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Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade no Ensino,
na Pesquisa e na Extensão – Região Sul
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OS USUÁRIOS E AS ESPECIFICIDADES DO SABER: SAINDO PARA RUA
Andréa Luciana Poerner Deschamps Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – [email protected]
Carla Regina Cumiotto Universidade Regional de Blumenau – [email protected]
Gustavo Angeli Universidade Regional de Blumenau – [email protected]
Eixo temático: Conhecimento Interdisciplinar
1. Introdução
O Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) é regulamentado pela Portaria
Interministerial nº 421, de 03 de março de 2010 e tem como pressuposto a educação pelo trabalho. Suas
ações intersetoriais são direcionadas para o fortalecimento de áreas estratégicas do Sistema Único de Saúde
(SUS) e seu fio condutor é a integração ensino-serviço-comunidade. O financiamento é realizado pelo
Ministério da Saúde, através de bolsas para tutores, preceptores (profissionais de saúde) e estudantes de
graduação da área da saúde (BRASIL, 2013).
O PET-Saúde/Saúde Mental - crack, álcool e outras drogas (PET-Saúde/Saúde Mental/Crack), foi
aprovado através da portaria conjunta nº. 10 de 14.12.10, contemplando o projeto da Universidade Regional
de Blumenau (FURB) e Secretaria Municipal de Saúde de Blumenau (SEMUS), com atividades de ensino,
pesquisa e extensão a serem desenvolvidas nos três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II, CAPSad e
CAPSi) do município de Blumenau – SC.
Os Centros de Atenção Psicossocial são serviços de saúde e caracterizam-se por serem dispositivos
substitutivos ao hospital psiquiátrico, tendo como premissa básica o processo de desinstitucionalização, com
caráter municipal, aberto, comunitário e de atenção diária. Seu objetivo é oferecer atendimento a população
portadora de transtornos mentais, através do acompanhamento clínico e da reinserção social, possibilitando
acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários.
(BRASIL, 2013b)
Em nosso caso, o CAPS Álcool e Drogas (CAPSad) apresentou-se como instituição de integração
entre ensino-serviço e, conforme o Ministério da Saúde (2004), o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e
Drogas (CAPSad) oferece atendimento aos usuários do serviço que fazem uso prejudicial de álcool, crack e
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outras drogas, permitindo o planejamento terapêutico dentro de uma perspectiva individualizada de evolução
contínua, buscando reintegrar o indivíduo a sociedade de forma produtiva e participativa a ambientes sociais
e culturais, onde se desenvolve a vida cotidiana, possibilitando o resgate da cidadania e o respeito as
diferenças.
O CAPSad de Blumenau possui a proposta de acolher e cuidar de pessoas com dificuldades
decorrentes do uso abusivo ou dependência de álcool e outras drogas, oferecendo diversos tipos de
atividades como: acolhimento, avaliação interdisciplinar, atendimento individual, atendimento aos
familiares, grupos, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares, orientações pedagógicas preventivas para a
comunidade e usuários, atividades de inclusão social, entre outras que atendem a necessidade de cada
indivíduo. Possui leitos para o repouso, bem como para desintoxicação ambulatorial de usuários que
necessitam de cuidados intensivos e que não demandem por atenção hospitalar.
Neste contexto de práticas de políticas públicas do SUS, são assumidas as proposições feitas no
contexto da Reforma Psiquiátrica e na Política Nacional de Humanização (PNH), que partem de um modelo
baseado em uma rede diversificada de serviços na comunidade, atuando de forma integrada, descentralizada
e intersetorial e na ―valorização da dimensão subjetiva e coletiva em todas as práticas de atenção e gestão no
SUS‖ (BRASIL, 2010). Esta mudança na forma de atenção à saúde, em especial à saúde mental, requer a
compreensão do sujeito em sua integralidade, possibilitando a participação ativa, o processo de escuta, de
vínculo e de respeito, evitando-se práticas de cuidado reducionistas, hospitalocêntricas e medicalizantes, que
foram historicamente construídas na área da saúde.
Desta forma, diante da complexidade que envolve o fenômeno do uso de drogas, a intervenção
conjunta é fundamental, sendo que neste processo encontra-se o trabalho interdisciplinar, onde as práticas
profissionais específicas avançam para articularem-se, visando à resolução de problemas individuais e
coletivos.
O processo de trabalho do PET-Saúde/Saúde Mental/Crack no CAPSad, partiu deste contexto, com o
objetivo de possibilitar a produção de saúde e contribuir com a criação de novos dispositivos de promoção
de saúde, através das diretrizes da clínica ampliada, com ênfase na interdisciplinaridade.
A proposta de clínica ampliada é ser um instrumento para que os trabalhadores e gestores da saúde
possam enxergar e atuar na clínica para além dos pedaços fragmentados, sem deixar de reconhecer e
utilizar o potencial desses saberes. Este desafio de lidar com os sujeitos buscando sua participação e
autonomia no projeto terapêutico é tanto mais importante quanto mais longo for o seguimento e quanto maior for a necessidade de participação do sujeito no projeto terapêutico (PASSOS, 2006).
Dentro desta perspectiva, perceber o indivíduo em suas relações, sua singularidade, analisando situações de
risco e vulnerabilidade, seus desejos e interesses, concebendo a saúde em seus múltiplos aspectos e dimensões é
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essencial para modificar o modo de atenção centrado na doença, com seu caráter meramente orgânico e com o
objetivo de ―cura‖.
Os diferentes saberes e práticas fortalecem a descoberta de novas formas de fazer e procedimentos e técnicas
específicas, quando compartilhadas, visam intensificar o cuidado, o vínculo, o protagonismo e a potencialização das
redes sociais, com vistas a ampliação da intervenção profissional e a criação de laços entre os bolsistas, os
usuários e profissionais do CAPSad.
No entanto para construirmos esta prática temos que considerar que ―a formação das equipes não se
dá de modo automático; é preciso construir esse trabalho‖ (FIGUEIREDO, 2005), sendo este realizado a
partir da participação no cotidiano da instituição de saúde, de espaços de discussão democráticos e de tomada de
decisão, de vínculos e afetos, potencializando a capacidade do grupo de trabalho vivenciar, perceber, aprender, e
buscar soluções criativas para as dificuldades encontradas.
Com o objetivo de constituir-se uma equipe multiprofissional com vistas a promover e intervir de
forma interdisciplinar na atenção aos usuários de crack, álcool e outras drogas, buscou-se ampliar a
comunicação, o compartilhamento, a pesquisa, a produção de conhecimento e a formação dos acadêmicos
envolvidos no projeto, articulando os serviços de atenção à saúde mental com a Universidade.
Outro aspecto a ser considerado é a possibilidade de colaborar para (re) integrar o indivíduo à sociedade de
forma participativa a ambientes sociais e culturais, onde se desenvolve a vida cotidiana. De acordo com Elia (2011),
―o território da cidade, que interessa a um sujeito não é a realidade em que ele vive, mas o conjunto de espaços que, ao
longo do tempo de sua vida, constituíram sua história subjetiva‖. Neste sentido, este trabalho buscou também realizar
atividades coletivas, considerando a possibilidade de construção da cidadania, de pertencimento e laços sociais.
2. Procedimentos Metodológicos
Este trabalho apresenta-se como um relato da experiência vivenciada pelo PET-Saúde/Saúde
Mental/Crack no CAPSad e suas contribuições para a formação acadêmica no campo da atenção
psicossocial.
O projeto foi desenvolvido no período de março de 2011 a abril de 2012, envolvendo quatro
acadêmicos (petianos) da Universidade Regional de Blumenau, abrangendo os cursos de Educação Física,
Odontologia e Psicologia, uma preceptora, sendo a assistente social da instituição de saúde e a professora
tutora do projeto.
A inserção dos petianos no serviço aconteceu através da participação e realização de oficinas, grupos,
acolhimentos, visitas domiciliares, observação de procedimentos técnicos, conversas informais com os
usuários e com os profissionais.
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Reuniões semanais foram realizadas, onde o grupo estudava as situações vivenciadas na instituição,
caracterizando como um espaço de diálogo, compartilhamento, reflexão, planejamento e avaliação. De
acordo com Figueiredo (2005) ―o que se partilha é o que se recolhe de cada caso, a cada intervenção, para
se tecer um saber. Como mais uma indicação da psicanálise, o que se recolhe são os elementos fornecidos
pelo sujeito, como pistas para a direção do tratamento, para o chamado 'projeto terapêutico'‖. Este momento
de aprendizado permanente permitiu o desenvolvimento de ações e praticas dentro e fora da unidade de
saúde.
A partir desta possibilidade de construção coletiva, as intervenções e ações foram desenvolvidas e,
para tanto, apresentaremos as atividades nomeadas como Atividades de Esporte, lazer e cultura; Sala de
espera e Oficinas que fizeram parte da prática cotidiana dos bolsistas no CAPSad.
2.1 Atividades de Esporte, Lazer e Cultura
As atividades de esporte, lazer e cultura foram ações realizadas em diferentes pontos da cidade, como
o museu, praças, universidade, cinema, clube, as dependências desportivas da escola, o teatro e o shopping.
A programação das atividades aconteceu a partir do envolvimento e sugestões dos usuários e foram
realizadas mensalmente, no período de junho de 2011 a abril de 2012, contando em média com a
participação de doze pessoas em cada atividade.
O objetivo principal foi a apropriação do espaço local, conhecer a história da cidade, promover a
expressão corporal, a ocupação do espaço público, o cuidado com a autoimagem, a visibilidade da sociedade
para com o usuário. A cidade ou os espaços públicos são compreendidos para além do território ou do
espaço físico. Segundo Elia (2011), ―não é só de setores que a cidade é feita. Ela é feita de espaços,
histórias, lugares, marcas que constituem a realidade de um sujeito, que é sempre psíquica, subjetiva, interna
e externa‖.
Os diversos cenários que acolheram e possibilitam o exercício das atividades, permitiram que a
assistência em saúde mental fosse desenvolvida na comunidade, abrangendo outros lugares, outros contextos
e tornando visíveis as pessoas que possuem um sofrimento psíquico grave. Desta forma, apostou-se que os
cheiros, visões, sons, movimento, enfim, que a cidade pudesse ser tateada pelos usuários e, por conseguinte
apropriada, construindo um novo referencial de si no mundo (COSTA, 2001).
Novas subjetividades e um novo lugar para o sujeito louco só são produzidos em relação com o
social (AMARANTE; TORRE, 2001) e o desenvolvimento de ações na comunidade facilita o processo de
reinserção e participação social, oferecendo oportunidade de uma atenção psicossocial participativa a
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ambientes sociais e culturais, ampliando a interlocução com sociedade, a capacidade de autonomia,
promovendo saúde e contribuindo para a produção de um modelo de atenção integral.
O passeio ao shopping exemplifica a necessidade de intervenções, onde se torna possível aceitar e
lidar com as diferenças, pois fomos ―vigiados‖ pelos seguranças do local ao longo de todo o passeio e
vendedores e lojistas observavam nossa movimentação. Não houve impedimentos ou uma barreira que
impossibilitasse a circulação dentro do comércio, entretanto, os olhares de reprovação se fizeram presentes
constantemente. Há um estranhamento diante do outro, que não apresentava-se, naquele momento, como
um consumidor ou alguém (re)conhecido. Neste sentido, a circulação social se faz imprescindível. Apostar
que é possível viver com a diferença e respeitá-la.
A realização de práticas corporais foi uma estratégia que abrangeu a participação ativa dos usuários,
tendo como objetivo a prática de atividades corporais através da psicomotricidade, exercícios físicos e jogos
recreativos. Buscou a socialização, a inserção social e reabilitação, pois foi necessário observar,
experimentar e negociar entre os membros do grupo cada etapa da atividade.
Em relação às atividades corporais é claro notar a diferença dos corpos e do humor no início do
exercício e ao término. Usuários que antes não queriam ir ao local da atividade participaram ativamente e
dificuldades encontradas no início de um exercício específico, foram ultrapassadas.
Eis que um usuário diz ―hoje nem vou precisar de remédios para dormir‖ e todos do grupo
concordam, pois relatam estarem ―gastando energia‖ chegariam em casa cansados e conseguiriam dormir,
um dia atípico, ―não é a mesma rotina, ir para o CAPS e ficar sentado‖, ―aqui estamos na atividade‖, tais
falas demonstram o quanto as atividades de esporte, lazer e cultura possibilitam novas formas de tratamento
e qualidade de vida aos usuários. ―Em vez dos ambulatórios, são necessários ―laboratórios‖ de produção de
vida, em vez de profissionais psi, ―artistas‖, homens de cultura, poetas, pintores, homens de cinema,
jornalistas, inventores de vida‖ (TENORIO, 2001).
Observa-se em falas dos usuários a importância destas saídas, das quais destacam-se: “É bom, assim
a gente não fica apenas falando de álcool e drogas, podemos fazer outras coisas, ver outros lugares”,
“Sempre quis conhecer este lugar, mas nunca tive coragem de entrar”, “Pelo menos a gente não fica
perambulando dentro do CAPS”. Pode-se constatar o desejo dos usuários em participarem das atividades, ao
solicitar e indicar locais para os próximos passeios.
A reinserção social ainda é uma aposta, tendo em vista a dificuldade dos usuários em escolher ou
decidir sobre as próximas e novas atividades. Ao serem questionados em que poderíamos aperfeiçoar nosso
trabalho, respondem que é uma pergunta difícil, não sabendo a resposta: “Ah não sei, por mim está bom,
porque assim não tem erro” e “Não pergunta pra mim o que melhorar que eu não sei”. O usuário mostra
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dificuldades ao falar sobre as atividades, diz “se formos de novo está bom, se não formos está bom
também”, demonstrando assim que o escolher implica em se responsabilizar. Escolher um local é se
responsabilizar por uma escolha, pelo fracasso ou sucesso do passeio. Deixando assim, de ser objeto de
escolha e se tornando sujeito, que deseja. Figueiredo (2005) aponta que diante de casos e sujeitos
anestesiados, que nada demandam ou ―suspenso em seu próprio isolamento‖, é necessário provocações para
a saída de tal condição, movimentar o surgimento de desejos. Desta forma, a equipe deve escutar a
singularidade do usuário e o próprio sujeito se implicar em seu tratamento e história.
As atividades de esporte, lazer e cultura foram planejadas com o intuito de dar suporte para o ato de
escolher em nome próprio, ou seja, participar da atividade, definir o local, programar as saídas dependia do
desejo de cada um, como também, em vários momentos é evidenciado ao grupo que as saídas e dinâmicas
extra muros são possíveis de realização. Desta forma, apostamos que o sujeito possa ocupar espaços e
ambientes sociais e culturais de forma participativa, favorecendo o estabelecimento de vínculos positivos
entre os indivíduos e o resgate da cidadania.
2.2 Grupo Sala de Espera
O grupo Sala de espera se foi um dispositivo do PET-Saúde/ Saúde Mental/ Crack, tendo como
objetivo possibilitar que o tempo que os usuários estão aguardando aos atendimentos, a consulta médica,
iniciar um grupo ou esperando a medicação possa se tornar um momento terapêutico.
A sala de espera, apesar de ser um lugar da instituição de saúde, é um espaço popular, onde os
profissionais de saúde não permanecem de modo constante. Nesse território, entre o público e o
privado, aparecem subjetivações como expressões, vivências, espontaneidade e senso comum
(TEIXEIRA; VELOSO, 2006).
A sala de espera da instituição consiste em um lugar ―neutro‖, apesar de os profissionais de saúde por
ali circularem, não há uma representação de um espaço de intervenções, ou seja, a imposição e/ou a
necessidade de falar para um profissional da saúde, como acontece nos grupos ou nos atendimentos
individuais, desaparecem na sala de espera.
O grupo aconteceu semanalmente e as atividades foram realizadas com os usuários e familiares que
estavam presentes na sala de espera da unidade, que circulavam por ali naquele momento e optaram por
participar da atividade. As dinâmicas e ações possuíram como base a escrita e a produção de mensagens que
os usuários gostariam de transmitir e registrarem, tornando-se um espaço terapêutico. As intervenções não
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foram pautadas na proposta de educação em saúde, não havendo pretensões educativas ou orientações e
prescrições sobre condutas e comportamentos.
O grupo não possui a função de verificação de fatos escutados na clínica, muito menos informar o
quadro de evolução. Trabalhar com grupos implica em saber escutar e saber o que fazer com o que se
escuta. É trabalhar as diferenças, as semelhanças e as quebras de identificação. Sendo assim, a
travessia de um grupo trata-se de transformar queixas em demanda de trabalho, transformar palavras
em narrativas e, tomar tais narrativas como transformação no laço social a partir de uma mudança
discursiva e psíquica através do testemunho (CUMIOTTO; RAULINO; RENAUX, 2011).
Sendo assim, considera-se a sala de espera um espaço de acolhimento e escuta, ―uma porta de
entrada‖, no sentido de permitir um espaço onde o usuário pudesse contar sua história e seu cotidiano.
Segundo o Ministério da Saúde,
O acolhimento é um modo de operar os processos de trabalho em saúde, de forma a atender a todos
que procuram os serviços de saúde, ouvindo seus pedidos e assumindo no serviço uma postura capaz de acolher, escutar e dar respostas mais adequadas aos usuários (BRASIL, 2010).
Neste cenário de acolhimento, as conversas e diálogos puderam surgir, possibilitando uma fala livre,
onde o desejo do usuário se manifestasse. Assim, o usuário poderia conversar sobre o que lhe viesse à
mente, suas angústias e sofrimentos ou suas alegrias, família, histórias do cotidiano, para além da
dependência química, podendo se reconhecer e ser reconhecido como sujeito, responsável por suas escolhas
e seus desejos.
Para esta atividade o ato de escutar tornou-se imprescindível, pois autorizar os usuários construir
algo com as questões que se mostravam, correlacionando-as com suas vidas. Conforme atentado pela
clínica ampliada, diminuindo as chances do adoecimento, prevenindo-o por meio do conhecimento e
apropriação daquilo que faz sofrer (BRASIL, 2009).
Por meio da ferramenta da escrita, os usuários puderam transmitir e registrar substratos de seu
cotidiano, deixando mensagens para outros usuários que pudessem vir a passarem por questões como as
suas, que ao passo que falam do sofrimento do sujeito, também o narram em meio as suas dores e
sofrimentos, relacionando-o com suas experiências, ou seja, objetivando relacionar o adoecer com a vida.
De acordo com Torossian (2011), ―o trabalho de oficinas artísticas, entre as quais estão incluídas as
de leitura e literatura, constituem [...] um dispositivo que, além de potencial de cura apresenta possibilidades
de promoção da saúde e incide nos processos de subjetivação.‖
A utilização da escrita e da produção de algo material possibilitou aos usuários uma organização
mental, em que apenas a fala como recurso de organização e construção de idéias, pensamentos não seriam
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suficiente, como também, os objetos produzidos permitiram e impulsionam a fala, o surgimento de uma
história ou o contar de um acontecimento. Para além do objeto construído, o que nos interessou foi
possibilitar lembranças e produções de narrativas que constam como impreteríveis para o adoecimento e
atual situação dos usuários. A partir da lembrança, do contar sua história, podemos constatar e observar o
surgimento de um sujeito, um sujeito que fala independente da descrição universalizante e classificatória de
sua patologia.
Fato que se exemplifica na dinâmica em que foi proposto aos usuários que fizessem rabiscos de
olhos fechados e posteriormente falassem sobre o significado dos mesmos, nesta nos chamou atenção a
seguinte fala que demonstra o acometimento do sujeito e sua história: “O meu parece um marisco, me
lembro de quando ia pescar com o meu filho, chegávamos em casa com peixe, mas que tinha sido comprado
na venda, o importante era estar com o meu filho”. Concebê-los como capazes de construir respostas,
implica deslocá-los de uma posição de deficitários, infantilizados e incapazes, para a de sujeitos
responsáveis pelas produções que realizam, sejam elas delírios, atos, obras ou outras (SILVA; ALENCAR,
2009).
Assim, de maneira não burocrática, onde o que apenas se representava era a possibilidade de
produzir algo, a sala de espera nos mostrou a importância do ato de acolher, oferecendo a disponibilidade de
escuta do outro, permitindo-lhe a construção de um lugar, um espaço onde pudesse se sentir seguro para
produzir algo acerca do seu sofrimento (BRASIL, 2009).
2.3 Oficinas
As oficinas foram realizadas pelos petianos e pelos profissionais do CAPSad, objetivando servirem
de agentes mediadores de informação e novas experiências. O desenvolvimento de ações de promoção de
saúde, inseridas dentro de oficinas ou grupos que faziam parte da proposta de atividades institucional,
possibilitaram descobertas interpessoais e permitiram a construção coletiva.
Dentre as seis atividades desenvolvidas nas oficinas, estão: ―Eu Sou Você‖, ―Bilhete nas Costas‖,
―Saúde Bucal‖, ―Percussão Corporal‖, ―Alongamento e Relaxamento‖, ―O Exercício Físico como
Medicamento‖. Cada atividade possuía sua particularidade metodológica visando alcançar seus objetivos.
As oficinas são entendidas como ―dispositivos coletivos, espaços intermediários, transicionais, entre sujeitos
e subjetividades, que podem produzir desvios em relação a sentidos cristalizados‖ (TOROSSIAN, 2011). A
partir das intervenções e do trabalho realizado em cada encontro, aposta-se que o usuário possa resignificar
marcas de sua história.
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Nas atividades relacionadas ao desenvolvimento das relações interpessoais (―Eu Sou Você‖ e
―Bilhete nas Costas‖), narrativas relacionadas à percepção social perante os usuários foram acometidas,
destacando-se: ―Quando agente vai a um bar, nunca é pra comprar uma coca, uma bala, sempre é pra
tomar algo ou usar drogas”.
O que diz respeito ao desenvolvimento da criatividade, da imagem e esquema corporal, a atividade
de Percussão Corporal fez com que os corpos tímidos se soltassem aos poucos, sendo percebido nas
seguintes falas: “Bom porque a gente perde a vergonha” e “Parece difícil, mas aos poucos a gente vai
criando coragem”. Os usuários, ainda, vistos como ―independentes do outro‖, apresentaram a seguinte fala:
―É mais fácil fazer em grupo‖. De acordo com Ribeiro (2004), o uso de drogas na contemporaneidade esta
ligado a certas experiências de desligamento do mundo, onde o sujeito com o uso de substâncias psicoativas
não necessita mais de um laço com outros sujeitos para buscar ou encontrar momentos de satisfação. A
droga é este objeto que lhe oferece satisfação plena, a qualquer momento e que o torna independente das
relações humanas.
Neste sentido, as atividades que trabalham a integridade corporal e qualidade física (―Alongamento e
Relaxamento‖, ―O Exercício Físico como Medicamento‖) foram de suma importância, visto que a qualidade
humana propicia aos usuários o bem-estar, que será atribuído à qualidade física, emocional, intelectual e
social, permitindo novos encontros e afetos.
Torna-se fundamental ressaltar que um dos resultados alcançados com estas atividades foi a
interdisciplinaridade, onde usuários, bolsistas e profissionais de diferentes áreas puderam construir um
ambiente de trocas de saberes e puderam compreender de maneira ampla as questões e sofrimentos
apresentados.
3. Justificativa do eixo escolhido
A proposta de um trabalho interdisciplinar foi desenvolvida, não pretendendo abolir as
especificidades dos vários profissionais e sim valorizar a utilização de diferentes técnicas e a integração de
diferentes conhecimentos, possibilitando assim, vivenciar, aprender, buscar soluções criativas para as
dificuldades encontradas, partindo de diferentes olhares e saberes sobre a mesma situação. Segundo
Figueiredo (2011), a posição da equipe em relação aos pacientes – usuários que solicitam auxílio do serviço
público é a de aluno ou ―aprendiz da clínica‖.
A posição da equipe é estrategicamente a posição de aprendiz, para aprender com a clínica no
cotidiano. O que estas pessoas que nos procuram podem trazer para que possamos trabalhar com elas?
É uma posição extremamente humilde, simples de falar e difícil de praticar. Exatamente por que se
esbarra nos narcisismos das pequenas diferenças. Alguém tem que saber mais do que alguém.
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O trabalho interdisciplinar se desenvolveu na medida em que cada membro da equipe se deixou
afetar pelo saber e reflexão do outro. Apesar dos vários saberes e disciplinas envolvidas, a posição de
aprendiz possibilitou tanto aos acadêmicos quanto a equipe do projeto, ser afetada e envolvida pelos mais
diversos conhecimentos e pontos de vista, desta forma, avançando no trabalho e na elaboração de ações com
a comunidade e os usuários.
Com o objetivo principal de reinserir os usuários ao laço social, atuando em uma perspectiva
interdisciplinar, pudemos perceber que o PET-Saúde/Saúde Mental/Crack pode deixar marcas e mostrar
relevância, pois possibilitou aos usuários saírem CAPSad e se apropriassem de lugares e marcas da história
da cidade onde vivem. Tendo em vista que ―o coletivo é a marca dessa clínica já definida como ampliada‖
(FIGUEIREDO, 2005), podemos e devemos abranger outros cenários e contar com diferentes profissionais,
entretanto, pautados na clínica do sujeito que intervém de forma singular em cada história, independente de
sua formação. Onde oficinas, dinâmicas e a invenção de novos dispositivos se tornam possíveis a partir da
discussão no coletivo das vivências e recortes clínicos de cada membro da equipe (técnico, usuário,
familiar).
Tendo a escuta como principal instrumento utilizado pelos petianos, pudemos perceber que a
produção de falas e narrativas dos usuários durante as atividades propiciaram determinada percepção da
equipe no sentido da importância de fazer emergir o sujeito e sua vida durante o tratamento oferecido pela
instituição, fato que se evidencia no surgimento de conversas, superando a idéia do profissional de
referência como sujeito único do saber a respeito do usuário.
As dinâmicas realizadas contribuíram para ampliar a visão institucional, tanto no sentido de
demonstrar que há espaço e recursos possíveis para fazer emergir a vida dos usuários, mostrando que,
mesmo com as limitações institucionais, é possível fazer algo que contribua para o desenvolvimento da
autonomia e o desenvolvimento de recursos que facilitem inserirem-se no social, transgredindo assim o
prazer único com a droga ou a rotina institucional.
4. Considerações Finais
A inserção de acadêmicos na política pública de saúde/saúde mental foi um grande desafio, pois os
impasses e obstáculos evocaram a equipe para a criação de novas formas de manejar e lidar com o usuário, a
instituição de saúde, os grupos e as histórias individuais que ao longo do tempo iam se desenrolando. As
visões teóricas ou os livros lidos durante a formação acadêmica dão subsídios para as intervenções, porém, a
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prática, o cotidiano do serviço exigiu desprendimento de concepções moralistas e uma postura de aprendiz
para aceitar o novo, o inusitado e o desconhecido.
O acadêmico ao adentrar a rede pública de saúde é convidado a vivenciar os desafios e as
emergências cotidianas de uma unidade de saúde, onde se torna possível a construção de uma forma de
atuação para lidar com histórias e situações únicas e singulares. O debate entre os acadêmicos tenciona
saberes e concepções, pois, as diferentes áreas precisam dialogar, negociar e colaborar para as intervenções
conjuntas, sendo necessário o entendimento do seu fazer e de sua especificidade em cada cenário de prática,
como também, aceitar e saber aproveitar as contribuições de outros profissionais, com saberes diversos, os
quais enriquecem e potencializam as ações de cada profissional. Tais experiências permitem a construção de
futuros profissionais aptos a manejar situações inusitadas e corriqueiras da saúde mental e contribuem para
uma formação voltada para o compartilhamento e trabalho em equipe, visando um olhar integral na saúde,
para além das divisões e segregações da universidade.
As saídas, o andar de ônibus ou em grupo pela cidade, os contos e fatos narrados por cada usuário
são alguns exemplos dos quais a literatura não dá conta de relatar ou preparar o profissional para lidar com
os desafios irá encontrar. Apenas a vivência dentro de serviços da rede pública permite o surgimento de um
novo modelo de profissional, pautado na ética e na valorização de cada sujeito. É necessário ressaltar que,
sem as supervisões e as constantes retomadas aos livros e discussões em grupo, não seria possível pensar em
uma pratica ou na criação de tais atividades. O cotidiano do CAPSad e os inúmeros debates teóricos criaram
em acadêmicos, profissionais e professores, desejos de novos desafios e histórias, os quais não se contentam
com concepções que engessam ou massificam os sujeitos.
Referências
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BRASIL. Imprensa Nacional. Diário Oficial da União – Seção 1 - Nº 239, quarta-feira, 15 de dezembro de
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