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Os contos maravilhosos de Yeshua: análise das estruturas narrativas das
parábolas jesuânicas1
Leandro Alves da SILVA2
Resumo
Este artigo propõe uma análise estética das parábolas jesuânicas, apresentando pontos
de contato entre dois gêneros literários (a parábola e o conto popular) e a possibilidade
de compreender as parábolas como curtas narrativas ficcionais, cujos elementos podem
ser analisados do ponto de vista narratológico. Tendo como referencial teórico os
postulados de Vladimir Propp e Claude Bremond, são identificados exemplos de
estruturas narrativas nas parábolas, demonstrando assim sua natureza complexa.
Palavras-chave: Parábola; Folk Tale; Evangelhos Sinóticos; Narratologia.
Abstract
This article proposes an aesthetic analysis of Jesus’ parables, presenting points of
contact between two literary genres (the parable and folk tale) and the possibility to
understand the parables as short fictional narratives, whose elements can be analyzed
from the narratological point of view. With the postulates of Vladimir Propp and
Claude Bremond as theoretical reference, examples of narrative structures are
identified in the parables, thus demonstrating its complex nature.
Keywords: Parable; Folk Tale; Synoptic Gospels; Narratology.
1 Com algumas alterações, este artigo foi elaborado como requisito parcial para a obtenção do
grau de especialista em Literatura Contemporânea pelo Centro Universitário Barão de Mauá, (Ribeirão Preto – SP). 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Especialista em Direito
Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Especialista em Literatura Contemporânea pelo Centro Universitário Barão de Mauá, CEP 14090-180, Ribeirão Preto - SP. E-mail do autor: [email protected].
1. Introdução
Falar sobre parábolas é, antes de tudo, falar sobre Jesus Cristo (em hebraico,
Yeshua Hamashiach). Conforme estudo detalhado de Sant’anna (2010), as obras que
tratam do gênero literário parabólico apresentam o conjunto de narrativas jesuânicas
como seu exemplo mais paradigmático.
De fato, a Bíblia Sagrada - isto é, a coleção de textos sagrados canonizados pelo
Judaísmo, e posteriormente acrescentados pelo Cristianismo - é provavelmente o corpus
literário mais influente da sociedade ocidental. Possuindo uma expressiva
heterogeneidade de estilos (histórico, épico, biográfico, poético, epistolar, alegórico),
suas narrativas e personagens permeiam a memória do cidadão médio (SOETHE, 2009).
Disso decorre que podemos observar, em muitas obras literárias, a intertextualidade
bíblica. Exemplificando esse fenômeno de forma bastante sucinta, podemos citar o
Paraíso Perdido de John Milton, O Diário de Adão e Eva de Mark Twain, Os Irmãos
Karamazov de Fiodor Dostoievski, Esaú e Jacó de Machado de Assis, Olhai os Lírios
do Campo de Érico Veríssimo e A Hora e a Vez de Augusto Matraga de Guimarães
Rosa.
Do mesmo modo, as parábolas jesuânicas povoam a memória e o discurso
coletivos (CERQUEIRA, 2014). Utilizando como referência uma das parábolas mais
famosas, Keefer (2008) aponta que mesmo pessoas totalmente alheias ao texto de Lucas
10:25-37 compreendem intuitivamente o significado do termo “Good Samaritan”:
alguém bondoso e pronto a ajudar pessoas em apuros. A influência das parábolas
extrapola a literatura e adentra o âmbito da linguagem.
A partir do século XX, começou a ficar claro que as habilidades literárias dos
escritores do Novo Testamento foram, até então, largamente subestimadas por seus
leitores (KEEFER, 2008). E no tocante às parábolas jesuânicas, podemos afirmar que
estamos diante de
um parabolista valioso, literalmente um “poeta”, criador de relatos
icásticos, breves narrações fictícias (as ficções) de seguro charme
estético, compostas e recitadas não para simples dileção, mas como
sugestiva modalidade de comunicação verbal com a proclamação da
Boa-Nova. (BARBAGLIO, 2007, p. 25).
Assim, da importância cultural e literária das parábolas jesuânicas emerge a
relevância de efetuarmos uma análise narratológica de seu discurso, de modo a
identificar suas estruturas narrativas – o que Patte (1976) classificaria como structural
criticism. Antes disso, porém, vamos verificar a possibilidade de encará-las como curtas
narrativas ficcionais, cujas características são semelhantes aos contos populares.
2. Identificando o gênero literário “parábola”
Afinal, o que é uma parábola? Qual a sua origem? Quais são as características
que a identificam como gênero literário?
Segundo Sant’anna (2010), citando o Theological dictionary of the New
Testament, o substantivo grego parabolé é derivado do verbo parabollo, o qual é
constituído por duas partes, cujos significados são: a) para (lado a lado, ao lado de, ao
longo de), e b) ballo (jogar, trazer, colocar). Dessa combinação resulta o conceito de
colocar lado a lado ou comparar.
Massaud Moisés conceitua a parábola da seguinte maneira:
(...) narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a fábula, em
razão da moral, explícita ou implícita, que encerra, e da sua estrutura
dramática. Todavia, distingue-se das outras duas fôrmas literárias pelo
fato de ser protagonizada por seres humanos.
Vizinha da alegoria, comunica uma lição ética por vias indiretas ou
simbólicas: numa prosa altamente metafórica e hermenêutica, veicula-
se um saber apenas acessível aos iniciados. (MOISÉS, 2004, p. 337).
Conforme dito anteriormente, os autores são virtualmente unânimes em indicar
as parábolas jesuânicas como paradigma exemplificativo. Afirma Moisés (2004, p. 337)
que a parábola “identifica-se com o Espírito da Bíblia.”
Porém, traçar sua origem é tarefa ainda por ser concluída. Snoodgrass (2008)
explica que parábolas de vários tipos são conhecidas e encontradas em praticamente
todas as culturas. Assim, o discurso parabólico seria um elemento comum ao
pensamento humano.
Ronald Williams (1956) cita a descoberta de extenso material fabulístico na
literatura do antigo Oriente Próximo (Egípcia, Sumeriana e Acadiana), desenvolvendo a
seguir um traçado histórico da fábula mesopotâmica A serpente e a águia, datada por
volta do século 1700 a.C. Na literatura grega clássica, o gênero parabólico está presente
nos discursos de Sócrates, é similar às fábulas de Esopo e é citado na Arte Retórica de
Aristóteles. Ademais, também é mencionado na Institutio Oratoria de Quintiliano
(SANT’ANA, 2010).
No que diz respeito à produção literária mais próxima, em textos cronológicos e
geográficos, dos evangelhos sinóticos, os Mashalim do Talmude3 são a referência mais
significativa. A Jewish Encyclopedia explica que o correspondente em hebraico para
parábola é mashal, alertando que o termo é usado também para designar outras formas
retóricas, como a fábula e o provérbio (a polissemia é algo relativamente comum no
léxico hebraico). Segundo a referida fonte, o Antigo Testamento (em hebraico, Tanakh)
contém apenas cinco parábolas (II Samuel 12:1-4 e 14:6-8, I Reis 20:39-40, Isaias 5:1-6
e 28:24-28), o que contrasta com a abundância delas encontrada na literatura rabínica
(JEWISH, 1906).
Os autores do Talmude criam na importância da parábola como ferramenta
pedagógica para a correta e verdadeira compreensão da Torah (Pentateuco), sendo seu
material extraído do cotidiano familiar aos seus destinatários (JEWISH, 1906).
Giuseppe Barbaglio seleciona um excerto talmúdico confirmando essa afirmação:
“Nossos mestres nos disseram: Que o mashal não seja pouca coisa aos teus olhos
porque, graças a ele, o homem pode compreender as palavras da Torá” (BARBAGLIO,
2007, p. 32).
3 O Talmude é o conjunto de textos sagrados do judaísmo, cuja composição iniciou-se a partir do século II d.C., composto pela Mishná (registro das tradições orais em forma escrita) e Guemará (comentários exaustivos da Mishná). Dois comentários da Mishná foram produzidos: um na Palestina e um na Babilônia (DEL GIGLIO, 2000).
Importante acrescentar também que podemos verificar casos de paralelismo
entre as parábolas talmúdicas e jesuânicas. Um exemplo bastante representativo é a
Parábola do Banquete, a qual transcrevemos na versão rabínica:
Rabbi Yohanan b. Zakkai disse: Parábola de um rei que convidou seus
servidores a um banquete, mas sem fixar o tempo. Os sábios se
vestiram com todo esmero e se sentaram à porta da casa do rei
dizendo: “Falta talvez alguma coisa na casa do rei?” Os insensatos
foram trabalhar dizendo: “Dá-se talvez um banquete sem preparação?”
Improvisamente o rei convocou seus servidores. Então aqueles sábios
se apresentaram diante dele bem vestidos como estavam e também os
insensatos no estado em que se encontravam, isto é, totalmente sujos.
O rei se alegrou diante daqueles que estavam com trajes a rigor para o
banquete: “Sentai, comei e bebei. Os que não estão vestidos
apropriadamente para o banquete, fiquem de pé a olhar.
(BARBAGLIO, 2007, p. 32).
Essa relação entre parábolas rabínicas e jesuânicas é analisada por Barbaglio a
partir de uma perspectiva bastante cautelosa:
A riqueza das parábolas de Jesus (...) encontra um válido confronto
com as centenas de parábolas rabínicas presentes nos escritos
homônimos, parábolas em língua hebraica, não aramaica, todas
pertencentes ao judaísmo palestino e nem sempre atribuídas a um
autor específico. Naturalmente, a distância cronológica entre a
literatura rabínica e o tempo de Jesus torna problemática a tentativa de
confronto e frágeis as hipóteses de dependências em um ou em outro
sentido. Flusser, todavia, é muito categórico ao afirmar que as
parábolas do Nazareno pertencem ao mais vasto campo das parábolas
rabínicas, e não vice-versa (p. 19). Explica, com efeito, que se faz
necessário distinguir entre forma escrita e forma oral, e conclui que as
mais antigas parábolas rabínicas derivam da última geração antes da
destruição do templo (p. 19). Mas os estudos de Neusner, modelados
ao rigoroso método da escola da história das Formas e da Redação,
aplicado aos escritos rabínicos, convidam à prudência. Por isso,
parece-nos que não seja uma evidência histórica a presença, no
ambiente do Nazareno, de parábolas conhecidas por nós da posterior
literatura rabínica. Pode-se conjeturar de qualquer modo, com certa
plausibilidade, que ele não tenha sido aqui, como em outros aspectos
de sua pessoa, um unicum, um parabolista sine patre et sine matre.
Com efeito, são um dado irrefutável as não poucas e não marginais
semelhanças de seus relatos parabólicos com os motivos narrativos
dos relatos rabínicos — como veremos nas citações que seguem —,
sem falar das fórmulas introdutórias que as tornam comuns: “isto é
comparável a” (forma ao dativo), “parábola de” (forma ao genitivo).
Em resumo, aceitável aparece a posição cauta de Young: “Mesmo que
a evidência seja fragmentária, é muito mais provável que Jesus tenha
usado um método de ensino já praticado por outros sábios judaicos no
seu tempo”. (BARBAGLIO, 2007, p. 37).
Finalmente, quanto às características do gênero parabólico, ao retornarmos ao
conceito de Moisés (2004), podemos sistematizá-lo nos seguintes termos:
a) a parábola é uma narrativa;
b) sua extensão é curta;
c) é um gênero contíguo à fabula e ao apólogo;
d) apresenta um ensinamento ético (explícito ou implícito);
e) sua estrutura é dramática;
f) seus protagonistas são seres humanos;
g) é simbólica, ou seja, seus elementos são metafóricos.
Desse último item, podemos deduzir uma característica que é geralmente
ressaltada pelos estudiosos (BARBAGLIO, 2007; GOWLER, 2000; HEDRICK, 2004;
SCHOTTROFF, 2007; STEFANI apud SANT’ANA, 2010): a parábola é geralmente
uma narrativa ficcional, porém verossímil, imaginada por seu autor.
Somadas todas essas informações, a parábola passa a ter um conteúdo estético
que a aproxima não somente das fábulas e apólogos mas também de um dos mais
universais e antigos gêneros literários: o conto popular.
3. Interpolações entre os gêneros parábola e conto popular
O conto é um gênero literário que está atrelado à história da cultural humana,
ultrapassando os limites da tradição escrita (GOTLIB, 2006). Sua origem está na
tradição oral e no prazer de contar e ouvir histórias (PINTO, 2012), e disso decorre que
traçar o seu início é tarefa impossível, pelo simples fato de ser um fenômeno
preexistente aos textos escritos (GOTLIB, 2006).
Nesse mesmo sentido, Luzia de Maria nos dá o seguinte panorama das
reminiscências do conto:
O conto popular cristalizava-se na tradição oral dos povos, atuando
como veículo de transmissão de ensinamentos morais, valores éticos
ou concepções de mundo, sendo fortalecido na memória de
consecutivas gerações, a cada noite, a cada serão espécie de legado
passando de pais a filhos.
É difícil precisar a quantas funções deveria servir o conto na estrutura
das sociedades primitivas. Através do contar se articula uma
fundamentação religiosa, quando os mistérios divinos,
transcendentais, os "feitos dos deuses" se misturam a simples
episódios imaginativos. As noções do Bem e do Mal, o estímulo à
formação de um senso de justiça natural e humano transparecem na
maioria dos chamados contos maravilhosos ou contos de fadas, com
que a infância de vários séculos foi alimentada. E, ao lado destas
funções de ordem educativa, sobressai a sua atuação como válvula de
escape, resposta do homem à sua necessidade básica de sonho e
fantasia, evasão e retorno ao espaço idealizado de um paraíso perdido
— mundo melhor que este moldado nas leis do "ganharás o teu pão
com o suor do teu rosto".
Não é difícil, naturalmente, chegarmos a esta analogia: o clã familiar
agrupado ao redor daquele que seria o dono da fala, senhor do
discurso, repositório de lendas e estórias e possuidor de um certo
charme no narrar. (MARIA, 1984, p. 13-14).
Neste ponto, é necessário informar que há diferença entre conto popular e conto
literário. O primeiro, cujo correspondente em inglês é tale, é uma criação popular e
coletiva, não sendo propriedade de um único autor (e.g., Chapeuzinho Vermelho); o
segundo, denominado short-story, é uma criação individual com características
eminentemente artístico-literárias (e.g., A missa do Galo de Machado de Assis),
constituindo-se um prolongamento das antigas narrativas da tradição oral (MARIA,
1984).
Assim, considerando a origem folclórica do conto, podemos sistematizar
algumas das características do folk tale:
a) é uma narrativa.
b) é um gênero literário atrelado à tradição oral (contar histórias);
c) é repassado através das gerações; portanto, é da sua essência a existência de
variabilidade;
d) está relacionado à transmissão de valores éticos, religiosos, justiça natural ou
concepções de mundo, do qual decorre sua função educativa;
e) não tem um compromisso necessário com eventos reais (GOTLIB, 2006).
Assim, começa a ficar claro que há pontos de contatos entre o conto, a parábola
e também a fábula. Nesse sentido, Nádia Battella Gotlib afirma que,
(...) modernamente, sabe-se que fábula é a estória com personagens
animais, vegetais ou minerais, tem objetivo instrutivo e é muito breve.
E se a parábola tem homens como personagens, e se tem sentido
realista e moralista, tal como a fábula, o sentido não é aparente e os
detalhes de personagens podem ser simbólicos. O conto conserva
características destas duas formas: a economia do estilo e a situação e
a proposição temática resumidas. (GOTLIB, 1984, p. 15).
No caso das parábolas jesuânicas, não é difícil notar que estão presentes a
tradição oral (e.g., Lucas 14:15-164), a variabilidade – Crossan (1975) aponta três
versões da Parábola do Grande Banquete: nos evangelhos de Lucas e Mateus, bem
como no evangelho apócrifo de Tomé –, valores ético-religiosos (e.g., o perdão, o
arrependimento e a justiça), verossimilhança (estão ambientadas em situações do
cotidiano, sem necessariamente terem ocorrido), economia de estilo (sua extensão é
curta) e estrutura narrativa. Esse último ponto será tratado de forma pormenorizada nos
tópicos a seguir.
4. As estruturas da narrativa
4 “Ao ouvir isso, um dos que estavam à mesa com Jesus, disse-lhe: “Feliz será aquele que comer no banquete do Reino de Deus”. Jesus respondeu: “Certo homem estava preparando um grande banquete e convidou muitas pessoas” (BÍBLIA, 2004, p. 196).
Segundo Claude Bremond (1972, p. 90), a narrativa pode ser conceituada como
“un discurso que integra una sucesión de acontecimientos de interés humano en la
unidad de una misma acción”.
Zilberman (2008) informa que foram os formalistas russos e os estruturalistas
tchecos que colocaram a obra literária no centro da reflexão científica, analisando-a
como um objeto isolado e autônomo, dando assim um importante passo na consolidação
da Teoria da Literatura.
Partidário do formalismo russo, Vladimir Propp (2010), a partir da análise do
conto folclórico russo, propôs uma descrição dos elementos básicos da narrativa, os
quais constituem a sua estrutura. Apesar de sua obra Morfologia do Conto Maravilhoso
datar de 1928, foi apenas nos anos 1960 que ela passou a ser debatida, alavancando
então os estudos da teoria da narrativa (ZILBERMAN, 2008).
Propp (2010) afirma que o conto maravilhoso russo possui grandezas constantes
e grandezas variáveis. Elementos como o nome e os atributos dos personagens variam,
ao passo de suas ações (funções) são constantes. A função atribuída ao personagem é
conceituada pelo autor como “o procedimento de um personagem, definido do ponto de
vista de sua importância para o desenrolar da ação” (PROPP, 2010, p. 22). Na
sequência, ele sistematiza seus postulados nos seguintes termos:
I. Os elementos constantes, permanentes, do conto maravilhoso são as
funções dos personagens, independentemente da maneira pela qual
eles as executam. Essas funções formam as partes constituintes
básicas do conto.
II. O número de funções dos contos de magia conhecidos é limitado.
(PROPP, 2010, p. 22).
III. A seqüência das funções é sempre idêntica. (PROPP, 2010, p. 23).
IV. Todos os contos de magia são monotípicos quanto à construção.
(PROPP, 2010, p. 23).
A seguir, com base numa seleção de 100 contos extraídos de uma lista de
Afanássiev, Propp (2010) enumerou sua célebre lista de 31 funções, atribuídas aos
personagens a partir de uma situação inicial descrita pelo conto.
No último capítulo de sua obra, ele nos revela o que entendemos ser o Abre-te
Sésamo da morfologia do conto popular:
Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de magia a
todo desenvolvimento narrativo que, partindo de um dano (A) ou uma
carência (a) e passando por funções intermediárias, termina com o
casamento (W0) ou outras funções utilizadas como desenlace. A
função final pode ser a recompensa (F), obtenção do objeto procurado
ou, de modo geral, a reparação do dano (K), o salvamento da
perseguição (Rs) etc. A este desenvolvimento damos o nome de
sequência. A cada novo dano ou prejuízo, a cada nova carência,
origina-se uma nova seqüência. Um conto pode compreender várias
seqüências e quando se analisa um texto deve-se determinar, em
primeiro lugar, de quantas seqüências esse texto se compõe. Uma
seqüência pode vir imediatamente após a outra, mas também podem
aparecer entrelaçadas, como se se detivessem para permitir que outra
seqüência se intercale. Isolar uma seqüência nem sempre é fácil, mas
sempre é possível fazê-lo e com absoluta precisão. Contudo, mesmo
tendo definido convencionalmente o conto como uma sequência, isto
não significa, ainda, que o número de seqüências corresponda
rigorosamente ao número de contos. Alguns procedimentos
particulares, paralelismos, repetições etc., fazem com que um conto
possa ser composto de várias seqüências. (PROPP, 2010, p. 90-91).
Finalmente, levando em consideração que conto pode conter várias sequências,
Propp (2010) explica que elas podem se relacionar das seguintes maneiras:
a) uma sequência segue imediatamente à outra, de modo sucessivo;
b) uma nova sequência (um episódio) começa antes que a precedente tenha a
sua conclusão;
c) o episódio também pode ser interrompido, criando uma estrutura narrativa
complexa;
d) o conto pode se iniciar com dois danos simultâneos;
e) duas sequências podem ser resolvidas através de uma mesma função final;
f) o conto pode ter dois heróis que se separam em sequências independentes.
A partir do conceito proppiano de sequência, que acabamos de mencionar, o
folclorista Alan Dundes estudou os contos indígenas norte-americanos. Ele observou
que o núcleo central de uma narrativa estaria na oposição entre as funções
desequilíbrio/equilíbrio e no movimento de passagem de uma situação para a outra
através das funções intermediárias (DUNDES apud ZILBERMAN, 2008).
Posteriormente, dando continuidade às proposições de Propp e Dundes, Claude
Bermond publicou dois artigos durante a década de 1960 (Le message narratif e La
logique des possibles narratifs), nos quais buscou construir um modelo formal de
análise da narrativa, inspirado em Propp, que fosse aplicável a outros gêneros literários
(1974). Podemos elencar algumas importantes contribuições do semiólogo francês
(1972):
1. A sequência elementar é composta por três funções: a) uma função de
abertura que estabelece a virtualidade de uma conduta ou acontecimento; b) a função
que realiza a conduta ou acontecimento esperados; c) uma função de encerramento que
corresponde ao resultado alcançado.
2. Diferentemente do pensamento de Propp, as funções não necessitam que a
conduta ou acontecimento, que ela prevê virtualmente, se concretizem na realidade
ficcional, podendo os personagens permanecer na inércia ou no impedimento e atuar; do
mesmo modo, a conduta ou acontecimento podem ou não serem exitosos em alcançar o
resultado pretendido (reparação/supressão do dano/carência).
3. As sequências elementares podem se combinar, criando sequências
complexas, cujos tipos mais comuns são os seguintes: a) encadeamento por
continuidade (um acontecimento cumpre o papel de duas funções distintas: fechamento
da primeira sequência e abertura da segunda); b) encrave (uma sequência serve de meio
para que a anterior alcance seu resultado); c) enlace (uma sequência cumpre funções
diferentes de acordo com a perspectiva de cada personagem).
Muitos outros estudiosos participaram do desenvolvimento da Narratologia
(BARTHES et al, 1972): Roland Barthes, Tzvetan Todorov, A. J. Greimas, Gerald
Genette, etc. Porém, por motivos metodológicos, fizemos referência detalhada apenas
aos autores cujos postulados serão utilizados neste estudo.
5. As estruturas narrativas nas parábolas jesuânicas
Distanciando-se intencionalmente das abordagens de John D. Crossan (1975),
Daniel Patte (apud ARMERDING, 1979) e Dan Otto Via Jr. (apud GOWLER, 2000),
que utilizam o modelo narratológico de A. J. Greimas (especialmente o modelo
actancial: sujeito-objeto, destinador-destinatário e adjuvante-oponente), vamos
descrever as estruturas narrativas de quatro parábolas jesuânicas. Nosso objetivo
principal é identificar como se apresentam as sequências das parábolas em questão,
segundo as concepções de Propp e Bremond, bem como observar a ocorrência e
variabilidade de elementos narrativos típicos.
A seguir, apresentamos as parábolas selecionadas, segundo a tradução da Nova
Versão Internacional (BÍBLIA, 2004), com pequenas adaptações para facilitar a leitura.
Após cada parábola, inserimos nossa proposta de estrutura narrativa, seguindo o modelo
de Propp na Morfologia do Conto Maravilhoso (2010), capítulo IX, item A. Não
utilizamos o esquema usual, no qual são descritas simbolicamente todas as funções do
conto, pois o objetivo é destacar os binômios carência/supressão e dano/reparação, bem
como os saltos de sequência na narrativa. Esse método tornará alguns elementos dos
relatos parabólicos muito evidentes.
5.1 A parábola dos Trabalhadores da Vinha (Mateus 20:1-16)
Pois o Reino dos céus é como um proprietário que saiu de manhã cedo
para contratar trabalhadores para a sua vinha. Ele combinou pagar-
lhes um denário pelo dia e mandou-os para a sua vinha.
Por volta das noves hora da manhã, ele saiu e viu outros que estavam
desocupados na praça, e lhes disse:
- Vão também trabalhar na vinha, e eu lhes pagarei o que for justo.
E eles foram.
Saindo outra vez, por volta do meio-dia e das três horas da tarde, fez a
mesma coisa. Saindo por volta das cinco horas da tarde, encontrou
ainda outros que estavam desocupados e lhes perguntou:
- Por que vocês estiveram aqui desocupados o dia todo?
- Porque ninguém nos contratou - responderam eles.
Ele lhes disse:
- Vão vocês também trabalhar na vinha.
Ao cair da tarde, o dono da vinha disse a seu administrador:
- Chame os trabalhadores e pague-lhes o salário, começando com os
últimos contratados e terminando nos primeiros.
Vieram os trabalhadores contratados por volta das cinco horas da
tarde, e cada um recebeu um denário. Quando vieram os que tinham
sido contratados primeiro, esperavam receber mais. Mas cada um
deles também recebeu um denário. Quando o receberam, começaram a
se queixar do proprietário da vinha, dizendo-lhe:
- Estes homens contratados por último trabalharam apenas uma hora, e
o senhor os igualou a nós, que suportamos o peso do trabalho e o calor
do dia.
Mas ele respondeu a um deles:
- Amigo, não estou sendo injusto com você. Você não concordou em
trabalhar por um denário? Receba o que é seu e vá. Eu quero dar ao
que foi contratado por último o mesmo que lhe dei. Não tenho o
direito de fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com
inveja porque sou generoso?
Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos.
(BÍBLIA, 2004, p. 54-55).
Estrutura narrativa: o proprietário da vinha carece de pessoas para trabalhar em
sua propriedade (a1). Ele sai de manhã cedo e sua a carência é suprimida pela
contratação de trabalhadores durante todo o dia (K1, K2, K3, K4, K5). Aqui o mesmo
acontecimento gera duas funções distintas: para o proprietário é uma supressão, porém
para os trabalhadores gera uma carência por remuneração do trabalho efetuado (a2). A
segunda carência é suprimida pelo pagamento de todos os trabalhadores com o mesmo
salário (K6, K7, K8, K9, K10). Essa função gera um dano aos trabalhadores que foram
recrutados no começo do dia (A). Eles se queixam ao proprietário da vinha, porém sem
sucesso. Esse dano fica sem reparação (sua virtualidade não se concretiza), pois há uma
ausência de actualização por parte do proprietário.
Diagrama:
I a1/__________/ K1 K2 K3 K4 K5 =
II a2/__________/ K6 K7 K8 K9 K10 =
III A
5.2 A parábola do Rico Insensato (Lucas 12:16-21)
A terra de certo homem rico produziu muito. Ele pensou consigo
mesmo:
- O que vou fazer? Não tenho onde armazenar minha colheita.
Então disse:
- Já sei o que vou fazer. Vou derrubar os meus celeiros e construir
outros maiores, e ali guardarei toda a minha safra e todos os meus
bens. E direi a mim mesmo: “Você tem grande quantidade de bens,
armazenados para muitos anos. Descanse, coma, beba e alegre-se”.
Contudo, Deus lhe disse:
- Insensato! Esta mesma noite a sua vida lhe será exigida. Então, quem
ficará com o que você preparou?
Assim acontece com quem guarda para si riquezas, mas não é rico
para com Deus. (BÍBLIA, 2004, p. 190-191).
Estrutura narrativa: a terra de um homem rico produziu mais do que o esperado,
o que gerou uma carência por armazenamento (a1). Em um solilóquio, o rico pensa que
a melhor forma de suprimir sua carência é derrubar seus celeiros e construir outros
maiores (K). Nesse ponto, fica aparente uma outra carência: o rico precisa acumular
bens para aplacar sua insegurança psicológica (a2), cuja supressão também será obtida
com a construção dos novos celeiros (K). Porém, o inesperado acontece: Deus lhe avisa
que essa é sua última noite na terra dos viventes, gerando-se um dano irreparável (A)
que o impedirá de aproveitar a riqueza que acumulou. A virtualidade da reparação não
se concretiza por um impedimento de atuar.
Diagrama:
I a1/__________/.................../
II a2/__________ / K A
5.3 A parábola do Grande Banquete (Lucas 14:16-24)
Certo homem estava preparando um grande banquete e convidou
muitas pessoas. Na hora de começar, enviou seu servo para dizer aos
que haviam sido convidados:
- Venham, pois tudo já está pronto.
Mas eles começaram, um por um, a apresentar desculpas. O primeiro
disse:
- Acabei de comprar uma propriedade, e preciso ir vê-la. Por favor,
desculpe-me.
Outro disse:
- Acabei de comprar cinco juntas de bois e estou indo experimentá-las.
Por favor, desculpe-me.
Ainda outro disse:
- Acabo de me casar, por isso não posso ir.
O servo voltou e relatou isso ao seu senhor. Então o dono da casa
irou-se e ordenou ao seu servo:
- Vá rapidamente para as ruas e becos da cidade e traga os pobres, os
aleijados, os cegos e os mancos.
Disse o servo:
- O que o senhor ordenou foi feito, e ainda há lugar.
Então o senhor disse ao servo:
- Vá pelos caminhos e valados e obrigue-os a entrar, para que a minha
casa fique cheia. Eu lhes digo: Nenhum daqueles que foram
convidados provará do meu banquete. (BÍBLIA, 2004, p. 196-197).
Estrutura narrativa: um homem preparou um grande banquete e convidou muitas
pessoas. Enviou seu servo a cada uma delas, para que tivessem ciência da festa e da
importância de sua presença. Há aqui uma carência (a1) cuja supressão está no virtual
comparecimento dos convidados. Porém, a cada convite efetuado, o servo recebia uma
desculpa por parte do conviva, que justificava sua ausência com motivos de ordem
pessoal. Os convidados fracassam na prova qualificativa ao recusar o convite (E1neg,
E2neg, E3neg). Do ponto de vista do dono do banquete, isso gera um dano terrível
(A1): ele é desdenhado pelos convidados e sua festa será um fracasso. Assim, ele dá
ordens sucessivas a seu servo para que recolha toda sorte de pobres, aleijados, cegos e
transeuntes, até o ponto em que sua festa fique completamente lotada. Assim, o dano
que lhe foi imposto é reparado, através do êxito em sua conduta (K). Finalmente,
anuncia que, tendo em vista o fracasso dos primeiros convidados, eles jamais provarão
do banquete preparado (A2). Mesmo que mudassem de ideia, não há mais lugar para
eles, pois o número de convidados está completo (a festa lotada significa sua exclusão).
Esse dano imposto aos primeiros convidados fica sem reparação, pois sua virtual
actualização será incapaz de atingir o resultado pretendido.
Diagrama:
I a1/________/E1neg E2neg E3neg = A1/_________/K =
II A2
5.4 A parábola do Rico e Lázaro (Lucas 16:19-31)
Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e vivia
no luxo todos os dias. Diante do seu portão fora deixado um mendigo
chamado Lázaro, coberto de chagas; este ansiava comer o que caía da
mesa do rico. Até os cães vinham lamber suas feridas.
Chegou o dia em que o mendigo morreu, e os anjos o levaram para
junto de Abraão. O rico também morreu e foi sepultado. No Hades,
onde estava sendo atormentado, ele olhou para cima e viu Abraão de
longe, com Lázaro ao seu lado. Então, chamou-o:
- Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro molhe a
ponta do dedo na água e refresque a minha língua, porque estou
sofrendo muito neste fogo.
Mas Abraão respondeu:
- Filho, lembre-se de que durante a sua vida você recebeu coisas boas,
enquanto que Lázaro recebeu coisas más. Agora, porém, ele está
sendo consolado aqui e você está em sofrimento. E além disso, entre
vocês e nós há um grande abismo, de forma que os que desejam passar
do nosso lado para o seu, ou do seu lado para o nosso, não conseguem.
Ele respondeu:
- Então eu te suplico, pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai, pois
tenho cinco irmãos. Deixa que ele os avise, a fim de que eles não
venham também para este lugar de tormento.
Abraão respondeu:
- Eles têm Moisés e os Profetas; que os ouçam.
- Não, pai Abraão - disse ele - mas se alguém dentre os mortos fosse
até eles, eles se arrependeriam.
Abraão respondeu:
- Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão
convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos. (BÍBLIA,
2004, p. 202-203).
Estrutura narrativa: um homem rico teve a oportunidade de minorar o sofrimento
de um mendigo chamado Lázaro (a1), o qual foi deixado em seu portão. Porém, sua
conduta foi indiferente à carência alheia, vivendo no completo luxo (A1). Ocorrendo o
falecimento dos dois personagens, a carência de Lázaro foi suprimida ao ser levado
junto a Abraão (K1), ao passo que o dano cometido pelo rico indiferente foi retribuído
com o seu envio ao Hades (K2). Num cenário literalmente dantesco, o rico é
atormentado (a2). Ele pede então a Avinu Avraham que minore seu sofrimento terrível,
porém não há condições de suprimir sua carência. O rico busca então uma forma de
alertar seus cinco irmãos a respeito de sua desdita, de modo a mudarem seu
procedimento e evitarem o mesmo destino (a3). Entretanto, Abraão responde afirmando
que eles não se convenceriam, mesmo que ressuscitasse alguém dos mortos. A parábola
se encerra com duas carências sem supressão, uma por impedimento de atuar e outra
pelo virtual fracasso da conduta. Do ponto de vista literário, estamos diante de uma
masterpiece.
Diagrama:
I a1/___________/..................../K1
II A1/__________/K2
III a2 a3
6. Algumas conclusões sobre as estruturas narrativas das parábolas
A partir das estruturas narrativas apresentadas, podemos notar uma grande
variabilidade na combinação das sequências. Temos exemplos de encadeamento (A
parábola dos Trabalhadores da Vinha), enlace (A parábola do Grande Banquete),
sequência que se inicia antes a que anterior termine (A parábola do Rico e Lázaro) e
duas sequências com final comum (A parábola do Rico Insensato). Isso demonstra a
riqueza estético-narrativa das parábolas jesuânicas.
A figura do enlace é recorrente em várias parábolas. Uma ação ou acontecimento
altera sua funcionalidade de acordo com o ponto de vista dos personagens. O que é
reparação para um, é dano para outro. Como afirma Bremond (1972), cada agente é seu
próprio herói.
Ademais, sempre há pelo menos duas sequências compondo a narrativa
parabólica, sendo que a última possui um dano/carência cuja virtualidade da
reparação/supressão não se concretiza. Isso ocorre por falta de actualização da conduta,
seja por inércia do personagem (e.g., o dono da vinha) ou por impedimento de atuar
(e.g., o rico no Hades). Também ocorrem casos de fracassos de conduta previstos pelos
personagens (o dono da vinha e Abraão). Conforme já expomos, essas possibilidades
narrativas à disposição do autor foram destacadas por Bremond (1972).
Em conexão com a tensão que permanece ao final da parábola, cuja origem está
na falta de supressão da carência ou de reparação do dano, a parábola tem a
peculiaridade de envolver o ouvinte como participante ativo, pedindo uma decisão ou
resposta (SANT’ANA, 2010). O ouvinte precisa encarar a função dano/carência, em
termos simbólicos, e ele mesmo tomar uma decisão sobre qual é a reparação/supressão
correspondente. Essa última função está relacionada com a práxis do próprio ouvinte,
não como actante da parábola, mas como actante na vida. Assim, por meio desse
artifício se estabelece a retórica moral e ética da narrativa parabólica.
De certo modo, isso está de acordo com a afirmação de Crossan (1975) de que o
mito estabelece o mundo e a parábola subverte o mundo, ou seja, o mundo criado no e
pelo mito é subvertido pela parábola.
Gowler sumariza a ideia de Crossan nos seguintes termos:
Crossan arques that the dominant narrative patterns in a culture form
the hearer’s world of expectation. This myth is in mind whenever any
other story is heard, and the hearer naturally notices what fits and
doesn’t fit between the two stories. Whereas myth establishes world,
parable subverts world. Crossan contends that all of Jesus’ parables
are world-shattering invitations to live without myth. (GOWLER,
2000, s/n).
Conforme Campbell (1997), o monomito constitui o enredo básico da jornada do
herói: separação-iniciação-retorno. Ele corresponde à sequência elementar de Bremond:
virtualização-actualização-realização (1972). Esse modelo, porém, é dissonante da
narrativa parabólica, na qual o elemento final esperado (retorno/realização) não ocorre.
Aqui está uma possibilidade de subversão da qual trata Crossan.
Não seria um grande exagero, em face dessas observações, lançar a hipótese de
que as parábolas jesuânicas, conforme constam nos evangelhos sinóticos, estão atreladas
a uma tradição oral anterior à produção dos textos escritos. A variabilidade dos relatos e
a sua riqueza estrutural sugerem uma fonte (ou fontes) preexistente aos manuscritos.
Porém, paradoxalmente, a parábola rabínica como narrativa retórica possui
material abundante somente a partir do séc. II d.C. A proximidade com as parábolas
jesuânicas é evidente; entretanto, a demonstração de que ela seria a fonte primária não
foi possível, pelo menos até o presente momento (SNOODGRASS, 2008). Do ponto de
vista dos Estudos Literários, essa é ainda uma questão pendente.
7. Considerações Finais
Por meio deste artigo, pudemos verificar que a parábola e o conto popular são
gêneros literários que se entrecruzam (embora sejam distintos). Natureza narrativa,
economia de estilo, tema ético, protagonistas humanos, simbolismo, ficcionalidade,
tradição oral e variabilidade são elementos que podem ser encontrados tanto no folk tale
quanto na parábola. Em verdade, são narrativas de importância fundamental na
construção da cultura de um povo. Suas origens confundem-se com as da sociedade e da
linguagem.
Também observamos que as parábolas podem ter uma estrutura narrativa cuja
complexidade está no mesmo patamar de outros gêneros narrativos. É o que ocorre com
muitas das parábolas jesuânicas, das quais apresentamos alguns exemplos. Assim, os
métodos de estudo desenvolvidos pela Narratologia podem ser utilizados para críticas
literárias dos relatos parabólicos. De fato, esse era o objetivo de Claude Bremond:
propor um modelo descritivo que se aplicasse independentemente do gênero sub
examine.
Apresentamos aqui uma das muitas possibilidades de abordagem literária do
texto bíblico: elas estão longe de serem esgotadas. Ademais, o retorno aos clássicos é
sempre um passo intelectual salutar e oxigenante. Como nos ensina Italo Calvino (2009,
p. 11), “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para
dizer”.
Portanto, parafraseando Heráclito, os Estudos Literários podem ser comparados
a um homem que supunha estar, pela segunda vez, desfrutando das refrescantes
correntezas de um rio; entretanto, “ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas”
(apud PLATÃO, 2009, p. 29).
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