os desafios contemporÂneos da produÇÃo do conhecimento: o apelo para interdisciplinaridade

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  • 7/23/2019 OS DESAFIOS CONTEMPORNEOS DA PRODUO DO CONHECIMENTO: O APELO PARA INTERDISCIPLINARIDADE

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    http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2014v11n1p1

    Esta obra foi licenciada com uma Licena Creative Commons - Atribuio 3.0 NoAdaptada.

    OS DESAFIOS CONTEMPORNEOS DA PRODUO DO CONHECIMENTO: OAPELO PARA INTERDISCIPLINARIDADE1

    Claude Raynaut2

    Resumo:Estamos atravessando hoje um momento de reconstruo radical na forma de sepensar tanto o mundo material dentro do qual vivemos e atuamos como a relaoque ns, Seres humanos, estabelecemos individual ou coletivamente com esse

    mesmo mundo. O movimento que est acontecendo agora apela por novosparadigmas, novas categorias de pensamento, novas metodologias de pesquisa,novas formas de ensino. Muitos dos problemas que a cincia e as tcnicascontemporneas devem enfrentar no se deixam reduzir ao recorte disciplinar emfuno do qual se estruturaram historicamente as instituies de ensino e depesquisa. Colaboraes impem-se entre cientistas com formaes marcadas poruma alta especializao. Fronteiras conceituais estabelecidas entre reas deconhecimento distintas tornam-se permeveis. Trocas e ajustes metodolgicos sonecessrios. O apelo para a colaborao interdisciplinar expressa-se hoje com cadavez mais fora. Pontes so lanadas entre abordagens setoriais da realidade.Interdisciplinas nascem e acham espao institucional. As inovaes tecnolgicas

    mobilizam competncias oriundas de horizontes cientficos longnquos. Apesardessa pujante dinmica histrica, inmeros obstculos permanecem. Alguns delesso expresso de resistncias institucionais e de confrontos interpessoais. Outrosoriginam-se na rigidez intelectual imposta por uma formao acadmica altamenteespecializada. At hoje, no se encontra uma definio da interdisciplinaridade queseja consensual, e menos ainda uma doutrina estabelecida que possa ser aplicadaao trabalho de campo. Torna-se, ento, imprescindvel contribuir a clarificar as basestericas e metodolgicas sobre as quais pode-se construir um projeto de prticaconcreta da interdisciplinaridade no domnio do ensino e da pesquisa.Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Epistemologia. Ensino superior. Pesquisa.

    A questo da necessidade de ultrapassar as fronteiras disciplinares, parapoder conseguir entender problemas do mundo contemporneo que no se deixam

    encaixar em domnios e categorias de pensamento estanques, agita a comunidade

    1 Esse texto retoma, reorganiza e aprofunda algumas ideais j apresentadas em vrios textosanteriores: Raynaut et al., 2002, Raynaut, 2011, Raynaut e Zanoni, 2011. Este texto foi apresentadooralmente no Simpsio Internacional sobre Interdisciplinaridade no Ensino, na Pesquisa e naExtensoRegio Sul, em Outubro 2013, Florianpolis, SC, Brasil.2Doutor em Etnologia e Diretor de Pesquisas no Centro de Pesquisas Cientficas da Frana (CNRS)

    da Universidade de Bordeaux, Frana. E-mail:[email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    acadmica e cientfica em todos os pases que desempenham hoje um papel

    significativo na produo do conhecimento. Os cursos de ps-graduao, que

    reclamam de uma abordagem inter ou multidisciplinar, multiplicam-se nas

    universidades, bem como instituies e programas de pesquisa que renem

    especialistas oriundos de vrios horizontes cientficos. Inmeros so os artigos e os

    livros que tratam do assunto.3 O Brasil pode ser considerado pioneiro nesse

    movimento, em particular com a criao, h mais de uma dcada, de uma ria

    interdisciplinar a nvel da CAPES: iniciativa que visava encorajar as inovaes

    pedaggicas que ultrapassam as fronteiras disciplinares e a reforar sua

    legitimidade institucional.

    Apesar do carter extremamente positivo dessa tomada de conscincia da

    necessidade de inovar na produo e transmisso do conhecimentoo pensamento

    cientfico implica num constante esforo de crtica intelectual e de renovao terica

    e metodolgica o risco existe, no entanto, de ver a crtica das disciplinas e a

    exigncia de interdisciplinaridade tornarem-se um novo conformismo institucional,

    fator de confuso no modo de se conceber prtica da cincia e as metodologias de

    ensino. Alm do reconhecimento genrico da necessidade de se repensar um

    recorte disciplinar, s vezes demasiadamente rgido nas instituies de formao e

    de pesquisa, precisa-se explorar a diversidade de significados, de interpretaes

    divergentes, que veicula consigo uma mesma noo, uma mesma palavra: a de

    interdisciplinaridade. A confuso no nasce da diversidade, quando ela

    devidamente reconhecida e pensada, mas, sim, da incapacidade a identific-la e

    aceit-la.

    H de se reconhecer em primeiro lugar que uma abordagem integrada da

    resoluo dos problemas sempre foi aplicada pelas disciplinas tcnicas. Desde os

    tempos pr-histricos, os gestos tcnicos dos primeiros agricultores reclamaram acombinao de uma grande variedade de conhecimentos e de savoir-faire (know-

    how): sobre as plantas, os solos, o clima, as ferramentas utilizadas. A inveno da

    metalrgica, quanto a ela, exigiu tambm a integrao de observaes e

    conhecimentos muito diversificados para identificar os minerais, explor-los, fundi-

    los e forjar o metal para lhe dar a forma desejada. De modo geral, podemos afirmar

    3

    Pode-se assinalar, entre tantos outros: Klein, 1996, Origgi e Darbellay, 2010, Repko, 2008, Philippi eSilva Neto, 2011.

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    que nenhum processo tcnico pode se restringir a um domnio nico de

    competncia. A necessidade de juntar conhecimentos e experincias, cada vez mais

    especializados e mais aprofundados, cresceu com a complexidade dos projetos

    tcnicos.

    A construo das grandes catedrais s foi possvel graas colaborao de

    pedreiros, carpinteiros, ferreiros e vidreiros guiados pelos primeiros engenheiros que

    desenvolveram os instrumentos conceituais matemticos para calcular a interao

    certa das foras, que iam permitir ao edifcio permanecer erguido durante sculos.

    J que estamos no Brasil, preciso valer-se de um exemplo no qual se

    arraiga a prpria existncia do pas tal como existe hoje. De fato, a descoberta do

    Brasil por Cabral, em 1500, foi possibilitada pelo projeto lanado, um sculo antes,

    por Dom Henrique, o Navegante, para dotar Portugal dos conhecimentos

    necessrios para atingir o subcontinente ndio pelo mar. Ele atraiu sbios,

    cartgrafos e astrnomos, oriundos de toda a bacia mediterrnea, fundando, assim,

    o que foi chamado depois a Escola de Sagres. No decorrer das mltiplas

    tentativas, feitas ao longo do dcimo quinto sculo para contornar o continente

    africano, evidenciou-se a falta de maneabilidade dos navios utilizados at ento.

    Especialistas da construo naval e marinheiros foram atrados dos pases rabes, e

    depois da Holanda, para conceber e realizar um novo tipo de barco: a caravela que

    conduziu o Vasco de Gama ndia, o Cristvo Colombo aos Carabas e o Cabral

    as costas do Brasil. Foi ento a conjugao e integrao de um amplo leque de

    saberes e competncias uma interdisciplinaridade prtica que possibilitou o

    sucesso do projeto de Dom Henrique.

    claro que, na poca moderna, os desafios a superar passaram por um salto

    qualitativo e quantitativo sem precedente. A complexidade dos projetos tcnicos

    explodiu com o incio da era industrial e os progressos das cincias e das tcnicas.Hoje em dia, todo e qualquer projeto industrial, arquitetural ou de criao de

    infraestruturas (construir uma aeronave, erguer um edifcio, lanar uma ponte)

    mobiliza uma enorme variedade de especialistas. A diviso em disciplinas e

    departamentos independentes e estanques uma situao que se encontra,

    sobretudo, nas instituies acadmicas. No mundo industrial, seria um obstculo

    fatal para a sobrevivncia das empresas.

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    No domnio da pesquisa e da inovao, pode-se dizer que foi nos laboratrios

    industriais que se iniciou a prtica interdisciplinar. O programa de pesquisa da

    companhia Bell, nos Estados Unidos, durante os anos 30, oferece um exemplo muito

    ilustrativo do fenmeno. Antecipando o papel crucial dos novos materiais, o

    departamento da pesquisa e do desenvolvimento contratou especialistas oriundos

    de especialidades disciplinares muito diversificadas: qumica, fsica dos metais, do

    magnetismo, da eletrnica, da cristalografia e da mecnica quntica. Engenheiros de

    aplicao, na busca de novas utilizaes prticas e de novas patentes que poderiam

    surgir de suas pesquisas, faziam a coordenao entre todos os especialistas e os

    reuniam em funo de problemas concretos a resolver. Deste trabalho comum

    nasceu o Transstor (PESTRE, 2010).

    No mbito da academia, a rigidez das fronteiras institucionais entre

    departamentos disciplinares muito maior. No entanto, programas de pesquisa

    envolvendo colaboraes interdisciplinares vo tambm se desenvolvendo.

    Em geral, eles possuem um carter instrumental (de prestao de servio).

    o caso quando uma disciplina solicita as competncias e o know-howde outras

    especialidades, s vezes muito distantes dela, mas que tm a capacidade em

    responder a questes pontuais que ela se coloca ou que podem ajud-la a

    ultrapassar obstculos tcnicos frente aos quais ela fica parada. Por exemplo,

    quando a arqueologia pr-histrica colabora com a geologia, a paleontologia, a

    paleobotnica e a fsica nuclear (para as dataes), que lhe fornecem informaes

    para que ela possa responder as suas prprias questes, resolver seus prprios

    problemas.

    Inmeros progressos teraputicos foram tambm conseguidos nas

    universidades mdicas e nos hospitais, reunindo uma multiplicidade de

    conhecimentos e competncias prticas. Foi o caso, por exemplo, dos imensosavanos na cirurgia cardaca. Nasceram progressivamente da colaborao, no

    apenas entre cirurgies, clnicos, farmaclogos, imunologistas, mas, tambm, com

    fsicos e informticos, trabalhando no domnio das imagens medicais, com

    engenheiros mecnicos e especialistas dos novos materiais que realizaram prteses

    cardacas. Foi a colaborao de todos, no quadro de equipes norteadas por

    objetivos comuns, que permitiu os progressos dos quais nos beneficiamos hoje.

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    Essas formas de interdisciplinaridade (na indstria ou na academia),

    apresentam um carter pragmtico, pontual organizando-se de modo oportunista

    para resolverem um problema particular, mas preservando a integridade, a

    especificidade, de cada disciplina.

    No entanto, existem tambm outras formas de colaborao entre

    especialidades cientficas e tcnicas, que no se limitam apenas a um encontro

    casual, mas, sim, constituem uma convergncia que engendra novos campos de

    estudo estveis, estruturados, institucionalizados, que podemos chamar de

    interdisciplinas. Aqui, no se trata apenas de juntar de modo temporrio

    competncias diversificadas para resolver um problema particular, mas, sim, de

    fundar, com uma perspectiva durvel, uma nova estruturao da pesquisa e do

    ensino. Isto o que eu chamaria de interdisciplinaridade de liga (com analogia com

    a liga de vrios metais que d nascimento a um novo metal). Os exemplos seriam

    inumerveis dessas novas interdisciplinas que nasceram durante as dcadas

    passadas.

    Um bom exemplo aquele da biologia molecular que, na esteira da

    descoberta do ADN e do ARN, e para explorar o funcionamento ntimo da matria

    viva, aproxima de modo durvel disciplinas inicialmente alheias como a Biologia, a

    Qumica, a Fsica e, para modelizar as informaes, a Matemtica e a Informtica

    (BENSAUDE-VINCENT, 2004).

    Interdisciplinaridade instrumental ou interdisciplinaridade de liga, por mais

    diferentes entre si que sejam, compartilham uma caraterstica comum: as disciplinas

    chamadas para colaborarem trabalham sobre objetos que podem ser abordados na

    sua materialidade, sem referncia questo de produo e de circulao do sentido

    dentro dos sistemas estudados. As interaes so biofsicas e qumicas.

    Mensagens podem circular, mas, em geral, a palavra usada de modo metafrico,a informao intercambiada no passa de estmulos fsicos, qumicos, eltricos,

    que provocam movimentos de reao. No so, como no caso das culturas

    humanas, expresses de representaes mentais, sentimentos e crenas.

    A problemtica da interdisciplinaridade coloca-se em termos bem distintos,

    quando se trata de fazer colaborar as cincias da materialidade com aquelas cujo

    objeto de estudo so as realidades humanas: tanto ao nvel dos indivduos

    (psicologia) quanto das sociedades (histria, sociologia, economia).

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    Aqui, os obstculos a superar so ainda mais desafiadores. Com efeito, a

    questo da produo e da circulao do sentido se torna central nesse caso. O

    sentido a matria imaterial sobre a qual essas disciplinas trabalham. Como

    integrar a interveno das cincias humanas e sociais na anlise e na resoluo de

    problemas de natureza profundamente hbrida, isto , que combinam dimenses

    materiais (relativas fsica, mecnica, qumica e biologia) e dimenses

    imateriais (relativas cultura, s relaes sociais e polticas, histria, psicologia,

    etc.)?

    Quando os problemas tratados necessitam a colaborao entre disciplinas

    que tratam das dimenses, que podemos chamar de materiais, para utilizar uma

    palavra simplificadora mais expressiva e outras ligadas a suas dimenses humanas

    e sociais, muitas dificuldades surgem e geram incompreenses entre especialistas

    que pertencem a universos de pensamento radicalmente diferentes.

    Para as cincias da materialidade e para as disciplinas tcnicas, o discurso

    das cincias humanas e sociais no passa de um simples bl-bl-bl. Custa aceitar

    a ideia de que o domnio da realidade sobre o qual as mesmas trabalham to

    objetivo (possuindo uma existncia intrnseca) como o domnio sobre o qual elas

    mesmas trabalham. No entanto, quando se trata do mundo onde vivemos, em

    funo do qual temos que tomar decises, nada se pode entender nem fazer sem

    tomar em conta tal universo de fatos. Vivemos e atuamos na dimenso da histria,

    dimenso dentro da qual o impacto das ideias evidencia-se to real, to marcante

    como aquele das necessidades materiais. Ideias e descobertas intelectuais do

    nascimento a outras ideias, outras descobertas que conduzem a reorganizar as

    sociedades ou a atuar com mais impacto sobre a matria. Lutas de poder inspiradas

    por aspiraes, busca de identidade e crenas so foras pujantes da histria

    humana. Muito mais sangue humano foi derramado, mais danos ambientaiscausadosmas, tambm, muito mais progressos foram conseguidos - em nome de

    ideologias, de utopias, de princpios morais, religiosos ou polticos, do que na mera

    busca da satisfao de necessidades fsicas. Quando as cincias duras e as

    disciplinas tcnicas colaboram com as cincias sociais e humanas na resoluo de

    problemas nos quais se misturam aspectos que pertencem a ambos universos, elas

    devem se convencer que no so apenas elas que trabalham sobre os fatos reais

    enquanto os outros pesquisadores estudariam dimenses secundrias que viriam

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    vestir ou perturbar uma realidade fundamental que teria o privilgio exclusivo da

    racionalidade. Elas devem reconhecer que seus parceiros trabalham sobre um

    nvel de realidade to significativo e rigoroso quanto o seu.

    Por outro lado, as cincias humanas, sociais e psicolgicas no aceitam

    facilmente a ideia de que a realidade no material que constitui seu objeto de

    estudos - relaes sociais, ideias, smbolos, sentimentos arraigada num alicerce

    de materialidade. Para pensar, emitir ideias, fazer projetos, o Ser humano depende

    do funcionamento de seu crebro, enquanto sistema biofsico. Para permanecer,

    qualquer sociedade tem que manter as bases materiais de sua reproduo fsica e

    demogrfica. A prpria existncia do universo imaterial sobre o qual trabalham as

    cincias humanas e sociais condicionada pelas bases materiais que a possibilitam.

    Mas, aceitar isso no implica no reconhecimento do determinismo da materialidade

    sobre a imaterialidade. Ainda que possibilitados por processos biofsicos, as ideias,

    as instituies sociais e os afetos possuem sua prpria existncia. Interagem entre

    si, constituem objetos de estudo em si, sem que seja necessrio chamar pela

    biologia ou a fsica para explic-los e entend-los. Ideias geram outras ideias,

    conceitos possibilitam o surgimento de outros conceitos, formas culturais do

    nascimento a novas formas culturais, sentimentos desencadeiam outros

    sentimentos. Existem encadeamentos de causalidade que no implicam na

    interveno de fatos materiais. O nico limite sendo a compatibilidade do referencial

    imaterial de representaes mentais e normas que rege a organizao e o

    funcionamento de qualquer sociedade humana e o comportamento de qualquer

    indivduodomnio no qual a criatividade da mente humane pode-se expressar com

    maior liberdade4com as exigncias ltimas de sua reproduo fsica. Muitos so

    os exemplos, na histria, de civilizaes que sumiram por causa do divrcio entre

    suas crenas religiosas, seus princpios polticos e econmicos e as necessidadesimpostas pelo ambiente material do qual tiravam os meios de sua sobrevivncia

    fsica. O universo imaterial ao qual a atividade mental do ser humano d nascimento,

    apesar de obedecer a suas prprias lgicas internas, no pode ser totalmente

    destacado do quadro material que condiciona sua existncia. Os cientistas humanos

    4 A antropologia social evidencia quo diversas so as solues culturais e institucionais que associedades humanas que povoam o planeta inventaram em respostas aos mesmos problemas

    fundamentais para sua sobrevivncia: reproduzirem-se, alimentarem-se, abrigarem-se dasintempries, defenderem-se contra as agresses.

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    tm que reconhecer essa realidade para poder colaborar sem reticncias com as

    cincias da materialidade.

    Apesar das dificuldades de comunicao encontradas, o estatuto da cincia

    muda. Com a complexificao e a hibridao da realidade contempornea, torna-se

    cada vez mais evidente que as dimenses humanas e materiais dos problemas aos

    quais a cincia se enfrenta esto estreitamente intricadas. Seja qual for o tipo de

    questo encarada: ambiental, urbanstica, relativa s infraestruturas, produo de

    bens de consumo, produo agrcola, sade (a lista no teria fim), as temticas

    da utilidade social, da aceitabilidade, das consequncias esperadas e inesperadas

    para os indivduos e as sociedades so primordiais.

    Alm disso, as cincias e as tcnicas so submetidas cada vez mais a

    dvidas e preocupaes sociais (NOWOTNY; SCOTT; GIBBONS, 2001). Com o

    custo crescente da pesquisa, o cidado exerce, diretamente ou pela mediao das

    instituies polticas, seu peso sobre a escolha dos temas trabalhados. As

    consequncias dos achados cientficos e das realizaes das tecno-cincias so

    tais, que hoje no param de alimentar debates sociais e polticos. A multiplicao

    dos comits de tica uma das manifestaes evidentes dessa situao.

    Mais do que nunca, a Academia deve sair de sua torre de marfim e

    desenvolver seus vnculos com a sociedade. E as questes oriundas da demanda

    social so profundamente impregnados de bl-bl-bl. Associam estreitamente

    dimenses materiais e humanas. Neste contexto, a colaborao entre cincias da

    materialidade, tecno-cincias e cincias humanas mais do que nunca

    imprescindvel.

    1 NECESSIDADE DE UM QUADRO CONCEITUAL INTEGRADOR

    Para que tal dilogo, tal esforo de compreenso mutual no conduza a uma

    confuso intelectual, necessrio esclarecer o quadro conceitual dentro do qual se

    posicionam os dois grandes universos conceituais.

    Para isso, podemos propor um modelo heurstico que resume de modo

    simplificador, mas esclarecedor, os dois campos, as duas faces distintas da

    realidade sobre os quais os dois grupos de disciplinas trabalham.

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    MODELO HEURISTICO

    i. O Campodas relaes fsicas e biolgicas, que compreende o conjunto de

    relaes biolgicas e fsico-qumicas tecidas no bojo dos grandes

    domnios de organizao biolgica, como a atmosfera, pedosfera,

    hidrosfera e geosfera. Essa rede de relaes forma um sistema,

    subdividindo-se em muitos subsistemas imbricados e articulados a vrias

    escalas. Ela inclui tambm uma parte fortemente artificializada da

    materialidade, a ponto de ser, s vezes, como os objetos tcnicos, as

    cidades, os novos materiais, um produto direto da ao humana (um

    artefato). So frutos da ao humana dos pensamentos, dos desejos

    humanos - mas no deixam de permanecer submetidos a processos da

    mesma ordem dos meios fsicos e biolgicos. Este campo da

    materialidade inclui tambm o Ser humano - tomado individualmente ou

    reunido em populaes enquanto considera-se na sua dimenso deorganismo vivo, populao biolgica, agente e objeto de interaes

    biolgicas e fsico-qumicas; e

    ii. o Campo das relaes no-materiais. Ele compreende o conjunto de

    processos cuja articulao participa na organizao, na reproduo e na

    transformao das representaes mentais do mundo e dos modos de

    estruturao das relaes sociais. Aqui, os fatos que o olhar cientfico

    busca identificar, descrever e compreender remetem a processos deproduo, de circulao e de transmisso do sentido tanto no ponto de

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    vista da cultura coletiva (representaes, valores, normas) quanto dos

    intercmbios entre atores sociais. Esses processos desempenham um

    papel determinante na histria de qualquer sociedade e permanecem, em

    grande parte, autnomos em relao s determinaes biolgicas e fsico-

    qumicas. As ideias tm a capacidade de engendrar outras ideias.

    Relaes sociais criam condies (tais como tenses, conflitos,

    solidariedades, construo de identidades, etc.) para a emergncia de

    novas relaes sociais. Para construir um conhecimento sobre a

    organizao, o funcionamento e a dinmica histrica de um sistema social

    e isto o papel das cincias sociais mas, tambm, para entender o

    comportamento dos indivduos, essa dimenso imaterial da realidade to

    objetiva (no sentido de possuir uma existncia intrnseca) e to

    explicativa quanto as condies materiais s quais o mesmo sistema acha-

    se submetido.

    Distinguir essas duas vertentes da realidade e afirmar que cada uma se

    constitui como um objeto especfico de conhecimento cientfico uma etapa

    essencial em um esforo de descrio e de compreenso da complexidade do

    mundo.5 E tambm de respeito mtuo entre as disciplinas. Contudo, no basta

    reafirmar o carter intrnseco de cada campo de fatos. Por distintos que sejam, no

    deixam de ser estreitamente ligados entre si. O prprio objetivo de um esforo de

    compreenso da realidade, tal como ela se apresenta na sua hibridao e sua

    complexidade, reside em descrever e analisar como eles se entrelaam, se

    combinam, interagindo entre si.

    Cada vez que o ser humano interage com a materialidade, estamos frente a

    uma realidade hbrida. J apontamos muitos aspectos dessa hibridao. Uma das

    caratersticas da realidade contempornea que, por um lado, o mundo materialacha-se submetido mais do que nunca, por via das tcnicas, aos projetos e desejos

    humanos e, por outro lado, que a prpria humanidade at na sua capacidade em

    gerar um universo de ideias e de sentimentos (por natureza imateriais) revela-se

    estreitamente ligada a processos biofsicos, solidria do resto do mundo.

    5A complexidade da relao entre essas duas vertentes da realidade foi analisada, na luz das teoriasmarxistas e estruturalistas, por Godelier (1984) num livro que, apesar de no tratar diretamente do

    assunto do dilogo interdisciplinar, fornece at hoje marcos tericos fundamentais para as discussescontemporneas sobre a interdisciplinaridade.

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    Realidades muito diversas se encaixam dentro desse espao de interface; a

    carga de materialidade e de imaterialidade de cada situao (sua forma de

    hibridao) muito varivel.6 Para ilustrar a diversidade na combinao entre

    materialidade e imaterialidade, podemos tomar os seguintes exemplos:

    o astrofsico que trabalha sobre os movimentos dos planetas no

    precisa introduzir em seus modelos outros fatores que a massa dos

    mesmos e as foras fsicas que se exercem entre eles. Existem sistemas

    naturais pouco antropizados que podem ser estudados, integrando de

    modo marginal fenmenos ligados aos projetos e desejos humanos (por

    exemplo: florestas primrias, alta montanha e, at um certo ponto,

    oceanos);

    quando se quer analisar uma paisagem (no sentido que os gegrafos

    do palavra), no se pode ignorar que se trata de um sistema natural

    modelado e transformado, s vezes durante sculos, pelas populaes

    humanas. No podemos estud-los como sistemas naturais sem tomar em

    conta as intervenes humanas. Se queremos entender sua dinmica

    passada e tentar prever sua evoluo futura, temos que introduzir dentro

    do modelo elementos ligados histria dos grupos humanos, a suas

    motivaes, a seus objetivose ento a todas as dimenses ideacionais,

    afetivas e imaginrias que fazem agir os seres humanos, individual ou

    coletivamente. A constatao vale igualmente para o corpo humano, pois

    as suas bases biofsicas so profundamente modeladas e manipuladas

    pela sociedade e pela cultura. Em ambos exemplos, encontramos uma

    realidade hbrida, caraterizada por uma inter-relao ntima entre os fatos

    que as cincias naturais, a biologia e a medicina estudam e as prticas e

    instituies humanas, expresses de representaes sociais, deaspiraes, de relaes sociais;

    ao estudar uma cidade, aparelhos ou processos tcnicos, novos

    materiais, alcanamos mais um grau na manipulao da materialidade

    pelos seres humanos. Todos constituem artefatos que, apesar de

    6Godelier distingue cinco tipos de materialidade que podemos resumir assim: a natureza intocada, anatureza perturbada, a natureza antropizada (que s pode se sustentar na sua forma atual por meio

    da interveno do ser humano), os instrumentos utilizados pelo ser humano para explorar,transformar a matria e os produtos materiais que resultam dessa ao humana (GODELIER, 1984,p. 14-15).

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    obedecerem a exigncias e regularidades definidas por sua natureza

    material, so a expresso direta de projetos e objetivos humanos. Eles

    tm que cumprir adequadamente os objetivos que lhes foram fixados.

    Mas, tambm, eles vo interferir na vida cotidiana dos utilizadores, com

    consequncias no apenas fsicas, mas, tambm, sociais, polticas e

    culturais, que devem se antecipar. impossvel estudar tais realidades por

    mais materiais que sejam, sem levar em conta as ideias, os objetivos, as

    estratgias sociais que do origem configurao particular de elementos

    materiais e de interaes biofsicas que constituem; e

    enfim, na outra extremidade do vetor, sistemas sociais, instituies,

    representaes, no podem ser totalmente destacadas do quadro natural

    e fsico no qual as sociedades vivem e se reproduzem. Sem apelar por um

    determinismo da matria, deve-se reconhecer que para uma sociedade,

    uma cultura poderem permanecer, devem respeitar uma compatibilidade

    entre, por um lado, suas formas de se relacionar com seu entorno material,

    seu modo de utilizar os recursos existentes e, pelo outro lado, sua viso

    do mundo, sua maneira de se organizar, seus objetivos e seus projetos.

    Uma sociedade, um Ser humano, nunca so desmaterializados. Caso

    haja descuido durvel das exigncias da matria, desaparecero. No

    entanto, no se deve perder de vista que a prpria dinmica das ideias

    (valores morais, conceitos, descobertas cientificas) faz intervir relaes de

    causas e efeitos, que no tm nenhuma dimenso material. Por exemplo,

    novos conceitos matemticos criam, por si mesmo, instrumentos de

    pensamento inditos que possibilitam a resoluo de problemas no

    resolvidos.

    Cada campo disciplinar pode se apoderar de cada uma dessas situaes paraestud-la apenas em funo de sua prpria problemtica sem prestar ateno s

    outras dimenses tambm presentes nela. Por exemplo, o Antroplogo pode

    analisar uma cultura indgena em todas suas manifestaes: desde a religio at as

    prticas de caa e de colheita na floresta, enfatizando a questo das representaes

    sociais e sem prestar ateno aos impactos das atividades sobre os sistemas fsico-

    naturais e sobre a capacidade do grupo em se reproduzir fisicamente. O Bilogo, por

    sua parte, pode estudar a estrutura e a dinmica dos ecossistemas naturais sem se

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    preocupar com as dimenses culturais, sociais, econmicas e com as perturbaes

    que os usos humanos introduzem nos mesmos. Tal pesquisa, unicamente guiada

    pelos questionamentos de uma disciplina, s perfeitamente legtima na perspectiva

    de contribuir para o avano do conhecimento. Esse tipo de pesquisa, geralmente

    qualificada de fundamental, necessrio. Foi assim que muitas descobertas

    totalmente inesperadas vieram a ser feitas.

    Entretanto, existem outras questes, outras problemticas, que no emergem

    da prpria dinmica das disciplinas, mas nascem das interrogaes formuladas

    pelas sociedades. Mais do que nunca, como o analisamos acima, as sociedades

    modernas se defrontam com realidades hbridas, que resultam da interao

    acelerada entre os avanos das cincias ou das tcnicas e a apropriao desses

    avanos ao servio dos desejos e sonhos individuais e coletivos.

    Consequentemente, enfrentam necessidades de conhecimento que no podem ser

    identificadas e problematizadas apenas por um olhar cientfico nico e que exigem

    colaboraes de especialistas dos dois grandes universos do pensamento cientfico.

    Se a interdisciplinaridade j comea quando colaboram com disciplinas que

    compartilham um mesmo universo, o desafio se torna muito maior ainda na hora de

    fazer trabalhar junto cincias que exploram os dois grandes campos inconfundveis

    da materialidade e da imaterialidade.

    Um desejo de colaborar e um respeito mtuo constituem o pr-requisito

    imprescindvel de uma colaborao bem-sucedida. Mas, por mais necessrio que

    seja esse primeiro passo, no resolve tudo. A prtica interdisciplinar no se decreta.

    Ela no se estabelece espontaneamente pela mera aproximao de disciplinas

    diferentes. Ela se constri metodicamente.

    Tal processo deve se iniciar a nvel de formao dos especialistas, que vo

    ter que colaborar com a resoluo desses problemas complexos e hbridos, aosquais as sociedades contemporneas so confrontadas. Com efeito, para que

    cientistas e tcnicos oriundos de reas de conhecimento diferentes possam

    trabalhar juntos, eles precisam possuir a capacidade de se entenderem

    mutuamente, de responderem a questes que no surgem da sua prpria disciplina;

    a capacidade de integrarem dentro de seus modelos explicativos informaes

    alheias a seu prprio universo cientfico.

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    Isto implica em desdobramentos maiores no mbito dos cursos de formao

    acadmica. Aps um longo perodo de hiperespecializao das instituies e

    programas de formao, um esforo de abertura dos espritos torna-se, doravante,

    necessrio. Um consenso faz-se hoje sobre esse objetivo, e quase todo mundo

    concorda sobre a exigncia de interdisciplinaridade. A palavra interdisciplinaridade

    veio a ser, doravante, quase um slogan. Mas, como todo e qualquer slogan, ela

    veicula consigo tamanha ambiguidade. Isto gera uma certa confuso quanto ao

    contedo da noo. Na verdade, existe uma grande diversidade de concepo da

    interdisciplinaridade em funo dos objetivos visados e do pblico-alvo das

    formaes.

    Muitos dos embates e das controversas que surgem quando se fala de

    interdisciplinaridade nascem do fato de que os objetivos e o tipo de

    interdisciplinaridade dos quais cada um fala no foram definidos claramente. Vamos

    tentar por em destaque alguns princpios gerais, nos quais se pode pensar para

    conceber um ciclo de formao que vise proporcionar aos cientistas e tcnicos,

    oriundos de vrias reas disciplinares, os instrumentos intelectuais e metodolgicos

    dos quais precisam para interagirem e colaborarem.

    2 FACETAS DE UMA FORMAO INTERDISCIPLINAR

    A aprendizagem de uma abordagem intelectual, que permita lanar

    passarelas entre diversos campos de saber e de competncia, exige um trabalho de

    formao guiado por uma pedagogia adequada. Uma formao

    interdisciplinaridade tem que propor ento um itinerrio pedaggico que permita a

    cada um, sem perder o que adquiriu durante sua formao inicial ou seu percurso

    profissional, estabelecer sua capacidade de dialogar com outros especialistas,engajar com eles colaboraes concretas.

    Aqui, surge um ponto que se precisa esclarecer desde o incio. A ideia de

    interdisciplinaridade desemboca, s vezes, em um sonho intelectual: o de restituir a

    unicidade do saber; de chegar a novas formas de conhecimento que abranjam e

    reconciliam as mltiplas faces do saber. O cientista interdisciplinar seria aquele que

    teria o conhecimento suficiente de um amplo leque de disciplinas diversificadas para

    poder produzir, por si s, um modelo explicativo sinttico de uma realidade

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    complexa. Um homem (ou mulher) orquestra que saiba tocar de todos os

    instrumentos da produo do conhecimento. Se a questo filosfica e

    epistemolgica da unicidade da realidade e do carcter artificial e provisrio do

    recorte disciplinar totalmente pertinente, eu tenho as maiores dvidas quanto

    possibilidade de formar pessoas que possam tratar com igual competncia os

    assuntos mais diversos. Claro que existem alguns espritos geniais que possuem um

    saber enciclopdico e uma inteligncia amplssima (no sentido etimolgico da

    palavra: capacidade em ligar entre si os fios mais diversos de uma situao). Mas ,

    so excees, e no podem constituir o padro alvo de nossos cursos de formao.

    Alm disso, o campo do saber tem se complexificado e aprofundado de tal maneira,

    que hoje um Leonardo da Vinci no poderia mais existir.

    O risco com uma formao que pretenderia formar pessoas interdisciplinares

    por si s seria produzir criaturas do Frankenstein, formadas de pedaos dspares,

    mal costuradas e que andam de modo desajeitado.

    Um objetivo realista para uma formao interdisciplinar reside em

    proporcionar a especialistas, dotados de alto nvel de formao na sua disciplina, as

    competncias para colaborar, trocar informaes, trabalhar coletivamente com

    cientistas ou tcnicos tambm muito qualificados na sua rea de conhecimento e

    esperteza.

    Mas, por modesto que possa parecer tal objetivo, ainda representa um grande

    desafio pedaggico, na medida em que implica em um trabalho metdico de

    reconstruo de espritos moldados, desde a escola at a universidade, por uma

    formao cada vez mais especializada e rgida.

    Os modos de enfrentar e superar tal desafio pedaggico constituem um tema

    de reflexo em si. Limitamo-nos aqui a evocar alguns objetivos fundamentais a se

    visarem, sem entrar no detalhe de sua aplicao (deixando para outras palestras,programadas no mbito do Simpsio, a ocasio de entrar nas dimenses mais

    concretas desta estratgia de renovao da formao e da pesquisa).

    Em breve, tais objetivos fundamentais so:

    Abrir as mentes e baixar as barreiras intelectuais.

    O abalamento das certezas disciplinares, a tomada de conscincia do carter

    parcial da viso da realidade imprimida por qualquer especializao cientfica ou

    tcnica so condies iniciais necessrias para engajar-se em um movimento de

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    reflexo, que vise ultrapassar as fronteiras entre territrios do saber. No h

    possibilidade de interdisciplinaridade se no existirem essas dvidas iniciais e o

    desejo ntimo a elas associado. Mas, para progredir no sentido de uma verdadeira

    abordagem cientfica, imprescindvel dar mais rigor a tal postura intelectual que

    no passa, no incio, de um sentimento, uma mera intuio. H de se empreender

    um trabalho metdico de reconstruo de espritos moldados da escola at a

    universidade, por uma formao de carter especializado, rgido.

    A primeira etapa imprescindvel no percurso de aprendizagem da

    interdisciplinaridade consiste ento em cumprir as seguintes exigncias:

    desenvolver, em cada aluno, um olhar crtico sobre a atividade de produo do

    conhecimento em geral e sobre sua prpria disciplina em particular; criar as

    condies iniciais de um dilogo entre especialidades cientficas distintas. Uma vez

    estabelecido esse alicerce da interdisciplinaridade, torna-se possvel engajar o

    processo de construo de uma competncia tanto terica quanto prtica.

    Favorecer uma convergncia de olhares.

    Adquirir uma distncia crtica em relao ao que sabemos e ao que sabemos

    fazer, beneficiar-nos com uma melhor capacidade para comunicarmos com o outro e

    entendemo-lo: tais so as condies prvias da troca cientfica. A partir disso,

    convm progredir na aprendizagem dos instrumentos conceituais e metodolgicos

    que viabilizaro a construo de algo novo: um novo modo de cooperar e cruzar os

    olhares. Por isso, h de familiariz-los com uma reflexo coletiva sobre questes

    complexas e hbridas cujo tratamento mobiliza um amplo leque de competncias

    diversificadas. O objetivo, nessa etapa, ser conduzir os alunos tomada de

    conscincia da necessidade de interagir com outros especialistas, de lanar pontes

    entre os modos de abordar e tratar os problemas.

    Proporcionar a aprendizagem de prticas e instrumentos concretos.O encaminhamento intelectual percorrido pelos alunos durante as duas

    etapas prvias da pedagogia interdisciplinar (baixa das barreiras intelectuais e

    convergncia dos olhares), lhes ter dado uma forma de distncia em relao s

    certezas, muitas vezes estreitas demais, da sua formao inicial. Ter tambm

    aberto as portas que lhes permitiro dialogar alm das fronteiras disciplinares. As

    capacidades novas assim adquiridas, para poderem ser aplicadas com efeito em um

    processo coletivo de produo do conhecimento ou de resoluo de problemas,

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    exigem muitas vezes a mobilizao de savoir fairee instrumentos prticos dos quais

    a formao tem tambm que os dotar. O objetivo aqui permitir cruzar, articular e

    integrar dados heterogneos. Os mtodos e instrumentos a serem chamados

    variaro assim em funo do tipo de interdisciplinaridade alvejado, do perfil dos

    alunos e dos assuntos tratados. Mas, fundamental no deixar a simples

    improvisao, a aproximao e a articulao dos dados, trazidas por disciplinas

    cientficas que trabalham em escalas distintas, de modo qualitativo ou quantitativo,

    com modos de raciocnio diferenciados.

    Para que, no final das contas, os achados dos vrios especialistas possam

    contribuir a uma compreenso coletiva do problema tratado, necessrio valer-se

    de metodologias adaptadas de tratamento da informao. Muitos instrumentos

    metodolgicos existem hoje e a familiarizao com eles deve constar da formao

    prtica interdisciplinar.

    CONCLUSO

    Chegamos aqui ao fim de nossa tentativa, muito rpida e resumida, de

    identificar alguns princpios que devemos ter presente na mente ao falar de

    interdisciplinaridade.

    Aps um longo perodo histrico, durante o qual a especializao dos olhares

    sobre o mundo em disciplinas distintas tem permitido imensos progressos na

    elaborao de um saber cientfico rigoroso sobre o mesmo, a complexidade e o

    carter hbrido dos problemas, a se tratar hoje, fazem com que o dilogo e a

    colaborao entre as disciplinas se torne, doravante, imprescindvel. Isto no

    significa acabar com as disciplinas, mas, sim, criar condies que favoream os

    intercmbios e a cooperao entre domnios da formao e da pesquisa, que ahistria das instituies acadmicas trabalhou para separar em entidades distintas e

    em universos de pensamento com pouca comunicao entre si.

    Se tal colaborao nunca deixou de existir entre disciplinas trabalhando sobre

    as dimenses materiais da realidade especialmente no domnio das tecno-

    cincias, onde as convergncias e hibridaes foram frequentes a comunicao

    evidencia-se particularmente difcil e precria entre cincias da materialidade e

    cincias humanas e sociais.

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    De modo geral, a interdisciplinaridade no dada de uma vez, pela simples

    aproximao de cientficos, oriundos de vrios horizontes. Ela deve se construir de

    modo metdico porque as formaes disciplinares clssicas tm evoludo no sentido

    de uma especializao crescente. Em geral, os alunos saem dessas formaes

    muito mal preparados para comunicarem, trocarem e compartilharem ideias e

    questes com pessoas que seguiram um outro percurso intelectual e institucional

    (mesmo no bojo de cada grande universo conceitual: material e imaterial). Isto

    significa que um esforo metdico deve ser consentido para criar um esprito novo e

    competncias novas. Tal fase preparatria de reconstruo intelectual

    imprescindvel para estabelecer o alicerce sobre o qual se fundamentar depois a

    prtica interdisciplinar.

    A vontade, o desejo pessoal de ultrapassar as barreiras disciplinares, o pr-

    requisito incontornvel para que tal reconstruo possa se empreender. A

    interdisciplinaridade no pode ser forada entre especialistas que no tm dvidas

    sobre os limites de sua prpria competncia. Mas, tal disponibilidade de espirito

    prvia no basta. H de se percorrer um caminho pedaggico longo, demorado,

    minucioso, ao longo do qual a imaginao criativa nunca pode deixar de se associar

    ao maior rigor intelectual. o preo que se tem que pagar para evitar, quando se

    fala de interdisciplinaridade, simplesmente cair na moda, mas, todo ao contrrio,

    engajar-se num esforo, s vezes iconoclasta, de renovao profunda dos modos de

    produo do conhecimento. Uma renovao que responda ao desafio que nos lana

    a complexidade e o carter hbrido das realidades do mundo contemporneo.

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    THE PRESENT CHALLENGES OF THE PRODUCTION OF KNOWLEDGE: THECALL FOR INTERDISCIPLINARITY

    AbstractWe are going through a moment of radical reconstruction in the form of thinking the

    material world in which we live and act as well as the relationship that we, humans,have establishedindividually or collectivelywith this same world. The movementnow calls for new paradigms, new categories of thought, new researchmethodologies, new ways of teaching. Many of the problems that science andcontemporary techniques should face do not let themselves reduce the disciplinaryfunction of clipping from which historically educational institutions and research haveeen structured. Further collaborations between scientists with backgrounds markedby a high specialization are in demand. Conceptual boundaries established betweendifferent areas of knowledge become permeable. Exchanges and methodologicaladjustments are needed. The call for interdisciplinary collaboration is expressedtoday with more and more force. Bridges are thrown between sectoral approaches of

    reality. Interdisciplines are born and find institutional space. Technologicalinnovations mobilize competencies from far-flung scientific horizons. Despite thisstrong historical dynamics, numerous obstacles remain. Some of them areexpression of institutional and interpersonal confront resistances. Others originate inthe intellectual rigidity imposed by a highly specialized academic training. To this day,there is not a definition of interdisciplinarity that is consensual and, even less, anestablished doctrine that can be applied to the field work. Contributing to clarify thetheoretical and methodological bases upon which you can build a project of concretepractice of interdisciplinarity in the field of teaching and research becomes essential.Keywords: Interdisciplinarity. Epistemology. Higher education. Research.

    LOS DESAFOS CONTEMPORNEOS DE LA PRODUCCIN DELCONOCIMIENTO: EL APELO PARA LA INTERDISCIPLINARIDAD

    ResumenEstamos atravesando hoy un momento de reconstruccin radical en la forma depensar tanto el mundo material en el cual vivimos y actuamos como la relacin quenosotros, seres humanos, establecemos individual o colectivamente con esemismo mundo. El movimiento que est aconteciendo ahora apela a nuevosparadigmas, nuevas categoras de pensamiento, nuevas metodologas de

    investigacin, nuevas formas de enseanza. Muchos de los problemas que laciencia y las tcnicas contemporneas deben enfrentar no se dejan reducir al recortedisciplinar en funcin del cual se estructuraron histricamente las instituciones deenseanza y de investigacin. Se imponen colaboraciones entre cientficos conformaciones marcadas por una alta especializacin. Se vuelven permeables lasfronteras conceptuales establecidas entre reas de conocimiento distintas. Sonnecesarios cambios y ajustes metodolgicos. El apelo para la colaboracininterdisciplinar actualmente se expresa con cada vez ms fuerza. Son construidospuentes entre abordajes sectoriales de la realidad. Interdisciplinas nacen yencuentran espacio institucional. Las innovaciones tecnolgicas movilizancompetencias oriundas de horizontes cientficos lejanos. A pesar de esa pujante

    dinmica histrica, innmeros obstculos permanecen. Algunos son expresin deresistencias institucionales y de confrontaciones interpersonales. Otros se originan a

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    partir de la rigidez intelectual impuesta por una formacin acadmica altamenteespecializada. Hasta hoy, no se encuentra una definicin de la interdisciplinaridadque sea consensual, y todava menos una doctrina establecida que pueda seraplicada al trabajo de campo. Por lo tanto, se vuelve imprescindible contribuir paraclarificar las bases tericas y metodolgicas sobre las cuales se puede construir un

    proyecto de prctica concreta de la interdisciplinaridad en el rea de la enseanza yde la investigacin.Palabras-clave: Interdisciplinaridad. Epistemologa. Enseanza superior.Investigacin.

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