os cartórios e a nova perspectiva do concurso público ... · o objetivo desse trabalho é...

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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Os cartórios e a nova perspectiva do concurso público: rompimento da transmissão hereditária Joel Dutka 1 Resumo Esse trabalho analisa o rompimento das formas tradicionais de transmissão dos cartórios extrajudiciais no Brasil. Antes da promulgação da Constituição de 1988, a transmissão se dava de forma livre entre pais e filhos ou apadrinhados, o que significava praticamente hereditariedade. A Constituição vigente inaugurou uma nova forma de transmissão das serventias através do concurso público. O objetivo dessa pesquisa é investigar e problematizar o impacto da transição entre o período anterior e pós-Constituição de 1988. Os dados pesquisados demonstram tanto a resistência dos serventuários em abrir mão das serventias, como também da dificuldade na realização do concurso público. Observo que a morosidade nos concursos está ligada à formação de dupla concorrência: entre candidato-candidato e também entre serventuários-candidatos. Palavras-chave: cartórios; transmissão; elites cartoriais. Introdução Muito tem sido estudado nos últimos tempos sobre as chamadas elites jurídicas, seu campo de atuação e sua posição na burocracia estatal. Assim como os demais grupos ocupantes de posições sociais privilegiadas, essas elites desenvolvem mecanismos e estratégias aplicáveis em sua reprodução, principalmente através dos relacionamentos interpessoais desenvolvidos ao longo da carreira e do capital cultural acumulado. Uma busca constante de meios que garantam a manutenção e transmissão desse status privilegiado aos filhos e parentes constitui o que Saint-Martin (2008, p. 57) chamou de “obsessão pela transmissão”. Em relação aos cartórios brasileiros 2 , uma dinâmica de transmissão direta entre familiares foi predominante até a segunda metade do último século, sendo rompida com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). A chamada “Constituição Cidadã”, previu o concurso público de provas e títulos como requisito para o ingresso na atividade notarial e registral. Essa nova forma de ingresso, através do 1 Mestrando em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Direito pela Universidade Tuiuti do Paraná. 2 Apesar de a Lei 8.935/94 ter substituído o termo “cartório” por “serviço”, criando nova nomenclatura (Serviço Notarial e Registral), optei por utilizar a expressão “cartório”. Cumpre observar, no entanto, que não se confundem com os cartórios judiciais, que estão vinculados diretamente ao poder judiciário. Nesse trabalho o termo “cartório” se refere aos chamados “cartórios extrajudiciais”.

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I Seminário Internacional de Ciência Política

Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

Os cartórios e a nova perspectiva do concurso público: rompimento da transmissão

hereditária

Joel Dutka1

Resumo

Esse trabalho analisa o rompimento das formas tradicionais de transmissão dos cartórios extrajudiciais no Brasil. Antes da promulgação da Constituição de 1988, a transmissão se dava de forma livre entre pais e filhos ou apadrinhados, o que significava praticamente hereditariedade. A Constituição vigente inaugurou uma nova forma de transmissão das serventias através do concurso público. O objetivo dessa pesquisa é investigar e problematizar o impacto da transição entre o período anterior e pós-Constituição de 1988. Os dados pesquisados demonstram tanto a resistência dos serventuários em abrir mão das serventias, como também da dificuldade na realização do concurso público. Observo que a morosidade nos concursos está ligada à formação de dupla concorrência: entre candidato-candidato e também entre serventuários-candidatos. Palavras-chave: cartórios; transmissão; elites cartoriais.

Introdução

Muito tem sido estudado nos últimos tempos sobre as chamadas elites jurídicas, seu

campo de atuação e sua posição na burocracia estatal. Assim como os demais grupos

ocupantes de posições sociais privilegiadas, essas elites desenvolvem mecanismos e

estratégias aplicáveis em sua reprodução, principalmente através dos relacionamentos

interpessoais desenvolvidos ao longo da carreira e do capital cultural acumulado. Uma busca

constante de meios que garantam a manutenção e transmissão desse status privilegiado aos

filhos e parentes constitui o que Saint-Martin (2008, p. 57) chamou de “obsessão pela

transmissão”.

Em relação aos cartórios brasileiros 2, uma dinâmica de transmissão direta entre

familiares foi predominante até a segunda metade do último século, sendo rompida com a

promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). A

chamada “Constituição Cidadã”, previu o concurso público de provas e títulos como requisito

para o ingresso na atividade notarial e registral. Essa nova forma de ingresso, através do

1 Mestrando em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Direito pela Universidade Tuiuti do Paraná. 2 Apesar de a Lei 8.935/94 ter substituído o termo “cartório” por “serviço”, criando nova nomenclatura (Serviço Notarial e Registral), optei por utilizar a expressão “cartório”. Cumpre observar, no entanto, que não se confundem com os cartórios judiciais, que estão vinculados diretamente ao poder judiciário. Nesse trabalho o termo “cartório” se refere aos chamados “cartórios extrajudiciais”.

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concurso, rompeu com uma tradição antiga de transmissão livre entre filhos e apadrinhados, o

que mantinha as serventias nas mãos da mesma família por diversas gerações, e implicava

praticamente em transmissão hereditária. Assim, fatores como o nome, origem, relações

interpessoais e demais capitais perderam sua utilidade como recursos na conversão direta aos

cargos de serventuários3. Isso, contudo, gerou impacto negativo entre aqueles que detinham as

serventias até então, e tiveram que abrir mão das mesmas para que fossem ocupadas pelos

novos aprovados no certame, forçados, então, a permitir a circulação do que denominamos

elites cartoriais.

O objetivo desse trabalho é apresentar um panorama deste “rompimento” entre a

antiga e a nova dinâmica de transmissão dos cartórios no Brasil. Inicialmente, faço um

apanhado teórico sobre as elites e suas formas de reprodução, abrangendo as chamadas elites

jurídicas. Em seguida, desenvolvo noções históricas dos cartórios atrelados à burocratização

no Brasil, bem como seu regime jurídico atual. Por fim, apresento os dados pesquisados que

evidencia tanto a resistência dos detentores em abrirem mão das serventias, quanto na

dificuldade de realização dos concursos para provimento daquelas declaradas vagas.

As elites jurídicas e sua reprodução

O campo das elites jurídicas vem despertando crescente interesse dos pesquisadores

nos últimos anos. Como grupo diferenciado, é identificado através da ocupação de posições

de destaque no meio profissional, intelectual e midiático. Recentemente, através de casos

envolvendo grandes repercussões na mídia nacional4, os atores dos processos jurídicos foram

expostos de forma reiterada ao público em geral, o que fez com que o campo jurídico

estivesse cada vez mais aparente. Todavia, apesar de haver estudos sobre a magistratura,

membros do Ministério Público, delegados e advogados (BONELLI 2002; 2003; BONELLI,

OLIVEIRA & MARTINS, 2006; SADEK, 2006); da arbitragem no Brasil (ENGELMANN,

2012); e da sociologia do campo jurídico (ENGELMANN, 2006), há carência de pesquisas

relacionadas aos titulares de cartórios e as dinâmicas de transmissão.5

As elites, de forma geral, são grupos reconhecíveis por algumas características

distintas, como lugares freqüentados, formas de consumo, gostos sofisticados, dentre outros.

3 Esses fatores ainda são de grande importância na conversão a bons cargos públicos e políticos. O que quero ressaltar aqui é que eles deixaram de ser determinantes de forma direta na conversão, ao contrário do que ocorria até então. 4 Podem ser destacados os casos do “mensalão” e, mais recentemente, a chamada operação “lava-jato”. Esse último, além de promover diversos advogados, também tornou bastante conhecido o Juiz Sérgio Moro. 5 Sobre os cartórios e o concurso público para provimento ver Assumpção (2011).

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Não há contornos específicos ou delimitação clara do grupo. Há, todavia, semelhança na

configuração de capital, o que faz com que sejam vistos como uma unidade (LEMOS, 2004,

p. 5). Assim, para que sejam constituídos, esses grupos precisam tanto da aceitação interna

dos pares como do reconhecimento externo da sociedade como um todo. Além disso,

conforme os estudos sobre a permeabilidade das elites (FERREIRA, 2001), a circulação dos

grupos se dá de forma gradual, com a saída de alguns para a entrada de outros, o que significa

um movimento constante de acesso e declínio dos participantes.

Os grupos de destaque no campo jurídico obtêm sua legitimação inicialmente através

do diploma em direito, que, apesar de menos valorizado do que outrora6, ainda se apresenta

como recurso útil no ingresso a cargos públicos, sejam eles cargos comissionados, de carreira

ou cargos políticos. Conjugado com fatores como trajetória familiar, histórico de militância,

dentre outros, é recurso importante na conversão em recursos eleitorais, conforme constatou

Grill (2007). Com efeito, o autor dispôs sobre a presença das elites jurídicas no espaço

político brasileiro: “A formação do estado brasileiro, as vertentes ideológicas que

estruturaram o espaço político no Brasil e os diferentes níveis do poder legislativo foram e

continuam sendo marcados pela formação jurídica dos ocupantes das posições políticas”

(GRILL, 2007, p. 87).

As elites jurídicas são identificadas pelas posições profissionais destacadas, pela

visibilidade na mídia e pela influência na política. Como outros grupos de elites, apreciam o

bom gosto, possuem diálogo sofisticado e ocupam lugar de destaque tanto no meio

profissional quanto no meio social. As dinâmicas de reprodução são semelhantes, baseadas na

transmissão entre pais e filhos dos diversos capitais simbólicos – social, econômico, escolar e

cultural (BOURDIEU, 1996, p. 149).

Os cartórios no Brasil – da Colônia até os dias de hoje

Os negócios jurídicos antes da figura do notário eram realizados com base na

confiança, sem a participação de terceiros no ato, e apenas através do respeito e honra dos

mais antigos. No entanto, com o desenvolvimento e a complexidade dos negócios foram

6 O aumento de cursos em direito no Brasil pode justificar essa “desvalorização” do diploma de direito. Conforme recente pesquisa da FGV (Exame de Ordem em números), houve a expansão da oferta de cursos na área nos últimos anos, representado pelo crescimento de 242,3% no número de matrículas entre 1995 e 2012. Entretanto, conforme constatado por Almeida (2010), as instituições de formação conferem aos egressos um capital diversificado, que tende a ser mais valorizado e reconhecido pelo grupo das elites jurídicas.

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surgindo os intermediários entre as partes, que passaram a figurar como garantidores dos mais

diversos negócios. Conforme João Mendes de Almeida Júnior:

Desenvolvendo-se as relações sociaes, novos conhecimentos, relações commerciaes mais diffusas, a variedade e complicação dos negocios trouxeram a necessidade de uma prova das convenções, menos fugaz do que a palavra fallada e menos transitoria ou mais segura do que a memoria das testemunhas; e, assim, as simples promessas verbaes foram substituidas por documentos escriptos [sic]. (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 12).

As pessoas detentoras da arte da caligrafia inicialmente exerciam atividades privadas,

mas, aos poucos, passaram a ser servidores oficiais, dotados da chamada “fé pública”, que

atribuía segurança e publicidade aos atos.

A origem dos atos notariais remonta a épocas distantes, para muito antes da era cristã.

Na própria bíblia cristã, sem data certa de escrita, havia relatos de sua existência, a exemplo

da passagem extraída do livro Jeremias, 32:14-15, a seguir transcrita:

Assim diz o Senhor dos Exércitos, Deus de Israel: ‘Tome estes docu-mentos, tanto a cópia selada como a não selada da escritura de compra e coloque-os num jarro de barro para que se conservem por muitos anos’. Porque assim diz o Senhor dos Exércitos, Deus de Israel: ‘Casas, campos e vinhas tornarão a ser comprados nesta terra’.

No Brasil, foi com a chegada lusitana que o interesse nos registros públicos teve

inicio. A carta Pero Vaz de Caminha à D. Manuel, logo após a chegada dos portugueses, pode

ser considerada o primeiro ato notarial brasileiro. Em seguida, a doação das capitanias

hereditárias pode ser considerada o primeiro registro de imóveis, onde era atribuído ao

donatário o direito de criar os ofícios de governança nas vilas, juntamente com os tabeliães

(MACEDO, 2007, p. 14).

No século XVII, no período imperial, os detentores de terra eram obrigados a registrar

suas terras com o vigário. Era a igreja católica, também, a responsável pelo registro de

nascimento e óbito. No entanto, somente em 1863, através do decreto 3.069, foram

reconhecidos civilmente os casamentos dos chamados “acatólicos” 7. Esse é o ponto que

7 Decreto nº 3.069, de 17 de Abril de 1863. Art. 1º Os casamentos de nacionaes ou estrangeiros que professarem religião differente da do Estado, celebrados fóra do Imperio (art. 1º, § 1º da Lei de 11 de Setembro de 1861) não dependem de registro algum no Imperio, para que lhes sejão extensivos os effeitos civis dos casamentos catholicos (sic).

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marcou o início da separação entre Estado e igreja, onde “a secularização do registro civil é

apontada como um marco na transição para o Estado laico brasileiro” (SANTOS, 2006, p.

16).

Com efeito, foram as ordenações Filipinas que, vigendo desde 1603 até o início do

século XX, mantiveram a figura do notário. Dispunha em seu livro primeiro, título LXXVIII

que: “Em qualquer cidade, Villa, ou lugar, onde houver casa deputada para os Tabelliães das

Notas, starão nella pela manhã e á tarde, para que as partes, que os houverem mister para

fazer alguma scriptura, os possam mais prestes achar” [sic]8. Como se pode notar, houve

influência direta de Portugal na função notarial brasileira, que seguiu até a promulgação do

Código Civil de 1916, quando o sistema de cartórios brasileiros teve início de forma

organizada.

Os tabeliães, na história brasileira, sempre exerceram funções de grande importância,

pois era através deles que se constituíam os registros comprovantes de propriedade das terras,

e, além de publicidade, os atos notariais davam segurança e atribuíam “fé pública” aos

negócios por eles homologados. Pela relevância da função, durante o império, a nomeação era

exclusiva pelo monarca, que a concedia de forma vitalícia9. A partir de então, esses cargos

eram doados, e podiam ser livremente alienados através de compra e venda ou transmitida

através de herança, sem qualquer preocupação com capacidade técnica para a função

(RIBEIRO, 2009, p. 28).

Todavia, devido à importância constitutiva dos registros públicos na distribuição de

terras pela coroa portuguesa, e mais adiante durante o desenvolvimento do período imperial e

republicano, é possível a dedução de que a escolha desses tabeliães se dava com vistas no

interesse particular das elites governantes, ou mesmo como forma de retribuição de vínculos

clientelistas. Com as ocupações de terras e sua distribuição entre os apadrinhados e senhores,

era através dos notários que as propriedades se formalizavam perante os demais. Pela

importância desses atos, e pela forma como havia a nomeação, não é difícil concluir que se

constituía agraciamento político, o que criava vínculo de gratidão entre notário e governante.

Nas palavras de Deoclécio Leite de Macedo:

8 Disponível em: ˂http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p179.htm˃. Acesso em: 24 abr. 2015. 9 Lei 11/1827. Art. 2º Todos os officios de Justiça, ou Fazenda, serão conferidos, por titulos de serventias vitalicias, as pessoas, que para elles tenham a necessária idoneidade, e que os sirvam pessoalmente; salvo o accesso regular, que lhes competir por escala nas repartições, em que o houver (sic).

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Com o tempo, pelo costume dos reis de recompensarem, nos filhos dos oficiais, os serviços dos pais que bem servissem os ofícios sem erro nem culpa, introduziu-se, pela chamada lei consuetudinária, o uso de se conceder a propriedade hereditária dos ofícios de Justiça e Fazenda. Desse costume muito se valeram as viúvas e filhas dos proprietários falecidos, para se beneficiarem dos rendimentos dos ofícios para sua subsistência, dote de casamento ou entrada em convento. (MACEDO, 2007, p. 15).

Foram três etapas, descritas por Pinto Ferreira (1995), no desenvolvimento do direito

notarial brasileiro: na primeira, até o início do período imperial, o tabelião recebia a serventia

a título de propriedade, podendo de ela dispor conforme lhe aprouvesse. A segunda etapa,

iniciada em 1827 através da Lei n° 11 atribuiu vitaliciedade ao notário, porém, não detinha

mais a propriedade. A terceira fase, por sua vez, iniciada pela Constituição de 1946, elevou ao

plano constitucional a vitaliciedade dos serventuários (FERREIRA, 1995, p. 467- 469) 10.

Essa dinâmica, contudo, foi aos poucos sendo rechaçada pelos movimentos

republicanos e apelos populares pela separação entre espaço público e privado, fortalecido

pela onda democrática das últimas décadas no Brasil. Após o recente período turbulento de

autoritarismo iniciado na década de 1960, e com a crescente especialização das funções

públicas, o concurso passou a ser contemplado como meio mais adequado de seleção de

candidatos. Assim, conforme os preceitos constitucionais modernos foram avançando,

resquícios da sistemática antiga passaram a ser deixados de lado. Ou, conforme Dalledone

(2012, p. 142): “O ranço patrimonialista do passado vai se dissipando”.

Seguindo essa onda, em 1982, através da Emenda Constitucional n° 22, que alterou o

artigo 207, pela primeira vez no Brasil o provimento das serventias extrajudiciais passou a

exigir concurso público11. Mas foi com a promulgação da CRFB/88, que inseriu vários

princípios a serem observados pela administração pública, dentre eles a moralidade,

impessoalidade e principalmente o da eficiência, que o concurso ganhou foco amplamente

como forma de ingresso para o serviço público. 12

10 Constituição 1946, art. 187 - São vitalícios somente os magistrados, os Ministros do Tribunal de Contas, titulares de Ofício de Justiça e os professores catedráticos. 11 Art. 207 - As serventias extrajudiciais, respeitada a ressalva prevista no artigo anterior, serão providas na forma da legislação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, observado o critério da nomeação segundo a ordem de classificação obtida em concurso público de provas e títulos. 12 CRFB/88. Art.37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a

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A finalidade dos serviços notariais e de registros é definida pela Lei 8.935/94 (Lei dos

Serviços Notariais e de Registro), em seu artigo 1°, sendo ela “garantir a publicidade,

autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”. A mesma Lei no artigo 3° traz o

conceito de notário, tabelião, oficial de registro e registrador, que “são profissionais do

direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de

registro”.

A especialização das funções notariais é algo inconteste no atual estágio da burocracia

estatal. Os cartórios passaram a exercer muito mais do que simples autenticação de

documentos e reconhecimento de firmas. É através deles que os atos da vida civil são

atestados, como nascimento, casamento e óbito. Também são realizados outros

procedimentos, como o divórcio, o inventário e a usucapião, dentre outros, realizados de

forma extrajudicial. Não se pode ignorar também a função mediadora dos notários, que

acabam orientando às partes sobre diversas dúvidas e resolvendo pequenos conflitos. Assim,

os cartórios servem como alternativa ao Poder Judiciário em diversas situações. Nesse

sentido, a capacitação técnica é requisito indispensável para ingresso na carreira, tendo em

vista a ampla função exercida em auxílio ao estado. É através da burocracia, portanto, que o

estado chancela os atos notariais.

A burocracia, surgida inicialmente na segunda metade do século XVIII, era formada

basicamente por uma organização de servidores públicos. Mais tarde, com o modelo

Weberiano desenvolvido durante o século XIX, as funções da administração pública passaram

a ser vistas como organização de servidores normativamente organizados. Max Weber (1982)

formulou a ideia de organização estatal através de agentes com funções e competências

delimitadas, selecionados através de critérios racionais, baseados na meritocracia. Em suma,

era essa estrutura que favorecia uma administração eficiente, separando-se os interesses

públicos dos privados, numa organização com funções livres de qualquer retribuição pessoal

ao governante.

Nesse ponto, o que nos interessa é que, conforme o modelo Weberiano, outros

critérios, que não os racionais, seriam afastados do processo de seleção. Em outras palavras,

não deveria ser uma escolha pessoal das autoridades, conforme valores subjetivos, mas sim

um processo objetivo-racional, voltado à escolha daqueles melhor preparados para a função

estatal. Conforme Max Weber, “É decisivo para a natureza específica da fidelidade moderna

complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração [...].

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ao cargo que, no tipo puro, ele não estabeleça uma relação pessoal, como era o caso da fé que

tinha o senhor ou patriarca nas relações feudais ou patrimoniais” (WEBER, 1982, p. 232).

Operando num campo normativo, é reprovável qualquer forma de relação pessoal como

critério determinante para ingresso no serviço público. Vínculos clientelistas acabam por

segregar e favorecer a manutenção do poder de determinado grupo. Diante disso, é possível

entender a dinâmica que regia a escolha dos cartorários antes da exigência do concurso

público.

Com o passar do tempo, a função notarial tornou-se mais complexa, exigindo vasto

conhecimento jurídico e preparo dos serventuários para o cumprimento das funções. Nessa

dinâmica, o concurso público, além de privilegiar os princípios constitucionais e desvincular

outros fatores estranhos ao mérito, se apresenta como um processo mais igualitário,

reconhecendo as capacidades individuais e premiando o esforço e dedicação dos candidatos

mais aptos:

A tendência geral à burocratização e à adoção do sistema de concurso público para provimento de postos em carreiras públicas, com exigência de conhecimentos específicos e, em muitos casos, título universitário, certamente explica a formação de elites burocrático-administrativas mais escolarizadas e menos atreladas à lógica dos privilégios herdados e do clientelismo. (SEIDL, 2013, p. 187).

Com efeito, a exigência técnica dos cargos administrativos passou a ser óbice aos

antigos mecanismos empregados no acesso, que privilegiavam àqueles provenientes de

melhores famílias, detentores dos diversos capitais, principalmente do capital social

(BOURDIEU, 2007, p. 67). Assim, o concurso público tende a selecionar as pessoas melhor

preparadas para o exercício da função, mas isso não significa que outros fatores devam ser

ignorados, pois, conforme Saint-Martin (2008, p. 69), “a reestruturação das elites em torno de

novos princípios de legitimação mais técnicos não exclui a utilização dos antigos trunfos”. 13

13 Essa constatação não elimina por completo outros fatores históricos culturais que favorecem alguns em detrimento de outros na disputa. O capital cultural internalizado através de hábitos familiares e acesso a bons colégios acabam por diferenciar o potencial de competição entre os candidatos. Segue-se a uma lógica parecida à que Bourdieu e Passeron identificaram em Os herdeiros (2014), quando estudaram as formas de reprodução e perpetuação das desigualdades nas escolas francesas. Constataram que os estudantes vindos de origens mais favorecidas não limitavam sua vantagem aos hábitos e treinamentos aplicáveis por via direta ao processo de ensino, mas “também herdam saberes e um saber-fazer, gostos e um ‘bom gosto’ cuja rentabilidade escolar, por ser indireta, é ainda mais certa” (BOURDIEU; PASSERON, 2014, p. 34).

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O rompimento da dinâmica tradicional de reprodução pela CRFB/88

“É o fim de uma era em que o sangue prevalecia sobre a meritocracia". Essas foram as

palavras do então presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), quando, em

2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) declarou vaga a titularidade de 5.561 cartórios

pelo Brasil14. A expressão retrata de maneira simples o rompimento entre a antiga e a nova

forma de transmissão das serventias, essa última baseada na meritocracia e competências

individuais. É fato que, por séculos, foram poucas as famílias que detiveram os serviços

notariais no Brasil. A transmissão entre parentes mantinha as serventias controladas por

grupos fechados que se reproduziam de forma automática e perpetuava a condição de elites

cartoriais. Como visto acima, essa dinâmica foi aos poucos sendo afastada, principalmente a

partir da segunda metade do último século.

Mesmo não sendo inédita, foi com a promulgação da CRFB/88 que houve a maior

transformação em relação aos serviços notariais e registrais. Além de ser considerada pela

Constituição atividade privada, exercida através de delegação pelo poder público15, foi

reiterada a necessidade de concurso público para o ingresso na carreira16. Com essa mudança

a transmissão livre entre familiares, amigos ou apadrinhados, através de relações pessoais

baseadas na reciprocidade, foi aos poucos sendo substituída pelo mérito pessoal dos

candidatos que se submetem aos concursos. Logicamente não foi uma mudança bem recebida

por muitos que detinham a delegação de algum cartório, visto que, em sua maioria, são

negócios bastante rentáveis17.

A regulamentação da forma de ingresso na atividade Notarial e de Registro veio com a

Lei 8935/94 que dispôs sobre os requisitos e formas de ingresso18. Assim, apesar de ter sido

previsto de forma expressa pela CRFB/88, o concurso só foi efetivamente regulamentado seis

anos depois. Interessante que em relação a outros cargos da administração pública em geral o

14 Disponível em: ˂http://www.oab.org.br/noticia/20154/oab-sauda-concurso-obrigatorio-para-cartorios-e-o-fim-da-era-do-sangue˃. Acesso em: 12 abr. 2015. 15 Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. 16 Art. 236, § 3º - O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. 17 O 1º Tabelionato de Notas e 3º Ofício de Protestos de Florianópolis, por exemplo, arrecadou mais de 1.000.000,00 de reais no primeiro semestre de 2014. Disponível em: ˂http://www.cnj.jus.br/corregedoria /justica_aberta /?˃. Acesso em: 26 nov. 2014. 18 Conforme o art. 15 § 2º, da Lei 8.935/94, também poderão concorrer pessoas não bacharéis em direito, desde que tenham trabalhado ao menos por dez anos em serviço de registro ou notarial. Dois terços das vagas serão preenchidas através de concurso público, e um terço através de remoção de candidatos que exerçam as atividades a pelo menos dois anos, também através de concurso de provas e títulos

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concurso foi logo aplicado. Em relação aos cartórios, no entanto, o concurso só ganhou força

com o controle feito pelo CNJ, iniciado na última década, quando houve a constatação das

irregularidades em diversos cartórios no Brasil.

Nesta pesquisa verifiquei quatro pontos que marcaram esse período de transição entre

a antiga e a nova dinâmica de ingresso: 1) tentativa parlamentar através da PEC 471 de

regulamentar a permanência daqueles que ingressaram na atividade notarial entre a

promulgação da CRFB/88 e a regulamentação em 1994; 2) permutas irregulares entre

familiares ou apadrinhados; 3) inúmeros mandados de segurança e recursos impetrados na

tentativa de exclusão de serventias da lista de vacância do CNJ; 4) dificuldade na realização

do concurso público para provimento das serventias declaradas vagas.

Como a regulamentação dos concursos para ingresso só ocorreu alguns anos depois da

promulgação da CRFB/88, muitos ingressaram durante esse período sem concurso público, ou

seja, entre 1988 e 1994. Em outubro de 2005 foi apresentada a Proposta de Emenda à

Constituição 471 (PEC 471)19, conhecida como PEC dos cartórios, com intuito de efetivar

aqueles que ingressaram na atividade notarial nesse período pendente de regulamentação. O

autor da proposta, na exposição de motivos, afirmou ser injusto o fato de remover os

detentores que ingressaram nesse período enquanto pendente regulamentação da norma,

considerando os investimentos realizados com a estrutura dos cartórios. Em 2009, o

corregedor nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, divulgou nota em que demonstrou

repúdio a referida proposta: “Se aprovada em sua redação atual, a PEC 471/2005 acarretará

retrocessos e favorecerá tão somente aqueles que, em ofensa ao artigo 236 da Constituição

Federal, há anos se beneficiam indevidamente de serviço público remunerado pela população

brasileira” 20. A referida PEC ainda está pendente de votação pelo plenário de Câmara dos

Deputados.

O segundo ponto que merece destaque foram as permutas entre cartorários de

diferentes comarcas, com intenção de manter algum parente ou apadrinhado em uma serventia

com maior rendimento. Funcionava da seguinte maneira: quando um detentor de serventia

com bons rendimentos estava prestes a se aposentar, permutava com um parente ou amigo

serventuário recém aprovado em concurso de alguma comarca do interior, com baixo

rendimento. Após a permuta, aquele mais velho se aposentava enquanto o amigo ou parente

19 Disponível em: ˂http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=304 008˃. Acesso em: 22 jan. 2015. 20 Disponível em: ˂http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/7567:corregedor-nacional-divulga-nota-contra-a-pec-dos-cartorios˃. Acesso em: 22 jan. 2015.

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permanecia na serventia mais rentável, de forma vitalícia. Dessa forma, ocorria a perpetuação

entre famílias e amigos como detentores de boas serventias. Após vários julgamentos pelo

STF, que firmou o entendimento de que essas permutas feriam o concurso público e

princípios correlatos21, o CNJ declarou como vagas as serventias ocupadas através dessa

manobra, e determinou a realização de concurso público22.

Na medida em que o CNJ fiscalizava a regularidade das serventias pelo Brasil, foram

aparecendo diversas irregularidades. Essas serventias então foram declaradas vagas e

passaram a integrar a chamada “lista de vacância” a ser regularizada através do ingresso dos

aprovados em concurso público. Surgiram, então, diversas tentativas judiciais visando à

permanência como titulares dessas serventias. Inúmeros Mandados de Segurança foram

impetrados23, onde se alegava direito adquirido ao tempo da regulamentação feita pela Lei

8935/94 do artigo 236, caput, e § 3º da CRFB/88. No entanto, a jurisprudência do STF se

firmou no entendimento de que o disposto na Constituição em relação ao ingresso nos

cartórios são normas autoaplicáveis, ou seja, independem de lei regulamentadora para terem

efeitos24. Assim, aqueles que ingressaram nas serventias sem o devido concurso público entre

a promulgação da CRFB/88 e a Lei 8935/94, deveriam também se submeter ao certame.

Outro argumento bastante utilizado para alegar direito líquido e certo foi a decadência do

direito de revisão dos atos administrativos pela administração pública, ocorrida pelo decurso

de cinco anos entre a concessão da serventia e o controle administrativo feito pelo CNJ. Nesse

ponto também o STF se posicionou contrário ao argumento, destacando que a decadência

alegada não poderia sobrepor-se as normas constitucionais que exigem concurso público25.

Nos concursos públicos para ingresso como titular de cartório é possível a constatação

de inúmeros recursos interpostos pelos candidatos impugnando o edital. O interesse crescente

por cargos públicos, somado aos bons rendimentos dos cartórios faz com que haja forte

disputa entre os candidatos. Assim, como disse Weber (1982, p. 237), “A segurança

relativamente grande da renda do funcionário, bem como as recompensas em consideração

social, fazem do cargo público uma posição muito ambicionada, especialmente em países que

já não oferecem oportunidades de lucros coloniais”.

21 Dentre eles os Mandados de Segurança n° 28282 e 29577. 22 Disponível em: ˂http://www.cnj.jus.br/noticias-gerais/9436-corregedoria-do-cnj-determina-que-5561cartorios-sejam-submetidos-a-concurso-publico˃. Acesso em: 22 jan. 2015. 23 Podem ser consultados na jurisprudência do STF: 29749; 29757; 29282; 29745; 29768; 29753; 29773; 29763; 29747; 29577. 24 Mandados de Segurança n° 28279, e 28371. 25 Mandados de Segurança n° 28279, 28371 e 28273.

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Os motivos das impugnações são vários, sendo os mais recorrentes a falta de inclusão

de serventias vagas, a falta de declaração de vacância em serventias com titular irregular, e

também por critérios obscuros na seleção das serventias que serão preenchidas por critério de

concurso ou remoção. Os detentores de cartório, por sua vez, recorrem para ter suas serventias

excluídas da lista, o que gera uma queda de braço entre os detentores de cartório e os

candidatos, e acaba arrastando o certame por anos.

O gráfico a seguir apresenta um panorama da demora na conclusão dos concursos pelo

Brasil. 26 Foi considerado como limite o dia 06/06/2015, data da última atualização da

pesquisa:

Gráfico 1. Duração em meses dos últimos concursos em vinte e cinco estados brasileiros. A cor azul representa os suspensos; a vermelha os encerrados; e em cinza aqueles em andamento.

Fonte: O autor

26 Ficaram de fora Ceará e Maranhão, devido à impossibilidade de acesso aos dados.

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Em alguns estados o concurso está suspenso por determinação judicial, ocorrida após a

interposição de recursos onde se constatou diversas irregularidades. Além desses casos

apontados no gráfico em que o edital está suspenso, em outros estados, apesar de constarem

como em andamento ou concluídos, também houve suspensões durante o certame, como em

Minas Gerais, Pará e Bahia, por exemplo, o que aponta o grande número de irregularidades

nos concursos.

O Desembargador Tutmés Airan, presidente da comissão para o concurso dos cartórios

de Alagoas, relatou as dificuldades na realização do certame: “quem está na lista de vacância

quer sair e para isto tem recorrido até a Jesus Cristo”. 27 Esse desabafo ocorreu em virtude da

pressão do CNJ para que o estado regularizasse a situação do estado, tendo em vista o prazo

de doze meses como limite para conclusão do processo.

A constatação da morosidade e dificuldade na realização dos concursos não é inédita.

Assumpção (2011), quando estudou as funções notariais e de registro, também verificou essa

dificuldade. O concurso de Minas Gerais, observado por ela na pesquisa, teve seu edital

inicial publicado em 2007. Até o início de 2010, quando a autora terminou seu trabalho, ainda

não havia a conclusão do certame28. A demora se deu por vários motivos, como pedidos

liminares de exclusão de cartórios das vagas oferecidas, geralmente daqueles com maior

rentabilidade29, e várias impugnações ao edital pelos candidatos pelos mais diversos motivos.

Qualquer concurso está sujeito a imprevistos e retificações, mas geralmente outros concursos

obedecem ao cronograma e finalizam em menor tempo (ASSUMPÇÃO, 2011, p. 68).

A análise do concurso em andamento em Santa Catarina30 é outro exemplo da lentidão

e dificuldade na realização do certame. O edital de abertura das inscrições foi publicado em

16/12/2011. Desde então se desenvolve em meio a recursos, impugnações, retificações, e

demais atos judiciais e administrativos. Em janeiro de 2012, houve a publicação de um

comunicado de suspensão do concurso, em determinação do CNJ, depois de constatada pelo

referido conselho a ausência de inclusão de várias serventias vagas. Essa constatação foi

provocada por um Procedimento de Controle Administrativo em face do Tribunal de Justiça

27 Disponível em: ˂http://jornalextraalagoas.com.br/noticia/15067/esta-semana-nas-bancas/2014/10/02/ cartorios-barram-a-realizaco-do--concurso-publico-afirma-tj-al.html˃. Acesso em: 20 fev. 2015. 28 O concurso foi finalizado em outubro de 2011. 29 Importante ressaltar que a referida autora constatou que nas decisões de exclusão não havia maiores explicações sobres os motivos. 30 Disponível em: ˂http://www.tjsc.jus.br/concurso/notarial_registral/notorial_registral.htm˃. Acesso em: 20 jan. 2015..

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de Santa Catarina (TJ-SC), interposto por um candidato. O candidato requerente justificou seu

pedido afirmando que a ausência de inclusão de tais serventias vagas estaria beneficiando os

interinos, bem como ferindo a igualdade no concurso público. O relator do procedimento,

após pedir informações ao TJ-SC, decidiu liminarmente pela suspensão do concurso para que

após a devida inclusão das serventias vagas fosse republicado novo edital. Ressalte-se que a

referida liminar foi retificada pelo conselho quando do julgamento do mérito. Foram palavras

do relator:

Não é possível que, após todos os esforços empreendidos pelo CNJ nesta gestão e nas gestões anteriores para a regularização da situação das serventias extrajudiciais no Brasil, ainda existam serviços vagos não incluídos em concurso público para provimento ou remoção, em razão de problemas locais de ‘falta de comunicação’31.

A expressão entre aspas significa a justificativa apresentada pelo TJ-SC pela ausência

da inclusão das serventias vagas. Note-se a ironia na fala do referido relator, que manifesta

espanto com a dificuldade de comunicação como explicação da falha.

Considerando todo esse cenário de incertezas, recursos e dificuldades no

preenchimento das vagas e com objetivo de criar uma fonte padronizada e segura, o CNJ, em

junho de 2009, editou a Resolução 8032, que declarou a vacância das serventias ocupadas de

forma contrária aos preceitos da CRFB/88. Também no mesmo ano foi editada a Resolução

81, que padronizou a forma de realização do concurso público e em seu artigo 2°, § 1°,

estabeleceu o limite doze meses, contados da primeira publicação do edital de abertura, para

conclusão do certame.

Como podemos verificar no gráfico, a maior parte dos concursos se arrasta para muito

além do limite fixado pelo CNJ. São vários recursos, impugnações e irregularidades

constatadas durante o processo, o que causa demora e prolonga o tempo de realização do

certame. Fator que não pode ser desconsiderado é a questão da concorrência de todos os

interessados na serventia. No caso dos concursos para cartórios, há também o interesse do

serventuário ocupante da serventia vaga, que recorre em todas as instâncias para ter sua

serventia excluída da lista – diferente de outros concursos públicos, em que a concorrência se

dá apenas entre os candidatos.

31 Disponível em: ˂file:///C:/Bibliotecas/Downloads/DEC14-100013270054489.htm˃. Acesso em: 21 jan. 2015. 32 Disponível em: ˂http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_80a.pdf˃. Acesso em: 10 mar. 2015.

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Considerações Finais

O estudo das elites jurídicas tem deixado de lado as elites cartoriais, o que resulta num

campo novo a ser explorado. Esse grupo, assim como o de outros grupos de elites, aplica

diversos recursos úteis na transmissão entre gerações com intuito de reproduzir sua condição.

A dinâmica de reprodução antiga, onde havia transmissão automática dos cartórios entre pais

e filhos ou apadrinhados, foi aos poucos, principalmente nas últimas décadas, sendo

substituída pelo concurso público. Esse mecanismo privilegia a meritocracia em detrimento

de outros recursos tradicionais, como sobrenome e relações interpessoais. Isso, contudo, não

significa que os mais diversos capitais não sejam úteis no processo. No entanto, eles deixaram

de ser as causas determinantes de forma direta ao ingresso na carreira.

A especialidade das funções, ocorrida com o desenvolvimento da burocracia estatal,

torna o concurso público um mecanismo adequado aos princípios constitucionais vigentes,

especialmente o da eficiência. Para os serviços notariais, considerando a importância e

complexidade da função, a disputa acirrada pelo cargo tende a contemplar aqueles com

melhor preparo técnico. Conforme Dalledone:

A sistemática dos concursos públicos de provas e títulos para a outorga das delegações está permitindo o despontar de uma nova geração de notários, ciosos de seus deveres, direitos e da supina importância da função, vocacionados ao estudo e altamente capacitados a enfrentar o desafio da "realização espontânea do direito" numa sociedade cada vez mais complexa e segmentada. [grifo do autor] (2012, p. 142).

No entanto, o período de transição entre as formas de ingresso não passou imune às

manobras daqueles que detinham a serventia de forma irregular. São vários os fatos que

evidenciam a resistência dos detentores de cartórios em abrirem mão de seus negócios. Isso

ocorre principalmente quanto estão envolvidas serventias com grande arrecadação, onde há

fortes interesses econômicos. Ações judiciais, manobras políticas e atos protelatórios podem

ser constatados na página do CNJ, e que geram várias suspensões nos concursos em

andamento. Os motivos das suspensões são irregularidades que vão desde a falta de

declaração de vacância de serventias com ausência de titular legalmente habilitado até a falta

de inclusão nos editais de serventias declaradas vagas. De um lado, há os candidatos

disputando entre si. De outro, há os serventuários que se valem dos mais diversos recursos

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para se manterem nas serventias. Esse jogo de interesses torna os concursos lentos e difíceis

de serem concluídos.

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