“os sons que vÊm da cozinha”: reflexÕes sobre a … · evidência representações do popular...
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“OS SONS QUE VÊM DA COZINHA”: REFLEXÕES SOBRE A CANÇÃO “DEIXA
ESSA VERGONHA DE LADO” NA OBRA DE ODAIR JOSÉ
Cristiane Pereira Martins
Durante a década de 1970 no Brasil, a música brega, um tipo de música romântica,
foi relacionada com as camadas mais populares da sociedade. Esse gênero representou uma
enorme parcela que nem sempre consumia as produções artísticas da classe média, dos
estudantes universitários e das elites, ou seja, parcela que estava á margem desse panorama.
Fundamentalmente por trazer a tona o cotidiano da sociedade brasileira em um momento de
luta política, econômica, social e cultural. Este rótulo se deu ao fato de o segmento de classe
média que os rotula ter contato mais próximo com a empregada doméstica e ouvir da sala os
sons que vêm da cozinha, através do rádio ou na voz da própria empregada doméstica.
Como observado, as empregadas domésticas não apenas gostam de ouvir música,
mas de também costumam cantar e pelo duas delas deixaram a cozinha e tornaram-se nomes
na nossa música popular: a sambista Clementina de Jesus (no campo da MPB) e a badadista
Carmem Silva, destaque dessa geração de artistas tidos como “cafonas”.
A palavra “brega”, só começou a ser utilizada no início dos anos de 1980, quando
Eduardo Dusek lança sua música Brega e Chique. Conforme, o historiador Paulo César em
seu livro Eu não sou cachorro não- música popular cafona e ditadura militar :
Ao longo da década de 1970, a expressão utilizada é ainda “cafona”, palavra de
origem italiana, cafóne, que significa individuo humilde, vilão, tolo. Divulgada no
Brasil pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, a expressão “cafona” subsiste
hoje como sinônimo de “brega”, que, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira,
é um termo utilizado para designar “coisa barata, descuidada e malfeita” e a “musica
mais banal, óbvia, direta, sentimental e rotineira possível, que não foge ao uso sem
criatividade de clichês musicais ou literários. (ARAÚJO, 2007: 20)
O cantor/compositor Odair José evidenciou em suas canções um sujeito histórico
outrora excluído. Nelas, ele retratava um universo feminino essencialmente discriminado pela
sociedade, precisamente no auge da sua produção artística que coincidiu com o período em
que vigorava o AI-5 (entre 1968 e 1978), tais como, mulheres que exerciam atividades
Mestranda em História, PPGH-UDESC-Florianópolis-SC, Laboratório de Imagem e Som (LIS) E-mail:
[[email protected]] Bolsista- Promop.
domésticas e mulheres ligadas à prostituição. O trabalho visa problematizar por meio de sua
obra, sobre essa discriminação desses sujeitos e de suas experiências.
Segundo Paulo César de Araújo,
É o que se procurará observar em cada uma das faixas de discos analisados, já que
ali estão registrados sonhos, angústias, tragédias, protestos, dores, amores, além da
visão de mundo de amplos setores das camadas populares. E isso produzido em um
período da nossa história em que os direitos constitucionais estavam suspensos e os
canais de expressão da insatisfação popular, bloqueados. Entretanto, por entre as
brechas do sistema, representantes de setores populacionais mantidos à margem do
centro de decisão política conseguiram falar e ser ouvidos. (ARAÚJO, 2007:14)
Dessa forma, pesquisar a música brega no contexto da ditadura militar coloca em
evidência representações do popular sobre o popular e as experiências dos artistas em suas
canções. A música brega, portanto, representou uma forma de resistência popular perante um
regime que a oprime, se configurando como um meio fundamental pelo qual é possível
compreender as vivências de mulheres e homens, se opondo a um modelo de vida imposto.
Foi uma expressão artística que chegou às camadas mais pobres, nos subúrbios e em
lugares menos elogiados, os artistas cantavam a vida ordinária dessa sociedade: seus amores,
suas ocupações, seus dilemas e seu cotidiano. Podemos perceber canções que tratam de
cachaça, traição, trabalho, “mulher de vida fácil” e mulher ingrata, canções que faziam
denúncia ao autoritarismo e a segregação social existentes, sendo algumas censuradas, como
foi o caso de Pare de tomar a Pílula1, canção censurada por tratar de questões extremamente
proibidas num governo conservador. Para pensar sobre a categoria de cotidiano a autora,
Maria Odila Dias destaca:
O conceito de cotidiano parece implicar contradição com o próprio termo que indica,
para muitos, uma ideia de rotina, de lazer, de fatos encadeados num plano de
continuidade, campo da necessidade e da repetição, área reservada ao consumo, à
cultura dominante. Entretanto, para alguns pensadores de nossa contemporaneidade,
o conceito sugere, antes, mudança, dissolução de culturas, possibilidades de novos
modos de ser. (DIAS, 1998: 226)
O cotidiano antes do impacto da modernidade e da integração de nossa sociedade no
capitalismo contemporâneo foi visto como campo de praticas de tradição dos papéis
normativos e culturais transmitidos pela cultura tradicional. Área preferida pelos antropólogos
como campo de permanências e de atuação das categorias do inconsciente profundo de
1 Uma vida só (Pare de tomar a pílula) (Odair José – Ana Maria) Gravação de Odair José. LP “Odair José”.
Polydor. P. 1973
culturas milenares e das estruturas familiares. Portanto, o cotidiano, em vez de fragmentar,
participa em busca de conhecimentos novos para os seres sociais, culturalmente diversos, em
diferenciadas temporalidades aparece como um dos principais trunfos da hermenêutica do
cotidiano na sociedade contemporânea.
Para se compreender o pensamento musical de uma época é consequentemente nos
aproximarmos dos sons produzidos no passado, assim é importante entender a construção, a
difusão e funcionamento da música nas sociedades. A música dessa forma trabalha com os
sons e ritmos nos seus diversos modos e gênero, e ás vezes permite realizar as mais variadas
atividades sem exigir atenção centrada do receptor, apresentando-se no nosso cotidiano de
modo permanente e imperceptível. A canção e a música popular podem ser pensadas como
uma fonte rica para compreender certas realidades da cultura popular, ou seja, a história de
setores da sociedade pouco lembrada pela historiografia.
Sons e músicas são elementos que se fazem e se manifestam no tempo: o seu
desaparecimento acontece quase no mesmo instante de sua aparição. Em primeiro momento,
seus registros imediatos invadem e se assentam em primeiro lugar na memória. Após, esses
registros na memória ganham a forma da linguagem e da notação, para não perderem-se.
Nesse sentido, podemos pensar em possibilidades de se escutar essas sonoridades do passado
e compreender como as sociedades criaram seus sistemas de produções de sons e regimes de
escuta.
Deste modo, a música não se constitui apenas como som, silêncio e ritmo, mas
também tudo aquilo que se escreve e se diz sobre ela, situando-se assim também no mundo
textual que aparece como parte indissociável da construção do mundo das ideias. A música
tornou-se para o pesquisador, um documento importante e instigante, contendo ali várias
possibilidades de análise do cotidiano, das mentalidades, das questões universais como das
questões quase invisíveis, de tão corriqueiras. (MORAES, 2011:160)
Devemos renunciar a uma postura de domínio do passado, e pensar sempre numa
interpretação do passado. Assim, toda interpretação histórica depende de um sistema de
referência e que por seguinte qualquer análise de um “dado” remete à subjetividade do
historiador. Os fatos originam-se de uma escolha, pois já estão por uma construção de sentido
na objetividade, promovendo materiais oriundos dos arquivos revelados pelo pesquisador. “O
historiador é levado a explicitar de onde ele fala, ou seja, é importante tornar mais
transparente seu ofício, suas ferramentas, ou as mediações que lhe permitem a construção de
sua trama, pois a história é sempre um conhecimento feito de mediações.” (DOSSE, 2012:13)
Assim, inserimos a obra do artista popular Odair José e suas personagens femininas,
que não tem nome, pois são muitas, um tipo de música popular, que chega dentro dos lares
mais afastados, no seio das famílias, dentre as quais priorizo as mais humildes. Canções que
tratam de prostitutas, homossexuais e temas como noitadas de amor, essas entre outras eram
consideradas ofensivas pela sociedade conservadora, principalmente por retratarem o
cotidiano desses sujeitos. Para Paulo César de Araújo,
O que rolava na memória popular brasileira era o namoro no portão sob a luz do
luar- diz ele- “e eu vim falando de cama, de pílula, de puta, de empregada doméstica
porque essa é a realidade do Brasil.”. E eu sou um cantor da realidade. Eu não sou
um cantor de sonhos. Eu sempre digo isto ás pessoas: não ouçam os meus discos
esperando ouvir sonhos, vocês vão ouvi a realidade. Então foi por isso que eu me
tornei um artista polêmico e a censura começou a me proibir. (ARAÚJO, 2007: 57)
Ao se pensar no universo popular, por exemplo, que é geralmente esquecido pela
historiografia da música, e quando se refere a ele, reforça apenas as perspectivas românticas,
nacionalistas ou folclóricas, podemos perceber que de modo geral, ela está fortemente
marcada por um paradigma historiográfico tradicional e eurocêntrico, normalmente associado
àquela concepção de tempo linear e ordenado, em que os artistas, gêneros, estilos e escolas
sucedem-se mecanicamente, refletindo e reproduzindo, assim, uma postura bastante
conservadora no quadro da historiografia contemporânea. Para os historiadores, a busca de
sentido se faz através da narrativa e da própria linguagem, evitando dessa maneira lançar
conceitos e fundamentações intelectualistas, portanto o objetivo da pesquisar será analisar
sujeitos esquecidos pela historiografia da música popular.
No ano de 1973, Odair José participava do programa de Luiz Aguiar quando ouviu o
mesmo falar sobre um texto que falava sobre as reivindicações das empregas domésticas, na
qual descrevia os preconceitos e dificuldades das trabalhadoras domésticas no seu cotidiano.
O cantor achou o texto interessante e se propôs que utilizar aquela temática nos versos de uma
canção. O sucesso da canção Deixa essa vergonha de lado, mostrava o estigma de trabalho
que envolvia o ofício das domésticas do Brasil e algumas barreiras que as impedia de se
relacionarem com um rapaz de classe média. “Deixa essa vergonha de lado / pois nada disso
tem valor / por você ser uma simples empregada / não vai modificar o meu amor...” Porém, a
letra vai além da mera discrição do dilema amoroso dos personagens, na segunda estrofe da
canção faz referência ao quarto da empregada, apontava para o uso do espaço numa sociedade
de classes, na qual o quarto dos empregados era reservado aos fundos. “Eu sei que o seu
quarto fica lá no fundo / e se você pudesse fugia desse mundo / e nunca mais voltava”.
Segundo o cantor, essa canção falava de uma pessoa que convivia com a família, mas não era
da família, ou seja, representado pela emprega doméstica, aquela secretária de casa que leva
os filhos dos patrões a escola, servia para fazer a comida, mas não servia para casar com os
filhos dos patrões.
Para autora Tania Navarro Swain, a identidade não passa de uma prisão de limites
impostos aos corpos, de modos de ser que esculpem comportamentos, definem funções. A
mesma é entendida como a arma de poder, estratégia de dominação, identidades ilusórias e
fictícias. Segundo, Swain:
A identidade de fato, é feito de estereótipos, de generalizações. Ela não tem uma
essência, que se prolonga ao sabor do tempo e das intempéries sociais. Minha
identidade, se é que assim podemos denomina-la, é apenas meu presente, construído
na experiência vivida do agora, em assujeitamentos e resistências diversas, dentro de
uma representação social e fora dela, posto que a crítico e desconstruo. (SWAIN,
2010: 13)
Nesse sentido, podemos pensar na força de repetição de discursos, na canção Deixe
essa vergonha de lado, que se destilam discriminação contra o trabalho doméstico, ou seja,
contra tudo que ameaça o poder masculino. Uma das formas de dominação masculina é a
soberania do falo. O falo simbólico, instaurando o domínio da linguagem. O falo fala de
poder! O falo fala de dominação, de hierarquia de binarismo. Dessa forma, é necessário que
se problematize essas relações de poder sobre os femininos, pensado sempre no plural, pois
mulheres são impedidas de viveram sua condição de sujeitos, este é o resultado de seres
construídos no feminino, estas são as consequências da linguagem do falo. O atrelamento a
um corpo definido, a um destino biológico, ao útero são construções sociais, o biológico
binário é uma criação do poder patriarcal. Assim como o “falo falante” o é.
Embora na canção Deixe essa vergonha de lado, houvesse uma crítica predominante
política ao trabalho doméstico, a música também narra à história de um casal onde o homem,
com o seu discurso amoroso, diz que o fato dela ser empregada não ia fazer com que ela o
perdesse, ou modificasse o seu amor. Aqui, a imagem de um sujeito exercendo relações de
poder fica evidente, pois a mulher deveria ser submetida a tal ação, é importante que reflita
sobre a construção de identidade da personagem da empregada doméstica para compreender
seu papel exercido naquele contexto.
Deixe essa vergonha de lado
Eu já sei que nessa casa onde você diz morar
Onde todo dia no portão eu venho lhe esperar
Não é a sua casa
Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo
E se você pudesse fugia desse mundo
e nunca mais voltava
Eu já sei que esse garoto que você leva pra brincar
E que todo dia na escola você vai buscar
Não é o seu irmão
Ele é filho dessa gente importante
E às vezes também é seu por um instante
Apenas dentro do seu coração
Deixe essa vergonha de lado!
Pois nada disso tem valor
Por você ser uma simples empregada
Não vai modificar o meu amor (bis)
Eu já sei porque você não me convida pra entrar
E se falo nessas coisas, você procura disfarçar
Fingindo não entender
Eu já sei porque você não me apresenta aos seus pais
Eu entendo a razão de tudo isso que você faz:
É medo de me perder
Eu já sei que na verdade nada disso você quis
Você simplesmente pensou em ser feliz
Aí, não quis dizer
Mas você de uma coisa, pode ter certeza
O amor que você tem por mim é a maior riqueza
Que eu preciso ter
Deixe essa vergonha de lado!
Pois nada disso tem valor
Por você ser uma simples empregada
Não vai modificar o meu amor2
No início dos anos 70 as domésticas se mobilizaram em busca destes direitos e o
disc-jóquei Luiz Aguiar, que tinha grande parte de sua audiência, se solidarizou com a causa e
apoiou suas reivindicações através do programa comandado por ele na Rádio Tupi de São
Paulo. Nesse mesmo ano, as empregadas domésticas alcançaram um primeiro resultado da sua
mobilização por direitos sociais: em março daquele período o presidente Médici assinou o
decreto determinando que a partir dali o trabalho doméstico devesse passar pelo CLT
(Consolidação das Leis do Trabalho). Em decorrência da canção Deixa essa vergonha de
lado, que foi lançado em meio a esse processo, Odair José nesse momento torna-se o principal
o referencial das domésticas no campo musical, foi denominado como o “terror das
empregadas domésticas”, termo utilizado pela cantora Rita Lee. Segundo a autora, Ângela
Figueiredo:
É importante ressaltar, passados 25 anos de publicação da Constituição, em 1988,
somente em abril de 2013 a sociedade brasileira voltou a discutir as questões
relativas à extensão dos direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas. É
preciso entender, portanto, o impacto da aprovação dessa lei remete-nos a uma
reflexão muito mais aprofundada acerca do direito trabalhista, da cidadania tardia e
da humanidade das trabalhadoras domésticas. No ano de 2013, foi aprovada em 6 de
junho a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Nº 66/2012 objetiva ampliar os
direitos das trabalhadoras domésticas já assegurados a outras categorias
profissionais. (FIQUEIREDO, 2011: 290)
O trabalho doméstico segundo a autora pode ser compreendido não apenas como o
resquício das relações escravistas inserido na modernidade nem como uma relação de
contradição ao discurso moderno. Lugones (2012) demostrou como a colonialidade do poder,
resultante da experiência e da hierarquia racial da colonização, significou também uma
colonialidade de gênero, por isso mesmo a autora define o estado moderno colonial de gênero.
Dessa forma, o serviço doméstico só é visto quando não é realizado, e do ponto de
vista de quem efetua o trabalho, a condição de invisibilidade no espaço doméstico é a melhor
forma para ser considerada uma boa profissional. Essa categoria de “trabalhadora doméstica”
é, sem dúvida, o resultado do entrecruzamento de pelo menos três categorias sociais: gênero,
raça e classe que não naturalizados formando diferentes maneiras de subordinação, tornados
tão comuns que somos levados a crer que são imutáveis e, como tais, têm sido úteis para a
2 Deixe essa vergonha de lado (Odair José – Andreia Teixeira) Gravação de Odair José. LP “Odair José” – Polydor. P. 1973
manutenção do discurso que normatiza as históricas desigualdades sociais e culturais. O
trabalho doméstico é na maioria das vezes executado por uma única trabalhadora na casa, e
esse excesso de atividade torna a rotina das trabalhadoras exaustiva.
É por meio da canção de Odair José que o trabalho visa problematizar as relações de
dominação masculina sobre o feminino presente no discurso da canção. Pierre Boudieu
destaca:
Sempre vi na dominação masculina e no modo como é imposta e vivenciada, o
exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo
de violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce
essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento,
ou mais precisamente do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última
instância do sentimento. (BOURDIEU, 2014: 12)
O antropólogo, sociólogo Pierre Boudier, analisa a dominação masculina que
sobrevive na sociedade atual e nos faz refletir sobre o tema com uma postura crítica. O autor
inverte a lógica da causa- efeito, afirmando dessa forma que essa dominação não é biológica,
mas uma construção arbitrária do biológico que fundamenta as divisões sexuais espontâneas.
O autor recorre à história das mulheres para mostrar que existem mecanismos que
podem contribuir para a exclusão feminina, mostrando como várias instituições, Igreja,
Escola, a Família e o Estado ratificam a ordem social preponderante. O livro traz o seguinte
questionamento: será possível neutralizar todos os mecanismos que fazem da dominação
masculina algo “natural” em nossa sociedade?
“Dar voz” a uma multiplicidade de sujeitos pressupôs todo um processo de
hermenêutica de desvendamento do omisso e oculto. Assim, a relação do sujeito com seu
objeto se fazem de maneira dialética e participante estabelecendo uma multiplicidade de
tempos, assim como uma pluralidade de sujeitos. As temáticas trazidas por essas canções
rompem com a lógica do silêncio, e assim possibilita a representação de um setor social que
foi ignorado por um regime altamente autoritário. Dessa forma, procurou esclarecer
justamente esse autoritarismo latente que a sociedade brasileira viveu durante a década de
1970 no Brasil, principalmente a partir do período do AI- 5, quando o ato de cantar e compor
tornou-se efetivamente caso de polícia, foram produzidos diversos textos, abordando a ação
da censura sobre a música popular que o repertório cafona abordava.
É importante pensar dessa forma, na canção Deixe essa vergonha de lado, no
“serviço doméstico” com um instrumento para problematizar as relações de poder existentes,
uma vez que se trata de uma atividade massivamente feminina. Segundo a autora Jurema
Brites:
As mulheres parecem menos incomodadas com a subalternidade que lhes é exigida
no serviço, já que no interior de seu próprio grupo social desenvolveram táticas para
lidar com esta posição presumida da condição feminina. Tampouco guardam muito
apego por uma carreira com estabilidade no emprego. Quando as condições de
trabalho superam à medida que consideram possível de ser suportada, facilmente
abandonaram os empregos. Se por acaso entrar algum dinheiro extra na economia
doméstica (por exemplo, caso recebem algumas indenizações), este também será um
bom motivo para ficarem em casa, ocupadas com suas funções de donas de casa.
(BRITES, 2007: 296)
O trabalho doméstico nunca é o horizonte profissional das mulheres mais jovens,
mas com o passar do tempo, o pragmatismo de manter a família mostra as vantagens dessa
ocupação, um cenário que faz com que em outras profissões mais reconhecidas se torne mais
árdua ainda a sobrevivência. O que podemos perceber nesse contexto é que a condição da
subalternidade vai se construindo ao longo do tempo. (BRITES, 2007: 296)
Essa análise contribuiu para pensar sobre a hierarquia de gêneros em várias instâncias
da sociedade, nos fornecem instrumentos para constatar sobre a dominação masculina, as
formas como ela se impõe. É preciso pensar em vias específicas para a libertação de sujeitos
que vivem em uma sociedade que sofre com as relações de poder.
Considerações finais
Nesse sentido, foi importante no trabalho considerar a canção Deixe essa vergonha
de lado para nortear a descrição e discussão do mesmo. Uma canção que é uma representação
de um imaginário feminino, que nos leva a problematizar a condição da empregada doméstica
na década de 1970 e na contemporaneidade também. Esse estudo visou recuperar a memória
de uma cultura popular, deixado pela historiografia, trazendo a tona lutas, embates e suas
formas de expressão e resistência.
São múltiplas as escutas e por consequência também são as interpretações, pois
partem das experiências individuais e coletivas, da percepção que os sujeitos têm de si e do
mundo no qual eles atuam. Odair José evidenciou também nas canções, Deixe essa vergonha
de lado (1973), Vou tirar você desse lugar (1972), Revista Proibida (1973), temáticas de
experiências românticas, colocando sempre a mulher como um sujeito que estaria em uma
posição de inferioridade. Em todas temáticas abordadas o feminino é altamente representado
de forma opressora.
Desta maneira compreendemos que o trabalho utilizou-se de linguagens e da
historiografia, tidas como essenciais para compreender esse trabalho, no sentido de abarcar os
discursos interligados na documentação, elucidando também as possíveis ambiguidades
presentes, portanto perceber as construções discursivas no bojo de seu tempo histórico. Ao
propor a análise da canção como fonte, significa interrogá-las, tanto em seus aspectos
históricos, quanto no que tange aos problemas sociais, culturais e políticos que estão sendo
investigados.
Referências Bibliográficas
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BOUDIER, Pierre. A dominação masculina/ tradução Maria Helena Kúhner. – 2ª ed. Rio de
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