os yanomami sob a ditadura militar
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Relatório da Comissão Nacional da Verdade acerca das atrocidades cometidas pela Ditadura Militar contra os YanomamiTRANSCRIPT
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Comisso Nacional da Verdade
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Relatrio Sobre a Violao de Direitos Humanos na TIY
1960-1988
Rogerio Duarte do Pateo Agosto de 2014
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ndice!
Sobre o relatrio! 3!Resumo das violaes dos Direitos Humanos entre os Yanomami (1960-1988)! 4!
Perimetral Norte! 4!Garimpo! 6!Massacre!do!Couto!de!Magalhes! 7!Expulso!sumria!de!equipes!de!atendimento!!sade! 8!Projeto Calha Norte! 10!
Relatrio!sobre!a!violao!de!direitos!humanos!na!TIY:! 12!1960@1988! 12!O!Brasil!grande!e!seus!nativos! 12!A!Estrada! 13!
Epidemias! 21!O Plano Abortado! 26!KM 211! 28!
Garimpo! 31!Serra das Surucucus! 33!
Armas de fogo! 36!A nova Serra Pelada e a intensificao da invaso! 38!
Eric! 42!Serra da Mocidade! 43!Parna Pico da Neblina! 44!Paapiu! 45!O!Massacre!do!Couto!de!Magalhes! 47!Homoxi! 54!O Colapso da Fiscalizao! 56!Ao Pela Cidadania! 61!
Segurana Nacional e Projeto Calha Norte! 63!Concluso! 72!Referencias bibliogrficas! 75!
Publicaes! 75!Documentos! 78!
Anexos! 83!
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Sobre o relatrio
O presente relatrio fruto de cerca de um ano de pesquisas sobre as violaes dos
direitos humanos ocorridas entre os Yanomami que habitam o Brasil no perodo de 1960
a 1988. Durante a pesquisa foram examinados centenas de documentos oriundos de
acervos como do Instituto Socioambiental, que agrega os arquivos do antigo Centro
Ecumnico de Documentao e Informao (CEDI) e da Comisso Pr-Yanomami
(CCPY), e da Funai, alm de acervos pessoais de pesquisadores especializados nos
Yanomami, incluindo o meu prprio, acumulado em 18 anos de pesquisa sobre esses
ndios. Alm disso, foram includas informaes coletadas em visitas a campo realizadas
em 2013 por mim e por outros representantes da Comisso Nacional da Verdade, que em
diferentes ocasies registraram depoimentos de indgenas e no-indgenas sobre os
acontecimentos ocorridos no perodo em exame. Publicaes cientficas, materiais de
campanha pela defesa dos direitos indgenas, notcias de jornais e revistas, relatos
etnogrficos, alm de um documentrio cinematogrfico, tambm foram utilizados como
fonte a fim de dar subsidio organizao, descrio e anlise dos acontecimentos.
O documento dividido em quatro partes principais. A primeira um resumo das
concluses resultantes do exame do material. A segunda dedicada aos fatos ocorridos
na construo da Perimetral Norte. A terceira, focada nas decorrncias das diversas ondas
de garimpeiros invasores e, por fim, a quarta aborda a atuao direta das Foras Armadas
na ampliao/construo de pistas de pouso e Pelotes Especiais de Fronteira dentro da
Terra Indgena Yanomami.
Vinte anexos trazem cpias dos documentos mais importantes e imagens reveladoras
encontrados durante os trabalhos. Sua finalidade dar materialidade aos fatos relatados e
subsidiar a reconstruo de cadeias de causalidade que ligam a ao/omisso do poder
pblico s decorrncias nocivas e o desrespeito aos direitos humanos que ainda produzem
consequncias entre os Yanomami.
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Resumo das violaes dos Direitos Humanos entre os
Yanomami (1960-1988)
Perimetral Norte Como veremos a seguir, a abertura da BR-210, mais conhecida como Perimetral Norte,
foi marcada pela omisso e o despreparo do poder pblico para lidar com populaes
indgenas. Aldeias yanomami foram destrudas e toda a populao das proximidades do
trajeto da estrada sofreu com a ecloso de epidemias, alm da desestruturao social fruto
do alcoolismo, prostituio e da violncia.
A partir do exame dos documentos, podemos afirmar que:
1) Ausncia de processos de explicao e busca de consentimento prvio, livre e informado
Nenhum processo de explicao e/ou consulta prvia foi realizado com a
populao afetada pela abertura da estrada, ignorando os preceitos do Pacto
Internacional sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais da ONU, adotado
em 19661, e a declarao de Barbados, de 1971.
Consequncias: A ausncia total de consulta ou explicaes populao afetada
deu aos ndios uma falsa impresso, levando-os a se aproximarem da estrada
inadvertidamente. Sem experincia no trato com no-ndios, o desconhecimento
do contexto ou das possveis consequncias negativas da obra afetaram a
capacidade de julgamento da populao indgena, agravando a desagregao
social e afastando os Yanomami de seus costumes. A prostituio, o abandono do
trabalho nas roas, o alcoolismo, a mendicncia e o nomadismo de beira de
estrada desestabilizaram a vida das comunidades, criando consequncias nocivas
at os dias de hoje.
1 Apesar de adotado pela ONU em 1966, o Pacto Internacional Sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais s oficialmente adotado no Brasil em 1992.
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2) Ausncia de infraestrutura de sade, vacinao prvia, controle sanitrio de trabalhadores e acesso de pessoas no autorizadas
A abertura da estrada no foi acompanhada de procedimentos voltados garantia
da integridade sanitria das populaes indgenas e dos trabalhadores. Segundo
relatos testemunhais e documentos, a Funai, responsvel poca pela sade
indgena, no realizou companhas de vacinao prvias, no controlou a situao
sanitria dos trabalhadores que entravam em contato com os ndios, no controlou
satisfatoriamente o acesso de pessoas no autorizadas rea de ocupao indgena,
no deu suporte s misses religiosas que atuavam na regio no sentido de
aparelha-las e prepara-las para a tarefa e tampouco deu o suporte necessrio nos
momentos de crise.
Consequncias: ecloso de diversas epidemias com alta letalidade, como
sarampo, gripe e malria, caxumba, tuberculose, alm da contaminao por DSTs.
Estima-se centenas de mortes decorrentes de doenas nesse perodo. Apenas no
vale do rio Ajarani a populao foi reduzida de cerca de 400 pessoas nos anos
1960 a 79 indivduos em 1975 (ver pag 10 deste relatrio).
3) Degradao Ambiental Alm do desmatamento, as obras da Perimetral Norte assorearam rios e criaram
grandes lagos de gua parada que se tornaram criadouro de vetores de doenas.
Consequncias: Aumento de doenas como a malria, desaparecimento de
animais de caa e insegurana alimentar.
4) Colnia Penal Agrcola no Km 211 Reportagens de jornal de 1978 e 1979 denunciam a instalao de uma colnia
penal agrcola no km 211 da BR-210, autorizada pelo diretor da COAMA,
General Demcrito de Oliveira, em flagrante desrespeito dos artigos IV, V, IX e
XI da Declarao Universal dos Direitos Humanos.
Consequncias: Alm da privao de liberdade de ndios Macuxi encarcerados
na priso agrcola, as denncias mencionam utilizao de mo de obra yanomami
em condies anlogas escravido, sem remunerao adequada, alm de caa
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ilegal de animais silvestres e contrabando de peles. Por fim, a colnia penal do km
211 teria atrado os ndios das proximidades devido ao acesso facilitado
alimentao e bens industrializados, desestruturando as comunidades do entorno.
Garimpo!Iniciado em grande escala em 1975 na Serra das Surucucus, a cassiterita, que era
explorada no incio das invases, logo deu lugar ao ouro. Levas de milhares de
garimpeiros se espalharam por toda a regio de ocupao indgena, com destaque para os
rios Mucaja, Couto de Magalhes, Eric e Uraricoera, impactando uma rea de 21.000
Km2. Alm de balsas atuando no leito dos rios, mais de 100 pistas de pouso clandestinas
foram abertas no interior da floresta, por onde foram contrabandeadas de duas a trs
toneladas de ouro por ms. Alm da demora da demarcao das terras Yanomami, os
documentos examinados mostram a omisso da Funai no controle das invases, alm da
conivncia, e por vezes o apoio explcito, de diferentes instncias do poder pblico aos
invasores. O impacto da presena dos garimpeiros, que chegaram a cerca de 40 mil no
final da dcada de 1980, foi devastador. No h um nmero oficial de mortos em
decorrncia dessas invases, mas estima-se que cheguem aos milhares. O garimpo
assoreou e contaminou os rios, espantou os animais, as epidemias se tornaram constantes
e a violncia, sobretudo a perpetrada por armas de fogo, se tornou intensa e cotidiana.
Comunidades inteiras desapareceram em decorrncia das epidemias, dos conflitos com
garimpeiros, ou assoladas pela fome. Os garimpeiros aliciaram indgenas, que largaram
seus modos de vida e passaram a viver nos garimpos. A prostituio e o rapto de crianas
agravaram a situao de desagregao social. Por fim, a expulso de todos os
profissionais que atuavam no atendimento sade dos Yanomami, em 1987, caracterizou
uma dupla omisso dos rgos responsveis. No meio da mais grave situao sanitria
vivenciada por esses ndios, o estado Brasileiro, que j no prestava o atendimento
necessrio, impediu tambm que organizaes da sociedade civil o fizessem. Essa ao,
realizada por determinao da presidncia da Funai com o apoio do governo de Roraima,
gerou uma denncia contra o Brasil na Comisso dos Direitos Humanos do Conselho
Econmico e Social da ONU. Vamos aos fatos:
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1) Inoperncia no controle das invases Casos documentados:
a) Serra das Surucucus entrada livre de garimpeiros a partir de 1975
chegando a centenas em poucos meses. Presena garimpeira na regio
permanece ate o final dos anos 1980, com destaque para uma tentativa de
invaso armada da regio em fevereiro de 1985.
b) Eric Garimpo Furo de Santa Rosa aberto no incio da dcada de 1980.
Devido vigilncia intermitente de Funai e do Exrcito a regio foi
ocupada por cerca de 3.800 garimpeiros, alm de atrair indgenas de nove
aldeias do rio Urarica.
c) Serra da Mocidade presena de garimpeiros durante toda a dcada de
1980. O acesso era feito pela Perimetral Norte, chegando em 1987 aos
Opik theri, um dos grupos mais atingidos pela abertura da estrada.
d) Pico da Neblina - Invaso orquestrada em 1987 envolvendo aeronaves
vindas de garimpos o Alto Mucaja e de Barcelos (AM). Cerca de 500
garimpeiros instalados com suporte de estaes de rdio.
e) Paapiu/Couto de Magalhes iniciado a partir da ampliao de uma
antiga pista de pouso pela COMARA em 1986. A Funai e demais agentes
pblicos abandonam a regio, deixando a rea livre para a ao dos
garimpeiros.
f) Homoxi/Alto Mucaja iniciado em 1988 como expanso do garimpo do
Paapiu. Produz uma grande rea de assoreamento ao longo do rio Mucaja,
alm de ter pistas abertas sobre as roas dos Yanomami.
Massacre!do!Couto!de!Magalhes!Em decorrncia das invases no alto rio Couto de Magalhes, ocorre em agosto de 1987
um conflito entre garimpeiros e ndios que acaba com um garimpeiro e quatro indgenas
mortos com requintes de crueldade. Esse fato precipita uma ao de retirada dos
invasores que, todavia, no produz resultados concretos. Segundo denuncias do Conselho
Indgena de Roraima, cerca de 3.500 garimpeiros permaneceram no local. Mesmo com a
gravidade da situao, a operao suspensa sob alegao de defeito nos trs
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helicpteros utilizados pela Funai e pela PF. Entre os garimpeiros presos encontrada
uma arma da Aeronutica. Alegando no possuir advogados disponveis, a Funai no age
para derrubar uma liminar da justia que garante o lanamento de vveres para os
garimpeiros dentro da terra indgena. Mesmo com constantes apelos dos chefes de posto,
que repetidamente denunciam a intensificao da invaso, a Funai retira seu pessoal das
vias de acesso rea. Um novo conflito eclode e uma criana morta. Relatos dos
indgenas mencionam o uso de uma metralhadora. A Polcia Federal informa que a Funai
no tomou as providncias necessrias para o deslocamento de agentes para o interior da
terra indgena. Nas palavras do sertanista responsvel, explicitada em uma
correspondncia oficial em 1988:
entre os dias 21 e 27/03/88 a situao anterior no alterou-se; no dia 28/03/88 havia
manifestao do comandante da PM/RR de que o efetivo na rea foi duplicado e de que seria
impedida a entrada de garimpeiros; porm, o fluxo de voos a rea indgena continuam sem que
houvessem o cumprimento da medida acordada de interdio com barreiras nas pistas de pouso;
a PM no colocou a guarnio para emergncia, conforme acordado, na rea indgena; a FAB no
colocou transporte para a evacuao dos garimpeiros; a DPF no recebeu ordens para atuar no
contexto, tanto interno quanto externo do problema; continuam os abastecimentos aeronaves, que
destinam-se a rea indgena, em pistas clandestinas, situadas nas periferias das cidades de Boa
Vista, Mucaja e Alto Alegre/Roraima. (Amncio da Costa, 1988: ver pag 43 deste relatrio).
Expulso!sumria!de!equipes!de!atendimento!!sade!Em meio s presses nacionais e internacionais para a retirada dos garimpeiros e a
demarcao da TI Yanomami, o ento presidente da Funai, Romero Juc, opta, em 1987,
por expulsar todas as equipes de ONGs e misses religiosas que atuavam no atendimento
sade dos Yanomami. Alegando reagir a denncias que afirmavam que os religiosos
estavam insuflando os ndios contra os garimpeiros, Juc determina a retirada das equipes
de sade em meio a uma srie de epidemias, sobretudo de gripe e malria, agravando
ainda mais a situao. No encontramos nenhum documento que demonstre algum tipo
de averiguao sobre as denncias. As alegaes sobre a ao de falsos missionrios
estrangeiros, supostamente interessados nos recursos minerais na TI Yanomami, base
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para instalao de uma CPI no Congresso Nacional na mesma poca, tambm no se
verificaram. A expulso dos profissionais de sade, religiosos ou no, abarcou brasileiros
atuando legalmente no interior da TI e se estendeu a regies onde no havia presena de
religiosos, contradizendo as acusaes que basearam as decises do presidente da Funai.
Em decorrncia dessa ao, a Terra Indgena Yanomami permaneceu fechada por cerca
de um ano e meio. A Funai abandonou o posto no Paapiu, epicentro da invaso, deixando
os garimpeiros livres para atuarem sem nenhum tipo de controle.
A expulso das equipes de sade repercutiu internacionalmente devido verdadeira crise
humanitria que se instalou na TI Yanomami. Por meio de uma denncia formal da
Indian Law Resource Center, a Comisso dos Direitos Humanos do Conselho Econmico
e Social da ONU solicitou esclarecimentos ao governo brasileiro. Em 1989 uma comisso
batizada Ao Pela Cidadania, composta por parlamentares, juristas, antroplogos e
jornalistas consegue adentrar Terra Indgena para averiguar a situao, que descrita
pelo do senador Severo Gomes nos seguintes termos:
O posto da Funai est abandonado. Remdios e seringas descartveis amontoados em desordem
e misturados a latas de cerveja vazias. O Livro de Registros folheado pelo vento. O rdio
transmissor sumiu, ningum sabe como. Os ndios entregues aos garimpeiros. Enfim, uma
amostra desse estercal que se transformou o nosso pas. Doena, desnutrio e mortalidade
infantil. A malria, que no existia, agora flagela grande parte da populao. A catapora deixa na
cara dos que sobrevivem o sinal dos tempos de incria.(FSP, 18/06/19892 - ver pag 53 deste
relatrio).
Os documentos examinados nos permitem observar uma ao contraditria do poder
pblico, pois ao mesmo tempo em que ha denncias de intensificao das invases de
garimpeiros por funcionrios da Funai e reunies de planejamento no nvel federal para a
desintruso da rea indgena, segmentos polticos, setores militares e da segurana
pblica regional, juzes e empresrios, conseguem protelar as aes de retirada dos
garimpeiros e, orquestrando acusaes contra setores apoiadores dos direitos indgenas,
2 Ver Cedi, 1991.
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mantm a TI Yanomami livre para a explorao de ouro sem que nenhuma testemunha in
loco pudesse registrar os acontecimentos.
Consequncias: A inoperncia da Funai na retirada dos garimpeiros, agravada pela
expulso dos profissionais de sade, teve como consequncia direta as mortes decorrentes
de conflitos que vinham sendo anunciados nos telegramas enviados sede do rgo
indigenista pelos sertanistas locados na TI. Alm disso, a degradao ambiental intensa
destruiu os recursos hdricos utilizados pelos ndios, a caa indiscriminada de animais
silvestres e a impossibilidade do trabalho nas roas entre os adultos vitimas de doenas
introduzidas pelos garimpeiros provocaram uma fome generalizada em toda a Terra
Indgena. As epidemias de gripe, malria, sarampo e coqueluche, somadas s doenas
venreas, ceifaram milhares de vidas aniquilando aldeias inteiras. A dependncia, a
prostituio e o alcoolismo desestruturaram ainda mais das comunidades. Por fim, a
proliferao de armas de fogo aumentou a letalidade dos conflitos intercomunitrios
indgenas aumentando ainda mais a mortalidade.
Projeto Calha Norte!Artigos cientficos e um documentrio cinematogrfico revelam que a Fora Area
Brasileira abriu duas pistas de pouso em territrio venezuelano mediante a utilizao de
bombas incendirias (provavelmente Napalm) em 1961 (ver pag. 54 e anexo XX do
relatrio). Quinze anos depois, a Comara amplia uma antiga pista de pouso aberta por
missionrios evanglicos conhecida como Maraxiu Theri, que vem a se tornar a principal
via de acesso de garimpeiros regio do rio Couto de Magalhes/Paapiu. No foram
encontrados documentos que justificassem a expanso dessa pista, uma vez que no havia
pelotes de fronteira planejados para a regio.
Durante as obras no houve a ampliao da estrutura de atendimento sade nem
vacinao preventiva dos trabalhadores. Esse fato provocou o aumento da incidncia de
doenas como gripe, conjuntivite, parasitoses intestinais, desinteria, malria, doenas
venreas e uma srie de infeces de pele. Bebidas alcolicas e revistas pornogrficas
foram introduzidas entre os Yanomami. Os animais de caa foram afastados pelo barulho
incessante de mquinas ou mortos pelos trabalhadores, que caavam nas redondezas.
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Na Serra das Surucucus, onde habitavam cerca de 3.500 ndios, 40 operrios trabalhavam
em regime de revezamento na ampliao da pista. Como no caso do Paapiu, nenhum
controle sanitrio preventivo foi realizado pelos rgos competentes. A equipe de
paramdicos baseada no posto da Funai (que se reduzia na poca a um enfermeiro) no
foi ampliada, e a ausncia de uma estrutura prpria de sade obrigou os trabalhadores
doentes a buscarem atendimento junto Funai, que utilizou medicamentos destinados aos
ndios nas 263 consultas registradas nos primeiros 6 meses de atividades de instalao do
PCN na regio (Albert, 1989:9).
Incessantes epidemias de gripe, com uma taxa de complicaes respiratrias entre 30% a
70% dos casos, ocasionaram uma srie de mortes e uma degradao brutal da situao
sanitria em toda a regio. De apenas duas em 1985, antes do incio das obras, o nmero
de mortes registradas entre as comunidades prximas de Surucucus saltou para 29 entre
1986 e junho de 1987, atingindo principalmente crianas de 0 a 5 anos (11 mortes) e
adultos com mais de 55 anos (10 mortes) (cf. Menegola et al. 1988:14-15, apud Albert,
1989 ver pag 61 do relatrio). Alm da degradao das condies de sade, a
utilizao da mo de obra indgena para servios recusados pelos operrios envolveu o
trabalho de homens, mulheres e, s vezes, crianas que, segundo denuncias apresentadas
no relatrio, no recebiam pagamento adequado, infringindo mais uma vez o artigo XXII
da Declarao Universal dos Direitos Humanos. Por fim, a instalao do peloto na Serra
das Surucucus provocou tambm denncias de assdio sexual sobre as mulheres
indgenas, registrado no documentrio cinematogrfico A Casa e a Floresta, utilizado
como fonte.
Essas e outras denuncias so explicitadas detalhadamente no corpo do relatrio
apresentado a seguir.
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Relatrio!sobre!a!violao!de!direitos!humanos!na!TIY:!!
1960J1988!
O!Brasil!grande!e!seus!nativos!
A dcada de 60 do sculo XX marcou uma virada no processo de desenvolvimento do
Brasil. Envolto no clima do milagre econmico, nasce em 1966 um novo plano de
valorizao da Amaznia, voltado, sobretudo, fixao de populaes regionais nas
zonas de fronteira mediante a execuo de uma poltica de imigrao especfica para a
regio.
Em 1974-75, o chamado Plano de Integrao Nacional (PIN) atinge o ento Territrio de
Roraima por meio de trs frentes principais: o Projeto Fundirio Boa Vista, as obras da
rodovia Perimetral Norte, e as empresas de minerao e garimpo atradas pelas riquezas
minerais encontradas na regio (cf. Ramos, 1979, Taylor, 1979, Davis, 1978).
A rodovia Perimetral Norte foi planejada para unir a parte leste da regio amaznica a
seu limite a oeste, concluindo o tamponamento de toda a regio pela conexo com a
Transamaznica a partir da estrada Cruzeiro do SulRio Branco, no Acre (Ramos, 1979,
Davis, 1978). Sua abertura levou ao interior do territrio yanomami centenas de
trabalhadores totalmente despreparados para o trato com os ndios, que at ento
permaneciam preservados de um contato macio com a sociedade nacional. Como
veremos, nenhuma providncia em relao preveno de doenas contagiosas foi
tomada no incio, e nos seus primeiros 50 km, a rodovia j havia atingido trs aldeias da
regio do rio Ajarani, causando mortes e uma violenta desestruturao social e sanitria
entre seus habitantes (Ramos, 1979).
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A!Estrada!A BR 210 teve o processo de concorrncia iniciado em 1973 dividido em 6 frentes de
trabalho3 . Com 2.586 km de extenso planejada, a estrada ligaria Macap (AP) a Mitu,
na fronteira com a Colmbia. Esse trajeto cortaria os afluentes da margem esquerda do
Amazonas (sobretudo os rios Trombetas, Branco e Negro), impactando uma rea total de
1.400.000 Km2 . Com esse projeto, o governo brasileiro pretendia abrir o acesso aos
recursos da regio, induzindo a colonizao da rea e permitindo a integrao das
rodovias dos seis pases fronteirios, formando assim um sistema rodovirio
multinacional para a integrao das amricas.
O trecho Caracara-rio Padauiri foi o que causou impacto sobre os Yanomami por
atravessar a rea de ocupao indgena nos rios Ajarani e Catrimani, provocando
consequncias nunca antes vivenciadas por esses ndios. Dois anos depois da abertura das
concorrncias, os Yanomami j sentiam os efeitos da construo da estrada.
Segundo documento enviado pela Prelazia de RR ao presidente do Departamento Geral
de Patrimnio Indgena da Funai, o trecho entre Caracara e o limite entre os estados de
Roraima e Amazonas era habitado por cerca de 250 pessoas no rio Ajarani e afluentes, e
450 no rio Catrimani (Prelazia de RR, 15/04/1975).
No mesmo documento, o Padre Joo Batista Saffirio chama a ateno para o fato de que
os trabalhadores estavam requerendo terras a margem da estrada junto ao Incra, e que a
estrada estava potencializando a entrada de gateiros, garimpeiros e marreteiros nas
comunidades indgenas.
Os impactos negativos da construo de estradas na Amaznia no eram novidade para
os rgos governamentais. Experincias negativas na abertura da Transamaznica e na
BR 174 (Manaus-Boa Vista) anunciavam o que estava por vir entre os Yanomami. Os
3 Segundo matria veiculada pelo jornal O Estado de So Paulo, os trechos licitados foram: 472,9 quilmetros de Porto Seguro at rio Citar; 498,6 quilmetros entre o rio Citar, rio Turuna e Cachoeira Porteira; 471,2 quilmetros do rio Turuna a Caracara; 402,5 quilmetros de Caracara at o rio Padauiri; 335,2 quilmetros do rio Padauiri at o entroncamento de acesso a So Gabriel da Cachoeira e da at o entroncamento perimetral. O ltimo trecho de 386,1 quilmetros at a fronteira Brasil-Colmbia, prximo a cidade de Iana (OESP, 11/04/1973).
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impactos dessas obras foram to intensos que obrigaram a Funai a transferir de Braslia
para Manaus a Coordenao Nacional do ndio para a Amaznia, a fim de melhorar o
atendimento s frentes de atrao e pacificao que atuavam na regio (OESP,
04/04/1973).
Em outubro de 1974, o auxiliar de Frente de Atrao Jamiro Batista Arantes envia
correspondncia ao coordenador da Coama relatando os acontecimentos observados entre
os quilmetros 266 no rio Demini e 412 no rio Padauiri. Aps comentar que a construtora
Camargo Corra, responsvel pelo trecho, teria lanado de avio os brindes a serem
ofertados aos ndios, declara que todos os Yanomami visitados foram encontrados
doentes com gripe e malria. O sertanista nota tambm que todos eles eram abertamente
contrrios construo da estrada. Aps permanecer vinte dias tratando dos ndios
doentes, Jamiro se mostra preocupado com a sobrevivncia dos Yanomami. Em suas
palavras:
O aldeamento consta 60 pessoas e segundo os mesmos ndios nos informaram, tempos atrs a
aldeia era muito grande e contavam com inmeros guerreiros mas agora devido as guerras e
doenas a aldeia est quase se extinguindo considerando que dos 60 existentes, somente 15 so
menores de 13 anos [...] (Funai, GO 01.10.1974).
Sobre o trecho So Gabriel da Cachoeira-rio Padauiri (AM), o sertanista Giuseppe
Cravero nos conta em relatrio de 15 de fevereiro de 1975, que os cerca de 400
trabalhadores da Empresa Industrial Tcnica (EIT), responsvel pela obra, estavam
apavorados com os acontecimentos do ms de dezembro anterior na rea Waimiri-
Atroari. Nela cinco indigenistas responsveis por realizar a aproximao com os ndios
arredios foram atacados e mortos em uma emboscada. Da parte dos ndios, Giuseppe nos
informa que os cerca de 400 habitantes da regio, at ento atendidos por uma misso
salesiana, tinham a inteno de mudar para as proximidades da estrada, pois no estavam
satisfeitos com a poltica de troca de bens industrializados praticada pelos missionrios
(Funai-EIT, 02/1975). O sertanista alerta para a necessidade da presena permanente da
Funai no municpio de So Gabriel da Cachoeira, devido situao de vulnerabilidade
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dos indgenas frente ao grande contingente de pessoas ligadas ao empreendimento. Alm
dos Yanomami, ndios Maku tambm se aproximavam do municpio e dos acampamentos
da empreiteira a fim de adquirir bebidas alcolicas.
Ainda em 1975, em uma visita do ento presidente da Funai, General Ismarth de Arajo,
s misses Catrimani e Ajarani, ambas na rea de influncia da Perimetral Norte, foi
constatada uma alta incidncia de gripe e tuberculose (OESP, 25/03/1975). Na ocasio, o
General fez criticas pesadas ao trabalho da misso Catrimani. Ao entrar na primeira
maloca indgena afirmou: Isso aqui uma imundcie, uma vergonha!. O General se
mostrou insatisfeito pelo fato dos Yanomami no falarem portugus, no usarem roupas e
no serem produtivos. Em resposta ao general Ismarth, o Pe. Joo Saffirio declara que:
...at maro de 1974, a misso prestava 150 a 200 atendimentos mdicos por ms. Com
a chegada das primeiras turmas de trabalhadores da Perimetral Norte, em abril de 1974,
os atendimentos subiram para 450-500 por ms. Nos ltimos doze meses os ndios
sofreram 11 surtos de gripe, um de sarampo, e a incidncia de malria vem aumentando
consideravelmente (OESP, 04/04/1975).
Os primeiros impactos da construo da estrada foram descritos pelo mesmo padre
Saffirio em matria publicada pela revista Veja em agosto de 1977. Segundo Saffirio, em
maro de 1974:
comearam a aportar na regio do Catrimani levas de pees, que desembarcavam de avies em plena estrada, ou surgiam aos bandos, na curva do rio. Fascinados, muitos indgenas deslocaram-
se para a estrada, onde se encontravam os machados, tratores, armas e cachaa. [...] A primeira
epidemia, em junho de 1974, eliminou vinte ndios.
Aos poucos, os pees das empreiteiras e subempreiteiras passaram a arregimentar mo de
obra nativa para o exaustivo trabalho de desmatamento, muitas vezes pagando com um simples
calo o trabalho de um dia. Os ndios passaram a usar vrios cales superpostos provocando,
em alguns casos, srias infeces de pele. A lavoura j havia sido abandonada e os mais velhos
passavam fome. ndios mais moos preferiam almoar na cantina dos pees, enquanto suas
companheiras se prostituam. Completamente desenraizados, foram batizados por outros grupos
de estradatheri habitantes da estrada. (Veja, 10/08/1977).
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16
Em entrevista gravada em 2013 a fim de subsidiar o presente relatrio, o irmo leigo
Carlos Zacquini, vinculado Prelazia de Roraima e habitante da Misso Catrimani nos
anos 1970, nos conta que os trabalhadores contratados pelas subempreiteiras a servio da
Camargo Corra exerciam suas atividades sem as mnimas condies sanitrias ou de
subsistncia. Segundo o irmo Carlo, os grupos de trabalhadores recrutados no Maranho
tinham como misso desmatar faixas de 70 metros de mata ao longo do traado da
Perimetral, que ia sendo marcado por equipes de engenheiros alguns quilmetros a frente.
Subsistiam na selva abandonados a sua prpria sorte, caando para sobreviver e
alimentando o sonho de trabalhar em um projeto muito importante para o futuro do
Brasil. Nas palavras do irmo Carlo:
Quando os primeiros chegaram l [na Misso Catrimani] aps alguns meses, foi uma coisa
chocante, porque era um bando de maltrapilhos miserveis, quase todos doentes, muitos com
leishmaniose, que pegaram durante o trabalho, e chegavam ansiosos para pegar um avio para
voltar, para ir embora. Outros para receber simplesmente remdios, alguma proviso, alguma
coisa, para poder continuar desmatando mais. Foi uma coisa chocante! (Zacquini, 2013).
Sobre a falta de assistncia sade, Carlo Zacquini comenta:
No havia absolutamente ningum preparado para uma coisa dessas. Eu j tinha pedido antes,
vrias vezes, aqui em Boa Vista, vacinas para sarampo, porque eu sabia que era uma coisa grave,
mas eu no era mdico, no podia impor isso. A minha autoridade no existia nesse campo. Eu
tentava fazer o que eu achava importante, mas no tinha o respaldo de algum, profissionais e tal.
E sempre a resposta que vinha era que no tinha. No tinha vacina para sarampo. S sei que nesse
perodo, quando chegaram os pees, um deles apareceu com sarampo, e logo ele se espalhou. Por
sorte, no havia um nmero muito grande de Yanomamis circulando naquele momento e o
sarampo atingiu um nmero pequeno. (idem)
Os tratamentos de sade realizados mediante remoes para Boa Vista, longe de
melhorarem a situao, acabavam, segundo o irmo Carlo, por agrav-la:
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17
Depois de alguns desses casos eu tentei evitar de mandar para Boa Vista toda vez que eu podia,
porque toda vez que vinha algum doente para Boa Vista, voltava as vezes com a mesma doena,
outras vezes com outras doenas, que espalhava para os outros. Enfim, sempre tinha algum
problema. Quando eles voltavam a gente no sabia o que fazer. No vinham instrues, no vinha
um diagnstico, no tinha um acompanhamento, enfim. A Funai no tinha estrutura para fazer
coisas assim.[...] Em certo momento nos sentimos to impotentes que tentamos recorrer Funai
para ver se chegava algum para dar uma ajuda para parar um pouco o desastre, a matana.[...]
Depois que a estrada j estava bem pra frente do Catrimani acabou chegando depois algum da
Funai e montaram um posto de controle na entrada da estrada, no Ajarani (idem)
Por fim, sobre a entrada de pessoas no autorizadas pela recm aberta Perimetral Norte o
irmo Carlo nos conta que:
Chegavam at nibus cheios de turistas que vinham de Boa Vista para o Catrimani para ver os
ndios pelados. Era uma coisa nojenta! Alm disso, carros cheios de putas que iam l atrs dos
pees, e outras coisas mais. (idem)
As denncias do padre Saffirio e os relatos de Carlo Zacquini se confirmam em
documentos oficiais, relatos indgenas e depoimentos de outras pessoas envolvidas na
defesa dos direitos dos Yanomami poca da construo da estrada. Em entrevista
gravada no dia 24 de agosto de 2013 na aldeia Xikawa, localizada no limite leste da TI
Yanomami, os indgenas Antnio, Macaxi e Santarm, habitantes da regio durante a
construo da estrada, relatam que:
Antnio: [...] Nossa liderana no sabia de nada, no avisaram a gente antes. Pegaram a gente
de surpresa. A Funai no falou com os nossos velhos (pais, avs). Os velhos Yanomami pensaram
que era gente boa. Logo ofereceram comida, primeiro o homem branco oferece comida: janta,
almoo, caf. Achamos eles legais. Os brancos usaram os Yanomami para trabalhar com eles,
cortar pau, carregar. S pagavam com comida. Yanomami no entendia lngua de branco, nem os
brancos entendiam a nossa. [...]. Os Yanomami ficaram muito irritados de trabalhar para ganhar
prato de comida. Depois da entrada dos invasores veio doena, gripe, sarampo; morreu mulher
velha, homem velho, criana, porque no estavam vacinados. O governo no cuidou de mandar
vacinas. Morreram sete adolescentes (homens) da minha famlia, mais pai e me, de
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18
gripe. Muitas crianas morreram. Sobraram poucos ndios.[...] A estrada passou em cima de uma
aldeia. Acabaram as malocas, a mquina passou por cima.
Macaxi: Acima do rio Ajarani, a estrada no passou l, mas a doena entrou. Gripe vai em
qualquer lugar. Morreram muitas pessoas. Dez, quinze. Fui no posto da Funai. A gente chamava o
posto de Barronai. Minha mulher e um filho morreram. Outra filha foi embora. A Funai e o
Presidente da Repblica no pensaram primeiro em cuidar da sade, vacinar. Naquele tempo a
Funai no se preocupava. O General Ismarth no se preocupou com meu povo Yanomami.
[...]A Camargo Correia pegou de surpresa, no avisou a Funai. Os ndios no sabiam o que era
uma estrada. Pensavam que era costume do branco para levar mercadoria e transportar madeira,
trazer invasores. Tiraram muita mata. Milhares de rvores derrubadas. A pele da terra ficou
ferida. Cortavam montanhas para botar piarra (pedregulhos) na estrada, para a pista ficar firme.
Santarm: Para os que moravam longe da estrada no mudou muita coisa, mas os que moravam
perto, morreram muitos. Depois, quando acabou o dinheiro e os brancos foram embora, os
Yanomami no sabiam mais como viver, foram andando, mudando de lugar. [...]Depois da
estrada a doena no saiu. A doena ficou no lugar da Camargo Correia. At hoje o governo
federal no assumiu a responsabilidade de cuidar da sade que ele estragou, deixou espalhar
doena nas aldeias.[...] A bebida uma grande doena.[...] O sarampo acaba com a gente. Matou
quatro aldeias. Quem ajudou a salvar nosso povo foi a Diocese de Roraima os padres da Misso
Catrimani que salvaram quem podiam. O governo no mandou equipe para cuidar dos povos de
Roraima e do Amazonas. Hoje nossa preocupao so os filhos. Crescem aqui e saem com 15, 16
anos pela estrada.
No primeiro relatrio trimestral do Plano Yanoama (ver abaixo), o antroplogo Kenneth
Taylor escreve:
Devido passagem da construo da estrada, os ndios do vale do rio Ajarani, alm de perderem
20% dos seus membros, a maioria destes mortos como resultado de gripe transmitida pelos
operrios da estrada, sofreram um processo de desagregao social dos mais srios. Tais jovens
tornaram-se prostitutas, quase todos os ndios da rea passaram a mendigos e parasitas das
serrarias, etc. da estrada, e quase todos entraram numa fase de abandono dos seus costumes
tradicionais, incluindo (pelo menos na presena dos brancos) a fala de sua prpria lngua.
Evidentemente, o resultado foi a emergncia de um grupo, alm de desagregado, seriamente
desanimado e desorientado (Taylor, 1976a:7)
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19
Entre os Yawari, habitantes prximos ao km33, havia 16 pessoas vivendo a dois
quilmetros ao sul da linha da Estrada. Quando esta os atingiu, dois morreram de
pneumonia e dois foram viver com brancos caadores de peles de ona. Na regio
conhecida como Castanheira a situao era deprimente. Taylor descreve um cenrio no
qual os ndios fingiam no saber a prpria lngua, no possuam cestaria, no faziam o
beiju, no possuam mais redes de fabricao nativa e todos usavam roupas velhas, sujas
e rasgadas (Ramos &, Taylor 1979:17).
Ainda segundo Taylor e Ramos, com a chegada da estrada, a maioria dos Yanomami
conhecidos como Opiktheri optaram por um roadside nomadism(nomadismo de beira-
de-estrada). Passavam o tempo indo de um acampamento de trabalho a outro, cobrindo
distncias de mais de 50 km. Eles desenvolveram uma tcnica de bloqueio da estrada
fazendo uma barreira humana, a fim de forar os motoristas a pararem para pedirem
comida, roupas ou apenas carona. Estavam sempre reclamando de fome, mendigando por
comida nos canteiros de obra, na beira da estrada e na aldeia Wakathau theri. Comearam
a roubar produtos da misso Catrimani, a pouca distncia do km 146. Caa e produtos da
floresta ajudavam a melhorar a situao alimentar, mas havia uma seria ameaa de
desnutrio, particularmente entre mulheres e crianas.
Os indios de Wakathau theri, que viviam prximos misso Catrimani, trabalharam
como carregadores no incio da construo da estrada. Nesse processo, foram infectados
com vrus da influenza. Em 15 meses, com a chegada da estrada, eles sofreram 15
epidemias de gripe, isto , uma por ms. Entre abril e maio de 1975 quatro pessoas foram
tratadas com pneumonia, dez com bronquite e vinte e cinco com gripe. A malria se
tornou epidmica. O desmatamento e a formao de lagoas com gua estagnada, ambas
resultado da construo da estrada, contriburam para o aumento dramtico da incidncia
da doena. Pelos dados da misso, antes da construo, uma media de 150 ndios eram
tratados para vrios problemas de sade. Em junho de 1974, no pico das epidemias,
foram feitos 575 atendimentos. Nos meses de abril, maio e junho de 1974 juntos, foram
realizados 1348 tratamentos, enquanto antes a mdia era 1350 para cada 9 meses (idem,
pag. 27).
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20
Citando uma proposta de demarcao da Terra Indgena Yanomami, elaborada pela Funai
em 1980, Elias Bigio apresenta de forma sinttica o diagnstico sobre a situao de
contato ao longo da estrada assim como explicitada pelo rgo indigenista:
Os Yanomami do Rio Ajarani, cuja populao nos anos 60 era estimada em cerca de 400
pessoas (Migliazza: 1978), em 1974 contava com 102 indivduos, em 1975 estavam reduzidos a
79 ndios (Ramos: 1979). Suas quatro aldeias sofreram uma baixa de 22% em decorrncia
principalmente de doenas respiratrias introduzidas por trabalhadores da estrada. Alm das
mortes, a prostituio, com consequentes doenas venreas, a mendicncia, e o desenraizamento
de famlias inteiras, levaram ao esfacelamento de todas essas aldeias (Ramos: 1979). Um pequeno
grupo de 19 Yanomami do Rio Ajarani foi incorporado a uma aldeia do rio Pacu situada a cerca
de 80 quilmetros das comunidades do rio Ajarani. Alm desses duas famlias constitudas por
cerca de sete indivduos passaram a vaguear pela estrada, utilizando-se das choas abandonadas
pelos trabalhadores da rodovia. Os sobreviventes da regio do rio Ajarani levam hoje uma vida
errante, constroem precrias habitaes beira da estrada e alguns passaram a vender sua fora de
trabalho a serrarias instaladas nos limites da rea antes interditada pela Funai, entre os
quilmetros 29 e 49 da Estrada (Bigio, 2007:193).
Sobre a comunidade do rio Pacu o relatrio da Funai nos informa que:
A comunidade do rio Pacu tinha em 1975 uma populao de 58 pessoas. O grupo como um todo
foi atrado para a estrada, abandonando sua aldeia e suas roas no rio Pacu, a cerca de 10
quilmetros ao sul da Perimetral. Passaram a mendigar na estrada, nos acampamentos da
Camargo Corra e na Misso Catrimani, localizada na altura do quilmetro 146 da Perimetral.
Como seria de esperar, essa populao passou a sofrer de desnutrio, contraiu gripe, faringites,
pneumonia e tuberculose. Uma das vtimas de tuberculose, depois de vrios meses de tratamento
irregular, morreu em Boa Visa em 1977 (Bigio, 2007:193).
O trecho Caracara-rio Padauiri foi definitivamente abandonado no incio de 1976. Longe
de completar sua meta original, a estrada acabou na altura do quilmetro 225, ao p da
Serra do Demini, na divisa entre Roraima e o Amazonas.
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21
Os impactos da construo da estrada somaram-se a outras situaes nas quais o contato
com populaes no indgenas provocou mortes e desestruturao social devido falta de
estrutura do rgo indigenista. Uma srie de epidemias eclodiram em vrias partes da
rea ocupada pelos Yanomami a partir do final dos anos 1950, aumentando ainda mais o
drama vivido no interior da selva.
Epidemias
Em uma reportagem do jornal O Estado de So Paulo de agosto de 1977, a fotgrafa
Claudia Andujar descreve a situao dos ndios que viviam prximos Misso
Catrimani, e os efeitos de uma epidemia de sarampo levada regio por uma criana
indgena que estivera em tratamento de sade em Boa Vista:
Num dia de abril chegou misso um ndio de uma maloca distante. Ele disse que entre os seus
havia dois doentes graves. Pedia ajuda. Mas ndio s sabe contar at dois, passando de dois ele
fala muitos. Eu e o missionrio conversamos com o ndio e acabamos sabendo que muitos
tinham morrido.
Foi ento que empreendemos uma expedio de 120 quilmetros, passando por trs
malocas. Foram cinco dias de viagem a p. Na primeira maloca vimos ndios se arrastando pelo
cho, porque j no podiam andar. Eram ndios da segunda maloca que tinham se refugiado ali.
Estavam todos doentes. No podiam caar; estavam esquelticos, fracos, famintos. Eles tinham
tido sarampo e agora sofriam com as complicaes, como bronquite e pneumonia.
Ns tratamos deles enquanto pudemos. Mas seguimos viagem e apenas passamos pela
segunda maloca. Ela estava vazia. No caminho para a terceira maloca achamos um esqueleto e
depois soubemos que era de um ndio doente. Esse ndio estava sendo carregado no colo, por um
parente, quando morreu. Ele foi deixado ali mesmo, contrariando os costumes dos Yanomami.
Mas que seu parente no podia fazer outra coisa, porque tambm estava muito doente.
Na terceira maloca havia tambm muitos doentes. Alguns eram sobreviventes de uma
quarta maloca, que no chegamos a visitar por saber que estava vazia. O missionrio italiano
voltou para a sede da misso para buscar mais remdios. Passamos dois meses naquela maloca.
No total, do que ns soubemos, morreram 67 ndios. Os da primeira maloca
sobreviveram, porque j tinham tido sarampo antes. Da segunda maloca, morreu exatamente a
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metade da populao, incluindo todas as crianas e a maior parte das mulheres. O mesmo
aconteceu na terceira maloca; na quarta foi quase isso. (OESP, 05/08/1077).
Os surtos de sarampo entre os Yanomami se iniciaram em 1959, coincidindo com a
chegada dos primeiros missionrios que se instalaram na rea, bem como com o aumento
da penetrao de pessoas no autorizadas entre os ndios. Em um levantamento sobre a
situao sanitria realizado em 1981, o Dr. Rubens Brando, da Escola Paulista de
Medicina, sistematiza as informaes sobre a incidncia de sarampo entre os Yanomami
chegando ao seguinte retrato:
Ano Local n0 de
bitos
Procedncia do surto Fonte
1959 Misso
Waika 2
Garimpeiro vindo da
Venezuela
Sr. Rondiney
Superior da MEVA em
BV
1963 James Neel Amer.
Jou. of Epid. 91 - 1970
1967 Mucaja e
Toototopi
1
12
Filha de um
missionrio infectada
em Manaus
James Neel Amer.
Jou. Of Epid. 91 - 1970
1970 Boas Novas 4 ndios habitantes da
regio referida
1974 Misso
Catrimani 7
Trabalhadores da
estrada BR 210
Alcida Ramos
Arc/IWGIA doc
37/1979
1975 Misso
Maturac 40
Trabalhadores que
construam a Pista
Os prprios ndios desta
regio
1977 Lobo
DAlmada 67
Retorno de um ndio
infectado de Boa Vista
Folha de SP :
18/05/1977
Veja:25/05/1977
Ao final da tabela reproduzida acima, o Dr. Rubens observa que:
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23
Estas so as epidemias de sarampo entre os Yanomami de que temos notcias. possvel que
outras tenham ocorrido ou mesmo que estas tenham atingido outras reas. Provavelmente o
nmero de bitos deve estar subestimado, pois geralmente so de reas que tiveram algum tipo de
assistncia. (Brando, 1981:9).
Mais frente o Dr. Rubens nos informa que em junho/julho de 1981 um novo surto
atingiu os grupos localizados entre os rios Uraricoera e a Serra das Surucucus, causando
cerca de dez bitos conhecidos. A doena foi introduzida por um ndio que, levado para
Boa Vista pra auxiliar os missionrios em um trabalho lingustico, se infectou, retornando
aldeia durante o perodo de incubao (idem, pag13). Resumindo os dados apresentados
acima chegamos a um total de 143 mortes conhecidas causadas pelo sarampo ao longo de
22 anos, todas elas resultantes da ao (direta ou indireta) de no ndios entre os
Yanomami.
A percepo indgena sobre o aparecimento das doenas provocou uma srie de
reelaboraes de sua cosmologia e a readequao de categorias culturais a fim de dar
sentido s mortes que se avolumavam. O aumento da circulao de pessoas
desconhecidas, a utilizao de explosivos e a destruio da floresta passaram a compor o
cenrio para a construo de explicaes nativas para o cenrio apavorante que se
descortinava entre eles. No livro La Chute du Ciel: paroles dun chaman yanomami,
Davi Kopenawa Yanomami comenta a dramtica situao vivida por seus parentes com a
abertura da Perimetral Norte.
Aps acompanhar uma expedio da Funai voltada para a localizao e atrao de um
grupo isolado conhecido como Moxi hatetema, Davi descreve como uma epidemia de
gripe atingiu o grupo de seu futuro sogro, matando sua principal liderana e, sobretudo,
mulheres e crianas. Em seu relato, Davi nos conta que os habitantes de Werihi shipi u
ouviram o barulho de um helicptero que estava circulando acima da floresta. Era a
estao seca, as guas estavam baixas. Os rios tinham muitas praias de areia e em um
determinado momento o helicptero pousou em uma delas, longe da casa coletiva. Aps
um perodo de silncio, ele partiu desaparecendo no cu. Ao cair da noite foi ouvida uma
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24
grande exploso. Em nota, o antroplogo Bruce Albert, coautor do livro, esclarece que
possivelmente se tratava de uma das equipes de prospeco geolgica que percorriam a
regio na poca da abertura da Perimetral Norte. Muitos voos de helicptero partiram da
Misso Catrimani em maro de 1973, e possvel que algum artefato explosivo deixado
na praia tenha entrado em combusto acidentalmente.
Aps o incidente, um grupo de jovens interessados em possveis bens industrializados
deixados no local foi ate a praia mas encontrou apenas lixo, botas de borracha e um
chapu de palha. Davi chama a teno para o fato de que a praia estava cheia de buracos
vazios. Depois do retorno dos jovens comunidade irrompe a epidemia:
...algum tempo depois seu grande homem adoeceu e morreu muito rapidamente. Todos os
habitantes da casa comearam a arder de febre. Eles tremiam e sentiam uma sede insacivel. No
entendiam o que estava acontecendo. No era uma tosse qualquer. Muito rapidamente, vrias
outras pessoas morreram. Elas caram uma aps a outra, cada vez mais, especialmente mulheres e
crianas. Alguns tentaram fugir para a floresta, mas morreram mesmo assim. Apenas alguns deles
sobreviveram epidemia de fumaa. A casa dos Werihi Shipi u era grande, no entanto, em um
curto espao de tempo, esse mal a deixou quase completamente vazia (Kopenawa & Albert,
2010:305-306. Traduo minha).
Novamente em nota, Albert comenta que a epidemia pode ter sido passada aos ndios por
meio de objetos materiais, e que a contaminao pode ter sido fruto de uma visita ao
posto Ajuricaba, trazida por visitantes ou transmitida por caadores que transitavam pela
regio. A identificao das epidemias a uma entidade malfica conhecida como
Xawara comum entre os Yanomami. Liberada pela queima de objetos
industrializados, a Xawara assola aldeias inteiras, devorando todos que encontra pela
frente. Essa concepo est na raiz do diagnstico indgena que tende a relacionar a
incidncia das doenas fumaa e s exploses que expe partes do subsolo. A relao
entre as mortes por doenas e a abertura da estrada ficam cada vez mais claras a Davi,
que um pouco mais a frente em seu livro ele comenta:
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...foram muitas mulheres, crianas e velhos que morreram por causa da estrada. Eles no foram mortos
pelos soldados, verdade4. Foram as fumaas da epidemia trazidas pelos trabalhadores que os devoraram.
(Kopenawa & Albert, 2010:316 traduo minha)
A ausncia total de qualquer procedimento de consulta prvia, livre e informada justifica
a postura inicial dos ndios, que absolutamente mal informados e sem experincia no trato
com os brancos, acreditaram nas promessas de bens industrializados e alimentos em
abundncia:
Nossos velhos no tiveram essas preocupaes porque, mais uma vez, eles no estavam cientes
da estrada. Os grandes homens do governo no se reuniram para que suas vozes fossem ouvidas.
Eles no lhes perguntaram: Podemos abrir esse caminho na sua terra? O que vocs pensam sobre
isso? Vocs no vo ficar com medo? Os poucos brancos que tinham mencionado seu traado
no disseram quase nada. Nem o povo da Funai nem aqueles de Teosi [missionrios] nos tinham
prevenido realmente sobre o que aconteceria. [...] Ento, as mquinas chegaram um dia na
floresta sem que nenhuma palavra as precedesse. Em seguida, os nossos velhos, mantidos na
ignorncia, no foram hostis com os brancos da estrada. Nem os do rio Ajarani ou aqueles do
Catrimani, do Mapulau ou Ara disseram nada. Eles pensavam que, no importava o que
acontecesse, a floresta no desapareceria jamais e eles continuariam a viver como sempre tinham
vivido. Foi-lhes dito ainda que eles poderiam obter bens e comida em abundncia. Eles sabiam
que o povo da estrada os havia lanado de suas aeronaves e os distribudo generosamente. Eles
no sabiam nada sobre as verdadeiras intenes dos brancos. E eu, em Mapulau, era muito jovem
para convenc-los do que os ameaava. Ento eu desci o rio e fui para Manaus sozinho, mantendo
a minha ansiedade e minha tristeza no peito. (Kopenawa & Albert, 2010:317 traduo
minha)
A grande incidncia de epidemias (gripe, sarampo, coqueluche, rubola e malria)
somadas s doenas sexualmente transmissveis, tuberculose e a oncocercose, poderiam
ter tido sua letalidade reduzida por aes do poder pblico. A realizao de campanhas
de vacinao em massa, o controle sanitrio das equipes de trabalhadores e o
acompanhamento da situao nas aldeias poderiam ter diminudo a incidncia das
doenas e evitado centenas de mortes. Alm disso, o acompanhamento das relaes entre 4 Referncia ao caso do bombardeio realizado sobre os Waimiri-Atroari na abertura da BR-174.
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ndios e no ndios ajudaria tambm a minimizar a degradao social decorrente do
contato indiscriminado, como o alcoolismo, a prostituio e o abandono total do modo de
vida nativo.
O Plano Abortado
Como mencionado acima, as decorrncias da construo de estradas entre as populaes
indgenas na Amaznia no eram novidade. Nesse contexto, a Funai lanou mo de um
convnio com a UnB voltado a implementar o Plano Yanoama. Elaborado por K.
Taylor, ento professor de antropologia, o plano foi apresentado ao rgo indigenista em
junho de 1974, aprovado no dia 3 de dezembro e formalmente criado pela portaria n
214/E de 19 de setembro de 1975 , tendo seus trabalhos de campo iniciados em 15 de
outubro do mesmo ano.
Em sua primeira verso, o Plano Yanoama teve como objetivo orientar e controlar os
contatos entre ndios Yanomami e brancos na regio da Perimetral Norte em RR e no AM.
Por meio da aplicao de conhecimentos cientficos (antropolgicos, sociolgicos,
econmicos, etc.), inclusive com a elaborao e implementao de um sistema
econmico, seriam, segundo seu coordenador, impossibilitados quaisquer conflitos ou
abusos nas relaes entre os Yanomami e os brancos. Com esse intuito, o Projeto
forneceria: uma superviso constante comeando antes do incio da construo, e
continuando num programa de longo prazo no decorrer da colonizao da Estrada.
(Taylor, 1974). Em 1976, K. Taylor amplia os objetivos e a rea da atuao do projeto,
incluindo assistncia mdica e a demarcao de terras para os Yanomami. Alm da BR
210 e a elaborao de uma proposta de demarcao, o Plano passou a ter mais dois
subprojetos de alta prioridade: um plano de recuperao sociocultural na regio do rio
Ajarani chamado Projeto Humait, e o controle da interao entre ndios e garimpeiros
de cassiterita que se avolumavam na Serra das Surucucus, ou Projeto Surucucus
(Taylor, 1976b) .
Apesar de parecer adequado e bem dimensionado para a poca, o Plano Yanoama no
conseguiu atingir seus objetivos pela falta de apoio e comprometimento dos rgos do
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27
Estado. Em seu primeiro relatrio (perodo de abrangncia: de 15/10/1975 a 14/01/1976),
os antroplogos da equipe informam que tiveram apenas dois dias e meio para realizar a
vacinao (9, 10 e 13/11) devido reduo de um planejamento anterior no qual estavam
programadas 3 semanas para essa atividade.
O mal planejamento e falta de comunicao com os rgos responsveis pela sade
indgena inviabilizou os trabalhos. No mesmo documento, a equipe denuncia que a
Diviso de Sade da Funai se negou a vacinar os ndios da regio de Surucucus. Ao todo,
apenas 230 ndios da rea da Perimetral e da misso Mucajai foram vacinados:
H tempo o Dr. Molina, da Diviso de Sade, nos havia comunicado o plano de um programa de
vacinao BCG, entre os ndios Yanoama, de trs semanas, aproximadamente, entre 01 e 20 de
novembro [1975]. No dia 27 de outubro, ele nos informou que a equipe da UAE estava atrasada e
somente chegaria em Boa Vista no dia 03 de novembro, passaria uma semana ministrando aulas
no curso de Monitores de Sade, estando a vacinao prevista para o dia 08 de novembro. No dia
03 de novembro,... nos informou em Braslia, que a equipe iria iniciar a vacinao naquele
mesmo dia. Viajamos para Boa Vista dia 04 de novembro, onde encontramos a turma da UAE
planejando ... vacinao dos ndios no-Yanoama e uns poucos dias de vacinao de ndios
Yanoama. Aps uma srie de mal-entendidos e conversas pouco agradveis, os Yanoama
receberam exatamente dois dias e meio do tempo dos vacinadores. Dois dias e meio em vez de
trs semanas representa, parece-nos, uma reduo considervel e cumpre-nos registrar aqui nosso
protesto do mau planejamento e falta de comunicao anterior com a Delegacia por parte da
Diviso de Sade, a arrogncia do Delegado e do DelegadoSubstituto, e o esprito pouco
colaborador ... da UAE. E poucssimos (sic) ndios Yanoama foram vacinados. Um dos
argumentos apresentados pelos responsveis da Delegacia e da UAE, para justificar tanta reduo
no tempo dedicado aos Yanoama, foi que duas atendentes de enfermagem da delegacia ... seriam
treinadas para dar vacina BCG e estariam disposio do Plano Yanoama para programas
posteriores da vacinao BCG, ao longo dos meses vindouros. J comuniquei ao Sr. Presidente,
no dia 24 de novembro de 1975, a atitude do Delegado ... quando pedimos a ajuda ... para
vacinao de ndios Yanoama na rea Surucucu, aproveitando a disponibilidade dos helicpteros
da firma ICOMI ... A resposta do Delegado foi, em parte, a Delegacia no tem nada a ver com
esses ndios Yanoama. E esses ndios da rea Surucucus no foram vacinados (Bigio,
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2007:186, Taylor,1976a, p. 7-8)5.
No segundo relatrio (referente ao perodo entre 01/01/1976 e 29/02/1976) a histria se
repete. Apesar da disponibilizao de helicpteros da empresa Icomi, a vacinao na
Serra das Surucucus no foi efetivada pela ausncia de profissionais de sade para
realizao dos procedimentos. Foi negada pela 10 DR da Funai a participao de uma
enfermeira em dezembro de 1975 e janeiro de 1976. Os 8 atendentes de enfermagem
previstos na portaria 215/E da Funai tambm no foram contratados. Assim, o Plano
Yanoama no disps de meios para realizar a imunizao prevista. (Taylor, 1976c).
No final de 1976, a Funai recebe ordens superiores para impedir K. Taylor de trabalhar
em RR por se tratar de um estrangeiro em rea de fronteira definida como rea de
segurana nacional. Assim, recusa-se a renovar o contrato de um ano de Taylor, deixando
as equipes do Plano localizadas em Surucucus, na Perimetral e em Humait totalmente
isoladas e sofrendo hostilidades dos agentes governamentais at que, finalmente, foram
obrigadas a deixar a rea. Aps quatro meses e meio em campo as atividades do projeto
foram encerradas fora (Ramos & Taylor, 1979: 33).
KM 211
No final da dcada de 1970, um acampamento abandonado da construtora Camargo
Corra no km 211 da Perimetral Norte foi utilizado por servidores da Funai como uma
espcie de presdio agrcola nos moldes do que havia ocorrido entre os Krenak, em
Minas Gerais. A denncia da jornalista Memlia Moreira em matria do Jornal de
Braslia do dia 2 de abril de 1978. Segundo a jornalista, as instalaes do km211 serviram
de cadeia para ndios, sobretudo Macuxi, que se metiam em arruaas. Alm disso,
atraia diversos ndios pela facilidade de alimentao oferecida pela Funai, impactando
severamente a estrutura das comunidades prximas. As denncias vo ainda mais longe.
Descrevem a explorao da mo de obra indgena sem que houvesse salrio para os que
5 Para uma sistematizao detalhada dos acontecimentos envolvendo a implementao do Plano Yanoama ver Bigio, 2007.
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trabalhavam nos projetos agrcolas. Apenas redes, roupas velhas e alimento eram
fornecidos como retribuio aos trabalhos realizados. Os presos chegavam acompanhados
da prpria famlia em carros da Funai e ficavam de dois a trs meses em mdia. Seus
alojamentos e de suas famlias eram os barraces da Camargo Correa, que divididos em
quartos, abrigavam tambm os trabalhadores da roa. O responsvel pela colnia penal,
segundo a jornalista, era o sertanista Sebastio Amncio, que por meio da explorao do
trabalho indgena cultivava amendoim, mandioca, arroz, cana de acar, banana e feijo.
Apesar da alegao que tratava-se de produo para subsistncia, Memlia Moreira
afirma ter encontrado 90 sacas de arroz estocadas em um barraco. Segundo matria do
jornal O Estado de So Paulo de 01 de novembro de 1979, a priso clandestina teria sido
autorizada por meio da minuta 477 da Coordenao da Amaznia (Coama), assinada pelo
General Demcrito de Oliveira, diretor do rgo. Para Memlia Moreira, tratava-se de
um projeto voltado a: tornar autossuficiente cada grupo, proporcionando-lhes, com os
resultados obtidos, meios de desenvolvimento e consequente independncia agrcola e
financeira. Nesse projeto, todo o trabalho ficava a cargo dos ndios sem que houvesse
remunerao em hiptese alguma, indo contra o estatuto do ndio e as diretrizes da
prpria Funai. Em suma, alm da explorao da mo de obra indgena sem os pagamento
previsto em lei e o encarceramento de ndios de outra regio sem nenhum tipo de
julgamento ou direito a defesa, a Colnia Penal do Km 211 servia de base para a caa
ilegal de animais silvestres e o contrabando de peles, ambos, mais uma vez segundo a
jornalista, gerenciados por Sebastio Amncio.
No obtive sucesso ao tentar recuperar algum documento referente Colnia Penal
Agrcola do Km211 junto a Funai. Atualmente, a base da Funai instalada nessa regio
continua em operao, conhecida como PIN Demini, e gerida pelos prprios indgenas
que l se estabeleceram.
Como procuramos explicitar at aqui, a construo da rodovia Perimetral Norte (BR-210)
foi o vetor principal da intensificao do contato dos Yanomami do Ajarani e Catrimani,
localizados prximo fronteira leste da rea de ocupao indgena e diretamente afetados
pelo traado da estrada. Nesse caso, a violao dos direitos dos Yanomami se deu
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sobretudo pela ausncia de processos explicativos e consultas aos ndios, a destruio de
aldeias, a explorao do trabalho indgena e principalmente, mediante a desestruturao
de seu modo de vida pela mendicncia, alcoolismo e prostituio provocados pelas
relaes descontroladas com os trabalhadores da estrada e toda a sorte de intrusos. A
dimenso mais grave, entretanto, refere-se ausncia de controle sanitrio por parte da
Funai, que como vimos nos documentos e depoimentos apresentados, no s no
monitorou a sade dos pees e demais trabalhadores que adentravam terra indgena,
como se recusou a vacinar satisfatoriamente a populao atingida pela estrada,
caracterizando uma grave omisso do poder pblico tendo como decorrncia centenas de
mortes por epidemias diversas.
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Garimpo
Em 1970 foi criado pelo Departamento Nacional de Produo Mineral do Ministrio de
Minas e Energia (DNPM/MME) o Projeto Radambrasil, tendo como objetivo levantar os
elementos bsicos necessrios a um planejamento racional do aproveitamento integrado
dos recursos naturais da regio amaznica (Cardoso & Mller, 1977). Mediante imagens
de radar, o projeto produziu uma grande quantidade de informaes cartogrficas sobre a
vegetao, os tipos de solo, as especificidades dos diferentes biomas e, sobretudo, sobre o
potencial mineral do subsolo amaznico. Em 1973, o projeto Radam j havia
praticamente concludo o exame de toda a parte norte da regio, indicando que a bacia
amaznica possua um dos mais valiosos e diversificados perfis minerais do mundo
(Davis, 1978: 118).
Alm de grandes depsitos de ferro, mangans, estanho, bauxita e carvo, a presena de
minerais radioativos, ouro e diamantes fomentou a criao de projetos de minerao em
larga escala. Esses projetos envolviam a unio de empresas nacionais e estrangeiras,
como a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a U.S. Steel Corporation, e o consrcio
entre Brasil, Canad, Noruega, Espanha, EUA e Gr-Bretanha, que criaria a companhia
de minerao Rio do Norte, um dos maiores empreendimentos do seu tipo no mundo
(Davis, 1978).
Em fevereiro de 1975, o projeto Radam notifica, alm da presena de diamantes,
cassiterita e ouro, a incidncia de minerais radioativos na regio montanhosa prxima ao
plat de Surucucus, no corao da rea de ocupao dos Yanomami. Em consequncia, o
Ministrio das Minas e Energia declara a rea aberta a pesquisas minerais e toda a regio
passa a ser considerada como de segurana nacional (Taylor, 1979).
A preocupao do MME com a Serra das Surucucus estava intimamente relacionada
assinatura, em 1975-76, do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que previa o fornecimento
de urnio natural quele pas em troca de tecnologia nuclear avanada, da expanso das
atividades de prospeco do minrio e a construo de usinas para seu enriquecimento,
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somando-se a isso a construo de oito usinas nucleares no Brasil (Costa, 1994: 166;
Davis, 1978: 134-135; CCPY, 1989).
A explorao de cassiterita na Serra das Surucucus a partir de 1975 foi o estopim de uma
das maiores corridas do ouro que se tem notcia na historia recente do Brasil. Em um
intervalo de pouco mais de 15 anos, a rea Yanomami foi tomada por dezenas de
milhares de garimpeiros que exploravam ilegalmente os recursos minerais da regio
deixando um rastro de devastao ambiental, desestruturao social, violncia e caos
sanitrio que ainda hoje produz consequncias para a populao indgena.
Alm da Serra das Surucucus, garimpeiros passaram a penetrar o interior da rea por via
fluvial, subindo o rio Uraricoera, instalando balsas e grotas de garimpagem na regio do
Eric, atravessando a fronteira rumo a Venezuela, por um lado, e subindo o rio chegando
at a regio de Waikas, por outro. Por via area, os garimpeiros se aproveitaram de pistas
antigas ou reformadas pelo Projeto Calha Norte, se instalando s margens do rio Couto de
Magalhes (regio do Paapiu) e Alto Mucaja (regio do Homoxi), onde at hoje
possvel verificar o rastro de destruio. No Amazonas a invaso se deu sobretudo aos
ps do Pico da Neblina que, assim como a Serra das Surucucus, foi palco de uma invaso
em massa orquestrada com o apoio de comerciantes e polticos locais. Por fim, a abertura
da Perimetral Norte viabilizou a entrada de garimpeiros nas proximidades do rio
Catrimani, potencializando ainda mais os efeitos negativos causados pela obra desde
meados dos anos 1970.
Em um estudo exaustivo sobre o Territrio Yanomami, o gegrafo Franois-Michel Le
Tourneau (2010) estima, a partir da anlise de imagens Landsat 5-TM, que no final dos
anos 80 uma rea total de cerca de 21.000 Km2 foi sistematicamente explorada pelos
garimpeiros. O nmero de pistas de pouso clandestinas no interior da rea ultrapassou
uma centena e estima-se que 40.000 homens, apoiados por 540 aeronaves, garimpavam
ilegalmente no interior da floresta em 1989. A quantidade de ouro oficialmente extrada
da Terra Yanomami chegou, em fevereiro de 1989, a 789 quilos, mas a estimativa que
nesse perodo foram extradas e contrabandeadas por ms entre duas a trs toneladas do
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minrio. Abaixo examinaremos os principais casos documentados a fim de oferecer uma
viso geral dos acontecimentos. Iniciaremos com o garimpo de cassiterita na Serra de
Surucucus e veremos como uma tentativa frustrada de invaso armada da regio
transformou a forma de ao dos garimpeiros que, de forma dispersa, passaram a penetrar
a rea de ocupao indgena por todos os meios disponveis.
Serra das Surucucus
Cerca de 4 semanas aps a divulgao dos resultados do Radam, os primeiros 6
garimpeiros j haviam conseguido amostras da cassiterita de Surucucus. A quantidade de
trabalhadores em busca do minrio aumentava rapidamente, atingindo 2 centenas em
cerca de 6 meses (Taylor, 1979). Alegando propriedade sobre a rea e a nica autorizada
a comprar a cassiterita retirada da regio, a empresa Minerao Alm-Equador Ltda era
a principal responsvel pelo envio de garimpeiros para a serra. Sem apresentar provas de
seu registro legal como empresa de minerao ou autorizao do Ministrio das Minas e
Energia, a Alm-Equador era comandada por empresrios de Boa Vista que se
comprometiam a dar alimentao, instrumentos de trabalho, assistncia mdica e
transporte aos garimpeiros que atuavam sem vnculo empregatcio ou autorizao da
Funai (Tayor, 1979; Cardoso, 1976). Em reunio realizada em Boa Vista dia 9 de
dezembro de 1975, o coordenador do Plano Yanoama, Kenneth Taylor, chama a ateno
para os problemas relacionados ao ingresso de pessoas no autorizadas e/ou registradas
nos garimpos de cassiterita. Mesmo com as declaraes dos responsveis da empresa
Alm-Equador sobre o interesse da firma em se manter dentro da lei, e do Diretor do
Depto. de Polcia Federal de Boa Vista, sobre a importncia da fiscalizao peridica das
atividades na Serra das Surucucus (Taylor, 1975), o nmero de garimpeiros saltou para
450 em janeiro de 1976, divididos em 9 grotas de garimpagem (Santos, 1976) que
contavam com duas novas pistas que garantiam sua operacionalidade. Alm das oficiais
abertas pelo Radam e pela Meva, a pista batizada de guas Claras, com 500 metros de
comprimento, e a pista Liberdade, de 420 metros, viabilizavam cerca de uma dzia de
pousos e decolagens de diversas aeronaves responsveis pelo escoamento do minrio
retirado do solo (Alves, 1976; Rogedo, 1976). O apoio prometido aos garimpeiros pela
empresa mineradora revelou-se uma farsa. A alimentao fornecida pela Alm-Equador
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era inadequada e insuficiente6, e a assistncia mdica completamente inexistente. Em um
Termo de Ocorrncia registrado na 10a DR da Funai em 01 de fevereiro de 1976, o
servidor Carlos Marinho dos Santos denuncia um procedimento semelhante ao sistema
de aviamento no qual a empresa fornece ferramentas e alimentos aos trabalhadores, que
a partir de ento ficam presos a dvidas impagveis devido a ausncia total de
comprovantes, direitos trabalhistas, etc:
O saldo da dvida que fica com a firma Alm-Equador, para com os garimpeiros, que ela
encaminha para a regio, pago com a extrao de cassiterita, a qual a citada firma paga
Cr$12,00 (doze cruzeiros) o kg. do citado minrio. Informa ainda o Sr. Luiz Bernardo da Silva,
que j retirou, junto com o seu grupo, 2.050 Kg. de cassiterita, e que no recebeu at o presente
nenhuma nota de fornecimento de alimentao, pois a firma citada se nega a entregar qualquer
tipo de recibo, de despesas efetuadas pela firma, para desconto no que os garimpeiros extrarem.
Que a citada firma no se responsabiliza por qualquer acidente de trabalho, ou doena, que venha
a acometer os garimpeiros por ela aqui colocados para trabalhar. (Santos, 1976).
Em janeiro de 1976 a situao era de calamidade. Os garimpeiros, famintos (incluindo 3
famlias), eram acometidos por doenas como febre, malria, reumatismo, artrite, lcera,
tuberculose e gonorreia. Em setembro a situao j havia se tornado desesperadora, e
cerca de 60 garimpeiros esfomeados permaneciam acampados na antiga pista de pouso
aberta pela Meva nutrindo planos de assaltar as roas dos Yanomami.
Os ndios que habitavam as proximidades mantinham um contato permanente e
indiscriminado com os trabalhadores. A fome instaurada nas grotas impelia-os a trocarem
seus recursos alimentares por todo tipo de objetos industrializados, principalmente
roupas, armas de fogo e munio, transferindo para si os problemas relacionados fome,
a desnutrio e as doenas que afligiam os garimpeiros. Comunidades inteiras passaram a
viver nos garimpos, instalando roas e deslocando-se para os acampamentos. Em 31 de
6 Para um grupo de 15 pessoas foi distribudo: 7 quilos de arroz, 7 quilos de farinha, 3 quilos de acar e 12 latas de fiambra (conserva de carne de boi) para a alimentao de 1 semana. (Santos, 1976).
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janeiro de 1976, o servidor do Plano Yanoama, Paulo Alves Cardoso, que atuava na
regio da serra, escreve em seu relatrio:
No h controle sobre a relao entre garimpeiros e ndios devido alta densidade da populao
indgena e o aumento crescente da populao de garimpeiros na regio. O equilbrio cultural est
ameaado devido aquisio de armas de caa e munio pelos ndios, como carabinas,
espingardas e outras. Existe troca indiscriminada de roupas e objetos. Os ndios chegam ao
acampamento com fome e pedindo comida. No comem seus alimentos porque levam para trocar
com os garimpeiros... (Cardoso, 1976).
As trocas amigveis entre os Yanomami e os garimpeiros rapidamente transformaram-se
em verdadeiros assaltos. Portando espingardas e flechas, os ndios cercavam os
acampamentos de garimpo tomando fora roupas, redes, panelas, alimentos e,
principalmente, armas de fogo.
No dia 30 de agosto de 1976, a reao a um ataque ao garimpo culminou em um conflito
no qual um ndio foi esfaqueado no lado direito do trax e na coxa esquerda, um
garimpeiro baleado no ombro e outro vtima de um tiro na barriga e flechadas na perna e
no brao (Alves, 1976). No mesmo dia os ndios desferiram outros ataques, conseguindo
mais 4 espingardas e um revlver (Taylor, 1979). A gravidade da situao forou o
Ministrio do Interior a ordenar o fechamento do garimpo e a retirada dos trabalhadores,
criando um clima de tenso na capital Boa Vista. Segundo informaes conseguidas
pelos militares, pilotos de uma empresa de aviao que atuava na regio teriam solicitado
o envio de um helicptero, 5 avies e armas para que fossem retiradas, a qualquer
custo, cerca de 13 toneladas de minrio que permaneciam nos garimpos, mesmo que
para isso fosse necessrio matar ndios e funcionrios da Funai instalados no local7
(Alves, 1976). Mesmo aps a sada voluntria de cerca de 50 garimpeiros, as atividades
ilegais continuaram por 12 meses (Taylor, 1979).
7 No obtive informaes sobre o desfecho dessa operao, que possivelmente foi coibida pela Polcia Federal.
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Armas de fogo
Os efeitos da proliferao de armas de fogo j se faziam sentir em setembro de 1975,
quando guerreiros yanomami mataram um de seus inimigos em uma regio prxima ao
rio Couto de Magalhes. Em dezembro do mesmo ano veio a resposta. Um homem foi
atingido no brao por um projtil de fabricao caseira disparado em represlia morte
anterior (Taylor, 1979). A utilizao das armas de fogo fornecidas pelos garimpeiros
provocou uma verdadeira corrida armamentista em toda a regio, alcanando as regies
do Toototopi - onde, segundo contam os Yanomami, havia muitas armas - o rio Couto de
Magalhes e o Parimiu. Muitas vezes iludidos pelos ndios, os garimpeiros forneciam
munio aos Yanomami, que, sob o pretexto de fornecer-lhes carne de caa, utilizavam-
na em seus conflitos. A identificao da origem das espingardas e dos cartuchos resultava
na retaliao dos grupos atacados, que incluam os garimpeiros na dinmica dos conflitos
que se tornavam mais intensos a cada dia 8.
Em dezembro de 1976, a Funai instala um posto da Frente de Atrao Yanomami na
Serra das Surucucus. A estrutura implementada, no entanto, tornava impossvel uma ao
efetiva e eficiente na regio. Deixado na rea sem nenhuma condio de subsistncia, o
sertanista responsvel foi obrigado a construir uma casa de pau a pique coberta com lonas
emprestadas, permanecendo no local sem nem ao menos um rdio para se comunicar com
10 Delegacia Regional do rgo em Boa Vista. Dois anos depois, a atuao da Funai na
regio ainda era aqum da desejada. Com um efetivo de apenas 1 sertanista, 1 auxiliar de
frente, 1 atendente e 1 trabalhador braal, a construo de um local para o atendimento
sade dos ndios no havia sido realizada. Os medicamentos eram distribudos de
maneira irregular e espordica, agravando a situao sanitria com tratamentos
incompletos decorrentes da falta de instalaes adequadas para manter os pacientes no
posto. A estrutura havia aumentado para 2 casas: uma para alojamento e outra para
oficina e casa de farinha, que, no entanto, no havia sido concluda por falta de recursos e
material humano (Bezerra de Lima, 1979). A distribuio de bens industrializados foi
regulamentada pela instalao de uma cooperativa Yanomami. Alm do pagamento da
8 A esse respeito ver Bandeira, 1978:8 e Duarte do Pateo, 2005.
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mo de obra indgena, a Funai trocava os objetos produzidos pelos Yanomami por
ferramentas, panelas, pano vermelho e miangas, sendo vetada a distribuio de armas de
fogo e munio. Os produtos do artesanato indgena eram escoados nos vos da FAB e
vendidos em Boa Vista, criando um sistema de crdito e dbito minuciosamente
controlado pelo chefe de posto9.
A cooperativa inaugurada pela frente de atrao foi inserida nas relaes
intercomunitrias. Os objetos por ela disponibilizados foram inseridos na dinmica das
relaes sociopolticas entre os grupos do entorno, que haviam se tornado ainda mais
tensas aps a entrada dos garimpeiros. O sertanista responsvel pelo posto de Surucucus,
Francisco Bezerra de Lima, elabora um relatrio no qual se mostra apreensivo com os
constantes conflitos entre os Yanomami: ...muitas vezes os ndios chegam no posto com
armas em punho, na suposio de encontrarem alguns inimigos (Bezerra de Lima,
1981).
Com o fechamento do garimpo, a Funai altera sua posio anterior, marcada pela recusa
em considerar a regio da Serra das Surucucus como rea indgena10. Visando uma
brecha no estatuto do ndio que prev a minerao mecanizada do subsolo das reas
indgenas desde que recolhidos royaties via Funai, o rgo indigenista elabora s pressas
uma proposta de demarcao que dividia rea ocupada pelos Yanomami em 19 ilhas,
deixando cerca de 38 malocas fora da demarcao (Taylor, 1979). A rea Indgena de
Surucucu, com 42.500 ha, no possua as dimenses necessrias para garantir a
sobrevivncia dos Yanomami11. Alm de negligenciar a existncia de 3 pistas de pouso
no oficiais que poderiam permitir o acesso descontrolado de invasores, a rea
demarcada inclua em seus limites as diversas grotas de garimpagem que haviam sido
interditadas pelo MME.
9 Informao pessoal de Francisco Bezerra de Lima, 2000. 10 Sobre esse ponto ver Taylor, 1979:48-66. 11 A A.I.Surucucus possua cerca de 3.600 ndios divididos em 58 aldeias, garantindo apenas 123 ha per capta, em contraste com os cerca de 765 ha necessrios para a manuteno de uma ocupao de caadores agricultores de floresta tropical (Taylor, 1979).
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A nova Serra Pelada e a intensificao da invaso
A viabilizao do trabalho de grandes mineradoras na regio de Surucucus posta em
prtica em maro de 1979, quando a Rio Doce Geologia e Minerao (Docegeo),
subsidiria da Cia. Vale do Rio Doce, instala-se na regio. Mesmo acompanhado por
tcnicos da Funai, o pessoal da CVRD se d conta, no entanto, das inconvenincias e
incompatibilidade da presena de elementos estranhos entre os indgenas (carta enviada
pela CVRD ao DNPM, em 28/02/1980, apud, CCPY, 1989).
As atividades da CVRD viam-se ameaadas, por um lado, pela existncia de outras reas
produtoras de cassiterita na Amaznia e na regio Centro-Oeste, e por outro, pelas
dificuldades de acesso s reas de minerao, que aumentavam demais os custos de
pesquisa, extrao e comercializao do minrio (CCPY, 1989). Com tantos empecilhos
frente, a Docegeo suspende os trabalhos de pesquisa e sugere ao DNPM transformar os
depsitos minerais da Serra das Surucucus em Reserva Nacional.
A explorao da cassiterita envolvia uma srie de interesses na esfera regional e federal.
Mesmo com argumentos convincentes e a simpatia do ento Ministro do Interior, Mrio
Andreazza, as sugestes da CVRD so negadas pelo rgo regulador, que exige da
mineradora o repasse dos ttulos de autorizao para a pesquisa Companhia de
Desenvolvimento de Roraima (Codesaima) .
Os Yanomami, por seu turno, passam a invadir as barracas da equipe de pesquisa a
procura de alimentos. Os efeitos da degradao ambiental e da desestruturao social e
sanitria decorrente da presena dos garimpeiros nos anos anteriores haviam espantado os
animais de caa e afastado os ndios do trabalho nas roas, tornando as instalaes da
mineradora uma importante fonte de subsistncia para as populaes da regio.
Ao mesmo tempo, os reides envolvendo a utilizao das armas de fogo se proliferavam e
extrapolavam as fronteiras do Brasil. Dia 14 de junho de 1979, o jornal O Estado de So
Paulo noticia que um grupo de ndios da Venezuela atacado por guerreiros Yanomami
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oriundos do lado brasileiro, que invadem a regio do rio Siapa portando armas de fogo.
Vrios deles so mortos a tiros e o incidente investigado pelas autoridades
venezuelanas.
No obstante os planos de explorao mineral na regio, em maro de 1982 a rea
indgena Yanomami interditada pelo Ministrio do Interior com 7 milhes e 700 mil
hectares. Mesmo com a delimitao do territrio e a denominao da rea como Parque
Indgena Yanomami, a Funai deixa clara sua posio contrria demarcao e apia a
Codesaima, que obtm, em 1983, uma concesso para pesquisa e lavra de cassiterita na
bacia do rio Parima. Por meio de um convnio com o rgo indigenista, batizado de
Plano de Aproveitamento Econmico da Jazida Estanfera de Surucucus, a Codesaima
pretende transformar o posto indgena instalado na serra em um centro de treinamento de
mo de obra indgena. Visando a utilizao do trabalho dos Yanomami, a empresa alega
ter como objetivo levar os benefcios da explorao mecanizada da cassiterita de
Surucucus populao indgena ociosa e marginalizada no processo de
desenvolvimento regional (CCPY, 1989:13).
Frustrados pelo fracasso da iniciativa do ento presidente Joo Figueiredo, que por meio
de um decreto, tenta efetivar a liberao da minerao em reas indgenas12, e sentindo-se
ameaados pela instalao de empresas multinacionais nas reas de garimpo, segmentos
polticos e empresariais do Territrio de Roraima orquestram a invaso pacfica da
Serra das Surucucus. No dia 13 de fevereiro de 1985 o jornal A Crtica, de Manaus,
noticia a organizao de uma operao de guerra voltada a invadir o garimpo. Batizado
de Operao Surucucu, o plano de ao pretendia mobilizar cerca de 30 avies que
decolariam de Manaus carregando 800 mil litros de gasolina com destino ao rio Mucajai,
onde seria instalada uma base de apoio para a invaso. A ao intentava criar um grave
problema social destinado a deixar o futuro presidente Tancredo Neves sem condies
para retirar os garimpeiros da rea indgena. Devido sua conhecida postura
12 Devido grande mobilizao da sociedade civil contra a proposta, sua publicao no dirio oficial foi cancelada pelo prprio Presidente. Sobre minerao em terras indgenas naquele perodo, ver principalmente: Lopes da Silva, Santos & Luz, 1986.
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conciliadora, o sucesso da empreitada garantiria a rpida transformao de Surucucus em
uma nova Serra Pelada. O principal articulador da invaso foi Jos Altino Machado, um
piloto e empresrio de garimpo com larga experincia em atividades ligadas
garimpagem em Serra Pelada e nos arredores de Manaus. Com a ajuda do gelogo
Antnio da Justa Feijo, Jos Altino identificou as principais concentraes de minerais
preciosos de Roraima, optando pela ao na Serra das Surucucus (Eusebi, 1990). Os
detalhes da operao foram acertados durante a eleio para a diretoria da recm criada
Associao dos Faiscadores e Garimpeiros do Territrio Federal de Roraima, da qual
Jos Altino era vice-presidente. Os garimpeiros foram mobilizados com panfletos
distribudos nos bairros da periferia, no qual eram informados da abertura do garimpo e
da disponibilizao de 5 avies localizados nas fazendas ao redor de Boa Vista (OESP,
17/02/1985; CCPY, 1989).
O primeiro passo era efetivar a instalao da base em Mucaja, viabilizando as operaes
de transporte dos garimpeiros e vveres para Surucucus. Aps esse perodo inicial, a
invaso seria intensificada, tornando possvel a entrada de 3 mil garimpeiros na rea
Yanomami (A Crtica, 13/02/1985).
Apesar das manifestaes de repdio feitas pelo DNPM e Funai, e aes diretas da
Polcia Federal no sentido de tentar impedir a invaso, dia 14 de fevereiro foi deflagrada
a operao. No perodo de 2 horas, os 5 avies a disposio dos garimpeiros levaram ao
Surucucus cerca de 60 homens portando armas privativas das Foras Armadas e
uniformes de combate (CCPY, 1989).
Quatro dias antes da invaso, um destacamento da Polcia Militar havia sido enviado ao
Surucucus a fim de barrar a chegada dos garimpeiros, e no dia 14, o sertanista
responsvel prontificou-se, com a ajuda de 8 yanomami, a interditar as 2 pistas de pouso
existentes na regio de extrao de cassiterita. Ao retornarem ao posto, no entanto, j
haviam ocorrido 8 pousos e 8 decolagens e a PM estava sem condies para controlar a
situao. Sob a liderana de 3 homens vestidos com fardas camufladas e portando
metralhadoras, os invasores no permitiram a aproximao dos policiais, sob pena de
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abrirem fogo. Conforme o depoimento do sargento chefe do destacamento, a PM estava
armada apenas com revlveres e carabinas.
No dia seguinte foi iniciada uma negociao pacfica a fim de convencer os garimpeiros a
desistirem de seu intento. Com o apoio da FAB, panfletos informativos confirmando a
interdio das pistas em Boa Vista e a priso de Jos Altino foram lanados sobre os
invasores (Bezerra de Lima, 1985).
Dia 19 os garimpeiros foram finalmente retirados. Seu principal lder, Jos Altino
Machado, preso no incio da operao, foi mantido apenas alguns dias na Penitenciria
Agrcola de Roraima. Liberado em seguida, Jos Altino respondeu ao processo em
liberdade e articulou novas tentativas de invaso da rea Yanomami (CCPY, 1989).
Manifestaes pblicas no centro de Boa Vista expressavam o descontentamento da
populao regional com o fechamento dos garimpos, buscando pressionar o governo
federal utilizando-se de uma retrica baseada na reedio local do mito do eldorado.
Nas palavras de Claudia Andujar:
A grande maioria da populao de Boa Vista e com certeza todos os garimpeiros do Territrio
afora, assim como muitos donos de txis areos da Amaznia, acreditam firmemente que
Surucucus ser a salvao do Brasil, por conter minrios que podem pagar a