos com a biotecnologia ainda são desconhecidos –
levantando algumas barreiras, mas não impedindo avanços na pesquisa agrícola, o que
endossa o argumento de Vanloqueren e Baret (2009). Ou seja, segundo Bin (2004:73), “a
internalização da variável ambiental na pesquisa agrícola não se faz de forma separada do
conjunto do padrão tecnológico agrícola mais amplo”. Com o avanço das discussões acerca
das duas trajetórias e de sua possível fusão, junto ao debate sobre a tensão entre a participação
pública e privada, será possível compreender o delineamento e a consolidação das trajetórias
alternativas.
O papel da pesquisa agrícola, com seu protagonismo em cheque, pode ser repensado
quando se tratam das trajetórias alternativas e sustentáveis. Ou seja, o papel fundamental da
pesquisa e da inovação destacados anteriormente na consolidação da agricultura produtivista
é, como apontam Lybbert e Sumner (2012), ainda mais central nesse novo contexto. Mas a
efetividade de sua ação depende em grande medida de outras iniciativas, como a extensão
rural e políticas inovadoras para que os agricultores percebam os ganhos a longo prazo de
mudanças nas práticas produtivistas, e compreendam que as limitações do ambiente agora se
6 “Nesse sentido o inexorável aumento das temperaturas no globo levará à intensificação dos estresses técnicos,
hídricos, nutricionais e sanitários para plantas e animais nos trópicos exigindo soluções que só poderão ser
alcançadas através de um modelo de inovação transdiciplinar.” (BORGES FILHO, 2005, p.129)
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sobrepõe aos interesses mercadológicos. O papel do desenvolvimento e da estabilização da
agenda agrícola, bem como a difusão de conhecimento e tecnologias são as variáveis
fundamentais para se compreender como e quão bem os agricultores se adaptam e diminuem
os efeitos da mudança climática em suas práticas. Medidas e iniciativas dos centros de
pesquisa públicos voltados para as trajetórias alternativas podem contribuir para o
fortalecimento dessas trajetórias, com possíveis parcerias e redefinições de papéis dos setores
público e privado em relação às atividades de pesquisa e extensão rural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com este artigo buscou-se fazer uma revisão histórica da dinâmica entre atores na
pesquisa pública agrícola, em especial nas transferências de tecnologia entre centros de
pesquisa. A nova conjuntura apresentada anteriormente aponta justamente para mudanças no
papel e nas interações entre atores, demonstrando uma tensão entre o protagonismo público e
privado na dinâmica inovativa agrícola. A literatura neo-schumpeteriana auxilia junto aos
seus conceitos, a compreensão acerca do paradigma produtivo que se consolida com a
Revolução Verde, e as trajetórias tecnológicas produtivistas cuja força ainda inibem
trajetórias alternativas, promovendo apenas progressos incrementais nas condições atuais
(SALLES-FILHO e BIN, 2014; PARAYIL, 2003). O papel do Estado junto aos centros de
pesquisa demanda atenção justamente porque no novo contexto da Revolução Genética, essas
novas tecnologias impõem a necessidade de uma postura ativa por parte do setor público em
relação às atividades de pesquisa e de regulamentação. O contexto apresentado junto à co-
evolução visível entre instituições e o ambiente em que atuam, em especial ao papel dos
direitos de propriedade intelectual devem ser observados com atenção. Salles-Filho e Bin
(2014) destacam justamente a necessidade de um movimento realmente sério de coordenar
expectativas mútuas de divisão de tarefas no sentido de desenvolvimentos simultâneos e
complementares entre pesquisa público-privada e como a proposta de discussão sobre uma
adaptação do regime atual de propriedade intelectual que priorize objetivos sociais em
detrimento de ganhos privados.
A definição de um novo regime na agricultura é complicado por considerar muita
especulação, em especial por se tratar de regimes tecnológicos – e as tecnologias são de difícil
previsibilidade, por definição. No entanto, como concluem Possas, Salles-Filho e Silveira
(1994), as novas áreas-problema, em especial a atuação público-privada no contexto da
Revolução Genética e da possível consolidação de trajetórias alternativas como a
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agroecologia junto as discussões sobre impactos ambientais e sobre as mudanças climáticas,
indicam os pontos-chaves a serem discutidos, revistos e alterados. No entanto, a atuação dos
centros de pesquisa publica direcionada para as trajetórias alternativas pode contribuir para a
sobrevivência da pesquisa pública e para o fortalecimento de outras práticas direcionadas
principalmente à sustentabilidade e aos objetivos sociais, em detrimento de ações voltadas
unicamente aos ganhos privados.
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