os saberes musicais e a escola
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XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000432
OS SABERES MUSICAIS E A ESCOLA
Jorge Luiz Schroeder – Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP Resumo Este texto resume um trabalho de pesquisa que vem sendo realizado no curso de Bacharelado em Dança da Unicamp e que se propõe a alterar a forma como a música é ensinada nesse curso. Ao contrário do ensino mais tradicional da música, que se baseia nas condições originárias da escrita musical, tento estabelecer alguns referenciais para as práticas educativas desenvolvidos principalmente a partir da oralidade musical. E para orientar esses referenciais, utilizo principalmente a proposta discursiva enunciativa elaborada pelo Círculo de Bakhtin. Ainda que se volte mais profundamente para a linguagem verbal, a filosofia enunciativa usa a língua como exemplo de uma concepção que vai muito além da própria língua e serve de modelo para os sistemas simbólicos em geral, dentre os quais temos as artes, e em particular a música. As experiências que este texto apresenta, apenas parcialmente, serviram como base e como estímulo para uma mudança radical nas minhas práticas em sala de aula. Primeiro, com relação ao fato de passar a levar em conta não somente os conteúdos propriamente musicais que envolvem as aulas, mas a totalidade da situação enunciativa na qual as atividades (de enunciação musical, coreográfica e dramatúrgica) irão ocorrer. Segundo, por considerar que os alunos, sendo futuros artistas de outras áreas (dança e teatro) não precisam necessariamente “falar” a linguagem da música (tocar, cantar, reger ou compor) mas, na sua própria linguagem, responder aos seus enunciados, estabelecendo com ela uma relação dialógica que implica percepção, conhecimento e ação. Isto leva ao que o Círculo de Bakhtin denomina de atitude responsiva (que inclui a resposta imediata, tal como nos diálogos face-a-face, mas não se restringe a ela, considerando a possibilidade das respostas poderem aparecer distantes no tempo, no espaço ou mesmo serem em outra linguagem) significa entendimento. Só se responde a aquilo que se entende. Palavras-chave: Educação musical; Prática de ensino; Dança; Teatro; Círculo de Bakhtin. Introdução
O assunto que será tratado nesse texto diz respeito ao modo como os saberes
musicais se comportam quando entram na escola. Isto interessa principalmente por dois
motivos. Primeiro, porque a música, tanto quanto as outras artes, nem nasceram e nem
habitam a escola. Explicando melhor, as práticas musicais, muito embora atualmente
dialoguem com o mundo das práticas escolares, continuam sendo renovadas, atualizadas
e até mesmo inventadas fora da escola, nos meios artísticos, profissionais ou diletantes.
São, normalmente, os músicos em atividade que reinventam e aperfeiçoam as formas de
perceber, compreender e produzir as músicas (uma discussão interessante sobre as
disciplinas escolares e suas respectivas produções dentro das escolas pode ser
encontrada em CHERVEL, 1990). Segundo, porque pretendo sugerir um modo
específico de abordagem da música que considero propício para a escola: a abordagem
discursivo enunciativa.
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Estas primeiras afirmações, embora talvez um pouco fortes de serem feitas
dentro do campo educacional, não pretendem de forma nenhuma desmerecer um “saber
sobre o fazer” (SACRISTÁN, 1999, p.48), para o qual certamente a escola tem
contribuído para a área musical, tanto no que diz respeito às investigações sobre a
apropriação musical (ver SCHROEDER e SCHROEDER, 2011a e 2011b) quanto nas
várias formas e métodos de ensino e aprendizagem desenvolvidos por professores e
educadores musicais diretamente nas escolas. Contudo, não me parece ainda
estabelecida uma situação (talvez desejada) que coloque as atividades musicais
escolares equiparadas às atividades musicais propriamente ditas, no que diz respeito às
inovações sobre o fazer musical.
Meu interesse sobre esse assunto vem de uma prática educacional que se
concentra no nível universitário, em atividades que têm como objetivo principal a
obtenção de um certo grau de familiaridade com a música por parte de alunos de outras
áreas artísticas, principalmente o teatro e a dança.
Num trabalho de observação participante, como músico profissional de dança no
início e posteriormente como investigador, tenho trabalhado como músico prático e
como professor de música na formação de bailarinas e bailarinos profissionais nos
cursos de bacharelado e licenciatura em dança da Universidade Estadual de Campinas
(recentemente comecei a ter contato também com o curso de formação de atrizes e
atores da mesma instituição).
Foi possível constatar, desde o início, que, embora sejamos todos integrantes de
uma grande área chamada de “artística”, são muito maiores os conflitos e
desentendimentos do que as convergências e harmonias quando se agrupam num
mesmo ambiente educacional (e de trabalho profissional também) musicistas, bailarinas,
bailarinos, atrizes e atores.
Muito embora esses conflitos pareçam simples “problemas de comunicação”,
uma investigação mais aprofundada demonstra a superficialidade desse diagnóstico. O
problema de comunicação existe: são muitos os termos comuns nos vários jargões
artísticos (como por exemplo “dinâmica”, “harmonia”, “drama”, “poética”,
“movimento”, “gesto”, “ato” etc.) que ganham coloração e peso bastante diferenciados
em cada área; muitas vezes incompreensíveis pelas outras áreas. Contudo esta é apenas
a ponta de um iceberg que oculta todo um processo de organização e estabelecimento de
eixos de significação e de valoração diferentes em cada campo artístico em particular,
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imanentes às suas atividades práticas-reflexivas específicas e nem sempre partilhado por
outras áreas artísticas.
No âmbito artístico, estabelecem-se divergências, às vezes insolúveis, desde a
organização de ensaios (quantas horas de duração, em quais partes do dia, com ou sem
pausas para refeições etc.) até as decisões mais explicitamente de caráter estético (tais
como quais serão os eixos temáticos que conduzirão a realização, quais os tipos de
procedimentos a serem trabalhados, quais as formas de estruturação das obras etc.).
No âmbito educacional as divergências se mostram nas diferenças brutais entre
cargas horárias curriculares de disciplinas consideradas essenciais às áreas (como as
técnicas específicas, as disciplinas teóricas etc.) e das disciplinas consideradas
complementares; na diferença entre o grau de aprofundamento requisitado nessas
disciplinas técnicas e teóricas e as outras; ou mesmo na presença, geralmente parcial e
insuficiente, de uma das artes nas áreas das outras.
Ainda que a assimetria pareça legítima, visto que um bailarino não precisaria, a
rigor, tocar nenhum instrumento ou mesmo saber representar em público como um ator,
o que ocorre é que a presença de uma arte no campo educacional das outras
frequentemente se dá de forma irrisória, ornamental, superficial, e assim acaba sendo
tratada com certa negligência pelos próprios alunos.
Sem querer fechar as fronteiras entre as práticas artísticas, mas levando em conta
que elas se mantém de uma forma ou de outra, é possível afirmar que na área
profissional, ao contrário da área educacional, a porosidade entre as artes atualmente se
encontra em grau bastante avançado. E isto vem causando problemas na formação dos
artistas, ou seja, no campo educacional das artes.
Estando este cenário esboçado, e levando em conta que a pesquisa que sustenta
este texto está ainda em andamento, vamos tentar mesmo assim tecer algumas
considerações sobre essa verdadeira balbúrdia que ocorre na intersecção (recorrente e
necessária) entre as artes.
A música e os saberes musicais
Segundo o estudo sobre a história da forma escolar feito por Vincent, Lahire e
Thin (2001), a escola institui um modo especial de relacionamento social entre seus
participantes e também propõe um tipo de vínculo também especial com o
conhecimento. O exemplo que os autores usam para mostrar esse vínculo é o da
linguagem verbal. Primeiramente, a necessidade da própria instituição escolar e toda a
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organização do conhecimento que ela propõe só seria possível com o aparecimento e
difusão da escrita.
Antes da escrita o envolvimento das pessoas com a língua se dava de forma
situacional, na interação entre membros de um mesmo grupo, em situações particulares
de uso e de contato. Os falantes de uma língua se encontravam mergulhados num fluxo
“do fazer e do dizer” e aprendiam nesse próprio fluxo (p.23). Com a difusão da escrita,
a relação com a língua que a escola estabelece e passa a exigir é uma relação mais
distanciada, de um ponto de vista mais abstrato, afastado das situações cotidianas
particulares. O aluno passa a ser mais um analista do que um usuário da língua.
Voltando para a música, existe uma escrita musical, todos sabemos disso.
Contudo, ainda que seja possível traçar um paralelo entre a escrita da língua e a escrita
da música, pelo menos no que diz respeito à convergência de suas respectivas
finalidades e às mudanças de vínculo que ambas escritas proporcionaram com
conhecimentos que antes delas eram de caráter unicamente oral e situacional, algo
diferente ocorre com cada uma delas na prática.
As modificações sociais monstruosas que se empreenderam para que a escrita se
tornasse uma necessidade “universal” e hegemônica não foram acompanhadas do
mesmo modo no âmbito musical (para conhecer as mudanças sociais em razão da
escrita, ver GOODY, 1987). É certo que existe uma legitimação que a escrita produziu
no meio musical, e que serviu de certa forma para uma estratificação socio-artística
entre “músicos” (os que sabem ler partitura) e “não-músicos” (os que não sabem).
Na área da educação musical são vários os trabalhos que discutem essa
legitimação da escrita musical, que se instaura no campo musical de uma forma
ideológica, em detrimento de um saber oral que ainda é muito presente nas culturas em
geral mas que perde gradualmente seu valor cultural (ultimamente, felizmente,
resgatado). Basta citar, como referência, os trabalhos de Penna (2008) e Souza (2008),
onde essa questão é discutida com propriedade.
Então é possível dizer que uma distinção parecida, praticamente no mesmo grau,
se deu tanto entre a pessoa alfabetizada (ou culta) e a analfabeta (ou inculta) quanto
entre o músico alfabetizado e o analfabeto. Só que a constituição do campo musical, e
sua consequente inter-relação com as sociedades de modo mais amplo, acontece a partir
de certas particularidades que distanciam bastante as posições da música, como sistema
simbólico, e da língua, também como sistema simbólico.
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Embora música e linguagem tenham em comum o fato de poderem ser
concebidas como sistemas simbólicos, cada sistema se configura de formas distintas nas
mediações sociais. Esta configuração particular, para o bem ou para o mal, diferencia a
atuação da escrita nas duas áreas. Na música, a escrita é, certamente, útil, mas não
necessária. Ou melhor, a necessidade da escrita musical depende de qual gênero
musical, de qual circuito musical o músico pretende trilhar. Embora os gêneros de
discurso musicais e os respectivos circuitos socioculturais por onde eles trafegam
estabeleçam uma relação que podemos chamar de dialógica, de acordo com o Círculo
de Bakhtin (BAKHTIN, 2003; BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009), é possível averiguar
que muitos dos músicos que trabalham profissionalmente com certos gêneros musicais
são “analfabetos” em termos de escrita musical. E isto não implica, de modo algum, em
diferenças de qualidade ou mesmo de prestígio musical prático de uns (analfabetos) em
relação aos outros (alfabetizados).
É possível estabelecer as origens, ou ao menos o desenvolvimento, de certos
gêneros musicais a partir da escrita. E a música erudita européia é um bom exemplo
disso. Ela funciona quase que exclusivamente, pelo menos nos dias de hoje, através da
escrita e da partitura; o que não ocorre com a música étnica, por exemplo, ou com boa
parte da música popular (ainda que a escrita circule razoavelmente bem em algumas
áreas da música popular, não se pode dizer que é uma necessidade premente. Alguns
poucos músicos “alfabetizados”, arranjadores ou orquestradores, parecem ser suficientes
para dar conta da demanda de escrita dessas áreas).
O que importa ressaltar é que apenas uma parte da música que ouvimos
atualmente provém, ou pelo menos se beneficia, da escrita musical. Contudo, boa parte
das criações musicais com as quais temos contatos diários provém, ou se beneficia, dos
conhecimentos musicais “orais”, por assim dizer. Muito do que ocorre na música é
resultado de situações coletivas específicas (algo como uma junção de esforços), ou
seja, se aproxima mais do vínculo “oral” com os saberes e saber-fazer musicais. E muito
do que é escrito em música acaba tendo que ser reelaborado “oralmente”, dependendo
da nova situação na qual a escrita irá ser realizada em música.
Até aqui foi possível vislumbrar o campo musical fora da escola. E quando a
música entra na escola? Vamos ver a seguir.
A música na escola
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Como vimos até agora, a escola prioriza uma relação analítico-reflexiva com o
conhecimento mediada pela escrita. A música, dependendo do gênero ao qual nos
referimos, pode priorizar tanto o vínculo analítico-reflexivo proporcionado pela escrita
musical (como o caso da música erudita) quanto o vínculo experiencial-situacional
proporcionado pela oralidade (como parte da música popular). A conclusão possível de
se tirar com esta situação é que o conhecimento e prática mais propícios para entrar na
escola é aquele provindo dos gêneros de música escrita; aqueles que já se apresentam
com uma forma escolar mesmo antes de ir para a escola. E parece que é o que realmente
acontece (existe até uma expressão muito utilizada atualmente no âmbito educacional da
música que é “o ensino conservatorial” ou “modelo conservatorial”, que se refere ao
ensino de música calcado exclusivamente na escrita e na música erudita européia do
século 19. Como referência, ver VIEIRA, 2004).
Os atritos começam quando o público de alunos para os quais a escola vem se
abrindo provém de práticas culturais e sociais nas quais as músicas assumem outras
configurações e outros papéis diferentes daqueles que a música erudita assume nas
castas sociais mais abastadas. São outros os eixos semânticos-axiológicos (referentes à
atribuição de significados e valores às produções culturais) que entram em jogo quando
todo o processo de socialização se deu num âmbito distanciado do âmbito da música
“escolarizada”, ou (aqui para nós dá no mesmo) da música escrita. São outras as
músicas que se consideram boas ou más, bem ou mal feitas, a partir desses outros
padrões de referências (que são também padrões de qualidade).
Por um lado, seria possível pensar que alguns gêneros de música poderiam ser
abordados da forma “escriturística” sem muitos prejuízos, visto serem já caudatários
dos conhecimentos musicais provindos da escrita e da teoria tradicionais. Contudo,
assim como Queiroz (2005) nos alerta, uma abordagem qualquer pode desvalorizar (o
que reiteradamente faz) as músicas construídas a partir de outros critérios de
organização e de referências. Munido de certos padrões, uma pessoa pode achar, por
exemplo, a música popular “pobre”, e outra, com outros padrões, achar a música erudita
“chata” ou “monótona”.
Por outro lado, já não é mais possível restringir o ensino e aprendizagem de um
só gênero musical na escola (o que iria contra um discurso educacional muito em voga
que apóia o contato com a “diversidade cultural”, ainda que não se saiba exatamente
como isto seria implementado), fato que dificulta, por consequência, a utilização
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exclusiva do modo “escriturístico” de conceber, perceber e realizar músicas, e que
favoreceria apenas poucos gêneros de música ligados à escrita. Qual seria, então, a
saída?
A música na dança
Para esta pergunta não temos a resposta. Limitar-nos-emos a fornecer uma
experiência que está em andamento não como resposta, mas como indício de uma opção
possível. E essa opção passa por uma mudança de perspectiva, passa por uma mudança
de fundamentação epistemológica (mais ou menos nos termos que Sacristán, 1999,
propõe para a superação da dicotomia prática x teoria à qual nos aproximamos neste
texto).
O exemplo de um curso universitário de dança parece ser interessante de ser
abordado porque, além de conter as dificuldades comuns que as escolas enfrentam com
relação à música (falta de familiaridade dos alunos, falta de carga horária curricular
suficiente, falta de condições materiais etc.), a formação das bailarinas e bailarinos
exige um contato constante e cotidiano com a música. Não só um contato, o que
certamente ocorre com vários alunos das escolas regulares e seus iPods ou MP3, mas a
necessidade de compreensão mais aprofundada e até de manuseio da música, visto que
as danças sem música, embora existam, são exceções à regra.
Tanto quanto na escola regular, no curso de dança também não é possível um
contato intenso e continuado com os conhecimentos musicais específicos nos mesmos
nível e intensidade que a escrita musical exige dos músicos. Por isso, empreendi várias
experiências na intenção de buscar uma forma de vincular algum tipo de conhecimento
musical na formação das bailarinas e bailarinos. A primeira foi a discussão, com as
próprias alunas e alunos, sobre quais seriam os conhecimentos que eles considerariam
necessários para melhorar suas práticas na dança. Essa discussão esbarrou na falta de
experiências artísticas dos alunos (quando haviam eram frequentemente atreladas à
situações de audições de escolas de dança) que acabavam por fazer com que
“imaginassem” o que gostariam de aprender, o que muitas vezes não correspondia às
reais necessidades profissionais depois da graduação.
Uma segunda tentativa passou pela apropriação das músicas através do corpo, ou
melhor, através da própria dança. Os alunos “dançavam” em situações musicais diversas
(por exemplo: músicas com rítmicas difíceis e assimétricas, músicas sem marcação
temporal regular, músicas de vários estilos diferentes etc.) e, a partir dessas
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experiências, tentávamos discutir o ocorrido: dificuldades, facilidades, indiferenças etc.
Essa abordagem teve como obstáculo o fato de que, nos exercícios musicais dançados,
as preocupações das bailarinas e bailarinos se desviavam para questões exclusivas da
dança, ficando a música para um segundo plano (aliás, como ainda é costume nas aulas
de dança, o que eu queria evidentemente evitar).
Uma nova tentativa se deu com o ensino de instrumentos. Pensava então serem
necessárias experiências com o fazer musical para que as alunas e alunos pudessem, de
alguma forma, incorporar certas preocupações específicas do fazer musical e, através
delas, algum conhecimento musical. Aqui também houve problemas. Não notei nenhum
indício por parte das alunas e alunos de que alguma ponte tivesse sido construída entre
as experiências musicais e as experiências com a dança. Os participantes aprovavam as
práticas instrumentais (exclusivamente com instrumentos de percussão), até gostavam
de tocar, contudo ficavam impermeáveis à transposição desses conhecimentos para a
dança e suas dificuldades musicais continuavam presentes.
Uma última tentativa se deu com uma série de improvisações coletivas, nas
quais foi possível juntar numa mesma atividade musicistas, bailarinas, bailarinos e
atrizes. Esta experiência, embora tenha ocorrido numa atividade extracurricular, pareceu
apontar um caminho possível de ser explorado (talvez até mesmo a falta do
compromisso estrito com a necessidade de cumprir um conteúdo pré-determinado numa
grade curricular tenha permitido que este caminho aparecesse). A improvisação coletiva
forçou a construção de enunciados completos por parte dos participantes e, por
consequência, favoreceu o aparecimento explícito de diferenças fundamentais entre as
várias práticas artísticas. Foi aí que os conflitos entre termos comuns, entre conceitos,
procedimentos, concepções e atribuições de significados e valores explodiu. E foi aí que
percebi a necessidade de alterar os modos de abordagem.
Nossas experiências com improvisações coletivas iniciaram com propostas bem
simples, mas que já indicaram algumas diferenças de concepção. Decidíamos, por
exemplo, que os musicistas iriam propor inicialmente suas músicas, começando a tocar
livremente, enquanto as bailarinas e bailarinos, na medida de suas vontades, iriam
dançando conforme os estímulos musicais propostos. Outras vezes, o contrário, ou seja,
algum bailarino ou bailarina iniciava sua dança livremente e, conforme a vontade dos
musicistas, eles iriam tocando a partir dos estímulos coreográficos. Tudo isso em
pequenos módulos de quatro a cinco minutos cada. Logo depois discutíamos os
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resultados (as improvisações foram registradas em vídeo). Depois de vários encontros
“práticos”, marcávamos um dia para assistir e comentar os vídeos gravados.
Nesse processo pudemos coletar várias questões interessantes que consideramos
habitarem a dimensão discursiva das artes. Esta, segundo Bakhtin (2009), seria a
dimensão através da qual a significação e os valores simbólicos são estabelecidos,
circulam e são apropriados pelas pessoas. A música, por essa via, é tomada em seu nível
comunicacional e situacional, portanto coletivo e cultural, que se sobrepõe à dimensão
mais abstrata e impessoal que a escritura musical oferece.
A primeira questão se deu nas dificuldades declaradas em interpretar uns as
“falas” dos outros. Aqui as formas de organização dos enunciados se mostraram
bastante diversificadas e até conflitantes (para Bakhtin, 2003, enunciados são unidades
de significação da língua. Segundo ele, nós aprendemos a nossa língua não através de
palavras ou frases, mas através de enunciados significativos e situacionais). Enquanto os
musicistas organizavam suas improvisações a partir de concepções mais estruturais
(encadeamento de seções contrastantes; construção dos improvisos por acúmulo ou
complementação, dentre várias outras opções), as atrizes e atores se organizavam a
partir de pequenas estruturas narrativas criadas improvisadamente no estabelecimento
de algumas relações iniciais entre eles próprios (tais como “brigas”, jogos de atrações-
repulsões, colaborações etc.). No terceiro vértice, as bailarinas e bailarinos se
estruturavam reiteradamente a partir de movimentos isolados, fornecendo os padrões
iniciais para o desenvolvimento de seus enunciados (quase sempre invenções infinitas,
sem volta aos pontos já percorridos). Essa compreensão meio geral da situação das
preferências enunciativas já se tornou uma base de informações de uma arte para as
outras. As propostas, a partir dessa constatação, começaram a brincar com essas várias
formas de estruturar enunciados, que passaram a ser foco de experimentação de todo o
grupo.
Uma segunda questão fortemente presente foi a com relação ao que chamamos
provisoriamente de “tolerâncias/intolerâncias”. E essas tolerâncias e intolerâncias
apareceram com maior intensidade na área da temporalidade. Uma delas dizia respeito à
repetição de cada proposta, de cada tema, motivo ou assunto dentro de um mesmo
improviso. As bailarinas e bailarinos, por exemplo, mostraram dificuldades de repetir
muitas vezes movimentos ou frases (até mesmo poucas vezes), ao contrário dos
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musicistas que demonstravam grau maior de tolerância à repetição. Quanto às atrizes e
atores, ficaram no meio termo.
Outro tipo de tolerância/intolerância se mostrou quanto às durações, tanto dos
improvisos por inteiro quanto das seções ou partes dentro dos improvisos. Nesse caso,
as bailarinas e bailarinos mostraram uma necessidade temporal muito maior na
dimensão do enunciado por inteiro, na tendência de fazerem improvisos enormes (de 40
ou 50 minutos), não tolerando, contudo, durações muito longas nas seções ou partes,
tendendo a mudá-las frequentemente. Já os musicistas mostraram boa adaptação quanto
à variação de tempo do enunciado inteiro. Quanto às seções, tenderam a estendê-las
mais do que as bailarinas e bailarinos. Atrizes e atores tenderam a durações longas
também na totalidade e durações menores nas seções.
Um último tipo de tolerância/intolerância se mostrou nas diferenças de graus de
contrastes considerados entre os representantes de cada área artística. Enquanto
bailarinas, bailarinos, atrizes e atores pareciam mais propensos a altos contrastes,
principalmente de atividades e de deslocamentos espaciais (talvez até mesmo como
formas de mudanças de tônus muscular, recurso utilizado para “descansar” o corpo dos
esforços de dançar e atuar), os musicistas pareciam mais propensos a contrastes mais
sutis (mais no âmbito das mudanças de tessituras, de instrumentos, de rítmica).
Inclusive aqui tivemos os maiores dificuldades para perceber, uns, o que os outros
consideravam “contrastes”.
Sobre as práticas educativas
Considero que esta experiência, que iniciou uma investigação mais aprofundada
sobre atividades educativas na música, mostraram a necessidade de se considerar a
música sob outros parâmetros. Visto que os modos de vínculo com a música
tradicionalmente oferecidos pela forma escolar parecem se restringir a um só modo de
considerá-la (ou seja, da forma escrita), e mais: visto que esse modo foi elaborado pelo
campo musical para a formação de músicos profissionais, e de modo mais restrito ainda,
para a formação de músicos profissionais eruditos, imagino que esta não seja a melhor
forma para a música entrar na escola.
Por um lado, a forma “escolar” do ensino de música demanda um grau muito
elevado de intensidade e frequência com um tipo de conhecimento que não é imediato,
não é envolvente (no sentido de localizar o aluno “dentro” do mundo musical, como
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usuário de suas significações) e só traz resultados mínimos se for cumprido à risca, em
toda sua longa e complicada extensão.
Por outro lado, existem vínculos estabelecidos com as músicas que não
participam desta forma “escolar” de ensiná-la. Os alunos se convertem em observadores
e analistas da música antes mesmo de incorporá-la. Com a língua materna acontece o
contrário: depois de vários anos mergulhados em seus enunciados significativos,
falando, ouvindo, tentando entender e se fazendo entender pelos outros, daí é que vamos
para a escola aprender a escrevê-la, e daí analisá-la, a objetivá-la, a abstraí-la das
situações ordinárias e cotidianas. Com a música nem sempre é isso que ocorre. Alguns
alunos podem ir para a escola tendo algumas referências musicais incorporadas, caso
alguém da família toque frequentemente algum instrumento, ou cante, ou seja músico;
caso a comunidade ou o grupo em que vive cultive alguma atividade musical, como em
festejos religiosos (folia de reis), profanos (bloco de carnaval) ou mesmo costumes
domésticos (churrascos com pagode em família); mas não todos.
No caso relatado aqui, as formas de contato discursivo direto com a música, por
um público de não músicos e sem aspiração nenhuma de ser musicistas, causaram uma
aproximação bem mais efetiva com o mundo musical do que as formas mais analíticas.
Sem desprezar, evidentemente, os conhecimentos proporcionados pela escrita musical,
principalmente nas questões referentes à distinção de elementos, à decomposição
analítica dos enunciados musicais e à visualização mais estrutural das músicas, penso
que mesmo na área das experiências, digamos, “orais” com a música existe uma série de
conhecimentos, de natureza inclusive bastante sutil no sentido também da discriminação
de formas de realização e de aspectos organizacionais das músicas, que pode ser
desenvolvida a partir de uma concepção musical mais discursiva do que analítica.
Para tentar deixar um pouco mais clara essa ideia, apenas o fato de levar em
conta outras dimensões que não apenas o conteúdo musical que se pretende trabalhar já
pode alterar de forma bastante radical as práticas educativas na área musical. O
enunciado, tal como o concebe o Círculo de Bakhtin, não se restringe ao conteúdo
linguístico expressado, mas envolve toda a situação particular e única na qual o
enunciado acontece (a “situação enunciativa”); envolve inúmeros outros enunciados que
o compõe, como palavras dos outros incorporadas; envolve as relações sociais entre o
falante e os ouvintes.
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Esse universo que envolve o ato de enunciar, na língua, também envolve os
enunciados musicais. E vale uma paráfrase da seguinte afirmação de Volochínov: “Na
realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou
mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc.”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.98-99), que aqui ficaria assim: na realidade, não
são notas musicais que tocamos ou escutamos, mas músicas boas ou más, empolgantes
ou repugnantes, importantes ou triviais, adoráveis ou insuportáveis, memoráveis ou
desnecessárias etc. É, portanto, a partir desses princípios discursivos e enunciativos que
estabeleço os referenciais para minhas práticas educativas musicais na dança.
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Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000443