os mitos do ecomuseu entre a representac
TRANSCRIPT
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
1/23
ANOV
II
2014
NMERO6
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
2/23
Nmero6 2014
Instituto Brasileiro de Museus
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
3/23
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
4/23
4Revista MUSAS 2014 N6
Presidenta da RepblicaDilma Rousse
Ministra da CulturaMarta Suplicy
Presidente do Instituto Brasileiro de MuseusAngelo Oswaldo de Araujo Santos
Diretor do Departamento de Processos MuseaisJoo Luiz Domingues Barbosa
Diretora do Departamento de Difuso, Fomento e Economiade MuseusEneida Braga Rocha de Lemos
Diretor Interino do Departamento de Planejamento e GestoInternaMarcelo Helder Maciel Ferreira
Coordenadora Geral de Sistemas de Informao MusealRose Moreira de Miranda
Procuradora-chefeEliana Alves de Almeida Sartori
Coordenador Subsitituto de Pesquisa e Inovao MusealSandro dos Santos Gomes
Conselho EditorialAngelo Oswaldo de Araujo Santos (presidente), Mrio Chagas,Hugues de Varine, Maria Clia Teixeira Moura Santos, MrioMoutinho, Myriam Seplveda dos Santos, Ulpiano Bezerra deMenezes
Conselho ConsultivoCristina Bruno, Denise Studart, Francisco Rgis Lopes Ramos,Jos Reginaldo Santos Gonalves, Jos Rui Guimares Mouro,Lucia Hussak van Velthem, Luciana Seplveda Kptcke, MagalyCabral, Marcio Ferreira Rangel, Marcus Granato, Maria ReginaBatista e Silva, Marlia Xavier Cury, Regina Abreu, Rosana Andra-
de Dias do Nascimento, Telma Lasmar Gonalves, Teresa CristinaScheiner, Thais Velloso Cougo Pimentel, Zita Possamai
Instituto Brasileiro de Museus - Ibram
Endereo:Instituto Brasileiro de MuseusSBN, Quadra 2, lote 8, bloco N, Edifcio CNC IIIBraslia/DFCEP: 70040-020
E-mail:[email protected]
Pgina da Internet:www.ibram.gov.br
Os direitos autorais das fotos esto reservados. Todos os esforosforam realizados a m de encontrar seus autores.
Copyright 2014 Instituto Brasileiro de Museus
EXPEDIENTE
Projeto EditorialMario Chagas e Claudia Storino
Coordenao Editoriallvaro Marins e Sandro dos Santos Gomes
Assistncia Editorial, Redao e Pesquisa IconogrfcaAndr Amud Botelho, Adriene do Socorro Chagas,Eneida Quadros Queiroz, Ramiro Queiroz Silveira,Vitor Rogerio Oliveira Rocha, Marijara Souza Quei-roz
RevisoMrcia Regina Lopes e Marielle Costa Gonalves
Projeto GrfcoMrcia Mattos
Diagramao e PaginaoIsabela Borsani e Sabrina Castro
Fotos da Capa e Contra-capa (Museu do Homemdo Nordeste) Andr Amud Botelho
EstagiriaSabrina Soares Beserra
MUSAS - Revista Brasileira de Museus e Museologia, n.6, 2014.
Braslia: Instituto Brasileiro de Museus, 2014
v. : il.
Anual.
ISSN1807-6149
1. Museologia. 2.Museus. 3.Cultura. 4.Cincias Sociais.
I. Instituto Brasileiro de Museus.
CDD-069
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
5/23
5Revista MUSAS 2014 N6
APRESENTAOAngelo Oswaldo de Araujo Santos
EDITORIAL
ARTIGOSPor uma experincia da intersubjetividade museal:
elementos para uma agenda de comunicao e
museus
Francisco S Barreto
Os mitos do ecomuseu: entre a representao e arealidade dos museus comunitrios
Bruno Brulon
Liberdade ou Resistncia? As representaes
institucionais do Memorial da Resistncia de So
Paulo
Maria de Ftima Costa de Oliveira e Priscilla Arigoni
Coelho
A releitura na arte contempornea
Fellipe Eloy Teixeira Albuquerque
Algo familiar: consideraes sobre as doaes emmuseus de arte brasileiros
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
Muito alm dos sambaquis: a publicizao da
Arqueologia na Alameda Brstlein/Joinville SC
Terezinha Barbosa, Ana Cladia Brhmuller, Priscila
Gonalves e Flvia C. Antunes de Souza
Potencialidades de musealizao na Amaznia: stio
arqueolgico Praa Frei Caetano
Brando, Belm-PA
Raiza Gusmo e Fernando Marques
A perspectiva compartilhada nos desenhos e
narrativas dos alunos do ensino fundamental de
Santo Antnio do Salto, Ouro Preto, MG
Andressa Caires Pinto, Luciane Monteiro Oliveira e
Ana Paula de Paula Loures de Oliveira
SUMRIO
Fios de memria: as primeiras funcionrias do MNBA
Ana Teles da Silva e Clarice Rodrigues de Carvalho
A relevncia das prticas avaliativas na rotina do
museus
Gabriela Ramos Figurelli
LITERATURA COISA DE MUSEUMuseus e acervos literrios: a experincia dos papi
de circunstncia no Museu-Casa de Cora Coralin
em Gois-GO
Clovis Carvalho Britto
ENTREVISTAMeu trabalho um trabalho militante
Entrevista com Raul Lody
MUSEU VISITADOMuseu do Homem do Nordeste: olhares mltiplo
sobre uma regio
Vitor Rogrio Oliveira Rocha
Entrevista com Renato Athias e Ciema de Mello
MUSELNEAOs dilogos entre o Ncleo Educativo do Museu d
Lngua Portuguesa e os professores
Rita Braga
(R)Evoluo no museu
Simone Flores Monteiro e Lucas Sgorla de Almeida
RESENHASO Sol do Brasil e os dilemas de um pintor francs no
trpicos
Museu e Museologia na perspectiva de Dominiqu
Poulot
Museu e Museologia: Dominique Poulot
6
5
182
164
146
8
210
28
224
46
248
64
258
266
76
92
108
122
134
270
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
6/23
30Revista MUSAS 2014 N6
E
m sua origem, o ecomuseu representou a utopia da
democratizao da memria, por meio de um mecanismo
museolgico inclusivo que tinha por objetivo principal o de dar apalavra queles que apenas raramente partilhavam da cena da Histria.
Esse museu de vanguarda, nas dcadas de 1970 e 1980, se voltava
para aquelas que haviam sido consideradas at ento as culturas dos
outros, culturas silenciadas e deixadas margem de qualquer tipo de
musealizao. O ecomuseu nasce no momento em que um novo discurso
sobre a ideia antropolgica de cultura formulado, o momento da
disseminao de uma contracultura, e da emancipao da cultura popular
na Europa e no exterior. Em regies do dito terceiro-mundo como a
Amrica Latina, novas expresses de museus que rompiam com o modelo
clssico importado pelo sistema colonial comeam a ganhar nfase e a
interrogar a museologia tradicional1. Esse novo modelo de museu,
ento, foi fundado nos preceitos de uma nova museologia, cujos pilares
ideolgicos precisariam ser provados na prtica museal que estava por vir.
O movimento da nova museologia nasceu na Frana, entre 26 de
fevereiro de 1982, quando uma assembleia da Associao Geral dos
Conservadores Franceses provocava uma reao de desconforto nos mais
progressistas, e consolidou-se no mesmo dia do ms de agosto de 1982,
quando um grupo de conservadores, apresentou, em Marselha, o estatuto
de uma nova associao que receberia o nome de Musologie nouvelle
et exprimentation sociale2(MNES). Esta, por sua vez, pouco lembrada
OS MITOS DO ECOMUSEU:
entre a representao e a realidade dosmuseus comunitrios
BRUNO BRULON
1. o caso, por exemplo, ainda no incio dos
anos 1960, da iniciativa do Museu Nacional
de Antropologia do Mxico, aclamado como
uma das mais consideradas instituies de
seu tempo, que adotou a lgica da aber-
tura do museu em direo s escolas. Suavasta construo, de arquitetura suntuosa,
inspirada nas tradies do Mxico antigo,
foi inteiramente consagrada difuso da
cultura meso-americana. Uma outra inicia-
tiva mexicana que ganharia o nome de Casa
del Museo teve seu projeto experimental
lanado na mesma dcada, focando-se em
reas populares de forma descentralizada,
e mobilizando diferentes pblicos a se con-
frontarem com os costumes dos habitantes
da poca pr-hispnica. MAIRESSE, Franois.
Le muse temple spetaculaire. Paris: Presses
Universitaires de Lyon, 2002. p.105.
2. Museologia nova e experimentao so-
cial. A MNES seria a verdadeira antecedente
do Movimento Internacional por uma Nova
Museolgia (MINOM), movimento que seria
ocializado em 1985, no II Atelier da Nova
Museologia, em Lisboa.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
7/23
31Revista MUSAS 2014 N6
na historiograa do movimento, se baseava em ideias j disseminadas
por alguns crticos da museologia francesa na poca, e sobretudo no
pensamento de Georges Henri Rivire e Hugues de Varine. Estes ltimos
se voltavam, na dcada de 1980, para o projeto desaador de produzir a
noo de ecomuseu primeiro na teoria e depois na prtica e para isso
tinham incontestavelmente um fundamento e objetivos sociais.
Assim, as novas ideias que sustentavam o modelo do ecomuseu
provinham, por um lado, da insatisfao de alguns pensadores franceses
em relao museologia tradicional, que comearam a colocar em prtica
museus com uma nalidade descentralizadora, e, por outro, da inuncia
de certas experincias de museus inortodoxos ou de vanguarda nas
ex-colnias. Em meio a este contexto de rupturas, um dos objetivos do
projeto ecomuseolgico era o de permitir que a memria recolhida
pelos etnlogos fosse restituda ao conjunto do grupo atravs de
diversos instrumentos, sendo a exposio de objetos materiais apenas
uma das expresses possveis3. Se mantendo como uma escola viva de
contestao, a nova museologia se tornou, particularmente na Frana,
como apontou Andr Desvalles, um movimento de resistncia contra
certos desvios de sentido daquilo que poderia ser a museologia e
a museograa4. Um dos objetivos daqueles que decidiram organizar
as novas ideias que se faziam perceber em museus no mundo todo,
formando uma ideologia prpria, era o de operar uma mudana profundadas mentalidades dos prossionais de museus, o que reetiria na prtica
museolgica.
O termo ecomuseu foi cunhado por Hugues de Varine, durante um
almoo em 1971, na avenue de Sgur, em Paris, onde estavam reunidos
alm dele, Georges Henri Rivire, como consultor permanente do ICOM,
e Serge Antoine, conselheiro do ministro do meio ambiente, Robert
Poujade, para discutirem alguns aspectos da organizao da Conferncia
do ICOM daquele ano, quando se falaria pela primeira vez no ecomuseu.
Varine e Rivire desejavam que em uma conferncia internacional de tal
importncia um homem poltico do primeiro plano ligasse publicamente
o museu ao meio ambiente5. Sendo assim, aps experimentar diversas
combinaes silbicas entre as palavras ecologia e museu, Varine
O ecomuseu
nasce no mo-
mento em queum novo discur-
so sobre a ideia
antropolgica de
cultura formu-
lado, o momento
da disseminao
de umacontracultura, e
da emancipao
da cultura popu-
lar na Europa e
no exterior.
3. CHAUMIER, Serge. comuses: entreculture populaire et culture savante .POUR. Dossier Mmoires partages, mmoire
vivante, no181, mar. 2004, p. 66.
4. DESVALLES, Andr. Prsentation.In : DESVALLES, Andr ; DE B ARRY,
Marie Odile & WASSERMAN, Franoise
(coord.). Vagues: une antologie de la Nouvelle
Musologie(vol. 1). Collection Museologia.
Savigny-le-Temple : ditions W-M.N.E.S.,
1992. p.15.
5. VARINE, Hugues de. Lcomuse(1978). In : DESVALLES, Andr ; DEBARRY, Marie Odile & WASSERMAN,
Franoise (coord.). Vagues: une antologie de
la Nouvelle Musologie(vol. 1). Collection
Museologia. Savigny-le-Temple : ditions
W-M.N.E.S., 1992, p. 449.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
8/23
32Revista MUSAS 2014 N6
pronunciou ecomuseu, dando incio tarefa mais difcil que se seguiria, de
se denir tal conceito em termos prticos. Com a utilizao do neologismo
por Poujade, em 1971, e com o nascimento da Maison de lHomme et de
lIndustrie, no mesmo perodo, no ecomuseu Creusot Montceau-les-Mines
primeiro ecomuseu a levar esse nome ocialmente esse novo tipo
impreciso de museu viria a se tornar um prottipo6. Rivire se consagraria
como o principal pensador do termo nos anos seguintes, tendo como
base, principalmente, esta experincia.
A primeira denio do ecomuseu, proposta por Jean Blanc,
apresentada, em 1972, aos participantes do colquio internacional
organizado pelo ICOM, intitulado Museu e meio ambiente, que
aconteceu em Bordeaux, Istres e Lourmarin. Tal proposio denia
o ecomuseu como um museu especco do meio ambiente, que
funcionava como um elemento de conhecimento de um conjunto de
relaes no espao atravs do desenvolvimento histrico dessas relaes7.
Tendo tomado conhecimento das ideias disseminadas por Jean Blanc
desde o m da dcada de 1960, Rivire apresentava, at ento, uma viso
mais clssica, sobretudo porque amplamente baseada no modelo dos
museus a cu aberto do norte da Europa, perfeitamente claros em seus
princpios. Pouco tempo depois ele assumiria que o modelo dos museus
do norte, como os escandinavos que ele conhecia bem, no se aplicaria
ao contexto francs em razo da diversidade existente nas provnciasfrancesas.
Em outubro de 1973, Rivire publica a sua primeira verso de sua
denio evolutiva. Nesta, ele caracteriza o ecomuseu como um
museu ecolgico, um instrumento de informao e de tomada de
conscincia, j considerando a sua evoluo permanente da qual a
populao participa8. Na denio de 3 de junho de 1978, ele considera
o ecomuseu como uma estrutura nova, experimentada e concretizada,
inicialmente, nos parques naturais franceses, entre 1968 e 1971, mas
que j se desenvolvia em outros territrios como um laboratrio de
campo9, que podia tomar formas diversas. Finalmente, em sua verso
nal e a mais conhecida, atualmente , apresentada no Creusot, e depois
em Paris, em 1980, Rivire dene o ecomuseu como laboratrio, como
Um dos obje-
tivos daqueles
que decidiram
organizar as no-vas ideias que se
faziam perceber
em museus no
mundo todo, for-
mando uma ide-
ologia prpria,
era o de operaruma mudana
profunda das
mentalidades
dos profssionais
de museus, o
que reetiria na
prtica
museolgica.
6. DESVALLES, Andr. Op. cit., p. 26.
7. BLANC, Jean. (1972) In: GERBAUD, Michel.
Aux origines des comuses : les premiers pasde Marqueze. In: Publics & Muses, nos17-18,2000, p. 177-180.
8. RIVIRE, Georges Henri. Lcomuse, un
modle volutif (1971-1980). In : DESVAL-
LES, Andr ; DE BARRY, Marie Odile &WASSERMAN, Franoise (coord.). Vagues:
une antologie de la Nouvelle Musologie
(vol. 1). Collection Museologia. Savigny-le-
Temple : ditions W-M.N.E.S., 1992. p.440..
9. RIVIRE, Georges Henri. Op. cit., p. 442.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
9/23
33Revista MUSAS 2014 N6
conservatrioe como escola, e coloca em primeiro plano a diversidadedas
populaes que fazem dele o seu espelho:
Ce laboratoire, ce conservatoire, cette cole sinspirent de principes communs.
La culture dont ils se rclament est entendre en son sens le plus large, et ils
sattachent en faire connatre la dignit et lexpression artistique, de quelquecouche de la population quen manent les manifestations. La diversit en est sans
limite, tant les donnes dirent dun chantillon lautre. Ils ne senferment pas
en eux-mmes, ils reoivent et donnent10.
A diversidade cultural aqui vista como produto das interaes
das pessoas entre elas mesmas e com o meio ao qual se ligam por uma
memria, uma histria e um patrimnio. Como um novo conceito de
museu, malevel, evolutivo por denio, e baseado em um modo de
organizao original no qual os poderes locais e os organismos de Estado
so associados, o ecomuseu previsto como um meio pelo qual as
populaes podem se tornar, elas mesmas, objetos de sua investigao
ele , portanto, um instrumento de autoconhecimento, no qual uma
performance11do grupo produz conhecimento sobre o prprio grupo.
O objetivo deste artigo o de identicar, na origem dos ecomuseus
na Frana, alguns dos mitos fundadores dessas instituies, que se
mantm, atualmente, na base da ideia de museu comunitrio que se
espalhou pelo mundo, e questionar a sustentao desses mitos pelos
ecomuseus atuais. Para isso, a partir da investigao de alguns casos de
ecomuseus conhecidos atualmente na Frana, tais como o ecomuseu
do Creusot, fundando em 1972 a partir das aes de Marcel vrard na
comunidade urbana atravs do patrimnio local, e outros que receberam
tal nomenclatura mais recentemente12, nos voltaremos para a histria
desses museus, e para a sua realidade atual, considerando como eles
so percebidos pelo pblico e a partir de que projetos museolgicos eles
so criados. Logo, podemos apontar cinco mitos centrais, denidores da
existncia dos ecomuseus no presente, e passveis de serem relativizadose discutidos de maneira crtica se nos debruamos sobre a sua histria.
10. Esse laboratrio, esse conservatrio,
essa escola se inspiram em princpios co-
muns. A cultura da qual eles partem apre-
endida em seu sentido mais amplo, e eles se
enfocam em tornar conhecidas a dignidade e
a expresso artstica, de qualquer camada da
populao de que emanem tais manifesta-
es. A diversidade existe sem limite, tanto
que os dados diferem de uma amostra ou-
tra. Eles no se fecham em si mesmos, eles
recebem e do. (traduo nossa). Id. D-
nition volutive de lcomuse. Museum, vo
XXXVII, no.4, 1985 (1980), p.183.
11. Aperformance, na teoria antropolgica,
vista como um dos principais mediadores
dos dilogos que estabelecemos socialment
(ver Turner, 1988 e Goman, 2009). Ela pode
ser aplicada aos museus na medida em que
identicamos a musealizao como um ato
performativo, o que ca particularmente
evidente no caso dos ecomuseus.
12. A pesquisa para o presente artigo contou
com o trabalho de campo no ecomuseu do
Creusot-Montceau, entre os anos de 2011 e
2012, e com a pesquisa histrica nos arquivo
do Ecomuseu, alm da visita e investigao
de outros museus sociais e ecomuseus
na Frana. Este artigo resultado de uma
pesquisa de doutorado realizada graas
ao Programa de Doutorado Sanduiche no
Exterior (PDSE), da Capes, sendo parte da
tese Mscaras guardadas: musealizao e
descolonizao, desenvolvida na Universida-
de Federal Fluminense (UFF) e na cole des
Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS)
(...) o ecomuseu
previsto como
um meio pelo
qual as popula-es podem se
tornar, elas
mesmas, objetos
de sua investiga-
o (...).
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
10/23
34Revista MUSAS 2014 N6
1. O mito da institucionalizao
A metfora do espelho, proposta inicialmente por Rivire, e depois
apropriada por outros autores, disseminou a noo segundo a qual os
ecomuseus soa realidade e no uma representao institucionalizada do
real. H uma diferena ontolgica entre a realidade e aquilo que os museus
re-apresentam. Ainda que constituda a partir do real, a performance
musealse diferencia da realidade. Os museus oferecem algo a mais para
os seus pblicos, algo que est alm do mundo das coisas comuns que
existem fora da cadeia museolgica. Em outras palavras, h algo mais
na performance museal que no h na vida banal. Sendo assim, a ideia
de que o ecomuseu apresenta o cotidiano prpria comunidade que o
vivencia um dos mitos primeiros que foram instaurados pelos tericos
da ecomuseologia.
Todo museu, no encontro entre objetos e espectadores, transporta-
os os primeiros tanto quanto os ltimos a um meio que no o da vida
real, mas que , ainda assim, real. Pode-se dizer que depois que um objeto
removido de um contexto anterior e ele adentra o cenrio do museu,
uma grande parte do seu passado deixada para a imaginao. No caso
dos ecomuseus, em que os objetos so musealizados in situ, algo precisa
acontecer para que se instaure a performance de todo o grupo. Com
este m, objetos so transportados de um lugar para outro, mquinas setornam monumento, residncias viram palco, e a comunidade comea
a criar um discurso sobre si mesma. Para que a experincia museal
tenha incio com a performance do grupo, preciso haver algum tipo de
institucionalizao, isto , um acordo social entre os agentes envolvidos.
A ideia de institucionalizao, geralmente, no associada aos
ecomuseus, e nos esquecemos de que a maior parte da histria de
alguns deles, como foi o caso do ecomuseu do Creusot, se deniu pela
luta para que se institucionalizassem e fossem reconhecidos entre os
museus pblicos franceses. O processo de legitimao e normalizao do
ecomuseu do Creusot, em um primeiro momento de sua existncia, seria
dicultado pela falta de elementos que o permitiriam ser reconhecido
como museu pelo Estado francs. Por muito tempo, a luta de seus
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
11/23
35Revista MUSAS 2014 N6
idealizadores pela institucionalizao do ecomuseu seria uma de suas
principais frentes mobilizadoras. Considerando que a Direo dos Museus
da Frana se recusava a reconhecer um museu que, em seus primeiros
anos de existncia, no apresentava colees permanentes, o ecomuseu
teve que recorrer a outros ministrios e buscar outras associaes
fugindo ainda mais do modelo traado pelos museus tradicionais, e se
diferenciando mesmo de outros tipos de museus de territrio. , ento,
se voltando para a noo de ecomuseu como a havia evocado Robert
Poujade, em Dijon, associando ecomuseu, meio ambiente e ecologia, que
este se ligaria, ainda na dcada de 1970, ao recm-criado ministrio do
Meio ambiente13. Utilizado como laboratrio para a nova museologia que
surgia, o Creusot foi tambm um observatrio social para aqueles que ali
se dedicavam a compreender a comunidade local e seus problemas e,N M H I,
um museu tradicional, funciona
o centro das aes museais doEcomuseu do Creusot.
13. Em 1976, uma reunio para denir a
tutela ministerial do ecomuseu envolveria
inicialmente, os representantes do Ministrio
da Educao, da Secretaria do Estado dedi-
cada Cultura, do Ministrio da Qualidade
de Vida, do Ministrio da Indstria e do
Ministrio da Agricultura. VRARD, Marcel.
Lcomuse de la communaut urbaine
le Creusot-Montceau les Mines. Cracap /
Informations, no2-3, 1976, p.12.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
12/23
36Revista MUSAS 2014 N6
P ,
os colombianos tm encontrado nos
processos museolgicos da atualidade
instrumentos de armao de sua
diversidade. No litoral, rene-se grande parte
da populao colombiana
de origens africanas.
neste sentido, ele era uma instituio.
Na tentativa de afastar os ecomuseus dos modelos de museus
precedentes, ditos tradicionais, alguns tericos passaram a opor o
modelo tradicional do museu-instituio ao novo museu. Tal oposio
representa a iluso de que o ecomuseu no apresentaria algumas
das funes tradicionais dos outros museus. Segundo Varine, um dos
primeiros a desenvolver um pensamento nesse sentido, o estatuto do
novo museu se distinguia daquele dos museus comuns, pois, entre outras
coisas, no ecomuseu a noo de coleo permanente desapareceria em
detrimento da ideia de um patrimnio comunitrio e coletivo, de modo
que o museu deixa de ter como a sua misso primeira a da aquisio14.
Aqui vale lembrar que, ainda que o ecomuseu do Creusot no apresentasse
uma coleo de objetos materiais nos primeiros anos de sua existncia,
este passaria a adquirir objetos diversos a partir do momento em que se
institusse. Com o passar do tempo, o ecomuseu abrigaria em seu seio
Foto:Bruno
Brulon/ac
ervo
pessoal
U o prdio da
Comunidade urbana no Creusot.
14. VARINE, Hugues de. Op. cit., p.451.
15. Museu do Homem e da Indstria.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
13/23
37Revista MUSAS 2014 N6
um museu de tipo tradicional, conhecido como Muse de lHomme et
de lIndustrie15. Este abrigaria as principais exposies do ecomuseu e
funcionaria como um centro para todas as suas atividades.
Os ecomuseus, em geral, conjugam, na sua prtica museolgica,
um conjunto de funes que podem ou no ser anlogas quelas que
so exercidas pelos museus em seus formatos tradicionais. O que difere
o ecomuseu dos modelos que o antecederam a preocupao com a
incluso e a participao do grupo local nessas funes e nas aes do
museu como um todo participao esta que no pode ser pensada
sem uma problematizao do seu signicado nas prticas analisadas.
2. O mito da comunidade
O segundo ponto fundamental apontado por Varine para distinguir
o ecomuseu previa que o instrumento essencial de concepo, de
programao, de controle, de animao e de avaliao do museu seria
um conselho de associaes composto de representantes que seriam, em
sua maioria, habitantes da comunidade urbana 16. A especicidade do
ecomuseu passa, sobretudo, pela denio daquilo que est no corao
da sua ao e organizao: a comunidade. Para Varine, o ecomuseu ,
antes de qualquer coisa, uma comunidade e um objetivo 17, e em vez
de partir de uma coleo pr-concebida de objetos materiais, ele parteda coletividade para estabelecer a sua linha de ao. Mas quem essa
coletividade? Quem se faz representar nela e para quem o ecomuseu
feito? Essas foram questes fundamentais colocadas para os pensadores
do ecomuseu em suas primeiras tentativas de coloc-lo em prtica.
Segundo Marc Aug, apesar da crena de alguns nos lugares de
memria como monumentos aos mortos, uma semiologia na
destes monumentos, elevados pela ao das municipalidades e das
mltiplas associaes, permite colocar em evidncia que estes tm
sido essencialmente lugares de culto18 apropriados pelos vivos. Nesta
perspectiva, os monumentos so, precisamente, os lugares onde
se encontram os diferentes itinerrios individuais e onde a histria
singular adquire a conscincia de ir de encontro histria coletiva. A
16. VARINE, Hugues de. Op. cit., p. 451.
17. Idem, p. 456.
18. AUG, Marc. Les lieux de mmoire dupoint de vue de lethnologue.Gradhiva, no6, 1989, p. 11.
A especifcida-
de do ecomuseu
passa, sobretu-
do, pela defni-
o daquilo que
est no corao
da sua ao e
organizao: a
comunidade.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
14/23
38Revista MUSAS 2014 N6
partir do momento em que se celebra coletivamente a prpria ideia
de comunidade, a suposta unidade do grupo, como ideia abstrata
e imaterial, se torna ela mesma monumento e objeto do culto laico
disseminado pelos ecomuseus. Ao contrrio dos monumentos em praa
pblica, em que o sentido dos smbolos, como todos os sentidos, nasce
de uma relao ou de vrias entrecruzadas, a comunidade, por sua vez,
representa o culto s prprias relaes que mantm o grupo e a unidade
do grupo enquanto entidade ilusoriamente estvel. Enfatizando a busca
pela paz e o consenso, rgos de cooperao como a UNESCO19, e mesmo
o ICOM20, tentam disseminar uma ideia harmnica de comunidade,
segundo a qual a dissonncia silenciada pelo compartilhamento das
diferenas.
Com efeito, o mito da comunidade no deixou de fazer parte do
acervo de iluses que vem sustentando a ideia do ecomuseu nas
ltimas dcadas. Ainda que seja impossvel denir comunidade sem
que este conceito esteja ligado a realidades sociais especcas e a casos
determinados, a partir do estudo dos ecomuseus somos frequentemente
confrontados com a necessidade desse culto a um tipo de socialidade
capaz de manter a coeso no grupo. No caso do ecomuseu do Creusot, o
que se v, ao longo de sua histria, a construo do culto comunidade
urbana, inventada como instrumento de referncia coletividade local
antes mesmo da criao de um museu.A evoluo desse modelo de museu, que transcende as referncias
materiais para colocar as prprias relaes sociais no centro da instituio,
teve como consequncia, nos diversos pases em que o ecomuseu foi
adotado, diversas interpretaes anlogas do sentido da comunidade
musealizada. Ainda que fossem nomeados de museu social, museu
local, ecomuseu, alm de outras variaes conhecidas, os museus
chamados pelos especialistas e, por vezes, tambm pelos prprios
grupos de comunitrios sempre existiram a partir de um grupo social
mais ou menos bem delimitado.
Antes de realizar a musealizao de pessoas ou de coisas, museus
comunitrios musealizam ideias. a prpria noo de comunidade que
est em disputa ao se criarem museus desse tipo. E o que a comunidade
19. Organizao das Naes Unidas para a
Educao, a Cincia e a Cultura.
20. Conselho Internacional de Museus.
Antes de
realizar a
musealizao de
pessoas ou de
coisas, museus
comunitrios
musealizam
ideias.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
15/23
39Revista MUSAS 2014 N6
para os idealizadores desses museus, em geral difere de um contexto a
outro. Um dado relevante para se pensar hoje os museus comunitrios
que tanto na Paris contempornea quanto no Rio de Janeiro, os museus
desse tipo existentes esto localizados na periferia, na margem do
sistema cultural hegemnico. Com base em uma anlise supercial desses
dois contextos dos museus sociais nas favelas do Rio de Janeiro e dos
ecomuseus nos banlieuesde Paris possvel armar que o que distingue
esses ecomuseus dos museus centrais um conjunto de vontades sociais
diferenciadas.
3. O mito do pblico
Se o ecomuseu a comunidade, a questo do pblico, de incio, seria
descartada da concepo de Varine. Em outras palavras, diferentemente
do museu tradicional, o ecomuseu no tinha visitantes, ele deveria ter
atores21. Ainda que possa parecer ilusria a concepo da automuseologia,
em que uma coletividade atua como gestora do seu prprio patrimnio e
, ela mesma, o seu pblico, esta concepo estava no centro da proposta
do ecomuseu em seus primeiros estgios de existncia.
A ideia de que ecomuseus no so feitos para visitantes, mas para
a prpria comunidade, ela mesma musealizada, assombrou na prtica
as diversas aplicaes deste termo em diferentes contextos. De fato,esta acepo no se v enfatizada na denio de Rivire ainda que
tenha sido um ponto fundamental da teoria desenvolvida por Varine. Ao
contrrio do que pensava este ltimo, para Rivire a perspectiva de um
pblico externo real ou imaginado coletivamente pela comunidade
sempre esteve presente em sua abordagem dos ecomuseus. Ao
conceber museogracamente a exposio permanente do Chteau de
la Verrerie, inaugurada no Creusot em 1974, composta de objetos do
patrimnio comunitrio datando de diversos perodos da histria local,
Rivire levado a pensar um circuito de visitao que inclua a granja, a
escola, os ateliers e as minas, circuito este concebido para receber um
pblico variado, de dentro e de fora da comunidade. De fato, nos anos
que se seguiriam criao do ecomuseu, a experincia do Creusot iria
21. VARINE, Hugues de. Op. cit., p. 459.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
16/23
40Revista MUSAS 2014 N6
atrair um vasto nmero de visitantes externos, incluindo estrangeiros e
prossionais de outras instituies, e o museu iria se normalizar por meio
de diversos colquios internacionais e reunies de especialistas com parte
dos habitantes locais. Com efeito, o olhar externo foi fundamental na
denio da identidade de grupo, e nos agenciamentos necessrios para
fazer do ecomuseu um modelo exportvel.
Alm disso, vale apontar ainda, que a comunidade um conjunto
complexo de atores que se inventam como gestores, conservadores
e, ocasionalmente, como pblico do museu. Neste caso a noo de
ator merece ser mais atentamente explorada, j que ela guarda uma
importncia reveladora. No teatro, o trabalho do ator se congura
como uma ao absolutamente coletiva, pois depende completamente
da resposta de um espectador no momento em que realizada22. Da
mesma forma, prprio do ator, ser ao mesmo tempo um e mltiplo,
em um processo constante de metamorfose de si mesmo. E, no entanto,
a sua atuao deve parecer coerente e unicada23. Assim, podemos
entender o ator como aquele que est duplamente inserido nos processos
socioculturais da vida cotidiana, j que fazem parte, simultaneamente, da
prpria vida social e da representao cultural da vida social. A existncia
de um pblico, ento, no ecomuseu um pr-requisito para a re-
apresentao das coisas cotidianas em um universo musealizado. E, neste
sentido, a prpria comunidade deve se fazer pblico para passar a olhar ascoisas com outros olhos ou com os olhos de outros.
4. O mito da participao
A noo pouco precisa de que o ecomuseu envolve a participao
da comunidade dene o modelo de uma museologia participativa que
pouco reete sobre quem so, na prtica, os agentes envolvidos nas
aes do museu, e que leva crena na possibilidade de uma participao
da base24e em um modelo democrtico e aberto. Tal crena em um
modelo participativo de museu isto , que envolve a participao ampla
e indistinta do grupo local sustentada pelos dois ltimos mitos que
aqui sero levantados.
22. ROUBINE, Jean-Jacques.A arte do ator.
Coleo cultura contempornea.Rio de Janei-ro: Jorge Zahar, 1995, p. 7.
23. TURNER, Victor. Images and reections:
ritual, drama, carnival, lm, and spectacle in
cultural performance. In: The anthropology
of performance. New York: PAJ Publications,
1988, p. 11.
24. SUAUD, Charles. Le mythe de la base.
In :Actes de la recherche en sciences sociales.
Vol. 52-53, juin 1984, passim.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
17/23
41Revista MUSAS 2014 N6
O ecomuseu nasce, ento, de uma anlise precisa da comunidade
em sua estrutura, em suas relaes, em suas necessidades, anlise
que, supostamente, deve ser feita pelos prprios membros dessa
comunidade25. Mas qual essa fora que mobiliza a comunidade? Um
dos grandes mitos do ecomuseu do Creusot, pode-se dizer, o mito da
participao. Quando em 1974, Mathilde Bellaigue se encarregou de fazer
o recenseamento da populao local, trabalho que teve a nalidade de
estabelecer quem estaria disposto a se engajar no projeto do ecomuseu,
ela constatou que a participao era um desao a ser suplantado
cotidianamente pelos prossionais envolvidos na organizao e animao
do Creusot26. Mobilizar a comunidade, engajar as pessoas na sua prpria
musealizao a ser inventada, se revelaria o calcanhar de Aquiles da
museologia participativa.
Enfrentando todas essas diculdades, e outras, o ecomuseu foi criado
com a inteno de ser um instrumento privilegiado de desenvolvimento
comunitrio. Ele no visava o conhecimento e a valorizao de um
patrimnio, nem era um simples auxiliar de um sistema educativo ou
informativo, nem um meio de progresso cultural e de democratizao
das obras humanas27. Politicamente ele tinha como objetivo maior o de
mudar as formas do jogo de poder estabelecido em uma comunidade,
tornando a totalidade da populao consciente de sua autonomia e de seu
prprio desenvolvimento. Mas essa seria uma iniciativa de alguns lderes eespecialistas que se dedicariam ao projeto, buscando a mobilizao mais
ampla no grupo. Assim como a experincia do Creusot estaria, sobretudo,
nas mos de Marcel vrard, Michele vrard e Mathilde Bellaigue,
contando ainda com o aporte terico e prtico de Varine e Rivire,
outras experincias mais recentes mostrariam a mesma tendncia a uma
centralizao, por vezes negada por aqueles que esto no centro.
5. O mito da democratizao
Este modelo, geralmente centralizado, mesmo que se pense como o
contrrio, est pautado, ainda, nomito da democratizao, que instaura o
modelo comunitrio como um modelo essencialmente democrtico, mas
26. Tal trabalho de recenseamento, segundo
Bellaigue, partiu das associaes j criadas
na comunidade do Creusot antes da propost
do museu. Estas associaes, assim como as
entrevistas com lideranas locais, serviam decanais para apontar quem seriam os atores
interessados em participar do projeto de
museu. Bellaigue arma que, por alguma
razo, a populao do Creusot j apresentav
uma organizao bastante minuciosa em di-
versas associaes (associao dos mineiros
associao dos agricultores, associaes que
se ocupavam dos animais, associao para
os ciclistas, foto-clube, etc.). BELLAIGUE,
Mathilde. Comunicao pessoal. Paris, 2012.
27. MAIRESSE, Franois. Le muse temple
spetaculaire.Paris: Presses Universitaires de
Lyon, 2002, p. 112.
25. VARINE, Hugues de. Op. cip., p. 458.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
18/23
42Revista MUSAS 2014 N6
que deixa de se perguntar quem a comunidade? e em nome de que
interesses ela atua?.
Buscando a descentralizao atravs do enfoque no patrimnio local,
o Creusot, rompeu com o paradigma da monumentalidade da cultura
erudita para se rearmar como suporte de valores da vida banal. Com o
objetivo de disseminar este patrimnio no interior do grupo, o ecomuseu
se constitui como uma rede, funcionando atravs de diversas antenas nas
diferentes comunas espalhadas pelo territrio do Creusot. A ao cultural
descentralizada, assim, estabelece para o conjunto da comunidade um
jogo de espelhos reenviando a cada um a imagem daquilo que ele foi ou
daquilo que ele vai se tornar28, e logo, por meio da reexo coletiva, a
comunidade por inteiro se torna um campo de estudos, e cada localidade
possui em si elementos de anlise e ferramentas de conhecimento sobre
situaes concretas e sobre a histria de todos.
Contudo, evidente que no se pode deixar enganar pela ideia
de uma imagem do coletivo que representa a totalidade dos membros
daquilo que seria a comunidade urbana e que reete como eles se
veem. Nesse contexto atravessado por uma estrutura de poder em
transio, inevitvel que a vontade do grupo seja constantemente
o resultado de negociaes no grupo e no a vontade da maioria, de
fato. Como apontou Charles Suaud, a ideia da base em si, ou de uma
comunidade de base base camponesa, base de trabalhadores, etc. formando um grupo real, reparvel, dotado de necessidades reais e de
uma capacidade autnoma de se exprimir29, , com efeito, uma iluso
etnogrca e, no caso dos ecomuseus, uma iluso museal. O autor,
assim, interroga tal noo para questionar o seu uso a partir da ideia de
que ela est atrelada a uma concepo de autenticidade fundada em
oposies mais ou menos diretamente conectadas (como as de alto e
baixo, elite e massa, representantes e povo, etc.). A base, neste sentido,
estaria simetricamente na extremidade oposta s instncias de poder
que mobilizam o grupo. Para ser tratada analiticamente, portanto, seria
preciso situar claramente cada um dos agentes intermedirios nessa
relao o que no acontece quando utilizado o termo comunidade
como um conjunto singular e indiferenciado.
28. VRARD, Marcel. Lcomuse de la
communaut urbaine le Creusot-Montceau
les Mines. In : Cracap / Informations, nos2-3,
1976, p. 10.
29. SUAUD, Charles. Op. cit., p. 57.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
19/23
43Revista MUSAS 2014 N6
A ideia da democratizao de saberes, prticas e representaes
no museu permanece implicada nas aes dos ecomuseus e por
outros museus inuenciados pela Nova Museologia no presente. Essa
ideia se aproxima, com frequncia, em algumas prticas museais
contemporneas, noo de incluso. Uma questo permanente para
os membros do Movimento Internacional por uma Nova Museologia o
MINOM, fundado em 1985 j colocada desde o incio do movimento, era
a da representatividade de grupos ou indivduos provenientes de minorias
tnicas nos novos espaos museais. A valorizao da participao de
populaes autctones que fazem os seus prprios museus se colocou,
e ainda vem se colocando, como questo de base para os idealizadores
da nova museologia. Mas, como querem a UNESCO e o ICOM, estes
museus podem se fazer como um instrumento para resolver os problemas
das populaes do mundo em desenvolvimento e das populaes que
compartilham memrias subterrneas e culturas subordinadas?
6. Consideraes
A inveno do ecomuseu envolveu a criao de certos mitos
fundadores que foram necessrios para se produzir a crena em uma
mudana de paradigmas na museologia mundial. Todavia, como
apontaram os primeiros tericos do novo museu, este nunca deixou deser pensado como um modelo experimental.
Para Desvalles, a questo principal referente ao ecomuseu a
da interpretao da doutrina e de sua aplicao. Tendo como centro
axiolgico as relaes entre o Homem e seu Meio de vida 30, os
ecomuseus, em grande parte, no foram entendidos como espaos de
representao. Denido em seus primrdios como museu especco do
meio ambiente31(natural e social), ao ser colocado em prtica, o ecomuseu
demonstrou que o que estava em seu centro no eram coisas ou pessoas,
mas as relaes sociais que envolvem coisas e pessoas em todos os seus
aspectos. Passando, assim, rapidamente, do meio ambiente natural para
considerar o meio social como uma ordem mais complexa do real, os
ecomuseus so levados a enfatizar no patrimnio no apenas os objetos
30. DESVALLES, Andr. Introduction.
p. 11-31. In: (dir.). Publics et Muses.
Lcomuse: rve ou ralit. No17-18. Presses
Universitaires de Lyon, 2000, p. 12.
31. Idem, p.12-13.
A ideia da de-
mocratizao
de saberes,
prticas e repre-
sentaes no
museu perma-
nece implicada
nas aes dos
ecomuseus e por
outros museusinuenciados
pela Nova Muse-
ologia (...).
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
20/23
44Revista MUSAS 2014 N6
patrimonializveis, mas os atores da patrimonializao.
Contudo, pensar os ecomuseus como sendo uma realidade vividae no
uma representao do real, anloga aos outros museus, signica ignorar
as performances produzidas por estas instituies e, logo, a naturalizao
das formas de vida e das identidades que eles exibem. Ao considerar o
mito da crena nas performancesdo ecomuseu, Desvalles lembra que
nenhum museu espelho e, por isso, a metfora do espelho no deve ser
abusada para discuti-los e ilustr-los. No caso do ecomuseu, suas vitrines
so invisveis, mas nem por isso inexistentes. Se por um lado os ecomuseus
chamaram a ateno para um processo de descentralizao dos museus
franceses tornando visvel o patrimnio das provncias que no tinha
visibilidade na capital, por outro estes no romperam com o paradigma
das representaes nos museus e, mesmo quando eram fundados e
mantidos pela ampla participao dos grupos sociais locais, eles, ainda
assim, se mostravam como representaes eperformancesapresentadas
a uma plateia fosse ela externa ou interna ao grupo.
E C V,
antiga residncia da famlia Schneider
serve agora de antena do museu.
Foto:Bruno
Brulon/acervo
pessoal
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
21/23
45Revista MUSAS 2014 N6
Com efeito, possvel armar que este mito central o mito do
espelho tenha dado origem a todos os outros. A ideia de ecomuseus,
em que os atores sociais vivem as suas vidas para si mesmos sem se
preocupar com aperformancepara um outro, repercutiu em muitas dessas
experincias, sobretudo no contexto latino-americano, e particularmente
no Brasil, tendo este sido adotado como o discurso (contraditrio) de
algumas dessas instituies. Todavia, como se provou na investigao do
primeiro ecomuseu, na Frana, o Creusot no foi uma experincia voltada
exclusivamente para os seus moradores. Segundo arma Mathilde
Bellaigue,
Le muse tait conu pour la population et avec la population locale (par vrard,
Rivire et Varine); mais loriginalit de cette entreprise a attir beaucoup de
visiteurs (franais et trangers dsirant sen inspirer), certains attirs par la
notorit des artistes venus y travailler ou exposant en liaison avec le muse et lapopulation locale.32
32. O museu era concebido para a popu-
lao e com a populao local (por vrard,
Rivire e Varine); mas a originalidade desse
empreendimento atraiu muito a ateno dos
visitantes (franceses e do exterior, desejosos
de se inspirar), alguns atrados pela notorie-
dade dos artistas que vinham trabalhar ou
expor em relao com o museu e a popula-
o local. (traduo nossa). BELLAIGUE,
Mathilde. Comunicao por e-mail. 22 de
julho de 2012.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
22/23
46Revista MUSAS 2014 N6
No caso do Creusot, o ecomuseu representou a descentralizao
do poder local e a arguio das estruturas de poder estabelecidas,
implicando na criao de novas relaes de poder. A partir da observao
do contexto atual percebemos que diversas experincias de ecomuseus
j demonstraram que, em grande parte, essas iniciativas so levadas a
abandonar o ideal original e se mantm predominantemente nas mos
dos seus gestores, rompendo, de uma maneira ou de outra, com os atores
locais. Algumas iniciativas se compartimentam, fazendo um discurso
destoante da ao o discurso fala de escolhas do grupo, a ao mostra
claramente que apenas alguns decidem. Outras, se autoconsomem, em
um movimento que a biologia nomeia de fagocitao esgotando suas
propostas no incessante uxo de debates, votaes e assembleias, que
paralisam no todo ou em parte a ao33. Muitos destes museus j se
voltaram para a lgica turstica, de modo que seus prossionais passam
a trabalhar mais para o pblico externo (com exceo do pblico escolar)
do que para a comunidade como co naturalizada. Em quase todos
os casos, em ltima instncia, o museu sobrevive quando predomina a
vontade de certos atores sejam eles internos ou externos ao grupo local
cujo interesse na performance garante a manuteno do teatro das
identidades.
Bruno Brulon muselogo e historiador. Mestre em Museologia e Patrimnio pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO/MAST) e doutor em Antropologia
pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor da dissertao Quando o museu abre
portas e janelas: o reencontro com o humano no museu contemporneo (2008), da tese
Mscaras guardadas: musealizao e descolonizao(2012) e de diversos outros trabalhos no
campo da Museologia e do patrimnio.
33. BRULON, B. C.; SCHEINER, T. C. A
ascenso dos museus comunitrios e ospatrimnios comuns: um ensaio sobre
a casa. In: FREIRE, Gustavo Henrique de
Arajo (org.) E-book do Encontro Nacional da
Associao Nacional de Pesquisa em Cincia
da Informao. A responsabilidade social da
cincia da Informao. Joo Pessoa: Idia/
Editora, 2009, p. 2.470.
-
7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac
23/23
REFERNCIAS
AUG, Marc. Les Lieux de mmoire du point de vue de lethnologue. In : Gradhiva, no 6, 1989, p. 3-12.BLANC, Jean. (1972) In: GERBAUD, Michel. Aux origines des comuses : les premiers pas de Marqueze. In : Publics &
Muses, nos 17-18, 2000, p.177-180.
BRULON, B. C.; SCHEINER, T. C. A ascenso dos museus comunitrios e os patrimnios comuns: um ensaio sobre a casa.
p.2469-2489. In: FREIRE, Gustavo Henrique de Arajo (org). E-book do Encontro Nacional da Associao Nacional de
Pesquisa em Cincia da Informao. A responsabilidade social da cincia da Informao.Joo Pessoa: Idia/Editora, 2009.
CHAUMIER, Serge. comuses: entre culture populaire et culture savante. POUR. Dossier Mmoires partages, mmoires
vivante, no 181, mar. 2004.
DESVALLES, Andr. Prsentation. In : DESVALLES, Andr ; DE BARRY, Marie Odile & WASSERMAN, Franoise
(coord.). Vagues: une antologie de la Nouvelle Musologie (vol. 1). Collection Museologia. Savigny-le-Temple : ditions
W-M.N.E.S., 1992.
. Introduction. p.11-31. In: (dir.). Publics et Muses. Lcomuse: rve ou ralit. Nos 17-18. Presses Universitaires
de Lyon, 2000.VRARD, Marcel. Lcomuse de la communaut urbaine le Creusot-Montceau les Mines. Cracap / Informations, nos 2-3,
1976.
MAIRESSE, Franois. Le muse temple spetaculaire. Paris: Presses Universitaires de Lyon, 2002.
RIVIRE, Georges Henri. Dnition volutive de lcomuse. Museum, vol. XXXVII, no 4, 1985. (1980).
. Lcomuse, un modle volutif (1971-1980). In : DESVALLES, Andr ; DE BARRY, Marie Odile & WASSERMAN,
Franoise (coord.). Vagues: une antologie de la Nouvelle Musologie(vol. 1). Collection Museologia. Savigny-le-Temple
: ditions W-M.N.E.S., 1992.
ROUBINE, Jean-Jacques.A arte do ator. Coleo cultura contempornea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
SUAUD, Charles. Le mythe de la base. In :Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 52-53, juin 1984.
TURNER, Victor. Images and reections: ritual, drama, carnival, lm, and spectacle in cultural performance. In: The
anthropology of performance. New York: PAJ Publications, 1988.
VARINE, Hugues de. Lcomuse (1978). In : DESVALLES, Andr ; DE BARRY, Marie Odile & WASSERMAN, Franoise(coord.). Vagues: une antologie de la Nouvelle Musologie (vol. 1). Collection Museologia. Savigny-le-Temple : ditions
W-M.N.E.S., 1992.