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OS ESTUDOS DE LITERATURA COMPARADA NA CONSTRUÇÃO DA APRENDIZAGEM DA LÍNGUA Dogomar González Baldi “Ensinar é apreender duas vezes”. Jean Joubert (Francia, 1754 – 1824) RESUMEN: El presente trabajo tiene por objetivo divulgar el resultado de la experiencia de la aplicación de los principios y postulados de la Literatura Comparada en la construcción del aprendizaje de la Lengua Española en dos escuelas municipales de Cachoeirinha, Rs. El artículo pretende compartir las metodologías aplicadas en clase que prescinden del uso de la GTN. En efecto, los textos de enseñanza de Español existentes en el mercado, en la mayoría de los casos, no contemplan la realidad sociocultural brasilera. Teniendo en vista esta situación, el autor decidió aplicar una sistemática de cuño antropológicosocial, con la elaboración de material propio, para alcanzar un saber que haga sentido a la realidad del discente. El referencial teórico aplicado cuenta con las propuestas de Lev Vigotsky, de Edgard Morin, de la Pedagogía profana de Jorge Larrosa, y por fin las teorías y principios de la Literatura Comparada acuñados por Mikhail Bakhtin y Henry H. H. Rimack. Estas visiones se complementan con la óptica y vivencia del propio autor. PALABRAS CLAVE: literatura comparada, lengua española, escuela municipal. RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo divulgar o resultado da experiência da aplicação dos princípios e postulados da Literatura Comparada na construção da aprendizagem da Língua Espanhola em duas escolas municipais de Cachoeirinha, RS. O artigo pretende compartilhar as metodologias aplicadas em aula que prescindem do uso da GTN. Com efeito, os textos de ensino de Espanhol existentes no mercado, na maioria dos casos não contemplam a realidade sociocultural brasileira. Tendo em vista esta situação, o autor decidiu aplicar uma sistemática de cunho antropológico social com a elaboração de material próprio, para atingir um saber que faça sentido à realidade do discente. O embasamento teórico aplicado conta com as propostas de Lev Vigotsky, de Edgard Morin, da Pedagogia profana de Jorge Larrosa e das teorias e princípios da Literatura Comparada cunhados pelos filósofos e teóricos Mikhail Bakhtin e Henry H. H. Rimack. Estas visões se complementam com a ótica e vivência do próprio autor. PALAVRAS-CHAVE: literatura comparada, língua espanhola, escola municipal. Um preâmbulo geopolítico. Professor Esp. e Ms. em Língua e Literaturas da Língua Espanhola e Doutorando em Teoria da Literatura com ênfase em Literatura Comparada, UFRGS; professor concursado da rede municipal de Cachoeirinha e professor de UNIDIOMAS/UNILASALLE, Canoas.

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OS ESTUDOS DE LITERATURA COMPARADA NA

CONSTRUÇÃO DA APRENDIZAGEM DA LÍNGUA

Dogomar González Baldi

“Ensinar é apreender duas vezes”.

Jean Joubert (Francia, 1754 – 1824)

RESUMEN: El presente trabajo tiene por objetivo divulgar el resultado de la experiencia de la aplicación de los principios y postulados de la Literatura Comparada en la construcción del aprendizaje de la Lengua Española en dos escuelas municipales de Cachoeirinha, Rs. El artículo pretende compartir las metodologías aplicadas en clase que prescinden del uso de la GTN. En efecto, los textos de enseñanza de Español existentes en el mercado, en la mayoría de los casos, no contemplan la realidad sociocultural brasilera. Teniendo en vista esta situación, el autor decidió aplicar una sistemática de cuño antropológicosocial, con la elaboración de material propio, para alcanzar un saber que haga sentido a la realidad del discente. El referencial teórico aplicado cuenta con las propuestas de Lev Vigotsky, de Edgard Morin, de la Pedagogía profana de Jorge Larrosa, y por fin las teorías y principios de la Literatura Comparada acuñados por Mikhail Bakhtin y Henry H. H. Rimack. Estas visiones se complementan con la óptica y vivencia del propio autor. PALABRAS CLAVE: literatura comparada, lengua española, escuela municipal.

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo divulgar o resultado da experiência da aplicação dos princípios e postulados da Literatura Comparada na construção da aprendizagem da Língua Espanhola em duas escolas municipais de Cachoeirinha, RS. O artigo pretende compartilhar as metodologias aplicadas em aula que prescindem do uso da GTN. Com efeito, os textos de ensino de Espanhol existentes no mercado, na maioria dos casos não contemplam a realidade sociocultural brasileira. Tendo em vista esta situação, o autor decidiu aplicar uma sistemática de cunho antropológico social com a elaboração de material próprio, para atingir um saber que faça sentido à realidade do discente. O embasamento teórico aplicado conta com as propostas de Lev Vigotsky, de Edgard Morin, da Pedagogia profana de Jorge Larrosa e das teorias e princípios da Literatura Comparada cunhados pelos filósofos e teóricos Mikhail Bakhtin e Henry H. H. Rimack. Estas visões se complementam com a ótica e vivência do próprio autor. PALAVRAS-CHAVE: literatura comparada, língua espanhola, escola municipal. Um preâmbulo geopolítico.

                                                             Professor Esp. e Ms. em Língua e Literaturas da Língua Espanhola e Doutorando em Teoria da Literatura com ênfase em Literatura Comparada, UFRGS; professor concursado da rede municipal de Cachoeirinha e professor de UNIDIOMAS/UNILASALLE, Canoas. 

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Com a implosão e posterior fim da antiga União de Repúblicas Socialistas Soviéticas

em 1989, que determinou o fim do sonho tanto socialista como comunista, a geopolítica

mundial passou por uma mudança radical e inesperada. Até então, o mundo era dividido

basicamente em dois grandes blocos econômicos, o comunismo estatal soviético e a economia

de mercado à imagem e semelhança dos Estados Unidos de Norte America. Três anos mais

tarde, no inicio dos anos noventa, após a assinatura dos Tratados de Assunção, Paraguay, se

cria o MERCOSUL (Mercado Comum do Cone Sul) sendo os seus países sociofundadores

Argentina, Brasil, Paraguay e Uruguay. Neste novo cenário mundial se consolidam aos

poucos quatro novos grandes blocos econômicos: o NAFTA, a Comunidade Econômica

Europeia, o MERCOSUL e o bloco asiático respectivamente.

Os três primeiros, por questões estratégicas e interesses do próprio império

expansionista norte-americano, reafirmaram o inglês como língua de moeda de troca

comercial, enquanto que o quarto e último optou pela a sua língua predominante: o espanhol.

Desta forma, o espanhol, que até o fim da década dos anos oitenta ostentava um discreto

quinto ou sexto lugar no ranking mundial de línguas faladas no comercio internacional,

passou a conquistar um segundo lugar em importância e destaque. Brasil, como único país da

América Latina não falante da língua de Cervantes, começou a estimular e incrementar a

oferta de cursos livres de Espanhol e a sua e lenta e progressiva inserção nos conteúdos

curriculares dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio estadual, municipal e

particular, fato este que culminou com a lei Nº 11.161 do 5 de agosto de 2005, do presidente

Luis Ignácio Lula da Silva que decretou a obrigatoriedade do ensino da Língua Espanhola na

redes de ensino públicas e privadas.

Apareceram assim em todo território brasileiro, - a través das editoras já existentes,

livros de ensino da Língua Espanhola como língua estrangeira, além dos importados e

geralmente vindos de Espanha -, com o afã e intuito de satisfazer a demanda não só da

aprendizagem do idioma, como também do conhecimento da sua própria cultura. Mas a

prática demonstraria que o seu enfoque, sistemática e conteúdos na contemplavam nem

consideravam a realidade socioantropológica imperante no Brasil. Com efeito, por falta de

experiência dos seus próprios autores, geralmente brasileiros ou autores espanhóis que nunca

pisaram Latino América nem muito menos Brasil, os conteúdos pecavam por farto gramático

normativos, dando ênfase à nomenclatura ou quando não de divulgadores de usos, costumes,

tempos e lugares que não faziam sentido ao discente. O que deveria ser um intercâmbio

cultural horizontal se transformou num ensino de cunho positivista ou numa disciplina como

qualquer outra, sim leia-se bem: disciplina. Os alunos eram e ainda são, salvo honrosos e

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minoritários casos de cursos livres, preparados não para gerar um entusiasmo de conhecer e

dominar basicamente uma segunda língua, e sim para saber realizar exercícios à moda dos

vestibulares de ingresso à universidade. Mas as pessoas precisam escutar, falar e poder expor

as suas inquietudes, expectativas, desejos, sonhos em lugar de saber e dominar a gramática.

A Literatura Comparada em sala de aula?

Clovis de Azevedo y Krug (HERON DA SILVA, 1999) no início do novo século já

levantavam as reflexões e questões sobre os conteúdos curriculares a serem montados nos

estabelecimentos educativos brasileiros face às necessidades viradas em regras ditadas pelo

neoliberalismo, a globalização e o discreto aparecimento de um novo jeito de se repensar

como ser humano perante o uso extremo da tecnologia de ponta dentro e fora do corpo

humano: o pós humanismo. Nas suas cavilações em contraposição ao novo conceito em

andamento para escola: a mercoescola, isto é a escola voltada aos interesses do mercado,

sugerem:

Para a Administração Popular, democratizar é construir participativamente um projeto de educação de qualidade social, transformador e libertador, em que a escola é um laboratório de prática, de exercício de conquista de direitos; de formação de sujeitos históricos autônomos, críticos e criativos (grifo nosso). Estes cidadãos plenos, identificados com os valores éticos que sejam voltados à construção de um projeto social solidário, devem ter na prática da justiça e da liberdade, no respeito humano, nas relações fraternas entre homens e mulheres e, na convivência harmônica com a natureza, o centro de suas preocupações (HERON DA SILVA, 1999, p. 11).

Esta proposta, que alberga no seu seio a marca indiscutível de Paulo Freire, propicia a

intervenção de outros paradigmas para construção de saberes, outorgando assim carta franca

até para os Estudos Avançados da Literatura Comparada para fornecer, na sua medida, a sua

contribuição em sala de aula, como elemento provocador de inquietudes e equacionar

incertezas. Para tal empresa foi necessária a posta em prática dos postulados de Mikhail

Bakhtin (FIORIN, 2006) no que diz respeito à questão do discurso e a sua procedência de

estar impregnado de outros discursos anteriores à sua própria realização, sejam estes

simbólicos ou não simbólicos e ainda contendo nos seu estrato mais profundo uma natureza

ideológica, como também grau de intertextualidade, interdiscursividade e inter e

multidisciplinaridade. Em vista do exposto, é possível, como levanta psteriormente Henry

Remack (BITTENCOURT, 2005) na reavaliação dos estudos literários comparatistas, a

inclusão de relações e confrontações entre a literatura, as artes, as ciências exatas, as ciências

biológicas, as ciências sócias e as religiões, abrindo assim um leque vastíssimo de

possibilidades.

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O teor sociointeracionista dos teóricos acima mencionados nos reporta até mais um

outro sociointeracionista contemporâneo deles Lev Semyonovitch Vygostky, teórico da

formação social da mente que defende a existência de uma zona de desenvolvimento

proximal, um espaço natural existente entre o educador e o educando que propicia uma troca

horizontal de saberes, aptidões e capacidades a serem desenvolvidas, respeitando as

limitações e perfil de cada aluno no seu tempo e no seu espaço:

Ela (a zona de desenvolvimento proximal) é a distancia entre o nível de desenvolvimento real, qu se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1991, p. 99).

Com efeito, para o pensador russo, o aprendizado humano, de fato, pressupõe uma

natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida

intelectual daqueles que as cercam. Para atingir o sucesso de tal empresa, o teórico propôs

ciclos de aprendizagem divididos em três fases, ou ciclos propriamente ditos: a fase da

infância, de 6 a 8 anos; a fase da pré-adolescência de 9 a 12 anos; e a fase da adolescência, de

13 a 15 anos. Para Hernández e Ventura (1998) a noção de zona de desenvolvimento proximal

no só favorece as interações na sala de aula como também fomenta uma proposta de educação

que contempla a diversidade e ainda, rematam os teóricos, a escola nesta linha de ação

valoriza, como atitudes básicas, a autonomia pessoal, o senso crítico, os valores laicos e o

sentido da democracia e da participação.

Por sua vez, o filósofo francês Edgard Morin (2002) não esconde a sua afinidade com

o comparatismo ao defender e reconhecer a precedência da prática do exercício de diálogos

entre especialidades, de fomentar a abdicação da ortodoxia das teorias e conceitos fixos e de

pregar o constante nomadismo das ideais e, principalmente, de deixar emergir a

complementaridade entre as artes, a literatura, a ciência e a filosofia:

Para que haja um progresso de base no século XXI, os homens e as mulheres não podem mais ser brinquedos inconscientes não só de suas ideias, mas das próprias mentiras. O dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez (grifo nosso) (MORIN, 2002, p. 33).

Mas Morin não para por ai, ele ainda aposta nas incertezas ao ponto de expressar que é

preciso aprender a enfrentar a incerteza, posto que vivemos em uma época de mudanças, em

que os valores são ambivalentes e em que tudo é ligado; portanto a educação deve se voltar

para as incertezas ligadas ao conhecimento:

Dessa forma, a realidade não é facilmente legível. As ideias e teorias não refletem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de maneira errônea. Nossa realidade não é outra senão a nossa ideia de realidade. Por isso, importa não ser realista no

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sentido trivial (adaptar-se ao imediato), nem irrealista no sentido trivial (subtrair-se às limitações da realidade); importa ser realista no sentido complexo: compreender a incerteza do real, saber que há algo possível ainda invisível no real (MORIN, 2002, p. 85).

Num modelo semelhante e provocador de incertezas, que provoca antipatia e rejeição

em mais de um professor, Larrosa (2002) defende uma outra pedagogia: a pedagogia profana,

insegura, imprópria, onde as respostas não seguem às perguntas, o saber não segue à dúvida e

as soluções não comungam com seus problemas, onde a incerteza se transforma em palavra de

honra, enquanto que o professor tem como principal premissa não dar a ler ao discente o que

se deve ler, mas sim dar a ler o que se deve: ler. A ideologia de autogestão que conduz a um

anarquismo libertário não deixa de se fazer presente nos modelos alternativos de ambos os

pensadores para além do modelo marxista.

Agambem (2010) por sua vez, arisca uma terminologia mais pagã e contestaria para

confrontar as bases do sistema imperante: a profanação, profanar para não só rebater a miopia

positivista do modelo social ocidental, cristão e capitalista e o seu decorrente paradigma de

construção de saberes e conhecimentos, como também para estimular a transgressão, dar um

novo uso às coisas, a busca da libertação da asfixia do consumismo, resgatar o pré-individual

de cada um de nós e principalmente devolver o que está consagrado ao livre uso dos homens.

Para o filósofo italiano profanar na significa simplesmente abolir e cancelar as separações,

mas aprender a fazer delas um novo uso e até brincar com elas:

Profanar significa, assim, tocar no consagrado para libertá-lo (e libertar-se) do sagrado. Contudo, a profanação não permite que o seu antigo possa ser recuperado na íntegra, como se pudéssemos apagar impunemente o tempo durante o qual o objeto esteve retirado do seu uso comum. O que se pode fazer é apenas um novo uso (AGAMBEM, 2007, p.18).

Estas formulações e embasamentos teóricos possibilitaram criar e abrir espaço para a

discussão de um conteúdo curricular livre, soberano e independente, a partir de recortes

cotidianos e munidos de sentido comum e prático para o aluno, contemplando a sua realidade

socioantropologica, deixando de lado o verticalismo monolítico e as amarras dos vícios do

uso da nomenclatura da gramática normativa e prescritiva.

Nesta linha de ensino alternativo, hierarquizou-se na aula de Espanhol a importância

da água nos corpos e no planeta em vez de declinar mecanicamente o verbo venir, que pela

sua natureza apresenta uma irregularidade morfológica, como também se repensou a

classificação das palavras conforme sua função para algo mais humano:

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- em vez de pronomes, pronombres, o estudo do nome, nombre, a través da bíblia, do

xamanismo, enquanto entes, entidades, espíritos que povoam o Universo: hombre, mujer, sol,

luna, etc.

- em vez de adverbios (cujo significado quase professor nenhum sabe explicar e exemplificar)

e adjetivos, percepção sensorial, o modo como enxergamos o mundo circundante através da

perspectiva do eventual observador;

- em vez de preposiciones, o complexo espaço-tempo, a noção de movimento continuo e o

devir e sucessão do tempo, lugares, direções, navegações;

- em vez de antinomia, o Ying e Yang: hombre x mujer, lindo x feo, alto x bajo, cerca x lejos;

- em vez de Tiempos Verbales, (o horror patente estampado no rosto do discente) estados de

consciência afetiva: Passado, lembranças; Futuro, vontade e fé; Subjuntivo, a possibilidade,

etc. Mas ainda assim, a profanação ainda aparenta discrição e timidez para coloca-la num

lugar outrora emancipado cujas escolas de periferia detêm autonomia absoluta para a

usinagem de saberes.

Cachoeirinha uma emancipação quarentona e as EMEF Tiradentes e Natálio Schlain,

alvos da Literatura Comparada em sala de aula de Espanhol.

O município de Cachoeirinha, outrora a periferia da periferia de Gravataí, emancipado,

e reconhecido como tal em 15 de maio de 1966, alberga em torno de 118 mil habitantes numa

superfície territorial de 44 km2 aproximadamente. Possui 21 escolas municipais de ensino

fundamental, EMEF, e 11 escolas de ensino infantil, EMEI. Com a construção do seu

shopping center, a meados dos anos noventa e a consequente chegada de um supermercado de

grande porte, - o que como efeito dominó acarretou a posterior vinda das principais casas de

eletrodomésticos de Porto Alegre -, o município se libertou do estigma de cidade dormitório

para passar a ter e desenvolver vida própria.

O autor do artigo em caráter de morador há vinte anos no município e há quatro anos

professor concursado da intendência, conseguiu viabilizar a inserção da Literatura Comparada

com a aplicação do PPP, projeto político pedagógico. O PPP é instrumento que organiza

coletivamente entre todos os segmentos escolares (direção, corpo docente, alunos, pais dos

alunos e funcionários), os afazeres da escola, como as diretrizes e normas que regulam as

funções pedagógicas, metodologia e sistema de avaliação. Este último quesito, cabe destacar,

prescinde do uso da nota para dar espaço aos pareceres. Adjunto ao PPP, existe também o

Conselho Escolar criado em 2004, formado por representação dos segmentos acima

mencionados cuja função é consultar, deliberar e fiscalizar a concretude dos projetos

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propostos. Cada escola tem o seu próprio PPP, tornando assim cada estabelecimento de

ensino autônomo, conforme as suas especificidades e necessidades socioculturais.

Por outro lado, para complementar o uso do PPP, existe cada cinco anos a pesquisa

socioantropologica de campo com a qual se avalia o entorno e contexto onde mora o aluno,

no que se refere a condições de moradia, núcleo familiar, ingresso familiar e expectativas.

Com o aval destas ferramentas, o autor elaborou um projeto de conteúdo curricular alternativo

e próprio a partir de uma metodologia e sistemática fora dos padrões que inspiram e

transmitem estabilidade e confiança àquele professor que ainda se identifica e aposta no texto:

- uso e aplicação da Gramática Tradicional Normativa (GTN) da Língua Espanhola abolidos

em sala de aula;

- abolição de textos e provas;

- uso obrigatório de caderno de anotações como ferramenta material de registro e avaliação;

- uso de material pedagógico e de apoio didático próprios, elaborados pelo autor, prescindindo

dos textos existentes no mercado por não contemplar a realidade socioantropológica

brasileira;

- construção permanente da compreensão oral dentro e fora da sala de aula para provocar o

segundo passo: a produção oral;

- negociação horizontal intercultural (sociointeracionismo) entre nativo e imigrante (brasileiro

e hispanofalante uruguaio, neste caso);

- estímulo permanente às habilidades artísticas através do desenho, recorte, pintura e dobra

dos conteúdos trabalhados.

- conteúdo curricular livre e temático que faça sentido para o discente e a sua família, mas em

consonância com o resto do coletivo dos professores.

As EMEF Tiradentes e Natálio Schlain serviram de cenário para por em prática os

fundamentos da Literatura Comparada na elaboração curricular da Língua Espanhola nos três

trimestres. A EMEF Tiradentes, que recentemente completou os seus primeiros trinta anos de

serviço escolar nos bairros Anair e Fátima, a partir do ano 2001 abandonou o regimento

outorgado e passou a ser ciclada, isto é, incorporando os postulados de Vygostky, e tornando-

se pioneira no município, com um desempenho reconhecido pelas autoridades da SMED,

enquanto que a EMEF Natálio Schlain, também aniversariante de 30 anos, ainda continua

seriada.

Por se localizar na periferia, ambas as escolas atendem um faixa social em situação de

risco e vulnerabilidade, fato este que gera um aluno com um perfil preocupante:

- carência do núcleo familiar;

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- carência afetiva;

- autoestima baixa;

- conflitividade familiar;

- desconhecimento de limites e falta de valores éticos;

- indisciplina e comportamento violento;

- abuso sexual, abuso sexual familiar;

- alimentação inadequada e insuficiente;

- portadores de necessidades e atenções especiais;

- processo de alfabetização inconcluso;

- faixa etária entre 7 a 15 anos;

- e falta de reconhecimento da imagem e atribuições do professor.

Perante esta realidade social, a escola adquire outro status além da sua clássica função:

para muitos, a escola é o retorno ao útero materno, enquanto que para tantos outros é a

descoberta do próprio, pois a escola vira um lugar seguro, um espaço lúdico, de respeito e

afetividade. E é nestas condições que o ensino clássico, positivista, “certinho”, expositivo,

minado de datas, lugares, heróis, nomenclaturas, causas e consequências não têm como se

manter em pé, nem muito menos dar bons frutos.

Com a graça do PPP e as premissas da Literatura Comparada, o conteúdo curricular de

2012 contou com o beneplácito, curiosidade e identificação dos alunos de ambas as escolas. O

mesmo foi tão eclético como cotidiano e conseguiu contemplar, ainda de longe, cobranças

básicas da gramática tradicional normativa, sendo que a construção e reprodução da imagem

acústica foi o fator predominante e preponderante. Os tópicos foram:

- mi família;

- mi casa;

- el barrio;

- la ciudad;

- medios de transporte;

- la gripe de los chanchos, H1N1, cuidados y prevención;

- las Olimpíadas, simbología de los aros, el monte Olimpo, deportes;

- “Torear no sirve” (bullying), campaña contra la humillación y provocación;

- símbolos ancestrales: la raya, la cruz, la cruz gamada, el espiral, el círculo;

- mitos y leyendas de Eurasia, dioses, titanes y monstruos: dragón, leviatán, kraken, cíclope,

hidra, rock, el lobisón;

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- mitos y leyendas de Brasil, el Mapinguarí, megaterio, vestigios de literatura oral que

confirman la coexistencia de la megafauna con el paleondígena; el Bep Kororoti, un viajero

del espacio entre los indígenas del alto Amazonas: “Vino del cielo en un bote, enseñó técnicas

y se marchó…”

- mitos y leyendas de Rio Grande do Sul: la mula sin cabeza, la salamandra de Xarao, Boitatá;

- el gaucho y su cultura, la pampa;

- la revolución de los Farrapos: cuándo, quiénes, por qué;

- RS, datos: población, municipios, etnias, comidas, bebidas, música;

- POA, datos: población, barrios y lugares típicos;

- Cachoeirinha, datos: población, barrios y lugares típicos;

- Brasil, 100 siglos de Conciencia Negra: 10.000 A. C., Lucía era negra y vivió y convivió en

con la megafauna en el actual territorio de Minas Gerais;

- Cultura Negra: la lanza, el escudo, el bongó, la choza, la máscara y el pilón; Adán y Eva

eran negros?...

- la Navidad y Papá Noel; el trineo tirado por rinoceronte;

- Jesús de Nazareth, nacido en Belén, en marzo del año -2, hijo de José, carpintero y María,

ama de casa; carpintero, filósofo, poeta y revolucionario, ejecutado por los romanos.

Os resultados obtidos desta experiência foram além das expectativas esperadas no que

diz respeito à assimilação do Espanhol. Com efeito, a sistemática propiciou descobrir em sala

de aula grandes talentos para as artes, desenho, pintura, como, também, tradutores natos pela

sua espontaneidade voluntaria, caso do aluno Marcos, segundo ciclo, EMEF Tiradentes: “Sor,

o senhor sabe como se diz Pânico na TV? Pânico en la tevé”; e alunos com o poder de

relacionar eventos e lugares e obter deduções que transitam nos domínios do multidisciplinar.

Conclusões ou observações?

Esta experiência foi apresentada, primeiro em El Primer Encuentro Uruguayo de

Profesores de Español Lengua Extranjera EUPELE, em Montevideo, em setembro; logo no V

Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada, Fazeres indisciplinados, em UFRGS,

em outubro; no XI Forum FAPA CONHECIMENTO: fazendo a diferença, em novembro; e

por último na XI Mostra Científica de Trabalhos Escolares de Cachoeirinha, em novembro.

Houve grande aceitação e beneplácito nos quatro eventos, como também houve alguns

acadêmicos oriundos da Literatura Comparada que não conseguiram entender nem assimilar o

espírito da questão.

Como tudo está em constante dinâmica, seria aventurado falar em conclusões

prematuras, pois o que hoje pode resultar benéfico, amanhã tal vez não seja. Porém sim pode

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se levantar que o ensino da Língua Espanhola não deve ser visto ou considerado como mais

uma disciplina como história ou geografia, e sim como uma troca socioantropológica, um

exercício dialógico permanente entre alteridades, prestigiando o outro, uma aprendizagem

passível de ser estimulada e criada a partir de outras disciplinas ou matérias, como história,

geografia, religião, artes, pela procedência do discurso intertextual e multidisciplinar, saindo

assim da órbita da dependência e cobranças positivistas da gramática tradicional normativa.

Os alunos de Espanhol, por enquanto, não têm bem claro que o que é articulo definido,

articulo indefinido, que são os heterosemánticos, heterotónicos, heterogenéricos, o Pasado

Perfecto Compuesto ou os antónimos, mas já tem uma ideia que no houve gaúchos em RS,

que o setenta por cento do corpo humano é água, que havia negros em Brasil antes d serem

trazidos de África em condição de escravos e que a ponte do rio (lago) Guaíba se chama

Presidente Getulio Vargas.

Fig. 1

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Fig. 2

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Fig. 3

BIBLIOGRAFIA

AGAMBEM, Giorgio. Profanações. São Paulo: Editorial Boitempo, 2007. BITTENCOURT, GILDA Neves da Silva. A literatura comparada diante dos avanços tecnológicos. in: JOBIN, José Luís et.al. (Org.) Sentidos dos lugares. Rio de Janeiro: ABRALIC, 2005. DA SILVA Heron (Organizador). Século XXI: Qual conhecimento? Qual currículo? Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1999. DE CASTRO, Gilberto; FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Ed. UFPR, 3º edição, 2001. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. HERNÁNDEZ, Fernando; VENTURA, Montserrat. A organização do currículo por projetos de trabalho. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul, 1998 LARROSA, Jorge. Pedagogia profana. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessário à educação do futuro. São Paulo: Editora Cortez, 5ª ed., 2002. VYGOTSKY, Lev Semyonovich. Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 4º ed. 1991.