os espaÇos das recepÇÕes: crÍtica e histÓria...camisa da seleção brasileira que ostentava...
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OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
O PODER DA TEATRALIZAÇÃO E A TEATRALIZAÇÃO DO PODER:
QUE REI SOU EU? E A HISTÓRIA DO PASSADO COMO ALEGORIA DO
PRESENTE E DO FUTURO DO BRASIL NA TELEDRAMATURGIA1
Bruno Filippo Policani Borseti; orientadora: Profa. Dra. Fátima Costa de Lima;
Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT); Universidade do Estado de Santa
Catarina.
A Rede Globo de Televisão exibiu, entre 13 de fevereiro e 16 de setembro de
1989, na tradicional faixa diária das 19 horas destinada às produções dramatúrgicas, a
telenovela Que rei sou eu?.2 Escrita por Cassiano Gabus Mendes em colaboração com
Luis Carlos Fusco e dirigida por Jorge Fernando, Fábio Sabag e Mário Márcio
Bandarra, Que rei sou eu? estendeu-se por 185 capítulos e foi reexibida dois meses
depois em versão compacta de 70 capítulos, entre outubro e dezembro, em horário
vespertino.3 A trama desenrola-se no fictício Reino de Avilan, situado na Europa entre
os anos de 1786 e 1789, às vésperas da Revolução Francesa, cuja efeméride do
bicentenário era festejada naquele ano de 1989. Avilan – com personagens, figurinos e
cenários que caracterizavam as estruturas sociais e políticas do Ancién Regime -
constituía a alegoria do Brasil contemporâneo, de modo que a distância entre
significante e significado, normalmente próxima na teledramaturgia brasileira, alargou-
se.
Em julho de 2012, durante a reprise da telenovela no Canal Viva4, escrevi ensaio
intitulado “A originalidade de Que rei sou eu?”. Nele, ressalto que se trata de uma obra
singular na história das telenovelas brasileiras:
Que rei sou eu? é singular não só porque inverte a equação das
telenovelas, tornando secundárias as características do melodrama
tradicional –, mas também e sobretudo porque, ao mesmo tempo que
põe uma lupa sobre o contexto, é uma sátira alegórica: com o efeito
crítico devastador de que só o humor é capaz, fala de um país (o Brasil
de 1989 e, por que não?, o de hoje também) por meio de outro – um
reino situado na Europa às vésperas da Revolução Francesa, cujos
acontecimentos serviram-lhe de simulacro. Outras telenovelas,
como Roque Santeiro, fizeram sátira alegórica; mas havia
proximidade entre o universo representante e o universo representado,
como na Asa Branca da Viúva Porcina e do Sinhozinho Malta, uma
alegoria das crenças e dos tipos do Brasil profundo. Que rei sou
eu? une dois universos distantes: um país latino-americano de fins do
século 20 e um europeu do século 18.5
Ao escolher como espaço cênico um reino europeu carcomido em sua estrutura
social, Cassiano Gabus Mendes trouxe para a linguagem da telenovela a representação
do que o sociólogo alemão Norbert Elias (1990) chamou de Sociedade da Corte - um
sistema de valores simbólicos compartilhados pela nobreza e expressos por práticas,
hábitos e padrões de comportamento fortemente marcados pela teatralidade6. A
Sociedade da Corte - que encontrou no moderno absolutismo francês sua representação
mais marcante7 - foi tomada pelo dramaturgo como alegoria do Brasil.
À alegoria, acrescentou-se a sátira. Por meio da comicidade de
personagens e situações, a sátira buscou realçar, como pontos da alegoria,
problemas estruturais históricos e conjunturais da sociedade brasileira do
fim da década de 19808: miséria, corrupção, incompetência dos poderes
públicos, desigualdade social, hiperinflação, insensibilidade da elite
governante, manipulação das massas, dívida externa, recorrência ao
Fundo Monetário Internacional, inquietação internacional com o
desmatamento da Amazônia. Para a história política brasileira, o ano de
1989 foi um marco democrático, com a primeira eleição para presidente
desde 1960, depois do ciclo militar implantado pelo Golpe de 19649
Esses elementos - representação da sociedade da corte, alegoria e sátira - fazem
de Que rei sou eu? uma produção totalmente original na história da telenovela
brasileira. Na criação de Cassiano Gabus Mendes, uma das características da
teledramaturgia está em plano secundário: a ênfase no sentimentalismo individual das
personagens10
dá lugar à conscientização política das mazelas do país e à luta por
mudanças revolucionárias.
Ao contrário do teatro e do cinema, a telenovela é uma obra cuja fábula vai
sendo escrita aos poucos pelo autor, o que lhe permite realizá-la de forma contígua à
apresentação ao público, tornando-a suscetível à pressão dos índices de medição de
audiência, do telespectador e da opinião pública. Essa contiguidade permitiu, em Que
rei sou eu, referências constantes a situações conjunturais do Brasil, a fatos que se
desenrolavam no mundo real simultaneamente à sua exibição, de modo que parecessem
transpostos das páginas dos jornais para os diálogos das personagens – o que reforçava
seus elementos alegóricos. No ensaio supracitado, elenquei algumas dessas
transposições:
E, para deixar mais explícita a representação alegórica, Cassiano
Gabus Mendes recorreu a notícias que saíam nos jornais naqueles
meses de vinte e três anos atrás – permitindo ao público a
aproximação imediata entre Brasil e Avilan que hoje, àqueles que não
viveram o período ou não se lembram dele, pode parecer sutil, quiçá
imperceptível à nova geração, à medida que os fatos vão-se
amarelando junto com os jornais que os fizeram conhecidos.
Como os planos econômicos que, no país pré-Real, cortavam os zeros
da moeda como que querendo cortar os dígitos da inflação. Por isso, a
moeda de Avilan, o “ducato”, em seus primeiros capítulos, perde três
zeros e vira “duca” – mudança quase simultânea à que, no Brasil, o
Plano Verão de Maílson da Nóbrega eliminou três zeros do Cruzado e
o transformou no Cruzado Novo, em janeiro de 1989. Das paradas de
sucesso, Avilan importou do Brasil a lambada, gênero tropical,
predecessor do axé, que fez a corte trocar o tradicional minueto pelos
seus requebros abaixo da linha do equador da cintura.
Ou como, numa cena impagável, Luiz Gustavo, em participação
especial travestido de Charles Miller, o filho de escocês que trouxe o
futebol ao Brasil, apresenta sua invenção aos conselheiros da rainha,
aconselhando-os a adotar o esporte no reino porque, além de distrair o
povo como ópio, dava prestígio aos presidentes das federações e aos
demais cartolas, que poderiam lucrar com a venda de jogadores! Para
mostrar como estes se vestiam e faziam com a bola, Roberto
Dinamite, ainda em atividade como atleta, entra em cena com a
camisa da seleção brasileira que ostentava três estrelas, a última
conquistada em 1970. “Esta camisa não ganha nada há muito tempo”,
diz Charles Miller, quer dizer, Luiz Gustavo. Bem, se o conselho pode
continuar válido, as estrelas em nossa camisa já somam cinco.11
Em sendo o produto mais importante da indústria cultural12
brasileira, com
ampla penetração em todas as camadas sociais e repercussão em todos os meios de
comunicação, a telenovela apresenta uma linguagem de fácil entendimento, acessível
desde o mais culto ao menos privilegiado de capital cultural. Que rei sou eu? não foge a
esse aspecto, nem poderia fazê-lo: seu poder de penetração, aliado à temática política
entrelaçada com a realidade, fez dessa zona incerta entre ficção e realidade um polo de
tensão na esfera pública do mundo real que se traduziu na acusação de que a telenovela
teria o poder subliminar de influenciar o público, seja incitando-o à subversão, como
pensaram setores conservadores, seja induzindo-o a votar num candidato a presidente
(Fernando Collor de Mello) que teria semelhanças antropomórficas, gestuais e retóricas
com Jean Pierre, vivido por Edson Celulari, o herói de Que rei sou eu?.
Em ambos os casos - o temor da subversão ou da sugestão -, trata-se mais uma
vez da amálgama entre ficção e realidade, porém com uma característica assaz
importante: a teatralidade da ficção passa não só a confundir-se com o universo do real
– o que, per si, não constitui novidade no gênero teledramatúrgico -, mas também, pelo
seu poder de influenciar a massa, a moldar-lhe formas de comunicação política por meio
da indústria cultural. De modo que sua eficácia no que toca à possibilidade de tirar o
espectador do estado de passividade foi reconhecida por seguimentos da sociedade.
Os conceitos de “politização da estética” e “estetização da política”, cunhados
por Walter Benjamim (1985) no texto canônico A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica, ajuda a explicar o pendor – e o temor - à esquerda e à direita
da telenovela conforme sua apropriação por grupos sociais diversos da sociedade
brasileira. A politização da estética, com discurso de apelo à luta popular por melhores
condições de vida e pela conscientização das mazelas do país, dialeticamente contribuiu
para estetização da política, à proporção que as características de uma das principais
personagens da telenovela passaram a ser consideradas, no universo real, análogas às de
um dos candidatos à Presidência da República do Brasil, com poder de sugestionar os
eleitores subtraindo-lhes a consciência política. Daí que a eleição presidencial de 1989,
depois de 29 anos sem que os brasileiros fossem às urnas escolher o mandatário do
Poder Executivo, seja considerada a primeira em que o conceito de "marketing político"
passou a entrar mais fortemente no vocabulário eleitoral.
Não se pode afirmar, entretanto, que a telenovela criou o marketing político;
mas, isto sim, que a consonância da caracterização de uma das personagens com as
técnicas de comunicação que começavam a ser desenvolvidas pelo candidato Fernando
Collor de Melo, e a vitória que ele obteve no pleito histórico, contribuíram para reforçar
o aprimoramento da estetização da política – ainda que a contribuição de Que rei sou
eu? para esse reforço seja difícil de auferir.
Que rei sou eu?, pela ênfase secundária no aspecto individual das personagens e
pela mistura entre ficção e realidade expressa por meio da sátira alegórica, representou,
para o gênero telenovela, a introdução de elementos singulares à estilística da
teledramaturgia brasileira, como a narrativa épica, ao narrar a saga do povo de Avilan
pelas transformações sociais, tendo como pano de fundo a disputa pela sucessão do
trono real; e como elementos do "teatro pós-dramático" – termo cunhado pelo crítico
alemão Hans-Thies Lehmann (2009) para designar novas configurações cênicas que,
emergidas na década de 1970, questionam a capacidade da estética dramática de
problematizar o real numa época marcada pela sociedade do espetáculo.
A alegoria torna-se, assim, um contraponto à mimese tradicional, que se
enfraquece pela insuficiência de criar signos imitadores do real. A crise do teatro
dramático, que encontrou no teatro político do início do século XX sua primeira
manifestação, leva à busca por novas formas de questionamentos da vida social pela
arte, nas quais a utilização de signos alegóricos que ultrapassam as fronteiras entre o
real e o ficcional visa à tomada de consciência do público. Desse modo, esta pesquisa
propicia a discussão sobre as características dramatúrgicas das telenovelas brasileiras e
seu poder de exercer influência sobre o público e põe em relevo a originalidade de Que
rei sou eu? no panorama da teledramaturgia nacional. E mostrar como, nela, a relação
entre ficção e realidade acabou por evidenciar, entre os formadores de opinião, o
potencial político das telenovelas – o qual, apropriado pela nascente indústria de
marketing político, potencializou a estetização da política.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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Paulo: Senac, 2007.
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MOSTAÇO, Edélcio. Considerações sobre o conceito de teatralidade. In: Revista
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TORQUATO, Gaudêncio. Tratado de comunicação organizacional e política. São
Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002
1 Este texto é fruto de pesquisa para a dissertação de mestrado no PPGT-UDESC, sob a orientação da
profa. Dra. Fátima Costa de Lima. 2 Não é propósito deste artigo discutir a pertinência da palavra “novela” para designar obras
dramatúrgicas escritas ou adaptadas para rádio e televisão. Optou-se por “telenovela” como sinônimo de
novela de televisão, conquanto se devam ressalvar as palavras do dramaturgo Marco Rey, citado por
Campedelli (1993): “O termo novela foi equivocadamente incorporado pelo rádio às suas narrativas
quilométricas. Depois, a televisão cometeu outro erro equívoco em cima do primeiro e ficou o nome.
Como se sabe, o rádio copiou o gênero das similares cubanas e mexicanas. Só que o termo, no idioma
espanhol, é igual a romance. No inglês moderno também. Para a história curta, estes idiomas têm outros
vocábulos. Com relação à telenovela, o certo seria chamá-la de folhetim.” 3 Que rei sou eu? teve direção executiva de Roberto Talma, produção executiva de Eduardo Figueira e
direção de produção de Ítalo Granato. Cf. Dicionário da TV Globo – vol. 1: Programas de
Dramaturgia e Entretenimento/Projeto Memória das Organizações Globo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed, 2003. 4 Trata-se de canal por cabo que pertence às Organizações Globo. Entrou no ar em maio de 2010 e é
voltado para reprise de antigos programas, telenovelas e seriados da Rede Globo de Televisão, além de
produções estrangeiras. Reprisou Que rei sou eu?, na íntegra, entre maio de 2012 e janeiro de 2013. 5 FILIPPO, Bruno. A originalidade de Que rei sou eu?. In: Observatório da Imprensa, Edição 703,
17/07/12. Disponível:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed703_a_originalidade_de_que_rei_sou_eu 6 Valho-me do conceito de Mostaço (2006-7), para quem a teatralidade, transcendendo o limite da cena
teatral, é mecanismo de produção de efeitos simbólicos construídos historicamente. 7 “O absolutismo francês consumou a sua apoteose institucional nas últimas décadas do século XVII. A
estrutura do Estado e a correspondente cultura dominante aperfeiçoadas no reinado de Luís XIV viriam a
torna-se o modelo para o restante da nobreza europeia. .” (ANDERSON, 1989, p.101) 8 Moisés (1974, p.70) enfatiza que a sátira, conquanto se coadune com a comicidade, tem por objetivo a
contestação ou a crítica social: “Modalidade literária ou tom narrativo, consiste na crítica das instituições
ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos indivíduos.” 9 Sobre este período histórico, cf. MODIANO (1992) e BARBOSA CASTRO (2005).
10 Cf. CAMPEDELLI (2001), TÁVOLA (1996), ALENCAR (2007) e POLITTINI (1998)
11 FILIPPO, Bruno, Op. cit.
12 Por “indústria cultural”, ao longo de toda esta dissertação, entenda-se o conceito formulado por Adorno
e Horkheirner em Dialética do Esclarecimento (1985) segundo o qual todo o aparato de produtos
culturais gerado pela técnica de reprodução em massa dá-se dentro de uma lógica capitalista, seriado e
homogeneizador.
1
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
WORDS IN PROGRESS: ENTRE TEXTO E LEITURA
Reflexões para uma leitura performativa de textos teatrais
Cícero Alberto de Andrade Oliveira*
PREÂMBULO
Meu objetivo na presente comunicação é trazer algumas considerações acerca de
uma “prática cultural”1 amplamente difundida na maioria das sociedades do mundo – a
leitura –, articulando-a com um domínio particular – a arte teatral.Tema vasto e
fascinante, a leitura de textos teatrais implica, todavia, que se façam determinados
recortes e que algumas questões sejam colocadas de saída. Assim sendo, esta exposição
está dividida em três momentos.
Primeiramente, falar de teatro hoje implica necessariamente discutir (ainda que
superficialmente) o estatuto do texto teatral. Fazendo coro com Sílvia Fernandes,
parece-nos que “uma das principais tarefas do estudioso do texto teatral contemporâneo
[é] distinguir seu objeto”.2 Eis, portanto, um primeiro tema que seria preciso abordar e
que tentaremos contemplar no decorrer desta apresentação.
Feitas essas considerações e o estatuto do texto estando um pouco mais
delimitado, poderemos, então, passar às especificidades da leitura desses textos,
verificando, a partir de entrevistas de dramaturgos brasileiros e franceses, sobretudo,
como essa leitura é feita. Para tanto, será feita uma breve análise de elementos de seus
discursos no que diz respeito aos textos dramáticos, pinçando trechos, procurando tornar
explícitas algumas das imagens e metáforas que eles constroem ao se referirem aos
textos teatrais, verificando se nesses relatos é possível perceber constantes. Se como
demonstram Cavallo e Chartier, cada grupo de leitores desenvolve “formas de ler”,
“instrumentos e procedimentos de interpretação”3 que lhes são próprios e particulares,
parece evidente que aqueles que trabalham na produção de uma peça teatral a partir de
um texto o leem de outra maneira – e são precisamente essas “ferramentas” e o “caráter
outro” dessa leitura que me interessam e que gostaria de trazer à tona aqui. Eis, então, o
segundo momento.
Por fim, essa reflexão nos leva a conceber a forma de ler desse grupo específico
como uma prática singular, na qual o leitor é implicado (ou se implica) e deve (re)agir
de uma maneira bastante peculiar. Qualifico essa “implicação distinta”, como
performativa baseado principalmente nas reflexões que Paul Zumthor apresenta em
Performance, Recepção, Leitura.4 Trata-se, evidentemente, de um conceito amplo e
ainda um pouco difuso, possivelmente por estar in process, em construção. Vale
ressaltar que me limitarei apenas a fazer alguns apontamentos e colocar algumas
questões, não tendo nenhuma pretensão de esgotar o tema ou trazer proposições
demasiadamente assertivas.
Isto posto, e como o próprio título do trabalho anuncia, por se tratar de reflexões
acerca de procedimentos de uma determinada comunidade de leitores, muito
provavelmente não será possível chegar a uma conclusão. O que não parece ser um
2
problema, dado que justamente que o que trago aqui é uma pesquisa, ela também, em
processo, todos os resultados e formulações podendo ser questionados, dado não serem
definitivos.
PALAVRAS MOVEDIÇAS
É cada vez mais difícil, e até mesmo impossível, definir um texto dramático.
Não é nenhuma novidade, aliás, que seus limites foram de tal forma expandidos, que
hoje é perfeitamente possível encontramos “romances, poemas, roteiros
cinematográficos e até mesmo fragmentos de falas esparsas, desconexas”5 sendo
utilizados como matéria textual para a escrita de peças teatrais. Atualmente nada parece
conferir previamente a um texto algo que nos permita qualificá-lo como sendo “teatral”.
Patrice Pavis, já nos anos 90, ressaltava que o que chamada de uma “tendência
atual da escritura dramática [de] reivindicar não importa qual texto para uma eventual
encenação”.6 Trata-se de uma dificuldade ainda muito premente em nossos dias, a tal
ponto que Pavis chega a adotar às vezes uma perspectiva mais pragmática, afirmando,
por exemplo, que “um texto teatral é tudo aquilo que é dito em cena”.7 Se tomarmos ao
pé da letra a afirmação do crítico teatral francês, aceitaremos que tudo o que é escrito
seria um texto dramático em potencial, bastando apenas que aparecesse no palco, nas
bocas dos atores, durante uma encenação.
Fato é que, por ser tão amplo, este objeto dificilmente pode ser claramente
definido. Ambivalente por princípio – palavra escrita por um lado, devir-gesto (ação)
por outro – o texto dramático tem suas próprias leis, que orientam sua leitura, sua
encenação, sua escuta. É preciso, então, que o leitor-ator-encenador-público, encontre
seu tempo8 específico, que ditará seu ritmo, atualizando essas palavras que são, antes,
words in progress: palavras em movimento em progressão contínua, que ocupam
espaços tão distintos – uma folha de papel, a voz, o olhar, o palco.
Essa dificuldade apontada por Patrice Pavis, além de expor as aflições (ou, antes,
os prazeres) daqueles que se lançam nessa aventura que é o estudo dos textos teatrais,
permite também uma mudança no vetor de nossa perspectiva, transferindo nosso olhar
do objeto textual em si para uma outra “instância”, que, de certa forma, determina o que
será o próprio texto teatral: o leitor.
Se admitirmos que tudo o que se escreve pode se tornar matéria na fabricação de
um texto dramático, é necessário ainda assim que alguém ative essa “potencialidade
primeira”, fazendo com que um dado conjunto de palavras, de frases e de parágrafos se
torne efetivamente um texto dramático – o que não pode ser feito sem uma leitura
preliminar por parte de um ator, diretor ou grupo teatral.
Como nos lembra Michel de Certeau, “quer se trate de um jornal ou de Proust,
[um] texto não tem significação a não ser através de seus leitores; ele muda com eles,
ordenando-se graças a códigos de percepção que lhe escapam. Ele só se torna texto
através de sua relação com a exterioridade do leitor, por um jogo de implicações e de
ardis entre duas expectativas combinadas: aquela que organiza um espaço legível (uma
literalidade) e aquela que organiza uma diligência, necessária à efetuação da obra (uma
leitura)”.9 Essa perspectiva, com efeito, nos coloca diretamente no cerne do caráter
ambíguo e difícil de apreender que todo texto carrega em si, pois atribui a própria
existência do texto àquele que o lê: para cada leitor, então, um texto diferente se
constrói durante a leitura. Eis o porquê de o trabalho dos pesquisadores em dramaturgia
ser o de (in)definir continuamente seu próprio objeto.
3
Definido ou indefinido, elemento central ou acessório, fato é que o texto teatral
permanece um dos focos de pesquisa e de incessantes reinvenções nas teatralidades por
todo lugar. A prova disso é que em vários países, diversos atores e companhias teatrais
extraem material das mais diversas fontes textuais (frequentemente “não teatrais” – ou
ao menos não em princípio) e, a partir de um intenso trabalho (de leitura, corporal, de
criação) acabam se apropriando deles, transformando-os em espetáculo.
Apenas para ilustrar essa perspectiva, limito-me a citar dois exemplos, que
conheço mais detidamente: o trabalho do grupo brasileiro Teatro da Travessia,10
e da
companhia francesa Arte&Latte. Ambos têm em comum o fato de empregar, como
matéria de criação, textos que não haviam sido inicialmente concebidos para a
encenação.
Companhia paulistana constituída em 2006, os integrantes do Teatro da
Travessia, desde sua composição, “se reconheceram no desejo de trabalhar partindo de
textos literários e de realizar a pesquisa de como transpô-los para a cena”.11
Sua peça de
estreia, Dias raros (2008), por exemplo, foi criada a partir de uma coletânea de contos
do escritor João Anzanello Carrascoza (ganhador do Prêmio Jabuti 2007). A segunda
peça do grupo, Colóquio internacional sobre o Amor (2012), vai no esteio dessa
pesquisa, e é uma livre adaptação de textos literários e filosóficos franceses, feita pelo
grupo durante uma residência no exterior. Os motivos que orientaram suas escolhas por
esse tipo de texto na montagem de Dias raros foram diversos, mas como a proposta
deles era a de “levar à cena o conto sem preencher todas as lacunas imagéticas”,
acabaram optando por textos literários “a fim de privilegiar a escuta da narrativa e a
construção coletiva de imagens”.12
Formado em 2004, o coletivo francês Arte&Latte é uma trupe de atores que
também tem como ponto de partida o trabalho com textos “não teatrais”. O coletivo já
adaptou, por exemplo, obras de Fernando Pessoa, Rilke e Virginia Woolf, e tem como
um de seus principais objetivos “oferecer a diferentes públicos o conhecimento, a
qualidade e o gosto por obras literárias, graças ao teatro e às artes vivas”.13
Aliás, sua
peça de estreia, Adeus (2010), foi baseada no romance epistolar Cartas portuguesas, da
escritora lusitana do século XVII Mariana do Alcoforado, tendo sido apresentada
durante o Festival d’Avignon 2010, recebendo diversos prêmios.
Em ambos, como vemos, há a predileção pelo trabalho com textos que não
foram inicialmente criados para os palcos. São apenas dois exemplos dentre milhares de
outros artistas espalhados pelo mundo que também escolheram trabalhar a partir de
textos, que não tinham sido pensados para serem encenados ou sequer previam uma
encenação. O que em suas generosas leituras lhes permite transformar aquelas palavras,
vê-las não como caracteres mortos, mas como words in progress, fazendo-as se tornar
espetáculo, algo que é dado a ver?
ENTRE TEXTO E LEITURA
A despeito das posições que possa eventualmente suscitar (apego ou repulsa), a
partir do momento em que se faz presente em um espetáculo, o texto dramático se torna
uma realidade inevitável (e incontornável). Todo estudo de texto teatral, no entanto,
esbarra também em outro fator inexorável: o palco (a cena). Ainda que um texto não
seja encenado, o palco está sempre ali, presente, rondando como uma sombra (o leitor
comum) ou orientando como um farol (o diretor ou o ator) aquele que lê. É o que
4
podemos constatar numa entrevista concedida por Francisco Medeiros, conhecido
encenador brasileiro à revista Manuscrítica:
“A minha sensação é a de que o texto teatral – sem exceção – no
momento em que é escrito, é escrito para a cena. Não conheço nenhum
dramaturgo que tenha escrito um texto teatral para ser “lido” da mesma
forma que um artigo, ou mesmo como literatura. Ele até pode ter um
status de literatura quando é escrito no papel, mas percebo que ele só
ganha possibilidades, potência de vida, quando vai para o palco”.14
Medeiros, como se vê, coloca a cena como finalidade última de um texto teatral,
afirmando que ele só adquire sua “verdadeira potência vital” quando é encenado. Em
outras palavras, o palco – exterior ao que está escrito – orienta, e poderia até ser visto
como um primeiro (ou o principal) instrumento de leitura: se um autor escreve para ver
seu texto em cena, devemos lê-lo tendo esta última como paradigma, e esta
“orientação”, como se pode imaginar, tem implicações importantes na leitura.
A peça, diz ele, só ganha potência de vida “quando vai para o palco”.
Poderíamos sem grande esforço substituir o verbo “ir” por “passar”, dizendo, então, que
ela só ganha vida quando passa para o palco. Isso nos leva diretamente à outra imagem
preciosa para compreender o aparato crítico do leitor-profissional de teatro: a noção de
passagem.
Em diversos depoimentos e entrevistas consultados (pouco importando a
nacionalidade dos entrevistados), esse conceito era recorrente nas falas dos
dramaturgos, encenadores e atores. É comum ver nos testemunhos de muitos deles a
afirmação de que do texto à cena se passa, como dá a entender Nathalie Fillon, atriz,
dramaturga e diretora francesa:
“Quando monto meus textos, apreendo essa passagem como um
encontro extraordinário do texto com o espaço, o movimento, os atores, o
corpo, o pensamento, o som, a sombra, a luz etc. (...) todas essas matérias
diversas que será preciso pôr para funcionar, agitar, para que algo
inaudito e inédito sobrevenha, advenha”. 15
E a mesma postura pode ser depreendida das falas de Marion Aubert (atriz e
dramaturga francesa, para quem “a passagem para o palco se inscreve (...) em uma
continuidade, não é um acontecimento brutal”16
) e do músico e diretor David Lescot
(que diz ver naturalmente a passagem do texto ao palco, e que ele “escreve para ser
montado, não para ser escrito”).17
É bem verdade que não são todos os testemunhos analisados que veem essa
relação entre texto e cena como uma passagem, embora seja bastante comum eles
referirem a esse tema dessa forma.18
De todo modo, é curioso ver que, assim como a
eminência da cena orienta a forma pela qual alguns entrevistados concebem o próprio
texto teatral, o fato de pensar que ele deve ser trabalhado de forma a produzir uma
“travessia”, “um atravessamento” (dois sinônimos de passagem) exige uma atitude, a
produção de uma ação concreta da parte daquele que lê – o que não ocorre
necessariamente com a leitura de um romance ou de um poema.
Em decorrência do curto tempo, restrinjo-me a desenvolver e trabalhar mais
detidamente apenas essas duas imagens (a saber, a da cena como orientadora da leitura e
5
a ideia de passagem) que os profissionais de teatro desenvolvem acerca do texto teatral.
É preciso dizer, contudo, que elas não são as únicas (a lista vem crescendo a cada nova
entrevista). O que chama a atenção, contudo, é que algumas dessas metáforas, ainda que
veementemente refutadas por alguns atores ou diretores (que as consideram em geral
equivocadas), se repetem constantemente, o que nos poderia levar a pensar que elas
apontam para um modus operandi.
Rapidamente e sem aprofundarmos muito o assunto, eis alguns termos e ideias
que são frequentemente evocados nos depoimentos recolhidos dos profissionais e os
teóricos do teatro, quando se referem ao texto dramático:
▪ Tradução: a passagem do texto ao palco seria algo da ordem de uma tradução;
▪ Incompletude/falta: o texto teatral seria, então, incompleto, dado que ele é
produzido para passar para outro espaço, material;
▪ Texto esburacado/texto a ser completado: o texto dramático se apresentaria,
então, como sendo permeado por vazios, que serão (ou deveriam ser)
preenchidos pela encenação (ou não).
▪ Partitura: assim como numa composição musical, o texto dramático é apenas
uma notação indicativa para aqueles que o criarão “de fato”, que o farão passar
da virtualidade – própria a todo escrito – à materialidade – própria à cena;
▪ Ponto de partida/ponto de chegada: o texto, posto que vem antes do
espetáculo, seria então uma espécie de limiar, seu ponto de partida; a cena, por
sua vez, constituiria a realização do evento teatral, seria o outro extremo desse
processo (é onde o texto “adquire vida”).
Essas metáforas – que opõem dois “polos complementares” da fabricação de um
certo tipo de evento teatral – apenas ressaltam a maneira pelas quais elas produzem não
somente o texto dramático em si, mas também leituras. Suponhamos que um dado leitor
(um jovem estudante que começa um curso de teatro, por exemplo) aprenda que todos
os textos que ele vai ler serão “incompletos” e que ele deverá completá-los; às vezes, ele
funcionará também como tradutor e, não esqueçamos, é fundamental que esse texto, ao
fim de um longo processo de trabalho, adquira vida no palco. Observemos quantas
ações, operações e a forma como o aquele que lê precisará estar implicado na leitura.
Eis o ponto central da questão que lhes trago aqui: o leitor-encenador, o leitor-
ator, o leitor-iluminador, dentre inúmeros outros leitores-profissionais-do-espetáculo,
sabe que precisa trabalhar obstinadamente com esse escrito para transformá-lo em
acontecimento. Quer ele se afaste do texto, ou o siga à risca, o ele sabe que precisa
transformar aquilo que lê em algo diferente, outro. Esse leitor tem consciência de que
deve não somente ser um leitor “ativo” (dizer isso é praticamente um pleonasmo), mas,
e, sobretudo – e aí me encaminho para o último conceito que gostaria de tratar aqui –,
ele precisa saber fabricar uma leitura capaz de performar, capaz de fazer diferença, de
ser performativa para produzir o efeito-espetáculo (o acontecimento).
UMA LEITURA QUE FAZ DIFERENÇA
Em seu livro Performance, recepção, leitura, Paul Zumthor sublinha que “a
performance é um fenômeno heterogêneo de que é impossível se dar uma definição
geral e simples”.19 Essa dificuldade, aliás, não é ignorada, e é a razão de não se propor
6
aqui uma definição precisa aqui. Também não ignoro que associar a noção de “leitura” à
de “performativo” implicaria fazer um desvio pelo campo da arte de performance,
talvez para especificar mais detalhadamente o que ela supõe. Não o farei, contudo, o
que não parece ser um problema, dado que diversos autores se debruçaram sobre este
tema e fizeram estudos notáveis (indicamos sua leitura).20 Entretanto, os meandros que
ligam a leitura à performance, e que talvez não sejam muito evidentes, merecem um
pouco mais de reflexão.
Apesar das perspectivas diversas com relação ao estatuto do texto no teatro (seja
ele o ponto principal, organizador de um espetáculo, ou o elemento acessório em uma
encenação), fato é que para aqueles que trabalham na fabricação de uma peça teatral, o
texto deve passar de uma virtualidade (o escrito) para uma concretude (o palco); ou seja,
se transformar em corpo, em imagem, em cenário, em luz, em espaço, em som, em voz.
Essa “necessidade de uma ação a ser realizada” ressoa o sentido do verbo inglês to
perform, não nos parecendo desarrazoado por isso falar em leitor-performer quando nos
referirmos aos profissionais do teatro: eles precisam, a partir de um texto escrito,
executar algo, produzir algo (próximo ou distante do texto de origem, pouco importa).
No limite, poderíamos sustentar que uma encenação numa peça que é montada a
partir de um texto é um efeito de leitura: embora independente do texto e utilizando
outras ferramentas para erigir, se constituir como evento, ela se faz a partir dele, e esse
efeito tem como produto final um espetáculo, algo que é dado a ver.
Assim, se tudo pode ser texto no teatro, o que esses profissionais da cena veem
em um escrito qualquer que lhes permite adaptar, fazê-lo ultrapassar o limiar de sua
finalidade primeira (qualquer que ela seja) para se transformar no palco? Paul Zumthor
também pode nos dar pistas para compreender esse aspecto.
De acordo com o medievalista e filólogo francês, “a condição necessária à
emergência de uma teatralidade performancial é a identificação, pelo espectador-
ouvinte, de um outro espaço; a percepção de uma alteridade espacial marcando o
texto”.21
Ora, se é verdade que essa alteridade espacial precisa ser identificada pelo
espectador-ouvinte no momento de um espetáculo, é preciso, porém, que, antes de tudo,
ela seja reconhecida por aqueles que vão fazer do escrito uma encenação – ator, diretor,
cenógrafo, iluminador, entre outros. Dito de outro modo, esse reconhecimento se coloca
do lado do público, é verdade, mas, principalmente, e antes de tudo, do lado daqueles
que fabricam o espetáculo. Tal como uma membrana celular, o leitor-profissional da
cena está dividido entre dois espaços: um totalmente virtual (o texto) e outro mais real
(o palco). Ele deixa passar por seus poros alguns elementos dessa virtualidade, que irão
alimentar sua criatividade. Já outros, ele retém, barra, quebra, segrega, acelera, expulsa,
construindo o espetáculo – e tudo isso a partir de sua leitura.
A citação de Zumthor dá a entender também que aquele que assiste a uma
performance deve ser remetido a um espaço diferente daquele em que está, deve ser
capaz de se deslocar de um “aqui-agora” para ir em direção ao outro. Reflitamos: o que
é uma leitura senão uma “brecha na eternidade”22
que nos permite, continuamente, estar
no presente e simultaneamente em outro espaço-tempo? A leitura torna possível estar
fisicamente em um espaço, sendo incessantemente reconduzido a um outro lugar.
“Infelizmente”, diz Peter Brook em O espaço vazio, tudo o que um texto teatral
“pode nos ensinar é que foi escrito em preto e branco, e não de que maneira nós, um dia,
lhe demos vida”.23
O mesmo, no entanto, não pode ser dito da leitura, pois os leitores
sempre deixam vestígios: eles são, como diz Michel de Certeau, viajantes, que
“circulam em terras alheias, nômades caçando através dos campos que eles não
7
escreveram”. Viajantes que deixam gravadas suas pegadas, o testemunho de suas
leituras na areia movediça dos textos de outrem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CAVALLO, Guglielmo ; CHARTIER, Roger (1997). Histoire de la lecture dans le
monde occidental. Paris: Seuil, 1997.
CHARTIER, Roger (1985). Pratiques de la lecture. Paris : Payot-Rivages, 1985
COUTANT, Philippe (dir.). Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca
seria, 2010.
DE CERTEAU, Michel (1990). L’invention du quotidien. Paris: Gallimard, 1990.
FERNANDES, Silvia (2010). « Notas sobre a dramaturgia contemporânea » In:
Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
FINGERMANN, Dominique (2010). “O tempo de uma análise” in Heteridade 8: São
Paulo, AFCL, 2010.
MEDEIROS, Francisco (2012). « Words in progress : texto teatral e leitura no teatro
contemporâneo » In : Revista Manuscrítica n. 22. São Paulo: USP, 2012.
PAVIS, Patrice (1982). Languages of the stage. New York: Performing Arts Journal
Publications, 1982.
PAVIS, Patrice (1996). Dictionnaire du théâtre. Paris: Dunot, 1996,
SOBRAL, Maria (2010). « Une adaptation contemporaine de La religieuse portugaise à
l’IFP » In : Lepetitjournal-com (Accès le 01/07/2013).
THIBAUDAT, Jean-Pierre (2007). Le Roman de Jean-Luc Lagarce. Besançon : Les
Solitaires Intempestifs, 2007.
ZUMTHOR, Paul (1990). Performance, Réception, lecture. Québec: Le Préambule,
1990.
NOTAS
*Mestre em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo (FFLCH- USP), título obtido
com a defesa da dissertação Brechas na Eternidade: Tempo e Repetição no teatro de Jean-Luc Lagarce
(2011). 1 CHARTIER, Roger (1985). Pratiques de la lecture. Paris: Payot-Rivages, 1985, p.07.
2 FERNANDES, Silvia (2010). “Notas sobre a dramaturgia contemporânea” In: Teatralidades
contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.154. 3 CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (1997). Histoire de la lecture dans le monde occidental.
Paris: Seuil, 1997, p.09 4 ZUMTHOR, Paul (1990). Performance, Réception, lecture, Québec: Le Préambule, 1990.
5 FERNANDES, Silvia (2010). “Notas sobre a dramaturgia contemporânea”, op. cit., p.154.
6 PAVIS, Patrice (1996). Dictionnaire du théâtre. Paris: Dunot, 1996, p.405.
7 PAVIS, Patrice (1982). Languages of the stage. New York: Performing Arts Journal Publications, 1982,
p.140. 8 FINGERMANN, Dominique (2010). “O tempo de uma análise” in Heteridade 8: São Paulo, AFCL,
2010. “[...] O tempo, isto é, a sequência de intervalos regulares, tornados sensíveis pelo retorno periódico
de algum marco”. 9 DE CERTEAU, Michel (1990). L’invention du quotidien. Paris: Gallimard, 1990, p. 247.
10 Companhia paulistana formada em 2006, radicada em São Paulo e composta por Paulo Arcuri, Ligia
Borges, Roberta Stein e Francisco Wagner. 11
TEATRO DA TRAVESSIA (2010). Projeto Dias Raros. São Paulo, acervo pessoal. 12
TEATRO DA TRAVESSIA (2010). Projeto Dias Raros. São Paulo, acervo pessoal.
8
13
SOBRAL, Maria (2010). « Une adaptation contemporaine de La religieuse portugaise à l’IFP » In :
Lepetitjournal-com (Acesso em 01/07/2013), grifos meus. 14
MEDEIROS, Francisco (2012). “Texto teatral e leitura no teatro contemporâneo” In: Revista
Manuscrítica n. 22. São Paulo: FFLCH-USP, 2012. 15
FILLON, Nathalie (2010). Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca seria, 2010, p. 23. 16
AUBERT, Marion (2010). Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca seria, 2010, p. 11. 17
LESCOT, David (2010). Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca seria, 2010, p. 29. 18
Para ver a opiniões diferentes com relação à noção de passagem do texto ao palco, ver os depoimentos
de Wadjdi Mouawad e Jöel Pommert In : Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca seria,
2010, p. 38 e 51 respectivamente. 19
ZUMTHOR, Paul (1990). Performance, Réception, lecture, Québec: Le Préambule, 1990, p. 34. 20
Ver COHEN, Renato (2004). A performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. 21
Idem, p.41. 22
THIBAUDAT, Jean-Pierre (2007). Le Roman de Jean-Luc Lagarce. Besançon : Les Solitaires
Intempestifs, 2007, p. 38. 23
BROOK, Peter (1968). L’espace vide. Paris: Seuil, 1977, p.28.
O TEATRO OPRESSIVO DE ANCHIETA NO BRASIL COLONIAL: UMA
ANÁLISE RESIDUAL OPRESSIVA MEDIEVAL CATÓLICA NA OBRA
“AUTO DA PREGAÇÃO UNIVERSAL”.
Francisco Wellington Rodrigues Lima (Professor do Curso de Licenciatura em Teatro
da Universidade Regional do Cariri e Doutorando em Literatura Comparada pela
Universidade Federal do Ceará)
O teatro medieval, graças à mentalidade constituída pela Igreja Católica, trouxe
à cena a representação do Diabo e do Inferno, de Deus e do Céu, de Anjos e demônios,
Santos etc. O Mal, por exemplo, através das artes cênicas, difundia-se com maior
eficiência na mente do povo cristão e, cada vez mais, o pensamento católico cristão se
firmava na sociedade medieval. As peças teatrais mostravam representações pavorosas
e, algumas vezes, risíveis sobre a figura do Mal. No teatro vicentino, por exemplo, o
Diabo representava, simbolicamente, papéis diversos: era juiz, acusador, relator dos
pecados humanos, tentador, ludibriador etc; recebeu caracterizações e denominações, de
acordo com o imaginário popular do período medieval, que o marcaram para sempre:
Satã, Belial, Satanás, Lúcifer etc; tornou-se ridículo diante dos anjos e outros seres
divinos; cômico quando se enredado por causa de sua tolice ou quando se colocava em
situações de fracasso, derrota; é ainda causador do riso quando insultado, humilhado e
enganado. Dessa forma, a Igreja Católica impôs o seu poder, seus dogmas e
pensamentos que tanto condenavam quanto salvavam.
Contudo, foi esse pluralismo ideológico de pensamentos e mentalidades que se
projetou na sociedade cristã medieval, através do teatro, que serviu de subsídios para o
desenvolvimento desse artigo, uma vez que este transcorrerá em torno de uma das obras
mais contundentes do Padre José de Anchieta: “Auto da Pregação Universal”. Para tal,
buscamos fundamentação teórica na Teoria da Residualidade Literária e Cultural,
elaborada e sistematizada por Roberto Pontes e na Literatura Comparada, visando
assim, entender a projeção residual da opressividade católica cristã no teatro
quinhentista brasileiro de Anchieta.
Roberto Pontes empregou o termo residualidade inicialmente em sua dissertação
de mestrado, atualmente publicada em livro, cujo título é Poesia insubmissa
afrobrasilusa (1999), tendo por objetivo demonstrar a presença de resquícios do
passado que, ao longo do tempo, acumularam-se na mente humana e que são refletidos
em textos de forma involuntária através de estruturas atualizadas (1).
Os termos resíduo, residual e residualidade, na concepção de Roberto Pontes,
têm sido empregados relativamente ao que resta ou remanesce na Física, na Química, na
Medicina, na Hidrografia, na Geologia e em outras ciências, mas na Literatura (história,
teoria, critica e ensaística) quase não se tem feito uso dos mesmos (MARTINS, 2000, p.
264).
Ainda segundo Roberto Pontes, resíduo é “aquilo que remanesce de uma época
para outra e tem força de criar de novo toda uma obra, toda uma cultura”, independente
do tempo e espaço, de modo involuntário, mediante a um processo mental (coletivo),
tendo, para tal, os seguintes conceitos operacionais: residualidade (2), cristalização (3),
mentalidade (4) e hibridismo cultural (5). (PONTES, 2006, pp. 01-03). Bem sabemos
que na cultura do povo brasileiro, inclusive no período da colonização, muitos
resquícios da época medieval cristalizaram-se como elementos vivos na mentalidade da
sociedade que aqui se formava, substratos mentais, difundindo, por exemplo, uma
representação fértil do que remanesceu acerca dos dogmas da Igreja Católica européia
no Brasil, mesclando-se, engenhosamente, a cultura indígena cá existente, corpus
central de nosso estudo, como bem representou Anchieta no Teatro Quinhentista
Brasileiro. Ainda conforme Pontes, o resíduo “não é um cadáver da cultura grega ou da
cultura medieval que deve ser reanimado nem venerado num culto obtuso de exaltação
do antigo, do morto... não é isso... fica como material que tem vida” (PONTES, 2006, p.
02).
Seguindo as linhas mestras de Paulo Romualdo Hernandes (2008), Anchieta
seria o santo que a Igreja Católica tanto necessitava. Considerado herói nacional, o
jovem membro da Companhia de Jesus, segundo a concepção histórica da literatura, foi
o “primeiro estrangeiro a escrever em brasileiro” (HERNANDES, 2008, p. 15).
Anchieta conviveu com múltiplas culturas (africana, européia, indígena) até os
seus 14 anos. Quando chegou à Europa, ainda na juventude, entrou em contato com o
período de maior efervescência das idéias humanistas. O convívio com professores
humanistas o colocava diante de peças com temas bíblicos, realizadas nos pátios do
Colégio das Artes, de peças com tradição estética inspirada em temas da tragédia e da
comédia Greco-romana. Nessa mesma época, século XVI, Portugal vivia o período da
Santa Inquisição e, os autos, como encenação dramática, se fortaleciam, trazendo
elementos da tradição medieval para o teatro renascentista. Com efeito, segundo
Eduardo Navarro (1999), naqueles anos, eram populares os autos de Gil Vicente, fato
que nos revela, na obra de Anchieta, grande influência, seja no conteúdo, na forma ou
no uso de alegorias e personagens.
Com a produção literária e dramatúrgica de Anchieta, inegavelmente, a história
da vida cultural brasileira teve início. Seu interesse pelo nativo aparece não só como
“objeto de especulação literária, mas também como condição de pessoa humana, como
vínculo de cultura e, mais do que isso, como elemento de fixação de cultura”
(FERNANDES, 1980, p. 45). Com o objetivo da evangelização, Anchieta soube
explorar as manifestações indígenas, seus hábitos e crenças. No entanto, não podemos
deixar de lado, certas condições de opressividade impostas pela Igreja Católica que
marcaram a dramaturgia do referido padre jesuíta.
O Auto da Pregação Universal é a primeira peça de Anchieta, representada,
provavelmente, pela primeira vez, em 1561, no natal, a pedido do Padre Manuel da
Nóbrega. O auto agradou inteiramente a todos e repetiu-se por toda a costa brasileira,
com adaptações maiores ou menores, mediante as circunstâncias de tempo e espaço.
Recebeu esse nome pelo fato de estar escrito em três línguas - o português, o tupi e o
espanhol – podendo alcançar todo o público da época. (CARDOSO, 1977)
O enredo, reconstituído pelos pesquisadores do teatro anchietano, com base no
Caderno de Anotações do padre missionário, tem cinco atos, segundo a edição proposta
pelo Padre Armando Cardoso (1977). O primeiro e o quinto são compostos por um
poema longo sobre um conhecido tema medieval, o Pelote Domingueiro (6). Neles,
canta-se uma alegoria da história do pecado: um moleiro (Adão) perde a sua veste de
domingo (a graça de Deus), roubada por um ladrão (o Diabo). Com a perda, o moleiro
torna-se um desgraçado, até que sua veste seja recuperada, fato que ocorre no quinto
ato. O neto do moleiro (Jesus Cristo), com sua mãe, a filha do moleiro (Maria), tece
nova veste (a graça de Deus) para o avô (Adão, homem caído), com seus trabalhos de
salvação (Encarnação, Circuncisão, Paixão), e lhe restitui com a veste a alegria festiva.
No segundo ato, deparamo-nos com a luta dos anhangás (Guaixará e Aimberé) contra o
Karaibebé (Anjo). Conseqüência da primeira queda do homem, os dois diabos,
Guaixará e Aimberé, mostram o mal que fazem por todas as aldeias indígenas,
pervertendo os índios com os pecados mundanos. O Anjo da guarda da aldeia,
condescendente em ouvi-los a princípio, acaba por expulsá-los, exortando os índios à
vida cristã com a graça de Jesus e a proteção da Virgem Maria. No terceiro ato, temos o
desfile de doze pescadores brancos, amarrados pelos diabos, a narrar suas misérias
diante do presépio, com esperança de serem atendidos pela graça divina. No final, todos
são absolvidos e ficam libertos das correntes, simbolizando o perdão pelos pecados
cometidos. No quarto ato, temos a dança dos meninos, com versos em português,
espanhol e tupi.
De acordo com o enredo, há no texto de Anchieta uma alusão a três grandes
festividades do calendário cristão: a festa de Natal (25 de dezembro), à Circuncisão (1
de janeiro) e à festa dos Reis Magos (6 de janeiro). Trata-se de três momentos festivos
oriundos da Península Ibérica medieval que se enraizaram no Nordeste do Brasil de
forma profunda e diversificada (7). São tradições antigas, mas que ainda permanecem
em nossas memórias na forma de resíduos. Detalhe: impostos pela Igreja Católica e pela
Missão Jesuítica em nosso território contra toda uma tradição cá existente: a do
indígena, em especial.
Como nosso corpus de pesquisa gira em torno dos resíduos opressivos da Igreja
Católica Medieval no Brasil Colonial na obra de Anchieta, vejamos nesse momento
apenas o primeiro e o quinto atos do auto em análise, que fala do Pelote Domingueiro.
Leiamos a versão de Anchieta do Pelote Domingueiro e a atuação/representação do
Diabo medieval, símbolo de medo e opressividade, na obra do padre jesuíta:
ATO I
Já furtaram ao moleiro/o pelote domingueiro.
Se lho furtaram ou não,/bem nos pesa a nós com isso!
Perdeu-se com muito viço/o pobre moleiro adão.
Lúcifer, um mal ladrão/lhe roubou todo o dinheiro/co’o pelote domingueiro.
(...)
Era uma peça, a mais fina/de todas quantas tivera.
Se ele bem a defendera,/não jogaram de rapina.
A cobra ladra e malina/com inveja do moleiro,/apanhou-lhe o domingueiro.
(...)
Nesse momento do primeiro ato, O Diabo é representado como “um mal ladrão”
por furtar o Pelote Domingueiro. Podemos perceber ainda uma das suas principais
denominações no imaginário popular: o nome de Lúcifer que lhe é atribuído no texto.
Outro dado a ser ressaltado é a forma híbrida dirigida ao representante do Mal, “cobra
ladra e malina”, formas estas que provocavam medo e opressão no público da época.
Além disso, é possível detectar outros caracteres do Diabo medieval na obra de
Anchieta como o fato dele ser astucioso, sorrateiro, invejoso e maligno. Leiamos outro
fragmento da obra anchietana em que o Diabo, metaforicamente, seduz Eva para furtar
o Pelote Domingueiro :
(...)
A mulher que lhe foi dada,/cuidando furtar maquias,
com debates e porfias/foi da culpa maquiada.
Ela nua e esbulhada,/fez furtar ao moleiro/o seu rico domingueiro.
Toda bêbada do vinho/da soberba, que tomou,
o moleiro derrubou/no limiar do moinho.
Acodiu o seu vizinho/Satanás, muito matreiro,/e rapitou-lhe o domingueiro.
(...)
Ele, como se viu tal,/escondeu-se de seu amo,/encobrindo-se com um ramo
debaixo dum figueiral,/porque o ladrão infernal/nos ramos dum macieiro/lhe rapou seu
domingueiro.
Nesse trecho, o Diabo aparece como soberbo e sob a denominação de Satanás,
outro nome importante que geralmente lhe é atribuído. Além disso, é possível verificar,
de forma metafórica, o momento em que Eva se deixa seduzir por Satanás e a queda
primeira do homem: “Toda bêbada do vinho/ da soberba, que tomou, / o moleiro
derrubou”. Aqui, Anchieta faz uma alusão ao pecado original através do rapto do Pelote
Domingueiro pelo Diabo. Dessa forma, o Diabo se consagrava como podemos observar,
como um ser perigoso, que provocava males e impunha medo. E quando lemos “porque
o ladrão infernal / nos ramos dum macieiro / lhe raptou seu domingueiro”, lembramos,
rapidamente, do Diabo na forma de serpente do Jardim do Édem, conforme podemos
encontrar na Bíblia (2009). Vejamos:
Mas, a serpente era o mais astuto de todos os animais da terra que o Senhor
Deus tinha feito. E ela disse a mulher: por que vos mandou Deus que não
comêsseis de toda a árvore do paraíso?
Respondeu-lhe a mulher: nós comemos do fruto das árvores que estão no
paraíso. Mas do fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos
mandou que não comêssemos, nem a tocássemos, não seceda que morramos.
Porém, a serpente disse à mulher: bem podeis estar seguros que não
morrereis de morte. Porque Deus sabe que em qualquer dia que vós comais
desse fruto, se abrirão vossos olhos; e vós sereis como uns deuses,
conhecendo o bem e o mal.
Viu pois a mulher, que a árvore era boa para comer, e formosa aos olhos, e
deleitável à vista: e tirou do fruto dela, e comeu e deu a seu marido, que
também comeu.
No mesmo ponto se lhes abriram os olhos; e tendo conhecido que estavam
nus coseram umas folhas de figueira, e fizeram para si umas cintas.
E Adão e sua mulher, como tivessem ouvido a voz do Senhor Deus, que
passeava pelo paraíso, depois do meio-dia, quando se levantava a viração,
esconderam-se da face do Senhor Deus no meio das árvores do paraíso.
E o Senhor Deus chamou por Adão, e lhe disse: onde estás?
Respondeu-lhe Adão: eu ouvi a tua voz no paraíso, e tive medo, porque
estava nu; e por isso me escondi.
Disse-lhe Deus: donde soubeste tu que estavas nu, senão porque comeste da
árvore de que eu te tinha ordenado que não comesses?
Respondeu Adão: a mulher, que tu me deste por companheira, deu-me da
árvore, e eu comi.
E o Senhor Deus disse para a mulher: por que fizeste tu isto?
Respondeu ela: a serpente me enganou, e eu comi. (GÊNESIS, 3:1-13).
Comparando os textos acima, podemos observar que o pelote domingueiro,
poesia popular medieval, adaptada ao contexto religioso/bíblico imposta pela Igreja
Católica Medieval no Brasil Quinhentista, trouxe para a época um efeito singular:
resíduos do Diabo cristão medieval e da história do primeiro pecado humano. Resíduos
de medo e opressividade provocados por uma mentalidade fértil em torno de uma das
figuras mais contundentes da história da humanidade: o Diabo. Tanto na peça de
Anchieta como no texto bíblico, o Diabo, na forma de serpente, é representado como
pecaminoso; faz, em Anchieta, o parvo perder seu domingueiro (a graça divina) e, na
passagem bíblica, faz o homem perder a sua pureza – que também simboliza a graça de
Deus. Portanto, nessa obra anchietana, detectamos uma referência à tentação, à queda
primeira e a promessa de redenção do homem, representando assim, o poder e os
dogmas do Cristianismo Medieval no Brasil Colonial. Da mesma forma podemos
encontrar tais referências no teatro de Gil Vicente (Vol. II, 1959), mas precisamente no
Auto da História de Deus, texto que demonstra elementos de residualidade cultural e
literária dos dogmas da Igreja Católica do período Medieval que se cristalizaram na
mente do povo brasileiro, no século XVI. Leiamos o trecho do Auto da História de
Deus (Vol. II, 1959, p. 171) que ressalta a queda do primeiro homem e a atuação do
Diabo nesse contexto:
LÚCIFER
Vai tu, Satanás, por embaixador,/eu te dou meu comprido poder;/e vai-te a Eva, porque é
mulher,/e dize que coma, não haja temor;/e, como avisado,/lhe fala cortês e mui repousado,/mostrando-te
alegre com todo seu bem,/e seu muito amigo maior que ninguém:/minte-lhe largo, e dá-lhe o cuidado/que
agora não tem.
Vem tomar graça, pois hás-de pregar/à mais avisada senhora do mundo:/eu te outorgo meu poder
facundo./Não hajas dó dela, faze-a fiar,/destruí-la asinha; (...)
LÚCIFER
Faze-te cobra, por dissimular,/porque pareças do mesmo pomar,/que sabes das frutas as graças
que tem;/porque hás-de dizer:/Senhora fermosa, deveis de saber/que aquela fruta que vos foi vedada/Oh!
Quanta ciência em si tem cerrada.
SATANÁS
Senhor Lúcifer, prazer i não há/que dê pelos pés ao vencimento,alegrai-vos muito e o nosso
convento,que vosso desejo comprido está.
já são derrubados/Adão e Eva os primeiros casados,/voltas as vodas em pranto mui forte,/o gozo
em lágrimas, a alegria em morte,/a vida em suspiros, prazer em cuidado,/ventura sem sorte.
(...)
Comparando as passagens do primeiro ato do Auto da Pregação Universal com
os dois textos colocados aqui, a passagem do Gênesis e a do Auto da História de Deus,
fica clara a residualidade em torno da figura do representante do mal na obra de
Anchieta e dos dogmas opressivos oriundos do Cristianismo Medieval que se projetou
na mentalidade da sociedade brasileira em pleno século XVI, uma sociedade, diga-se de
passagem, em formação, pois, nos fragmentos textuais do padre missionário são
resíduos do medievo e vicentino a representação do Diabo soberbo, tentador e
ludibriador; aquele que age de forma maléfica, dispondo ações do mal contra Deus e sua
mais nobre criação, o homem; o Diabo que provocou medo e opressão diante das
circunstâncias aqui apresentadas.
No quinto ato, Anchieta faz um desfecho para a história do rapto do Pelote
Domingueiro. Nesse momento, fala-se mais uma vez do furto realizado pelo Diabo e da
conquista do pelote por parte de Jesus. Leiamos:
Ato V
Já tornaram ao moleiro/o pelote domingueiro/o Diabo lhe furtou/o pelote por enganos.
Mas, depois de muitos anos,/um seu neto lho tornou;/por isso carne tomou/duma filha do
moleiro,/por pelote domingueiro.
(...)
Viva o segundo Adão,/que Jesus por nome tem!
Viva Jesus, nosso bem!/Jesus, nosso capitão!
Hoje, na circuncisão,/se tornou Jesus moleiro/por tornar o domingueiro!
Passemos agora a análise do terceiro ato, momento em que acontece um desfile
de pescadores brancos amarrados pelo Diabo, que, segundo o texto, foram castigados
por terem sido desleais com o povo e com os dogmas da Igreja Católica. Leiamos os
fragmentos do texto a seguir que trazem nas falas dos pescadores os pecados por eles
cometidos e os pedidos de demência à Virgem Maria:
(4 PEDRO COLAÇO)
Pois que temo o mal eterno,/porque me prendo com o laço/do pecado que é baraço
a me arrastar para o inferno,/que é dos diabos o paço?
Ao pobre Pedro Colaço/salvai-o, Virgem clemente!/Pois quem tanto a pena sente
desse tenebroso espaço,/como se prende a corrente?
(6 ANTÃO VILHENA)
Eu mesmo, por meu querer,/ao pecado me entreguei;/com ele minha alma atei,/sem nunca amar e
temer/a Deus contra quem pequei.
Virgem Mãe do eterno Rei,/acalmai Antão Vilhena!
Pois estou cheio de pena/que eu, vilão, me procurei/com culpa que me condena.
Como podemos perceber, os pescadores, ao serem atormentados pelos diabos,
tentam se redimir de seus pecados, pedindo a graça e a proteção da Virgem. Perdoados
de seus atos, os pescadores ficam livres de suas culpas e as amarras caem. Esse trecho
da obra anchietana remete-nos ao Auto da Barca da Glória (Vol. II, 1959, p. 125), peça
em que cada personagem tem que prestar contas com o Diabo, que os lembra de suas
vidas de pecado e os convida a entrar na barca infernal. Mas, ao recitarem passagens do
ofício dos mortos e se redimirem de seus pecados, ganham a salvação eterna; todos são
salvos pelo próprio Cristo. Vejamos as passagens do auto vicentino:
CONDE
O muy preciosos remos,/socorred mi aflicion.
LIÇÃO PRIMEIRA
O parce mihi, Dios mio,/porque ensalza tu poderio/al hombre, y das señorío,
y luego del te desvias?/Com favor visitas eum al alvor,/y súpito lo pruevas logo:
porqué consientes, Señor,/que tu obra, y tu hechor,/sea desecha nel fuego? (...)
por mi sufrió el Messias.
(...)
DUQUE
O ángeles, qué haremos,/que no nos deja Satan? (...)
PAPA
Ó Pastor crucificado,/como dejas tu ovejas,/y tu tan caro ganado!
Y pues tanto te há costado,/inclina á él tus orejas.
Observando o texto de Anchieta e o de Gil Vicente, fica clara a aproximação
entre a obra vicentina e a anchietana. Portanto, a figura do Diabo em ambos os textos
aparece como um juiz que tenta condenar os indivíduos pecadores, mas é derrotado pela
Providencia Divina, por intercessão da Virgem Maria ou de Cristo, elementos
importantes criados pela Iigreja Católica para fortalecer seu pensamento, seus dogmas e
instalar o seu poder pelo mundo, inclusive, no Brasil quinhentista. Além da figura do
Diabo como juiz (perdedor e fracassado por não conduzir seus pretendentes ao fogo
infernal como mostra Anchieta), ainda podemos detectar uma outra característica
importante acerca desse ser diabólico que se cristalizou na mentalidade do povo cristão
medieval na Europa e no Brasil: o Diabo que foge enfurecido e com medo da presença
de seres divinizados, provocando assim, o riso sobre o Diabo; contudo, um riso
opressivo que, no final das contas, provoca medo e agonização.
Notas
(1) Hoje, a Teoria da Residualidade é registrada junto à Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-
Graduação da Universidade Federal do Ceará e ao Conselho Nacional de Pesquisa –
CNPq -, e sua propagação pelo universo da pesquisa ganha, a cada dia, mais espaço e
notoriedade entre alunos e professores pesquisadores do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Ceará e outras IES que reconhecem a
importância do termo no estudo da tradição cultural e literária de nosso País.
(2) Resíduo, Residual e Residualidade: refere-se a certas formações mentais que persistem
através de longas durações. É dotado de extremo vigor e não se confude com o arcaico.
É aquilo que remanesce de uma época para outra e tem a força de criar de novo toda
uma cultura ou obra literária; não é material morto e, sim, material que tem vida, porque
continua a ser valorizado e vai infundir vida numa obra nova. (PONTES, 2006, p. 03)
(3) A cristalização é a sedimentação de resíduos culturais de outras épocas em obras
contemporâneas. Trata-se de um modo coletivo de compreender a memória coletiva,
uma vez que é sempre resultante de um processo de modificações contínuas das
condições materiais. (PONTES, 2006, p. 03)
(4) A mentalidade é um conjunto difuso de imagens a que se referem todos os membros de
um mesmo grupo e está associada intrinsecamente ao resíduo. Trata-se de um campo
investigativo delimitado pela idéia de longo tempo dos componentes da École dês
Annales. (PONTES, 2006, p. 03)
(5) O hibridismo cultural explica que as culturas não seguem caminhos isolados: elas se
encontram, se fecundam, se multiplicam, proliferam; apresenta sempre a idéia de algo
resultante do cruzamento de culturas diferentes. Pode ser estudada pelo seu aspecto
literário, artístico ou sócio-cultural. (PONTES, 2006, p. 03)
(6) O assunto das Trovas do Moleiro vem da Idade Média. Ver ANCHIETA, José de.
Teatro de Anchieta. Vol. III. Originais acompanhados de tradução versificada,
introdução e notas pelo Padre Armando Cardoso S.J. São Paulo: Loyola, 1977, p. 63.
(7) Ver Câmara Casacudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro, 11 ed. São Paulo: Global,
2002, pp. 416 – 580.
Bibliografia
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_______. Obras Completas. Com prefácio e notas do Professor Marques Braga. Vol. II,
3 ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1959.
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
O ESPECTADOR EM CENA: A FORMAÇÃO DE CORPOS INDÓCEIS NA PLATEIA, ATRAVÉS DA DESTERRITORIALIZAÇÃO DO ESPAÇO DE
REPRESENTAÇÃO TEATRAL. Getsêmane de Oliveira Machado; Orientador: Profa. Ma. Renata Kely da Silva; Universidade Federal do Ceará Introdução
Violar o espaço de representação teatral em que se configura uma distância entre
palco e plateia é pensar outras possibilidades criativas e de construção poética, estética, ética e, principalmente, política na encenação.
Nesse sentido, colocar o espectador em cena juntamente com os atores em um ambiente desterritorializado, “sem dono”, é, além de promover a mistura física, espacial e sensorial entre eles, (res)significar a própria obra em questão de maneira ativa, constantemente inédita, e que nela não se configure a existência de uma hierarquia social.
No que diz respeito à possibilidade da formação de corpos indóceis na plateia, é necessário compreender que sua justificativa, pelo menos enquanto proposição política, não deve se dar por causa exclusivamente de questões arquitetônicas, como se estas fossem as responsáveis unicamente por gerar ou atenuar diferenças sociais e de produção de pensamento crítico nas relações entre ator, obra e espectador.
Isso não é o que está em cheque, mas sim o fato de historicamente esse espaço de representação, simbolizado principalmente pelo palco em formato a italiana, ter sido utilizado pela aristocracia e burguesia para se gerar ou aprofundar relações estáticas e passivas para o espectador, tendo-se assim o uso da frontalidade propiciada pelo espaço com aparência de caixa como lhe servindo de bitola para não se enxergar além, subjetiva e criticamente.
Por outro lado, acreditar que somente pelo fato de se estar fora do palco italiano isso será garantia de que essas questões serão dissolvidas e/ou resolvidas é incorrer em um erro de compreensão quanto à forma e conteúdo de um espetáculo acontecido em um espaço não convencional. Ou seja, é o discurso proposto pela obra e suas respectivas linguagens de encenação (iluminação, figurino, atuação, sonoplastia etc.), assim como a experiência propiciada por ela, que serão capazes de justificar a escolha dessa maneira de se fazer teatro.
Se enquanto tal privilegiarem relações outras com a plateia, voltadas a acontecimentos os mais desprovidos possíveis de mecanismos de controle e dominação, atribuindo-lhe responsabilidades cada vez maiores, e condições para assumi-las, de coautoria do objeto artístico, sem julgamentos do que isso possa significar, é que de fato esse outro teatralizar fará jus ao que ele se propõe.
Sendo assim, ao se diminuir distâncias entre teatro (ficção) e vida (realidade) intervindo diretamente no modus operandi até então comumente entendido como sendo do espectador, elabora-se um fazer teatral onde seus resultados são voltados para
processos inesperados ou desesperados, onde iniciativas e soluções de se fazer e compreender a obra são oriundos, literalmente, de todas as partes envolvidas.
1. Um outro corpo para o espectador
“Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação;” (FOUCAULT, 2007, p. 25).
A importância do corpo para a história da humanidade se dá porque é nele, e
através dele, que se materializam os seus feitos. Ou seja, é pelo corpo (mente e físico), enquanto expressão da matéria, que o humano expressa sua existência de modo tangível e concreto. Sendo assim, o corpo torna-se um dos principais instrumentos a partir do qual as relações de poder são exercidas. Dominá-lo, controlá-lo, sujeitá-lo e afins, é garantir a continuidade de um status quo por parte de um sistema de caráter opressor, quer seja ele representado através do aparelhamento estatal ou das relações ordinárias cotidianas.
Ao longo da história, esse processo de se exercer poder sobre o corpo do outro também aconteceu com a figura do espectador. Todo um aparato tecnológico e político, dentro do campo do teatro e das artes, foi desenvolvido e aperfeiçoado ao longo do tempo por gerações e gerações, a fim de que a plateia assumisse seu papel como sendo o de apenas uma mera contempladora da obra artística.
Nesse lugar, ela acabou mais por se tornar reconhecedora de convenções e signos teatrais, e, quem sabe até, uma apreciadora disso. Como se fosse algo natural retroalimentou esse sistema tomando seu corpo, entendido para efeitos desse trabalho, principamente, como sendo sua mente, para ser mais um entre tantos, que punido e submisso torna-se produtiva economicamente como força de trabalho.
O teatro, como instituição, muitas vezes também serviu a esses interesses por causa e a partir de seus autores, espaços cênicos, artistas etc. Com o intuito de naturalizar essas relações, mesmo que por vezes inconscientemente, sobre ele também passou a residir as funções de vigiar e punir esses corpos e, assim, fomentar o surgimento de um espectador padrão.
“Há um trabalho feito por parte de quem percebe, assim como há um trabalho por parte do artista. Quem é por demais preguiçoso, inativo ou embotado por convenções para executar esse trabalho não vê nem ouve. Sua ‘apreciação’ é uma mescla de retalhos de saber com a conformidade às normas da admiração convencional e com uma empolgação afetiva confusa, mesmo que genuína.” (DEWEY, 2010, p. 137).
Diante disso, como propor um outro corpo para a plateia, que seja indócil por
natureza, contestadora, e dado a uma relação consigo que se volte para produção de sujeitos históricos?
Um dos caminhos passa pela possibilidade do teatro lhe conferir o vivenciar de uma outra experiência, tanto artística como de vida. Se não melhor, que pelo menos aja na contramão à descrita anteriormente. Isso implica dizer que ele deve oferecer ferramentas que levem seu público a criar e perceber outras possibilidades que transcendam ao simples fato de um reconhecimento sobre o que a coisa é: teatro. Na relação com a obra o espectador deve se sentir constantemente estimulado e desafiado a reinventá-la e, assim, também a sua própria vida.
“A percepção substitui o mero reconhecimento. Há um ato de reconstrução, e a consciência torna-se nova e viva. (...) O reconhecimento é fácil demais para despertar uma consciência vívida. Não há resistência entre o novo e o velho para assegurar a consciência da experiência vivida.” (DEWEY, 2010, p. 135).
2. Uma outra cena para o espectador
“Em suma, o público entrosa-se no espetáculo na medida em que é convidado a ser parte ativa: ele é, por exemplo, a floresta que os paladinos atravessam, montados em seus cavalos de zinco; ele é o mar cujas ondas vêm bater na praia da ilha onde Olímpia ficou abandonada e que Orlando alcançará a nado. Mais tarde, completamente envolvido, atacado e empurrado pelos sarracenos e pelos franceses que se enfrentam no cerco de Paris, o público é precipitado para dentro da batalha, participando sem querer de um combate no qual – como o Fabrício, de O vermelho e o negro, de Stendhal em Waterloo – ele se vê engajado e comprometido; tanto mais que os combatentes saltam dos seus carrinhos, enfrentam-se deitados no chão, no mesmo plano que ele, aos seus pés. No desfecho da batalha há feridos e mortos espalhados pelo chão, agonizando e gemendo. Alguns espectadores foram vistos precipitando-se piedosamente para tentar socorrê-los.” (ROUBINE, 1998, p. 107).
A citação acima refere-se à peça Orlando Furioso, de Luca Ronconi, apresentada na Itália em 1969. O espetáculo, apresentado como tal, é um exemplo de como se idealizar um outro espectador, pertencente a uma outra plateia, consciente de que sua atuação performativa será fundamental para sua experiência estética. Nessa ambiência, o fazer teatral acontece em um território de busca constante pela afetividade, onde atores e espectadores estão “frente a frente”, perto e longe, nos mais diversos planos, mas sempre uns com os outros de maneira sensível, porosa, transparente e atravessada pelo jogo cênico que a obra em questão lhes propicia. Nesse (não) lugar, geográfico e/ou imaginário, estruturado para ser eminentemente flexível e transformável, a percepção dessas personagens, de quem elas são, e da obra em si, é frequentemente desorganizada para que, por sua vez, isso ocasione os riscos e estopins necessários para gerar o desencadeamento das ações da representação.
“O espaço dividido em compartimentos por estrados de camas de metal. Em cima desses estrados, por onde circulam os intérpretes, estão sentados os espectadores. Iluminados pelos focos dos refletores, eles se
vêem uns aos outros como figuras componentes do universo do hospício. O mesmo ocorre no caso de Fausto, inspirado em Marlowe, montado em 1963. O espaço compõe-se de três mesas dispostas em forma de U. Como se fossem convivas do último banquete de Fausto, os espectadores ficam sentados em cima dos bancos, dos dois lados das mesas, em cima das quais evoluem os atores.” (ROUBINE, 1998, p. 103).
Nas peças encenadas por Grotowski, Kordian e Fausto, anos de 1962 e 1963, respectivamente, também é possível identificar possibilidades outras de deslocar o espectador da sua função habitual e assim colocá-lo em cena.
Os atores, ao se aproximarem do público e se misturarem com ele no ato da encenação, e vice-versa, o tornam parceiro de criação desse teatro e da obra proposta. O próprio entendimento do que seja ser ou estar espectador começa a ser questionado e, possivelmente, até desconstruído, gerando-se assim o início de uma revolução para a plateia, agora formada a partir de uma sensibilização outra, de cunho estético-poético-político capaz de propor para si uma experiência ativa e repleta de singularidade.
Ao se viver o espetáculo, e não apenas contemplá-lo à distância e passivamente, o público pode vir a adquirir status de protagonista porque ele é quem vai, estranhamente, gerá-lo para si e seus facilitadores, aqui entendidos como atores, diretores e dramaturgias. Considerações finais
“O vazio no teatro permite que a imaginação preencha as lacunas. Paradoxalmente, quanto menos se oferece à imaginação, mais feliz ela fica, porque é como um músculo que gosta de se exercitar em jogos.” (BROOK, 2011, p. 23).
Nessa outra forma de se pensar no espectador de teatro, colocá-lo diante do vazio
para abrir mão dos pressupostos até então adquiridos, quanto à forma de se entender como tal, é levá-lo a estar disponível para vivenciar constantemente o novo, deparando-se inúmeras vezes e/ou ao mesmo tempo com a sensação de incapacidade do não se saber onde se vai chegar durante esse processo. Nesse sentido, será mais importante para ele o meio do que o fim, a jornada do que o destino, visto que este será uma resultante natural da combinação das mais diversas possibilidades que o caminho percorrido lhe mostrou e que também poderiam ser elas objeto de sua escolha quanto ao modo de se apropriar da experiência cênica vivida.
Levar a plateia a um estado de presença, nesse contexto, torna-se então um dos mais relevantes princípios pelo qual se deve operar na criação e produção de uma representação teatral, através da desterritorialização do espaço. Dessa forma, isso torna-se extremamente necessário para que o público possa vivenciar as relações cênicas que lhes são propostas, disponibilizando-se integralmente para o que quer que elas sejam e estejam. É se estando presente que provavelmente vai se gerar no espectador a atenção e a tensão capazes de aumentar sua capacidade de escuta mediante aquilo que acontece no palco e fora dele, para nesse exato instante, tomado pelo ineditismo e, concomitantemente, efemeridade do momento, dar respostas de atuação que se façam críveis para a representação teatral.
“A percepção é um ato de saída da energia para receber, e não de retenção da energia. Para nos impregnarmos de uma matéria, primeiro temos de mergulhar nela. Quando somos apenas passivos diante de uma cena, ela nos domina e, por falta de atividade de resposta, não percebemos aquilo que nos pressiona. Temos de reunir energia e colocá-la em um tom receptivo para absorver.” (DEWEY, 2010, p. 136).
Desorientar o espectador, recorrentemente lhe ocasionar surpresas, desconforto,
fazê-lo se movimentar pelo espaço, se comunicar com seu corpo, voz etc., são algumas das maneiras de alterar sua percepção habitual, a fim de torná-lo performador de uma experiência ativa e de uma obra aberta, pelo menos no momento em que ela acontece. Imergi-lo em uma relação cênica que lhe estimule a extrair dela o máximo de vivências é oportunizar o surgimento de outros modos de se entender teatro e o que isso tem a ver com a vida.
A democratização do espaço cênico através da sua violação e desterritorialização também é um pano de fundo possível para a criação de uma plateia autônoma, não fabricada nem produzida em série para o mercado, onde seja estimulada a formação de um sujeito histórico, incluso, politizado, que age mediante o resultado de um pensamento crítico voltado para seu bem comum e da sociedade em que vive, privilegiando em suas ações atos libertários, porém, igualmente de justiça.
Nesse “informe” lócus de representação e comunicação, onde todos tornam-se personagens ativos de uma mesma história, e de sua própria existência dentro dela, a encenação pode vir a adquirir caráter de instrumento político-pedagógico para formação de corpos indóceis, geradores de potência de vida através de um processo artístico latente de ensino-aprendizagem, criticidade e fruição para quem dele participa.
Bibliografia BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro; tradução Antonio Mercado. – 7a ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. – 3a ed. – São Paulo: Hucitec, 2011. (Pedagogia do Teatro) DEWEY, John. Arte como experiência; org. Jo Ann Boydston; tradução Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010. (Coleção Todas as Artes) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução Raquel Ramalhete. – 34a ed. – Rio de Janeiro: Vozes, 2007. GUINSBURG, J. & FERNANDES, Sílvia, (Orgs.). O pós-dramático; São Paulo: Perspectiva, 2010. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral; tradução Yan Michalski. – 2a ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
PARSIFAL: UMA ÓPERA EM BUSCA DA CENA
João Martins de Mesquita Junior
Orientador: Héctor Andrés Briones Vásquez
Instituto de Cultura e Arte - ICA
Universidade Federal do Ceará – UFC
Pretendo com esse artigo verificar as influências que as inovações modernistas
têm e/ou tiveram sobre a cena atual, em um modernismo tardio, para utilizar um termo
de Stuart Hall. Para tanto, proponho uma análise de duas montagens da ópera Parsifal,
de Richard Wagner. A primeira feita pelo próprio, em Bayreuth e a segunda elaborada a
partir das visões de Adolphe Appia e Gordon Craig por Wieland Wagner neto de
Richard Wagner com o desejo de reavivar a casa de espetáculos a partir da grande obra
do avô. Após destacar essas influências pretende-se descobrir como elas chegaram até
essa modernidade tardia, se puramente, ou se reprocessadas pelos indivíduos que a
compõe, e se for o caso, explicitar que tipo de individuo é esse, aos olhos de Stuart hall.
É preciso, antes de tudo, traçar a linha condutora que trouxeram tais inovações.
Roubine (1998) destaca duas fundamentais características da era moderna: o surgimento
do encenador e a iluminação elétrica, advento da revolução tecnológica. Entenda-se que
o teatro antes de entrar nessa era moderna era regido por outros ditames (quais?). As
encenações eram seguidas por normas rígidas, tais como as unidades de tempo, espaço e
ação, propostas por Aristóteles. Os atores eram guiados em cena – “sigam as indicações
de um ‘diretor’” (utilizo as aspas, pois de fato não se trata da figura do diretor como
conhecemos hoje) que apenas organizava a ordem de entrada e saída do palco. Na
própria época de Wagner, o edifício teatral não tinha necessariamente como principal
meta o ato de “ver” a peça, mas sim o de propiciar o encontro social, as pessoas iam
para serem vistas. Não havia distinção da iluminação entre palco e plateia. A iluminação
era feita por velas e mais tarde a gás. No palco predominava as luzes de ribalta. Mas
como essa “simples” mudança de fonte de iluminação e a chegada desse encenador
mudaram substancialmente o como era feito o teatro?
O ato de apagar as luzes na plateia (uma das contribuições de Wagner) muda à
função do teatro (edifício), o público deixa de se observar e passa a ver a peça. A obra
artística ganha mais status nesse ajuntamento social. Ele foi o primeiro a apagar as luzes
1
da plateia quando ainda eram a gás, assim ele volta à atenção para o que se passava em
cena. Creio que assim a peça deixa de ser uma desculpa para esse encontro social e
passa a ser o encontro de ideologias, fomentando e estimulando embates políticos e
filosóficos sobre as encenações – não retiro aqui o mesmo mérito de encenações
anteriores a esse experimento, pelo contrario, a exemplos das peças de Shakespeare
capazes de suscitar tais questionamentos, ou até mesmo à famosa batalha de Hernani, de
Victor Hugo, que pôs frente a frente classicistas e românticos. O certo é que o palco
ganhava com a eletricidade, em termos de recursos técnicos, uma luz mais “precisa”,
direcionada, capaz de aproximar o espectador. Esse ato de escurecer a plateia e manter o
palco iluminado traz o público para dentro da cena, é como se ampliássemos os seus
sentidos, recortando o que eles devem ver (que é o que esta em cena). Com o controle
do gás para a iluminação cênica, foi possível regular a quantidade de luz no palco.
Sendo possível criar áreas mais iluminadas e outras menos iluminadas em cena e assim
promovendo um jogo cênico com a luz. O que abri uma maior possibilidade de camadas
de significação e cria uma maior ilusão teatral mostrando o que deve ser visto e
ocultando o que não precisa ser visto.
O encenador também é de grande importância para o avanço do teatro moderno,
pois aquele “diretor” (que apenas guiava as entradas e saídas) se torna um “espectador
especializado”, para usar o termo de Grotowski. De sua ótica surgem vários avanços
cênicos que acompanham as vanguardas modernistas – naturalismo, realismo,
simbolismo e outras –, sempre querendo estabelecer um novo movimento poético (os
ismos) em contraposição a um velho, desgastado. Esses movimentos de vanguarda são
importantes para se pensar o sujeito moderno, tendo em vista que antes, ele era pautado
em bases sólidas, em modelos de unidade, onde ele era tido como uno “indivisível”
(HALL, 2006, pág.25). E essa tendência ao “novo” que as vanguardas trazem
juntamente com esse caráter de negação do que está estabelecido vem gerar uma
descentração do sujeito, pois o “sujeito moderno “nasceu” no meio da dúvida” (HALL,
2006, pág.26). Identifico aqui um dos indícios da fragmentação do sujeito que irá
reverberar no sujeito do modernismo tardio. E não que isso venha a ser algo negativo
para a cena teatral, mas que tornará possível ou tolerará, diversos conceitos e poéticas
teatrais em cena, mesmo que contraditórias posto que elas não se opõem e sim
coexistem.
2
Levantada essas questões passemos para Parsifal de Richard Wagner, ópera
montada em Bayreuth, em 1882. Se olharmos as imagens disponíveis dessa montagem
de Parsifal veremos os moldes do teatro feito no século XIX. Um painel pintado ao
fundo, como de costume – esses painéis eram confeccionados em diferentes locais, pois
para cada tipo de “ambiente” haveria um especialista – os atores/cantores posicionados
sempre a frente do palco, no proscênio. O pé direito do palco muito alto para abranger o
enorme painel, fazendo com que os atores pareçam minúsculos frente ao painel, e assim
gerar a ilusão de uma grande floresta. Um palco sem profundidade, bidimensional.
Atores achatados ao painel. Essas são possíveis leituras a partir da imagem, que
representa uma floresta, árvores gigantes. Mesmo Richard Wagner tendo toda sua
concepção sobre uma arte total – que consistia na integralização das linguagens
artísticas, tais como a música, a poesia e o teatro, para a composição de uma liturgia
cênica (Gesamtkunstwerk). Ele desejava devolver seu caráter sagrado e litúrgico
Roubine destaca:
[...] que a prática avalizada, e provavelmente pretendida, por Wagner estava bem atrás de sua audácia teórica. Ele se situava na continuidade dos mesmos hábitos, rotinas e técnicas que o século XIX impusera à representação lírica: cenários de tecido [...] entulhamento do palco [...] imobilização do cantor entregue a si mesmo e voltado para os [...] estereótipos gestuais... (2003, p. 160)
É perceptível que a arte teatral se encontrava presa a velhos costumes. Os atores
mantinham uma velha escola de atuação onde os clichês construíam a interpretação.
Mas por que a práxis de Wagner não acompanhou sua audácia teórica? Questiono-me
sobre isso, mas entendo que seja comum a homens a frente de seu tempo. A
modernidade ainda não possuía os equipamentos necessários para tornar o pensamento
dos encenadores/dramaturgos/cenógrafos praticáveis, o que não os impediu de deixar
sua teoria a posteriori.
Passemos para a outra Parsifal, construída sobre o pensamento de Adolphe
Appia e Gordon Craig, montada por Wieland Wagner, neto de Richard Wagner. O teatro
de Bayreuth insistia com as velhas montagens nos padrões passados, graças a Cósima
Wagner, mulher de Richard Wagner, que coordenava o teatro após a morte do marido.
Ele se interessou pelos esboços realizados por APPIA para Parsifal e deles partiu para
realizar a nova montagem. Para entendermos melhor analisemos os esboços de Appia
para Parsifal, feito em 1896. No esboço encontramos um cenário ocupado por grandes
colunas intercaladas entre si e dispostas ao longo do palco, aproveitando o máximo a
3
profundidade do palco. A profundidade se destacaria com o recurso da luz sobre as
colunas que projetariam suas sombras pelo palco, promovendo um jogo de sombra e luz
que influenciaria perspectiva da cena. Em termos comparativos essa versão de Appia é
bastante diferente da de Richard Wagner (Vale a pena colocar que esta comparação foi
realizada pelo professor/orientador na disciplina de Apreciação Cênica, dando a
entender outros modos de procedimentos e de percepções cênicas). Aqui não
encontramos um elemento fechado (no sentido de uma representação, de algo
figurativo). O cenário, por se só, não delimita logo de cara um ambiente fixo (floresta),
ele brinca com as sensações do público permitindo que a definição do que seria o
cenário, ou local onde se passa a cena, comece no raciocínio do espectador. O palco
ganha profundidade, perde aquele caráter bidimensional que tinha na montagem
anterior. É uma cena sugestionada, sinestésica. Ela convida o espectador a decifra-la,
não se prende a um caráter naturalista/realista do que seria a floresta em Parsifal. O
espaço é transformado pela cenografia. A luz dar cor, dar vida a cena. É preciso lembrar
que essas influências, propostas por Appia vem do movimento simbolista – tal
movimento tinha a proposta de romper com o realismo/naturalismo em cena, afastando
a identificação característica do movimento contrario e trazendo para a cena algo mais
próximo do irreal, do sonho, do onírico – ao qual Craig também faz parte.
Sobre Craig ele não se diferencia muito de Appia no que se trata de luz e
algumas concepções cênicas. Craig vai buscar nas obras wagnerianas o estimulo para
seus pensamentos. Wagner acreditava na integração das artes para a realização do
fenômeno artístico, Craig comungava dessa ideia tanto que desenvolveu a figura do
régisseur. Toda a obra artística seja o ator, a música, o cenário, a luz e até mesmo o
próprio teatro estaria sujeito ao régisseur, ele que comandaria essa totalidade cênica.
Craig traz para a cena um caráter mais arquitetônico. A cena ganhava uma dimensão
enorme tanto verticalmente quanto horizontalmente. Ele propõe Volumes e formas,
painéis que se moveriam em cena, sob o comando do régisseur, para mudar o quadro,
dar uma maior dimensão ao palco. Essa grandiosidade arquitetônica atrelada ao seu
trabalho com a luz e os screens – o palco seria dividido em blocos que ganhariam
dimensões ao deslocarem-se tanto horizontalmente quanto verticalmente – sempre
sujeito ao régisseur, resume o trabalho de Craig.
Agora como entender esses avanços pensados por Wagner, Appia e Craig na
modernidade tardia? Como se encontra o sujeito presente nessa modernidade tardia para
4
receber esses reprocessamentos? O sujeito moderno já nasce em meio a dúvida como
vimos. E o sujeito ao deslumbrar esse movimento das vanguardas, variadas, acaba que
absorvendo o que é cada uma delas. “Projetamos a “nós próprios” nessas identidades
culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os
“parte de nós (...)”” (HALL, 2006). O sujeito da modernidade tardia começa a ser
formado na modernidade, esse sujeito “pós” modernidade é um eco das ressonâncias
desse período. E isso afeta diretamente a cena teatral. E isso afeta diretamente a cena
teatral, não só a da época de Wagner, mas, sobretudo a cena contemporânea, da qual a
cena wagneriana pode ser considerada como os primórdios.
Um representante desses ideais hoje é Robert Wilson. Alimentando-se do
pensamento de Wagner, Appia e Craig, Wilson elabora uma cena centrada nos detalhes,
na concentração. Ele cria molduras para a cena. São molduras de luz, som, espaço e
corpo. Seu teatro é um teatro da imagem e do gesto. O palco torna-se local de
rememoração, nele habitam seres estranhos com movimentos obsessivos, viáveis apenas
em sonho. Sem falar que diversos elementos tais como conhecemos hoje são
reprocessamentos das ideias desses encenadores (Appia e Craig). As diversas
linguagens que coabitam em cena. Cada vez mais vemos uma interligação entre
linguagens dentro da cena. Projeções, audiovisual, música. A cena tem sofrido um
bombardeio de elementos. Penso isso ser esse eco que vem das vanguardas modernistas
e da atual condição que se encontra o sujeito nessa modernidade tardia.
Hall (2006) nos mostra um sujeito fragmentado nessa modernidade tardia, um
sujeito que não é mais enquadrado numa única unidade, mas um sujeito de identidades
múltiplas. Isso ocorre graças à “crise de identidade” que esse sujeito passa. Tal crise se
dar ao questionar padrões pré-estabelecidos vigentes anteriormente (as vanguardas
modernistas começam esses questionamentos ao por em dúvida o modelo anterior). Ao
se questionar sobre suas bases estruturantes, o sujeito se põe em uma descentração, um
deslocamento, como Hall expõe. Essa descentração não se trata da perda de um centro,
mas da existência de vários centros constituintes do sujeito. Por tanto esse sujeito pós é
engendrado de pontos de vistas. Dentro dele coexistem ideias, influencias
contraditórias, e entendo isso como uma efervescência para o caráter criador da arte.
Esse sujeito, que se encontra fragmentado, cheio de “eus”, ao se debruçar sobre a arte, e
reprocessar as tendências geradas no modernismo, encontra na cena uma maneira de
unir esses “eus”. Daí o fato de cada vez ser mais comum, na pratica teatral, o diálogo
5
das múltiplas linguagens, processo que se dar por conta desse sujeito “pós” moderno.
Esse sujeito da modernidade tardia, construído como que em um mosaico, é de
fundamental importância para se entender a cena atual e talvez a que surgirá
futuramente. O sujeito que constrói a cena, o processo social tem influência direta sobre
a criação artística. Cabe ao teatro entender o quadro a sua volta e usar a moldura que
melhor lhe caiba para mostrar esse sujeito.
BIBLIOGRAFIA
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010
HALL, Stuart. A Identidade do Sujeito na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 2006
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de janeiro: Jorge
Zahar Ed. 1998
__________. Introdução às grandes Teorias do Teatro. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed.
2003
6
ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
CORPO NOME E PERFORMANCE: REFLEXÕES ACERCA DOS
DESDOBRAMENTOS DA OBRA DE MARINA ABRAMOVIC
José Ricardo Goulart
(Programa de Bolsas de Monitoria/UDESC; Orientadora: Prof.ª Dr.ª Fátima Costa de Lima;
Programa de Pós Graduação em Teatro; Universidade do Estado de Santa Catarina)
Meu objetivo neste trabalho é apresentar a pesquisa que desenvolverei, sob orientação
da Prof.ª Dr.ª Fátima Costa de Lima, em nível de mestrado no Programa de Pós Graduação
em Teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Tal pesquisa pretende problematizar
a obra da artista performática Marina Abramovic em relação à sua assinatura, mais
especificamente no trabalho The Artist is Present (2010), estabelecendo um diálogo com a
noção de aura, descrita e revista por Walter Benjamim em três ensaios compõem sua obra,
aliando ainda uma breve revisão dos principais conceitos que constituem as teorias que
embasam a Arte da Performance e a utilização do corpo como obra de arte, com base em
estudos de Marvin Carlson e Roselee Goldberg.
A problemática a ser explorada nesta pesquisa surgiu a partir de minhas reflexões ao
assistir ao documentário The Artist is Present (2012), de Matthew Akers e Jeff Dupre. Para
desenvolvê-la, utilizarei como base fatos expostos no referido documentário e na biografia
When Marina Abramovic Dies (2010), de James Westcott, além do Manifesto sobre a vida do
artista (2007), no qual Abramovic expõe suas ideias acerca do papel e posicionamento do
artista na sociedade e na relação com seu trabalho.
Recordo-me que ao ter contato pela primeira vez com a obra de Marina Abramovic,
sem possuir embasamento nos conceitos que permeiam a arte contemporânea, alguns
questionamentos me vieram à mente acerca da radicalidade proposta em seus trabalhos.
Apesar de me chamarem atenção positivamente, estas obras faziam com que eu me
perguntasse se era realmente necessária a execução de automutilações e a violência contra o
próprio corpo da artista.
Quando ingressei no curso de Artes Cênicas, a disciplina Teoria e prática da
performance possibilitou, para mim, maior contato com a obra da artista e com as teorias que
dialogam com a arte da performance. Compreendi que o corpo torna-se, segundo Marvin
Carlson (2009, p. 117), objeto e material do trabalho artístico. A partir disso, temas do
cotidiano do artista são utilizados como estímulo criativo e o processo de desenvolvimento da
obra passa a experimentar o real, rompendo com a representação. Hans-Thies Lehmann diz
que: a arte performática se afirma como expansão da representação da realidade em
imagem ou objeto por meio da dimensão temporal. Duração, instantaneidade,
simultaneidade e irrepetibilidade se tornam experiências temporais em uma arte que
não mais se limita a apresentar o resultado final de sua criação secreta, mas passa a
valorizar o processo-tempo da constituição de imagens como um procedimento
“teatral” (LEHMANN, 2007; p. 224).
Ou seja, se em grande parte da história da arte, todo o processo de criação era deixado
de lado em função da obra finalizada, com o advento dos happenings e posterior surgimento
da Performance, essa relação se inverte: a criação se dá em frente à audiência e é apresentada
tal qual resultado final. A partir das reflexões que RoseLee Goldberg expõe em seu livro A arte da performance:
do futurismo ao presente, no qual é traçado um panorama das artes performáticas desde o
futurismo até o que chamou de “geração da mídia” (período compreendido a partir do início
da década de 1980), pode-se afirmar que no final do século XIX, inúmeros artistas e pensadores
da Europa buscaram romper com a arte elitista que se fazia no período e com isso formaram
movimentos que se configuraram de vanguarda. Estes movimentos buscaram se posicionar
política, econômica e socialmente, tentando diminuir o abismo que se criara entre a arte e a
realidade da maioria da população. Além disso, outros elementos compunham a estética da arte
que se fazia naquele momento: buscava-se romper com seus antecessores a partir de novas
experimentações. Inúmeros manifestos, dentre eles futurista, dadaísta e surrealista, foram
consequência de uma nova arte que começava a surgir.
Paralelamente, a Bauhaus realizou os primeiros experimentos com interações entre a arte
cênica e a tecnologia. Em decorrência do nazismo, a escola é fechada e os estudos são
interrompidos na Europa, tendo foco a partir de então nos Estados Unidos. Na década de 60, com
o aparecimento da contracultura e do movimento hippie, estas manifestações artísticas começam a
aparecer por todos os lados, como forma de manifestar as propostas humanistas da época. Estas
manifestações ficaram mais conhecidas como happening e propunham utilizar o acaso, o
imprevisto e o aleatório como impulso de criação para uma arte que foi, por eles, denominada
“Arte Conceitual”. Os precursores deste movimento foram John Cage, Merce Cunningham e
Allan Kaprow.
Porém, as crises monetárias e de energia da década de 1970 sufocaram os ideais
libertários e conceituais vigentes no período destes primeiros experimentos ou
“acontecimentos”. Desenvolvem-se, então, trabalhos com características mais aproximadas da
arte da performance. A partir desta década, sob influência de novos valores como niilismo e
individualismo, surgem as primeiras manifestações mais parecidas com a performance
contemporânea. Diferente da forma de concepção e execução dos happenings, o artista passa a
trabalhar sozinho dentro de uma perspectiva de obra mais elaborada.
RoseLee Goldberg (2006) coloca a anarquia como base estrutural da performance,
conceituando-a como um meio de expressão maleável e indeterminado, haja visto que cada
performer cria sua própria maneira de fazer, podendo alterar seu rumo durante todo o processo,
utilizando-se das mais variadas disciplinas artísticas (teatro, dança, música, literatura, pintura,
entre outras) cruzando com as mais diversas tecnologias. Goldberg afirma que “por sua própria
natureza, a performance desafia uma definição fácil ou precisa, indo além da simples afirmação
de que se trata de uma arte feita ao vivo pelos artistas” (GOLDBERG, 2006, p. IX).
Para complementar este pensamento, me basearei nos estudos de Marvin Carlson
(2009), em Performance: uma introdução crítica, no qual o autor afirma a importância, nessa
arte, não só do corpo físico e da presença mas também das operações que envolvem o
performer e sua relação com a audiência, que é aí pensada como um grupo de indivíduos com
possibilidades próprias de interpretação e reflexão. Carlson acredita que essa relação torna a
performance [...] um dos mais poderosos e eficazes procedimentos que a sociedade humana
desenvolveu para o processo infinitamente fascinante da autorreflexão pessoal,
cultural e da experimentação (CARLSON, 2009, p. 224).
Segundo Patrice Pavis (2005), a performance pode associar diversas outras artes e
suportes, como pintura, vídeo, dança, poesia, etc., o que lhe confere um caráter poroso e de
fronteira. Pavis afirma também que o performer é “em razão da insistência sobre sua presença
física, um autobiógrafo cênico que possui uma relação direta com os objetos e com a situação
de enunciação” (2005, p.284). É possível perceber que se trata de uma arte híbrida que se
utiliza de materiais subjetivos e estímulos muitas vezes advindos do eu. O performer deve
estabelecer uma relação com a audiência e assumir os riscos provenientes de suas práticas.
Tais riscos, por vezes, se tornam necessários por conta da temática e prática adotada e
desenvolvida pelo artista. Os questionamentos que me surgiram ao conhecer a obra de
Abramovic dissolveram-se quando estas conceituações da performance e intenções
pretendidas pelos artistas performáticos ficaram mais claras para mim.
RoseLee Goldberg subdividiu os artistas que iniciaram suas práticas na década de
1960 e 1970 em grupos de acordo com as particularidades de seus trabalhos. A obra de
Marina Abramovic, junto com a de Hermann Nitsch, Otto Mühl e Gina Pane, foi contida na
classificação de performance ritualística, por ter uma “natureza muito mais emotiva e
expressionista” (GOLDBERG, 2006, p. 153).
Encontro a obra de Marina Abramovic como um expoente dos conceitos citados
anteriormente. Natural de Belgrado, na Sérvia, a artista, hoje sediada nos Estados Unidos,
desenvolve seus trabalhos desde 1973, explorando a relação com a audiência, a fisicalidade e
os limites do corpo e as possibilidades da mente. Sua obra compreende os mais diversos
suportes, como fotografia, vídeo e presença física. Goldberg (2006) afirma que através de seu
trabalho, Marina explora a desconexão entre “corpo” e “eu”, buscando entender a dor
ritualizada provocada pelo abuso de seu próprio corpo.
Em sua primeira performance, Rhythm 10 (1973), a artista estende a mão esquerda
com os dedos abertos sobre o chão enquanto utiliza a direita para golpear com uma faca os
espaços entre seus dedos. Neste trabalho, Marina tem a sua disposição vinte facas e reinicia a
ação com uma nova faca a cada vez que se machuca. Enquanto executa a ação, o barulho da
faca golpeando o chão é gravado em uma fita. Com o intuito de misturar os tempos presente e
passado, ao se machucar vinte vezes, ela para a gravação e reinicia a fita, tentando repetir os
movimentos e erros a partir dos sons gravados.
Em Rhythm 0 (1974), a artista dispõe sobre uma mesa 72 objetos que poderiam causar
prazer ou dor e permite que o público utilize esses objetos livremente em seu corpo, chegando
a colocar a vida em risco ao colocar uma arma carregada entre esses objetos. Neste trabalho
ela começa a explorar as relações de alteridade e dor, as quais dá continuidade após encontrar
seu parceiro Ulay, em 1975.
Quando começou a trabalhar com Ulay em 1975, continuou explorando “essa agressão
passiva entre indivíduos. Juntos eles exploraram a dor e a tolerância entre eles próprios e entre
eles e o público” (GOLDBERG, 2006, p. 153). Em Expansion in Space (1977), Marina e Ulay
movem duas colunas, que tem o dobro de seus pesos, esbarrando seus corpos contra as
mesmas. É notável que as premissas do trabalho continuam sendo os limites do corpo e sua
relação com o espaço e o outro.
Abramovic transita também entre o biográfico, buscando referências para seus
trabalhos nos relacionamentos com membros de sua família e Ulay. Em The Biography, de
1993, sua primeira performance solo após o término de seu relacionamento, a artista revê sua
vida desde seu nascimento, em 1946, falando sobre momentos, ideias e sentimentos, até a data
do trabalho. A sequência cronológica de sua vida é, por vezes, interrompida por segmentos
nos quais ela visualiza momentos e performances de sua trajetória artística.
Em um de seus trabalhos mais recentes, uma exposição feita em 2010, chamada The
Artist is Present, Marina Abramovic revisita sua obra no MoMA (Museum of Modern
Art/NY), convocando artistas para reapresentarem as peças mais importantes de sua carreira.
Nesta exposição, Marina apresentou seu mais novo trabalho até então, em que propunha ficar
sentada, em silêncio, seis vezes por semana, sete horas por dia, durante três meses, em frente a
uma mesa e uma cadeira que era revezada pelo público curioso em trocar um olhar com a
artista.
A problemática desta pesquisa surgiu com reflexões que tive após assistir ao
documentário homônimo, no qual a artista é mostrada como superstar ou ídolo pop, num
retorno ao “artista-celebridade” (GOLDBERG, 2006, p. 180) dos anos 1980. É notável que,
apesar de seus 63 anos, a performer continua explorando os limites físicos e psíquicos de seu
corpo e ainda tenta criar um vínculo com a audiência, apesar de não haver possibilidade de
interação (toque, fala) direta com ela. Vale ressaltar que a intervenção provinha dos
seguranças se houvesse essa tentativa.
Baseado em seu Manifesto sobre a vida do artistai, escrito aproximadamente em 2007,
no qual expõe suas ideias acerca do papel e posicionamento do artista na sociedade e na
relação com seu trabalho, nos desdobramentos de sua carreira e no seu posicionamento como
artista, farei uma análise da obra de Abramovic, levando em conta também sua trajetória
pessoal, através de fatos expostos em biografia recente e no documentário The artist is
present (2012). Em seu manifesto, já citado anteriormente, Marina afirma que os artistas não
devem comprometer seu próprio nome ou comprometer-se com o mercado de arte, nem
devem se transformar em ídolos. Mas a exposição feita no MoMA condiz com seu discurso,
tendo exposto o que se vê em seu documentário?
Para suscitar reflexões sobre a problemática da pesquisa, cruzarei essas informações
com o conceito da aura da obra de arte, de Walter Benjamin, no qual ele diz que a obra perde
sua característica de unicidade com o advento da reprodutibilidade técnica. A noção de aura é
encontrada em três textos do filósofo alemão, datados da década de 1930, a saber: Pequena
história da fotografia (1931), A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
(1935/1936) e Sobre alguns temas em Baudelaire (1939). Além de evocar o surgimento da
noção de aura e de como ela é delineada pelo autor nos textos citados, entrarei também na
discussão sobre seu declínio. Por este motivo e por ser, dentre os três textos mencionados,
aquele no qual o autor aplica o conceito num âmbito mais amplo da obra de arte,
desenvolverei minha escrita em um diálogo maior com o texto de 1935.
Durante o breve período de sua existência, Walter Benjamin (1892-1940) se dedicou a
refletir sobre temas de sua contemporaneidade, a partir de inquietações provocadas por um
mundo que começava a se fragmentar. Situada no contexto de pré-primeira guerra mundial e
no período de entre guerras, sua produção teórica conjetura os reflexos da modernidade sobre
a cultura da época, abordando assuntos relacionados à linguagem, literatura, filosofia, história
e arte. No capítulo introdutório de Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter
Benjamin, Kátia Muricy discorre sobre como o filósofo se desloca no tempo, num movimento
não linear, em busca de um olhar para o passando que possibilite uma reflexão sobre o
presente, entrecruzando vida pessoal e história, e afirma que
as análises de Benjamin de formas literárias declinantes, do fim da obra de arte
aurática, do desaparecimento da experiência, não são nostálgicos exercícios de
erudição. O que está em jogo é a elaboração de uma arqueologia da modernidade, a
exigência de formulação de conceitos radicalmente originais do tempo, da história e
da historiografia que possibilitem a problematização de sua contemporaneidade
(MURICY, 2009, p. 15).
Siegfried Kracauer (2009) pondera que Benjamin expõe a dialética das essências ao
escavar profundamente seus objetos de questionamento, buscando o desenrolar de
determinadas ideias ao longo da história. Seus escritos, muitos descobertos somente após sua
morte, possuem relevância atemporal, pois, ainda segundo Muricy (2009), podem contribuir
tanto para a compreensão da época em que viveu a geração do autor, quanto a que vivemos
hoje.
Benjamin, tanto no texto de 1931, quanto no de 1935, emana a noção de aura a partir
de sua característica impressa, simultaneamente, no espaço e no tempo. Segundo o filósofo, a
aura é conferida pela “aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja”
(BENJAMIN, 1994, p. 101), ou seja, algo que, por mais que se aproxime, jamais pode ser
alcançado e sempre se mantem distante devido a sua unicidade. Sobre essa questão, Taisa
Helena Pascale Palhares esclarece que
não se pode dizer que com esta fórmula o autor define positivamente algo, e sim que
o que se apresenta nessa “dialética do próximo e do distante”, nesse jogo de
revelação e ocultamento estabelecido entre a proximidade do objeto concreto e a
aparição nele da distância é, em última instância, a interdição do desvelamento total
(PALHARES, 2006, p. 36).
Ora, se o objeto aurático é inalcançável, ele será sempre diferente da forma como se
revela e daquilo que aparenta ser.
Em Pequena história da fotografia, a aura é abordada em relação à história da
fotografia. Como o título do texto sugere, o autor nos oferece um panorama desta arte,
relatando três períodos distintos da história, desde o seu florescimento com o daguerreótipo, o
declínio da aura com os avanços desenvolvidos na técnica da fotografia e sua total aniquilação
com a obra do fotógrafo Eugene Atget. O filósofo vê em seu trabalho que registra temas do
cotidiano parisiense, como ruas e cafés vazios, mesas com pratos sujos ainda não retirados e
fachadas de bordeis, uma possibilidade de respiro ante ao que se seguiu até então. Benjamin
afirma que “ele [Atget] saneia essa atmosfera [difundida pela fotografia convencional],
purifica-a: começa a libertar o objeto de sua aura” (BENJAMIN, 1994, p. 101) e completa que
o fotógrafo francês “buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se
voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes das cidades”
(BENJAMIN, 1994, p. 101).
Em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin amplia a
discussão sobre a aura para além da fotografia. Neste ensaio o filósofo discorre sobre o
desaparecimento aural associado ao desenvolvimento das técnicas de reprodução fotográficas
e cinematográficas. A particularidade espaço-temporal da aura reaparece neste texto,
reforçando o caráter de singularidade do objeto por ela envolto, no caso, a obra de arte. O
autor afirma que a possibilidade da reprodução industrial vai substituir a característica de
existência única da obra de arte por uma existência serial.
Para esclarecer como a reprodução técnica destrói a aura da obra, Benjamin caminha
pela história da arte, perpassando pelo seu uso ritual e político e explicitando sua transição
entre valor de culto e seu valor de exposição. O autor afirma que
as mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual,
inicialmente mágico, e depois religioso. O que é de importância decisiva é que esse
modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente da sua função
ritual. (BENJAMIN, 1994, p. 171)
Ou seja, o valor de culto de uma obra está sempre ligado ao âmbito ritual e será o
responsável por mantê-la atrelada a uma determinada tradição, o que significa atestar sua
unicidade e, consequentemente, sua autenticidade.
No texto de 1939, Sobre alguns temas em Baudelaire, o autor associa a queda da aura
à alteração perceptiva provocada pela experiência de choque na modernidade. Palhares afirma
que
Disso [do choque] surge sua [do ser humano] recepção fragmentada e reflexiva:
quanto mais o sujeito for submetido a um determinado choque, mais sua reação se
tornará reflexa, automática, puramente físico-biológica, e, dessa forma, cada vez
menos os fatos exteriores são integrados à sua experiência. Os choques são
acontecimentos externos que precisam ser compreendidos em um instante e nele se
extinguirem, sem deixar rastros ou continuidade com seus anteriores ou sucessores
(PALHARES, 2006, p. 86).
Assim, Walter Benjamin vai analisar as consequências dessa experiência inspirado na
obra do poeta francês Charles Baudelaire.
Com base nestas reflexões, é possível concluir que a aura, segundo Benjamin, é a
condição única de uma obra de arte, garantida por elementos espaciais e temporais, que torna
o objeto artístico singular. Acredito ser possível atualizar o debate teórico acerca deste
conceito e aplicá-lo a uma questão específica do momento atual em que vivemos. Retornando
ao documentário, a impressão que tive foi de que as obras de Marina Abramovic entraram em
um esquema hierárquico em que o nome da artista está no topo e que se as pessoas formavam
acampamentos em filas que circundavam o quarteirão onde se localiza o MoMA, era para ver
a artista, que estava presente em sua singularidade.
Considerando estes pontos, surge a pergunta: teria a obra de Abramovic ficado à
sombra de seu nome e de sua assinatura? A questão não envolve o mérito de seu trabalho, que
reconheço, e a contribuição de suas obras para a arte performática, mas até que ponto este
trabalho se basta como obra de arte por si só, sem necessitar da visibilidade da artista para
repercutir. Visto isso e os apontamentos sobre seu documentário, pode-se questionar se
Marina Abramovic retoma o conceito de aura, no sentido da criação de uma assinatura e de
uma instituição ligada a esta. Questiona-se também, qual o papel da autoria na criação de
Marina Abramovic.
Dados os questionamentos, objetivarei ponderar sobre possíveis caminhos e
apontamentos para o problema proposto de modo a encontrar reflexões acerca do papel e do
espaço que o artista ocupa na sociedade contemporânea.
i (ABRAMOVIC, Marina. Manifesto sobre a vida do artista. Disponível em:
<http://comunicacaoeartes20122.wordpress.com/2013/02/19/marina-abramovic-a-revelacao-da-natureza-
humana-5/> Acesso em 03/07/2014)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – I. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio
Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______. Obras escolhidas - III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad.
José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Trad. Thais Flores Nogueira
Diniz, Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
GOLDBERG, RoseLee. A Arte da Performance: do futurismo ao presente. Trad. Jefferson
Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa: ensaios. Trad. Carlos Eduardo João
Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac
Naif, 2007
MURICY, Kátia. Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de
Janeiro: Editora Nau, 2009.
PALHARES, Taisa Helena Pascale. Aura: a crise da arte em Walter Benjamin. São Paulo:
Editora Barracuda, 2006.
PAVIS, Patrice. Dicionário do teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
1
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
COM A FORÇA DO MACHO E A GRAÇA DA FÊMEA: OLHAR SOBRE O
TRABALHO TEATRAL PRODUZIDO PELO GRUPO DZI CROQUETTES NO
CONTEXTO DA DÉCADA DE SETENTA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.
PEREIRA, Jurandir Eduardo Junior; UDESC. Universidade do Estado de Santa Catarina; Mestrado em Teatro; orientador: Edélcio Mostaço.
O grupo Dzi Croquettes surgiu no século XX, na década de 70, na cidade do Rio de Janeiro
sob as coreografias do bailarino norte americano Lennie Dale e a dramaturgia de Wagner
Ribeiro, através do espetáculo “Gente computado igual a você”. O presente artigo propõe
um olhar para o aludido espetáculo, pontuando aspectos pioneiros e subversivos no que
tange o fazer teatral desenvolvido no contexto da ditadura militar na cidade do Rio de
Janeiro. O artigo tem como ponto de partida o vídeo documentário Dzi croquettes
produzidos pelos diretores Tatyana Issa e o Rafael Alvarez, assim como matérias de jornais
e entrevistas que retrataram o material cênico produzido pelo grupo no contexto teatral
carioca. O grupo apresentou um diálogo expressivo e significativo das relações de gênero
em um campo histórico estritamente limitado como foi o período da ditadura militar,
mesmo assim o grupo Dzi Croquettes não teve a validação do seu desbunde no campo
acadêmico, através das publicações especificas de teatro.
Palavras chaves: Teatro; Gênero; Contracultura; Performance;
2
“Nem senhores, nem senhoras
Gente dali, gente daqui
Nós não somos homens, também não somos mulheres”.
(Trecho do prólogo do espetáculo “Gente computada igual a você”)
Década de 70: resistência em cena
Na década de 60 e 70, o Brasil foi palco de intensas transformações politicas que
tiveram seus reflexos em algumas esferas da estrutura social, sobretudo, nas artes. No
âmbito cultural, as diferentes expressões artísticas, processos criativos, eram comumente
resultado direto das múltiplas interferências ideológicas e de diferentes influências
culturais. Como afirma Santos (2009): “as manifestações culturais dos anos 60 e 70
refletiam o espírito de uma época de intensa contestação dos padrões sociais, das
influências estrangeiras na cultura, de uma geração de jovens que buscavam liberdade
através de ideias contra culturais, políticos e revolucionários”.
Ainda na década de 70, o Brasil viveu um dos períodos mais sombrios no campo da
politica social, que fez aflorar uma conduta de resistência para com as ações do governo
militar brasileiro, tanto no aspecto civil, quanto nos espaços teatrais das principais cidades
do país. A ditadura militar (1964 - 1985) foi um movimento de insurgência politica que
inicialmente teve apoio de empresários, banqueiros, Igreja católica e que durou 21 anos.
Segundo Cristina Costa (2006), em seu livro Censura em cena, a ditadura Militar
foi um golpe de estado que fortaleceu- se com aliança de alguns setores conservadores da
sociedade, que tinha dentre outros objetivos, coibir as manifestações artísticas.
O regime militar regulamentava seu poder por atos institucionais. Ao logo de todo o
regime militar foram instaurados cincos atos institucionais, sendo que o AI- 5 (ato
institucional número cinco) foi o mais repressivo para a produção artística do país. Dentre
suas sanções, o AI-5 restringia as manifestações artísticas, delimitando os temas que
poderiam ser abordados por meio da produção literária, musical e teatral realizados na
década de 70. Toda produção artística passava pela avaliação dos censores, colocando
assim a arte sob vigilância militar.
O AI-5 causou uma grande perda inventiva para a classe artística, sobretudo a
carioca. Segundo, José Roberto Zan (2006) “foram interditados cerca de 500 filmes e 450
peças teatrais. Foram proibidos 200 livros, dezenas de programas radiofônicos e televisivos
e mais de 100 letras de canções. Em 1976, foram divulgados os seguintes dados da censura
referente a musica popular: das 30.518 composições analisadas, 292 tinham sido vetadas.”
Uma significativa perda para a cultura brasileira.
A arte fazia morada no medo, na violência e na desconfiança que a classe artística
vivenciava diariamente. Como pontua bem Lobert:
Em 1972, estávamos no auge da repressão política: a censura, o medo, a
violência, a desconfiança, eram nossos companheiros cotidianos. No teatro, o
clima de insegurança era constante; até o ultimo momento não se sabia se uma
peça seria permitida ou proibida na sua integra. O teatro era visto mais como um
lugar subversivo, em termos de político, do que como espaço de produção
cultural. (LOBERT, 2010, p. 18)
O cenário artístico, sobretudo o contexto teatral encontrava-se norteado pelos
avaliadores da censura, onde regulavam o texto, o posicionamento do ator em cena,
acompanhavam os ensaios no intuito de reprimir qualquer cena ou fala que denegrisse o
governo ou que estivesse fora da moral e dos bons costumes, firmados pelo regime. Nesse
sentido, o estado exercia o poder regulador sobre a arte. Como destaca o ator Pedro
3
Cardoso, em um trecho do documentário Dzi Croquettes1: “Eu cheguei a fazer espetáculo
para a censura. É horrível o estado ter sobre você tanto poder”.
A arte teatral, nesse período, já não demostrava apenas uma oposição clara ao
regime politico militar, através de alguns espetáculos e cias. O teatro passou a exercer um
papel de recuperar a liberdade de expressão da população brasileira. Como pontua Santos
(2009) “a arte, principalmente o teatro, passou a ser a política em si. Não era mais um
elemento auxiliar, era a própria política, pois tratava de temas da realidade brasileira,
destacando a intensa repressão e a necessidade de recuperar a liberdade de expressão”.
Diversos grupos teatrais começaram a promover manifestações artísticas contra o
sistema de repressão militar. O teatro de resistência veio à tona, por meio de produções que
exerciam a estética da metáfora. A pesquisadora Silvia Fernandes (2000) destaca que “o
teatro de resistência, que procurava criticar a repressão desencadeada pela ditadura militar
substituindo as referências explicitas à situação do país por metáforas atemporais”. As
produções cênicas faziam uso das metáforas para construir argumentos artísticos que
pudessem obter a aprovação dos avaliadores da censura, permanecendo assim com falas e
cenas metafóricas que representavam as causas e consequências do sistema repressor
militar.
A pesquisadora Silvia Fernandes ainda observa que algumas montagens se
destacaram realizando a estética da metáfora, como é o caso da montagem Caminho de
volta de Consuelo de Castro, realizada no ano de 1974, assim como Eles não usam Black –
Tie e Ponto de partida de Gianfrancesco Guarnieri, está ultima teve a direção de Fernando
Peixoto, no ano de 1976, na cidade de São Paulo.
Ainda na década de setenta, alguns grupos desenvolviam sua estética de resistência
fora dos espaços tradicionais de teatro. Os grupos realizavam suas atividades artísticas em
bares, boates, casas de show, que não se configuravam como espaços tradicionais de arte
aos olhos da critica especializada da época. Foram nesses espaços artísticos marginais que
surgiram vários grupos teatrais que subverteram a norma em vários aspectos, através das
suas produções artísticas.
Cena Dzi
Em meio a toda turbulência politica social da década de 70, surge o grupo Dzi
Croquettes2 com o espetáculo “Gente computada igual a você
3”, produção artística que por
meio da ousadia e do desbunde de seus atores\bailarinos desestabilizaram conceitos
fechados de gênero, deslocando a visão hegemônica de sexualidade para os padrões social
da época, promovendo uma reflexão para a sexualidade por meio da arte, assim como
atribuiu outros valores a prática teatral carioca.
Enquanto o grupo suscitou ideias libertárias nos palcos, no cotidiano das ruas, a
liberdade do individuo era cerceada a todo o momento. Como destaca o ator Ney
Matogrosso, em trecho do filme Dzi Croquettes: “Paradoxalmente foi o momento que
surgiram os Dzi Croquettes no Rio de Janeiro. Confrontando com esse fechamento da
mentalidade, porque ninguém podia pensar, ninguém podia ser diferente, ninguém podia se
expressar com liberdade”.
A atitude politica e avant- garde era a carta de liberdade dada ao público. O Ser
diferente\ estranho\ andrógino era a permissão dada pelo espetáculo para o seu público,
pois proporcionava a sensação de liberdade a todos que lotavam a boate Casa Nova4; boate
que recebeu o primeiro show espetáculo do grupo. O espírito “Croquettes” é descrito na
fala do Marcos Jatobá no filme Dzi Croquettes: “Foi como alguém tivesse dito – vida é
isso. Ser humano é isso. Imediatamente cheguei em casa, me rasguei todo, já joguei uma
purpurina, já fiz um molde e já falei. É o espírito Croquettes”.
4
A antropóloga Rosemary Lobert, destaca a importância do grupo para a década de
setenta no Brasil.
De fato tal abordagem não seria inteiramente descabida, pois, numa época em
que a repressão política e cultural chegava a seu auge, chamava a atenção numa
peça teatral que parecia colocar em questão os preconceitos fundamentais da
ordem reinante no país e que aparentemente girava em torno da androginia.
(LOBERT, 2010,p.35)
A perspectiva de um trabalho artístico que aloja em seu bojo criativo o fluxo entre
vida e arte deve ser levada em consideração quando se fala de Dzi Croquettes, pois foram
essas duas vertentes as molas preponderantes para a concretude do grupo. Segundo os
atores\bailarinos, o que permitia o curso liberto e inventivo em cena, era o fluxo contínuo
entre vida e arte. Tal fluxo permitia todas as transgressões realizadas em cena. Como
destaca o ator Claudio Tovar5: “O que valia era ser livre para criar, acrescentar ao
espetáculo e abrir novos caminhos. Quanto mais livres em cena, mais livres na vida e vice
versa”.
O espetáculo ganha ainda mais notoriedade e passa a ser realizado em espaços
teatrais tradicionais, tanto na capital carioca como na cidade de São Paulo; como o Teatro
Treze de Maio6, através da opinião do notório critico teatral da época Sábato Magaldi
7
publicada no Jornal da Tarde. Magaldi afirma que “O espetáculo, pela verve e pelo
anticonvencionalismo, sacode a nossa paisagem de preconceitos e de acanhado atraso”. De
acordo com o crítico, os Dzi Croquettes trouxeram para a cena carioca inovação e ousadia
que confrontava diretamente com a esfera de preconceito que vivenciava a sociedade
carioca.
Inovação, ousadia, transgressão são somente alguns valores que o grupo apresentou
em um período onde as fronteiras se apresentavam fixas aos olhares normalizadores da
censura. De acordo com os pensamentos militares, a força do macho não poderia estar
ligada a graça da fêmea em um só corpo, porém os Dzi Croquettes conseguiram aliar a
força do macho e a graça da fêmea em um corpo pluralizado em cena pelo seu primeiro
espetáculo “Gente computada igual a você”.
Influências Dzi para o cenário artístico carioca
De acordo com a pesquisadora Silvia Fernandes (2000) a criação coletiva foi algo
bem característico da década de setenta. A autora destaca que tal prática era bastante
comum entre as companhias da época, onde cada criação artística era feita em equipe, com
divisão entre seus membros para a coordenação e execução dos diversos setores
administrativos e artísticos do grupo. Porém, o grupo Dzi Croquettes, aliou o trabalho em
equipe à vida em comunidade, pois durante todo o período de circulação do espetáculo os
atores\bailarinos viveram na mesma casa, constituindo uma família.
De acordo com Lobert (2010), os Dzi Croquettes apresentaram para o meio artístico
carioca e paulistano um teatro profissional sem se desligar da vida em comunidade que o
grupo efetivou durante todo o período de produção artística.
Além de influenciarem questões pertinentes ao campo do teatro, o grupo foi
também referência na dança pelas coreografias inventivas do ator\bailarino Lennie Dale8
que tinha como base de formação o jazz clássico. De acordo com a pesquisadora de dança
Ana Carolina da Rocha Mundim (2005), “esse período trouxe os Dzi Croquettes, grupo de
dança criado por Lennie Dale, de grande influência para o jazz no Brasil. Acompanhado
5
por fãs fieis onde se apresentavam, os Dzi fizeram escola, interferindo na formação de
multiplicadores deste estilo de dança”.
A influência deixada pelo grupo, na perspectiva inventiva e coreográfica do
bailarino Lennie Dale através do jazz clássico, influenciou gerações e transformou a dança
no que percebemos hoje nas produções das grandes companhias de teatro musical, que
buscam a ousadia e profissionalismo agregando valores para o seu artista, dentro da
atuação, canto e dança. A atriz Claudia Raia; menciona no filme Dzi Croquettes, que sua
atuação como bailarina e atriz nas grandes produções de espetáculos musicais, tem
influência dos Dzi Croquettes. Segundo a atriz, o espetáculo do grupo marcou geração, por
que apresentava um rigor e profissionalismo jamais percebido nas produções artística da
época.
Vale ressaltar, ainda, a qualidade dramatúrgica do Wagner Ribeiro. O supracitado
ator e dramaturgo foi o responsável por construir o texto base do espetáculo, organizando-o
através de informações ligeiras oriundas do cotidiano social e imprimindo uma visão
crítica das instituições regentes da vida social, tais como: vigente; igreja, família, escola.
Tendo assim, a gênese do que hoje denominamos de gênero teatral besteirol9.
Segundo Mostaço (2012), avaliar a importância da produção dos Dzi Croquettes
para o contexto brasileiro e mundial, é pontuar as inspirações que foram propiciadas pela
interferência do grupo na perspectiva da formação de um grupo convival que valorizava a
performance individual e fornecia liberdade na abordagem das temáticas para os seus
artistas, deslocando tabu que estavam ligadas a sensibilidade do público daquela época.
Diante do exposto, pode-se afirmar que houve uma contribuição significativa do
grupo para o panorama do teatro brasileiro na década de setenta, bem como podemos
encontrar exemplos de algumas atuações feitas no cenário teatral contemporâneo carioca
que receberam influencias do referido grupo brasileiro. As produções dos grandes musicais
apresentados nos principais teatros brasileiros são exemplos de experiências cênicas que
vieram a partir da produção dos Dzi Croquettes, contendo cenas rápidas, cômicas e
costuradas por números de dança. Salienta-se ainda, que só existe uma única publicação
acadêmica escrita pela cientista social Rosemary Lobert, em sua dissertação de mestrado,
intitulada A palavra mágica: a vida cotidiana do Dzi croquettes que visibiliza a produção
dos Dzi. Neste trabalho, a autora reconhece a importância do grupo e traça uma análise da
vida em comunidade que os artistas imprimiram durante a existência do grupo, porém não
existe uma reflexão estética sobre o que o grupo produziu ao longo da sua trajetória. Desta
forma, toda a produção transgressora do grupo permanece esquecida nos escritos
acadêmicos do campo do teatro, perpetuando uma infeliz lacuna de compreensão sobre a
história do teatro brasileiro, sobretudo de como o teatro subverteu a norma social de uma
época através da força Dzi. O “desbunde” gerado pelos atores\bailarinos em cena, não só
significou a transgressão de valores, mas concretizou um grito de liberdade artística e
sexual não só dos envolvidos na cena, assim como de todo o público que acompanhou o
grupo.
1 O filme/documentário Dzi Croquettes. Direção: Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Produção: Traidi - 2009.
2 Grupo formado pelos atores\bailarinos: Lennie Dale, Wagner Ribeiro de Souza, Cláudio Gaya, Cláudio
Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poli, Bayard Tonelli, Rogério de Poly, Paulo Bacellar, Benedictus
Lacerda, Carlinhos Machado, Roberto de Rodriguez e posteriormente na temporada em São Paulo, Eloy
Simões no ano de 1972 na cidade do Rio de Janeiro. 3 Nome do primeiro espetáculo do grupo Dzi Croquettes que teve sua estreia no ano 1972 na cidade do Rio
de Janeiro. 4 Famosa boate dos anos setenta que se localizava no que hoje é a região da Lapa. Região boemia do Rio de
Janeiro.
6
5 Entrevista realizada com ator Claudio Tovar na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2012.
6 Famoso teatro Paulistano da década de 70
7 Sabáto Antônio Magaldi nasceu em belo horizonte, em 09 de maio de 1927. Foi critico teatral do diário
carioca de 1950 a 1953. Transferindo-se para São Paulo, nesse ano, o convite de Alfredo Mesquita, passou a
lecionar História do teatro na Escola de Arte Dramática onde criou, em 1962, a disciplina de historia do
teatro brasileiro. 8 Leonardo La Ponzina, mais conhecido como Lennie Dale (1934-1994). Foi bailarino e coreografo
americano radicado no Brasil, criador do grupo Dzi Croquettes em 1972. 9 Foi um movimento teatral que nasceu em São Paulo, ganhando força no Rio de Janeiro na década de 80.
Desprovido de preconceitos, o besteirol incorporou diversas referencias da cultura brasileira para montar uma
caricatura do comportamento cotidiano. O humor anárquico e o rompimento com o engajamento e a cultura
dita erudita forma os pilares do movimento.
7
Referências Bibliográficas
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2006.
FERNANDES, Sílvia. Grupos teatrais anos 70. Campinas: Editora Unicamp, 2000.
ISSA, Tatiana, ALVAREZ, Raphael. Dzi Croquettes. [filme- vídeo]. Produção: TRIA
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ZAN, José Roberto. Secos & Molhados: o novo sentido da encenação da canção. In: VII
Congresso latinoamericano – IASPM- AL, 2006.
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
APROXIMAÇÕES ENTRE WILHELM MEISTER E OS ESTUDOS TEATRAIS
Luiz Gustavo Bieberbach Engroff
(Orientador: Prof. Dr. Cláudio Celso Alano da Cruz; Mestrando do Programa de Pós-
Graduação em Literatura; Universidade Federal de Santa Catarina)
O objetivo principal deste estudo é encontrar pontos comuns, do contexto da vida
teatral do personagem Wilhelm Meister presente no romance de Goethe, Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, com os estudos da teoria teatral que irão surgir
aproximadamente um século depois. Apresento a seguir breves referências sobre o autor, sua
obra e a recepção que esta teve quando descoberta, para posteriormente problematiza-la com
os estudos em questão.
Segundo a breve biografia que encontramos na edição do romance Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, traduzida para o português por Nicolino Simone Neto, o
autor Johann Wolfgang Goethe nasceu em 28 de agosto de 1749 em Frankfurt am Main e
desde muito cedo teve acesso aos círculos aristocráticos da cidade, devido ao casamento de
seu pai com uma senhora da alta sociedade. Inicia aos 16 anos, seus estudos em Direito e ao
mesmo tempo, frequenta aulas de História, Filosofia, Teologia e Poética, além de se interessar
por desenho e frequentar assiduamente o teatro. Escreve peças estimuladas principalmente a
partir das obras shakespearianos e torna-se um dos poetas representantes de destaque do
movimento alemão Tempestade e ímpeto. i A partir de 1775, Goethe desempenhava as mais
diversas funções, como poeta, encenador e ator. Seu estilo misturava a vitalidade do teatro
elisabetano com a exigência artística do teatro francês.
Neste meio tempo, além de ocupar um cargo de alto funcionário da administração,
devido as suas relações com a nobreza, onde cuida de aspectos financeiros, exploração de
recursos e infraestrutura de Weimar, inicia os escritos de uma de suas obras-primas Fausto,
composta de duas partes, que finalizará apenas em 1832, a beira de sua morte.
Desiste parcialmente de sua carreira ministerial e realiza uma viagem à Itália que dura
aproximadamente dois anos, onde o poeta tem contato com os valores estéticos da
Antiguidade. Após seu retorno, inicia sua amizade com Friederich Schiller (1759-1805)
grande influenciador em sua vida intelectual, que o auxiliará na escrita da obra que trabalho
neste ensaio.
A partir de 1790, assume um novo cargo da administração de Weimar, agora como
superintendente do Instituto de Arte e Ciências da cidade e logo depois a direção do Teatro de
Weimar, fazendo-o conhecer de perto as características e especificidades da vida teatral. Sob a
regência de Goethe, o teatro de Weimar “[...] tornou-se o embrião do classicismo alemão. Da
cooperação entre Goethe e Schiller brotou a harmonia entre criação poética e teatro que a
Inglaterra havia conhecido nos dias de Shakespeare, a Espanha, nos dias de Calderón e a
França, na época de Molière.” (BERTHOLD, 2001, p. 413) Os primeiros escritos da obra
completa de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister são datados já em 1777 e em 1785 a
primeira versão da obra já estava finalizada.
Segundo o crítico, William Somerset Maugham, alguns dos acontecimentos de sua
infância foram os primeiros estímulos para iniciar a escrita de sua obra sobre seu personagem
Meister, que em sua primeira versão chamava-se A missão teatral de Wilhelm Meister ii. Na
infância, Goethe foi presenteado por sua avó com um teatrinho de fantoches e interessou-se
por escrever estórias e coloca-las em cena. Quando chega a Weimar, encontra um local ideal
para colocar suas ideias em prática, pois no local onde existia um pequeno circuito de teatro
amador.
Outra aproximação entre o autor e o personagem Meister é o contato de que ambos
tem com a obra de William Shakespeare. Em um de seus escritos Zum Schäkespears Tagiii
Goethe descreve a sua sensação ao ler a primeira peça de Shakespeare equiparando-a: “[...] à
de um cego de nascença que recupera a visão milagrosamente, a um prisioneiro que salta para
o ar livre e fora os grilhões que lhe prendiam.” (CARLSON, 1997, p.167)
A obra conta a trajetória de um jovem burguês em busca de uma formação “plena”,
fortemente vinculada às circunstâncias históricas e artísticas do contexto europeu vigente. Nos
primeiros cinco livros de sua versão definitiva, o personagem acredita que através do teatro
conseguirá a formação que tanto almeja e uma libertação de sua alma poética, impregnada da
visão limitada comumente atrelada ao seu “mundo burguês”. “O teatro e a poesia dramática
são, portanto aqui somente meios para o livre e pleno desenvolvimento da personalidade
humana.” (LUKÁCS, 1964 apud GOETHE, 2006, p.582).
No decorrer desta trajetória teatral, Meister depara-se com inúmeros artistas, amores,
pessoas das mais variadas classes sociais, sem deixar de buscar seu sonho de constituir-se
como ator profissional, sempre com o intuito da busca pela formação. E Goethe não cessava
de reforçar a diferença que havia entre atores que se mantinham na profissão apenas pelo
dinheiro girando ao redor do círculo de potenciais “mecenas” e do personagem principal que
buscava constantemente um aprimoramento da técnica. A partir do livro 6, o foco do romance
se altera e culminará no abandono de Meister pela vida teatral e em seu encontro com uma
família e com uma profissão especializada. “O teatro transforma-se, pois, num mero momento
do todo” (LUKÁCS, 1964 apud GOETHE, 2006, p.583). Mas qual a sua importância para o
contexto literário mundial?
Segundo as palavras de George Lukács: (1964 apud GOETHE, 2006, p. 581) “O
Wilhelm Meister de Goethe é o mais significativo produto da literatura romanesca entre os
séculos XVII e XIX.” Na Alemanha, até o momento da descoberta da obra de Goethe, o
romance era considerado como “... literatura trivial e de má qualidade.” (MASS, 2000, p.13)
O termo romance surge a partir de seu reconhecimento como obra “digna”. O termo provém
do latim romanic, através do francês romanz, “[...] roman designava uma narrativa longa, em
idioma diferente do latim clássico, na qual se representava o protagonista em suas relações e
divergências com o mundo exterior.” (MASS, 2000, p. 22) Somente a partir de outra obra de
Goethe Os sofrimentos do jovem Werther (1774) é que o romance estabelece-se e começa a
ser aceito pelo público e crítica.
Friederich Schlegel, a respeito da literatura então produzida pelos autores alemães,
estabelece uma divisão em categorias: Iluminismo, Pré-romantismo – que se relaciona
diretamente com o movimento Tempestade e ímpeto, Classicismo e Romantismo. Ainda
segundo a pesquisadora Wilma Patrícia Maas, é neste momento que há o nascimento de uma
“historiografia alemã”, ou seja, uma preocupação da obra em si relacionada às escolhas
estéticas e ideológicas do autor. O romance em questão funda um novo gênero, o
Bildungsroman iv que:
“[...] sob o aspecto morfológico, é relativamente fácil a compreensão do termo [...]
Por um processo de justaposição, unem-se dois radicais – (Bildung – formação – e
Roman – romance) que correspondem a dois conceitos fundadores do patrimônio
das instituições burguesas. (MASS, 2000, p. 13).
Norteado pelos dados apontados pela pesquisadora, os termos Bildung e Roman,
possuem atrelados a si um complexo emaranhado de significados e estes surgem juntos ao
propósito de construir uma identidade nacional alemã. Muitos críticos apontam que este
fenômeno, o Bildungsroman foi tipicamente alemão e caracterizava-se por um forte caráter
impregnado de um autêntico “espírito alemão” vigente na época e acabou estabelecendo-se
como uma das bases de produção para quase todas as literaturas de origem europeia,
incluindo a americana.
Não podemos deixar de pensar no contexto em que a Alemanha se encontrava diante
das outras potências europeias da época. A Alemanha era tida como atrasada, tanto em
relação ao progresso industrial quanto intelectual. A tecnologia e o pensamento eram
importados principalmente da França e Inglaterra, ao mesmo tempo em que há o surgimento
de uma nova classe, a burguesia, que cresce a partir das lacunas deixadas pelas relações
econômicas entre a nobreza e o povo. Toda esta efervescência repleta de ideias inovadoras,
tanto científicas quanto filosóficas, culminaram nesta “tomada de consciência” do povo
alemão em busca de sua identidade.
Foi a partir deste contexto social e pelos estímulos que recebeu em sua infância que
Goethe resolve escrever este romance que para a estudiosa Wilma Patrícia Mass configura-se
como: “A obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister permanece para a
história da literatura, como exemplar mais perfeito do gênero, como a realização
ideal de uma projeção histórica e literária conscientemente exercida por um grupo
social.” (MASS, 2000, p. 133)
Segundo Brito Broca há uma distinção entre vida literária e literatura: “Embora ambas
se toquem e se confundam, há entre elas a diferença que vai da literatura estudada em termos
de vida social para a literatura em termos de estilística.” (BROCA, p. 11, 1956). Para que
consiga estreitar os laços entre a vida particular do autor, o reflexo do mundo existente em seu
entorno e que o influenciava em sua escrita e em suas ideias, minha análise calca-se,
principalmente no contexto literário e intelectual que o cercava, destacando passagens de sua
obra que mostravam acontecimentos, estruturas e fazeres teatrais que só seriam
problematizados pelo aparecimento do encenador, no final do século XIX.
A partir das páginas seguintes começo a relacionar trechos da obra em questão,
principalmente dos cinco primeiros livros com os estudos da história e teoria teatral em
relação aos papeis do ator e principalmente do encenador. Retiro o seguinte fragmento do
texto de Goethe, no qual o narrador explicita como os atores em geral, no papel do seu ofício
deveriam agir: “Já se podia agora fazer o ensaio de leitura, que Wilhelm considerava propriamente
uma festa. Ele já havia colacionado previamente os papeis, de sorte que não poderia
ocorrer nenhum embaraço quanto a este aspecto. Todos os atores conheciam a peça,
e ele procurou apenas, antes de começarem, persuadi-los da importância de um
ensaio de leitura. Assim como se exige de todo músico que até certo ponto saiba
tocar à primeira leitura, assim também todo ator, ou mesmo qualquer pessoa bem-
educada, deve exercitar-se em ler à primeira vista, em captar imediatamente o
caráter de um drama, de uma narrativa e expô-lo com habilidade. Não ajudará em
nada memorizar tudo, se o ator não houver de antemão penetrado no espírito e no
pensamento do bom autor; a letra, em si, nenhum efeito irá produzir.” (GOETHE,
2006, pp. 301 e 302)
Na época em que Goethe escreve seu romance, ainda não existia uma técnica ou uma
maneira, ou verdadeiramente uma escola que ensinasse aos atores como dominar o seu ofício.
Existia naquele momento uma formação tradicional totalmente embasada nos preceitos da
antiguidade. Este patrimônio artístico era “imutável” e evoluía apenas em seus detalhes no
momento da execução. A formação mais difundida e respeitada da época formava intérpretes
do repertório clássico para o ingresso na Comédie-Française que continha-se apenas a ensinar
a falar bem e colocar-se em cena de modo que pudesse ser visto pelos olhos de todos público.
Ou seja, eram apenas repassadas as tradições herdadas por grandes comediantes e
religiosamente transmitidas. Já Goethe, tinha em mente, para o trabalho do ator, algo mais
abrangente e profundo: “Não apenas imitar a natureza, mas representa-la idealmente [...]
assim, deveria combinar verdade e beleza em sua atuação. (BERTHOLD, 2001, p.416)
Aos outros, que não necessitavam desempenhar grandes papeis, normalmente
aprendiam a maneira de representar, por eles mesmos ou em montagens da periferia
parisiense. A estes eram destinadas apenas participações como figurantes, “pontas”,
substituições e somente depois deste “estágio” é que conseguiam um ou outro “papel”. Para
estes aspirantes à arte teatral, as marcações eram simples chegando até proferir um breve
texto.
Por muito tempo, desde a Antiguidade até o determinado momento na escola francesa,
a arte do ator ou do comediantev - como era chamado, estava totalmente atrelada aos tratados
da retórica e muitas vezes associado à figura do orador ou declamador. A escola francesa era
alvo de inúmeras críticas em datas anteriores aos acontecimentos narrados por Goethe em seu
romance. Em 1694, o ator e dramaturgo italiano Evariste Gherardi que chegara à França anos
antes, criticava o ator que “[...] recita o que aprendeu de cor, sem levar em conta seu parceiro,
numa furiosa impaciência de se livrar do papel, ao contrário do comediante italiano que
interpreta tudo o que diz.” (ASLAN, 2005, p.6)
Os estudos do texto tinham como tendência geral lê-los como uma continuidade e não
apenas como fragmento de um todo. Existia então uma preocupação, explicita no fragmento
que retirei do romance, com o estudo preliminar deste texto: as indicações presentes no texto,
suas pontuações e do jogo que poderia surtir a partir deste. O professor do Conservatório
francês Pierre Regnier em seu estudo O Tartufo dos comediantes (1896) trazia um panorama
de interpretações mais antigas do papel principal – a partir do texto Tartufo, de Molière. Ele
anotava verso por verso “[...] a motivação de uma palavra posta em relevo ou uma pausa
respiratória.” (ASLAN, 2005, p.27) Parece-me que a intenção de Regnier era a criação de um
método, pois ele mesmo declarava que levou anos que compreender todos esses elementos de
maneira solitária e lamentava não ter tido contato com mestres e acesso à escritos que
pudessem tê-lo ajudado nesta empreitada.
Outro professor da época, Louis Jouvet, também da escola francesa, trazia algumas
inovações relacionadas ao primeiro contato dos atores com o texto:
“É preciso ler o texto como se não nos pertencesse, até que, de tanto ler as frases, de
repente tenhamos um sentimento de tal modo vivo, de tal modo profundo dessa
pessoa, que dizemos para nós mesmos: vou tentar dizê-los como ela as diria.
Infelizmente não fazemos isso. Tomamos o texto e dizemos a nós mesmos: vou
representa-lo.” (ASLAN, 2005, p.32)
Notamos que Goethe, talvez influenciado por sua viagem que fez à Itália (1786-1788),
traz ideias inovadoras ao contexto teatral alemão, através da narrativa de Meister,
contrariando preceitos da escola francesa vigente e mais aceitos pelos artistas da época.
Passamos ao próximo fragmento, onde durante os ensaios da peça Hamlet, de
Shakespeare, que seria encenada pela trupe comandada por Serlo e Meister, duas figuras
“aficionadas por teatro” vi davam grandes contribuições para as cenas:
“A presença desses dois homens se revelou bastante útil aos ensaios. Haviam
convencido sobretudo nossos atores de que, durante os ensaios, deveriam sempre
unir o gesto e à ação à palavra, tal como pensavam fazer durante a apresentação, e
através do hábito juntar tudo aquilo de um modo mecânico. Especialmente com as
mãos não deveriam fazer nenhum movimento vulgar, mesmo que fosse durante o
ensaio de uma tragédia; o ator trágico que no ensaio, se pudesse a tomar rapé, era
para eles motivo de temor, pois tinham por muito provável que, durante tal
passagem no decorrer da representação, daria por falta da pitada de rapé. Eram
inclusive da opinião de que nenhum ator deveria ensaiar com botas, se fosse
representar com sapatos. Mas nada, asseguravam eles, nada lhes causava mais
aflição que ver durante os ensaios mulheres com as mãos escondidas nas dobras das
saiais.” (GOETHE, 2006, p. 304)
No trecho retirado do romance de Goethe, notamos o termo “ensaio” no início do
fragmento. Comumente, segundo Patrice Pavis podemos entendê-lo como: “Trabalho de
aprendizagem do texto e do jogo cênico efetuado pelos atores [...] (PAVIS, 2005, p.129) Do
francês: répétition; do inglês: repetion, reherseal; do alemão: probe e do espanhol: ensayo.
Mas se a reflexão se aprofunda um pouco, o próprio Pavis salienta a partir das palavras do
célebre diretor Peter Brook que:
“[...] a palavra francesa evoca um trabalho quase mecânico, ao passo que os ensaios
se desenvolvem cada vez de maneira diferente, e são, às vezes criativos. Se não o
fossem ou se se prolongassem na repetição infinita da mesma peça, a morte do teatro
seria rapidamente perceptível. O alemão probe ou o espanhol ensayo (“tentativa”)
traduz melhor a ideia de experimentação e de tateio antes da adoção da solução
definitiva.” (PAVIS, 2005, p.129)
Não podemos deixar de destacar que mesmo que o enfoque de Brook seja numa
perspectiva mais contemporânea, o fragmento do romance mostra que existe uma tentativa de
uma visão mais arrojada em relação ao teatro que era feito e praticado no contexto de Meister.
Mostra-se no trecho acima, o início de uma preocupação com o “gestual”, diferente do
que se ensinava na formação tradicional do ator. A educação corporal era quase nula ou
inexistente. A maioria dos professores eram mestres na arte do “dizer”. Os atores da época
não tinham o costume de ensaiar continuamente. Para entrar em cena e apresentar uma peça
para o público, apenas deveriam seguir algumas normas pré-estabelecidas, além dos manuais
de retórica, já mencionados: nunca dar as costas para o público, respeito à cruz cênica (os pés
deveriam estar com as pontas separadas) e a posição ereta.
Os primeiros estudos do corpo como um todo que se têm notícias são as pesquisas de
François Delsarte (1811-1879). Delsarte criou seu Curso de Estética Aplicada a partir de suas
observações sobre os sentimentos exprimidos na vida real, da tradição clássica e de aulas de
anatomia. Seu curso era frequentado por uma gama de artistas de diferentes áreas: pintores,
compositores, atores, cantores além de padres e advogados. Deste curso criou dois grandes
fundamentos: a Lei da Correspondência e a Lei da Trindade. Em linhas gerais, ele supunha
que “[...] a cada função do espírito corresponde uma função do corpo, a cada grande função
do corpo corresponde um ato do espírito.” (ASLAN, 2005, p.37) Delsarte acreditava que o
gesto exprimia muito mais que palavras, e este deveria partir do coração, com o auxílio da
respiração e dos músculos do intérprete. Dividia a emanação dos gestos a partir de nove
regiões diferentes, englobadas em três focos (abdominal, epigástrico e torácico) chegando
assim a Lei da Trindade citada acima.
Alguns estudiosos acreditam que por influência da proposta delsartiana, o músico
Emile Jacques-Dalcroze criou a ginástica rítmica, primeiro como resposta aos bailarinos da
época por esquecerem de que o movimento interior é que dava sentido à expressão e ao gesto.
Seus princípios partem do questionamento das relações entre música e movimento e entre a
voz e os gestos. Acredita que exista o senso rítmico muscular “[...] que faz de nosso corpo o
instrumento em que se representa o ritmo, o transformador onde os fenômenos do tempo se
transformam em fenômenos do espaço.” (DALCROZE, 1965 apud. ASLAN, 2005, p.41).
Como o próprio nome sugere, a técnica parte de exercícios simples tendo como fio condutor a
utilização da respiração e outros temas rítmicos. O primeiro a aproximar esta técnica ao teatro
foi o diretor Adolphe Appia que colaborou com Dalcroze.
Tanto os estudos de Delsarte como a rítmica de Dalcroze, influenciaram os estudos de
Jacques Copeau, Constantin Stanislavski e outros estudiosos que iniciaram propriamente dito
de um método de ensino para os intérpretes, constituindo um novo modo de formação
artística.
Copeau em sua tentativa de desconstruir o ator, de todos os seus defeitos e manias,
funda em 1913 a Escola Vieux-Colombier dedicando-se a renovação da arte dramática. Dentre
seus inúmeros ensinamentos (ginástica-rítmica, a acrobacia, a dança entre outros) estavam
treinamentos específicos como a esgrima.
Em outro trecho do romance de Goethe, os “aficcionados pelo teatro” sugerem que
todos aqueles atores que fossem representar papéis de militares, deveriam aprender a lutar.
Outro exemplo de que Goethe estava avançado em relação aos discursos que eram proferidos
sobre a arte do teatro em outros pontos da Europa.
Ainda sobre o ensaio, Goethe nos mostra sua preocupação, através de Meister e dos
“aficionados” em transformar os atores e consequentemente o teatro, a partir de técnicas de
aperfeiçoamento. Podemos destacar outros trechos que nos levam a pensar desta maneira:
“[...] recomendar expressamente aos atores o seguinte ponto fundamental: o dever que tinham
de falar em voz alta e clara.” (GOETHE, 2006, p. 305) E para tanto, sugeria exercícios como
este: “Este [Meister] pediu a todos que, durante os ensaios, se sentassem nos cantos mais
distantes e batessem com uma chave no banco toda vez que não ouvissem
claramente. Ele articulava bem, expressava-se com moderação, subia o tom
gradualmente e não gritava nem mesmo nas passagens mais violentas. A cada novo
ensaio ouvia-se menos o bater das chaves; pouco a pouco os outros foram aceitando
a mesma operação, e já se podia esperar que ao final da peça fosse ouvida por todos
em todos os cantos da casa.” (GOETHE, 2006, p. 305)
A normatização de um método interpretativo moderno e relativo à peça que seria
montada só apareceria com estes “locais de experimentação” criados por Copeau na França, o
Estúdio de Stanislavski no Teatro de Arte de Moscou e, mais tarde, o Laboratório de
Grotowski em Opole.
Outro fato interessante na obra é o papel que Meister se encontra no romance que além
de adaptar, atuar e dirigir, cria todo o contexto artístico relacionado à montagem da peça
Hamlet, antecipando o aparecimento de uma figura conhecida posteriormente na história da
teoria teatral como encenador. Destaco três trechos do romance onde se evidencia esta figura,
em alguns fatores que envolvem uma encenação: escolha do recorte do texto, escalação do
elenco e cenografia/espacialidade da cena.
“[...] pude distinguir duas vertentes na composição desta peça: a primeira, refere-se
às grandes e íntimas relações das personagens e dos acontecimentos, aos poderosos
efeitos derivados dos caracteres e atos dos protagonistas [...] a segunda vertente que
deve ser observada nessa peça. Refiro-me ás relações exteriores das personagens,
pelas quais elas são levadas de um lugar ao outro [...] Minha proposta, portanto, é
não tocar absolutamente naquelas primeiras e grandes situações, conservando-as tão
cuidadosamente quanto possível tanto em seu conjunto quanto ao seu detalhe, mas
rejeitar de vez estes motivos exteriores, particulares, dispersivos e dispersadores,
substituindo-se por um só. (GOETHE, 2006, p. 290)
“Já haviam discutido previamente os papéis: Serlo faria Polônio; Aurelie, Ofélia;
Laertes já estava predestinado pelo próprio nome; um jovem recém-chegado
atarracado e muito vivo, recebeu o papel de Horácio; quanto ao rei e ao espectro
havia um certo embaraço.” (GOETHE, 2006, p. 293)
“Deveríamos mostrá-los – dizia Wilhelm – em tamanho natural, no fundo da sala, ao
lado da porta principal, e o do velho rei, com a armadura completa, como o espectro,
deve estar pendurado justamente na parte da sala por onde ele entra.” (GOETHE,
2006, p. 306)
Podemos concluir, segundo as palavras de Patrice Pavis que o encenador é: “Pessoa
encarregada de montar uma peça, assumindo a responsabilidade estética e organizacional do
espetáculo, escolhendo os atores, interpretando o texto, utilizando as possibilidades cênicas à
sua disposição.” (2005, p. 128) Continuando com as reflexões relativas ao termo, o autor
ainda descreve que seu surgimento situa-se na primeira metade do século XIX, mas existiram
indivíduos que praticavam ações que poderiam ser mencionados como seus precursores.
Na Antiguidade clássica, o didascalo era o próprio autor e organizador; na Idade
Média existia o meneur de jeu, ou seja, o condutor do jogo. No Barroco e Renascimento eram
os arquitetos ou cenógrafos que organizavam de acordo com o seu ofício e por fim, no século
XVIII os atores Iffland e Schröder serão os grandes ensaiadores, coincidindo com a exposição
de Goethe em seu romance.
Segundo Jean-Jacques Roubine (1998, p.14) a encenação torna-se uma arte autônoma,
somente a partir do ano de 1887, quando Antoine funda o Théâtre-Libre. Outros estudiosos
elencam outras datas que marcam esta nova etapa da história do teatro. São eles: 1866, com a
criação da companhia dos Meininguer ou 1880, com chegada de iluminação elétrica na
maioria das salas de teatro da Europa. Não há, portanto um consenso entre os estudiosos, em
relação ao surgimento exato do termo.
Inúmeros fatos desenvolvem-se nos últimos anos do século XIX para a chegada deste
dito Teatro moderno, onde a encenação torna-se o centro de um intrincado “maquinário
teatral”. Até aproximadamente 1840, existia uma fronteira, tanto geográfica quanto política,
dos preceitos vindos da França e da estética shakespeariana. A partir de 1860, estas barreiras
rompem-se e não existem maneiras de mantê-las restritas à apenas um determinado local.
Começam a aparecer em diversas cidades da Europa, espetáculos com certas características
que se compõem num movimento que será chamado de naturalismo. Grande parte deste êxito
de uma multipolaridade cênica é em decorrência das turnês empreendidas pela companhia dos
Meininger, por diversos países da Europa, excetuando-se a França, que pelo que podemos
supor, não aceitava as ideias que eram vindas a partir da crítica intelectual do restante da
Europa.
Podemos concluir que a partir desta época, o encenador passa a ser o grande
responsável pela ordenação do espetáculo. Não só por todas as grandes inovações da época,
mas também por um fator que ainda não foi mencionado: o público. “[...] não há mais para os
teatros, um público homogêneo [...] não existe mais nenhum acordo fundamental prévio entre
espectadores e homens de teatro sobre o estilo e o sentido destes espetáculos.” (DORT, 1961
apud PAVIS, 2005, p.122).
Segundo Roubine, por convenção, considera-se Antoine o primeiro encenador do
Teatro Moderno, pois foi o primeiro a imprimir uma assinatura na encenação como arte
autônoma. Foi um grande inovador e soube como nenhum outro mesclar as inovações
científicas com as práticas teatrais.
Continuando com as reflexões de Pavis, este propõe a partir dos estudos do escritor
francês Alain Veinstein duas definições para o termo encenação. Uma do ponto de vista do
público e outra da perspectiva dos especialistas:
“[...] o termo encenação designa o conjunto dos meios de interpretação cênica:
cenário, iluminação, música e atuação [...] Numa acepção estreita, o termo
encenação designa a atividade que consiste no arranjo, num certo tempo e num certo
espaço de atuação, dos diferentes elementos de interpretação cênica de uma obra
dramática. (VEINSTEIN, 1955 apud PAVIS, 2005, p.122).
Para que todos estes elementos estejam colocados harmoniosamente em cena,
percebemos a necessidade de um indivíduo que possa criar sua obra, conciliando os diversos
elementos cênicos. Sua decisão sobre a maneira de apresentá-los poderá privilegiar alguns
elementos em detrimento a outros, criando assim uma coerência que talvez somente para o
pensamento único do encenador faça sentido, mas assim que posta em cena mostra-se ao
grande público como uma apresentação concreta e representável. Uma visão particular que
dará forma à nova significação.
Percebemos alguns destes aspectos no personagem de Meister quando este se coloca
no papel de “encenador”. E também podemos perceber a preocupação de Goethe em colocar
esta situação de aprendizado de Meister em destaque, utilizando o próprio teatro como
metáfora para reflexão.
Numa passagem do texto em que há uma discussão entre Meister e Jarno – um
misterioso personagem que posteriormente descobre-se fazer parte de uma sociedade secreta –
este deixa claro que o teatro é um reflexo da vida. “Pois saiba, meu amigo [...], o que
descreveu não foi o teatro, mas o mundo, e que poderia eu encontrar em todas as classes
sociais personagens e ações suficientes para suas duras pinceladas.” (GOETHE, 2006, p.417)
Mas como reforça Lukács, a escolha do contexto teatral e a peça de William Shakespeare
Hamlet não foram um mero acaso.
“[...] para Goethe a questão shakespeariana ultrapassa e muito a esfera do teatro.
Shakespeare é, para ele, um grande educador para uma humanidade e personalidade;
seus dramas são, para ele, modelos do modo como o desenvolvimento da
personalidade atingiu a plenitude nos grandes períodos do humanismo e de como
esse desenvolvimento deveria se completar no presente.” (LUKÁCS, 1964 apud
2006, p.583)
Por esta breve análise, podemos afirmar que Goethe foi um grande fomentador da arte,
estando sempre à frente de seu tempo. Auxiliou na construção de um “teatro nacional” onde
houvesse uma preocupação com a estética aliada a dramas que se adaptassem nos diferentes
países da Europa, como era o caso das peças de Shakespeare. Anteriormente à esta tentativa
de uma criação deste “teatro nacional”, só haviam os teatros feitos pelas trupes de
comediantes itinerantes e o teatro feito sob encomenda pela corte. No período em que foi
diretor do Teatro de Weimar, a partir das tentativas anteriores para a criação do “teatro
nacional”, tomou suas melhores realizações e encenou além de Shakespeare, Schiller, Iffland
e peças de sua própria autoria.
“As metas propostas e as realizações efetuadas no seu exercício da intendência
teatral continuaram a exercer influência direta e às vezes indireta no teatro alemão.
Berlim e Viena tinham estreitas ligações com Weimar; nos países de língua alemã,
ambas tornaram-se foco do desenvolvimento e do destino da herança clássica e das
formas classicistas.” (BERTHOLD, 2001, p. 420)
Segundo a autora, Goethe é autor do chamado Regeln für Schauspielervii
que consiste
num apanhado de anotações e notas coletadas por John Peter Eckermann em 1824. Mas este
não se configura como uma obra de grande significação para o teatro universal e torna-se se
comparada a outras, como obsoleta. Sua importância no campo teatral calca-se em sua busca
por uma linguagem que pudesse refletir a sociedade da época com uma visão acerca de seu
futuro, mesclando literatura e realidade. E uma de suas ações foi a problematização que
propôs através de seu romance Os anos de aprendizado de William Meister, em que nos
apresenta uma narrativa recheada de intrigas, desenlaces e revelações contundentes muito
bem amarradas num contexto de um jovem burguês que busca sua formação através do teatro.
Ao mesmo tempo em que nos dá um panorama teatral da época em que foi escrito e antecipa
em muitos aspectos os estudos relacionados à arte do teatro que só deixariam grandes marcas
anos mais tarde.
iDo original alemão Sturm um Drang. Este nome foi dado por um componente do movimento C. Kaufmann de Winterlhur, a partir do título extraído do drama Der Wirrwarr (A confusão) de Maximilian L. Klingers. Configurou-se num movimento que se opunha às ideias do Iluminismo e dos princípios Aristotélicos, que dominavam o pensamento francês da época. (BERTHOLD, 2001, p. 412) iiNão tive acesso a esta primeira versão, mas segundo o estudo de diversos críticos, esta obra é composta de
seis livros e complementava-se sobre ela mesma. A segunda e definitiva versão, datada em 1796, condensa a obra anterior em cinco livros e a estes são agrupados mais três livros, constituindo-se como um compêndio sobre uma configuração completa da sociedade burguesa da época. A versão definitiva, porém; segundo o crítico Georg Lukács (2006) adota a maioria dos personagens, a ação e as cenas isoladas que serão posteriormente agrupadas e apesar de ter suprimido alguns acontecimentos por serem meramente necessários para o signo teatral, aprofunda e coloca em primeiro plano, fatos relacionados ao teatro que podem ser entendidos por Goethe, como paradoxo para um entendimento do comportamento humano. iii À propósito do dia de Shakeseare. (CARLSON, 1997, p. 167)
ivO termo Bildungsroman foi criado pelo professor de Filologia Clássica Karl Morgenstern em 1810, mas só é
difundido academicamente a partir dos estudos do filósofo idealista Wilhelm Dilthey, em 1870. (MASS, 2000, pp. 13 e14) vO termo comédien, na maioria das vezes é traduzido como ator. Especificamente em português, ele é atrelado
apenas ao gênero cômico. Mas, a partir de uma perspectiva clássica, para Jouvet e Diderot, ambas as palavras possuem especificações distintas. O ator é aquele que só pode interpretar papeis que correspondem ao seu emploi ou à sua imagem e o comediante aquele que pode desempenhar todos os tipos de papeis, independente de suas características físicas. (PAVIS, 2005, p.57) viEstes “aficionados por teatro” eram os chamados Dramaturg. O primeiro Dramaturg foi Lessing: sua
Dramaturgia de Hamburgo (1767), coletânea de críticas e reflexões teóricas, está na origem de uma tradição alemã da atividade teórica e prática que precede e determina a encenação de uma obra. O alemão distingue, diversamente do francês, o Dramatiker, aquele que escreve as peças, do Dramatur, que é quem prepara sua interpretação e sua realização cênica. As duas atividades são desenvolvidas simultaneamente pela mesma pessoa. (PAVIS, 2005, p.117) vii
Regras para o ator (BERTHOLD, 2001, p. 418)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ASLAN, Odette. O ator do século XX: evolução técnica problema da ética. Tradução:
Raquel Araújo de Baptista Fuser, Fausto Fuser e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2005.
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. Tradução Maria Paula V. Zurawski, J.
Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2001.
BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura, 1956.
CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico dos gregos à atualidade.
Tradução: Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997.
GOETHE, Johann Wolgang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Tradução:
Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006.
MAAS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. O Cânone mínimo: o Bildungsroman na história
da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
MAUGHAM, William Somerset. Os três romances de um poeta. Pp. 1- 40. In: Pontos de
vista. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1964.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução: J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São
Paulo: Perspectiva, 2005.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Tradução e apresentação: Yan
Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
E SE SOMENTE VÍSSEMOS O PRETO INFINITO DA CAIXA CÊNICA NO
LUGAR DAS CORES E FORMAS DOS CENÁRIOS PARA O REI DA VELA?
ENTRE A TRADIÇÃO DA CAIXA CÊNICA ITALIANA E O NEO-
HUMANISMO
Regilan Deusamar Barbosa Pereira (Doutoranda bolsista CAPES) Orientadora Evelyn
Furquim Werneck Lima; Centro de Letras e Artes; UNIRIO
As estrelas guiaram os navegantes por ocasião da descoberta das Américas. E em
meados do século XVII, o humanista Dom Emanuele Tesauro poeticamente constatou:
“as estrelas brilham no escuro”, cuja obra a respeito de estudos aristotélicos 1
afirmava a possibilidade de se “estabelecer conexões entre as coisas, ainda que sejam as
mais díspares”. Díspar, no entanto, poderia ter sido o manifesto apresentado pelo Teatro
Oficina, que na estréia de O rei da vela afirmou a necessidade de reinvenção do teatro,
porém apresentou uma realização na caixa cênica italiana. Que reinvenção foi esta
então, que ficou na História do Teatro brasileiro? Talvez seja mais propício principiar-se
uma análise a respeito da História da Imagem no Teatro Brasileiro.
Certamente se as estrelas não brilhassem na escuridão do cosmos, homens e
mulheres teriam encontrado outro ponto luminoso para o qual direcionariam sua
potencia criadora. Antes mesmo das grandes navegações, Platão no século IV a. C. criou
a alegoria da caverna, na qual ele afirmou que a astronomia era uma das ciências que
facultavam à humanidade conhecimento no campo das idéias. Com relação ao espaço da
caixa cênica italiana, esta alegoria pode auxiliar enquanto dado para análise comparativa
entre esta e a encenação de O rei da vela em 1967 no espaço do Teatro Oficina no qual
o cenógrafo Helio Eichbauer organizou uma disposição cênica frontal como forma de
relação entre palco e platéia. Esta tradicional fruição da cena teatral de fato demanda do
espectador atitude contemplativa e reflexiva, inclusive imaginativa, à maneira dos
vislumbres imaginativos observados por homens e mulheres na alegórica caverna
platônica, porém tal fruição da cena é diversa da demanda de fisicalidade que as artes
desde finais dos anos 1950 proclamaram e que no Brasil da ditadura militar artistas
como Helio Oiticica e Ligia Clark experimentaram.
A aparente dualidade entre reflexão e presença, no sentido de que a primeira não
demanda movimentação física não é considerada nestes estudos, pois em relação ao
teatro, estudiosos como Patrice Pavis, já afirmaram o estado de mobilidade em que se
encontra um espectador 2, da mesma forma compreende-se que o participante de uma
experiência performática não está impedido de refletir sua vivência no ato da
performance. Portanto, o alvo de interesse se direciona á maneira como a encenação de
O rei da vela abalou os sentidos do espectador com imagens irreverentes e conseguiu
juntamente com platéia, atores e realizadores cênicos pensar as artes e a sociedade no
Brasil sob novos parâmetros, que foram os do deboche, da paródia, da mordacidade,
com o intuito de tornar a todos conscientes da apatia e falta de atitude diante de um
Brasil envelhecido pela corrupção, exploração, ignorância, abusos de poder e tantas
outras mazelas corrosivas e sugadoras da potencia vital social.
Primeiramente, ao serem analisadas as palavras do diretor José Celso em O Rei
da vela: manifesto do Oficina, percebe-se que justamente o que interessou a este diretor,
aos atores, ao cenógrafo Helio Eichbauer e demais realizadores foi justamente a maneira
anárquica de Oswald de Andrade, autor do texto, tratar as reincidentes problemáticas
culturais e políticas brasileiras. A começar pela forma de apresentação do Oficina:
manifesto. Em 1928 Oswald de Andrade lançou seu Manifesto Antropófago na primeira
edição da sua Revista de Antropofagia, designada como “primeira dentição” 3.
Similarmente, a escrita do manifesto do Teatro Oficina se constituía de paródias,
intertextualidades, transgressões gramaticais os quais são visíveis nas fotografias
documentais que exibem as caracterizações dos personagens, os telões pintados, a
dimensão erótica dos adereços e dispositivos de cena em O rei da vela. Oswald de
Andrade escreveu a peça na década de 1930 e em 1967 o Teatro Oficina encenou a
atualidade daquela crítica voraz ao Brasil, a qual continuava inédita nos palcos
brasileiros, cujo ineditismo denunciava os entraves da cena teatral até àquele período. E
apesar de Vestido de noiva de Nelson Rodrigues ter causado grande revolução cênica em
1943, as peças posteriores deste dramaturgo contrariamente não foram bem recebidas e
receberam a denominação de “malditas”, e a irreverência desta encenação rodriguiana,
com a histórica cenografia de Tomás Santa Rosa que expôs os diferentes planos
temporais da peça, acompanhando a fragmentação da narrativa, rompendo com o
bidimensional dos telões pintados do Teatro de Revista dos anos 30 e 40, ficou isolada
no contexto teatral brasileiro, portanto todo este conjunto revolucionário eclodiu, mas
não deixou filiações, de acordo com as considerações de Décio de Almeida Prado que
destacou a ênfase no apuro formal promovido pelo Teatro Brasileiro de Comédia, o
TBC e a preocupação nos anos 1950 por parte de autores brasileiros com a elaboração
de uma dramaturgia nacional 4. Este panorama justificou o comentário cáustico de José
Celso no Manifesto do Oficina de que o Brasil precisava construir uma nova história nas
artes, na sociedade e na política 5.
Helio Eichbauer criou a cenografia, os figurinos e a caracterização dos
personagens para O rei da vela e sua realização se deu em franca conversa com José
Celso, com os estudos de novas linguagens de atuação que os atores estavam
empreendendo que incluíram Artaud, Grotwski, Brecht. A partir desta conjunção a
realização cênica produziu uma imagem transgressora, no mesmo tom da crítica
destemida empreendida pelo modernismo literário de Oswald de Andrade. A força de
cada um destes componentes visuais da cena, que são os cenários, figurinos e
caracterização se agigantou diante da platéia porque as imagens proporcionadas eram
eloqüentes e mordazes, como visões satíricas de um Brasil decadente no qual todos,
platéia e atores, estavam mergulhados, na verdade naufragados, cuja terra à vista era tal
qual a Baía da Guanabara ilusória apresentada na peça, hipotecada ao capital
estrangeiro, ao Mr. Jones, de acordo com a interpretação de José Celso.
A peça se dividia em três atos. Cada um destes se constituiu de telões pintados,
os quais segundo Helio Eichbauer em seu livro Cartas de Marear tinham dupla fonte de
referência: os telões produzidos pelo Teatro de Revista brasileiro e as pinturas
modernistas de Tarsila do Amaral, Anita Malfati entre outros. Como tais referências
construíram não somente as cenas e imagens cheias de sarcasmos que se tornaram
característicos do Teatro Oficina, inclusive permitiram que esta encenação ficasse
conhecida historicamente como revolucionária, transgressora de padrões teatrais? Pois
os telões pintados do teatro de revista eram ilustrativos, tinham a função de mostrar o
lugar da ação, e mesmo que fosse uma história fantasiosa, ainda assim o telão
representava o ambiente em questão. Já a pintura modernista não tinha este cunho
ilustrativo, muito pelo contrário, tratava-se de evocar a alma brasileira em cores e
formas. Abaporu de Tarsila do Amaral foi a pintura eleita por Oswald de Andrade para
estampar seu Manifesto Antropófago justamente por tratar, no entendimento de Oswald
e Mario de Andrade da alma de um novo nacionalismo emergente, a identidade de
brasileiros conscientes da sua originalidade de fauna, flora exuberante, mas também
citadina, ávida por novidades modernas e por isso antropofágica, daí a busca por uma
identidade nacional 6 à maneira do Abaporu, termo tupi que quer dizer homem que
come, mas mesmo esta pintura não ilustrativa, porém rica em significados, já não
condizia com o discurso artístico de finais dos anos 1960 que pregava a inclusão do
espectador, sua vivência artística, mais do que sua atitude contemplativa, típica da
atitude de um observador num museu, portanto constata-se que não foram os dados
funcionais dos telões cenográficos das revistas teatrais e nem a dimensão estética das
telas modernistas que promoveram transgressões, mordacidade, ironia, deboche,
distanciamento crítico relatados nas análises históricas de O rei da vela, que além de
todas estas irreverências, ainda foi relacionada ao movimento tropicalista, que
reivindicava a identidade tropical brasileira, que andava obscurecida pelas sombras da
ditadura militar, mas a renovação dos cânones da caixa cênica sem sair do interior da
mesma.
De volta às estrelas de Dom Emanuele Tesauro, que sugeriu a liberdade de
pensamento no ato de conectar referências aparentemente díspares, donde a sugestão
desta pesquisa de estudar a histórica encenação de O rei da vela em comparação com a
alegoria da caverna de Platão apresenta-se, portanto o primeiro ponto de conectividade:
a caverna propriamente dita. Na alegoria as imagens ilusórias são vislumbradas pelas
criaturas da caverna como uma espécie de teatro de sombras, promovido por tochas
acesas. Primeiramente é importante esclarecer que tal comparação tem a finalidade de
rever a originária missão civilizatória da caixa cênica italiana, apesar de tal missão ser
considerada arbitrária. Compreende-se, porém que é importante se avaliar a promoção
de análise crítica da realidade social que este edifício possibilita através dos seus
mecanismos de produção de ficção e que tais mecanismos demandam uma técnica
apurada, atributo dos atores, cenógrafos, figurinistas, iluminadores, sonoplastas, donde a
importância das escolas que tratam da formação destes realizadores.
A alegoria platônica designa as imagens projetadas na caverna como ilusórias
em relação à realidade externa. As criaturas que ali se encontram estão ignorantes do
conhecimento a respeito da natureza e do cosmos, a partir de então Platão começa a
enumerar as modalidades de conhecimento científico necessárias aos que desejam sair
da obscuridade da caverna. Uma delas trata da astronomia 7, a ciência que estuda os
posicionamentos e movimentações dos corpos celestes. Nesta análise comparativa o
estudo destes corpos celestes que pode promover ascensão ao conhecimento, numa
aproximação nem tão díspar assim, se refere aos atores, popularmente conhecidos como
astros e estrelas no negro universo infinito da caixa cênica. A visão ilusória é o enredo,
a narrativa, ainda que fragmentada, processual, ilógica, de acordo com as diversas
vertentes da dramaturgia contemporânea, porém na “caverna cênica” a narrativa
funciona como o que Platão designou como de fundamental importância que é o estudo
do Ser. Nesse contexto a encenação de O rei da vela acendeu uma enorme tocha
iluminadora na “caverna teatral brasileira” em finais da década de 1960 ao rever os
telões do Teatro de Revista brasileiro.
Embora José Celso, a partir do texto de Oswald de Andrade, utilize a imagem da
vela acesa como metáfora dos que velam o cadáver do Brasil, esta análise comparativa
considera que a imagem deste apetrecho luminoso pode se transformar na metáfora de
um enorme archote a levar luz à obscuridade das artes cênicas no Brasil, que em 1967
se encontrava entre os reveses da ditadura militar, que se encaminhava para uma
posição ainda mais cerceadora com a decretação do Ato Institucional nº 5 em 1968. O
contexto teatral brasileiro em 1967 se encontrava fortalecido por experiências cênicas
politizadas com destaque para as realizações do Teatro de Arena de São Paulo que desde
finais dos anos 1950 estivera a realizar encenações neste espaço cênico circular que
permitia montagens mais baratas e renovação da relação entre palco e platéia, diferente
da frontalidade do palco italiano, embora mais modesta em termos de formulação
cenográfica. Contava também com experimentações da técnica do teatro épico no
contexto dramatúrgico pelo Centro Popular de Cultura, o CPC que se originou de um
grupo de intelectuais, artistas, estudantes 8 também em São Paulo e ainda realizações no
Rio de Janeiro com a estréia em 1964 da cena musicada do Opinião, também de cunho
político, de crítica à atitude ditatorial de então, porém a visualidade de O rei da vela foi
de um estarrecedor impacto, o qual não se tratava somente de materialidade plástica,
mas de revisão crítica da cena pictórica do Teatro de Revista brasileiro, conjugada à
interpretação visual de cores e formas das artes visuais do Movimento Modernista no
Brasil, iluminando desta maneira, como um enorme archote, a teatro e as artes
nacionais. E toda esta visualidade em tom mordaz, à maneira das “dentições” da Revista
de Antropofagia de Oswald de Andrade.
Os croquis de cenário de Helio Eichbauer para o Rei da vela revelam materiais e
designam formas estruturais que eram verificáveis nos cenários construídos para o
Teatro de Revista brasileiro, tais como o pano de boca 9 e os rompimentos
10. No Teatro
de Revista estas estruturas funcionavam num conjunto para manter a configuração de
um realismo ilusório relativo ao contexto da peça. Todos os mecanismos que pudessem
denunciar a estrutura mecânica do palco eram escondidos pelo aparato cenotécnico para
que a platéia se envolvesse com a ambientação da narrativa, evitando-se a quebra da
ilusão e permitindo somente a magia cinética. Na encenação de O rei da vela esta
estrutura de movimento que compreende as movimentações dos telões no urdimento
tinha a mesma dinâmica de subidas e descidas, porém sem a preocupação de esconder
seu funcionamento técnico, inclusive Luís Carlos Maciel, que ministrou o curso
“interpretação social” aos atores do Oficina, relatou a técnica brechtiana que trabalhou
com os atores e a finalidade de conferir uma atuação de distanciamento crítico ao
conjunto da encenação 11
e mesmo a caracterização dos personagens, criada por
Eichbauer, que apresentava os atores com rostos pintados como se estivessem
mascarados, propiciava a quebra do ilusionismo.
A irreverência destes telões estava nas imagens propriamente, que ironizavam o
tropicalismo brasileiro. Estava mais para tropicaliências de um neo-humanista, Helio
Eichbauer, que com grande domínio técnico do funcionamento da caixa cênica italiana,
reviu de forma crítica a estrutura formal e histórica de um momento específico do teatro
e das artes visuais à maneira de um Leonardo da Vinci que dissecava cadáveres para
melhor conhecer a estrutura do corpo humano e assim projetar históricas personagens
sob reinvenções pictóricas. Mas não somente por isso Helio Eichbauer constrói o neo-
humanismo no teatro. Ele sempre foi um estudioso da história e da ciência. Em 1967 ele
tinha apenas 26 anos e apesar da pouca idade criou cenografia, figurinos e
caracterização para uma encenação que ficou na História do Teatro Brasileiro.
Considera-se que seus precoces conhecimentos profissionais e artísticos originam-se
não exclusivamente nos seus anos de aprendizado em princípios dos anos 1960 com o
tcheco Josef Svoboda, renomado cenógrafo da história internacional do teatro, mas
conforme seus relatos em seu livro lançado em 2013, Cartas de marear, no apreço que
tinha desde a infância pela literatura, teatro, ópera e todas estas interligadas como
narrativas poéticas e históricas, as quais o levaram a matricular-se na Escola Nacional
de Filosofia no Rio de Janeiro, onde hoje se encontra o consulado da Itália. Nesta escola
Eichbauer foi introduzido nos estudos da filosofia clássica, cujos mestres pré-socráticos
e posteriormente Aristóteles, Platão e os demais filósofos deste período forneceram as
bases a partir das quais o Renascimento fundamentou a filosofia humanista, o berço do
edifício teatral italiano 12
e de sua missão civilizatória. Eis, portanto, a conexão de dados
distantes no tempo, porém pertinentes: Eichbauer e seu neo-humanismo que fez da
cenografia para o Rei da vela uma revisão da arte e da história do Brasil dos anos 20 aos
40, revendo, portanto a pintura dos modernistas e o teatro de telões pintados, técnica
pictórica e ilusionismos, estética e cinética do palco à italiana.
Porém, falar em missão civilizatória na encenação de O rei da vela somente se
for de acordo com os avessos pertinentes ao sarcasmo e ao deboche, com a finalidade de
iluminar com este enorme archote a história enviesada da política brasileira, à maneira
de uma missão às avessas, que no lugar de uma bela proposição das unidades
aristotélicas, da apresentação das virtudes do herói, da proposição de um fundo moral à
narrativa, a catarse se faça segundo as palavras de José Celso em seu manifesto: “[...]
apresentando tudo a partir de um cogito muito especial. Esculhambo, logo existo!” 13
E
justamente nesta frase do diretor encontra-se o cerne desta encenação, a qual trata de
apresentar, mostrar e foi o que Eichbauer fez a partir dos telões e das imagens que estes
evidenciam, daí o estudo de História da Imagem.
Segundo nos esclarece José Celso o primeiro ato apresenta o escritório de usura
do personagem Abelardo I, cuja idéia subjacente é a de que o país é hipotecado e neste
contexto valores, homens, mulheres, sentimentos, tudo e todos se tornam mercadoria.
Esta é a cena de apresentação da barbárie desta negociação e de seu bárbaro negociador
Abelardo I. Este personagem foi interpretado pelo ator Renato Borghi, porém Eichbauer
apresenta ao espectador um enorme boneco que tem aproximadamente a altura do pé
direito do palco com um enorme pênis que Borghi também manipulava. A imagem deste
boneco e de seu sexo exacerbado configurava o tom agressivo e mordaz, que tem poder
de “infectar” o espectador com suas “ejaculações”, de acordo com os termos de Did-
huberman, que afirma que a infecção se dá por conta de uma “figuração em ato” 14
, o
que se tem então, não é mais um espectador diante de uma imagem e numa postura
reflexiva em relação à mesma, mas uma relação de contato a desnortear a assistência.
Unicamente a visão de um boneco com seu sexo desmesurado infecta de valores às
avessas, de questões até então obscurecidas e insuspeitadas, imagem causadora de
vertigem, porque é uma “figuração em ato”.
O segundo ato se passa às margens da Baía da Guanabara no Rio de Janeiro. Em
relação ao telão que se apresenta nesta cena em azuis, verdes e amarelos dos céus e das
bananeiras verificam-se não só o Brasil tropical, como referência do Movimento
Tropicalista, mas ao mesmo tempo as cores e formas estilizadas do Brasil modernista e
antropofágico que apresenta o Cristo Redentor no cume da montanha com a urbanidade
citadina à beira-mar, inclusive o tom de ironia do personagem Abelardo mascarado no
centro desta composição paisagística sobre uma poça de sangue, como um vampiro
sugador de vidas. Mais uma vez a força da imagem é vertiginosa, pois ela mescla os
desiguais, o mar e o sangue e sem nenhum realismo, exibindo com tenacidade as cores
da bandeira nacional como uma imagem vendida e caricatural das históricas “bananas is
my business” emoldurando o palco das ilusões. E se no primeiro ato o espectador foi
infectado pela figura também vertiginosa do gigante Abelardo I, no segundo ato a
luminosidade dos verdes e amarelos exibe o sangue da nação contaminada pela
barbárie, sob os pés do negociante sem escrúpulos. O que se experimenta visualmente é
a extravagância dos bárbaros ilustrada no interior da caverna, a caixa cênica italiana.
A imagem que se apresenta neste segundo ato de O rei da vela entre as
conceituações de imagens projetadas em Platão e as imagens infecciosas em Did-
Huberman corrói consciências 15
porque suas cores e sua figuração são tão significativas
da identidade nacional pretendida, não nos esqueçamos, pelo Movimento Moderno
Brasileiro, pois remetem diretamente ao que todo brasileiro conhece, o verde, azul e
amarelo das matas, do mar e do sol presentes na bandeira, que a caricatura das mesmas
denuncia a deformação de comportamentos e valores. E para reforçar esta crítica o ato
finaliza com um quadro que desce do urdimento no qual se lê trechos de A pátria de
Olavo Bilac: “Criança... nunca, nunca verás nenhum país como este”, ao som de
Descobrimento do Brasil de Heitor Villa-Lobos. 16
Esta conjunção artística e histórica,
pois se trata também de História do Brasil, que formula um estudo apurado conjugado a
um exímio conhecimento da potencia e da técnica cinética da caixa cênica italiana são
característicos da sistemática de estudos humanísticos e colaboram com a concepção
das imagens, cujos signos são infectantes. Daí a eficácia e a imponência deste neo-
humanismo de Helio Eichbauer, pois este sistema confere abrangência em termos de
conteúdo e articulação de técnica com filosofia que são iluminadoras enquanto análise
crítica. É justamente porque esta cientificidade tem a possibilidade de iluminar histórias
e saberes que se encontravam na ignorância que Platão discrimina suas matérias, as
quais encaminham o ser ao conhecimento, ainda que exclusivamente pelas vias da
lógica. Considera-se, no entanto que a própria história da humanidade demonstrou que a
inflexibilidade do raciocínio lógico restringe o saber, – as duas grandes guerras na
primeira metade do século XX configuram o ponto culminante das vias negativas da
lógica – pois se compreende que o conhecimento se dá em conjunto com os sentidos e
as sensações, daí o entendimento de que a apreensão da lógica humanística como
ferramenta de análise crítica precisa de revisão e flexibilidade e o neo-humanismo de
Helio Eichbauer demonstra esta maleabilidade.
É preciso considerar que este estudo compreende a análise específica de um
objeto artístico: a cenografia para o Rei da vela. Concernente a este objeto encontram-se
dois fatores: 1) o próprio cenógrafo já afirmou a sua formação humanista 17
; 2) a análise
deste mesmo objeto principia, de maneira experimental, um estudo que conjuga as
ferramentas da semiologia que trata das cores, formas, estruturas cênicas às ferramentas
da fenomenologia para abordar a relação entre o palco e a platéia. Esta conjugação se
fundamenta na afirmação do semiólogo da cena Patrice Pavis, cujo estudo já citado
atesta a seguinte necessidade: “tratar de maneira coerente a massa de informações
recolhidas pelo espectador; método de inspiração fenomenológica já que se interessa
pelo modo como esse espectador vive e prova ‘o mundo’”. Mais uma vez verifica-se,
portanto, a pertinência nestes estudos da reunião entre as considerações filosóficas de
Platão, as quais estão no berço dos humanistas e a fenomenologia de Did-Huberman
que solicita uma apreensão das imagens que contemple a percepção dos sentidos, antes
mesmo que se pergunte o que isso ou aquilo significa 18
.
Com relação ao terceiro ato de O rei da vela a imagem que se apresenta é a da
morte. As figuras dos esqueletos amontoados indicam que a poça de sangue que se viu
no ato anterior sob os pés do usurário Abelardo I transformou-se na trágica morte a
exibir cadáveres amontoados e cada um portando uma vela acesa, como se estes fossem
os algozes de si mesmos, desejosos de perpetuar a mortandade. Esta imagem com
irônicas velas configura nestes estudos uma espécie de imagem de visão crítica que
solicita uma tomada de atitude enérgica diante da visão estarrecedora de uma sociedade
mergulhada desde sua formação na corrupção política e que se encontrava apática por
parte da classe artística, de intelectuais, estudantes e trabalhadores. Oswald de Andrade
já havia se pronunciado a respeito da função dos intelectuais e artistas no contexto da
sociedade brasileira 19
. Sua obra leva-nos a ponderar a respeito da parcela de
responsabilidade social relativa aos professores, pesquisadores, artistas, que se expande
para além da sala de aula e de ensaio e alcança os espaços de convivência social. Tal
parcela diz respeito às atitudes, aos comportamentos, às concretizações. O quadro final
que encerra O rei da vela, no qual se lê a fala do personagem Hiorofante de A morta de
Oswald de Andrade evidencia, com a ironia característica do autor, as responsabilidades
sociais:
“Respeitável Público! Não vos pedimos palmas. Pedimos Bombeiros! Se quiserdes salvar
as vossas tradições e vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a polícia!
Somos como vós mesmos, um imenso cadáver gangrenado! Salvai vossas podridões e
talvez vos salvareis da fogueira acesa do mundo!”
E Helio Eichbauer resgata no início deste terceiro ato, formas materiais da
história do palco italiano e da cena teatral ao principiar este com abertura de cortinas
que exibem as máscaras teatrais da tragédia e da comédia ao tom solene de A alvorada
de Carlos Gomes, de acordo com o relato de José Celso em El sol rúbio. E se no
princípio deste ato Eichbauer exibiu solenemente a histórica imagem das cortinas que se
abrem no teatro, como se redimisse o teatro de outrora, suas narrativas operísticas, sua
augusta missão civilizatória, ao final, caveiras desceram do urdimento e anunciaram o
sinistro casamento de Abelardo II, sucessor de Abelardo I, e assim delinearam a imagem
do capitalismo usurário que se repete historicamente e que não condiz com os intentos
de civilidade de outrora, pois na verdade aniquilam qualquer postura ética. As cortinas
funcionaram como nostálgica lembrança. E para encerrar a peça a música de Aquarela
do Brasil de Francisco Alves com alegria entoava “Oh, abre a cortina do passado / Tira
a Mãe Preta do serrado / Bota o Rei Congo no congado / Brasil, Brasil” em contraste
com o elenco que em silêncio se encaminhou à frente da cena para uma relação direta
com a platéia à maneira brechtiana, sem os ilusionismos teatrais, tendo ao fundo a
projeção que solicitava a todos que chamassem os bombeiros e a polícia. Um apelo à
tomada de posição perante a derrocada da nação “do meu amor / Terra de Nosso
Senhor.”
Entre o segundo e o terceiro ato destaca-se a ambiência musical entre as
composições orquestradas de Villa-Lobos e Carlos Gomes e o clássico popular de
Francisco Alves. São duas as considerações que se faz a partir desta ambiência: a
primeira relativa às duas primeiras músicas, que são orquestradas. Estas evocam a caixa
cênica italiana pela possibilidade que esta tem de transportar os que nela estão para
espaços além daquele presente e no caso de Descobrimento do Brasil de Villa-Lobos,
tem-se uma orquestra com vozes que instaura uma atmosfera misteriosa em torno da
poesia de Olavo Bilac, exposta numa grande tela e que exalta a exuberância nacional.
Neste contexto Eichbauer conjuga a música de orquestra e a poesia parnasiana, esta
inclusive foi fortemente criticada pelo Movimento Moderno Brasileiro, tida como
poesia de um Brasil enquadrado em normas, no entanto Helio de forma livre trouxe para
a encenação oswaldiana caracteres do teatro tradicional e da poesia brasileira pré-
modernista e conferiu a devida imagem contraditória de uma nação ufanista, encerrando
desta forma o segundo ato. Iniciou o terceiro com Alvorada, dando continuidade à
imagem histórica do teatro com sua pomposa cortina de abertura e encerramento da
cena teatral e neste ambiente Eichbauer, como um humanista resgata a história e
filosoficamente transporta platéia e atores para este lugar monumental do teatro, para
em seguida criar o choque da visão entre o sublime e a chegada grotesca da figura do
usurário Abelardo I.
A segunda consideração é a respeito da popular Aquarela do Brasil de Francisco
Alves coroando o casamento funesto de Abelardo II com Heloisa de Lesbos, cuja
caracterização de Helio Eichbauer deixa transparecer a imagem de vampira, segundo as
palavras de José Celso. E “o coqueiro que dá côco” parece que tem seus frutos e sua
beleza furtados, de acordo com a imagem daquele casamento de interesses, num tom de
alegria funesta, que apresenta a fome e a miséria de uma nação de “terra boa e gostosa”.
A caracterização das personagens, à maneira de máscaras, configura uma
apresentação brechtiana destas figuras que encarnam hábitos e vícios antigos da nação
pau-brasil de Oswald de Andrade. É possível considerar que estes personagens-tipos
delineados por Eichbauer tinham em seus rostos caracterizações marcadas como a
figuração nos telões do Teatro de Revista, e ainda a estilização das formas semelhantes
às linhas expressivas nas artes visuais do Movimento Moderno Brasileiro que evocam
tipos como a boba e o homem amarelo de Anita Malfati, ou ainda as cores exuberantes
dos retratos de Mário e Oswald de Andrade por Tarsila do Amaral, como contorno de
tipos sem psicologismos.
A conjugação da cenografia, figurinos e caracterização de O rei da vela ainda
apresenta muitas metáforas, paródias, soluções técnicas que necessitam análise acurada
a qual se fará após a conclusão de novas etapas de pesquisas documentais e estudos
teóricos, porém é importante salientar que tal pesquisa tem o objetivo de verificar a
contribuição da sistemática neo-humanista de Helio Eichbauer para o Teatro Brasileiro,
que não só em 1967 fez uma importante revisão da cena teatral e das artes nacionais dos
anos 20 aos 40, conforme estes estudos intentam mostrar, mas na atualidade continua a
contribuir com a produção teatral brasileira, empreendendo trabalhos de refinado apuro
técnico e de importante conteúdo crítico não só em edifícios teatrais, mas em museus e
shows musicais. Quanto à produção cênica esta possui estimado valor porque reúne
técnicos, atores e diretores em realizações nas arquiteturas teatrais que constituem
memórias da cidade e que devem ser apropriadas com trabalhos artísticos que
promovam conhecimento, de acordo com a missão destes edifícios, pois parte destes
teatros pertence ao poder público, os quais devem fornecer à população o acesso à arte e
à cultura de qualidade, portanto artistas que têm o conhecimento técnico e filosófico
sofisticado destes edifícios teatrais como é o caso de Helio Eichbauer precisam ter sua
obra poética divulgada, que sirva de material de formação de novos cenógrafos,
figurinistas e iluminadores para que os espaços teatrais, espaços de projeção de
conhecimento, mas também de sonhos, devaneios e construções poéticas sejam
valorizados e possam contar com um número cada vez maior de profissionais não só
capacitados tecnicamente, mas com uma formação capaz de empreender a captação de
uma platéia cada vez mais ampla.
1 O telescópio aristotélico ou a Idéia do Estilo Pomposo... Explicada segundo os conceitos do Divino
Aristóteles, apud HOCKE, Gustave R. O maneirismo: o mundo como labirinto, p. 23. 2 “Será, pois preciso refletir sobre os dados da recepção e sobre a metodologia global que se oferece a
nós para tratar de maneira coerente a massa de informações recolhidas pelo espectador; método de
inspiração fenomenológica já que se interessa pelo modo como esse espectador vive e prova ‘o mundo,
em vez de objetivá-lo, de abstraí-lo e de conceituá-lo’”. Esta é uma questão de olhar, e até mesmo de
olhares plurais, que o espectador põe, mais ou menos conscientemente e longamente, sobre a
representação. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. Trad. Sérgio Sálvia Coelho. 2ª ed. Perspectiva,
2008, p. 213. 3 A respeito dos estudos dos manifestos modernistas, consultar MARQUES, Ivan. Modernismo em
revista: estética e ideologia nos periódicos dos anos 1920. Casa da Palavra, 2013. 4 “...em média, a revelação de um autor importante por ano. Todos eles tinham em comum a militância
teatral e a posição nacionalista”... “A grande originalidade, em relação ao TBC e tudo o que este
representava, era não privilegiar o estético, não o ignorando, mas também não o dissociando do panorama
social em que o teatro deve se integrar”. PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. 3ª ed.
Perspectiva, 2008, p. 61 e 63. 5 De um lado, a história dos Mr. Jones (personagem americano da peça), do outro, os Jujubas (massa de
marginais, representada na peça não por um ser humano, mas por um cachorro), e não sua história... O
Rei da vela de 1933, escrita por uma consciência dentro dos entraves que são os mesmos de 1967, mostra
a vida de um país em termos de show, teatro de revista e opereta... e assim de tudo emana um fedor de um
imenso, de um quase cadáver gangrenado... História não há. Há representação de história. Muito cinismo
por nada. CORRÊA, José Celso Martinez. O rei da vela: manifesto do Oficina apud O Percevejo. Revista
de teatro, crítica e estética – Ano 4 – 1996 – Departamento de Teoria do Teatro – Programa de Pós-
Graduação em Teatro – UNIRIO. Modernistas no Teatro Brasileiro I – Oswald de Andrade. O Rei da
Vela, p. 5 e 6. 6 Em 1992 Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade problematizou a questão da
identidade nacional, contrariando a idéia de totalidade, porém para Mário de Andrade em princípios do
século XX, esta identidade se constituía de um ponto de vista unívoco e com as seguintes palavras
afirmou: “O nacionalismo só pode ser admitido consciente quando a arte de um povo ainda está por
construir. Ou quando perdidas as características básicas por um excesso de cosmopolitismo ou de
progresso a gente carece buscar nas fontes populares as essências evaporadas”. ‘Quanto ao regionalismo,
é incisivo’: “é uma praga antinacional”. Apud AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo. 1ª ed.
1975. Ed. 34; Edusp 2003, p. 313. 7 “[...] como deve ser na ciência a seguir à geometria... Depois da superfície, pegamos nos sólidos em
movimento, antes de nos ocuparmos deles em si. Ora, o que está certo é que, após a segunda dimensão, se
trate da terceira, que é a dos cubos e a que possui profundidade... e os investigadores precisam de um
diretor, sem o qual não farão descobertas... o estudo metódico da dimensão da profundidade... pondo após
a geometria a astronomia, por ser o movimento das profundidades. PLATÃO. A República. Editora
Martim Claret, 2000. Livro VII, fragmentos de 528 e 529a-e (p. 225 e 226) 8 FARIA, João Roberto (org.) História do teatro brasileiro. Perspectiva: Edições SESCSP, 2013, p. 185.
9 “É importante lembrar que a cenografia no Rio de Janeiro originou-se da contribuição da pintura. Num
primeiro momento, o chamado pano de boca, que é a cortina que fecha a boca do proscênio, terá seu lugar
de destaque, sendo confeccionado por pintores célebres, comumente estrangeiros. Mais tarde, como os
personagens necessitassem de uma ambientação cenográfica para que a trama se desenvolvesse, foi
dedicada uma maior atenção ao painel de fundo e laterais.” ROCHA, Renata Cristina Magalhães. A
cenografia carioca: aspectos de uma evolução in: Cadernos de pesquisa em teatro – Série ensaios. 5 – O
edifício teatral através da crônica: Rio de Janeiro 1880-1940. Os gêneros teatrais, a cenografia, a dança
e o canto lírico integrando a arquitetura. Coordenação Evelyn Furquim Werneck Lima, 1999, p. 64. 10
“Parte do cenário composta por dois bastidores ou pernas ligados a uma bambolina, numerado a partir
dos reguladores e composto para construir o efeito desejado com a perspectiva.” BRANDÃO, Tania.
Vassouras e purpurinas – Breves notas sobre a cenografia no Teatro de Revista brasileiro in: O
Percevejo. Revista de teatro, crítica e estética – Ano 12 – nº 13 – 2004 – Departamento de Teoria do
Teatro – Programa de Pós-Graduação em Teatro – UNIRIO. O Teatro de Revista no Brasil, p. 11. 11
“[...] projetar o personagem — sem que necessariamente se limite a um gesto realista. Além disso, o
Gestus brechtiano é social, isto é, a exteriorização física é um signo da condição social do personagem.
Ele tem uma dimensão crítica — e de crítica da sociedade, mais do que do indivíduo. A tarefa era a de
determinar o Gestus social de cada personagem.” Depoimento de Luís Carlos Maciel in: PATRIOTA,
Rosangela. A cena tropicalista no Teatro Oficina de São Paulo. In:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-90742003000100006&script=sci_arttext 12
A respeito das cenografias e arquiteturas teatrais do século XVI aos dias atuais consultar LIMA, E. F.
W. e CARDOSO, R. J. B. Arquitetura e teatro. O edifício teatral de Andrea Palladio a Christian de
Portzamparc. 13
Op. Cit. p. 4. 14
[...] um movimento surdo que propaga e inventa o contato imperioso de uma infecção, de uma colisão
ou então de um disparo... uma figuração em ato que vem, aos poucos ou de repente, fazer se tocarem dois
elementos até então separados (ou separados segundo a ordem do discurso). DIDI-HUBERMAN,
Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Trad. Paulo Neves.
Editora 34, 2013 – 1ª edição, p. 198 e 199 15
“[...] eu, por mim, não posso pensar em nenhum outro estudo que faça a alma olhar para cima, senão o
que diz respeito ao Ser e ao invisível.” A República. Editora Martim Claret, 2000. Livro VII, fragmentos
de 529a-e (p. 226) 16
CORRÊA, José Celso Martinez. El sol rúbio in:
http://www.jornalismocultural.com.br/teatro/helio-eichbauer-zecelso.html 17
“A cenografia... É uma arte de metodologia, de tratados específicos, de construção de teatros, de palcos,
de máquinas, até os dias de hoje... Na realidade eu costumo dizer que eu fui aluno de Pitágoras e
freqüentei a Biblioteca de Alexandria... Foi uma formação humanística.” CHRONOS. UMA
PUBLICAÇÃO CULTURAL DA UNIRIO. Helio Eichbauer. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2006 - Nº1, p. 99. 18
[...] “Isso mostra”, no sonho, porque, “isso se apresenta”... “isso olha” em razão da própria presença
visual do apresentado... num quadro de pintura figurativa, “isso representa” e igualmente, ali se olha e nos
olha... a imagem ali se rasga entre representar e se apresentar... me atinge. Op. Cit. p. 205 19
“Que será de nós, que somos as vozes da sociedade em transformação, portanto os seus juízes e guias,
se deixarmos que outras forças influam e embaracem a marcha que começa? O inimigo ainda está vivo e
age. [...] É preciso que saibamos ocupar o nosso lugar na história contemporânea. Num mundo que se
dividiu num combate, só não há lugar para neutros ou anfíbios. [...] O papel do intelectual e do artista é
tão importante hoje como o do guerreiro de primeira linha.” Ponta de lança. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira in: O Percevejo, nº 4, 1996. Um lugar na história contemporânea: o teatro ideológico de
Oswald de Andrade. CARVALHO, Ana Maria de Bulhões. (p. 35)
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Ed. 34; Edusp 2003.
Cadernos de pesquisa em teatro – Série ensaios. 5 – O edifício teatral através da
crônica: Rio de Janeiro 1880-1940. Os gêneros teatrais, a cenografia, a dança e o
canto lírico integrando a arquitetura. Coordenação Evelyn Furquim Werneck Lima,
1999.
CHRONOS. UMA PUBLICAÇÃO CULTURAL DA UNIRIO. Helio Eichbauer. Rio de
Janeiro: UNIRIO, 2006 - Nº1
CORRÊA, José Celso Martinez. El sol rúbio.
http://www.jornalismocultural.com.br/teatro/helio-eichbauer-zecelso.html
DID-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma
história da arte. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013 (1ª ed.)
EICHBAUER, Helio. Cartas de Marear: impressões de viagem, caminhos de criação.
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
FARIA, João Roberto (dir). História do Teatro Brasileiro, vol 2: do modernismos às
tendências contemporâneas. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2013
HOCKE, Gustave René. Maneirismo: o mundo como labirinto. Trad. Clemente Raphael
Mahl. 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2005 (Debates; 92)
MARQUES, Ivan. Modernismo em revista: estética e ideologia nos periódicos dos anos
1920. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
O PERCEVEJO. Modernistas no Teatro Brasileiro I – Oswald de Andrade O rei da
vela. Revista de teatro, crítica e estética. Ano 4, nº 4, 1996.
O PERCEVEJO. O teatro de revista no Brasil. Revista de teatro, crítica e estética. Ano
12, nº 13, 2004.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. Trad. Sérgio Sálvia Coelho. 2ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2008. (Estudos; 196)
PLATÃO. A República. Editora Martim Claret, 2000.
PEREIRA, Regilan Deusamar Barbosa. Helio Eichbauer e a varinha de Próspero.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, UNIRIO 2013.
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
O PODER DA TEATRALIZAÇÃO E A TEATRALIZAÇÃO DO PODER:
QUE REI SOU EU? E A HISTÓRIA DO PASSADO COMO ALEGORIA DO
PRESENTE E DO FUTURO DO BRASIL NA TELEDRAMATURGIA1
Bruno Filippo Policani Borseti; orientadora: Profa. Dra. Fátima Costa de Lima;
Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT); Universidade do Estado de Santa
Catarina.
A Rede Globo de Televisão exibiu, entre 13 de fevereiro e 16 de setembro de
1989, na tradicional faixa diária das 19 horas destinada às produções dramatúrgicas, a
telenovela Que rei sou eu?.2 Escrita por Cassiano Gabus Mendes em colaboração com
Luis Carlos Fusco e dirigida por Jorge Fernando, Fábio Sabag e Mário Márcio
Bandarra, Que rei sou eu? estendeu-se por 185 capítulos e foi reexibida dois meses
depois em versão compacta de 70 capítulos, entre outubro e dezembro, em horário
vespertino.3 A trama desenrola-se no fictício Reino de Avilan, situado na Europa entre
os anos de 1786 e 1789, às vésperas da Revolução Francesa, cuja efeméride do
bicentenário era festejada naquele ano de 1989. Avilan – com personagens, figurinos e
cenários que caracterizavam as estruturas sociais e políticas do Ancién Regime -
constituía a alegoria do Brasil contemporâneo, de modo que a distância entre
significante e significado, normalmente próxima na teledramaturgia brasileira, alargou-
se.
Em julho de 2012, durante a reprise da telenovela no Canal Viva4, escrevi ensaio
intitulado “A originalidade de Que rei sou eu?”. Nele, ressalto que se trata de uma obra
singular na história das telenovelas brasileiras:
Que rei sou eu? é singular não só porque inverte a equação das
telenovelas, tornando secundárias as características do melodrama
tradicional –, mas também e sobretudo porque, ao mesmo tempo que
põe uma lupa sobre o contexto, é uma sátira alegórica: com o efeito
crítico devastador de que só o humor é capaz, fala de um país (o Brasil
de 1989 e, por que não?, o de hoje também) por meio de outro – um
reino situado na Europa às vésperas da Revolução Francesa, cujos
acontecimentos serviram-lhe de simulacro. Outras telenovelas,
como Roque Santeiro, fizeram sátira alegórica; mas havia
proximidade entre o universo representante e o universo representado,
como na Asa Branca da Viúva Porcina e do Sinhozinho Malta, uma
alegoria das crenças e dos tipos do Brasil profundo. Que rei sou
eu? une dois universos distantes: um país latino-americano de fins do
século 20 e um europeu do século 18.5
Ao escolher como espaço cênico um reino europeu carcomido em sua estrutura
social, Cassiano Gabus Mendes trouxe para a linguagem da telenovela a representação
do que o sociólogo alemão Norbert Elias (1990) chamou de Sociedade da Corte - um
sistema de valores simbólicos compartilhados pela nobreza e expressos por práticas,
hábitos e padrões de comportamento fortemente marcados pela teatralidade6. A
Sociedade da Corte - que encontrou no moderno absolutismo francês sua representação
mais marcante7 - foi tomada pelo dramaturgo como alegoria do Brasil.
À alegoria, acrescentou-se a sátira. Por meio da comicidade de
personagens e situações, a sátira buscou realçar, como pontos da alegoria,
problemas estruturais históricos e conjunturais da sociedade brasileira do
fim da década de 19808: miséria, corrupção, incompetência dos poderes
públicos, desigualdade social, hiperinflação, insensibilidade da elite
governante, manipulação das massas, dívida externa, recorrência ao
Fundo Monetário Internacional, inquietação internacional com o
desmatamento da Amazônia. Para a história política brasileira, o ano de
1989 foi um marco democrático, com a primeira eleição para presidente
desde 1960, depois do ciclo militar implantado pelo Golpe de 19649
Esses elementos - representação da sociedade da corte, alegoria e sátira - fazem
de Que rei sou eu? uma produção totalmente original na história da telenovela
brasileira. Na criação de Cassiano Gabus Mendes, uma das características da
teledramaturgia está em plano secundário: a ênfase no sentimentalismo individual das
personagens10
dá lugar à conscientização política das mazelas do país e à luta por
mudanças revolucionárias.
Ao contrário do teatro e do cinema, a telenovela é uma obra cuja fábula vai
sendo escrita aos poucos pelo autor, o que lhe permite realizá-la de forma contígua à
apresentação ao público, tornando-a suscetível à pressão dos índices de medição de
audiência, do telespectador e da opinião pública. Essa contiguidade permitiu, em Que
rei sou eu, referências constantes a situações conjunturais do Brasil, a fatos que se
desenrolavam no mundo real simultaneamente à sua exibição, de modo que parecessem
transpostos das páginas dos jornais para os diálogos das personagens – o que reforçava
seus elementos alegóricos. No ensaio supracitado, elenquei algumas dessas
transposições:
E, para deixar mais explícita a representação alegórica, Cassiano
Gabus Mendes recorreu a notícias que saíam nos jornais naqueles
meses de vinte e três anos atrás – permitindo ao público a
aproximação imediata entre Brasil e Avilan que hoje, àqueles que não
viveram o período ou não se lembram dele, pode parecer sutil, quiçá
imperceptível à nova geração, à medida que os fatos vão-se
amarelando junto com os jornais que os fizeram conhecidos.
Como os planos econômicos que, no país pré-Real, cortavam os zeros
da moeda como que querendo cortar os dígitos da inflação. Por isso, a
moeda de Avilan, o “ducato”, em seus primeiros capítulos, perde três
zeros e vira “duca” – mudança quase simultânea à que, no Brasil, o
Plano Verão de Maílson da Nóbrega eliminou três zeros do Cruzado e
o transformou no Cruzado Novo, em janeiro de 1989. Das paradas de
sucesso, Avilan importou do Brasil a lambada, gênero tropical,
predecessor do axé, que fez a corte trocar o tradicional minueto pelos
seus requebros abaixo da linha do equador da cintura.
Ou como, numa cena impagável, Luiz Gustavo, em participação
especial travestido de Charles Miller, o filho de escocês que trouxe o
futebol ao Brasil, apresenta sua invenção aos conselheiros da rainha,
aconselhando-os a adotar o esporte no reino porque, além de distrair o
povo como ópio, dava prestígio aos presidentes das federações e aos
demais cartolas, que poderiam lucrar com a venda de jogadores! Para
mostrar como estes se vestiam e faziam com a bola, Roberto
Dinamite, ainda em atividade como atleta, entra em cena com a
camisa da seleção brasileira que ostentava três estrelas, a última
conquistada em 1970. “Esta camisa não ganha nada há muito tempo”,
diz Charles Miller, quer dizer, Luiz Gustavo. Bem, se o conselho pode
continuar válido, as estrelas em nossa camisa já somam cinco.11
Em sendo o produto mais importante da indústria cultural12
brasileira, com
ampla penetração em todas as camadas sociais e repercussão em todos os meios de
comunicação, a telenovela apresenta uma linguagem de fácil entendimento, acessível
desde o mais culto ao menos privilegiado de capital cultural. Que rei sou eu? não foge a
esse aspecto, nem poderia fazê-lo: seu poder de penetração, aliado à temática política
entrelaçada com a realidade, fez dessa zona incerta entre ficção e realidade um polo de
tensão na esfera pública do mundo real que se traduziu na acusação de que a telenovela
teria o poder subliminar de influenciar o público, seja incitando-o à subversão, como
pensaram setores conservadores, seja induzindo-o a votar num candidato a presidente
(Fernando Collor de Mello) que teria semelhanças antropomórficas, gestuais e retóricas
com Jean Pierre, vivido por Edson Celulari, o herói de Que rei sou eu?.
Em ambos os casos - o temor da subversão ou da sugestão -, trata-se mais uma
vez da amálgama entre ficção e realidade, porém com uma característica assaz
importante: a teatralidade da ficção passa não só a confundir-se com o universo do real
– o que, per si, não constitui novidade no gênero teledramatúrgico -, mas também, pelo
seu poder de influenciar a massa, a moldar-lhe formas de comunicação política por meio
da indústria cultural. De modo que sua eficácia no que toca à possibilidade de tirar o
espectador do estado de passividade foi reconhecida por seguimentos da sociedade.
Os conceitos de “politização da estética” e “estetização da política”, cunhados
por Walter Benjamim (1985) no texto canônico A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica, ajuda a explicar o pendor – e o temor - à esquerda e à direita
da telenovela conforme sua apropriação por grupos sociais diversos da sociedade
brasileira. A politização da estética, com discurso de apelo à luta popular por melhores
condições de vida e pela conscientização das mazelas do país, dialeticamente contribuiu
para estetização da política, à proporção que as características de uma das principais
personagens da telenovela passaram a ser consideradas, no universo real, análogas às de
um dos candidatos à Presidência da República do Brasil, com poder de sugestionar os
eleitores subtraindo-lhes a consciência política. Daí que a eleição presidencial de 1989,
depois de 29 anos sem que os brasileiros fossem às urnas escolher o mandatário do
Poder Executivo, seja considerada a primeira em que o conceito de "marketing político"
passou a entrar mais fortemente no vocabulário eleitoral.
Não se pode afirmar, entretanto, que a telenovela criou o marketing político;
mas, isto sim, que a consonância da caracterização de uma das personagens com as
técnicas de comunicação que começavam a ser desenvolvidas pelo candidato Fernando
Collor de Melo, e a vitória que ele obteve no pleito histórico, contribuíram para reforçar
o aprimoramento da estetização da política – ainda que a contribuição de Que rei sou
eu? para esse reforço seja difícil de auferir.
Que rei sou eu?, pela ênfase secundária no aspecto individual das personagens e
pela mistura entre ficção e realidade expressa por meio da sátira alegórica, representou,
para o gênero telenovela, a introdução de elementos singulares à estilística da
teledramaturgia brasileira, como a narrativa épica, ao narrar a saga do povo de Avilan
pelas transformações sociais, tendo como pano de fundo a disputa pela sucessão do
trono real; e como elementos do "teatro pós-dramático" – termo cunhado pelo crítico
alemão Hans-Thies Lehmann (2009) para designar novas configurações cênicas que,
emergidas na década de 1970, questionam a capacidade da estética dramática de
problematizar o real numa época marcada pela sociedade do espetáculo.
A alegoria torna-se, assim, um contraponto à mimese tradicional, que se
enfraquece pela insuficiência de criar signos imitadores do real. A crise do teatro
dramático, que encontrou no teatro político do início do século XX sua primeira
manifestação, leva à busca por novas formas de questionamentos da vida social pela
arte, nas quais a utilização de signos alegóricos que ultrapassam as fronteiras entre o
real e o ficcional visa à tomada de consciência do público. Desse modo, esta pesquisa
propicia a discussão sobre as características dramatúrgicas das telenovelas brasileiras e
seu poder de exercer influência sobre o público e põe em relevo a originalidade de Que
rei sou eu? no panorama da teledramaturgia nacional. E mostrar como, nela, a relação
entre ficção e realidade acabou por evidenciar, entre os formadores de opinião, o
potencial político das telenovelas – o qual, apropriado pela nascente indústria de
marketing político, potencializou a estetização da política.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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TORQUATO, Gaudêncio. Tratado de comunicação organizacional e política. São
Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002
1 Este texto é fruto de pesquisa para a dissertação de mestrado no PPGT-UDESC, sob a orientação da
profa. Dra. Fátima Costa de Lima. 2 Não é propósito deste artigo discutir a pertinência da palavra “novela” para designar obras
dramatúrgicas escritas ou adaptadas para rádio e televisão. Optou-se por “telenovela” como sinônimo de
novela de televisão, conquanto se devam ressalvar as palavras do dramaturgo Marco Rey, citado por
Campedelli (1993): “O termo novela foi equivocadamente incorporado pelo rádio às suas narrativas
quilométricas. Depois, a televisão cometeu outro erro equívoco em cima do primeiro e ficou o nome.
Como se sabe, o rádio copiou o gênero das similares cubanas e mexicanas. Só que o termo, no idioma
espanhol, é igual a romance. No inglês moderno também. Para a história curta, estes idiomas têm outros
vocábulos. Com relação à telenovela, o certo seria chamá-la de folhetim.” 3 Que rei sou eu? teve direção executiva de Roberto Talma, produção executiva de Eduardo Figueira e
direção de produção de Ítalo Granato. Cf. Dicionário da TV Globo – vol. 1: Programas de
Dramaturgia e Entretenimento/Projeto Memória das Organizações Globo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed, 2003. 4 Trata-se de canal por cabo que pertence às Organizações Globo. Entrou no ar em maio de 2010 e é
voltado para reprise de antigos programas, telenovelas e seriados da Rede Globo de Televisão, além de
produções estrangeiras. Reprisou Que rei sou eu?, na íntegra, entre maio de 2012 e janeiro de 2013. 5 FILIPPO, Bruno. A originalidade de Que rei sou eu?. In: Observatório da Imprensa, Edição 703,
17/07/12. Disponível:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed703_a_originalidade_de_que_rei_sou_eu 6 Valho-me do conceito de Mostaço (2006-7), para quem a teatralidade, transcendendo o limite da cena
teatral, é mecanismo de produção de efeitos simbólicos construídos historicamente. 7 “O absolutismo francês consumou a sua apoteose institucional nas últimas décadas do século XVII. A
estrutura do Estado e a correspondente cultura dominante aperfeiçoadas no reinado de Luís XIV viriam a
torna-se o modelo para o restante da nobreza europeia. .” (ANDERSON, 1989, p.101) 8 Moisés (1974, p.70) enfatiza que a sátira, conquanto se coadune com a comicidade, tem por objetivo a
contestação ou a crítica social: “Modalidade literária ou tom narrativo, consiste na crítica das instituições
ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos indivíduos.” 9 Sobre este período histórico, cf. MODIANO (1992) e BARBOSA CASTRO (2005).
10 Cf. CAMPEDELLI (2001), TÁVOLA (1996), ALENCAR (2007) e POLITTINI (1998)
11 FILIPPO, Bruno, Op. cit.
12 Por “indústria cultural”, ao longo de toda esta dissertação, entenda-se o conceito formulado por Adorno
e Horkheirner em Dialética do Esclarecimento (1985) segundo o qual todo o aparato de produtos
culturais gerado pela técnica de reprodução em massa dá-se dentro de uma lógica capitalista, seriado e
homogeneizador.
1
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
WORDS IN PROGRESS: ENTRE TEXTO E LEITURA
Reflexões para uma leitura performativa de textos teatrais
Cícero Alberto de Andrade Oliveira*
PREÂMBULO
Meu objetivo na presente comunicação é trazer algumas considerações acerca de
uma “prática cultural”1 amplamente difundida na maioria das sociedades do mundo – a
leitura –, articulando-a com um domínio particular – a arte teatral.Tema vasto e
fascinante, a leitura de textos teatrais implica, todavia, que se façam determinados
recortes e que algumas questões sejam colocadas de saída. Assim sendo, esta exposição
está dividida em três momentos.
Primeiramente, falar de teatro hoje implica necessariamente discutir (ainda que
superficialmente) o estatuto do texto teatral. Fazendo coro com Sílvia Fernandes,
parece-nos que “uma das principais tarefas do estudioso do texto teatral contemporâneo
[é] distinguir seu objeto”.2 Eis, portanto, um primeiro tema que seria preciso abordar e
que tentaremos contemplar no decorrer desta apresentação.
Feitas essas considerações e o estatuto do texto estando um pouco mais
delimitado, poderemos, então, passar às especificidades da leitura desses textos,
verificando, a partir de entrevistas de dramaturgos brasileiros e franceses, sobretudo,
como essa leitura é feita. Para tanto, será feita uma breve análise de elementos de seus
discursos no que diz respeito aos textos dramáticos, pinçando trechos, procurando tornar
explícitas algumas das imagens e metáforas que eles constroem ao se referirem aos
textos teatrais, verificando se nesses relatos é possível perceber constantes. Se como
demonstram Cavallo e Chartier, cada grupo de leitores desenvolve “formas de ler”,
“instrumentos e procedimentos de interpretação”3 que lhes são próprios e particulares,
parece evidente que aqueles que trabalham na produção de uma peça teatral a partir de
um texto o leem de outra maneira – e são precisamente essas “ferramentas” e o “caráter
outro” dessa leitura que me interessam e que gostaria de trazer à tona aqui. Eis, então, o
segundo momento.
Por fim, essa reflexão nos leva a conceber a forma de ler desse grupo específico
como uma prática singular, na qual o leitor é implicado (ou se implica) e deve (re)agir
de uma maneira bastante peculiar. Qualifico essa “implicação distinta”, como
performativa baseado principalmente nas reflexões que Paul Zumthor apresenta em
Performance, Recepção, Leitura.4 Trata-se, evidentemente, de um conceito amplo e
ainda um pouco difuso, possivelmente por estar in process, em construção. Vale
ressaltar que me limitarei apenas a fazer alguns apontamentos e colocar algumas
questões, não tendo nenhuma pretensão de esgotar o tema ou trazer proposições
demasiadamente assertivas.
Isto posto, e como o próprio título do trabalho anuncia, por se tratar de reflexões
acerca de procedimentos de uma determinada comunidade de leitores, muito
provavelmente não será possível chegar a uma conclusão. O que não parece ser um
2
problema, dado que justamente que o que trago aqui é uma pesquisa, ela também, em
processo, todos os resultados e formulações podendo ser questionados, dado não serem
definitivos.
PALAVRAS MOVEDIÇAS
É cada vez mais difícil, e até mesmo impossível, definir um texto dramático.
Não é nenhuma novidade, aliás, que seus limites foram de tal forma expandidos, que
hoje é perfeitamente possível encontramos “romances, poemas, roteiros
cinematográficos e até mesmo fragmentos de falas esparsas, desconexas”5 sendo
utilizados como matéria textual para a escrita de peças teatrais. Atualmente nada parece
conferir previamente a um texto algo que nos permita qualificá-lo como sendo “teatral”.
Patrice Pavis, já nos anos 90, ressaltava que o que chamada de uma “tendência
atual da escritura dramática [de] reivindicar não importa qual texto para uma eventual
encenação”.6 Trata-se de uma dificuldade ainda muito premente em nossos dias, a tal
ponto que Pavis chega a adotar às vezes uma perspectiva mais pragmática, afirmando,
por exemplo, que “um texto teatral é tudo aquilo que é dito em cena”.7 Se tomarmos ao
pé da letra a afirmação do crítico teatral francês, aceitaremos que tudo o que é escrito
seria um texto dramático em potencial, bastando apenas que aparecesse no palco, nas
bocas dos atores, durante uma encenação.
Fato é que, por ser tão amplo, este objeto dificilmente pode ser claramente
definido. Ambivalente por princípio – palavra escrita por um lado, devir-gesto (ação)
por outro – o texto dramático tem suas próprias leis, que orientam sua leitura, sua
encenação, sua escuta. É preciso, então, que o leitor-ator-encenador-público, encontre
seu tempo8 específico, que ditará seu ritmo, atualizando essas palavras que são, antes,
words in progress: palavras em movimento em progressão contínua, que ocupam
espaços tão distintos – uma folha de papel, a voz, o olhar, o palco.
Essa dificuldade apontada por Patrice Pavis, além de expor as aflições (ou, antes,
os prazeres) daqueles que se lançam nessa aventura que é o estudo dos textos teatrais,
permite também uma mudança no vetor de nossa perspectiva, transferindo nosso olhar
do objeto textual em si para uma outra “instância”, que, de certa forma, determina o que
será o próprio texto teatral: o leitor.
Se admitirmos que tudo o que se escreve pode se tornar matéria na fabricação de
um texto dramático, é necessário ainda assim que alguém ative essa “potencialidade
primeira”, fazendo com que um dado conjunto de palavras, de frases e de parágrafos se
torne efetivamente um texto dramático – o que não pode ser feito sem uma leitura
preliminar por parte de um ator, diretor ou grupo teatral.
Como nos lembra Michel de Certeau, “quer se trate de um jornal ou de Proust,
[um] texto não tem significação a não ser através de seus leitores; ele muda com eles,
ordenando-se graças a códigos de percepção que lhe escapam. Ele só se torna texto
através de sua relação com a exterioridade do leitor, por um jogo de implicações e de
ardis entre duas expectativas combinadas: aquela que organiza um espaço legível (uma
literalidade) e aquela que organiza uma diligência, necessária à efetuação da obra (uma
leitura)”.9 Essa perspectiva, com efeito, nos coloca diretamente no cerne do caráter
ambíguo e difícil de apreender que todo texto carrega em si, pois atribui a própria
existência do texto àquele que o lê: para cada leitor, então, um texto diferente se
constrói durante a leitura. Eis o porquê de o trabalho dos pesquisadores em dramaturgia
ser o de (in)definir continuamente seu próprio objeto.
3
Definido ou indefinido, elemento central ou acessório, fato é que o texto teatral
permanece um dos focos de pesquisa e de incessantes reinvenções nas teatralidades por
todo lugar. A prova disso é que em vários países, diversos atores e companhias teatrais
extraem material das mais diversas fontes textuais (frequentemente “não teatrais” – ou
ao menos não em princípio) e, a partir de um intenso trabalho (de leitura, corporal, de
criação) acabam se apropriando deles, transformando-os em espetáculo.
Apenas para ilustrar essa perspectiva, limito-me a citar dois exemplos, que
conheço mais detidamente: o trabalho do grupo brasileiro Teatro da Travessia,10
e da
companhia francesa Arte&Latte. Ambos têm em comum o fato de empregar, como
matéria de criação, textos que não haviam sido inicialmente concebidos para a
encenação.
Companhia paulistana constituída em 2006, os integrantes do Teatro da
Travessia, desde sua composição, “se reconheceram no desejo de trabalhar partindo de
textos literários e de realizar a pesquisa de como transpô-los para a cena”.11
Sua peça de
estreia, Dias raros (2008), por exemplo, foi criada a partir de uma coletânea de contos
do escritor João Anzanello Carrascoza (ganhador do Prêmio Jabuti 2007). A segunda
peça do grupo, Colóquio internacional sobre o Amor (2012), vai no esteio dessa
pesquisa, e é uma livre adaptação de textos literários e filosóficos franceses, feita pelo
grupo durante uma residência no exterior. Os motivos que orientaram suas escolhas por
esse tipo de texto na montagem de Dias raros foram diversos, mas como a proposta
deles era a de “levar à cena o conto sem preencher todas as lacunas imagéticas”,
acabaram optando por textos literários “a fim de privilegiar a escuta da narrativa e a
construção coletiva de imagens”.12
Formado em 2004, o coletivo francês Arte&Latte é uma trupe de atores que
também tem como ponto de partida o trabalho com textos “não teatrais”. O coletivo já
adaptou, por exemplo, obras de Fernando Pessoa, Rilke e Virginia Woolf, e tem como
um de seus principais objetivos “oferecer a diferentes públicos o conhecimento, a
qualidade e o gosto por obras literárias, graças ao teatro e às artes vivas”.13
Aliás, sua
peça de estreia, Adeus (2010), foi baseada no romance epistolar Cartas portuguesas, da
escritora lusitana do século XVII Mariana do Alcoforado, tendo sido apresentada
durante o Festival d’Avignon 2010, recebendo diversos prêmios.
Em ambos, como vemos, há a predileção pelo trabalho com textos que não
foram inicialmente criados para os palcos. São apenas dois exemplos dentre milhares de
outros artistas espalhados pelo mundo que também escolheram trabalhar a partir de
textos, que não tinham sido pensados para serem encenados ou sequer previam uma
encenação. O que em suas generosas leituras lhes permite transformar aquelas palavras,
vê-las não como caracteres mortos, mas como words in progress, fazendo-as se tornar
espetáculo, algo que é dado a ver?
ENTRE TEXTO E LEITURA
A despeito das posições que possa eventualmente suscitar (apego ou repulsa), a
partir do momento em que se faz presente em um espetáculo, o texto dramático se torna
uma realidade inevitável (e incontornável). Todo estudo de texto teatral, no entanto,
esbarra também em outro fator inexorável: o palco (a cena). Ainda que um texto não
seja encenado, o palco está sempre ali, presente, rondando como uma sombra (o leitor
comum) ou orientando como um farol (o diretor ou o ator) aquele que lê. É o que
4
podemos constatar numa entrevista concedida por Francisco Medeiros, conhecido
encenador brasileiro à revista Manuscrítica:
“A minha sensação é a de que o texto teatral – sem exceção – no
momento em que é escrito, é escrito para a cena. Não conheço nenhum
dramaturgo que tenha escrito um texto teatral para ser “lido” da mesma
forma que um artigo, ou mesmo como literatura. Ele até pode ter um
status de literatura quando é escrito no papel, mas percebo que ele só
ganha possibilidades, potência de vida, quando vai para o palco”.14
Medeiros, como se vê, coloca a cena como finalidade última de um texto teatral,
afirmando que ele só adquire sua “verdadeira potência vital” quando é encenado. Em
outras palavras, o palco – exterior ao que está escrito – orienta, e poderia até ser visto
como um primeiro (ou o principal) instrumento de leitura: se um autor escreve para ver
seu texto em cena, devemos lê-lo tendo esta última como paradigma, e esta
“orientação”, como se pode imaginar, tem implicações importantes na leitura.
A peça, diz ele, só ganha potência de vida “quando vai para o palco”.
Poderíamos sem grande esforço substituir o verbo “ir” por “passar”, dizendo, então, que
ela só ganha vida quando passa para o palco. Isso nos leva diretamente à outra imagem
preciosa para compreender o aparato crítico do leitor-profissional de teatro: a noção de
passagem.
Em diversos depoimentos e entrevistas consultados (pouco importando a
nacionalidade dos entrevistados), esse conceito era recorrente nas falas dos
dramaturgos, encenadores e atores. É comum ver nos testemunhos de muitos deles a
afirmação de que do texto à cena se passa, como dá a entender Nathalie Fillon, atriz,
dramaturga e diretora francesa:
“Quando monto meus textos, apreendo essa passagem como um
encontro extraordinário do texto com o espaço, o movimento, os atores, o
corpo, o pensamento, o som, a sombra, a luz etc. (...) todas essas matérias
diversas que será preciso pôr para funcionar, agitar, para que algo
inaudito e inédito sobrevenha, advenha”. 15
E a mesma postura pode ser depreendida das falas de Marion Aubert (atriz e
dramaturga francesa, para quem “a passagem para o palco se inscreve (...) em uma
continuidade, não é um acontecimento brutal”16
) e do músico e diretor David Lescot
(que diz ver naturalmente a passagem do texto ao palco, e que ele “escreve para ser
montado, não para ser escrito”).17
É bem verdade que não são todos os testemunhos analisados que veem essa
relação entre texto e cena como uma passagem, embora seja bastante comum eles
referirem a esse tema dessa forma.18
De todo modo, é curioso ver que, assim como a
eminência da cena orienta a forma pela qual alguns entrevistados concebem o próprio
texto teatral, o fato de pensar que ele deve ser trabalhado de forma a produzir uma
“travessia”, “um atravessamento” (dois sinônimos de passagem) exige uma atitude, a
produção de uma ação concreta da parte daquele que lê – o que não ocorre
necessariamente com a leitura de um romance ou de um poema.
Em decorrência do curto tempo, restrinjo-me a desenvolver e trabalhar mais
detidamente apenas essas duas imagens (a saber, a da cena como orientadora da leitura e
5
a ideia de passagem) que os profissionais de teatro desenvolvem acerca do texto teatral.
É preciso dizer, contudo, que elas não são as únicas (a lista vem crescendo a cada nova
entrevista). O que chama a atenção, contudo, é que algumas dessas metáforas, ainda que
veementemente refutadas por alguns atores ou diretores (que as consideram em geral
equivocadas), se repetem constantemente, o que nos poderia levar a pensar que elas
apontam para um modus operandi.
Rapidamente e sem aprofundarmos muito o assunto, eis alguns termos e ideias
que são frequentemente evocados nos depoimentos recolhidos dos profissionais e os
teóricos do teatro, quando se referem ao texto dramático:
▪ Tradução: a passagem do texto ao palco seria algo da ordem de uma tradução;
▪ Incompletude/falta: o texto teatral seria, então, incompleto, dado que ele é
produzido para passar para outro espaço, material;
▪ Texto esburacado/texto a ser completado: o texto dramático se apresentaria,
então, como sendo permeado por vazios, que serão (ou deveriam ser)
preenchidos pela encenação (ou não).
▪ Partitura: assim como numa composição musical, o texto dramático é apenas
uma notação indicativa para aqueles que o criarão “de fato”, que o farão passar
da virtualidade – própria a todo escrito – à materialidade – própria à cena;
▪ Ponto de partida/ponto de chegada: o texto, posto que vem antes do
espetáculo, seria então uma espécie de limiar, seu ponto de partida; a cena, por
sua vez, constituiria a realização do evento teatral, seria o outro extremo desse
processo (é onde o texto “adquire vida”).
Essas metáforas – que opõem dois “polos complementares” da fabricação de um
certo tipo de evento teatral – apenas ressaltam a maneira pelas quais elas produzem não
somente o texto dramático em si, mas também leituras. Suponhamos que um dado leitor
(um jovem estudante que começa um curso de teatro, por exemplo) aprenda que todos
os textos que ele vai ler serão “incompletos” e que ele deverá completá-los; às vezes, ele
funcionará também como tradutor e, não esqueçamos, é fundamental que esse texto, ao
fim de um longo processo de trabalho, adquira vida no palco. Observemos quantas
ações, operações e a forma como o aquele que lê precisará estar implicado na leitura.
Eis o ponto central da questão que lhes trago aqui: o leitor-encenador, o leitor-
ator, o leitor-iluminador, dentre inúmeros outros leitores-profissionais-do-espetáculo,
sabe que precisa trabalhar obstinadamente com esse escrito para transformá-lo em
acontecimento. Quer ele se afaste do texto, ou o siga à risca, o ele sabe que precisa
transformar aquilo que lê em algo diferente, outro. Esse leitor tem consciência de que
deve não somente ser um leitor “ativo” (dizer isso é praticamente um pleonasmo), mas,
e, sobretudo – e aí me encaminho para o último conceito que gostaria de tratar aqui –,
ele precisa saber fabricar uma leitura capaz de performar, capaz de fazer diferença, de
ser performativa para produzir o efeito-espetáculo (o acontecimento).
UMA LEITURA QUE FAZ DIFERENÇA
Em seu livro Performance, recepção, leitura, Paul Zumthor sublinha que “a
performance é um fenômeno heterogêneo de que é impossível se dar uma definição
geral e simples”.19 Essa dificuldade, aliás, não é ignorada, e é a razão de não se propor
6
aqui uma definição precisa aqui. Também não ignoro que associar a noção de “leitura” à
de “performativo” implicaria fazer um desvio pelo campo da arte de performance,
talvez para especificar mais detalhadamente o que ela supõe. Não o farei, contudo, o
que não parece ser um problema, dado que diversos autores se debruçaram sobre este
tema e fizeram estudos notáveis (indicamos sua leitura).20 Entretanto, os meandros que
ligam a leitura à performance, e que talvez não sejam muito evidentes, merecem um
pouco mais de reflexão.
Apesar das perspectivas diversas com relação ao estatuto do texto no teatro (seja
ele o ponto principal, organizador de um espetáculo, ou o elemento acessório em uma
encenação), fato é que para aqueles que trabalham na fabricação de uma peça teatral, o
texto deve passar de uma virtualidade (o escrito) para uma concretude (o palco); ou seja,
se transformar em corpo, em imagem, em cenário, em luz, em espaço, em som, em voz.
Essa “necessidade de uma ação a ser realizada” ressoa o sentido do verbo inglês to
perform, não nos parecendo desarrazoado por isso falar em leitor-performer quando nos
referirmos aos profissionais do teatro: eles precisam, a partir de um texto escrito,
executar algo, produzir algo (próximo ou distante do texto de origem, pouco importa).
No limite, poderíamos sustentar que uma encenação numa peça que é montada a
partir de um texto é um efeito de leitura: embora independente do texto e utilizando
outras ferramentas para erigir, se constituir como evento, ela se faz a partir dele, e esse
efeito tem como produto final um espetáculo, algo que é dado a ver.
Assim, se tudo pode ser texto no teatro, o que esses profissionais da cena veem
em um escrito qualquer que lhes permite adaptar, fazê-lo ultrapassar o limiar de sua
finalidade primeira (qualquer que ela seja) para se transformar no palco? Paul Zumthor
também pode nos dar pistas para compreender esse aspecto.
De acordo com o medievalista e filólogo francês, “a condição necessária à
emergência de uma teatralidade performancial é a identificação, pelo espectador-
ouvinte, de um outro espaço; a percepção de uma alteridade espacial marcando o
texto”.21
Ora, se é verdade que essa alteridade espacial precisa ser identificada pelo
espectador-ouvinte no momento de um espetáculo, é preciso, porém, que, antes de tudo,
ela seja reconhecida por aqueles que vão fazer do escrito uma encenação – ator, diretor,
cenógrafo, iluminador, entre outros. Dito de outro modo, esse reconhecimento se coloca
do lado do público, é verdade, mas, principalmente, e antes de tudo, do lado daqueles
que fabricam o espetáculo. Tal como uma membrana celular, o leitor-profissional da
cena está dividido entre dois espaços: um totalmente virtual (o texto) e outro mais real
(o palco). Ele deixa passar por seus poros alguns elementos dessa virtualidade, que irão
alimentar sua criatividade. Já outros, ele retém, barra, quebra, segrega, acelera, expulsa,
construindo o espetáculo – e tudo isso a partir de sua leitura.
A citação de Zumthor dá a entender também que aquele que assiste a uma
performance deve ser remetido a um espaço diferente daquele em que está, deve ser
capaz de se deslocar de um “aqui-agora” para ir em direção ao outro. Reflitamos: o que
é uma leitura senão uma “brecha na eternidade”22
que nos permite, continuamente, estar
no presente e simultaneamente em outro espaço-tempo? A leitura torna possível estar
fisicamente em um espaço, sendo incessantemente reconduzido a um outro lugar.
“Infelizmente”, diz Peter Brook em O espaço vazio, tudo o que um texto teatral
“pode nos ensinar é que foi escrito em preto e branco, e não de que maneira nós, um dia,
lhe demos vida”.23
O mesmo, no entanto, não pode ser dito da leitura, pois os leitores
sempre deixam vestígios: eles são, como diz Michel de Certeau, viajantes, que
“circulam em terras alheias, nômades caçando através dos campos que eles não
7
escreveram”. Viajantes que deixam gravadas suas pegadas, o testemunho de suas
leituras na areia movediça dos textos de outrem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROOK, Peter (1968). L’espace vide. Paris : Seuil, 2003.
CAVALLO, Guglielmo ; CHARTIER, Roger (1997). Histoire de la lecture dans le
monde occidental. Paris: Seuil, 1997.
CHARTIER, Roger (1985). Pratiques de la lecture. Paris : Payot-Rivages, 1985
COUTANT, Philippe (dir.). Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca
seria, 2010.
DE CERTEAU, Michel (1990). L’invention du quotidien. Paris: Gallimard, 1990.
FERNANDES, Silvia (2010). « Notas sobre a dramaturgia contemporânea » In:
Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
FINGERMANN, Dominique (2010). “O tempo de uma análise” in Heteridade 8: São
Paulo, AFCL, 2010.
MEDEIROS, Francisco (2012). « Words in progress : texto teatral e leitura no teatro
contemporâneo » In : Revista Manuscrítica n. 22. São Paulo: USP, 2012.
PAVIS, Patrice (1982). Languages of the stage. New York: Performing Arts Journal
Publications, 1982.
PAVIS, Patrice (1996). Dictionnaire du théâtre. Paris: Dunot, 1996,
SOBRAL, Maria (2010). « Une adaptation contemporaine de La religieuse portugaise à
l’IFP » In : Lepetitjournal-com (Accès le 01/07/2013).
THIBAUDAT, Jean-Pierre (2007). Le Roman de Jean-Luc Lagarce. Besançon : Les
Solitaires Intempestifs, 2007.
ZUMTHOR, Paul (1990). Performance, Réception, lecture. Québec: Le Préambule,
1990.
NOTAS
*Mestre em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo (FFLCH- USP), título obtido
com a defesa da dissertação Brechas na Eternidade: Tempo e Repetição no teatro de Jean-Luc Lagarce
(2011). 1 CHARTIER, Roger (1985). Pratiques de la lecture. Paris: Payot-Rivages, 1985, p.07.
2 FERNANDES, Silvia (2010). “Notas sobre a dramaturgia contemporânea” In: Teatralidades
contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.154. 3 CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (1997). Histoire de la lecture dans le monde occidental.
Paris: Seuil, 1997, p.09 4 ZUMTHOR, Paul (1990). Performance, Réception, lecture, Québec: Le Préambule, 1990.
5 FERNANDES, Silvia (2010). “Notas sobre a dramaturgia contemporânea”, op. cit., p.154.
6 PAVIS, Patrice (1996). Dictionnaire du théâtre. Paris: Dunot, 1996, p.405.
7 PAVIS, Patrice (1982). Languages of the stage. New York: Performing Arts Journal Publications, 1982,
p.140. 8 FINGERMANN, Dominique (2010). “O tempo de uma análise” in Heteridade 8: São Paulo, AFCL,
2010. “[...] O tempo, isto é, a sequência de intervalos regulares, tornados sensíveis pelo retorno periódico
de algum marco”. 9 DE CERTEAU, Michel (1990). L’invention du quotidien. Paris: Gallimard, 1990, p. 247.
10 Companhia paulistana formada em 2006, radicada em São Paulo e composta por Paulo Arcuri, Ligia
Borges, Roberta Stein e Francisco Wagner. 11
TEATRO DA TRAVESSIA (2010). Projeto Dias Raros. São Paulo, acervo pessoal. 12
TEATRO DA TRAVESSIA (2010). Projeto Dias Raros. São Paulo, acervo pessoal.
8
13
SOBRAL, Maria (2010). « Une adaptation contemporaine de La religieuse portugaise à l’IFP » In :
Lepetitjournal-com (Acesso em 01/07/2013), grifos meus. 14
MEDEIROS, Francisco (2012). “Texto teatral e leitura no teatro contemporâneo” In: Revista
Manuscrítica n. 22. São Paulo: FFLCH-USP, 2012. 15
FILLON, Nathalie (2010). Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca seria, 2010, p. 23. 16
AUBERT, Marion (2010). Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca seria, 2010, p. 11. 17
LESCOT, David (2010). Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca seria, 2010, p. 29. 18
Para ver a opiniões diferentes com relação à noção de passagem do texto ao palco, ver os depoimentos
de Wadjdi Mouawad e Jöel Pommert In : Écrire pour le théâtre. Nantes : Le Grand T/Éditions joca seria,
2010, p. 38 e 51 respectivamente. 19
ZUMTHOR, Paul (1990). Performance, Réception, lecture, Québec: Le Préambule, 1990, p. 34. 20
Ver COHEN, Renato (2004). A performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. 21
Idem, p.41. 22
THIBAUDAT, Jean-Pierre (2007). Le Roman de Jean-Luc Lagarce. Besançon : Les Solitaires
Intempestifs, 2007, p. 38. 23
BROOK, Peter (1968). L’espace vide. Paris: Seuil, 1977, p.28.
O TEATRO OPRESSIVO DE ANCHIETA NO BRASIL COLONIAL: UMA
ANÁLISE RESIDUAL OPRESSIVA MEDIEVAL CATÓLICA NA OBRA
“AUTO DA PREGAÇÃO UNIVERSAL”.
Francisco Wellington Rodrigues Lima (Professor do Curso de Licenciatura em Teatro
da Universidade Regional do Cariri e Doutorando em Literatura Comparada pela
Universidade Federal do Ceará)
O teatro medieval, graças à mentalidade constituída pela Igreja Católica, trouxe
à cena a representação do Diabo e do Inferno, de Deus e do Céu, de Anjos e demônios,
Santos etc. O Mal, por exemplo, através das artes cênicas, difundia-se com maior
eficiência na mente do povo cristão e, cada vez mais, o pensamento católico cristão se
firmava na sociedade medieval. As peças teatrais mostravam representações pavorosas
e, algumas vezes, risíveis sobre a figura do Mal. No teatro vicentino, por exemplo, o
Diabo representava, simbolicamente, papéis diversos: era juiz, acusador, relator dos
pecados humanos, tentador, ludibriador etc; recebeu caracterizações e denominações, de
acordo com o imaginário popular do período medieval, que o marcaram para sempre:
Satã, Belial, Satanás, Lúcifer etc; tornou-se ridículo diante dos anjos e outros seres
divinos; cômico quando se enredado por causa de sua tolice ou quando se colocava em
situações de fracasso, derrota; é ainda causador do riso quando insultado, humilhado e
enganado. Dessa forma, a Igreja Católica impôs o seu poder, seus dogmas e
pensamentos que tanto condenavam quanto salvavam.
Contudo, foi esse pluralismo ideológico de pensamentos e mentalidades que se
projetou na sociedade cristã medieval, através do teatro, que serviu de subsídios para o
desenvolvimento desse artigo, uma vez que este transcorrerá em torno de uma das obras
mais contundentes do Padre José de Anchieta: “Auto da Pregação Universal”. Para tal,
buscamos fundamentação teórica na Teoria da Residualidade Literária e Cultural,
elaborada e sistematizada por Roberto Pontes e na Literatura Comparada, visando
assim, entender a projeção residual da opressividade católica cristã no teatro
quinhentista brasileiro de Anchieta.
Roberto Pontes empregou o termo residualidade inicialmente em sua dissertação
de mestrado, atualmente publicada em livro, cujo título é Poesia insubmissa
afrobrasilusa (1999), tendo por objetivo demonstrar a presença de resquícios do
passado que, ao longo do tempo, acumularam-se na mente humana e que são refletidos
em textos de forma involuntária através de estruturas atualizadas (1).
Os termos resíduo, residual e residualidade, na concepção de Roberto Pontes,
têm sido empregados relativamente ao que resta ou remanesce na Física, na Química, na
Medicina, na Hidrografia, na Geologia e em outras ciências, mas na Literatura (história,
teoria, critica e ensaística) quase não se tem feito uso dos mesmos (MARTINS, 2000, p.
264).
Ainda segundo Roberto Pontes, resíduo é “aquilo que remanesce de uma época
para outra e tem força de criar de novo toda uma obra, toda uma cultura”, independente
do tempo e espaço, de modo involuntário, mediante a um processo mental (coletivo),
tendo, para tal, os seguintes conceitos operacionais: residualidade (2), cristalização (3),
mentalidade (4) e hibridismo cultural (5). (PONTES, 2006, pp. 01-03). Bem sabemos
que na cultura do povo brasileiro, inclusive no período da colonização, muitos
resquícios da época medieval cristalizaram-se como elementos vivos na mentalidade da
sociedade que aqui se formava, substratos mentais, difundindo, por exemplo, uma
representação fértil do que remanesceu acerca dos dogmas da Igreja Católica européia
no Brasil, mesclando-se, engenhosamente, a cultura indígena cá existente, corpus
central de nosso estudo, como bem representou Anchieta no Teatro Quinhentista
Brasileiro. Ainda conforme Pontes, o resíduo “não é um cadáver da cultura grega ou da
cultura medieval que deve ser reanimado nem venerado num culto obtuso de exaltação
do antigo, do morto... não é isso... fica como material que tem vida” (PONTES, 2006, p.
02).
Seguindo as linhas mestras de Paulo Romualdo Hernandes (2008), Anchieta
seria o santo que a Igreja Católica tanto necessitava. Considerado herói nacional, o
jovem membro da Companhia de Jesus, segundo a concepção histórica da literatura, foi
o “primeiro estrangeiro a escrever em brasileiro” (HERNANDES, 2008, p. 15).
Anchieta conviveu com múltiplas culturas (africana, européia, indígena) até os
seus 14 anos. Quando chegou à Europa, ainda na juventude, entrou em contato com o
período de maior efervescência das idéias humanistas. O convívio com professores
humanistas o colocava diante de peças com temas bíblicos, realizadas nos pátios do
Colégio das Artes, de peças com tradição estética inspirada em temas da tragédia e da
comédia Greco-romana. Nessa mesma época, século XVI, Portugal vivia o período da
Santa Inquisição e, os autos, como encenação dramática, se fortaleciam, trazendo
elementos da tradição medieval para o teatro renascentista. Com efeito, segundo
Eduardo Navarro (1999), naqueles anos, eram populares os autos de Gil Vicente, fato
que nos revela, na obra de Anchieta, grande influência, seja no conteúdo, na forma ou
no uso de alegorias e personagens.
Com a produção literária e dramatúrgica de Anchieta, inegavelmente, a história
da vida cultural brasileira teve início. Seu interesse pelo nativo aparece não só como
“objeto de especulação literária, mas também como condição de pessoa humana, como
vínculo de cultura e, mais do que isso, como elemento de fixação de cultura”
(FERNANDES, 1980, p. 45). Com o objetivo da evangelização, Anchieta soube
explorar as manifestações indígenas, seus hábitos e crenças. No entanto, não podemos
deixar de lado, certas condições de opressividade impostas pela Igreja Católica que
marcaram a dramaturgia do referido padre jesuíta.
O Auto da Pregação Universal é a primeira peça de Anchieta, representada,
provavelmente, pela primeira vez, em 1561, no natal, a pedido do Padre Manuel da
Nóbrega. O auto agradou inteiramente a todos e repetiu-se por toda a costa brasileira,
com adaptações maiores ou menores, mediante as circunstâncias de tempo e espaço.
Recebeu esse nome pelo fato de estar escrito em três línguas - o português, o tupi e o
espanhol – podendo alcançar todo o público da época. (CARDOSO, 1977)
O enredo, reconstituído pelos pesquisadores do teatro anchietano, com base no
Caderno de Anotações do padre missionário, tem cinco atos, segundo a edição proposta
pelo Padre Armando Cardoso (1977). O primeiro e o quinto são compostos por um
poema longo sobre um conhecido tema medieval, o Pelote Domingueiro (6). Neles,
canta-se uma alegoria da história do pecado: um moleiro (Adão) perde a sua veste de
domingo (a graça de Deus), roubada por um ladrão (o Diabo). Com a perda, o moleiro
torna-se um desgraçado, até que sua veste seja recuperada, fato que ocorre no quinto
ato. O neto do moleiro (Jesus Cristo), com sua mãe, a filha do moleiro (Maria), tece
nova veste (a graça de Deus) para o avô (Adão, homem caído), com seus trabalhos de
salvação (Encarnação, Circuncisão, Paixão), e lhe restitui com a veste a alegria festiva.
No segundo ato, deparamo-nos com a luta dos anhangás (Guaixará e Aimberé) contra o
Karaibebé (Anjo). Conseqüência da primeira queda do homem, os dois diabos,
Guaixará e Aimberé, mostram o mal que fazem por todas as aldeias indígenas,
pervertendo os índios com os pecados mundanos. O Anjo da guarda da aldeia,
condescendente em ouvi-los a princípio, acaba por expulsá-los, exortando os índios à
vida cristã com a graça de Jesus e a proteção da Virgem Maria. No terceiro ato, temos o
desfile de doze pescadores brancos, amarrados pelos diabos, a narrar suas misérias
diante do presépio, com esperança de serem atendidos pela graça divina. No final, todos
são absolvidos e ficam libertos das correntes, simbolizando o perdão pelos pecados
cometidos. No quarto ato, temos a dança dos meninos, com versos em português,
espanhol e tupi.
De acordo com o enredo, há no texto de Anchieta uma alusão a três grandes
festividades do calendário cristão: a festa de Natal (25 de dezembro), à Circuncisão (1
de janeiro) e à festa dos Reis Magos (6 de janeiro). Trata-se de três momentos festivos
oriundos da Península Ibérica medieval que se enraizaram no Nordeste do Brasil de
forma profunda e diversificada (7). São tradições antigas, mas que ainda permanecem
em nossas memórias na forma de resíduos. Detalhe: impostos pela Igreja Católica e pela
Missão Jesuítica em nosso território contra toda uma tradição cá existente: a do
indígena, em especial.
Como nosso corpus de pesquisa gira em torno dos resíduos opressivos da Igreja
Católica Medieval no Brasil Colonial na obra de Anchieta, vejamos nesse momento
apenas o primeiro e o quinto atos do auto em análise, que fala do Pelote Domingueiro.
Leiamos a versão de Anchieta do Pelote Domingueiro e a atuação/representação do
Diabo medieval, símbolo de medo e opressividade, na obra do padre jesuíta:
ATO I
Já furtaram ao moleiro/o pelote domingueiro.
Se lho furtaram ou não,/bem nos pesa a nós com isso!
Perdeu-se com muito viço/o pobre moleiro adão.
Lúcifer, um mal ladrão/lhe roubou todo o dinheiro/co’o pelote domingueiro.
(...)
Era uma peça, a mais fina/de todas quantas tivera.
Se ele bem a defendera,/não jogaram de rapina.
A cobra ladra e malina/com inveja do moleiro,/apanhou-lhe o domingueiro.
(...)
Nesse momento do primeiro ato, O Diabo é representado como “um mal ladrão”
por furtar o Pelote Domingueiro. Podemos perceber ainda uma das suas principais
denominações no imaginário popular: o nome de Lúcifer que lhe é atribuído no texto.
Outro dado a ser ressaltado é a forma híbrida dirigida ao representante do Mal, “cobra
ladra e malina”, formas estas que provocavam medo e opressão no público da época.
Além disso, é possível detectar outros caracteres do Diabo medieval na obra de
Anchieta como o fato dele ser astucioso, sorrateiro, invejoso e maligno. Leiamos outro
fragmento da obra anchietana em que o Diabo, metaforicamente, seduz Eva para furtar
o Pelote Domingueiro :
(...)
A mulher que lhe foi dada,/cuidando furtar maquias,
com debates e porfias/foi da culpa maquiada.
Ela nua e esbulhada,/fez furtar ao moleiro/o seu rico domingueiro.
Toda bêbada do vinho/da soberba, que tomou,
o moleiro derrubou/no limiar do moinho.
Acodiu o seu vizinho/Satanás, muito matreiro,/e rapitou-lhe o domingueiro.
(...)
Ele, como se viu tal,/escondeu-se de seu amo,/encobrindo-se com um ramo
debaixo dum figueiral,/porque o ladrão infernal/nos ramos dum macieiro/lhe rapou seu
domingueiro.
Nesse trecho, o Diabo aparece como soberbo e sob a denominação de Satanás,
outro nome importante que geralmente lhe é atribuído. Além disso, é possível verificar,
de forma metafórica, o momento em que Eva se deixa seduzir por Satanás e a queda
primeira do homem: “Toda bêbada do vinho/ da soberba, que tomou, / o moleiro
derrubou”. Aqui, Anchieta faz uma alusão ao pecado original através do rapto do Pelote
Domingueiro pelo Diabo. Dessa forma, o Diabo se consagrava como podemos observar,
como um ser perigoso, que provocava males e impunha medo. E quando lemos “porque
o ladrão infernal / nos ramos dum macieiro / lhe raptou seu domingueiro”, lembramos,
rapidamente, do Diabo na forma de serpente do Jardim do Édem, conforme podemos
encontrar na Bíblia (2009). Vejamos:
Mas, a serpente era o mais astuto de todos os animais da terra que o Senhor
Deus tinha feito. E ela disse a mulher: por que vos mandou Deus que não
comêsseis de toda a árvore do paraíso?
Respondeu-lhe a mulher: nós comemos do fruto das árvores que estão no
paraíso. Mas do fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos
mandou que não comêssemos, nem a tocássemos, não seceda que morramos.
Porém, a serpente disse à mulher: bem podeis estar seguros que não
morrereis de morte. Porque Deus sabe que em qualquer dia que vós comais
desse fruto, se abrirão vossos olhos; e vós sereis como uns deuses,
conhecendo o bem e o mal.
Viu pois a mulher, que a árvore era boa para comer, e formosa aos olhos, e
deleitável à vista: e tirou do fruto dela, e comeu e deu a seu marido, que
também comeu.
No mesmo ponto se lhes abriram os olhos; e tendo conhecido que estavam
nus coseram umas folhas de figueira, e fizeram para si umas cintas.
E Adão e sua mulher, como tivessem ouvido a voz do Senhor Deus, que
passeava pelo paraíso, depois do meio-dia, quando se levantava a viração,
esconderam-se da face do Senhor Deus no meio das árvores do paraíso.
E o Senhor Deus chamou por Adão, e lhe disse: onde estás?
Respondeu-lhe Adão: eu ouvi a tua voz no paraíso, e tive medo, porque
estava nu; e por isso me escondi.
Disse-lhe Deus: donde soubeste tu que estavas nu, senão porque comeste da
árvore de que eu te tinha ordenado que não comesses?
Respondeu Adão: a mulher, que tu me deste por companheira, deu-me da
árvore, e eu comi.
E o Senhor Deus disse para a mulher: por que fizeste tu isto?
Respondeu ela: a serpente me enganou, e eu comi. (GÊNESIS, 3:1-13).
Comparando os textos acima, podemos observar que o pelote domingueiro,
poesia popular medieval, adaptada ao contexto religioso/bíblico imposta pela Igreja
Católica Medieval no Brasil Quinhentista, trouxe para a época um efeito singular:
resíduos do Diabo cristão medieval e da história do primeiro pecado humano. Resíduos
de medo e opressividade provocados por uma mentalidade fértil em torno de uma das
figuras mais contundentes da história da humanidade: o Diabo. Tanto na peça de
Anchieta como no texto bíblico, o Diabo, na forma de serpente, é representado como
pecaminoso; faz, em Anchieta, o parvo perder seu domingueiro (a graça divina) e, na
passagem bíblica, faz o homem perder a sua pureza – que também simboliza a graça de
Deus. Portanto, nessa obra anchietana, detectamos uma referência à tentação, à queda
primeira e a promessa de redenção do homem, representando assim, o poder e os
dogmas do Cristianismo Medieval no Brasil Colonial. Da mesma forma podemos
encontrar tais referências no teatro de Gil Vicente (Vol. II, 1959), mas precisamente no
Auto da História de Deus, texto que demonstra elementos de residualidade cultural e
literária dos dogmas da Igreja Católica do período Medieval que se cristalizaram na
mente do povo brasileiro, no século XVI. Leiamos o trecho do Auto da História de
Deus (Vol. II, 1959, p. 171) que ressalta a queda do primeiro homem e a atuação do
Diabo nesse contexto:
LÚCIFER
Vai tu, Satanás, por embaixador,/eu te dou meu comprido poder;/e vai-te a Eva, porque é
mulher,/e dize que coma, não haja temor;/e, como avisado,/lhe fala cortês e mui repousado,/mostrando-te
alegre com todo seu bem,/e seu muito amigo maior que ninguém:/minte-lhe largo, e dá-lhe o cuidado/que
agora não tem.
Vem tomar graça, pois hás-de pregar/à mais avisada senhora do mundo:/eu te outorgo meu poder
facundo./Não hajas dó dela, faze-a fiar,/destruí-la asinha; (...)
LÚCIFER
Faze-te cobra, por dissimular,/porque pareças do mesmo pomar,/que sabes das frutas as graças
que tem;/porque hás-de dizer:/Senhora fermosa, deveis de saber/que aquela fruta que vos foi vedada/Oh!
Quanta ciência em si tem cerrada.
SATANÁS
Senhor Lúcifer, prazer i não há/que dê pelos pés ao vencimento,alegrai-vos muito e o nosso
convento,que vosso desejo comprido está.
já são derrubados/Adão e Eva os primeiros casados,/voltas as vodas em pranto mui forte,/o gozo
em lágrimas, a alegria em morte,/a vida em suspiros, prazer em cuidado,/ventura sem sorte.
(...)
Comparando as passagens do primeiro ato do Auto da Pregação Universal com
os dois textos colocados aqui, a passagem do Gênesis e a do Auto da História de Deus,
fica clara a residualidade em torno da figura do representante do mal na obra de
Anchieta e dos dogmas opressivos oriundos do Cristianismo Medieval que se projetou
na mentalidade da sociedade brasileira em pleno século XVI, uma sociedade, diga-se de
passagem, em formação, pois, nos fragmentos textuais do padre missionário são
resíduos do medievo e vicentino a representação do Diabo soberbo, tentador e
ludibriador; aquele que age de forma maléfica, dispondo ações do mal contra Deus e sua
mais nobre criação, o homem; o Diabo que provocou medo e opressão diante das
circunstâncias aqui apresentadas.
No quinto ato, Anchieta faz um desfecho para a história do rapto do Pelote
Domingueiro. Nesse momento, fala-se mais uma vez do furto realizado pelo Diabo e da
conquista do pelote por parte de Jesus. Leiamos:
Ato V
Já tornaram ao moleiro/o pelote domingueiro/o Diabo lhe furtou/o pelote por enganos.
Mas, depois de muitos anos,/um seu neto lho tornou;/por isso carne tomou/duma filha do
moleiro,/por pelote domingueiro.
(...)
Viva o segundo Adão,/que Jesus por nome tem!
Viva Jesus, nosso bem!/Jesus, nosso capitão!
Hoje, na circuncisão,/se tornou Jesus moleiro/por tornar o domingueiro!
Passemos agora a análise do terceiro ato, momento em que acontece um desfile
de pescadores brancos amarrados pelo Diabo, que, segundo o texto, foram castigados
por terem sido desleais com o povo e com os dogmas da Igreja Católica. Leiamos os
fragmentos do texto a seguir que trazem nas falas dos pescadores os pecados por eles
cometidos e os pedidos de demência à Virgem Maria:
(4 PEDRO COLAÇO)
Pois que temo o mal eterno,/porque me prendo com o laço/do pecado que é baraço
a me arrastar para o inferno,/que é dos diabos o paço?
Ao pobre Pedro Colaço/salvai-o, Virgem clemente!/Pois quem tanto a pena sente
desse tenebroso espaço,/como se prende a corrente?
(6 ANTÃO VILHENA)
Eu mesmo, por meu querer,/ao pecado me entreguei;/com ele minha alma atei,/sem nunca amar e
temer/a Deus contra quem pequei.
Virgem Mãe do eterno Rei,/acalmai Antão Vilhena!
Pois estou cheio de pena/que eu, vilão, me procurei/com culpa que me condena.
Como podemos perceber, os pescadores, ao serem atormentados pelos diabos,
tentam se redimir de seus pecados, pedindo a graça e a proteção da Virgem. Perdoados
de seus atos, os pescadores ficam livres de suas culpas e as amarras caem. Esse trecho
da obra anchietana remete-nos ao Auto da Barca da Glória (Vol. II, 1959, p. 125), peça
em que cada personagem tem que prestar contas com o Diabo, que os lembra de suas
vidas de pecado e os convida a entrar na barca infernal. Mas, ao recitarem passagens do
ofício dos mortos e se redimirem de seus pecados, ganham a salvação eterna; todos são
salvos pelo próprio Cristo. Vejamos as passagens do auto vicentino:
CONDE
O muy preciosos remos,/socorred mi aflicion.
LIÇÃO PRIMEIRA
O parce mihi, Dios mio,/porque ensalza tu poderio/al hombre, y das señorío,
y luego del te desvias?/Com favor visitas eum al alvor,/y súpito lo pruevas logo:
porqué consientes, Señor,/que tu obra, y tu hechor,/sea desecha nel fuego? (...)
por mi sufrió el Messias.
(...)
DUQUE
O ángeles, qué haremos,/que no nos deja Satan? (...)
PAPA
Ó Pastor crucificado,/como dejas tu ovejas,/y tu tan caro ganado!
Y pues tanto te há costado,/inclina á él tus orejas.
Observando o texto de Anchieta e o de Gil Vicente, fica clara a aproximação
entre a obra vicentina e a anchietana. Portanto, a figura do Diabo em ambos os textos
aparece como um juiz que tenta condenar os indivíduos pecadores, mas é derrotado pela
Providencia Divina, por intercessão da Virgem Maria ou de Cristo, elementos
importantes criados pela Iigreja Católica para fortalecer seu pensamento, seus dogmas e
instalar o seu poder pelo mundo, inclusive, no Brasil quinhentista. Além da figura do
Diabo como juiz (perdedor e fracassado por não conduzir seus pretendentes ao fogo
infernal como mostra Anchieta), ainda podemos detectar uma outra característica
importante acerca desse ser diabólico que se cristalizou na mentalidade do povo cristão
medieval na Europa e no Brasil: o Diabo que foge enfurecido e com medo da presença
de seres divinizados, provocando assim, o riso sobre o Diabo; contudo, um riso
opressivo que, no final das contas, provoca medo e agonização.
Notas
(1) Hoje, a Teoria da Residualidade é registrada junto à Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-
Graduação da Universidade Federal do Ceará e ao Conselho Nacional de Pesquisa –
CNPq -, e sua propagação pelo universo da pesquisa ganha, a cada dia, mais espaço e
notoriedade entre alunos e professores pesquisadores do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Ceará e outras IES que reconhecem a
importância do termo no estudo da tradição cultural e literária de nosso País.
(2) Resíduo, Residual e Residualidade: refere-se a certas formações mentais que persistem
através de longas durações. É dotado de extremo vigor e não se confude com o arcaico.
É aquilo que remanesce de uma época para outra e tem a força de criar de novo toda
uma cultura ou obra literária; não é material morto e, sim, material que tem vida, porque
continua a ser valorizado e vai infundir vida numa obra nova. (PONTES, 2006, p. 03)
(3) A cristalização é a sedimentação de resíduos culturais de outras épocas em obras
contemporâneas. Trata-se de um modo coletivo de compreender a memória coletiva,
uma vez que é sempre resultante de um processo de modificações contínuas das
condições materiais. (PONTES, 2006, p. 03)
(4) A mentalidade é um conjunto difuso de imagens a que se referem todos os membros de
um mesmo grupo e está associada intrinsecamente ao resíduo. Trata-se de um campo
investigativo delimitado pela idéia de longo tempo dos componentes da École dês
Annales. (PONTES, 2006, p. 03)
(5) O hibridismo cultural explica que as culturas não seguem caminhos isolados: elas se
encontram, se fecundam, se multiplicam, proliferam; apresenta sempre a idéia de algo
resultante do cruzamento de culturas diferentes. Pode ser estudada pelo seu aspecto
literário, artístico ou sócio-cultural. (PONTES, 2006, p. 03)
(6) O assunto das Trovas do Moleiro vem da Idade Média. Ver ANCHIETA, José de.
Teatro de Anchieta. Vol. III. Originais acompanhados de tradução versificada,
introdução e notas pelo Padre Armando Cardoso S.J. São Paulo: Loyola, 1977, p. 63.
(7) Ver Câmara Casacudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro, 11 ed. São Paulo: Global,
2002, pp. 416 – 580.
Bibliografia
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acompanhados de tradução versificada, introdução e notas pelo P. Armando Cardoso
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Global Editora, 2000.
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HERNANDES, Paulo Romualdo. O Teatro de José de Anchieta – Arte e Pedagogia no
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_______. Obras Completas. Com prefácio e notas do Professor Marques Braga. Vol. II,
3 ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1959.
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
O ESPECTADOR EM CENA: A FORMAÇÃO DE CORPOS INDÓCEIS NA PLATEIA, ATRAVÉS DA DESTERRITORIALIZAÇÃO DO ESPAÇO DE
REPRESENTAÇÃO TEATRAL. Getsêmane de Oliveira Machado; Orientador: Profa. Ma. Renata Kely da Silva; Universidade Federal do Ceará Introdução
Violar o espaço de representação teatral em que se configura uma distância entre
palco e plateia é pensar outras possibilidades criativas e de construção poética, estética, ética e, principalmente, política na encenação.
Nesse sentido, colocar o espectador em cena juntamente com os atores em um ambiente desterritorializado, “sem dono”, é, além de promover a mistura física, espacial e sensorial entre eles, (res)significar a própria obra em questão de maneira ativa, constantemente inédita, e que nela não se configure a existência de uma hierarquia social.
No que diz respeito à possibilidade da formação de corpos indóceis na plateia, é necessário compreender que sua justificativa, pelo menos enquanto proposição política, não deve se dar por causa exclusivamente de questões arquitetônicas, como se estas fossem as responsáveis unicamente por gerar ou atenuar diferenças sociais e de produção de pensamento crítico nas relações entre ator, obra e espectador.
Isso não é o que está em cheque, mas sim o fato de historicamente esse espaço de representação, simbolizado principalmente pelo palco em formato a italiana, ter sido utilizado pela aristocracia e burguesia para se gerar ou aprofundar relações estáticas e passivas para o espectador, tendo-se assim o uso da frontalidade propiciada pelo espaço com aparência de caixa como lhe servindo de bitola para não se enxergar além, subjetiva e criticamente.
Por outro lado, acreditar que somente pelo fato de se estar fora do palco italiano isso será garantia de que essas questões serão dissolvidas e/ou resolvidas é incorrer em um erro de compreensão quanto à forma e conteúdo de um espetáculo acontecido em um espaço não convencional. Ou seja, é o discurso proposto pela obra e suas respectivas linguagens de encenação (iluminação, figurino, atuação, sonoplastia etc.), assim como a experiência propiciada por ela, que serão capazes de justificar a escolha dessa maneira de se fazer teatro.
Se enquanto tal privilegiarem relações outras com a plateia, voltadas a acontecimentos os mais desprovidos possíveis de mecanismos de controle e dominação, atribuindo-lhe responsabilidades cada vez maiores, e condições para assumi-las, de coautoria do objeto artístico, sem julgamentos do que isso possa significar, é que de fato esse outro teatralizar fará jus ao que ele se propõe.
Sendo assim, ao se diminuir distâncias entre teatro (ficção) e vida (realidade) intervindo diretamente no modus operandi até então comumente entendido como sendo do espectador, elabora-se um fazer teatral onde seus resultados são voltados para
processos inesperados ou desesperados, onde iniciativas e soluções de se fazer e compreender a obra são oriundos, literalmente, de todas as partes envolvidas.
1. Um outro corpo para o espectador
“Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação;” (FOUCAULT, 2007, p. 25).
A importância do corpo para a história da humanidade se dá porque é nele, e
através dele, que se materializam os seus feitos. Ou seja, é pelo corpo (mente e físico), enquanto expressão da matéria, que o humano expressa sua existência de modo tangível e concreto. Sendo assim, o corpo torna-se um dos principais instrumentos a partir do qual as relações de poder são exercidas. Dominá-lo, controlá-lo, sujeitá-lo e afins, é garantir a continuidade de um status quo por parte de um sistema de caráter opressor, quer seja ele representado através do aparelhamento estatal ou das relações ordinárias cotidianas.
Ao longo da história, esse processo de se exercer poder sobre o corpo do outro também aconteceu com a figura do espectador. Todo um aparato tecnológico e político, dentro do campo do teatro e das artes, foi desenvolvido e aperfeiçoado ao longo do tempo por gerações e gerações, a fim de que a plateia assumisse seu papel como sendo o de apenas uma mera contempladora da obra artística.
Nesse lugar, ela acabou mais por se tornar reconhecedora de convenções e signos teatrais, e, quem sabe até, uma apreciadora disso. Como se fosse algo natural retroalimentou esse sistema tomando seu corpo, entendido para efeitos desse trabalho, principamente, como sendo sua mente, para ser mais um entre tantos, que punido e submisso torna-se produtiva economicamente como força de trabalho.
O teatro, como instituição, muitas vezes também serviu a esses interesses por causa e a partir de seus autores, espaços cênicos, artistas etc. Com o intuito de naturalizar essas relações, mesmo que por vezes inconscientemente, sobre ele também passou a residir as funções de vigiar e punir esses corpos e, assim, fomentar o surgimento de um espectador padrão.
“Há um trabalho feito por parte de quem percebe, assim como há um trabalho por parte do artista. Quem é por demais preguiçoso, inativo ou embotado por convenções para executar esse trabalho não vê nem ouve. Sua ‘apreciação’ é uma mescla de retalhos de saber com a conformidade às normas da admiração convencional e com uma empolgação afetiva confusa, mesmo que genuína.” (DEWEY, 2010, p. 137).
Diante disso, como propor um outro corpo para a plateia, que seja indócil por
natureza, contestadora, e dado a uma relação consigo que se volte para produção de sujeitos históricos?
Um dos caminhos passa pela possibilidade do teatro lhe conferir o vivenciar de uma outra experiência, tanto artística como de vida. Se não melhor, que pelo menos aja na contramão à descrita anteriormente. Isso implica dizer que ele deve oferecer ferramentas que levem seu público a criar e perceber outras possibilidades que transcendam ao simples fato de um reconhecimento sobre o que a coisa é: teatro. Na relação com a obra o espectador deve se sentir constantemente estimulado e desafiado a reinventá-la e, assim, também a sua própria vida.
“A percepção substitui o mero reconhecimento. Há um ato de reconstrução, e a consciência torna-se nova e viva. (...) O reconhecimento é fácil demais para despertar uma consciência vívida. Não há resistência entre o novo e o velho para assegurar a consciência da experiência vivida.” (DEWEY, 2010, p. 135).
2. Uma outra cena para o espectador
“Em suma, o público entrosa-se no espetáculo na medida em que é convidado a ser parte ativa: ele é, por exemplo, a floresta que os paladinos atravessam, montados em seus cavalos de zinco; ele é o mar cujas ondas vêm bater na praia da ilha onde Olímpia ficou abandonada e que Orlando alcançará a nado. Mais tarde, completamente envolvido, atacado e empurrado pelos sarracenos e pelos franceses que se enfrentam no cerco de Paris, o público é precipitado para dentro da batalha, participando sem querer de um combate no qual – como o Fabrício, de O vermelho e o negro, de Stendhal em Waterloo – ele se vê engajado e comprometido; tanto mais que os combatentes saltam dos seus carrinhos, enfrentam-se deitados no chão, no mesmo plano que ele, aos seus pés. No desfecho da batalha há feridos e mortos espalhados pelo chão, agonizando e gemendo. Alguns espectadores foram vistos precipitando-se piedosamente para tentar socorrê-los.” (ROUBINE, 1998, p. 107).
A citação acima refere-se à peça Orlando Furioso, de Luca Ronconi, apresentada na Itália em 1969. O espetáculo, apresentado como tal, é um exemplo de como se idealizar um outro espectador, pertencente a uma outra plateia, consciente de que sua atuação performativa será fundamental para sua experiência estética. Nessa ambiência, o fazer teatral acontece em um território de busca constante pela afetividade, onde atores e espectadores estão “frente a frente”, perto e longe, nos mais diversos planos, mas sempre uns com os outros de maneira sensível, porosa, transparente e atravessada pelo jogo cênico que a obra em questão lhes propicia. Nesse (não) lugar, geográfico e/ou imaginário, estruturado para ser eminentemente flexível e transformável, a percepção dessas personagens, de quem elas são, e da obra em si, é frequentemente desorganizada para que, por sua vez, isso ocasione os riscos e estopins necessários para gerar o desencadeamento das ações da representação.
“O espaço dividido em compartimentos por estrados de camas de metal. Em cima desses estrados, por onde circulam os intérpretes, estão sentados os espectadores. Iluminados pelos focos dos refletores, eles se
vêem uns aos outros como figuras componentes do universo do hospício. O mesmo ocorre no caso de Fausto, inspirado em Marlowe, montado em 1963. O espaço compõe-se de três mesas dispostas em forma de U. Como se fossem convivas do último banquete de Fausto, os espectadores ficam sentados em cima dos bancos, dos dois lados das mesas, em cima das quais evoluem os atores.” (ROUBINE, 1998, p. 103).
Nas peças encenadas por Grotowski, Kordian e Fausto, anos de 1962 e 1963, respectivamente, também é possível identificar possibilidades outras de deslocar o espectador da sua função habitual e assim colocá-lo em cena.
Os atores, ao se aproximarem do público e se misturarem com ele no ato da encenação, e vice-versa, o tornam parceiro de criação desse teatro e da obra proposta. O próprio entendimento do que seja ser ou estar espectador começa a ser questionado e, possivelmente, até desconstruído, gerando-se assim o início de uma revolução para a plateia, agora formada a partir de uma sensibilização outra, de cunho estético-poético-político capaz de propor para si uma experiência ativa e repleta de singularidade.
Ao se viver o espetáculo, e não apenas contemplá-lo à distância e passivamente, o público pode vir a adquirir status de protagonista porque ele é quem vai, estranhamente, gerá-lo para si e seus facilitadores, aqui entendidos como atores, diretores e dramaturgias. Considerações finais
“O vazio no teatro permite que a imaginação preencha as lacunas. Paradoxalmente, quanto menos se oferece à imaginação, mais feliz ela fica, porque é como um músculo que gosta de se exercitar em jogos.” (BROOK, 2011, p. 23).
Nessa outra forma de se pensar no espectador de teatro, colocá-lo diante do vazio
para abrir mão dos pressupostos até então adquiridos, quanto à forma de se entender como tal, é levá-lo a estar disponível para vivenciar constantemente o novo, deparando-se inúmeras vezes e/ou ao mesmo tempo com a sensação de incapacidade do não se saber onde se vai chegar durante esse processo. Nesse sentido, será mais importante para ele o meio do que o fim, a jornada do que o destino, visto que este será uma resultante natural da combinação das mais diversas possibilidades que o caminho percorrido lhe mostrou e que também poderiam ser elas objeto de sua escolha quanto ao modo de se apropriar da experiência cênica vivida.
Levar a plateia a um estado de presença, nesse contexto, torna-se então um dos mais relevantes princípios pelo qual se deve operar na criação e produção de uma representação teatral, através da desterritorialização do espaço. Dessa forma, isso torna-se extremamente necessário para que o público possa vivenciar as relações cênicas que lhes são propostas, disponibilizando-se integralmente para o que quer que elas sejam e estejam. É se estando presente que provavelmente vai se gerar no espectador a atenção e a tensão capazes de aumentar sua capacidade de escuta mediante aquilo que acontece no palco e fora dele, para nesse exato instante, tomado pelo ineditismo e, concomitantemente, efemeridade do momento, dar respostas de atuação que se façam críveis para a representação teatral.
“A percepção é um ato de saída da energia para receber, e não de retenção da energia. Para nos impregnarmos de uma matéria, primeiro temos de mergulhar nela. Quando somos apenas passivos diante de uma cena, ela nos domina e, por falta de atividade de resposta, não percebemos aquilo que nos pressiona. Temos de reunir energia e colocá-la em um tom receptivo para absorver.” (DEWEY, 2010, p. 136).
Desorientar o espectador, recorrentemente lhe ocasionar surpresas, desconforto,
fazê-lo se movimentar pelo espaço, se comunicar com seu corpo, voz etc., são algumas das maneiras de alterar sua percepção habitual, a fim de torná-lo performador de uma experiência ativa e de uma obra aberta, pelo menos no momento em que ela acontece. Imergi-lo em uma relação cênica que lhe estimule a extrair dela o máximo de vivências é oportunizar o surgimento de outros modos de se entender teatro e o que isso tem a ver com a vida.
A democratização do espaço cênico através da sua violação e desterritorialização também é um pano de fundo possível para a criação de uma plateia autônoma, não fabricada nem produzida em série para o mercado, onde seja estimulada a formação de um sujeito histórico, incluso, politizado, que age mediante o resultado de um pensamento crítico voltado para seu bem comum e da sociedade em que vive, privilegiando em suas ações atos libertários, porém, igualmente de justiça.
Nesse “informe” lócus de representação e comunicação, onde todos tornam-se personagens ativos de uma mesma história, e de sua própria existência dentro dela, a encenação pode vir a adquirir caráter de instrumento político-pedagógico para formação de corpos indóceis, geradores de potência de vida através de um processo artístico latente de ensino-aprendizagem, criticidade e fruição para quem dele participa.
Bibliografia BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro; tradução Antonio Mercado. – 7a ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. – 3a ed. – São Paulo: Hucitec, 2011. (Pedagogia do Teatro) DEWEY, John. Arte como experiência; org. Jo Ann Boydston; tradução Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010. (Coleção Todas as Artes) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução Raquel Ramalhete. – 34a ed. – Rio de Janeiro: Vozes, 2007. GUINSBURG, J. & FERNANDES, Sílvia, (Orgs.). O pós-dramático; São Paulo: Perspectiva, 2010. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral; tradução Yan Michalski. – 2a ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
PARSIFAL: UMA ÓPERA EM BUSCA DA CENA
João Martins de Mesquita Junior
Orientador: Héctor Andrés Briones Vásquez
Instituto de Cultura e Arte - ICA
Universidade Federal do Ceará – UFC
Pretendo com esse artigo verificar as influências que as inovações modernistas
têm e/ou tiveram sobre a cena atual, em um modernismo tardio, para utilizar um termo
de Stuart Hall. Para tanto, proponho uma análise de duas montagens da ópera Parsifal,
de Richard Wagner. A primeira feita pelo próprio, em Bayreuth e a segunda elaborada a
partir das visões de Adolphe Appia e Gordon Craig por Wieland Wagner neto de
Richard Wagner com o desejo de reavivar a casa de espetáculos a partir da grande obra
do avô. Após destacar essas influências pretende-se descobrir como elas chegaram até
essa modernidade tardia, se puramente, ou se reprocessadas pelos indivíduos que a
compõe, e se for o caso, explicitar que tipo de individuo é esse, aos olhos de Stuart hall.
É preciso, antes de tudo, traçar a linha condutora que trouxeram tais inovações.
Roubine (1998) destaca duas fundamentais características da era moderna: o surgimento
do encenador e a iluminação elétrica, advento da revolução tecnológica. Entenda-se que
o teatro antes de entrar nessa era moderna era regido por outros ditames (quais?). As
encenações eram seguidas por normas rígidas, tais como as unidades de tempo, espaço e
ação, propostas por Aristóteles. Os atores eram guiados em cena – “sigam as indicações
de um ‘diretor’” (utilizo as aspas, pois de fato não se trata da figura do diretor como
conhecemos hoje) que apenas organizava a ordem de entrada e saída do palco. Na
própria época de Wagner, o edifício teatral não tinha necessariamente como principal
meta o ato de “ver” a peça, mas sim o de propiciar o encontro social, as pessoas iam
para serem vistas. Não havia distinção da iluminação entre palco e plateia. A iluminação
era feita por velas e mais tarde a gás. No palco predominava as luzes de ribalta. Mas
como essa “simples” mudança de fonte de iluminação e a chegada desse encenador
mudaram substancialmente o como era feito o teatro?
O ato de apagar as luzes na plateia (uma das contribuições de Wagner) muda à
função do teatro (edifício), o público deixa de se observar e passa a ver a peça. A obra
artística ganha mais status nesse ajuntamento social. Ele foi o primeiro a apagar as luzes
1
da plateia quando ainda eram a gás, assim ele volta à atenção para o que se passava em
cena. Creio que assim a peça deixa de ser uma desculpa para esse encontro social e
passa a ser o encontro de ideologias, fomentando e estimulando embates políticos e
filosóficos sobre as encenações – não retiro aqui o mesmo mérito de encenações
anteriores a esse experimento, pelo contrario, a exemplos das peças de Shakespeare
capazes de suscitar tais questionamentos, ou até mesmo à famosa batalha de Hernani, de
Victor Hugo, que pôs frente a frente classicistas e românticos. O certo é que o palco
ganhava com a eletricidade, em termos de recursos técnicos, uma luz mais “precisa”,
direcionada, capaz de aproximar o espectador. Esse ato de escurecer a plateia e manter o
palco iluminado traz o público para dentro da cena, é como se ampliássemos os seus
sentidos, recortando o que eles devem ver (que é o que esta em cena). Com o controle
do gás para a iluminação cênica, foi possível regular a quantidade de luz no palco.
Sendo possível criar áreas mais iluminadas e outras menos iluminadas em cena e assim
promovendo um jogo cênico com a luz. O que abri uma maior possibilidade de camadas
de significação e cria uma maior ilusão teatral mostrando o que deve ser visto e
ocultando o que não precisa ser visto.
O encenador também é de grande importância para o avanço do teatro moderno,
pois aquele “diretor” (que apenas guiava as entradas e saídas) se torna um “espectador
especializado”, para usar o termo de Grotowski. De sua ótica surgem vários avanços
cênicos que acompanham as vanguardas modernistas – naturalismo, realismo,
simbolismo e outras –, sempre querendo estabelecer um novo movimento poético (os
ismos) em contraposição a um velho, desgastado. Esses movimentos de vanguarda são
importantes para se pensar o sujeito moderno, tendo em vista que antes, ele era pautado
em bases sólidas, em modelos de unidade, onde ele era tido como uno “indivisível”
(HALL, 2006, pág.25). E essa tendência ao “novo” que as vanguardas trazem
juntamente com esse caráter de negação do que está estabelecido vem gerar uma
descentração do sujeito, pois o “sujeito moderno “nasceu” no meio da dúvida” (HALL,
2006, pág.26). Identifico aqui um dos indícios da fragmentação do sujeito que irá
reverberar no sujeito do modernismo tardio. E não que isso venha a ser algo negativo
para a cena teatral, mas que tornará possível ou tolerará, diversos conceitos e poéticas
teatrais em cena, mesmo que contraditórias posto que elas não se opõem e sim
coexistem.
2
Levantada essas questões passemos para Parsifal de Richard Wagner, ópera
montada em Bayreuth, em 1882. Se olharmos as imagens disponíveis dessa montagem
de Parsifal veremos os moldes do teatro feito no século XIX. Um painel pintado ao
fundo, como de costume – esses painéis eram confeccionados em diferentes locais, pois
para cada tipo de “ambiente” haveria um especialista – os atores/cantores posicionados
sempre a frente do palco, no proscênio. O pé direito do palco muito alto para abranger o
enorme painel, fazendo com que os atores pareçam minúsculos frente ao painel, e assim
gerar a ilusão de uma grande floresta. Um palco sem profundidade, bidimensional.
Atores achatados ao painel. Essas são possíveis leituras a partir da imagem, que
representa uma floresta, árvores gigantes. Mesmo Richard Wagner tendo toda sua
concepção sobre uma arte total – que consistia na integralização das linguagens
artísticas, tais como a música, a poesia e o teatro, para a composição de uma liturgia
cênica (Gesamtkunstwerk). Ele desejava devolver seu caráter sagrado e litúrgico
Roubine destaca:
[...] que a prática avalizada, e provavelmente pretendida, por Wagner estava bem atrás de sua audácia teórica. Ele se situava na continuidade dos mesmos hábitos, rotinas e técnicas que o século XIX impusera à representação lírica: cenários de tecido [...] entulhamento do palco [...] imobilização do cantor entregue a si mesmo e voltado para os [...] estereótipos gestuais... (2003, p. 160)
É perceptível que a arte teatral se encontrava presa a velhos costumes. Os atores
mantinham uma velha escola de atuação onde os clichês construíam a interpretação.
Mas por que a práxis de Wagner não acompanhou sua audácia teórica? Questiono-me
sobre isso, mas entendo que seja comum a homens a frente de seu tempo. A
modernidade ainda não possuía os equipamentos necessários para tornar o pensamento
dos encenadores/dramaturgos/cenógrafos praticáveis, o que não os impediu de deixar
sua teoria a posteriori.
Passemos para a outra Parsifal, construída sobre o pensamento de Adolphe
Appia e Gordon Craig, montada por Wieland Wagner, neto de Richard Wagner. O teatro
de Bayreuth insistia com as velhas montagens nos padrões passados, graças a Cósima
Wagner, mulher de Richard Wagner, que coordenava o teatro após a morte do marido.
Ele se interessou pelos esboços realizados por APPIA para Parsifal e deles partiu para
realizar a nova montagem. Para entendermos melhor analisemos os esboços de Appia
para Parsifal, feito em 1896. No esboço encontramos um cenário ocupado por grandes
colunas intercaladas entre si e dispostas ao longo do palco, aproveitando o máximo a
3
profundidade do palco. A profundidade se destacaria com o recurso da luz sobre as
colunas que projetariam suas sombras pelo palco, promovendo um jogo de sombra e luz
que influenciaria perspectiva da cena. Em termos comparativos essa versão de Appia é
bastante diferente da de Richard Wagner (Vale a pena colocar que esta comparação foi
realizada pelo professor/orientador na disciplina de Apreciação Cênica, dando a
entender outros modos de procedimentos e de percepções cênicas). Aqui não
encontramos um elemento fechado (no sentido de uma representação, de algo
figurativo). O cenário, por se só, não delimita logo de cara um ambiente fixo (floresta),
ele brinca com as sensações do público permitindo que a definição do que seria o
cenário, ou local onde se passa a cena, comece no raciocínio do espectador. O palco
ganha profundidade, perde aquele caráter bidimensional que tinha na montagem
anterior. É uma cena sugestionada, sinestésica. Ela convida o espectador a decifra-la,
não se prende a um caráter naturalista/realista do que seria a floresta em Parsifal. O
espaço é transformado pela cenografia. A luz dar cor, dar vida a cena. É preciso lembrar
que essas influências, propostas por Appia vem do movimento simbolista – tal
movimento tinha a proposta de romper com o realismo/naturalismo em cena, afastando
a identificação característica do movimento contrario e trazendo para a cena algo mais
próximo do irreal, do sonho, do onírico – ao qual Craig também faz parte.
Sobre Craig ele não se diferencia muito de Appia no que se trata de luz e
algumas concepções cênicas. Craig vai buscar nas obras wagnerianas o estimulo para
seus pensamentos. Wagner acreditava na integração das artes para a realização do
fenômeno artístico, Craig comungava dessa ideia tanto que desenvolveu a figura do
régisseur. Toda a obra artística seja o ator, a música, o cenário, a luz e até mesmo o
próprio teatro estaria sujeito ao régisseur, ele que comandaria essa totalidade cênica.
Craig traz para a cena um caráter mais arquitetônico. A cena ganhava uma dimensão
enorme tanto verticalmente quanto horizontalmente. Ele propõe Volumes e formas,
painéis que se moveriam em cena, sob o comando do régisseur, para mudar o quadro,
dar uma maior dimensão ao palco. Essa grandiosidade arquitetônica atrelada ao seu
trabalho com a luz e os screens – o palco seria dividido em blocos que ganhariam
dimensões ao deslocarem-se tanto horizontalmente quanto verticalmente – sempre
sujeito ao régisseur, resume o trabalho de Craig.
Agora como entender esses avanços pensados por Wagner, Appia e Craig na
modernidade tardia? Como se encontra o sujeito presente nessa modernidade tardia para
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receber esses reprocessamentos? O sujeito moderno já nasce em meio a dúvida como
vimos. E o sujeito ao deslumbrar esse movimento das vanguardas, variadas, acaba que
absorvendo o que é cada uma delas. “Projetamos a “nós próprios” nessas identidades
culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os
“parte de nós (...)”” (HALL, 2006). O sujeito da modernidade tardia começa a ser
formado na modernidade, esse sujeito “pós” modernidade é um eco das ressonâncias
desse período. E isso afeta diretamente a cena teatral. E isso afeta diretamente a cena
teatral, não só a da época de Wagner, mas, sobretudo a cena contemporânea, da qual a
cena wagneriana pode ser considerada como os primórdios.
Um representante desses ideais hoje é Robert Wilson. Alimentando-se do
pensamento de Wagner, Appia e Craig, Wilson elabora uma cena centrada nos detalhes,
na concentração. Ele cria molduras para a cena. São molduras de luz, som, espaço e
corpo. Seu teatro é um teatro da imagem e do gesto. O palco torna-se local de
rememoração, nele habitam seres estranhos com movimentos obsessivos, viáveis apenas
em sonho. Sem falar que diversos elementos tais como conhecemos hoje são
reprocessamentos das ideias desses encenadores (Appia e Craig). As diversas
linguagens que coabitam em cena. Cada vez mais vemos uma interligação entre
linguagens dentro da cena. Projeções, audiovisual, música. A cena tem sofrido um
bombardeio de elementos. Penso isso ser esse eco que vem das vanguardas modernistas
e da atual condição que se encontra o sujeito nessa modernidade tardia.
Hall (2006) nos mostra um sujeito fragmentado nessa modernidade tardia, um
sujeito que não é mais enquadrado numa única unidade, mas um sujeito de identidades
múltiplas. Isso ocorre graças à “crise de identidade” que esse sujeito passa. Tal crise se
dar ao questionar padrões pré-estabelecidos vigentes anteriormente (as vanguardas
modernistas começam esses questionamentos ao por em dúvida o modelo anterior). Ao
se questionar sobre suas bases estruturantes, o sujeito se põe em uma descentração, um
deslocamento, como Hall expõe. Essa descentração não se trata da perda de um centro,
mas da existência de vários centros constituintes do sujeito. Por tanto esse sujeito pós é
engendrado de pontos de vistas. Dentro dele coexistem ideias, influencias
contraditórias, e entendo isso como uma efervescência para o caráter criador da arte.
Esse sujeito, que se encontra fragmentado, cheio de “eus”, ao se debruçar sobre a arte, e
reprocessar as tendências geradas no modernismo, encontra na cena uma maneira de
unir esses “eus”. Daí o fato de cada vez ser mais comum, na pratica teatral, o diálogo
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das múltiplas linguagens, processo que se dar por conta desse sujeito “pós” moderno.
Esse sujeito da modernidade tardia, construído como que em um mosaico, é de
fundamental importância para se entender a cena atual e talvez a que surgirá
futuramente. O sujeito que constrói a cena, o processo social tem influência direta sobre
a criação artística. Cabe ao teatro entender o quadro a sua volta e usar a moldura que
melhor lhe caiba para mostrar esse sujeito.
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HALL, Stuart. A Identidade do Sujeito na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A
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2003
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ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
CORPO NOME E PERFORMANCE: REFLEXÕES ACERCA DOS
DESDOBRAMENTOS DA OBRA DE MARINA ABRAMOVIC
José Ricardo Goulart
(Programa de Bolsas de Monitoria/UDESC; Orientadora: Prof.ª Dr.ª Fátima Costa de Lima;
Programa de Pós Graduação em Teatro; Universidade do Estado de Santa Catarina)
Meu objetivo neste trabalho é apresentar a pesquisa que desenvolverei, sob orientação
da Prof.ª Dr.ª Fátima Costa de Lima, em nível de mestrado no Programa de Pós Graduação
em Teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Tal pesquisa pretende problematizar
a obra da artista performática Marina Abramovic em relação à sua assinatura, mais
especificamente no trabalho The Artist is Present (2010), estabelecendo um diálogo com a
noção de aura, descrita e revista por Walter Benjamim em três ensaios compõem sua obra,
aliando ainda uma breve revisão dos principais conceitos que constituem as teorias que
embasam a Arte da Performance e a utilização do corpo como obra de arte, com base em
estudos de Marvin Carlson e Roselee Goldberg.
A problemática a ser explorada nesta pesquisa surgiu a partir de minhas reflexões ao
assistir ao documentário The Artist is Present (2012), de Matthew Akers e Jeff Dupre. Para
desenvolvê-la, utilizarei como base fatos expostos no referido documentário e na biografia
When Marina Abramovic Dies (2010), de James Westcott, além do Manifesto sobre a vida do
artista (2007), no qual Abramovic expõe suas ideias acerca do papel e posicionamento do
artista na sociedade e na relação com seu trabalho.
Recordo-me que ao ter contato pela primeira vez com a obra de Marina Abramovic,
sem possuir embasamento nos conceitos que permeiam a arte contemporânea, alguns
questionamentos me vieram à mente acerca da radicalidade proposta em seus trabalhos.
Apesar de me chamarem atenção positivamente, estas obras faziam com que eu me
perguntasse se era realmente necessária a execução de automutilações e a violência contra o
próprio corpo da artista.
Quando ingressei no curso de Artes Cênicas, a disciplina Teoria e prática da
performance possibilitou, para mim, maior contato com a obra da artista e com as teorias que
dialogam com a arte da performance. Compreendi que o corpo torna-se, segundo Marvin
Carlson (2009, p. 117), objeto e material do trabalho artístico. A partir disso, temas do
cotidiano do artista são utilizados como estímulo criativo e o processo de desenvolvimento da
obra passa a experimentar o real, rompendo com a representação. Hans-Thies Lehmann diz
que: a arte performática se afirma como expansão da representação da realidade em
imagem ou objeto por meio da dimensão temporal. Duração, instantaneidade,
simultaneidade e irrepetibilidade se tornam experiências temporais em uma arte que
não mais se limita a apresentar o resultado final de sua criação secreta, mas passa a
valorizar o processo-tempo da constituição de imagens como um procedimento
“teatral” (LEHMANN, 2007; p. 224).
Ou seja, se em grande parte da história da arte, todo o processo de criação era deixado
de lado em função da obra finalizada, com o advento dos happenings e posterior surgimento
da Performance, essa relação se inverte: a criação se dá em frente à audiência e é apresentada
tal qual resultado final. A partir das reflexões que RoseLee Goldberg expõe em seu livro A arte da performance:
do futurismo ao presente, no qual é traçado um panorama das artes performáticas desde o
futurismo até o que chamou de “geração da mídia” (período compreendido a partir do início
da década de 1980), pode-se afirmar que no final do século XIX, inúmeros artistas e pensadores
da Europa buscaram romper com a arte elitista que se fazia no período e com isso formaram
movimentos que se configuraram de vanguarda. Estes movimentos buscaram se posicionar
política, econômica e socialmente, tentando diminuir o abismo que se criara entre a arte e a
realidade da maioria da população. Além disso, outros elementos compunham a estética da arte
que se fazia naquele momento: buscava-se romper com seus antecessores a partir de novas
experimentações. Inúmeros manifestos, dentre eles futurista, dadaísta e surrealista, foram
consequência de uma nova arte que começava a surgir.
Paralelamente, a Bauhaus realizou os primeiros experimentos com interações entre a arte
cênica e a tecnologia. Em decorrência do nazismo, a escola é fechada e os estudos são
interrompidos na Europa, tendo foco a partir de então nos Estados Unidos. Na década de 60, com
o aparecimento da contracultura e do movimento hippie, estas manifestações artísticas começam a
aparecer por todos os lados, como forma de manifestar as propostas humanistas da época. Estas
manifestações ficaram mais conhecidas como happening e propunham utilizar o acaso, o
imprevisto e o aleatório como impulso de criação para uma arte que foi, por eles, denominada
“Arte Conceitual”. Os precursores deste movimento foram John Cage, Merce Cunningham e
Allan Kaprow.
Porém, as crises monetárias e de energia da década de 1970 sufocaram os ideais
libertários e conceituais vigentes no período destes primeiros experimentos ou
“acontecimentos”. Desenvolvem-se, então, trabalhos com características mais aproximadas da
arte da performance. A partir desta década, sob influência de novos valores como niilismo e
individualismo, surgem as primeiras manifestações mais parecidas com a performance
contemporânea. Diferente da forma de concepção e execução dos happenings, o artista passa a
trabalhar sozinho dentro de uma perspectiva de obra mais elaborada.
RoseLee Goldberg (2006) coloca a anarquia como base estrutural da performance,
conceituando-a como um meio de expressão maleável e indeterminado, haja visto que cada
performer cria sua própria maneira de fazer, podendo alterar seu rumo durante todo o processo,
utilizando-se das mais variadas disciplinas artísticas (teatro, dança, música, literatura, pintura,
entre outras) cruzando com as mais diversas tecnologias. Goldberg afirma que “por sua própria
natureza, a performance desafia uma definição fácil ou precisa, indo além da simples afirmação
de que se trata de uma arte feita ao vivo pelos artistas” (GOLDBERG, 2006, p. IX).
Para complementar este pensamento, me basearei nos estudos de Marvin Carlson
(2009), em Performance: uma introdução crítica, no qual o autor afirma a importância, nessa
arte, não só do corpo físico e da presença mas também das operações que envolvem o
performer e sua relação com a audiência, que é aí pensada como um grupo de indivíduos com
possibilidades próprias de interpretação e reflexão. Carlson acredita que essa relação torna a
performance [...] um dos mais poderosos e eficazes procedimentos que a sociedade humana
desenvolveu para o processo infinitamente fascinante da autorreflexão pessoal,
cultural e da experimentação (CARLSON, 2009, p. 224).
Segundo Patrice Pavis (2005), a performance pode associar diversas outras artes e
suportes, como pintura, vídeo, dança, poesia, etc., o que lhe confere um caráter poroso e de
fronteira. Pavis afirma também que o performer é “em razão da insistência sobre sua presença
física, um autobiógrafo cênico que possui uma relação direta com os objetos e com a situação
de enunciação” (2005, p.284). É possível perceber que se trata de uma arte híbrida que se
utiliza de materiais subjetivos e estímulos muitas vezes advindos do eu. O performer deve
estabelecer uma relação com a audiência e assumir os riscos provenientes de suas práticas.
Tais riscos, por vezes, se tornam necessários por conta da temática e prática adotada e
desenvolvida pelo artista. Os questionamentos que me surgiram ao conhecer a obra de
Abramovic dissolveram-se quando estas conceituações da performance e intenções
pretendidas pelos artistas performáticos ficaram mais claras para mim.
RoseLee Goldberg subdividiu os artistas que iniciaram suas práticas na década de
1960 e 1970 em grupos de acordo com as particularidades de seus trabalhos. A obra de
Marina Abramovic, junto com a de Hermann Nitsch, Otto Mühl e Gina Pane, foi contida na
classificação de performance ritualística, por ter uma “natureza muito mais emotiva e
expressionista” (GOLDBERG, 2006, p. 153).
Encontro a obra de Marina Abramovic como um expoente dos conceitos citados
anteriormente. Natural de Belgrado, na Sérvia, a artista, hoje sediada nos Estados Unidos,
desenvolve seus trabalhos desde 1973, explorando a relação com a audiência, a fisicalidade e
os limites do corpo e as possibilidades da mente. Sua obra compreende os mais diversos
suportes, como fotografia, vídeo e presença física. Goldberg (2006) afirma que através de seu
trabalho, Marina explora a desconexão entre “corpo” e “eu”, buscando entender a dor
ritualizada provocada pelo abuso de seu próprio corpo.
Em sua primeira performance, Rhythm 10 (1973), a artista estende a mão esquerda
com os dedos abertos sobre o chão enquanto utiliza a direita para golpear com uma faca os
espaços entre seus dedos. Neste trabalho, Marina tem a sua disposição vinte facas e reinicia a
ação com uma nova faca a cada vez que se machuca. Enquanto executa a ação, o barulho da
faca golpeando o chão é gravado em uma fita. Com o intuito de misturar os tempos presente e
passado, ao se machucar vinte vezes, ela para a gravação e reinicia a fita, tentando repetir os
movimentos e erros a partir dos sons gravados.
Em Rhythm 0 (1974), a artista dispõe sobre uma mesa 72 objetos que poderiam causar
prazer ou dor e permite que o público utilize esses objetos livremente em seu corpo, chegando
a colocar a vida em risco ao colocar uma arma carregada entre esses objetos. Neste trabalho
ela começa a explorar as relações de alteridade e dor, as quais dá continuidade após encontrar
seu parceiro Ulay, em 1975.
Quando começou a trabalhar com Ulay em 1975, continuou explorando “essa agressão
passiva entre indivíduos. Juntos eles exploraram a dor e a tolerância entre eles próprios e entre
eles e o público” (GOLDBERG, 2006, p. 153). Em Expansion in Space (1977), Marina e Ulay
movem duas colunas, que tem o dobro de seus pesos, esbarrando seus corpos contra as
mesmas. É notável que as premissas do trabalho continuam sendo os limites do corpo e sua
relação com o espaço e o outro.
Abramovic transita também entre o biográfico, buscando referências para seus
trabalhos nos relacionamentos com membros de sua família e Ulay. Em The Biography, de
1993, sua primeira performance solo após o término de seu relacionamento, a artista revê sua
vida desde seu nascimento, em 1946, falando sobre momentos, ideias e sentimentos, até a data
do trabalho. A sequência cronológica de sua vida é, por vezes, interrompida por segmentos
nos quais ela visualiza momentos e performances de sua trajetória artística.
Em um de seus trabalhos mais recentes, uma exposição feita em 2010, chamada The
Artist is Present, Marina Abramovic revisita sua obra no MoMA (Museum of Modern
Art/NY), convocando artistas para reapresentarem as peças mais importantes de sua carreira.
Nesta exposição, Marina apresentou seu mais novo trabalho até então, em que propunha ficar
sentada, em silêncio, seis vezes por semana, sete horas por dia, durante três meses, em frente a
uma mesa e uma cadeira que era revezada pelo público curioso em trocar um olhar com a
artista.
A problemática desta pesquisa surgiu com reflexões que tive após assistir ao
documentário homônimo, no qual a artista é mostrada como superstar ou ídolo pop, num
retorno ao “artista-celebridade” (GOLDBERG, 2006, p. 180) dos anos 1980. É notável que,
apesar de seus 63 anos, a performer continua explorando os limites físicos e psíquicos de seu
corpo e ainda tenta criar um vínculo com a audiência, apesar de não haver possibilidade de
interação (toque, fala) direta com ela. Vale ressaltar que a intervenção provinha dos
seguranças se houvesse essa tentativa.
Baseado em seu Manifesto sobre a vida do artistai, escrito aproximadamente em 2007,
no qual expõe suas ideias acerca do papel e posicionamento do artista na sociedade e na
relação com seu trabalho, nos desdobramentos de sua carreira e no seu posicionamento como
artista, farei uma análise da obra de Abramovic, levando em conta também sua trajetória
pessoal, através de fatos expostos em biografia recente e no documentário The artist is
present (2012). Em seu manifesto, já citado anteriormente, Marina afirma que os artistas não
devem comprometer seu próprio nome ou comprometer-se com o mercado de arte, nem
devem se transformar em ídolos. Mas a exposição feita no MoMA condiz com seu discurso,
tendo exposto o que se vê em seu documentário?
Para suscitar reflexões sobre a problemática da pesquisa, cruzarei essas informações
com o conceito da aura da obra de arte, de Walter Benjamin, no qual ele diz que a obra perde
sua característica de unicidade com o advento da reprodutibilidade técnica. A noção de aura é
encontrada em três textos do filósofo alemão, datados da década de 1930, a saber: Pequena
história da fotografia (1931), A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
(1935/1936) e Sobre alguns temas em Baudelaire (1939). Além de evocar o surgimento da
noção de aura e de como ela é delineada pelo autor nos textos citados, entrarei também na
discussão sobre seu declínio. Por este motivo e por ser, dentre os três textos mencionados,
aquele no qual o autor aplica o conceito num âmbito mais amplo da obra de arte,
desenvolverei minha escrita em um diálogo maior com o texto de 1935.
Durante o breve período de sua existência, Walter Benjamin (1892-1940) se dedicou a
refletir sobre temas de sua contemporaneidade, a partir de inquietações provocadas por um
mundo que começava a se fragmentar. Situada no contexto de pré-primeira guerra mundial e
no período de entre guerras, sua produção teórica conjetura os reflexos da modernidade sobre
a cultura da época, abordando assuntos relacionados à linguagem, literatura, filosofia, história
e arte. No capítulo introdutório de Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter
Benjamin, Kátia Muricy discorre sobre como o filósofo se desloca no tempo, num movimento
não linear, em busca de um olhar para o passando que possibilite uma reflexão sobre o
presente, entrecruzando vida pessoal e história, e afirma que
as análises de Benjamin de formas literárias declinantes, do fim da obra de arte
aurática, do desaparecimento da experiência, não são nostálgicos exercícios de
erudição. O que está em jogo é a elaboração de uma arqueologia da modernidade, a
exigência de formulação de conceitos radicalmente originais do tempo, da história e
da historiografia que possibilitem a problematização de sua contemporaneidade
(MURICY, 2009, p. 15).
Siegfried Kracauer (2009) pondera que Benjamin expõe a dialética das essências ao
escavar profundamente seus objetos de questionamento, buscando o desenrolar de
determinadas ideias ao longo da história. Seus escritos, muitos descobertos somente após sua
morte, possuem relevância atemporal, pois, ainda segundo Muricy (2009), podem contribuir
tanto para a compreensão da época em que viveu a geração do autor, quanto a que vivemos
hoje.
Benjamin, tanto no texto de 1931, quanto no de 1935, emana a noção de aura a partir
de sua característica impressa, simultaneamente, no espaço e no tempo. Segundo o filósofo, a
aura é conferida pela “aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja”
(BENJAMIN, 1994, p. 101), ou seja, algo que, por mais que se aproxime, jamais pode ser
alcançado e sempre se mantem distante devido a sua unicidade. Sobre essa questão, Taisa
Helena Pascale Palhares esclarece que
não se pode dizer que com esta fórmula o autor define positivamente algo, e sim que
o que se apresenta nessa “dialética do próximo e do distante”, nesse jogo de
revelação e ocultamento estabelecido entre a proximidade do objeto concreto e a
aparição nele da distância é, em última instância, a interdição do desvelamento total
(PALHARES, 2006, p. 36).
Ora, se o objeto aurático é inalcançável, ele será sempre diferente da forma como se
revela e daquilo que aparenta ser.
Em Pequena história da fotografia, a aura é abordada em relação à história da
fotografia. Como o título do texto sugere, o autor nos oferece um panorama desta arte,
relatando três períodos distintos da história, desde o seu florescimento com o daguerreótipo, o
declínio da aura com os avanços desenvolvidos na técnica da fotografia e sua total aniquilação
com a obra do fotógrafo Eugene Atget. O filósofo vê em seu trabalho que registra temas do
cotidiano parisiense, como ruas e cafés vazios, mesas com pratos sujos ainda não retirados e
fachadas de bordeis, uma possibilidade de respiro ante ao que se seguiu até então. Benjamin
afirma que “ele [Atget] saneia essa atmosfera [difundida pela fotografia convencional],
purifica-a: começa a libertar o objeto de sua aura” (BENJAMIN, 1994, p. 101) e completa que
o fotógrafo francês “buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se
voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes das cidades”
(BENJAMIN, 1994, p. 101).
Em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin amplia a
discussão sobre a aura para além da fotografia. Neste ensaio o filósofo discorre sobre o
desaparecimento aural associado ao desenvolvimento das técnicas de reprodução fotográficas
e cinematográficas. A particularidade espaço-temporal da aura reaparece neste texto,
reforçando o caráter de singularidade do objeto por ela envolto, no caso, a obra de arte. O
autor afirma que a possibilidade da reprodução industrial vai substituir a característica de
existência única da obra de arte por uma existência serial.
Para esclarecer como a reprodução técnica destrói a aura da obra, Benjamin caminha
pela história da arte, perpassando pelo seu uso ritual e político e explicitando sua transição
entre valor de culto e seu valor de exposição. O autor afirma que
as mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual,
inicialmente mágico, e depois religioso. O que é de importância decisiva é que esse
modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente da sua função
ritual. (BENJAMIN, 1994, p. 171)
Ou seja, o valor de culto de uma obra está sempre ligado ao âmbito ritual e será o
responsável por mantê-la atrelada a uma determinada tradição, o que significa atestar sua
unicidade e, consequentemente, sua autenticidade.
No texto de 1939, Sobre alguns temas em Baudelaire, o autor associa a queda da aura
à alteração perceptiva provocada pela experiência de choque na modernidade. Palhares afirma
que
Disso [do choque] surge sua [do ser humano] recepção fragmentada e reflexiva:
quanto mais o sujeito for submetido a um determinado choque, mais sua reação se
tornará reflexa, automática, puramente físico-biológica, e, dessa forma, cada vez
menos os fatos exteriores são integrados à sua experiência. Os choques são
acontecimentos externos que precisam ser compreendidos em um instante e nele se
extinguirem, sem deixar rastros ou continuidade com seus anteriores ou sucessores
(PALHARES, 2006, p. 86).
Assim, Walter Benjamin vai analisar as consequências dessa experiência inspirado na
obra do poeta francês Charles Baudelaire.
Com base nestas reflexões, é possível concluir que a aura, segundo Benjamin, é a
condição única de uma obra de arte, garantida por elementos espaciais e temporais, que torna
o objeto artístico singular. Acredito ser possível atualizar o debate teórico acerca deste
conceito e aplicá-lo a uma questão específica do momento atual em que vivemos. Retornando
ao documentário, a impressão que tive foi de que as obras de Marina Abramovic entraram em
um esquema hierárquico em que o nome da artista está no topo e que se as pessoas formavam
acampamentos em filas que circundavam o quarteirão onde se localiza o MoMA, era para ver
a artista, que estava presente em sua singularidade.
Considerando estes pontos, surge a pergunta: teria a obra de Abramovic ficado à
sombra de seu nome e de sua assinatura? A questão não envolve o mérito de seu trabalho, que
reconheço, e a contribuição de suas obras para a arte performática, mas até que ponto este
trabalho se basta como obra de arte por si só, sem necessitar da visibilidade da artista para
repercutir. Visto isso e os apontamentos sobre seu documentário, pode-se questionar se
Marina Abramovic retoma o conceito de aura, no sentido da criação de uma assinatura e de
uma instituição ligada a esta. Questiona-se também, qual o papel da autoria na criação de
Marina Abramovic.
Dados os questionamentos, objetivarei ponderar sobre possíveis caminhos e
apontamentos para o problema proposto de modo a encontrar reflexões acerca do papel e do
espaço que o artista ocupa na sociedade contemporânea.
i (ABRAMOVIC, Marina. Manifesto sobre a vida do artista. Disponível em:
<http://comunicacaoeartes20122.wordpress.com/2013/02/19/marina-abramovic-a-revelacao-da-natureza-
humana-5/> Acesso em 03/07/2014)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – I. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio
Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______. Obras escolhidas - III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad.
José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Trad. Thais Flores Nogueira
Diniz, Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
GOLDBERG, RoseLee. A Arte da Performance: do futurismo ao presente. Trad. Jefferson
Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa: ensaios. Trad. Carlos Eduardo João
Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac
Naif, 2007
MURICY, Kátia. Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de
Janeiro: Editora Nau, 2009.
PALHARES, Taisa Helena Pascale. Aura: a crise da arte em Walter Benjamin. São Paulo:
Editora Barracuda, 2006.
PAVIS, Patrice. Dicionário do teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
1
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
COM A FORÇA DO MACHO E A GRAÇA DA FÊMEA: OLHAR SOBRE O
TRABALHO TEATRAL PRODUZIDO PELO GRUPO DZI CROQUETTES NO
CONTEXTO DA DÉCADA DE SETENTA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.
PEREIRA, Jurandir Eduardo Junior; UDESC. Universidade do Estado de Santa Catarina; Mestrado em Teatro; orientador: Edélcio Mostaço.
O grupo Dzi Croquettes surgiu no século XX, na década de 70, na cidade do Rio de Janeiro
sob as coreografias do bailarino norte americano Lennie Dale e a dramaturgia de Wagner
Ribeiro, através do espetáculo “Gente computado igual a você”. O presente artigo propõe
um olhar para o aludido espetáculo, pontuando aspectos pioneiros e subversivos no que
tange o fazer teatral desenvolvido no contexto da ditadura militar na cidade do Rio de
Janeiro. O artigo tem como ponto de partida o vídeo documentário Dzi croquettes
produzidos pelos diretores Tatyana Issa e o Rafael Alvarez, assim como matérias de jornais
e entrevistas que retrataram o material cênico produzido pelo grupo no contexto teatral
carioca. O grupo apresentou um diálogo expressivo e significativo das relações de gênero
em um campo histórico estritamente limitado como foi o período da ditadura militar,
mesmo assim o grupo Dzi Croquettes não teve a validação do seu desbunde no campo
acadêmico, através das publicações especificas de teatro.
Palavras chaves: Teatro; Gênero; Contracultura; Performance;
2
“Nem senhores, nem senhoras
Gente dali, gente daqui
Nós não somos homens, também não somos mulheres”.
(Trecho do prólogo do espetáculo “Gente computada igual a você”)
Década de 70: resistência em cena
Na década de 60 e 70, o Brasil foi palco de intensas transformações politicas que
tiveram seus reflexos em algumas esferas da estrutura social, sobretudo, nas artes. No
âmbito cultural, as diferentes expressões artísticas, processos criativos, eram comumente
resultado direto das múltiplas interferências ideológicas e de diferentes influências
culturais. Como afirma Santos (2009): “as manifestações culturais dos anos 60 e 70
refletiam o espírito de uma época de intensa contestação dos padrões sociais, das
influências estrangeiras na cultura, de uma geração de jovens que buscavam liberdade
através de ideias contra culturais, políticos e revolucionários”.
Ainda na década de 70, o Brasil viveu um dos períodos mais sombrios no campo da
politica social, que fez aflorar uma conduta de resistência para com as ações do governo
militar brasileiro, tanto no aspecto civil, quanto nos espaços teatrais das principais cidades
do país. A ditadura militar (1964 - 1985) foi um movimento de insurgência politica que
inicialmente teve apoio de empresários, banqueiros, Igreja católica e que durou 21 anos.
Segundo Cristina Costa (2006), em seu livro Censura em cena, a ditadura Militar
foi um golpe de estado que fortaleceu- se com aliança de alguns setores conservadores da
sociedade, que tinha dentre outros objetivos, coibir as manifestações artísticas.
O regime militar regulamentava seu poder por atos institucionais. Ao logo de todo o
regime militar foram instaurados cincos atos institucionais, sendo que o AI- 5 (ato
institucional número cinco) foi o mais repressivo para a produção artística do país. Dentre
suas sanções, o AI-5 restringia as manifestações artísticas, delimitando os temas que
poderiam ser abordados por meio da produção literária, musical e teatral realizados na
década de 70. Toda produção artística passava pela avaliação dos censores, colocando
assim a arte sob vigilância militar.
O AI-5 causou uma grande perda inventiva para a classe artística, sobretudo a
carioca. Segundo, José Roberto Zan (2006) “foram interditados cerca de 500 filmes e 450
peças teatrais. Foram proibidos 200 livros, dezenas de programas radiofônicos e televisivos
e mais de 100 letras de canções. Em 1976, foram divulgados os seguintes dados da censura
referente a musica popular: das 30.518 composições analisadas, 292 tinham sido vetadas.”
Uma significativa perda para a cultura brasileira.
A arte fazia morada no medo, na violência e na desconfiança que a classe artística
vivenciava diariamente. Como pontua bem Lobert:
Em 1972, estávamos no auge da repressão política: a censura, o medo, a
violência, a desconfiança, eram nossos companheiros cotidianos. No teatro, o
clima de insegurança era constante; até o ultimo momento não se sabia se uma
peça seria permitida ou proibida na sua integra. O teatro era visto mais como um
lugar subversivo, em termos de político, do que como espaço de produção
cultural. (LOBERT, 2010, p. 18)
O cenário artístico, sobretudo o contexto teatral encontrava-se norteado pelos
avaliadores da censura, onde regulavam o texto, o posicionamento do ator em cena,
acompanhavam os ensaios no intuito de reprimir qualquer cena ou fala que denegrisse o
governo ou que estivesse fora da moral e dos bons costumes, firmados pelo regime. Nesse
sentido, o estado exercia o poder regulador sobre a arte. Como destaca o ator Pedro
3
Cardoso, em um trecho do documentário Dzi Croquettes1: “Eu cheguei a fazer espetáculo
para a censura. É horrível o estado ter sobre você tanto poder”.
A arte teatral, nesse período, já não demostrava apenas uma oposição clara ao
regime politico militar, através de alguns espetáculos e cias. O teatro passou a exercer um
papel de recuperar a liberdade de expressão da população brasileira. Como pontua Santos
(2009) “a arte, principalmente o teatro, passou a ser a política em si. Não era mais um
elemento auxiliar, era a própria política, pois tratava de temas da realidade brasileira,
destacando a intensa repressão e a necessidade de recuperar a liberdade de expressão”.
Diversos grupos teatrais começaram a promover manifestações artísticas contra o
sistema de repressão militar. O teatro de resistência veio à tona, por meio de produções que
exerciam a estética da metáfora. A pesquisadora Silvia Fernandes (2000) destaca que “o
teatro de resistência, que procurava criticar a repressão desencadeada pela ditadura militar
substituindo as referências explicitas à situação do país por metáforas atemporais”. As
produções cênicas faziam uso das metáforas para construir argumentos artísticos que
pudessem obter a aprovação dos avaliadores da censura, permanecendo assim com falas e
cenas metafóricas que representavam as causas e consequências do sistema repressor
militar.
A pesquisadora Silvia Fernandes ainda observa que algumas montagens se
destacaram realizando a estética da metáfora, como é o caso da montagem Caminho de
volta de Consuelo de Castro, realizada no ano de 1974, assim como Eles não usam Black –
Tie e Ponto de partida de Gianfrancesco Guarnieri, está ultima teve a direção de Fernando
Peixoto, no ano de 1976, na cidade de São Paulo.
Ainda na década de setenta, alguns grupos desenvolviam sua estética de resistência
fora dos espaços tradicionais de teatro. Os grupos realizavam suas atividades artísticas em
bares, boates, casas de show, que não se configuravam como espaços tradicionais de arte
aos olhos da critica especializada da época. Foram nesses espaços artísticos marginais que
surgiram vários grupos teatrais que subverteram a norma em vários aspectos, através das
suas produções artísticas.
Cena Dzi
Em meio a toda turbulência politica social da década de 70, surge o grupo Dzi
Croquettes2 com o espetáculo “Gente computada igual a você
3”, produção artística que por
meio da ousadia e do desbunde de seus atores\bailarinos desestabilizaram conceitos
fechados de gênero, deslocando a visão hegemônica de sexualidade para os padrões social
da época, promovendo uma reflexão para a sexualidade por meio da arte, assim como
atribuiu outros valores a prática teatral carioca.
Enquanto o grupo suscitou ideias libertárias nos palcos, no cotidiano das ruas, a
liberdade do individuo era cerceada a todo o momento. Como destaca o ator Ney
Matogrosso, em trecho do filme Dzi Croquettes: “Paradoxalmente foi o momento que
surgiram os Dzi Croquettes no Rio de Janeiro. Confrontando com esse fechamento da
mentalidade, porque ninguém podia pensar, ninguém podia ser diferente, ninguém podia se
expressar com liberdade”.
A atitude politica e avant- garde era a carta de liberdade dada ao público. O Ser
diferente\ estranho\ andrógino era a permissão dada pelo espetáculo para o seu público,
pois proporcionava a sensação de liberdade a todos que lotavam a boate Casa Nova4; boate
que recebeu o primeiro show espetáculo do grupo. O espírito “Croquettes” é descrito na
fala do Marcos Jatobá no filme Dzi Croquettes: “Foi como alguém tivesse dito – vida é
isso. Ser humano é isso. Imediatamente cheguei em casa, me rasguei todo, já joguei uma
purpurina, já fiz um molde e já falei. É o espírito Croquettes”.
4
A antropóloga Rosemary Lobert, destaca a importância do grupo para a década de
setenta no Brasil.
De fato tal abordagem não seria inteiramente descabida, pois, numa época em
que a repressão política e cultural chegava a seu auge, chamava a atenção numa
peça teatral que parecia colocar em questão os preconceitos fundamentais da
ordem reinante no país e que aparentemente girava em torno da androginia.
(LOBERT, 2010,p.35)
A perspectiva de um trabalho artístico que aloja em seu bojo criativo o fluxo entre
vida e arte deve ser levada em consideração quando se fala de Dzi Croquettes, pois foram
essas duas vertentes as molas preponderantes para a concretude do grupo. Segundo os
atores\bailarinos, o que permitia o curso liberto e inventivo em cena, era o fluxo contínuo
entre vida e arte. Tal fluxo permitia todas as transgressões realizadas em cena. Como
destaca o ator Claudio Tovar5: “O que valia era ser livre para criar, acrescentar ao
espetáculo e abrir novos caminhos. Quanto mais livres em cena, mais livres na vida e vice
versa”.
O espetáculo ganha ainda mais notoriedade e passa a ser realizado em espaços
teatrais tradicionais, tanto na capital carioca como na cidade de São Paulo; como o Teatro
Treze de Maio6, através da opinião do notório critico teatral da época Sábato Magaldi
7
publicada no Jornal da Tarde. Magaldi afirma que “O espetáculo, pela verve e pelo
anticonvencionalismo, sacode a nossa paisagem de preconceitos e de acanhado atraso”. De
acordo com o crítico, os Dzi Croquettes trouxeram para a cena carioca inovação e ousadia
que confrontava diretamente com a esfera de preconceito que vivenciava a sociedade
carioca.
Inovação, ousadia, transgressão são somente alguns valores que o grupo apresentou
em um período onde as fronteiras se apresentavam fixas aos olhares normalizadores da
censura. De acordo com os pensamentos militares, a força do macho não poderia estar
ligada a graça da fêmea em um só corpo, porém os Dzi Croquettes conseguiram aliar a
força do macho e a graça da fêmea em um corpo pluralizado em cena pelo seu primeiro
espetáculo “Gente computada igual a você”.
Influências Dzi para o cenário artístico carioca
De acordo com a pesquisadora Silvia Fernandes (2000) a criação coletiva foi algo
bem característico da década de setenta. A autora destaca que tal prática era bastante
comum entre as companhias da época, onde cada criação artística era feita em equipe, com
divisão entre seus membros para a coordenação e execução dos diversos setores
administrativos e artísticos do grupo. Porém, o grupo Dzi Croquettes, aliou o trabalho em
equipe à vida em comunidade, pois durante todo o período de circulação do espetáculo os
atores\bailarinos viveram na mesma casa, constituindo uma família.
De acordo com Lobert (2010), os Dzi Croquettes apresentaram para o meio artístico
carioca e paulistano um teatro profissional sem se desligar da vida em comunidade que o
grupo efetivou durante todo o período de produção artística.
Além de influenciarem questões pertinentes ao campo do teatro, o grupo foi
também referência na dança pelas coreografias inventivas do ator\bailarino Lennie Dale8
que tinha como base de formação o jazz clássico. De acordo com a pesquisadora de dança
Ana Carolina da Rocha Mundim (2005), “esse período trouxe os Dzi Croquettes, grupo de
dança criado por Lennie Dale, de grande influência para o jazz no Brasil. Acompanhado
5
por fãs fieis onde se apresentavam, os Dzi fizeram escola, interferindo na formação de
multiplicadores deste estilo de dança”.
A influência deixada pelo grupo, na perspectiva inventiva e coreográfica do
bailarino Lennie Dale através do jazz clássico, influenciou gerações e transformou a dança
no que percebemos hoje nas produções das grandes companhias de teatro musical, que
buscam a ousadia e profissionalismo agregando valores para o seu artista, dentro da
atuação, canto e dança. A atriz Claudia Raia; menciona no filme Dzi Croquettes, que sua
atuação como bailarina e atriz nas grandes produções de espetáculos musicais, tem
influência dos Dzi Croquettes. Segundo a atriz, o espetáculo do grupo marcou geração, por
que apresentava um rigor e profissionalismo jamais percebido nas produções artística da
época.
Vale ressaltar, ainda, a qualidade dramatúrgica do Wagner Ribeiro. O supracitado
ator e dramaturgo foi o responsável por construir o texto base do espetáculo, organizando-o
através de informações ligeiras oriundas do cotidiano social e imprimindo uma visão
crítica das instituições regentes da vida social, tais como: vigente; igreja, família, escola.
Tendo assim, a gênese do que hoje denominamos de gênero teatral besteirol9.
Segundo Mostaço (2012), avaliar a importância da produção dos Dzi Croquettes
para o contexto brasileiro e mundial, é pontuar as inspirações que foram propiciadas pela
interferência do grupo na perspectiva da formação de um grupo convival que valorizava a
performance individual e fornecia liberdade na abordagem das temáticas para os seus
artistas, deslocando tabu que estavam ligadas a sensibilidade do público daquela época.
Diante do exposto, pode-se afirmar que houve uma contribuição significativa do
grupo para o panorama do teatro brasileiro na década de setenta, bem como podemos
encontrar exemplos de algumas atuações feitas no cenário teatral contemporâneo carioca
que receberam influencias do referido grupo brasileiro. As produções dos grandes musicais
apresentados nos principais teatros brasileiros são exemplos de experiências cênicas que
vieram a partir da produção dos Dzi Croquettes, contendo cenas rápidas, cômicas e
costuradas por números de dança. Salienta-se ainda, que só existe uma única publicação
acadêmica escrita pela cientista social Rosemary Lobert, em sua dissertação de mestrado,
intitulada A palavra mágica: a vida cotidiana do Dzi croquettes que visibiliza a produção
dos Dzi. Neste trabalho, a autora reconhece a importância do grupo e traça uma análise da
vida em comunidade que os artistas imprimiram durante a existência do grupo, porém não
existe uma reflexão estética sobre o que o grupo produziu ao longo da sua trajetória. Desta
forma, toda a produção transgressora do grupo permanece esquecida nos escritos
acadêmicos do campo do teatro, perpetuando uma infeliz lacuna de compreensão sobre a
história do teatro brasileiro, sobretudo de como o teatro subverteu a norma social de uma
época através da força Dzi. O “desbunde” gerado pelos atores\bailarinos em cena, não só
significou a transgressão de valores, mas concretizou um grito de liberdade artística e
sexual não só dos envolvidos na cena, assim como de todo o público que acompanhou o
grupo.
1 O filme/documentário Dzi Croquettes. Direção: Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Produção: Traidi - 2009.
2 Grupo formado pelos atores\bailarinos: Lennie Dale, Wagner Ribeiro de Souza, Cláudio Gaya, Cláudio
Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poli, Bayard Tonelli, Rogério de Poly, Paulo Bacellar, Benedictus
Lacerda, Carlinhos Machado, Roberto de Rodriguez e posteriormente na temporada em São Paulo, Eloy
Simões no ano de 1972 na cidade do Rio de Janeiro. 3 Nome do primeiro espetáculo do grupo Dzi Croquettes que teve sua estreia no ano 1972 na cidade do Rio
de Janeiro. 4 Famosa boate dos anos setenta que se localizava no que hoje é a região da Lapa. Região boemia do Rio de
Janeiro.
6
5 Entrevista realizada com ator Claudio Tovar na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2012.
6 Famoso teatro Paulistano da década de 70
7 Sabáto Antônio Magaldi nasceu em belo horizonte, em 09 de maio de 1927. Foi critico teatral do diário
carioca de 1950 a 1953. Transferindo-se para São Paulo, nesse ano, o convite de Alfredo Mesquita, passou a
lecionar História do teatro na Escola de Arte Dramática onde criou, em 1962, a disciplina de historia do
teatro brasileiro. 8 Leonardo La Ponzina, mais conhecido como Lennie Dale (1934-1994). Foi bailarino e coreografo
americano radicado no Brasil, criador do grupo Dzi Croquettes em 1972. 9 Foi um movimento teatral que nasceu em São Paulo, ganhando força no Rio de Janeiro na década de 80.
Desprovido de preconceitos, o besteirol incorporou diversas referencias da cultura brasileira para montar uma
caricatura do comportamento cotidiano. O humor anárquico e o rompimento com o engajamento e a cultura
dita erudita forma os pilares do movimento.
7
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ZAN, José Roberto. Secos & Molhados: o novo sentido da encenação da canção. In: VII
Congresso latinoamericano – IASPM- AL, 2006.
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
APROXIMAÇÕES ENTRE WILHELM MEISTER E OS ESTUDOS TEATRAIS
Luiz Gustavo Bieberbach Engroff
(Orientador: Prof. Dr. Cláudio Celso Alano da Cruz; Mestrando do Programa de Pós-
Graduação em Literatura; Universidade Federal de Santa Catarina)
O objetivo principal deste estudo é encontrar pontos comuns, do contexto da vida
teatral do personagem Wilhelm Meister presente no romance de Goethe, Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, com os estudos da teoria teatral que irão surgir
aproximadamente um século depois. Apresento a seguir breves referências sobre o autor, sua
obra e a recepção que esta teve quando descoberta, para posteriormente problematiza-la com
os estudos em questão.
Segundo a breve biografia que encontramos na edição do romance Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, traduzida para o português por Nicolino Simone Neto, o
autor Johann Wolfgang Goethe nasceu em 28 de agosto de 1749 em Frankfurt am Main e
desde muito cedo teve acesso aos círculos aristocráticos da cidade, devido ao casamento de
seu pai com uma senhora da alta sociedade. Inicia aos 16 anos, seus estudos em Direito e ao
mesmo tempo, frequenta aulas de História, Filosofia, Teologia e Poética, além de se interessar
por desenho e frequentar assiduamente o teatro. Escreve peças estimuladas principalmente a
partir das obras shakespearianos e torna-se um dos poetas representantes de destaque do
movimento alemão Tempestade e ímpeto. i A partir de 1775, Goethe desempenhava as mais
diversas funções, como poeta, encenador e ator. Seu estilo misturava a vitalidade do teatro
elisabetano com a exigência artística do teatro francês.
Neste meio tempo, além de ocupar um cargo de alto funcionário da administração,
devido as suas relações com a nobreza, onde cuida de aspectos financeiros, exploração de
recursos e infraestrutura de Weimar, inicia os escritos de uma de suas obras-primas Fausto,
composta de duas partes, que finalizará apenas em 1832, a beira de sua morte.
Desiste parcialmente de sua carreira ministerial e realiza uma viagem à Itália que dura
aproximadamente dois anos, onde o poeta tem contato com os valores estéticos da
Antiguidade. Após seu retorno, inicia sua amizade com Friederich Schiller (1759-1805)
grande influenciador em sua vida intelectual, que o auxiliará na escrita da obra que trabalho
neste ensaio.
A partir de 1790, assume um novo cargo da administração de Weimar, agora como
superintendente do Instituto de Arte e Ciências da cidade e logo depois a direção do Teatro de
Weimar, fazendo-o conhecer de perto as características e especificidades da vida teatral. Sob a
regência de Goethe, o teatro de Weimar “[...] tornou-se o embrião do classicismo alemão. Da
cooperação entre Goethe e Schiller brotou a harmonia entre criação poética e teatro que a
Inglaterra havia conhecido nos dias de Shakespeare, a Espanha, nos dias de Calderón e a
França, na época de Molière.” (BERTHOLD, 2001, p. 413) Os primeiros escritos da obra
completa de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister são datados já em 1777 e em 1785 a
primeira versão da obra já estava finalizada.
Segundo o crítico, William Somerset Maugham, alguns dos acontecimentos de sua
infância foram os primeiros estímulos para iniciar a escrita de sua obra sobre seu personagem
Meister, que em sua primeira versão chamava-se A missão teatral de Wilhelm Meister ii. Na
infância, Goethe foi presenteado por sua avó com um teatrinho de fantoches e interessou-se
por escrever estórias e coloca-las em cena. Quando chega a Weimar, encontra um local ideal
para colocar suas ideias em prática, pois no local onde existia um pequeno circuito de teatro
amador.
Outra aproximação entre o autor e o personagem Meister é o contato de que ambos
tem com a obra de William Shakespeare. Em um de seus escritos Zum Schäkespears Tagiii
Goethe descreve a sua sensação ao ler a primeira peça de Shakespeare equiparando-a: “[...] à
de um cego de nascença que recupera a visão milagrosamente, a um prisioneiro que salta para
o ar livre e fora os grilhões que lhe prendiam.” (CARLSON, 1997, p.167)
A obra conta a trajetória de um jovem burguês em busca de uma formação “plena”,
fortemente vinculada às circunstâncias históricas e artísticas do contexto europeu vigente. Nos
primeiros cinco livros de sua versão definitiva, o personagem acredita que através do teatro
conseguirá a formação que tanto almeja e uma libertação de sua alma poética, impregnada da
visão limitada comumente atrelada ao seu “mundo burguês”. “O teatro e a poesia dramática
são, portanto aqui somente meios para o livre e pleno desenvolvimento da personalidade
humana.” (LUKÁCS, 1964 apud GOETHE, 2006, p.582).
No decorrer desta trajetória teatral, Meister depara-se com inúmeros artistas, amores,
pessoas das mais variadas classes sociais, sem deixar de buscar seu sonho de constituir-se
como ator profissional, sempre com o intuito da busca pela formação. E Goethe não cessava
de reforçar a diferença que havia entre atores que se mantinham na profissão apenas pelo
dinheiro girando ao redor do círculo de potenciais “mecenas” e do personagem principal que
buscava constantemente um aprimoramento da técnica. A partir do livro 6, o foco do romance
se altera e culminará no abandono de Meister pela vida teatral e em seu encontro com uma
família e com uma profissão especializada. “O teatro transforma-se, pois, num mero momento
do todo” (LUKÁCS, 1964 apud GOETHE, 2006, p.583). Mas qual a sua importância para o
contexto literário mundial?
Segundo as palavras de George Lukács: (1964 apud GOETHE, 2006, p. 581) “O
Wilhelm Meister de Goethe é o mais significativo produto da literatura romanesca entre os
séculos XVII e XIX.” Na Alemanha, até o momento da descoberta da obra de Goethe, o
romance era considerado como “... literatura trivial e de má qualidade.” (MASS, 2000, p.13)
O termo romance surge a partir de seu reconhecimento como obra “digna”. O termo provém
do latim romanic, através do francês romanz, “[...] roman designava uma narrativa longa, em
idioma diferente do latim clássico, na qual se representava o protagonista em suas relações e
divergências com o mundo exterior.” (MASS, 2000, p. 22) Somente a partir de outra obra de
Goethe Os sofrimentos do jovem Werther (1774) é que o romance estabelece-se e começa a
ser aceito pelo público e crítica.
Friederich Schlegel, a respeito da literatura então produzida pelos autores alemães,
estabelece uma divisão em categorias: Iluminismo, Pré-romantismo – que se relaciona
diretamente com o movimento Tempestade e ímpeto, Classicismo e Romantismo. Ainda
segundo a pesquisadora Wilma Patrícia Maas, é neste momento que há o nascimento de uma
“historiografia alemã”, ou seja, uma preocupação da obra em si relacionada às escolhas
estéticas e ideológicas do autor. O romance em questão funda um novo gênero, o
Bildungsroman iv que:
“[...] sob o aspecto morfológico, é relativamente fácil a compreensão do termo [...]
Por um processo de justaposição, unem-se dois radicais – (Bildung – formação – e
Roman – romance) que correspondem a dois conceitos fundadores do patrimônio
das instituições burguesas. (MASS, 2000, p. 13).
Norteado pelos dados apontados pela pesquisadora, os termos Bildung e Roman,
possuem atrelados a si um complexo emaranhado de significados e estes surgem juntos ao
propósito de construir uma identidade nacional alemã. Muitos críticos apontam que este
fenômeno, o Bildungsroman foi tipicamente alemão e caracterizava-se por um forte caráter
impregnado de um autêntico “espírito alemão” vigente na época e acabou estabelecendo-se
como uma das bases de produção para quase todas as literaturas de origem europeia,
incluindo a americana.
Não podemos deixar de pensar no contexto em que a Alemanha se encontrava diante
das outras potências europeias da época. A Alemanha era tida como atrasada, tanto em
relação ao progresso industrial quanto intelectual. A tecnologia e o pensamento eram
importados principalmente da França e Inglaterra, ao mesmo tempo em que há o surgimento
de uma nova classe, a burguesia, que cresce a partir das lacunas deixadas pelas relações
econômicas entre a nobreza e o povo. Toda esta efervescência repleta de ideias inovadoras,
tanto científicas quanto filosóficas, culminaram nesta “tomada de consciência” do povo
alemão em busca de sua identidade.
Foi a partir deste contexto social e pelos estímulos que recebeu em sua infância que
Goethe resolve escrever este romance que para a estudiosa Wilma Patrícia Mass configura-se
como: “A obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister permanece para a
história da literatura, como exemplar mais perfeito do gênero, como a realização
ideal de uma projeção histórica e literária conscientemente exercida por um grupo
social.” (MASS, 2000, p. 133)
Segundo Brito Broca há uma distinção entre vida literária e literatura: “Embora ambas
se toquem e se confundam, há entre elas a diferença que vai da literatura estudada em termos
de vida social para a literatura em termos de estilística.” (BROCA, p. 11, 1956). Para que
consiga estreitar os laços entre a vida particular do autor, o reflexo do mundo existente em seu
entorno e que o influenciava em sua escrita e em suas ideias, minha análise calca-se,
principalmente no contexto literário e intelectual que o cercava, destacando passagens de sua
obra que mostravam acontecimentos, estruturas e fazeres teatrais que só seriam
problematizados pelo aparecimento do encenador, no final do século XIX.
A partir das páginas seguintes começo a relacionar trechos da obra em questão,
principalmente dos cinco primeiros livros com os estudos da história e teoria teatral em
relação aos papeis do ator e principalmente do encenador. Retiro o seguinte fragmento do
texto de Goethe, no qual o narrador explicita como os atores em geral, no papel do seu ofício
deveriam agir: “Já se podia agora fazer o ensaio de leitura, que Wilhelm considerava propriamente
uma festa. Ele já havia colacionado previamente os papeis, de sorte que não poderia
ocorrer nenhum embaraço quanto a este aspecto. Todos os atores conheciam a peça,
e ele procurou apenas, antes de começarem, persuadi-los da importância de um
ensaio de leitura. Assim como se exige de todo músico que até certo ponto saiba
tocar à primeira leitura, assim também todo ator, ou mesmo qualquer pessoa bem-
educada, deve exercitar-se em ler à primeira vista, em captar imediatamente o
caráter de um drama, de uma narrativa e expô-lo com habilidade. Não ajudará em
nada memorizar tudo, se o ator não houver de antemão penetrado no espírito e no
pensamento do bom autor; a letra, em si, nenhum efeito irá produzir.” (GOETHE,
2006, pp. 301 e 302)
Na época em que Goethe escreve seu romance, ainda não existia uma técnica ou uma
maneira, ou verdadeiramente uma escola que ensinasse aos atores como dominar o seu ofício.
Existia naquele momento uma formação tradicional totalmente embasada nos preceitos da
antiguidade. Este patrimônio artístico era “imutável” e evoluía apenas em seus detalhes no
momento da execução. A formação mais difundida e respeitada da época formava intérpretes
do repertório clássico para o ingresso na Comédie-Française que continha-se apenas a ensinar
a falar bem e colocar-se em cena de modo que pudesse ser visto pelos olhos de todos público.
Ou seja, eram apenas repassadas as tradições herdadas por grandes comediantes e
religiosamente transmitidas. Já Goethe, tinha em mente, para o trabalho do ator, algo mais
abrangente e profundo: “Não apenas imitar a natureza, mas representa-la idealmente [...]
assim, deveria combinar verdade e beleza em sua atuação. (BERTHOLD, 2001, p.416)
Aos outros, que não necessitavam desempenhar grandes papeis, normalmente
aprendiam a maneira de representar, por eles mesmos ou em montagens da periferia
parisiense. A estes eram destinadas apenas participações como figurantes, “pontas”,
substituições e somente depois deste “estágio” é que conseguiam um ou outro “papel”. Para
estes aspirantes à arte teatral, as marcações eram simples chegando até proferir um breve
texto.
Por muito tempo, desde a Antiguidade até o determinado momento na escola francesa,
a arte do ator ou do comediantev - como era chamado, estava totalmente atrelada aos tratados
da retórica e muitas vezes associado à figura do orador ou declamador. A escola francesa era
alvo de inúmeras críticas em datas anteriores aos acontecimentos narrados por Goethe em seu
romance. Em 1694, o ator e dramaturgo italiano Evariste Gherardi que chegara à França anos
antes, criticava o ator que “[...] recita o que aprendeu de cor, sem levar em conta seu parceiro,
numa furiosa impaciência de se livrar do papel, ao contrário do comediante italiano que
interpreta tudo o que diz.” (ASLAN, 2005, p.6)
Os estudos do texto tinham como tendência geral lê-los como uma continuidade e não
apenas como fragmento de um todo. Existia então uma preocupação, explicita no fragmento
que retirei do romance, com o estudo preliminar deste texto: as indicações presentes no texto,
suas pontuações e do jogo que poderia surtir a partir deste. O professor do Conservatório
francês Pierre Regnier em seu estudo O Tartufo dos comediantes (1896) trazia um panorama
de interpretações mais antigas do papel principal – a partir do texto Tartufo, de Molière. Ele
anotava verso por verso “[...] a motivação de uma palavra posta em relevo ou uma pausa
respiratória.” (ASLAN, 2005, p.27) Parece-me que a intenção de Regnier era a criação de um
método, pois ele mesmo declarava que levou anos que compreender todos esses elementos de
maneira solitária e lamentava não ter tido contato com mestres e acesso à escritos que
pudessem tê-lo ajudado nesta empreitada.
Outro professor da época, Louis Jouvet, também da escola francesa, trazia algumas
inovações relacionadas ao primeiro contato dos atores com o texto:
“É preciso ler o texto como se não nos pertencesse, até que, de tanto ler as frases, de
repente tenhamos um sentimento de tal modo vivo, de tal modo profundo dessa
pessoa, que dizemos para nós mesmos: vou tentar dizê-los como ela as diria.
Infelizmente não fazemos isso. Tomamos o texto e dizemos a nós mesmos: vou
representa-lo.” (ASLAN, 2005, p.32)
Notamos que Goethe, talvez influenciado por sua viagem que fez à Itália (1786-1788),
traz ideias inovadoras ao contexto teatral alemão, através da narrativa de Meister,
contrariando preceitos da escola francesa vigente e mais aceitos pelos artistas da época.
Passamos ao próximo fragmento, onde durante os ensaios da peça Hamlet, de
Shakespeare, que seria encenada pela trupe comandada por Serlo e Meister, duas figuras
“aficionadas por teatro” vi davam grandes contribuições para as cenas:
“A presença desses dois homens se revelou bastante útil aos ensaios. Haviam
convencido sobretudo nossos atores de que, durante os ensaios, deveriam sempre
unir o gesto e à ação à palavra, tal como pensavam fazer durante a apresentação, e
através do hábito juntar tudo aquilo de um modo mecânico. Especialmente com as
mãos não deveriam fazer nenhum movimento vulgar, mesmo que fosse durante o
ensaio de uma tragédia; o ator trágico que no ensaio, se pudesse a tomar rapé, era
para eles motivo de temor, pois tinham por muito provável que, durante tal
passagem no decorrer da representação, daria por falta da pitada de rapé. Eram
inclusive da opinião de que nenhum ator deveria ensaiar com botas, se fosse
representar com sapatos. Mas nada, asseguravam eles, nada lhes causava mais
aflição que ver durante os ensaios mulheres com as mãos escondidas nas dobras das
saiais.” (GOETHE, 2006, p. 304)
No trecho retirado do romance de Goethe, notamos o termo “ensaio” no início do
fragmento. Comumente, segundo Patrice Pavis podemos entendê-lo como: “Trabalho de
aprendizagem do texto e do jogo cênico efetuado pelos atores [...] (PAVIS, 2005, p.129) Do
francês: répétition; do inglês: repetion, reherseal; do alemão: probe e do espanhol: ensayo.
Mas se a reflexão se aprofunda um pouco, o próprio Pavis salienta a partir das palavras do
célebre diretor Peter Brook que:
“[...] a palavra francesa evoca um trabalho quase mecânico, ao passo que os ensaios
se desenvolvem cada vez de maneira diferente, e são, às vezes criativos. Se não o
fossem ou se se prolongassem na repetição infinita da mesma peça, a morte do teatro
seria rapidamente perceptível. O alemão probe ou o espanhol ensayo (“tentativa”)
traduz melhor a ideia de experimentação e de tateio antes da adoção da solução
definitiva.” (PAVIS, 2005, p.129)
Não podemos deixar de destacar que mesmo que o enfoque de Brook seja numa
perspectiva mais contemporânea, o fragmento do romance mostra que existe uma tentativa de
uma visão mais arrojada em relação ao teatro que era feito e praticado no contexto de Meister.
Mostra-se no trecho acima, o início de uma preocupação com o “gestual”, diferente do
que se ensinava na formação tradicional do ator. A educação corporal era quase nula ou
inexistente. A maioria dos professores eram mestres na arte do “dizer”. Os atores da época
não tinham o costume de ensaiar continuamente. Para entrar em cena e apresentar uma peça
para o público, apenas deveriam seguir algumas normas pré-estabelecidas, além dos manuais
de retórica, já mencionados: nunca dar as costas para o público, respeito à cruz cênica (os pés
deveriam estar com as pontas separadas) e a posição ereta.
Os primeiros estudos do corpo como um todo que se têm notícias são as pesquisas de
François Delsarte (1811-1879). Delsarte criou seu Curso de Estética Aplicada a partir de suas
observações sobre os sentimentos exprimidos na vida real, da tradição clássica e de aulas de
anatomia. Seu curso era frequentado por uma gama de artistas de diferentes áreas: pintores,
compositores, atores, cantores além de padres e advogados. Deste curso criou dois grandes
fundamentos: a Lei da Correspondência e a Lei da Trindade. Em linhas gerais, ele supunha
que “[...] a cada função do espírito corresponde uma função do corpo, a cada grande função
do corpo corresponde um ato do espírito.” (ASLAN, 2005, p.37) Delsarte acreditava que o
gesto exprimia muito mais que palavras, e este deveria partir do coração, com o auxílio da
respiração e dos músculos do intérprete. Dividia a emanação dos gestos a partir de nove
regiões diferentes, englobadas em três focos (abdominal, epigástrico e torácico) chegando
assim a Lei da Trindade citada acima.
Alguns estudiosos acreditam que por influência da proposta delsartiana, o músico
Emile Jacques-Dalcroze criou a ginástica rítmica, primeiro como resposta aos bailarinos da
época por esquecerem de que o movimento interior é que dava sentido à expressão e ao gesto.
Seus princípios partem do questionamento das relações entre música e movimento e entre a
voz e os gestos. Acredita que exista o senso rítmico muscular “[...] que faz de nosso corpo o
instrumento em que se representa o ritmo, o transformador onde os fenômenos do tempo se
transformam em fenômenos do espaço.” (DALCROZE, 1965 apud. ASLAN, 2005, p.41).
Como o próprio nome sugere, a técnica parte de exercícios simples tendo como fio condutor a
utilização da respiração e outros temas rítmicos. O primeiro a aproximar esta técnica ao teatro
foi o diretor Adolphe Appia que colaborou com Dalcroze.
Tanto os estudos de Delsarte como a rítmica de Dalcroze, influenciaram os estudos de
Jacques Copeau, Constantin Stanislavski e outros estudiosos que iniciaram propriamente dito
de um método de ensino para os intérpretes, constituindo um novo modo de formação
artística.
Copeau em sua tentativa de desconstruir o ator, de todos os seus defeitos e manias,
funda em 1913 a Escola Vieux-Colombier dedicando-se a renovação da arte dramática. Dentre
seus inúmeros ensinamentos (ginástica-rítmica, a acrobacia, a dança entre outros) estavam
treinamentos específicos como a esgrima.
Em outro trecho do romance de Goethe, os “aficcionados pelo teatro” sugerem que
todos aqueles atores que fossem representar papéis de militares, deveriam aprender a lutar.
Outro exemplo de que Goethe estava avançado em relação aos discursos que eram proferidos
sobre a arte do teatro em outros pontos da Europa.
Ainda sobre o ensaio, Goethe nos mostra sua preocupação, através de Meister e dos
“aficionados” em transformar os atores e consequentemente o teatro, a partir de técnicas de
aperfeiçoamento. Podemos destacar outros trechos que nos levam a pensar desta maneira:
“[...] recomendar expressamente aos atores o seguinte ponto fundamental: o dever que tinham
de falar em voz alta e clara.” (GOETHE, 2006, p. 305) E para tanto, sugeria exercícios como
este: “Este [Meister] pediu a todos que, durante os ensaios, se sentassem nos cantos mais
distantes e batessem com uma chave no banco toda vez que não ouvissem
claramente. Ele articulava bem, expressava-se com moderação, subia o tom
gradualmente e não gritava nem mesmo nas passagens mais violentas. A cada novo
ensaio ouvia-se menos o bater das chaves; pouco a pouco os outros foram aceitando
a mesma operação, e já se podia esperar que ao final da peça fosse ouvida por todos
em todos os cantos da casa.” (GOETHE, 2006, p. 305)
A normatização de um método interpretativo moderno e relativo à peça que seria
montada só apareceria com estes “locais de experimentação” criados por Copeau na França, o
Estúdio de Stanislavski no Teatro de Arte de Moscou e, mais tarde, o Laboratório de
Grotowski em Opole.
Outro fato interessante na obra é o papel que Meister se encontra no romance que além
de adaptar, atuar e dirigir, cria todo o contexto artístico relacionado à montagem da peça
Hamlet, antecipando o aparecimento de uma figura conhecida posteriormente na história da
teoria teatral como encenador. Destaco três trechos do romance onde se evidencia esta figura,
em alguns fatores que envolvem uma encenação: escolha do recorte do texto, escalação do
elenco e cenografia/espacialidade da cena.
“[...] pude distinguir duas vertentes na composição desta peça: a primeira, refere-se
às grandes e íntimas relações das personagens e dos acontecimentos, aos poderosos
efeitos derivados dos caracteres e atos dos protagonistas [...] a segunda vertente que
deve ser observada nessa peça. Refiro-me ás relações exteriores das personagens,
pelas quais elas são levadas de um lugar ao outro [...] Minha proposta, portanto, é
não tocar absolutamente naquelas primeiras e grandes situações, conservando-as tão
cuidadosamente quanto possível tanto em seu conjunto quanto ao seu detalhe, mas
rejeitar de vez estes motivos exteriores, particulares, dispersivos e dispersadores,
substituindo-se por um só. (GOETHE, 2006, p. 290)
“Já haviam discutido previamente os papéis: Serlo faria Polônio; Aurelie, Ofélia;
Laertes já estava predestinado pelo próprio nome; um jovem recém-chegado
atarracado e muito vivo, recebeu o papel de Horácio; quanto ao rei e ao espectro
havia um certo embaraço.” (GOETHE, 2006, p. 293)
“Deveríamos mostrá-los – dizia Wilhelm – em tamanho natural, no fundo da sala, ao
lado da porta principal, e o do velho rei, com a armadura completa, como o espectro,
deve estar pendurado justamente na parte da sala por onde ele entra.” (GOETHE,
2006, p. 306)
Podemos concluir, segundo as palavras de Patrice Pavis que o encenador é: “Pessoa
encarregada de montar uma peça, assumindo a responsabilidade estética e organizacional do
espetáculo, escolhendo os atores, interpretando o texto, utilizando as possibilidades cênicas à
sua disposição.” (2005, p. 128) Continuando com as reflexões relativas ao termo, o autor
ainda descreve que seu surgimento situa-se na primeira metade do século XIX, mas existiram
indivíduos que praticavam ações que poderiam ser mencionados como seus precursores.
Na Antiguidade clássica, o didascalo era o próprio autor e organizador; na Idade
Média existia o meneur de jeu, ou seja, o condutor do jogo. No Barroco e Renascimento eram
os arquitetos ou cenógrafos que organizavam de acordo com o seu ofício e por fim, no século
XVIII os atores Iffland e Schröder serão os grandes ensaiadores, coincidindo com a exposição
de Goethe em seu romance.
Segundo Jean-Jacques Roubine (1998, p.14) a encenação torna-se uma arte autônoma,
somente a partir do ano de 1887, quando Antoine funda o Théâtre-Libre. Outros estudiosos
elencam outras datas que marcam esta nova etapa da história do teatro. São eles: 1866, com a
criação da companhia dos Meininguer ou 1880, com chegada de iluminação elétrica na
maioria das salas de teatro da Europa. Não há, portanto um consenso entre os estudiosos, em
relação ao surgimento exato do termo.
Inúmeros fatos desenvolvem-se nos últimos anos do século XIX para a chegada deste
dito Teatro moderno, onde a encenação torna-se o centro de um intrincado “maquinário
teatral”. Até aproximadamente 1840, existia uma fronteira, tanto geográfica quanto política,
dos preceitos vindos da França e da estética shakespeariana. A partir de 1860, estas barreiras
rompem-se e não existem maneiras de mantê-las restritas à apenas um determinado local.
Começam a aparecer em diversas cidades da Europa, espetáculos com certas características
que se compõem num movimento que será chamado de naturalismo. Grande parte deste êxito
de uma multipolaridade cênica é em decorrência das turnês empreendidas pela companhia dos
Meininger, por diversos países da Europa, excetuando-se a França, que pelo que podemos
supor, não aceitava as ideias que eram vindas a partir da crítica intelectual do restante da
Europa.
Podemos concluir que a partir desta época, o encenador passa a ser o grande
responsável pela ordenação do espetáculo. Não só por todas as grandes inovações da época,
mas também por um fator que ainda não foi mencionado: o público. “[...] não há mais para os
teatros, um público homogêneo [...] não existe mais nenhum acordo fundamental prévio entre
espectadores e homens de teatro sobre o estilo e o sentido destes espetáculos.” (DORT, 1961
apud PAVIS, 2005, p.122).
Segundo Roubine, por convenção, considera-se Antoine o primeiro encenador do
Teatro Moderno, pois foi o primeiro a imprimir uma assinatura na encenação como arte
autônoma. Foi um grande inovador e soube como nenhum outro mesclar as inovações
científicas com as práticas teatrais.
Continuando com as reflexões de Pavis, este propõe a partir dos estudos do escritor
francês Alain Veinstein duas definições para o termo encenação. Uma do ponto de vista do
público e outra da perspectiva dos especialistas:
“[...] o termo encenação designa o conjunto dos meios de interpretação cênica:
cenário, iluminação, música e atuação [...] Numa acepção estreita, o termo
encenação designa a atividade que consiste no arranjo, num certo tempo e num certo
espaço de atuação, dos diferentes elementos de interpretação cênica de uma obra
dramática. (VEINSTEIN, 1955 apud PAVIS, 2005, p.122).
Para que todos estes elementos estejam colocados harmoniosamente em cena,
percebemos a necessidade de um indivíduo que possa criar sua obra, conciliando os diversos
elementos cênicos. Sua decisão sobre a maneira de apresentá-los poderá privilegiar alguns
elementos em detrimento a outros, criando assim uma coerência que talvez somente para o
pensamento único do encenador faça sentido, mas assim que posta em cena mostra-se ao
grande público como uma apresentação concreta e representável. Uma visão particular que
dará forma à nova significação.
Percebemos alguns destes aspectos no personagem de Meister quando este se coloca
no papel de “encenador”. E também podemos perceber a preocupação de Goethe em colocar
esta situação de aprendizado de Meister em destaque, utilizando o próprio teatro como
metáfora para reflexão.
Numa passagem do texto em que há uma discussão entre Meister e Jarno – um
misterioso personagem que posteriormente descobre-se fazer parte de uma sociedade secreta –
este deixa claro que o teatro é um reflexo da vida. “Pois saiba, meu amigo [...], o que
descreveu não foi o teatro, mas o mundo, e que poderia eu encontrar em todas as classes
sociais personagens e ações suficientes para suas duras pinceladas.” (GOETHE, 2006, p.417)
Mas como reforça Lukács, a escolha do contexto teatral e a peça de William Shakespeare
Hamlet não foram um mero acaso.
“[...] para Goethe a questão shakespeariana ultrapassa e muito a esfera do teatro.
Shakespeare é, para ele, um grande educador para uma humanidade e personalidade;
seus dramas são, para ele, modelos do modo como o desenvolvimento da
personalidade atingiu a plenitude nos grandes períodos do humanismo e de como
esse desenvolvimento deveria se completar no presente.” (LUKÁCS, 1964 apud
2006, p.583)
Por esta breve análise, podemos afirmar que Goethe foi um grande fomentador da arte,
estando sempre à frente de seu tempo. Auxiliou na construção de um “teatro nacional” onde
houvesse uma preocupação com a estética aliada a dramas que se adaptassem nos diferentes
países da Europa, como era o caso das peças de Shakespeare. Anteriormente à esta tentativa
de uma criação deste “teatro nacional”, só haviam os teatros feitos pelas trupes de
comediantes itinerantes e o teatro feito sob encomenda pela corte. No período em que foi
diretor do Teatro de Weimar, a partir das tentativas anteriores para a criação do “teatro
nacional”, tomou suas melhores realizações e encenou além de Shakespeare, Schiller, Iffland
e peças de sua própria autoria.
“As metas propostas e as realizações efetuadas no seu exercício da intendência
teatral continuaram a exercer influência direta e às vezes indireta no teatro alemão.
Berlim e Viena tinham estreitas ligações com Weimar; nos países de língua alemã,
ambas tornaram-se foco do desenvolvimento e do destino da herança clássica e das
formas classicistas.” (BERTHOLD, 2001, p. 420)
Segundo a autora, Goethe é autor do chamado Regeln für Schauspielervii
que consiste
num apanhado de anotações e notas coletadas por John Peter Eckermann em 1824. Mas este
não se configura como uma obra de grande significação para o teatro universal e torna-se se
comparada a outras, como obsoleta. Sua importância no campo teatral calca-se em sua busca
por uma linguagem que pudesse refletir a sociedade da época com uma visão acerca de seu
futuro, mesclando literatura e realidade. E uma de suas ações foi a problematização que
propôs através de seu romance Os anos de aprendizado de William Meister, em que nos
apresenta uma narrativa recheada de intrigas, desenlaces e revelações contundentes muito
bem amarradas num contexto de um jovem burguês que busca sua formação através do teatro.
Ao mesmo tempo em que nos dá um panorama teatral da época em que foi escrito e antecipa
em muitos aspectos os estudos relacionados à arte do teatro que só deixariam grandes marcas
anos mais tarde.
iDo original alemão Sturm um Drang. Este nome foi dado por um componente do movimento C. Kaufmann de Winterlhur, a partir do título extraído do drama Der Wirrwarr (A confusão) de Maximilian L. Klingers. Configurou-se num movimento que se opunha às ideias do Iluminismo e dos princípios Aristotélicos, que dominavam o pensamento francês da época. (BERTHOLD, 2001, p. 412) iiNão tive acesso a esta primeira versão, mas segundo o estudo de diversos críticos, esta obra é composta de
seis livros e complementava-se sobre ela mesma. A segunda e definitiva versão, datada em 1796, condensa a obra anterior em cinco livros e a estes são agrupados mais três livros, constituindo-se como um compêndio sobre uma configuração completa da sociedade burguesa da época. A versão definitiva, porém; segundo o crítico Georg Lukács (2006) adota a maioria dos personagens, a ação e as cenas isoladas que serão posteriormente agrupadas e apesar de ter suprimido alguns acontecimentos por serem meramente necessários para o signo teatral, aprofunda e coloca em primeiro plano, fatos relacionados ao teatro que podem ser entendidos por Goethe, como paradoxo para um entendimento do comportamento humano. iii À propósito do dia de Shakeseare. (CARLSON, 1997, p. 167)
ivO termo Bildungsroman foi criado pelo professor de Filologia Clássica Karl Morgenstern em 1810, mas só é
difundido academicamente a partir dos estudos do filósofo idealista Wilhelm Dilthey, em 1870. (MASS, 2000, pp. 13 e14) vO termo comédien, na maioria das vezes é traduzido como ator. Especificamente em português, ele é atrelado
apenas ao gênero cômico. Mas, a partir de uma perspectiva clássica, para Jouvet e Diderot, ambas as palavras possuem especificações distintas. O ator é aquele que só pode interpretar papeis que correspondem ao seu emploi ou à sua imagem e o comediante aquele que pode desempenhar todos os tipos de papeis, independente de suas características físicas. (PAVIS, 2005, p.57) viEstes “aficionados por teatro” eram os chamados Dramaturg. O primeiro Dramaturg foi Lessing: sua
Dramaturgia de Hamburgo (1767), coletânea de críticas e reflexões teóricas, está na origem de uma tradição alemã da atividade teórica e prática que precede e determina a encenação de uma obra. O alemão distingue, diversamente do francês, o Dramatiker, aquele que escreve as peças, do Dramatur, que é quem prepara sua interpretação e sua realização cênica. As duas atividades são desenvolvidas simultaneamente pela mesma pessoa. (PAVIS, 2005, p.117) vii
Regras para o ator (BERTHOLD, 2001, p. 418)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ASLAN, Odette. O ator do século XX: evolução técnica problema da ética. Tradução:
Raquel Araújo de Baptista Fuser, Fausto Fuser e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2005.
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. Tradução Maria Paula V. Zurawski, J.
Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2001.
BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura, 1956.
CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico dos gregos à atualidade.
Tradução: Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997.
GOETHE, Johann Wolgang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Tradução:
Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006.
MAAS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. O Cânone mínimo: o Bildungsroman na história
da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
MAUGHAM, William Somerset. Os três romances de um poeta. Pp. 1- 40. In: Pontos de
vista. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1964.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução: J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São
Paulo: Perspectiva, 2005.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Tradução e apresentação: Yan
Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
OS ESPAÇOS DAS RECEPÇÕES: CRÍTICA E HISTÓRIA
E SE SOMENTE VÍSSEMOS O PRETO INFINITO DA CAIXA CÊNICA NO
LUGAR DAS CORES E FORMAS DOS CENÁRIOS PARA O REI DA VELA?
ENTRE A TRADIÇÃO DA CAIXA CÊNICA ITALIANA E O NEO-
HUMANISMO
Regilan Deusamar Barbosa Pereira (Doutoranda bolsista CAPES) Orientadora Evelyn
Furquim Werneck Lima; Centro de Letras e Artes; UNIRIO
As estrelas guiaram os navegantes por ocasião da descoberta das Américas. E em
meados do século XVII, o humanista Dom Emanuele Tesauro poeticamente constatou:
“as estrelas brilham no escuro”, cuja obra a respeito de estudos aristotélicos 1
afirmava a possibilidade de se “estabelecer conexões entre as coisas, ainda que sejam as
mais díspares”. Díspar, no entanto, poderia ter sido o manifesto apresentado pelo Teatro
Oficina, que na estréia de O rei da vela afirmou a necessidade de reinvenção do teatro,
porém apresentou uma realização na caixa cênica italiana. Que reinvenção foi esta
então, que ficou na História do Teatro brasileiro? Talvez seja mais propício principiar-se
uma análise a respeito da História da Imagem no Teatro Brasileiro.
Certamente se as estrelas não brilhassem na escuridão do cosmos, homens e
mulheres teriam encontrado outro ponto luminoso para o qual direcionariam sua
potencia criadora. Antes mesmo das grandes navegações, Platão no século IV a. C. criou
a alegoria da caverna, na qual ele afirmou que a astronomia era uma das ciências que
facultavam à humanidade conhecimento no campo das idéias. Com relação ao espaço da
caixa cênica italiana, esta alegoria pode auxiliar enquanto dado para análise comparativa
entre esta e a encenação de O rei da vela em 1967 no espaço do Teatro Oficina no qual
o cenógrafo Helio Eichbauer organizou uma disposição cênica frontal como forma de
relação entre palco e platéia. Esta tradicional fruição da cena teatral de fato demanda do
espectador atitude contemplativa e reflexiva, inclusive imaginativa, à maneira dos
vislumbres imaginativos observados por homens e mulheres na alegórica caverna
platônica, porém tal fruição da cena é diversa da demanda de fisicalidade que as artes
desde finais dos anos 1950 proclamaram e que no Brasil da ditadura militar artistas
como Helio Oiticica e Ligia Clark experimentaram.
A aparente dualidade entre reflexão e presença, no sentido de que a primeira não
demanda movimentação física não é considerada nestes estudos, pois em relação ao
teatro, estudiosos como Patrice Pavis, já afirmaram o estado de mobilidade em que se
encontra um espectador 2, da mesma forma compreende-se que o participante de uma
experiência performática não está impedido de refletir sua vivência no ato da
performance. Portanto, o alvo de interesse se direciona á maneira como a encenação de
O rei da vela abalou os sentidos do espectador com imagens irreverentes e conseguiu
juntamente com platéia, atores e realizadores cênicos pensar as artes e a sociedade no
Brasil sob novos parâmetros, que foram os do deboche, da paródia, da mordacidade,
com o intuito de tornar a todos conscientes da apatia e falta de atitude diante de um
Brasil envelhecido pela corrupção, exploração, ignorância, abusos de poder e tantas
outras mazelas corrosivas e sugadoras da potencia vital social.
Primeiramente, ao serem analisadas as palavras do diretor José Celso em O Rei
da vela: manifesto do Oficina, percebe-se que justamente o que interessou a este diretor,
aos atores, ao cenógrafo Helio Eichbauer e demais realizadores foi justamente a maneira
anárquica de Oswald de Andrade, autor do texto, tratar as reincidentes problemáticas
culturais e políticas brasileiras. A começar pela forma de apresentação do Oficina:
manifesto. Em 1928 Oswald de Andrade lançou seu Manifesto Antropófago na primeira
edição da sua Revista de Antropofagia, designada como “primeira dentição” 3.
Similarmente, a escrita do manifesto do Teatro Oficina se constituía de paródias,
intertextualidades, transgressões gramaticais os quais são visíveis nas fotografias
documentais que exibem as caracterizações dos personagens, os telões pintados, a
dimensão erótica dos adereços e dispositivos de cena em O rei da vela. Oswald de
Andrade escreveu a peça na década de 1930 e em 1967 o Teatro Oficina encenou a
atualidade daquela crítica voraz ao Brasil, a qual continuava inédita nos palcos
brasileiros, cujo ineditismo denunciava os entraves da cena teatral até àquele período. E
apesar de Vestido de noiva de Nelson Rodrigues ter causado grande revolução cênica em
1943, as peças posteriores deste dramaturgo contrariamente não foram bem recebidas e
receberam a denominação de “malditas”, e a irreverência desta encenação rodriguiana,
com a histórica cenografia de Tomás Santa Rosa que expôs os diferentes planos
temporais da peça, acompanhando a fragmentação da narrativa, rompendo com o
bidimensional dos telões pintados do Teatro de Revista dos anos 30 e 40, ficou isolada
no contexto teatral brasileiro, portanto todo este conjunto revolucionário eclodiu, mas
não deixou filiações, de acordo com as considerações de Décio de Almeida Prado que
destacou a ênfase no apuro formal promovido pelo Teatro Brasileiro de Comédia, o
TBC e a preocupação nos anos 1950 por parte de autores brasileiros com a elaboração
de uma dramaturgia nacional 4. Este panorama justificou o comentário cáustico de José
Celso no Manifesto do Oficina de que o Brasil precisava construir uma nova história nas
artes, na sociedade e na política 5.
Helio Eichbauer criou a cenografia, os figurinos e a caracterização dos
personagens para O rei da vela e sua realização se deu em franca conversa com José
Celso, com os estudos de novas linguagens de atuação que os atores estavam
empreendendo que incluíram Artaud, Grotwski, Brecht. A partir desta conjunção a
realização cênica produziu uma imagem transgressora, no mesmo tom da crítica
destemida empreendida pelo modernismo literário de Oswald de Andrade. A força de
cada um destes componentes visuais da cena, que são os cenários, figurinos e
caracterização se agigantou diante da platéia porque as imagens proporcionadas eram
eloqüentes e mordazes, como visões satíricas de um Brasil decadente no qual todos,
platéia e atores, estavam mergulhados, na verdade naufragados, cuja terra à vista era tal
qual a Baía da Guanabara ilusória apresentada na peça, hipotecada ao capital
estrangeiro, ao Mr. Jones, de acordo com a interpretação de José Celso.
A peça se dividia em três atos. Cada um destes se constituiu de telões pintados,
os quais segundo Helio Eichbauer em seu livro Cartas de Marear tinham dupla fonte de
referência: os telões produzidos pelo Teatro de Revista brasileiro e as pinturas
modernistas de Tarsila do Amaral, Anita Malfati entre outros. Como tais referências
construíram não somente as cenas e imagens cheias de sarcasmos que se tornaram
característicos do Teatro Oficina, inclusive permitiram que esta encenação ficasse
conhecida historicamente como revolucionária, transgressora de padrões teatrais? Pois
os telões pintados do teatro de revista eram ilustrativos, tinham a função de mostrar o
lugar da ação, e mesmo que fosse uma história fantasiosa, ainda assim o telão
representava o ambiente em questão. Já a pintura modernista não tinha este cunho
ilustrativo, muito pelo contrário, tratava-se de evocar a alma brasileira em cores e
formas. Abaporu de Tarsila do Amaral foi a pintura eleita por Oswald de Andrade para
estampar seu Manifesto Antropófago justamente por tratar, no entendimento de Oswald
e Mario de Andrade da alma de um novo nacionalismo emergente, a identidade de
brasileiros conscientes da sua originalidade de fauna, flora exuberante, mas também
citadina, ávida por novidades modernas e por isso antropofágica, daí a busca por uma
identidade nacional 6 à maneira do Abaporu, termo tupi que quer dizer homem que
come, mas mesmo esta pintura não ilustrativa, porém rica em significados, já não
condizia com o discurso artístico de finais dos anos 1960 que pregava a inclusão do
espectador, sua vivência artística, mais do que sua atitude contemplativa, típica da
atitude de um observador num museu, portanto constata-se que não foram os dados
funcionais dos telões cenográficos das revistas teatrais e nem a dimensão estética das
telas modernistas que promoveram transgressões, mordacidade, ironia, deboche,
distanciamento crítico relatados nas análises históricas de O rei da vela, que além de
todas estas irreverências, ainda foi relacionada ao movimento tropicalista, que
reivindicava a identidade tropical brasileira, que andava obscurecida pelas sombras da
ditadura militar, mas a renovação dos cânones da caixa cênica sem sair do interior da
mesma.
De volta às estrelas de Dom Emanuele Tesauro, que sugeriu a liberdade de
pensamento no ato de conectar referências aparentemente díspares, donde a sugestão
desta pesquisa de estudar a histórica encenação de O rei da vela em comparação com a
alegoria da caverna de Platão apresenta-se, portanto o primeiro ponto de conectividade:
a caverna propriamente dita. Na alegoria as imagens ilusórias são vislumbradas pelas
criaturas da caverna como uma espécie de teatro de sombras, promovido por tochas
acesas. Primeiramente é importante esclarecer que tal comparação tem a finalidade de
rever a originária missão civilizatória da caixa cênica italiana, apesar de tal missão ser
considerada arbitrária. Compreende-se, porém que é importante se avaliar a promoção
de análise crítica da realidade social que este edifício possibilita através dos seus
mecanismos de produção de ficção e que tais mecanismos demandam uma técnica
apurada, atributo dos atores, cenógrafos, figurinistas, iluminadores, sonoplastas, donde a
importância das escolas que tratam da formação destes realizadores.
A alegoria platônica designa as imagens projetadas na caverna como ilusórias
em relação à realidade externa. As criaturas que ali se encontram estão ignorantes do
conhecimento a respeito da natureza e do cosmos, a partir de então Platão começa a
enumerar as modalidades de conhecimento científico necessárias aos que desejam sair
da obscuridade da caverna. Uma delas trata da astronomia 7, a ciência que estuda os
posicionamentos e movimentações dos corpos celestes. Nesta análise comparativa o
estudo destes corpos celestes que pode promover ascensão ao conhecimento, numa
aproximação nem tão díspar assim, se refere aos atores, popularmente conhecidos como
astros e estrelas no negro universo infinito da caixa cênica. A visão ilusória é o enredo,
a narrativa, ainda que fragmentada, processual, ilógica, de acordo com as diversas
vertentes da dramaturgia contemporânea, porém na “caverna cênica” a narrativa
funciona como o que Platão designou como de fundamental importância que é o estudo
do Ser. Nesse contexto a encenação de O rei da vela acendeu uma enorme tocha
iluminadora na “caverna teatral brasileira” em finais da década de 1960 ao rever os
telões do Teatro de Revista brasileiro.
Embora José Celso, a partir do texto de Oswald de Andrade, utilize a imagem da
vela acesa como metáfora dos que velam o cadáver do Brasil, esta análise comparativa
considera que a imagem deste apetrecho luminoso pode se transformar na metáfora de
um enorme archote a levar luz à obscuridade das artes cênicas no Brasil, que em 1967
se encontrava entre os reveses da ditadura militar, que se encaminhava para uma
posição ainda mais cerceadora com a decretação do Ato Institucional nº 5 em 1968. O
contexto teatral brasileiro em 1967 se encontrava fortalecido por experiências cênicas
politizadas com destaque para as realizações do Teatro de Arena de São Paulo que desde
finais dos anos 1950 estivera a realizar encenações neste espaço cênico circular que
permitia montagens mais baratas e renovação da relação entre palco e platéia, diferente
da frontalidade do palco italiano, embora mais modesta em termos de formulação
cenográfica. Contava também com experimentações da técnica do teatro épico no
contexto dramatúrgico pelo Centro Popular de Cultura, o CPC que se originou de um
grupo de intelectuais, artistas, estudantes 8 também em São Paulo e ainda realizações no
Rio de Janeiro com a estréia em 1964 da cena musicada do Opinião, também de cunho
político, de crítica à atitude ditatorial de então, porém a visualidade de O rei da vela foi
de um estarrecedor impacto, o qual não se tratava somente de materialidade plástica,
mas de revisão crítica da cena pictórica do Teatro de Revista brasileiro, conjugada à
interpretação visual de cores e formas das artes visuais do Movimento Modernista no
Brasil, iluminando desta maneira, como um enorme archote, a teatro e as artes
nacionais. E toda esta visualidade em tom mordaz, à maneira das “dentições” da Revista
de Antropofagia de Oswald de Andrade.
Os croquis de cenário de Helio Eichbauer para o Rei da vela revelam materiais e
designam formas estruturais que eram verificáveis nos cenários construídos para o
Teatro de Revista brasileiro, tais como o pano de boca 9 e os rompimentos
10. No Teatro
de Revista estas estruturas funcionavam num conjunto para manter a configuração de
um realismo ilusório relativo ao contexto da peça. Todos os mecanismos que pudessem
denunciar a estrutura mecânica do palco eram escondidos pelo aparato cenotécnico para
que a platéia se envolvesse com a ambientação da narrativa, evitando-se a quebra da
ilusão e permitindo somente a magia cinética. Na encenação de O rei da vela esta
estrutura de movimento que compreende as movimentações dos telões no urdimento
tinha a mesma dinâmica de subidas e descidas, porém sem a preocupação de esconder
seu funcionamento técnico, inclusive Luís Carlos Maciel, que ministrou o curso
“interpretação social” aos atores do Oficina, relatou a técnica brechtiana que trabalhou
com os atores e a finalidade de conferir uma atuação de distanciamento crítico ao
conjunto da encenação 11
e mesmo a caracterização dos personagens, criada por
Eichbauer, que apresentava os atores com rostos pintados como se estivessem
mascarados, propiciava a quebra do ilusionismo.
A irreverência destes telões estava nas imagens propriamente, que ironizavam o
tropicalismo brasileiro. Estava mais para tropicaliências de um neo-humanista, Helio
Eichbauer, que com grande domínio técnico do funcionamento da caixa cênica italiana,
reviu de forma crítica a estrutura formal e histórica de um momento específico do teatro
e das artes visuais à maneira de um Leonardo da Vinci que dissecava cadáveres para
melhor conhecer a estrutura do corpo humano e assim projetar históricas personagens
sob reinvenções pictóricas. Mas não somente por isso Helio Eichbauer constrói o neo-
humanismo no teatro. Ele sempre foi um estudioso da história e da ciência. Em 1967 ele
tinha apenas 26 anos e apesar da pouca idade criou cenografia, figurinos e
caracterização para uma encenação que ficou na História do Teatro Brasileiro.
Considera-se que seus precoces conhecimentos profissionais e artísticos originam-se
não exclusivamente nos seus anos de aprendizado em princípios dos anos 1960 com o
tcheco Josef Svoboda, renomado cenógrafo da história internacional do teatro, mas
conforme seus relatos em seu livro lançado em 2013, Cartas de marear, no apreço que
tinha desde a infância pela literatura, teatro, ópera e todas estas interligadas como
narrativas poéticas e históricas, as quais o levaram a matricular-se na Escola Nacional
de Filosofia no Rio de Janeiro, onde hoje se encontra o consulado da Itália. Nesta escola
Eichbauer foi introduzido nos estudos da filosofia clássica, cujos mestres pré-socráticos
e posteriormente Aristóteles, Platão e os demais filósofos deste período forneceram as
bases a partir das quais o Renascimento fundamentou a filosofia humanista, o berço do
edifício teatral italiano 12
e de sua missão civilizatória. Eis, portanto, a conexão de dados
distantes no tempo, porém pertinentes: Eichbauer e seu neo-humanismo que fez da
cenografia para o Rei da vela uma revisão da arte e da história do Brasil dos anos 20 aos
40, revendo, portanto a pintura dos modernistas e o teatro de telões pintados, técnica
pictórica e ilusionismos, estética e cinética do palco à italiana.
Porém, falar em missão civilizatória na encenação de O rei da vela somente se
for de acordo com os avessos pertinentes ao sarcasmo e ao deboche, com a finalidade de
iluminar com este enorme archote a história enviesada da política brasileira, à maneira
de uma missão às avessas, que no lugar de uma bela proposição das unidades
aristotélicas, da apresentação das virtudes do herói, da proposição de um fundo moral à
narrativa, a catarse se faça segundo as palavras de José Celso em seu manifesto: “[...]
apresentando tudo a partir de um cogito muito especial. Esculhambo, logo existo!” 13
E
justamente nesta frase do diretor encontra-se o cerne desta encenação, a qual trata de
apresentar, mostrar e foi o que Eichbauer fez a partir dos telões e das imagens que estes
evidenciam, daí o estudo de História da Imagem.
Segundo nos esclarece José Celso o primeiro ato apresenta o escritório de usura
do personagem Abelardo I, cuja idéia subjacente é a de que o país é hipotecado e neste
contexto valores, homens, mulheres, sentimentos, tudo e todos se tornam mercadoria.
Esta é a cena de apresentação da barbárie desta negociação e de seu bárbaro negociador
Abelardo I. Este personagem foi interpretado pelo ator Renato Borghi, porém Eichbauer
apresenta ao espectador um enorme boneco que tem aproximadamente a altura do pé
direito do palco com um enorme pênis que Borghi também manipulava. A imagem deste
boneco e de seu sexo exacerbado configurava o tom agressivo e mordaz, que tem poder
de “infectar” o espectador com suas “ejaculações”, de acordo com os termos de Did-
huberman, que afirma que a infecção se dá por conta de uma “figuração em ato” 14
, o
que se tem então, não é mais um espectador diante de uma imagem e numa postura
reflexiva em relação à mesma, mas uma relação de contato a desnortear a assistência.
Unicamente a visão de um boneco com seu sexo desmesurado infecta de valores às
avessas, de questões até então obscurecidas e insuspeitadas, imagem causadora de
vertigem, porque é uma “figuração em ato”.
O segundo ato se passa às margens da Baía da Guanabara no Rio de Janeiro. Em
relação ao telão que se apresenta nesta cena em azuis, verdes e amarelos dos céus e das
bananeiras verificam-se não só o Brasil tropical, como referência do Movimento
Tropicalista, mas ao mesmo tempo as cores e formas estilizadas do Brasil modernista e
antropofágico que apresenta o Cristo Redentor no cume da montanha com a urbanidade
citadina à beira-mar, inclusive o tom de ironia do personagem Abelardo mascarado no
centro desta composição paisagística sobre uma poça de sangue, como um vampiro
sugador de vidas. Mais uma vez a força da imagem é vertiginosa, pois ela mescla os
desiguais, o mar e o sangue e sem nenhum realismo, exibindo com tenacidade as cores
da bandeira nacional como uma imagem vendida e caricatural das históricas “bananas is
my business” emoldurando o palco das ilusões. E se no primeiro ato o espectador foi
infectado pela figura também vertiginosa do gigante Abelardo I, no segundo ato a
luminosidade dos verdes e amarelos exibe o sangue da nação contaminada pela
barbárie, sob os pés do negociante sem escrúpulos. O que se experimenta visualmente é
a extravagância dos bárbaros ilustrada no interior da caverna, a caixa cênica italiana.
A imagem que se apresenta neste segundo ato de O rei da vela entre as
conceituações de imagens projetadas em Platão e as imagens infecciosas em Did-
Huberman corrói consciências 15
porque suas cores e sua figuração são tão significativas
da identidade nacional pretendida, não nos esqueçamos, pelo Movimento Moderno
Brasileiro, pois remetem diretamente ao que todo brasileiro conhece, o verde, azul e
amarelo das matas, do mar e do sol presentes na bandeira, que a caricatura das mesmas
denuncia a deformação de comportamentos e valores. E para reforçar esta crítica o ato
finaliza com um quadro que desce do urdimento no qual se lê trechos de A pátria de
Olavo Bilac: “Criança... nunca, nunca verás nenhum país como este”, ao som de
Descobrimento do Brasil de Heitor Villa-Lobos. 16
Esta conjunção artística e histórica,
pois se trata também de História do Brasil, que formula um estudo apurado conjugado a
um exímio conhecimento da potencia e da técnica cinética da caixa cênica italiana são
característicos da sistemática de estudos humanísticos e colaboram com a concepção
das imagens, cujos signos são infectantes. Daí a eficácia e a imponência deste neo-
humanismo de Helio Eichbauer, pois este sistema confere abrangência em termos de
conteúdo e articulação de técnica com filosofia que são iluminadoras enquanto análise
crítica. É justamente porque esta cientificidade tem a possibilidade de iluminar histórias
e saberes que se encontravam na ignorância que Platão discrimina suas matérias, as
quais encaminham o ser ao conhecimento, ainda que exclusivamente pelas vias da
lógica. Considera-se, no entanto que a própria história da humanidade demonstrou que a
inflexibilidade do raciocínio lógico restringe o saber, – as duas grandes guerras na
primeira metade do século XX configuram o ponto culminante das vias negativas da
lógica – pois se compreende que o conhecimento se dá em conjunto com os sentidos e
as sensações, daí o entendimento de que a apreensão da lógica humanística como
ferramenta de análise crítica precisa de revisão e flexibilidade e o neo-humanismo de
Helio Eichbauer demonstra esta maleabilidade.
É preciso considerar que este estudo compreende a análise específica de um
objeto artístico: a cenografia para o Rei da vela. Concernente a este objeto encontram-se
dois fatores: 1) o próprio cenógrafo já afirmou a sua formação humanista 17
; 2) a análise
deste mesmo objeto principia, de maneira experimental, um estudo que conjuga as
ferramentas da semiologia que trata das cores, formas, estruturas cênicas às ferramentas
da fenomenologia para abordar a relação entre o palco e a platéia. Esta conjugação se
fundamenta na afirmação do semiólogo da cena Patrice Pavis, cujo estudo já citado
atesta a seguinte necessidade: “tratar de maneira coerente a massa de informações
recolhidas pelo espectador; método de inspiração fenomenológica já que se interessa
pelo modo como esse espectador vive e prova ‘o mundo’”. Mais uma vez verifica-se,
portanto, a pertinência nestes estudos da reunião entre as considerações filosóficas de
Platão, as quais estão no berço dos humanistas e a fenomenologia de Did-Huberman
que solicita uma apreensão das imagens que contemple a percepção dos sentidos, antes
mesmo que se pergunte o que isso ou aquilo significa 18
.
Com relação ao terceiro ato de O rei da vela a imagem que se apresenta é a da
morte. As figuras dos esqueletos amontoados indicam que a poça de sangue que se viu
no ato anterior sob os pés do usurário Abelardo I transformou-se na trágica morte a
exibir cadáveres amontoados e cada um portando uma vela acesa, como se estes fossem
os algozes de si mesmos, desejosos de perpetuar a mortandade. Esta imagem com
irônicas velas configura nestes estudos uma espécie de imagem de visão crítica que
solicita uma tomada de atitude enérgica diante da visão estarrecedora de uma sociedade
mergulhada desde sua formação na corrupção política e que se encontrava apática por
parte da classe artística, de intelectuais, estudantes e trabalhadores. Oswald de Andrade
já havia se pronunciado a respeito da função dos intelectuais e artistas no contexto da
sociedade brasileira 19
. Sua obra leva-nos a ponderar a respeito da parcela de
responsabilidade social relativa aos professores, pesquisadores, artistas, que se expande
para além da sala de aula e de ensaio e alcança os espaços de convivência social. Tal
parcela diz respeito às atitudes, aos comportamentos, às concretizações. O quadro final
que encerra O rei da vela, no qual se lê a fala do personagem Hiorofante de A morta de
Oswald de Andrade evidencia, com a ironia característica do autor, as responsabilidades
sociais:
“Respeitável Público! Não vos pedimos palmas. Pedimos Bombeiros! Se quiserdes salvar
as vossas tradições e vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a polícia!
Somos como vós mesmos, um imenso cadáver gangrenado! Salvai vossas podridões e
talvez vos salvareis da fogueira acesa do mundo!”
E Helio Eichbauer resgata no início deste terceiro ato, formas materiais da
história do palco italiano e da cena teatral ao principiar este com abertura de cortinas
que exibem as máscaras teatrais da tragédia e da comédia ao tom solene de A alvorada
de Carlos Gomes, de acordo com o relato de José Celso em El sol rúbio. E se no
princípio deste ato Eichbauer exibiu solenemente a histórica imagem das cortinas que se
abrem no teatro, como se redimisse o teatro de outrora, suas narrativas operísticas, sua
augusta missão civilizatória, ao final, caveiras desceram do urdimento e anunciaram o
sinistro casamento de Abelardo II, sucessor de Abelardo I, e assim delinearam a imagem
do capitalismo usurário que se repete historicamente e que não condiz com os intentos
de civilidade de outrora, pois na verdade aniquilam qualquer postura ética. As cortinas
funcionaram como nostálgica lembrança. E para encerrar a peça a música de Aquarela
do Brasil de Francisco Alves com alegria entoava “Oh, abre a cortina do passado / Tira
a Mãe Preta do serrado / Bota o Rei Congo no congado / Brasil, Brasil” em contraste
com o elenco que em silêncio se encaminhou à frente da cena para uma relação direta
com a platéia à maneira brechtiana, sem os ilusionismos teatrais, tendo ao fundo a
projeção que solicitava a todos que chamassem os bombeiros e a polícia. Um apelo à
tomada de posição perante a derrocada da nação “do meu amor / Terra de Nosso
Senhor.”
Entre o segundo e o terceiro ato destaca-se a ambiência musical entre as
composições orquestradas de Villa-Lobos e Carlos Gomes e o clássico popular de
Francisco Alves. São duas as considerações que se faz a partir desta ambiência: a
primeira relativa às duas primeiras músicas, que são orquestradas. Estas evocam a caixa
cênica italiana pela possibilidade que esta tem de transportar os que nela estão para
espaços além daquele presente e no caso de Descobrimento do Brasil de Villa-Lobos,
tem-se uma orquestra com vozes que instaura uma atmosfera misteriosa em torno da
poesia de Olavo Bilac, exposta numa grande tela e que exalta a exuberância nacional.
Neste contexto Eichbauer conjuga a música de orquestra e a poesia parnasiana, esta
inclusive foi fortemente criticada pelo Movimento Moderno Brasileiro, tida como
poesia de um Brasil enquadrado em normas, no entanto Helio de forma livre trouxe para
a encenação oswaldiana caracteres do teatro tradicional e da poesia brasileira pré-
modernista e conferiu a devida imagem contraditória de uma nação ufanista, encerrando
desta forma o segundo ato. Iniciou o terceiro com Alvorada, dando continuidade à
imagem histórica do teatro com sua pomposa cortina de abertura e encerramento da
cena teatral e neste ambiente Eichbauer, como um humanista resgata a história e
filosoficamente transporta platéia e atores para este lugar monumental do teatro, para
em seguida criar o choque da visão entre o sublime e a chegada grotesca da figura do
usurário Abelardo I.
A segunda consideração é a respeito da popular Aquarela do Brasil de Francisco
Alves coroando o casamento funesto de Abelardo II com Heloisa de Lesbos, cuja
caracterização de Helio Eichbauer deixa transparecer a imagem de vampira, segundo as
palavras de José Celso. E “o coqueiro que dá côco” parece que tem seus frutos e sua
beleza furtados, de acordo com a imagem daquele casamento de interesses, num tom de
alegria funesta, que apresenta a fome e a miséria de uma nação de “terra boa e gostosa”.
A caracterização das personagens, à maneira de máscaras, configura uma
apresentação brechtiana destas figuras que encarnam hábitos e vícios antigos da nação
pau-brasil de Oswald de Andrade. É possível considerar que estes personagens-tipos
delineados por Eichbauer tinham em seus rostos caracterizações marcadas como a
figuração nos telões do Teatro de Revista, e ainda a estilização das formas semelhantes
às linhas expressivas nas artes visuais do Movimento Moderno Brasileiro que evocam
tipos como a boba e o homem amarelo de Anita Malfati, ou ainda as cores exuberantes
dos retratos de Mário e Oswald de Andrade por Tarsila do Amaral, como contorno de
tipos sem psicologismos.
A conjugação da cenografia, figurinos e caracterização de O rei da vela ainda
apresenta muitas metáforas, paródias, soluções técnicas que necessitam análise acurada
a qual se fará após a conclusão de novas etapas de pesquisas documentais e estudos
teóricos, porém é importante salientar que tal pesquisa tem o objetivo de verificar a
contribuição da sistemática neo-humanista de Helio Eichbauer para o Teatro Brasileiro,
que não só em 1967 fez uma importante revisão da cena teatral e das artes nacionais dos
anos 20 aos 40, conforme estes estudos intentam mostrar, mas na atualidade continua a
contribuir com a produção teatral brasileira, empreendendo trabalhos de refinado apuro
técnico e de importante conteúdo crítico não só em edifícios teatrais, mas em museus e
shows musicais. Quanto à produção cênica esta possui estimado valor porque reúne
técnicos, atores e diretores em realizações nas arquiteturas teatrais que constituem
memórias da cidade e que devem ser apropriadas com trabalhos artísticos que
promovam conhecimento, de acordo com a missão destes edifícios, pois parte destes
teatros pertence ao poder público, os quais devem fornecer à população o acesso à arte e
à cultura de qualidade, portanto artistas que têm o conhecimento técnico e filosófico
sofisticado destes edifícios teatrais como é o caso de Helio Eichbauer precisam ter sua
obra poética divulgada, que sirva de material de formação de novos cenógrafos,
figurinistas e iluminadores para que os espaços teatrais, espaços de projeção de
conhecimento, mas também de sonhos, devaneios e construções poéticas sejam
valorizados e possam contar com um número cada vez maior de profissionais não só
capacitados tecnicamente, mas com uma formação capaz de empreender a captação de
uma platéia cada vez mais ampla.
1 O telescópio aristotélico ou a Idéia do Estilo Pomposo... Explicada segundo os conceitos do Divino
Aristóteles, apud HOCKE, Gustave R. O maneirismo: o mundo como labirinto, p. 23. 2 “Será, pois preciso refletir sobre os dados da recepção e sobre a metodologia global que se oferece a
nós para tratar de maneira coerente a massa de informações recolhidas pelo espectador; método de
inspiração fenomenológica já que se interessa pelo modo como esse espectador vive e prova ‘o mundo,
em vez de objetivá-lo, de abstraí-lo e de conceituá-lo’”. Esta é uma questão de olhar, e até mesmo de
olhares plurais, que o espectador põe, mais ou menos conscientemente e longamente, sobre a
representação. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. Trad. Sérgio Sálvia Coelho. 2ª ed. Perspectiva,
2008, p. 213. 3 A respeito dos estudos dos manifestos modernistas, consultar MARQUES, Ivan. Modernismo em
revista: estética e ideologia nos periódicos dos anos 1920. Casa da Palavra, 2013. 4 “...em média, a revelação de um autor importante por ano. Todos eles tinham em comum a militância
teatral e a posição nacionalista”... “A grande originalidade, em relação ao TBC e tudo o que este
representava, era não privilegiar o estético, não o ignorando, mas também não o dissociando do panorama
social em que o teatro deve se integrar”. PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. 3ª ed.
Perspectiva, 2008, p. 61 e 63. 5 De um lado, a história dos Mr. Jones (personagem americano da peça), do outro, os Jujubas (massa de
marginais, representada na peça não por um ser humano, mas por um cachorro), e não sua história... O
Rei da vela de 1933, escrita por uma consciência dentro dos entraves que são os mesmos de 1967, mostra
a vida de um país em termos de show, teatro de revista e opereta... e assim de tudo emana um fedor de um
imenso, de um quase cadáver gangrenado... História não há. Há representação de história. Muito cinismo
por nada. CORRÊA, José Celso Martinez. O rei da vela: manifesto do Oficina apud O Percevejo. Revista
de teatro, crítica e estética – Ano 4 – 1996 – Departamento de Teoria do Teatro – Programa de Pós-
Graduação em Teatro – UNIRIO. Modernistas no Teatro Brasileiro I – Oswald de Andrade. O Rei da
Vela, p. 5 e 6. 6 Em 1992 Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade problematizou a questão da
identidade nacional, contrariando a idéia de totalidade, porém para Mário de Andrade em princípios do
século XX, esta identidade se constituía de um ponto de vista unívoco e com as seguintes palavras
afirmou: “O nacionalismo só pode ser admitido consciente quando a arte de um povo ainda está por
construir. Ou quando perdidas as características básicas por um excesso de cosmopolitismo ou de
progresso a gente carece buscar nas fontes populares as essências evaporadas”. ‘Quanto ao regionalismo,
é incisivo’: “é uma praga antinacional”. Apud AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo. 1ª ed.
1975. Ed. 34; Edusp 2003, p. 313. 7 “[...] como deve ser na ciência a seguir à geometria... Depois da superfície, pegamos nos sólidos em
movimento, antes de nos ocuparmos deles em si. Ora, o que está certo é que, após a segunda dimensão, se
trate da terceira, que é a dos cubos e a que possui profundidade... e os investigadores precisam de um
diretor, sem o qual não farão descobertas... o estudo metódico da dimensão da profundidade... pondo após
a geometria a astronomia, por ser o movimento das profundidades. PLATÃO. A República. Editora
Martim Claret, 2000. Livro VII, fragmentos de 528 e 529a-e (p. 225 e 226) 8 FARIA, João Roberto (org.) História do teatro brasileiro. Perspectiva: Edições SESCSP, 2013, p. 185.
9 “É importante lembrar que a cenografia no Rio de Janeiro originou-se da contribuição da pintura. Num
primeiro momento, o chamado pano de boca, que é a cortina que fecha a boca do proscênio, terá seu lugar
de destaque, sendo confeccionado por pintores célebres, comumente estrangeiros. Mais tarde, como os
personagens necessitassem de uma ambientação cenográfica para que a trama se desenvolvesse, foi
dedicada uma maior atenção ao painel de fundo e laterais.” ROCHA, Renata Cristina Magalhães. A
cenografia carioca: aspectos de uma evolução in: Cadernos de pesquisa em teatro – Série ensaios. 5 – O
edifício teatral através da crônica: Rio de Janeiro 1880-1940. Os gêneros teatrais, a cenografia, a dança
e o canto lírico integrando a arquitetura. Coordenação Evelyn Furquim Werneck Lima, 1999, p. 64. 10
“Parte do cenário composta por dois bastidores ou pernas ligados a uma bambolina, numerado a partir
dos reguladores e composto para construir o efeito desejado com a perspectiva.” BRANDÃO, Tania.
Vassouras e purpurinas – Breves notas sobre a cenografia no Teatro de Revista brasileiro in: O
Percevejo. Revista de teatro, crítica e estética – Ano 12 – nº 13 – 2004 – Departamento de Teoria do
Teatro – Programa de Pós-Graduação em Teatro – UNIRIO. O Teatro de Revista no Brasil, p. 11. 11
“[...] projetar o personagem — sem que necessariamente se limite a um gesto realista. Além disso, o
Gestus brechtiano é social, isto é, a exteriorização física é um signo da condição social do personagem.
Ele tem uma dimensão crítica — e de crítica da sociedade, mais do que do indivíduo. A tarefa era a de
determinar o Gestus social de cada personagem.” Depoimento de Luís Carlos Maciel in: PATRIOTA,
Rosangela. A cena tropicalista no Teatro Oficina de São Paulo. In:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-90742003000100006&script=sci_arttext 12
A respeito das cenografias e arquiteturas teatrais do século XVI aos dias atuais consultar LIMA, E. F.
W. e CARDOSO, R. J. B. Arquitetura e teatro. O edifício teatral de Andrea Palladio a Christian de
Portzamparc. 13
Op. Cit. p. 4. 14
[...] um movimento surdo que propaga e inventa o contato imperioso de uma infecção, de uma colisão
ou então de um disparo... uma figuração em ato que vem, aos poucos ou de repente, fazer se tocarem dois
elementos até então separados (ou separados segundo a ordem do discurso). DIDI-HUBERMAN,
Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Trad. Paulo Neves.
Editora 34, 2013 – 1ª edição, p. 198 e 199 15
“[...] eu, por mim, não posso pensar em nenhum outro estudo que faça a alma olhar para cima, senão o
que diz respeito ao Ser e ao invisível.” A República. Editora Martim Claret, 2000. Livro VII, fragmentos
de 529a-e (p. 226) 16
CORRÊA, José Celso Martinez. El sol rúbio in:
http://www.jornalismocultural.com.br/teatro/helio-eichbauer-zecelso.html 17
“A cenografia... É uma arte de metodologia, de tratados específicos, de construção de teatros, de palcos,
de máquinas, até os dias de hoje... Na realidade eu costumo dizer que eu fui aluno de Pitágoras e
freqüentei a Biblioteca de Alexandria... Foi uma formação humanística.” CHRONOS. UMA
PUBLICAÇÃO CULTURAL DA UNIRIO. Helio Eichbauer. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2006 - Nº1, p. 99. 18
[...] “Isso mostra”, no sonho, porque, “isso se apresenta”... “isso olha” em razão da própria presença
visual do apresentado... num quadro de pintura figurativa, “isso representa” e igualmente, ali se olha e nos
olha... a imagem ali se rasga entre representar e se apresentar... me atinge. Op. Cit. p. 205 19
“Que será de nós, que somos as vozes da sociedade em transformação, portanto os seus juízes e guias,
se deixarmos que outras forças influam e embaracem a marcha que começa? O inimigo ainda está vivo e
age. [...] É preciso que saibamos ocupar o nosso lugar na história contemporânea. Num mundo que se
dividiu num combate, só não há lugar para neutros ou anfíbios. [...] O papel do intelectual e do artista é
tão importante hoje como o do guerreiro de primeira linha.” Ponta de lança. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira in: O Percevejo, nº 4, 1996. Um lugar na história contemporânea: o teatro ideológico de
Oswald de Andrade. CARVALHO, Ana Maria de Bulhões. (p. 35)
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Ed. 34; Edusp 2003.
Cadernos de pesquisa em teatro – Série ensaios. 5 – O edifício teatral através da
crônica: Rio de Janeiro 1880-1940. Os gêneros teatrais, a cenografia, a dança e o
canto lírico integrando a arquitetura. Coordenação Evelyn Furquim Werneck Lima,
1999.
CHRONOS. UMA PUBLICAÇÃO CULTURAL DA UNIRIO. Helio Eichbauer. Rio de
Janeiro: UNIRIO, 2006 - Nº1
CORRÊA, José Celso Martinez. El sol rúbio.
http://www.jornalismocultural.com.br/teatro/helio-eichbauer-zecelso.html
DID-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma
história da arte. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013 (1ª ed.)
EICHBAUER, Helio. Cartas de Marear: impressões de viagem, caminhos de criação.
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
FARIA, João Roberto (dir). História do Teatro Brasileiro, vol 2: do modernismos às
tendências contemporâneas. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2013
HOCKE, Gustave René. Maneirismo: o mundo como labirinto. Trad. Clemente Raphael
Mahl. 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2005 (Debates; 92)
MARQUES, Ivan. Modernismo em revista: estética e ideologia nos periódicos dos anos
1920. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
O PERCEVEJO. Modernistas no Teatro Brasileiro I – Oswald de Andrade O rei da
vela. Revista de teatro, crítica e estética. Ano 4, nº 4, 1996.
O PERCEVEJO. O teatro de revista no Brasil. Revista de teatro, crítica e estética. Ano
12, nº 13, 2004.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. Trad. Sérgio Sálvia Coelho. 2ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2008. (Estudos; 196)
PLATÃO. A República. Editora Martim Claret, 2000.
PEREIRA, Regilan Deusamar Barbosa. Helio Eichbauer e a varinha de Próspero.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, UNIRIO 2013.