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MANIFESTAÇÕES MODERNAS DA HISTERIA: NOVOS SUBSTRATOS DA
CONSTITUIÇÃO FEMININA EM MULHERES ALTERADAS, DE MAITENA
ARAGÃO, Ana Carolina Souza da Silva1
NASCIMENTO, Silvana Neves do2
RESUMO: A histérica padece do desconhecimento essencial de seu ser, buscando verdades
que consigam lhe restituir o que julga terem lhe privado, quer ter acesso à verdade
fundamental sobre sua própria constituição. Enquanto mulher, ela duvida se é realmente uma,
na medida em que só se reconhece enquanto tal numa relação de alteridade e semelhança com
outra. Apesar desse mal-estar proveniente da falta que constitui o advento de todo sujeito -
seja homem ou mulher -, a sociedade de consumo ofereceu às mulheres uma nova forma de
lidar com essa insatisfação sexual. Partindo desses pressupostos, este artigo se propõe a
perscrutar as manifestações histéricas da mulher moderna na contemporaneidade a partir da
leitura das vinhetas Mulheres Alteradas, da quadrinista Maitena Burundarena. Essas
narrativas constituem nosso corpus porque endossam questões da natureza subjetiva da
mulher moderna, concentrando-se na realização sexual e profissional, desejos, pulsões, no
consumo em massa e, especialmente, na anorexia.Adotamos a concepção de histeria a partir
dos estudos freudianos sobre os conflitos psíquicos que causam a repressão sexual e,
consequentemente, consideraremos os sintomas como substitutos da insatisfação sexual, mas
esses conceitos irão receber outros contornos, já que a histeria feminina acompanha as
transformações históricas da linguagem e da cultura. Torna-se nosso objetivo então (re)
conhecer esses novos substratos da histeria feminina na modernidade a partir das
representações literárias do ser nas narrativas de Maitena. A metodologia empregada nesse
trabalho é de cunho bibliográfico e hipotético-dedutivo, baseando-se nas leituras de Freud
(1895), Pollo (2003), Ramos (2010), Zalcberg (2007), entre outros. As leituras analíticas dos
quadrinhos apontaram que seus elementos constitutivos de significação condensam uma
preocupação em localizar e posicionar a sexualidade da mulher que se revela, muitas vezes,
perdida e confusa em sua dinâmica identificatória, não sabe o que é, não sabe ou não quer
saber da castração, ou ainda, se deseja.
PALAVRAS- CHAVE: Psicanálise. Literatura. Histeria. Mulher Moderna.
1. Introdução
O sujeito moderno é marcado por um processo de hibridização cultural que o faz
clivado, dividido, instável. Prismado por novas formas de pensar que o consumo em massa e
o processo de modernização instauram, o indivíduo adota novas formas de se comportar e de
agir, em especial, o sujeito feminino que busca um espaço social e cultural independente do
homem além de tentar se desvincular ideologicamente deste, já que durante muito tempo, na
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras, linha de pesquisa Linguagens e Cultura, da
Universidade Federal da Paraíba. Membro do CEAD-PB. E-mail: [email protected] 2 Mestranda do Mestrado Profissional em Formação de Professores, linha de pesquisa Prática de Leitura e
Produção de Texto, da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: silvananevesdo [email protected]
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cultura ocidental, “... o lugar reservado às mulheres é o lugar da sombra, do esquecimento,
(...) um “não-lugar” (ZALCBERG, 2007, p. XI). Partindo dessa busca por um lugar social,
essa falta essencial que constituiu a mulher e unindo-se a outra falta a qual pertence qualquer
sujeito - sendo ele homem ou mulher, uma vez que ambos estão submetidos à castração, - as
mulheres ascendem à luta por direitos essenciais e por mais participação política.
Sobre essa falta de um significante específico para o sexo feminino, Freud reconhecerá
na histeria uma maneira de lidar com a castração ao substituir a satisfação sexual pela
satisfação dos sintomas.3Atualizamos aqui o conceito freudiano de histeria aplicando às
questões scrito sensu da modernidade visto que os sintomas apresentados hoje diferem dos
primeiros - que eram essencialmente físicos - apesar de boa parte de seus conflitos internos
permanecerem os mesmos. Trataremos de um modo especial, o consumo de massa e a
modernização como partes fundamentais desse novo contexto em que a histeria feminina
acontece reconhecendo suas manifestações sintomáticas modernas imersas nesse novo
processo de subjetivação que a contemporaneidade instaura.
Levando em consideração o dito, constituímos como problemática para esse artigo
situar a histeria feminina na contemporaneidade a partir das representações da mulher
moderna nas narrativas gráficas da cartunista e quadrinista Maitena Burundarena. As vinhetas
dessa argentina apresentam em suas composições temáticas questões do universo feminino
que contemplam desde as pulsões e desejos sexuais, a problemática da subjetivação, o espaço
social e cultural da mulher quanto às relações de alteridade e reconhecimento. Portanto, torna-
se nosso objetivo reconhecer como as representações ali delineadas traduzidas em som,
imagem e palavra demonstram os sintomas da histeria feminina e quais novas configurações
esse estado psíquico desenvolve na mulher moderna.
Tomamos o método qualitativo para o desenvolvimento desse estudo já que este busca
responder os "porquês", investigar conceitos, motivações que antecedem ou estão presentes
no comportamento do individuo e na formação das suas representações. Para tanto, faremos
uso da pesquisa de base bibliográfica quando revisitaremos os estudos de Freud (1895), Pollo
(2003), Ramos (2010), Zalcberg (2007), sem interditar “outras” vozes que façam parte desta
leitura como a teoria que envolve os estudos de arquétipos e símbolos literários (Campbell,
Melinski).
2. O lugar da cultura e da história no processo de significação da histérica
contemporânea
Quando a pós- modernidade 4se firma no cenário mundial ocorre a quebra de velhos
estigmas e um deles diz respeito à noção de sujeito unificado e fixo. Além da derrocada dessa
concepção, outra ideia adjunta toma espaço para novas discussões no âmbito dos estudos
culturais: a identidade do sujeito, em especial, o moderno. Em relação a esse sujeito, Hall
(2006, p.9-10) estabelece dúvidas sobre a existência de fato do seu caráter universal que o
Iluminismo5 pregoava e acrescenta ainda que o sujeito pós-moderno apresenta múltiplas e
inacabadas identidades que interagem com os sistemas culturais com os quais tem contato.
3Vale lembrar que estamos falando das mulheres histéricas que apresentavam os sintomas clássicos da época
(paralisias musculares, afasias, convulsões etc.).
4 Trataremos a modernidade e a pós-modernidade como um mesmo período: o contemporâneo
5 Hall apresenta esse sujeito como pessoa unificada, estável, centrada e fixa. O sujeito ainda detinha a
razão e nascia com uma identidade pré-fixada e imutável.
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Diante desse conceito de novas identidades e de sujeito fragmentado, a inexistência de
uma concepção única sobre o indivíduo provoca profundas transformações nos estudos sobre
os grupos sociais e culturais visto que o indivíduo é encarado como sujeito em constante
busca por si, e por algo que o defina, o estabeleça, por um sentimento de pertencimento. É
característica própria dessa modernidade a busca por algo que o defina enquanto sujeito como
também lhe é constituinte essa incompletude, essa falta. Dessa forma, o indivíduo moderno é
lançado em uma jornada infinita em busca de si, de uma subjetivação ao mesmo tempo em
que sabe que nada o preencherá completamente visto que todo sujeito é constituído pela falta
primeira, a insatisfação sexual derivada da castração que o acompanhará por toda a vida.
Nessa busca incessante por si, temos a mulher galgando novos espaços sociais e
culturais e tentando se definir enquanto sujeito independente, à procura de contornos de si, da
sua essência enquanto indivíduo. São marcas desse processo de subjetivação a provisoriedade,
a fragmentação, a contrariedade e a multiplicidade de identidades que um sujeito – feminino
ou masculino - pode assumir conforme as posições sociais, culturais, políticas e históricas que
ocupa. (HALL, 2001)
Quando propomos observar as formas de representação feminina em Mulheres
Alteradas, de Maitena, é justamente para entender como a produção dessa verdade sobre a
mulher moderna enquanto sujeito que acumula papéis sociais (mãe, dona de casa, esposa,
trabalhadora, estudante, pesquisadora, etc.) e que é representada normalmente como uma
mulher livre de conflitos existenciais, é desconstruída e subvertida em novos percursos de
significação sobre o ser mulher, uma concepção liquefeita e múltipla percebida nas mais
variadas situações cotidianas da mulher comum. Nas Mulheres Alteradas, de Maitena, esse
mito sobre a mulher moderna é desconstruído pelas imagens, pela palavra, pela voz feminina
que é angustiada pelas mesmas questões seculares concomitantemente com a construção de
um novo perfil, um novo comportamento perante essas angústias. A respeito do
comportamento, seguimos a ideia de Geertz em A interpretação das culturas (1978), quando
acreditamos que esse elemento é simbólico e, portanto, tenha que ser interpretado como um
traço culturalmente definido. Para tanto, adotaremos o seu conceito de cultura:
O conceito de cultura que eu defendo é essencialmente semiótico.
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado às
teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo estas
ideias e sua análise, portanto, não como uma ciência experimental em busca
de lei, mas como uma ciência interpretativa, à busca de significado. (1978,
p.15)
A cultura, por esse entendimento, teria duas formas: o comportamento que é ação
simbólica e seu sentido que é coletivo. Assim o sistema cultural seria repleto de elementos
interpretáveis que devem ser descritos enquanto contexto o qual o ser humano está inserido.
Conforme as necessidades eminentes do objeto escolhido, optamos pela leitura dos elementos
constituintes de sentido dos quadrinhos observando uma teoria que lhe é própria, levando em
consideração que essas narrativas são compostas por unidades de significação distintas
(palavra, som e imagem) que conjuntamente constroem um todo significativo. Em outras
palavras: procuraremos descrever e explicar o que o texto dissoluto em palavra, voz e imagem
diz e como ele faz para dizer o que diz, priorizando o estudo dos mecanismos intradiscursivos
e extradiscursivos de constituição do sentido. Apenas optou por olhar, de forma privilegiada,
numa outra direção. Percorreremos os planos da narrativa então em busca desses elementos
culturais que fazem a mulher moderna e refratam os sintomas da histeria feminina nesse novo
acontecimento.
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3. A histeria na mulher moderna: velhos transtornos, novas roupagens
Freud modifica ao longo da sua construção teórica e pelas experiências que vai
adquirindo junto a suas pacientes, a sua concepção sobre a etiologia da histeria, passando dela
como resultado de um trauma advindo de uma situação real de sedução, para uma fantasia de
sedução relacionada com os desejos sexuais das pacientes. Mas quão atual continua os
estudos de Freud sobre a histeria? Como percebemos os novos sintomas acontecendo nesse
contexto novo que inaugura a contemporaneidade quando a mulher passa a ter um espaço
social, cultural, político e econômico diferente? Entendamos como a época moderna modifica
a forma de agir e pensar femininos para compreender essa mudança nos sintomas histéricos já
que a histeria também acompanha as transformações de linguagens e históricas humanas.
A época moderna se caracteriza por ser um período em que as figuras emblemáticas de
autoridade vão lenta e progressivamente sendo destruídas. O advento da modernidade com
seus grandes ícones culturais desiludidos, religiosos desacreditados, governantes corrompidos
favorecem um novo tempo e características básicas de novas imagens de autoridades muito
mais fragmentadas. Dentro desse novo contexto, o que pode se observar é que o histérico se
comunica consigo mesmo e com os outros através das formações sintomáticas.Essa
capacidade que o histérico tem de criar, manifestar e expressar os sintomas o impossibilita de
utilizar sua capacidade mental psíquica, como também de fazer uso da afetividade na relação
com o outro e com o objeto. O permanecer em “branco” para o histérico consiste em estar
ausente de si, com os sintomas que o ajudem a camuflar essa lacuna, a justificá-la. Desse
modo, pode-se dizer que a vida do histérico é um permanente de renúncias e, por isso, ele
recusa a relação total e retorna à segurança da qual lhe oferece este “branco”, tornando a
negação de si e do objeto uma constante. “No histérico, o medo fundamental é o da rendição
psíquica ao objeto, o histérico obriga seu ambiente a agir sobre ele,ou para ele, mas
permanece inacessível à mutualidade de um diálogo psíquico e de uma partilha.”(Masud,
1997, p. 57). Assim torna-se uma tarefa inalcançável a da histérica em se identificar com algo
que não existe, com algo que não se tem, com a falta, com o vazio. Então a histérica se joga
nessa jornada em torno da obstinação de querer reparar a própria falta e a do outro, ela se
engaja no objetivo de tornar o outro perfeito e ela também, e aí ela encontra seu limite. A
histérica tem uma demanda fálica, um desejo de reconhecimento, por isso ela sempre está
numa relação amorosa sem precisamente estar, como se ela deixasse a todo tempo uma
“saída”. Desse modo, quanto mais difícil o parceiro, mais ela se assegura de que aquele
parceiro é o ideal.
Em se tratando desse sujeito histérico feminino moderno, o seu corpo é um espaço de
sofrimento, é o corpo-dor que simboliza não só a divisão do sujeito em relação ao sexo -
homem/mulher -, mas também a impotência do prazer totalizante, a paralisia diante do desejo
do Outro, as cicatrizes do gozo deixadas pelos traumas, as marcas de saudade do prazer
absoluto que nunca acontece. A histérica pede deciframento, solicitando que o outro fale dela
e o faz através dos sintomas.
Na contemporaneidade, podemos dizer que não temos mais as histéricas reprimidas de
outrora que se caracterizavam pelas denúncias de uma repressão que quase já não existe mais.
O que existe é uma liberação geral de impulsos humanos que sempre se procurou repulsar e
manter indisponíveis nas profundezas do inconsciente, mesmo que nem sempre houvesse
sucesso. Refletindo historicamente, nada deslocou tanto a mulher de seu antigo lugar social e
cultural quanto às modificações culturais da segunda metade do século XX, ela ganha uma
maior representatividade no mercado de trabalho e com as pílulas anticoncepcionais - que
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permitem separar prazer e maternidade-, controla o próprio destino, entre outras liberdades
instauradas pela modernidade.
Estes novos fatores de reposicionamento social modificaram radicalmente a forma
como a sociedade enxerga a mulher e como ela se vê, entendemos assim que o fenômeno da
histeria também tenha se modificado em função disso. As formas de adoecimento com viés
histérico com as quais nos deparamos na clínica hoje são diversamente distintas, manifestadas
pelas anorexias, toxicomanias, depressões, pânicos e sintomas que beiram outras estruturas
psíquicas.
No discurso atual contemporâneo, o que encontramos no lugar da histérica
desmaiando e sendo socorrida, são outras figurações, outras formas de acontecimento
atualizadas nesse novo comportamento que configura o indivíduo moderno. São figuras
como o desamparo, o mal-estar social, cultural, a depressão que da mesma forma que os
sintomas físicos denunciavam o arranjo da cultura repressora antes da modernidade, essa nova
onda de sintomas pode ser vista como resultado de quadros psicopatológicos que emergem da
títere dramática e desesperançada da cultura pós-moderna.
Mesmo tendo em outros tempos os desmaios como um sintoma histérico, estes não
desapareceram totalmente, mesmo numa era de comunicações, expressões sintomáticas
diferentes – de outrora e de hoje - convivem lado a lado: assim, podemos ver moças
desmaiarem em vez de dar a notícia que estão grávidas, em famílias para as quais a
"maternidade" e a "virgindade" continuam constituindo os troféus fundamentais e irreparáveis
da feminilidade. Como também é possível, nessa mesma época, ver uma jovem definhar, seu
corpo inteiramente reduzido, pelo complexo da anorexia, sob o império da "cultura light", que
estabelece o "estar em forma" como imperativo máximo de saúde e beleza, seguindo uma
receita da globalização atual.
Apesar dos abismos diferenciais em seus conceitos, há algo em comum nesses dois
acontecimentos sintomáticos: o corpo como lugar de expressão daquilo que não consegue ser
dito, que é reprimido ou ocultado mas que precisa ser revelado. Torna-se imprescindível
reconhecer a diversidade sintomática que acompanha as diferenças das conjunturas familiares
ou microssociais marcantes em uma dada época, não podemos deixar de reconhecer (em se
tratando da histeria) a forma de apresentação dominante em cada momento histórico, o que
reproduz verdadeiras "ondas" ou "epidemias".Desta forma, ao relacionarmos historicamente
os sintomas da histeria, nos foi possível localizar que o desejo da histérica está além de seu
controle e que nada pode aplacar sua constante e insaciável rede de queixas. Ela traz como
características o ideal de perfeição, o discurso idealista, a marca da insuficiência estabelecida
pela ausência, pela castração, pela insatisfação. A histérica mostra que frente à sexualidade
não há saber, e a sexualidade fala desse desencontro, desse desejo insatisfeito que a
acompanhará sempre.
4. Um olhar sobre as Mulheres Alteradas, de Maitena: construções sobre a histeria
moderna
Em Mulheres Alteradas, Maitena procura representar, normalmente num único
quadro, assim como em uma vinheta, situações cotidianas comuns ao universo feminino: o
estético, o profissional, o pessoal, o amor, o divórcio, a solidão, a educação dos filhos, a
preocupação com o envelhecimento, enfim, os problemas e contextos da modernidade que
comumente afligem as mulheres ocidentais.
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O público- alvo dessas tiras constitui-se de mulheres que estão entre a adolescência e a
terceira idade, justamente por serem elas representadas mais diretamente nas tiras, mas os
homens também se tornam leitores de suas histórias por identificarem as mulheres de sua
convivência nas personagens das narrativas gráficas.
Segundo Paschoarelli
O aspecto gráfico dos desenhos é disforme, foge aos padrões de beleza,
traduzindo o feio, o exótico, desviando-se das normas-padrão, como para
representar uma realidade mais palpável e próxima dos problemas e da
aparência verdadeira das mulheres. (2008, p.13)
Como autora busca representar as formas femininas mais diversas, inclusive seus
complexos, preocupações e doenças da modernidade, como a anorexia, elegemos seus
quadrinhos como observatório dessas manifestações psíquicas. Assim, tomando a anorexia
como um sintoma moderna da histeria, passaremos a observação das tiras e a leitura seus
percursos da narrativa na busca da visualização e compreensão da anorexia como um sintoma
da histeria moderna.
Nessas vinhetas, é frequente o retorno às questões de alimentação. A mulher
representada de maneiras as mais diversas, sem receber nome específico, indica uma
universalidade das projeções femininas, das suas múltiplas e inacabadas identidades. As
situações colocadas correspondem a diversas possibilidades de acontecimento em que as
leitoras mais atentas verão sua própria face ali representada e daí nasce ampla aceitação da
obra pelo público.Ao falar de sua falta de apetite, de seus vômitos, do excesso de peso, das
dietas, da necessidade constante e incessante de emagrecimento a mulher aponta para a
anorexia nervosa, um dos mais freqüentes quadros psicopatológicos da mulher moderna. Não
há demanda de objeto, mas de amor. Ao recusar o alimento ela faz existir algo além do objeto,
que é o amor. A psicanálise nos mostra que o anoréxico é uma condição de ausência, de falta
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porque faz com que seu desejo se mantenha na insatisfação e seu gozo advenha da privação.
“Gozo a menos”, na expressão de Freud, que o diferencia do “gozo a mais” da neurose
obsessiva.
As perguntas excessivas sobre sua própria aparência indicadas no quadrinho 01: “Por
que não se instalam nos peitos? Hein?” “Ou nas panturrilhas? Hein” são comuns à sociedade
moderna presa aos valores estéticos do corpo ideal. Há uma gradação do envolvimento das
personagens com o próprio corpo e o que se manifesta inicialmente como comum torna-se ao
longo das demais historietas um prefácio à anorexia. As justificativas para um corpo em
disformidade com as idealizações atuais de beleza continuam na segunda vinheta quando a
mulher culpa o casamento e a maternidade para essas “deformações” corporais e associa a
beleza ao status de solteira. A histérica, de uma maneira geral, vive irremediavelmente num
estado latente de insatisfação que não se restringe unicamente ao registro sexual se
estendendo para outras esferas da vida, e geralmente isto acontece de uma maneira dolorosa e
sofrida. Contudo, a despeito desse sofrimento, a histérica agarra-se à sua insatisfação, porque
esta condição lhe garante a inviolabilidade fundamental de seu ser. Quanto mais insatisfeita
ela está, mais protegida das ameaça de um gozo ela estará, lembrando que para ela o gozo
total pode ser um risco de desintegração e loucura.
Na terceira vinheta uma nova personagem traz à tona os conflitos psíquicos e físicos
que a anorexia causa: entre o corpo disforme e a fome eminente. Não haverá jamais, para uma
anoréxica, um equilíbrio entre a as duas entidades justamente porque a anorexia se configura
como uma nova modelagem dos casos de histeria descritos por Freud no século XX. Ao falar
da histeria e da estratégia do desejo insatisfeito, fala-se também da questão da anorexia, um
sintoma contemporâneo, como já dissemos, onde o sujeito, indiferente aos riscos de vida que
seus atos obstinados acarretam, segue comendo nada, um sofrimento tipicamente histérico. A
anoréxica mantém o seu saber fora de sua fala. Ela se torna tanto escrava do não comer,
quanto do seu não dizer. As confissões ficcionais de Maitena ocorrem tais como fluxo da
consciência. Há sempre um narrador ausente que atua como um informante da condição
feminina funcionando quase como uma legenda das ações. A interação com o outro nas
vinhetas é limitada e quando acontece é quase como um escape da consciência. Mas por que
afirmamos que ela não pode, ou o que ela não pode dizer? Sua boca vazia e fechada denota
uma crise em relação ao impossível de dizer,algo está impossível de ser dito.
No quarto quadrinho mais uma vez é posto em lados opostos o exterior do sujeito e o
interior do sujeito, dessa vez com a confirmação masculina. Os conflitos pessoais em que são
submetidas as mulheres alteradas, de Maitena, são temática de rápida absorção porque há uma
identificação. A preocupação com o físico é uma constante em seus quadrinhos, a anorexia e
os seus sintomas aparecem através do uso de pressupostos e subentendidos, assim como se
configura essa condição silenciada da mulher, a anoréxica normalmente esconde essa
condição do outro porque não assume para si mesma. No penúltimo momento dessa página,
percebemos explicitamente a presença da anorexia quando a personagem diz “...porque você
vomita cinco minutos depois de comer...” Neste sentido, podemos pensar na anorexia como
outra nova máscara que a histeria ganhou ao longo do tempo, não esquecendo que não
podemos chamar os sintomas alimentares de novos, pois estes já podiam ser observados no
decorrer dos séculos passados, inclusive em casos que o próprio Freud relatou, fenômeno que
para ele se encontrava em paralelo com a anestesia sexual da histérica. No entanto, não
podemos negar que houve um aumento considerável desta condição.
A compulsão alimentar, o desejo e a repulsa desse desejo aparecem mais uma vez na
última narrativa quadrinística quando uma mulher com fala nervosa – o excesso de hesitações
marcado pelo uso de reticências e reforçado pela expressão facial que sugere essa ansiedade –
pede inúmeros pratos distintos em um restaurante. Essa vinheta recebe a seguinte fala do
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narrador “Há uma coisa mais fácil que seguir uma dieta, abandoná-la”. A neurose pelo corpo
ideal, a busca por essa satisfação impossível – já que a anoréxica sabe que nunca chegará ao
corpo perfeito – marca boa parte dessas narrativas que se caracterizam como uma mimese
dessa sociedade moderna.
5. Últimas considerações
As depressões, síndromes do pânico, toxicomania e anorexia entre outras, são formas
dos sujeitos atuais, e com muita frequência as histéricas, de expressarem sua eterna
inadaptação aos ideais que lhe são impostos. Sem nunca conseguir alcançar os ideais de
feminilidade que são postos pela cultura atual, mesmo que se submeta aos mais diversos
procedimentos estéticos, médicos, psicológicos, entre outros, que prometem a ela este exato
resultado, a angústia se coloca em primeiro plano, pois isto tudo lhe confronta com a sua falta.
As Mulheres Alteradas, de Maitena representam o universo feminino multifacetado, desde as
questões profissionais, pessoais, os conflitos existenciais quanto às manifestações mais atuais
da histeria feminina – síndrome do pânico, depressão e, em foco nesse artigo, a anorexia.
Percebemos com a leitura das narrativas a confirmação de que o desejo da anoréxica,
em geral mulheres jovens, é querer que a insatisfação aconteça em toda parte, que só exista
insatisfação, da necessidade e do desejo. A anorexia consiste em não comer para não se
satisfazer, e não se satisfazendo o desejo permanece intacto. Vemos, portanto que a anorexia
pode ser vista como um manifesto contra qualquer satisfação e uma obstinada manutenção do
estado geral de insatisfação, de incompletude, do fracasso permanente do gozo total.A
anorexia pode ser entendida como uma roupagem nova para a histeria, pois tanto na histeria
quanto na anorexia observamos uma tentativa naive de fazer fracassar o saber médico, que faz
com que o desejo desta mulher seja posto ao controle através do corpo.
6. Referências bibliográficas
BURUNDARENA, Maitena. Mulheres Alteradas.v. 01. São Paulo: Rocco, 2003.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Pala Athenas, 1990.
CIRNE, Moacy. Quadrinhos, sedução e paixão.Petropólis: Vozes, 2000.
EISNER, Will. Narrativas gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. São
Paulo: Devir, 2008.
FREUD, S.. Estudos sobre histeria (1893-1895) In Edição Standard Brasileira dasObras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 2. Rio de Janeiro: Imago,
1996a.
____________. A hereditariedade e a etiologia das neuroses (1896) In EdiçãoStandard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 3. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
____________ Um caso de histeria e Três ensaios sobre a sexualidade (1905) In Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 7. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
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____________ Moral sexual „civilizada‟ e doença nervosa moderna (1908) In
EdiçãoStandard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 9.
Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São Paulo: Editora LTC, 1978.
PASCHOARELLI, Jane Maria. A figura da mulher nas tiras de jornal. Disponível em
http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/producoes_pde/artigo_jane_m
aria_paschoarelli.pdf. Acesso em: 08/09/2012.
POLLO, Vera. Mulheres histéricas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003.
RAMOS, PAULO. Bienvenido: um passeio pelos quadrinhos argentinos.
Campinas:Zarabatana Books, 2010.
ZALCBERG, Malvine. Amor paixão feminina. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
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O CONTATO DE LÍNGUAS, A INTERCULTURALIDADE E A ABORDAGEM
INTERCULTURAL
Genielli Farias dos SANTOS
UFPB-PROLING6
RESUMO: O objetivo desse estudo teórico é expor de maneira sucinta a partir da teoria
sociolinguística alguns reflexos ou fenômenos da problemática do contato de línguas, como
por exemplo, a variação linguística, a mudança linguística e a interculturalidade. O fenômeno
a que nos deteremos será o fenômeno da interculturalidade, caracterizado pelo contato de
línguas e cultura, já que trabalhamos numa perspectiva onde língua não pode ser dissociada de
cultura, de acordo com a mesma esses aspectos entram em interação, a interculturalidade
prima pela integração e convivência dos indivíduos. A partir da transmissão de ideias sobre
este fenômeno vemos que é necessária uma perspectiva intercultural e consequentemente nos
fixaremos em expor no âmbito educacional, a pedagogia intercultural. Para tal estudo nos
apoiamos em textos teóricos, dessa forma esta pesquisa teórica é de natureza descritiva. Este
trabalho está dividido em três capítulos. Esperamos transmitir nossas ideias sobre a temática
aqui proposta, lembrando que se trata de um estudo pautado nas concepções de língua e
sociedade da teoria sociolinguística tão conhecida e difundida, e almejamos assim causar uma
reflexão sobre esses temas aqui retratados, temas esses que se interelacionam.
PALAVRAS-CHAVE: contato de línguas; interculturalidade; pedagogia intercultural.
RÉSUMÉ : L´objectif de cet travail est exposer d´une manière bref à partir de la théorie
sociolinguistique, certains réflexes ou dês phénomènes de la problématique du contact de
langue, telles comme la variátion linguistique, le changement linguistique et l´interculturalité.
Le phénomène qui nous allons considérer et aussi nous fixer será l´interculturalité, caractérisé
pour le contact de langue et culture, depuis que travaillons sur une perspective ou la langue ne
peut pas être dissociée de la culture, ainsi cette phénomène defend l´integration et
cohabitation des individus. À partir de la transmission des idées sur cette réflexe nous voyons
que se fait nécessaire une perspective interculturel et par conséquent nous nous fixerons à
exposer dans le contexte éducatif, la pedagogie interculturel. Pour faire cet étude nous nous
soutenons en certains auteurs et ses oeuvres sur ce theme, alors cette recherché théorique est
de nature descriptif. Nous espérons transmettre nos idées sur le theme proposée ici, en
rappelant que cet étude est guidé pour les conceptions de langue et societé de la théorie
sociolinguistique bien connue et diffusée, ainsi nous avons l´intention de causer une refléxion
sur ces themes ici retraités et que se rapportent.
6 *Este artigo foi apresentado em uma disciplina do curso de pós-graduação em linguística da
Universidade Federal da Paraíba, chamado PROLING, em 2011, em nível de mestrado, dissertação
sob orientação da professora e doutora Rosalina Maria Sales Chianca.
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MOTS-CLES: Contact de langues; interculturalité; pédagogie interculturel.
1. Introdução
A lingüística aplicada segundo Marín se define da seguinte forma “se há constituído
como una ciência que busca investigar y explicar, través de métodos empíricos, el proceso de
adquisición de la lengua materna por sus hablantes, como también los problemas que estos
enfrentan al entrar en contacto con un otro idioma.” (MARÍN 2005 apud ARAÚJO, 2007).
Partindo dessa concepção de linguística aplicada de Marín que salienta a problemática do
contato linguístico, devemos dizer que este presente artigo é fundamentado numa área da
linguística que estuda a linguagem e a sociedade, a sociolinguística, mas que se envolve
também com o processo de ensino de uma língua, onde se enquadra a linguística aplicada.
Há algumas décadas vem emergindo um número cada vez maior de estudos na área do
contato de línguas e alguns fenômenos gerados por este contato, mas poucos estudos tem se
voltado para a problemática do contato de línguas e a necessidade de uma pedagogia de
ensino intercultural que contemple a realidade multicultural e multilinguística que vivemos.
Desse modo, é importante um estudo que preencha essa lacuna. Neste trabalho, pretendemos
discutir, de forma breve, a problemática do contato de línguas, a interculturalidade como
resultado desse contato linguístico e por fim discutir sucintamente sobre uma pedagogia de
ensino intercultural apoiada numa das principais expositoras dessa abordagem, a autora
Chianca (2001, 2002, 2007).
É importante ressaltar que este trabalho é um trabalho de cunho teórico e intenta
causar uma reflexão sobre a abordagem intercultural, à medida em que esta se faz necessária
devido ao contato linguístico, tendo como ponto de partida a esfera da teoria sociolinguística
mas também é um trabalho voltado para o âmbito educacional e as praticas sociais.
Para cumprir o nosso objetivo iremos expor um panorama histórico sobre a
sociolinguística, em seguida falaremos sobre o contato de línguas e o fenômeno da
interculturalidade gerado por esse contato, e para terminar discutiremos sobre a necessidade
de uma pedagogia intercultural e assim faremos uma breve exposição da abordagem ou
pedagogia intercultural. É importante dizer que este trabalho surgiu a partir de uma
inquietação nossa, onde pensamos que seria importante um trabalho que relacionasse a teoria
sociolinguística do contato de línguas com a abordagem de ensino intercultural. Nossa
metodologia se apresenta de forma simples, assim nos fixamos em textos teóricos de autores
como Fernandéz (1998), Tarallo (2005), Chianca (2001a, 2002b, 2007c), Godenzzi (2007),
(Speranza, Martinez 2009) onde nas referências serão citados.
Para tanto este trabalho está dividido em três momentos, no primeiro momento
apresentaremos de forma sucinta algumas noções de sociolinguística e as principais teorias
que versam sobre o contato de línguas. No segundo momento discutiremos sobre o contato de
línguas e a interculturalidade, tentando expor de forma clara e breve suas definições e
características. E no terceiro momento iremos expor o conceito da abordagem de ensino
intercultural, ressaltando a importância da mesma como tentativa de integralizar os indivíduos
e defender a diversidade existente em todo lugar e inclusive na sala de aula. E em seguida
teceremos as considerações finais.
P á g i n a | 2234
2. A teoria sociolinguística
Ao longo da história, foram propostas inúmeras concepções de língua e de linguagem.
E cada uma dessas concepções é respaldada de acordo com teorias cientificas. A nosso ver a
língua e a linguagem podem ser vistas de modo geral como expressão do pensamento, como
um instrumento de comunicação e como forma de interação. Mas na teoria sociolinguística,
língua e linguagem assumem outras definições, essas duas faculdades estão relacionadas com
a sociedade e são estas definições que vamos expor aqui à medida que traçamos um breve
panorama histórico da sociolinguística. A explanação a seguir faz parte da proposta de
Alkmin (2001), sobre a sociolinguística.
A sociolinguística teve seu estabelecimento em 1964 precedido pela atuação de
vários pesquisadores que buscavam articular a linguagem com aspectos de ordem social e
cultural. De acordo como Alkmin (2001) esses pesquisadores e alguns dos principais
precursores da teoria sociolinguística, são Hymes e Labov, seus trabalhos de grande destaque
são respectivamente: A Etnografia da fala, rebatizada mais tarde como A Etnografia da
Comunicação lançada em 1962 e em 1963 Labov publica seu trabalho sobre a comunidade da
ilha de Martha´s Vineyard, em Massachusetts, onde remarca o papel decisivo dos fatores
sociais na explicação da variação linguística. É importante ressaltar que a sociolingüística
nasce dentro de uma perspectiva interdisciplinar.
O termo sociolingüística fixou-se como já foi dito antes em 1964, na oportunidade de
um congresso organizado por William Bright na Universidade da Califórnia em Los Angeles
(UCLA). Segundo Bright a sociolingüística deve demonstrar a covariação sistemática das
variações lingüística e social e seu objeto de estudo é a diversidade lingüística.
A sociolinguística é antes de tudo uma área da linguística que estuda a linguagem e a
sociedade. É uma área que estuda a língua em seu uso real, levando em consideração as
relações entre a estrutura linguística e os aspectos sociais e culturais da produção linguística.
Desse modo a concepção de língua retoma a noção de Saussure, ou seja, a língua é um fato
social é um sistema que é adquirido no convívio social, ela é concebida como um fenômeno
cultural, social, histórico. Dessa maneira ela se manifesta no uso, Saussure afirma que é um
produto social da faculdade da linguagem.
Hymes incorpora a instância social na qual o uso da língua está envolvido. O uso da
língua para Hymes estaria diretamente ligado à capacidade do individuo de usar
adequadamente a língua nos contextos sociais dos quais ele participa, ou seja, do nosso ponto
de vista a língua está ligada a sociedade, sociedade esta tomada como o lugar social em que a
língua se manifesta. Assim podemos ver que a língua nessa corrente linguística, é uma
instituição social e não pode ser estudada como um ato autônomo, “solto”, ela está
intrinsecamente ligada ao falante ou usuário, a identidade desse falante e ao contexto social. E
como afirma Tarallo (2005) “sujeito a variações de ordem fonológica, morfossintática,
estilística e/ou semântica”.
A teoria sociolinguística tem como foco o estudo da língua em seu uso real, e assim
de todas as formas de variação linguística e a mudança linguística. A língua como um todo,
deixa-se corromper pelos fatores externos, por exemplo, a língua de uma determinada região
apresenta modificações, características internas, manifestações verbais diferentes, esses
fatores externos são explicados pela variação linguística.
P á g i n a | 2235
Segundo Martelotta (2008), “a variação não é vista como um efeito do acaso, mas
como um fenômeno cultural motivado por fatores linguísticos e por fatores extralinguísticos
de vários tipos.” Em todo lugar ou comunidade de fala há variação linguística, ou seja, não
importa se é português ou inglês sempre irá existir as variantes que a população brasileira ou a
americana conhecem. Tomemos como variante a noção de Martelotta (ibid.) “o termo variante
é utilizado para identificar uma forma que é usada ao lado de outra na língua sem que se
verifique mudança no significado básico.” Ou seja, para mesma palavra temos duas
expressões estruturais diferentes, mas ambas tem significados equivalentes. Lembramos que o
termo variável, segundo Tarallo (2005) é concebida como um conjunto de variantes
linguísticas.
A variação é causada por fatores linguísticos e extralinguísticos. Os principais fatores
extralinguísticos são: localização geográfica dos falantes, os aspectos sociais como:
escolaridade, formalidade ou informalidade da situação da fala, a idade, classe social. Não nos
deteremos a explicar detalhadamente todos os fatores que corroboram a variação linguística e
nem as variáveis linguísticas, pois não é nosso objetivo. Mas é importante afirmar que embora
os falantes utilizem variantes é no contato linguístico com outros falantes de sua comunidade
de fala que ele vai encontrar o limite para a sua variação linguística individual. Encerramos
esse parágrafo com uma citação contundente de Possenti (2000) “(...) a variedade lingüística
é o reflexo da variedade social e, como em todas as sociedades existe alguma diferença de
status ou de papel entre indivíduos ou grupos, estas diferenças se refletem na língua.”
O contato de línguas é um dos grandes disparadores da variação linguística e desse
modo é um fator determinante da mudança linguística. O contato de línguas será o tema
abordado na próxima seção.
3. O contato de línguas e a interculturalidade
A problemática do contato linguístico é inserida neste estudo teórico, no âmbito
educacional e do contato cultural, ou seja, a cultura e a língua são indissociáveis e aqui serão
expostas e abordadas a partir dessas premissas. Lembramos que neste estudo a visão
educacional sobre a abordagem intercultural é o caminho onde almejamos chegar.
O contato de línguas está ligado ao bilinguismo, podemos dizer que é do contato
linguístico que se deriva a noção de bilinguismo e este pode ser individual ou social. Há
diversas definições de bilinguismo, baseado nas definições de Bloomfield (1933), Haugen
(1953,) Weinreich (1953) podemos perceber desde a noção de que o bilinguismo consiste no
domínio pleno, simultâneo e alternante de duas línguas até a noção de que o conhecimento de
uma segunda língua seja o nível que seja por parte do falante, já implica num individuo
bilíngue. O bilinguismo individual afeta os indivíduos como tais, é uma característica do
individuo, ou seja, é quando o individuo apresenta uma capacidade de alta de proficiência na
segunda língua. Já o bilinguismo social afeta as sociedades e as comunidades dos falantes.
Diz respeito dessa forma, a uma comunidade ou região onde se falam duas línguas. Segundo
Fernandéz (1998), o bilinguismo apresenta vantagens sociais notórias como pela facilidade
para estabelecer as relações mais diversas e gerais para a compreensão e conhecimento entre
povos e indivíduos.
Cuando el bilingüismo supone haber adquirido una segunda lengua
socialmente reconocida o prestigiosa y esta adquisición es vista como un
enriquecimiento personal, se habla de bilingüismo aditivo. Si, por el
P á g i n a | 2236
contrario, la adquisición de una segunda lengua responde a una necesidad
socioeconômica y comporta el alejamiento o el abandono de la primera
lengua y su sustitución por la nueva, estamos ante un bilingüismo
sustractivo.( FERNANDEZ, 1998)7
As noções de bilinguismo sustractivo e aditivo são expostas acima se referem a um
dos fenômenos causados pelo contato linguístico. Estas são situações de aquisição de uma
segunda língua onde quando adquirida de forma a somar, quando ela é vista como
enriquecimento pessoal é considerada como bilinguismo aditivo e quando implica o abandono
da primeira língua é chamada de bilinguismo sustractivo.
O contato de línguas provoca a variação linguística e a variação precede a mudança
linguística. Esse contato linguístico ocasiona diversos fenômenos, como já expomos acima ela
permite o bilinguismo, a variação linguística, consequentemente a mudança linguística. Mas
não nos deteremos a esses fenômenos ocasionais, o fenômeno que nos fixamos é a
interculturalidade.
O contato de línguas é algo bastante comum e é a realidade de muitos lugares. Num
mesmo espaço social e com a convivência de indivíduos falantes de uma língua e com
falantes de outra língua, o contato linguístico é inevitável assim como o contato cultural. A
nosso ver, a aquisição da competência de fala por parte desses falantes é algo que acontece de
maneira natural, mas que gera conflitos, desse modo preocupamos nos com uma visão que
contemple a questão da educação, o ensino de línguas, é preciso um aporte pedagógico que
contemple acima de tudo o respeito as línguas de contato e a valorização a diversidade dessas
línguas e da cultura dos povos, levando-os a pensar em sua língua como uma fonte de riqueza
linguística e cultural, ou seja, é necessário uma perspectiva e uma pedagogia intercultural.
Como disse Speranza em sua palestra sobre o contato de línguas (2012), “Se hace necesario
asesorar a los docentes sobre el valor cultural de las lenguas y variedades que conviven en un
mismo espacio social.” Dessa maneira compete ao professor no âmbito educacional
desenvolver uma pedagogia intercultural, já que é nas aulas de línguas que devemos explorar
a visão de mundo do aluno, a questão cultural das línguas e a possibilidade de desenvolver
uma identidade sociolinguística e cultural comprometida com a cidadania. Segundo Godenzzí
(2007) “é preciso que os indivíduos sejam capazes de interpretar o mundo e interagir em
sociedade”. (Tradução nossa). E a nosso ver é na sala de aula que temos a oportunidade de
tornar isso realidade através uma abordagem intercultural.
Na perspectiva intercultural o prefixo INTER, a nosso ver já retém muitas ideias,
como: interação, mudança, reciprocidade e trás a tona a noção de integração entre diferentes
populações ou povos. A interculturalidade primeiramente implica o respeito à diversidade,
visa à integração dos grupos no todo social, perante o individualismo. A interculturalidade
pressupõe a educação democrática e a superação dos hermetismos sociais nos quais os
indivíduos se fixam. Ela é contrária ao estabelecimento de uma cultura sobre a outra, de
acordo com a interculturalidade as culturas devem ser valorizadas e assim defende a posição
de que as culturas e as diversidades socioculturais devem ser vistas dentro de uma visão
integralizadora e serem levadas em consideração na convivência com o outro, desse modo ela
implica a convivência e a interação de culturas.
7 Quando ao bilinguismo supõe-se haver adquirido uma segunda língua socialmente reconhecida ou prestigiada e
esta aquisicão é vista como um enriquecimento pessoal, se chama de bilinguismo aditivo. Se, pelo contrário, a
aquisicão de uma segunda lingua corresponde a uma necessidade socioeconômica e implica o abandono da
primera língua e sua sustituicão pela nova, estamos diante de um bilinguismo sustractivo. Tradução nossa.
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4. A pedagogia intercultural e a sala de aula
A palavra aprendizagem, a qual é derivada do verbo aprender, tem origem do latim
(apprehendere, “compreender”). No pensamento de Piaget, a concepção de aprendizagem
estava vinculada ao processo de conhecimento, também denominado de processo cognitivo,
ou seja, através da inteligência o ser humano age, aprende e, “constrói conhecimentos que lhe
possibilitam uma interação cada vez melhor com o meio, por mais adverso que este lhe seja”
(cf. PIAGET, 1973, apud MIRANDA E COELHO). A nosso ver é necessário que no processo
de ensino e aprendizagem na sala de aula, sejam exploradas questões sociais, culturais,
acreditamos que esses aspectos são importantíssimos e permitem a construção de uma
identidade preocupada com o reconhecimento das diversidades.
A aprendizagem de uma língua estrangeira, no caso aqui uma língua de contato
apresenta ainda mais conflitos, pois em toda situação de contato linguístico há a preocupação
com as variedades linguísticas, ou seja, uma questão que se sobressai é esta: qual é a variante
correta para aprender e qual a variante linguística os docentes devem ensinar?. Acreditamos
que com relação a esta questão a resposta é simples, o ensino deve ser pautado na gramática
normativa, ou seja, na língua padrão. Como professores de língua estrangeira, acreditamos
que devemos ensinar a língua padrão, mas ressaltar sempre as variedades linguísticas
existentes naquela região, e ficar atenta a não propor um estereótipo negativo para essas
variáveis, então é importante sempre que possível ressaltar essas variações e não conceber a
estas a noção de que são erradas ou inadequadas e sim que representam apenas a variação
linguística presente num lugar e resultado da diversidade de línguas e culturas ou resultado do
contato entre duas ou mais línguas. O professor deve estar atento às representações que os
alunos possuem sobre a língua e a sociedade a qual elas pertencem, e desse modo promover
inclusive debates ou discussões sobre essa problemática, esse método pode promover a
consciência pluralista de mundo e desenvolver o respeito pelas línguas e a valorização de
todas as diversidades, ou seja, diversidade linguística, cultural, social por parte do aluno. É
preciso então que o professor possua sensibilidade a esses aspectos extremamente importantes
e que revolucionam os indivíduos.
Diante do exposto nos voltemos à questão intercultural. A interculturalidade está
presente assim como a variação linguística em todas as camadas e níveis sociais, mas além
dessas camadas, ela também se encontra presente de forma inconsciente dentro de uma sala de
aula, e cabe ao professor perceber que a sala de aula também é um lugar de diversas culturas,
e é ele quem se apresenta como mediador das trocas culturais e linguísticas. Dessa forma, a
pedagogia de ensino intercultural afirma que a aprendizagem da cultura e da língua estão
ligadas e vão de par em todos os níveis das trocas conversacionais, e assim deve ser de
interesse do professor fazer de seus alunos aprendizes sociais, futuros cidadãos atentos às
diferenças sociais e à diversidade das experiências culturais. A língua não pode ser dissociada
da cultura. A língua influência a forma como os indivíduos se comportam e percebem as
coisas, o mundo. A cultura é inerente à língua, a sua estrutura, a seu vocabulário, a suas
expressões e assim pode ser ensinada ao mesmo tempo que a língua. Afinal, o ensino de uma
língua é a transmissão não só da língua, mas também da sua cultura. A confrontação de uma
língua e uma cultura diferente pode dar ao aluno a ocasião de tomar consciência da
diversidade presente no interior de sua própria cultura, e assim lhe permitir uma redescoberta
de sua própria identidade cultural, essa redescoberta pode ter um impacto bastante fervoroso e
decisivo em sua integração social. Desse modo, podemos perceber que a pedagogia
intercultural pode promover uma abertura cultural e ressaltar no individuo como este se
percebe no convívio social.
P á g i n a | 2238
A abordagem intercultural busca a constante de diálogo, interação e reciprocidade
entre grupos diferentes, como fator de crescimento cultural e enriquecimento mútuo,
procurando, ao mesmo tempo, sustentar uma relação crítico-solidária entre eles e evitar todo e
qualquer tipo de discriminação e o desprezo a uma língua diferente. Segundo CHIANCA
(2001) “a variável cultural encontra-se presente em toda parte, não se limitando a alguns
aspectos do comportamento. Ela interfere de maneira determinante em todos os aspectos das
interações inter-pessoais (e em todos os níveis)”. Desta maneira, as diferenças oriundas do
meio e a diversidade das experiências culturais específicas aos alunos de uma sala de aula nos
permitem dizer que culturas entram em contato, originando a interculturalidade na sala de
aula.
Já falamos muito sobre a cultura como fator central da interculturalidade, mas ainda
não expusemos uma definição para cultura. Assim é necessário ressaltar sua definição,
tomemos como definição de cultura a concepção de Chianca (2007) que muito nos é útil nesse
estudo, segundo ela “a cultura designa os modos de vida de um grupo social, ou seja, suas
maneiras de sentir, de agir ou de pensar, sua visão de natureza, do homem, da técnica e a da
criação artística” (Tradução nossa).
A pedagogia intercultural oferece uma visão pluralista do mundo que visa suscitar
nos alunos o interesse pela cultura do outro e, ao mesmo tempo descobrir a sua própria
identidade, uma vez que não se dissocia língua de cultura. Com esta pedagogia percebemos o
“outro”. Com essa abordagem, podemos perceber que os alunos passam a se interessar em
compreender, através do convívio social e cultural, a aprendizagem da língua e as regras
linguísticas que são necessárias para estabelecer a interação comunicativa. Na interação
comunicativa as trocas linguísticas e culturais são inevitáveis e permitem uma nova e rica
experiência cultural aos alunos.
Enfim nós podemos dizer que a abordagem intercultural requer não somente o
ensinamento do código linguístico, mas também o conhecimento e a prática dos aspectos
sociolinguisticos e socioculturais, assim como requer também o comprometimento do
professor como agente mediador entre a língua, a cultura e a sociedade, afinal a língua é
produto da cultura e a cultura é apreendida em sociedade. A cultura é parte do contexto do
qual o aluno está inserido. A nosso ver, a língua estrangeira deve sempre ser vista dentro de
uma perspectiva intercultural, à medida em que os alunos trocam suas experiências é
inevitável que a visão de mundo e o conhecimento de mundo e assim as trocas culturais,
também não se ampliem.
4. Considerações finais
Neste trabalho foi exposta de uma maneira sucinta a temática do contato de línguas e
sua relação com a educação. Os temas tratados aqui apresentam uma amplitude enorme e
nesse artigo foram expostos e discutidos dentro de um contexto especifico. Nos propomos a
expor o contato de línguas e a interculturalidade no âmbito educacional, tentamos promover
uma reflexão sobre a abordagem de ensino intercultural. Dessa forma expusemos as
definições e caracteristicas da abordagem para que esta se torne mais difundida e vista como
uma opção para tanto os professores, quanto para os individuos de forma geral, que ainda não
tinham tido acesso a esta abordagem e enxergam o mundo com uma visão multicultural e
multilinguistica, que apresenta diversidades notórias.
Tendo em vista que este estudo tinha o intuito de causar uma reflexão sobre a
abordagem intercultural à medida em que esta se faz necessária devido ao contato linguístico,
P á g i n a | 2239
tendo como ponto de partida a teoria sociolinguística, concluímos que este estudo contribuirá
de forma significativa para os posteriores estudos que abordarão a temática aqui tratada.
Acreditamos na importância desse trabalho e ansiamos por mais estudos que tratem deste
mesmo enfoque, há ainda um longo caminho à percorrer, primeiramente para estabelecer
teorias especificas e contundentes sobre o contato de línguas e não menos importante é
necessário também visões que abarquem de um todo, todas as concepções aqui tratadas. Essas
concepções a nosso ver se interelacionam e um estudo nessa área é plausível e necessário,
acreditamos que todas as diferenças sociais, culturais e linguísticas vem à tona mais
precisamente na sala de aula, então isso torna a sala de aula como o lugar das trocas
socioculturais e linguísticas, assim como também a base para o despertar de uma consciência
altruísta nos indivíduos, já que a cidadania e o respeito ao outro são ensinados também na
escola, é preciso medidas que incorporem aspectos socioculturais e atitudes que evitem a
discriminação e proponha a aceitação da diversidade e da igualdade, desse modo vemos que
todo o futuro de uma nação comprometida com a igualdade entre os grupos sociais, depende
da educação, e é através da educação que formaremos cidadãos realmente sensibilizados com
a diferença existente entre a cultura, a língua e a sociedade, e a partir disso sublinhar e emitir
a importância que cada língua tem e não estimular desprezo ou desdenho entre umas com as
outras.
Portanto acreditamos em nossa reflexão crítica sobre todas as concepções aqui
expostas. Esperamos de modo geral que este estudo possa contribuir para a divulgação dos
saberes e das práticas diversas dessa esfera da sociolinguística. Esperamos também que este
estudo teórico estimule outros indivíduos a investir nessa mesma problemática abordada aqui
e que possa contribuir de alguma forma para posteriores estudos nessa área.
5. Referências
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ARAÚJO, Eneida Maria Gurgel. “Dificultad de los alumnos brasileños en el aprendizaje de
los verbos en español.” Letra viva, v.8, n. 1. 2007
CHIANCA, Rosalina Maria Sales. “L´enseignement des langues étrangères dans une
approche interculturelle: un moyen pour promouvoir la (re) découverte de l´identité culturelle
de l´apprenant et mieux le préparer à la vie sociale.” Moara_ Revista dos cursos de pós-
graduação em Letras da UFPA. Belém: Editora Universitária\UFPA, N. 15, 2001.
CHIANCA, Rosalina Maria Sales. “Experience didactico-pedagogique et analyse du <fait
pedagogique> hors terrain”. Letra Viva. João Pessoa: Idéia V. 4, N 1, 2002.
CHIANCA, Rosalina Maria Sales. L ´interculturel (L): découverte de soi-même et de
l´autre. João Pessoa: Idéia, 2007.
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Normas acadêmicas para artigo cientifico, disponível em:
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POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 6ª reimpressão-2000.
Campina, SP: Mercado de Letras, 1996.
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1989.
SPERANZA, Adriana, MARTINEZ Angelita. “Como analizar los fenômenos de contacto
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2009.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. São Paulo: Ática, 2005.
P á g i n a | 2241
O GÊNERO ENTREVISTA NO LIVRO DIDÁTICO E NAS PRÁTICAS DE
COMUNICAÇÃO ORAL: CONTRIBUIÇÕES PARA A AULA DE LÍNGUA
INGLESA
Deywhildson Luiz de OLIVEIRA8
(Universidade Federal de Campina Grande)
Laryssa Barros ARAÚJO9
(Universidade Federal de Campina Grande)
Prof. Ms.Vivian Monteiro SILVA (Orientadora)10
(Universidade Federal de Campina Grande)
RESUMO: Uma das mais notáveis dificuldades dos aprendizes estrangeiros de língua inglesa
(LI) que professores e pesquisadores da área costumam observar é a compreensão oral do
idioma. Considerando que a maior parte da exposição oral em sala de aula é baseada no
contato do aluno com áudios presentes no livro didático (como diálogos, trechos de filmes,
entrevistas, entre outras), esta pode, por vezes, criar uma barreira entre o aprendiz e as
práticas comunicativas fora do ambiente escolar, pelo fato desses áudios serem muitas vezes
bastante diferentes do que ocorre nas práticas sociais reais dos falantes. A partir do exposto, o
objetivo deste artigo é mostrar como o gênero entrevista pode contribuir para as práticas de
compreensão oral na sala de aula do idioma em questão. Para tal, analisamos duas entrevistas
- uma retirada do livro didático elementar New English File Elementary, editada
especialmente para o livro, e outra retirada do site Youtube, autêntica e espontânea - com o
intuito de investigar e destacar algumas características do texto falado (espontaneidade,
interpessoalidade e interatividade) presente em ambas. O principal autor utilizado como
referencial teórico para a pesquisa foi Thornbury (2005), por ele defender que a utilização do
áudio espontâneo na sala de aula é um fator facilitador na compreensão oral, mas também nos
respaldamos em outros autores tais como Ur (1984), Faria (2004), Field (1997) e Costa (2008)
para abordarmos tanto a questão das características da fala quanto para a caracterização do
gênero entrevista. Após essa investigação, será realizada uma pesquisa de campo com alunos
iniciantes do curso de Letras/Inglês da Universidade Federal de Campina Grande, com o
intuito de verificarmos em qual áudio os aprendizes apresentarão maior dificuldade de
compreensão. Posteriormente, será sugerida uma atividade que contemple um uso que
consideramos adequado desses áudios através do gênero entrevista.
Palavras-chave: entrevista, compreensão oral, autêntico, editado.
8 Deywhildson Luiz de Oliveira é estudante do quarto semestre do curso de Letras/Inglês na Universidade
Federal em Campina Grande, e integrante do grupo de pesquisa DILES (Didática das Línguas Estrangeiras). 9 Laryssa Barros Araújo é estudante do quarto semestre do curso de Letras/Inglês na Universidade Federal em
Campina Grande, e integrante do grupo de pesquisa DILES. 10
Vivian Monteiro Silva é professora Assistente da Universidade Federal em Campina Grande, integrante do
grupo de pesquisa DILES, e ministrante da disciplina Estudos de oralidade e escrita, cujas discussões deram
origem ao presente trabalho.
P á g i n a | 2242
1. Considerações iniciais
No processo de aprendizagem de língua inglesa (LI), uma das habilidades mais
difíceis de desenvolver é a compreensão oral de textos autênticos (Field, 1997), pelo fato de a
maior parte da exposição oral em sala de aula estar baseada apenas no contato com áudios
editados, elaborados especialmente para o livro didático. A proposta do material didático é
desenvolver nos estudantes habilidades comunicativas orais, tais como as práticas reais dos
falantes nativos, sendo esta realizada através de áudios editados. Este tipo de exposição
exaustiva a materiais desta natureza pode, por vezes, criar uma barreira entre o aprendiz e as
práticas comunicativas fora do ambiente escolar, pois os áudios editados distanciam-se do
áudio espontâneo. (Field, 1997; Thornbury, 2005; Ur, 1984)
Assim, acreditamos que os estudantes necessitam ter contato com áudios
autênticos desde os níveis mais elementares, para que possam interagir nas práticas sociais do
idioma estrangeiro de forma mais efetiva. Neste sentido, um trabalho adequado com gêneros
textuais se faz necessário, pois, por meio deles “o aprendiz pode compreender o
funcionamento sociointerativo das comunidades discursivas e as formas da língua em uso”
(Dell’Isola, 2009, p.106). Nesta pesquisa, especificamente, abordamos o gênero entrevista,
seus tipos, e como características da oralidade são mantidas ou perdidas dependendo do tipo
de entrevista que está sendo realizado.
A partir do exposto, o presente artigo tem por objetivo mostrar como o gênero
entrevista pode auxiliar no desenvolvimento de competências comunicativas e na
compreensão oral do idioma em questão. Para tanto, serão analisadas amostras coletadas a
partir de uma pesquisa de campo, com o intuito de constatar as dificuldades em trabalhar com
o áudio autêntico e, posteriormente, propor uma forma de se trabalhar este áudio no ensino de
língua inglesa em níveis iniciantes.
Primeiramente, apresentaremos a concepção de texto adotada na pesquisa bem
como as características do texto falado que nortearão a análise das entrevistas. Depois
abordaremos o gênero entrevista e sua importância para o desenvolvimento de determinadas
competências comunicativas do estudante de LI. Em seguida, abordaremos os pontos
positivos e negativos em se trabalhar com o livro didático (LD). Por fim, apresentaremos as
análises dos dados coletados.
2. A oralidade e o texto falado
A oralidade, “uma prática social interativa para fins comunicativos”
(MARCUSCHI, 2003, p. 25), pode se apresentar na realidade sonora de variadas formas, indo
desde uma realização mais formal a uma informal, em diversos contextos. O autor citado
também define fala como “uma forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos
na modalidade oral”, o que a inclui, portanto, no plano da oralidade. Sendo a fala “uma forma
de produção textual”, se faz necessário definir o que é texto.
P á g i n a | 2243
Thornbury (2005) define texto como “um fragmento contínuo de linguagem
falada ou escrita”11
(tradução nossa) e, a partir dessa definição, difere o texto escrito do texto
falado (objeto de nosso interesse) de acordo com suas características, dentre as quais podemos
mencionar: a espontaneidade, interatividade, interpessoalidade e relevância, que serão
exploradas adiante. Algumas dessas características do texto falado também são abordadas por
Ur (1984), porém divergindo em determinados aspectos. Dentre os aspectos típicos da
oralidade ressaltados pela autora, que os denomina de real-life listening (talk para
Thornbury), temos: propósito e expectativa, resposta, visibilidade do falante, pistas
ambientais, entre outras.
Sendo assim, adotaremos três das características do texto falado, segundo
Thornbury (op. cit.), que servirão de ferramentas de análise das entrevistas selecionadas, são
elas: a espontaneidade, a interpessoalidade e a interatividade.
A primeira característica do texto falado mencionada por Thornbury (ibidem), a
espontaneidade, marcada pela presença de pausas, repetições, falsos inícios e frases
incompletas, mostra a irregularidade típica do texto oral em termos de manutenção do tópico e
do ritmo, sobretudo nas conversações informais. Tais marcas também são contempladas por
Ur em sua abordagem ao tópico redundancy12
: "Redundant utterances may take the form of
repetitions, false starts, re-phrasing, self-corrections, elaborations, tautologies and apparently
meaningless addition such as 'I mean' or 'you know'" (op.cit.p.7).13
Ainda sobre conversação espontânea, encontramos a seguinte passagem em que
Ur (ibid) fala do caráter auditivo14
das conversações formais e informais:
“Spontaneous conversation, on the other hand, is jerky, has frequent pauses
and overlaps, goes intermittently faster and slower, louder and softer, higher
and lower. Hesitations, interruptions, exclamations, emotional reactions of
surprise, irritation or amusement, which are all liable to occur in natural
dialogue, are bound to cause an uneven and constantly changing rhythm of
speech.”15
(UR, 1984, p. 9)
Ambos os autores (op.cit.) concordam que tais características ocorrem devido ao
fato de o texto falado ser produzido “em tempo real e com pouco ou sem tempo para
planejamento”16
(tradução nossa). Outro efeito da espontaneidade, segundo o Thornbury
(ibid.), é a construção one-clause-or-phrase-at-a-time, que seria a junção de fragmentos de
fala ou frases simples (denominadas runs pelo autor), que são ligadas umas às outras por
conjunções frequentes como and, but e so, cada uma representando uma unidade significante.
Isto pode ser observado no seguinte trecho ilustrado por Thornbury: the guy sort of looked at
11
“… a continuous piece of spoken or written language” (THORNBURY, 2005, p. 63). 12
Redundância (tradução nossa). 13
Expressões redundantes podem tomar a forma de repetições, falsos inícios, reformulações, autocorreções,
elaborações, tautologias e aparentemente adições sem significado como ‘I mean’ ou ‘you know’ (tradução
nossa). 14
Auditory character (UR, 1984, p. 9) 5 Conversação espontânea, por outro lado, é irregular, tem pausas frequentes e sobreposições, vai
intermitentemente mais rápido e mais devagar, mais forte e mais suave, mais alto e mais baixo. Hesitações,
interrupções, exclamações, reações emocionais de surpresa, irritação ou entretenimento, que são todos passíveis
de ocorrer no diálogo natural, estão sujeitos a causar um ritmo irregular e em constante mudança de discurso.
(Tradução nossa) 16
“… in real time and with little or no time for much forward planning.” (THORNBURY, 2005, p. 64)
P á g i n a | 2244
me and said how old is this? And it’s about four years old, but of course, you know, in
computer terms that’s... ancient17
(p. 63).
Ainda segundo o autor, muitos desses fragmentos de fala consistem de chunks –
“... unidades multi-palavra que funcionam como palavras únicas e consistem de pequenas
repetições formuladas que são arquivadas e recuperadas em suas totalidades.”18
(tradução
nossa). São exemplos típicos de chunks as expressões sort of’, of course e you know. É
possível vermos que os chamados chunks por Thornbury (ibid) são denominados “adições
sem significado” por Ur (ibid), entretanto, diferentemente da autora, ele não as considera
como expressões sem sentido, mas como marcadores de discurso, que serão abordados mais
adiante.
Uma outra característica da fala apontada por Thornbury é a interpessoalidade, e
esta não se refere simplesmente a uma troca de informações entre os interlocutores, mas ao
modo como tais informações são partilhadas. Por exemplo, a conversação casual é
frequentemente marcada por risos ou risadas, entretanto, mesmo ao discordarem, os falantes
podem se utilizar de modalizadores, com o intuito de não soarem agressivos ao seu
interlocutor. É possível perceber essa “suavização” no uso do que o autor chama de hedges,
como a expressão yeah but, ao discordar de alguém. Também são marcas de interpessoalidade
a referência ao conhecimento compartilhado, o uso de exageros e linguagem avaliativa, que,
possivelmente em virtude do grau de intimidade entre falante e ouvinte, pode chegar ao uso
de palavrões.
A interatividade, outra característica do texto falado apontada por Thornbury
(ibid), é caracterizada pela interação de falantes através da troca de turnos, pela interrupção e
sinalização de concordância ou discordância com o que está sendo dito, através de risadas
e/ou grunhidos, e pelo silêncio enquanto o outro fala. Também é possível verificar a presença
de interatividade no uso de marcadores de discurso, como os mencionados anteriormente: o I
mean, precedendo uma explicação; o you know, como forma de fazer referência ao
conhecimento mútuo; e ainda o but, sinalizando que o que segue pode contrastar com uma
ideia anterior. Outro exemplo dessa interatividade, segundo o autor, é o perguntar e responder
de questões, qualidade marcante do gênero abordado em nosso estudo, a entrevista.
3. O gênero entrevista
Conceito e características
De acordo com Costa (2008), a entrevista pode ser definida como uma coleta de
declarações, informações, opiniões tomadas por jornalistas para divulgação através dos meios
de comunicação. Para Faria (2004), existem quatro tipos de entrevistas: a entrevista noticiosa,
que extrai informações que serão transformadas em notícias; a entrevista de opinião, que
extrai a opinião do entrevistado sobre determinado assunto; a entrevista de ilustração, aquela
que procura aspectos biográficos do entrevistado, focando em seu jeito de viver; e a entrevista
coletiva, nessa o entrevistado responde a perguntas de diversos repórteres.
As entrevistas podem ocorrer nos meios orais ou escritos. No meio oral, as
entrevistas podem ocorrer de forma ao vivo ou gravadas. No meio escrito, segundo Tocatlidou
17
O cara meio que olhou pra mim e perguntou que idade tinha o computador? E ele tinha uns quatro anos, mas,
claro, você sabe, em termos de computação, isso é... arcaico (tradução nossa). 18
“... multi-word units that behave as if they were single words and typically consist of short formulaic routines
that are stored and retrieved in their entirety.” (THORNBURY, 2005)
P á g i n a | 2245
(2002), a entrevista deriva da forma oral, mas, na maioria das vezes, as características da
oralidade são perdidas. Ainda de acordo com o mesmo autor, em alguns casos, tais
características permanecem, mas a organização será diferente do meio oral, podendo ser
considerada uma mescla entre a oralidade e a escrita.
Entrevista na sala de aula de língua inglesa
No âmbito da sala de aula de língua inglesa, a escolha do gênero entrevista se dá
pelo fato de esta contemplar o uso das mais variadas competências linguísticas, podendo-se
destacar a comunicação oral, a reprodução do discurso de terceiros, a transcrição de falas e a
habilidade de argumentação. A gravação da entrevista dá ao professor um ponto de partida
para o trabalho com a língua inglesa, fazendo com que os alunos questionem e pensem a
respeito do diálogo e como as características da fala estão sendo empregadas no mesmo.
Para Faria (2004), as entrevistas gravadas exercem duas funções, auxiliam o
levantamento de informações e dão ao professor um suporte para o trabalho com a língua
estrangeira. Para tais funções, é necessário fazer a transcrição da entrevista gravada, sem
esquecer o uso das normas de transcrição que envolvem aspectos da fala, a pronúncia e as
pausas e silêncios, que são relevantes no estudo de uma língua estrangeira, neste caso, o
inglês.
Como já foi dito anteriormente, a entrevista é originada do meio oral, podendo
ocorrer no meio escrito, também podendo resultar numa mescla desses meios. Com a
transcrição, os alunos podem analisar a entrevista, procurando características da oralidade no
meio escrito, com o auxílio do seu conhecimento de língua inglesa, ajudando a desenvolver
suas habilidades de escuta, leitura e escrita.
Como a análise que será realizada está presente em um livro didático, faremos
uma breve explanação sobre a importância do mesmo para a aula de LI.
4. O livro didático de língua estrangeira
No ensino de línguas estrangeiras, o livro didático (doravante LD) influencia
diretamente a atuação do professor em sala de aula, pois, segundo Ramos (2009), ele viabiliza
conteúdos, textos e atividades que norteiam os acontecimentos em sala de aula; sendo mais
comum sua adoção no ensino privado. No ensino público, mesmo que não ocorra a adoção do
LD, o professor procura, muitas vezes, utilizá-lo como suporte e guia pedagógico pelo fato de
ele propiciar ao professor uma maior acessibilidade a um grande número de textos, ajudando-
o a preparar sua aula, e pelo fato de proporcionar ao aluno “um senso de sistema, coesão e
progresso” no que diz respeito ao conteúdo ministrado (RAMOS, op.cit. p.176).
Atualmente, existem pesquisas e estudos (Cunningsworth, 1984 apud Ramos,
2009) que abordam maneiras que auxiliam o professor em suas decisões relacionadas ao LD.
Porém, esses estudos são poucos utilizados, ocorrendo uma dificuldade na escolha e
implementação do material. Como consequência, há vários conceitos sobre o LD, sendo os
mais recorrentes: o LD como uma ferramenta (Graves, 2000 apud Ramos, 2009) e como um
fardo (Gabrielatos, 2000/2004 apud Ramos, 2009).
Os prós e os contras do livro didático
P á g i n a | 2246
Pelo exposto, o LD pode ser considerado uma ferramenta ou um fardo. Mas quais
são as razões para que ele possua concepções tão diferentes? Faria (2009), baseando-se em
Richards (2002), cita motivos para que o LD seja considerado tanto uma ferramenta que
auxilia o ensino de língua inglesa quanto um fardo, que pode prejudicar o
ensino/aprendizagem da língua.
Do ponto de vista positivo, alguns dos pontos que contribuem para que o livro
seja um auxílio na aula de inglês são: a viabilização de um programa de estudo estruturado
tanto para o professor quanto para o aluno; o estabelecimento um ensino/aprendizagem
padrão; a sustentação a qualidade de ensino, pois adotando o LD de maneira coerente ao nível
dos alunos, é possível uma aprendizagem de forma sequenciada e testada; a contribuição para
uma maior dedicação por parte do professor ao ensino/aprendizagem, como consequência da
economia do tempo referente à elaboração do material.
Ainda de acordo com o autor citado, é também possível destacar os pontos
negativos do mesmo, sendo eles: a não presença de uma linguagem “real”, já que os diálogos
são desenvolvidos com o intuito de abordar os elementos que se deseja ensinar; podem mudar
o conteúdo, incorporando um mundo ideal, para que seja aceito em determinadas culturas;
podem não atender às necessidades específicas dos alunos, pois são produzidos para serem
utilizados no âmbito global; e podem, também, transformar o professor apenas em um técnico
transmissor.
Para um uso adequado desse material, é necessário que o professor faça uma
reflexão de acordo com as necessidades sociais e culturais dos alunos, para que este possa
realmente atuar como uma ferramenta no ensino de língua inglesa. Esta pesquisa é fruto de
uma reflexão dessa natureza. Será feita a análise de duas entrevistas, uma presente no livro
didático, e outra retirada do Youtube, com o intuito de investigar a oralidade, buscando
características da fala definidas anteriormente (espontaneidade, interpessoalidade e
interatividade), tendo em vista uma sugestão de aplicação desse gênero na aula de inglês,
fornecendo ao aluno um maior contato com a língua falada natural e como o áudio do livro
didático pode auxiliar no ensino de língua inglesa.
5. Metodologia
Para este artigo, foi realizada uma coleta de dados com a participação de dezoito
estudantes do curso de Letras/Inglês da Universidade Federal de Campina Grande. Esta coleta
foi dividida em duas etapas. Na primeira, aplicamos um exercício sobre uma entrevista
editada, retirada do livro New English File Elementary, e sobre uma entrevista autêntica com
a modelo Erin Heatherton, retirada do site Youtube. Ao final da atividade, pedimos que os
estudantes relatassem suas dificuldades em compreendê-las e suas justificativas. A última
etapa foi realizada duas semanas após a primeira, dessa forma, optamos por uma entrevista
autêntica que não contemplasse as dificuldades citadas pelos estudantes nos depoimentos da
etapa anterior. Para tanto, selecionamos uma entrevista com a cantora Lady Gaga, também
retirada do site Youtube. Em cada etapa, foram colhidas dezoito amostras, porém, apenas
quatro foram utilizadas, tendo em vista que apenas quatro estudantes eram iniciantes, e o foco
deste trabalho é a compreensão oral no nível elementar.
O livro didático utilizado, o New English File Elementary, em sua seção de
listening (p. 9), defende que os alunos concordam que a compreensão oral é a habilidade mais
difícil de ser desenvolvida, pois afirmam que a velocidade dos áudios é muito rápida e suas
atividades são complexas. Desta forma, o livro aborda áudios de velocidade baixa e suas
P á g i n a | 2247
atividades remetem à interpretação do áudio em questão, em uma tentativa de desenvolver a
autoconfiança nos alunos.
6. Análises das entrevistas
Como já citado anteriormente, a maior parte do texto falado cotidianamente é
produzida “em tempo real e com pouco ou sem tempo para planejamento”, o que resulta em
marcas de espontaneidade, que podem ser identificadas na conversação através de pausas,
repetições, frases incompletas, além do uso de chunks. Também foi visto, de acordo com o
autor citado, que a conversação não é apenas uma simples troca de informações, pois
apresenta elementos como risadas, sutilezas por parte do falante, referência ao conhecimento
mútuo, bem como linguagem avaliativa, que são traços de interpessoalidade. Já a
interatividade, para o referido autor, se apresenta pela dinâmica dos falantes através da troca
de turnos, pela interrupção, concordância ou discordância com o que está sendo dito, através
de risadas e/ou grunhidos, e pelo silêncio enquanto o outro fala.
Baseados em tais considerações, a entrevista editada Listen to Simon, presente no
livro didático New English File, foi analisada em busca de características do texto falado.
Observemos o seguinte excerto:
Professor: Do you like your job?
Simon: It’s OK, but I’m very worried about my contract. It finishes in
six months.
Ao analisar o excerto acima, percebemos que se tratava de uma conversação não
espontânea, pois não foi possível identificar as marcas de espontaneidade citadas
anteriormente. A interpessoalidade, por outro lado, pode ser identificada através da presença
de linguagem avaliativa, ou seja, quaisquer marcas que sinalizam a atitude do falante em
relação ao que está sendo dito, nesse caso no uso do very worried. Prossigamos com a análise:
Professor: Are you married?
Simon: Yes, I have three daughters.
Professor: So you travel from Brighton to London every day?
Simon: Yes. I travel 55 miles to work.
Marcas de interatividade também puderam ser identificadas ao longo de toda a
entrevista, através da troca de turnos entre os falantes, característica típica deste gênero, como
pode ser verificado nos excertos acima.
Diferentemente da entrevista presente no LD, analisada acima, na entrevista com a
modelo Erin Heatherton, retirada do site Youtube, foi possível perceber que as características
do texto falado mencionadas por Thornbury (op. cit.) se apresentam com mais frequência,
especialmente quando se trata de espontaneidade, como no excerto a seguir:
P á g i n a | 2248
Erin: I think all of us work out um, a a good amount more or less, I
think that for me it’s like, it’s a big stress reliever.
Interviewer: Uh-huh.
Erin: I love to go for a run, I love to do yoga, it’s my one hour in the
day where I can just, like quiet my mind. My life is really crazy and to
have that routine every day where I do an hour of something the same,
it’s really nice.
No excerto acima, vemos em destaque o uso repetido do like, em forma de chunk,
apenas conectando fragmentos de fala (runs), além de uma pausa preenchida com o uso de
um, sinais típicos da espontaneidade e da falta de planejamento do texto falado produzido em
tempo real. Também pode ser notada uma função interpessoal nos usos do really.
Em outro fragmento da mesma entrevista, percebemos ainda a presença de
overlap ou sobreposição de vozes, o uso do you know como forma de se fazer referência ao
conhecimento compartilhado por ambos - Erin e a entrevistadora - uso de frase incompleta,
além da interatividade típica do gênero entrevista, marcada pela troca de turnos. Vejamos:
Interviewer: Perfect! And is it just…
Erin: └That’s like the golden combination to me, I think.
I think it’s a great way to explore cities is to go for a run, you know.
Interviewer: └Yeah, I do too, actually. So,
speaking of traveling, what are some of your travel tips, when you don’t
have a trainer around?
Erin: I did start Pure Barre, actually. I’m traveling and s sometimes I’ll
google studio or see and just try a new class or try something different
and that’s always… it’s fun to try something new.
A partir desta breve análise, foi possível percebermos que ambas as entrevistas
apresentam características típicas do texto falado, contudo, tais características aparecem com
menor frequência no texto exposto no livro didático, e com maior frequência na produção
extraída do site Youtube.
7. Análises dos resultados das amostras de dados
O gráfico abaixo mostra os resultados estatísticos descritivos do primeiro
exercício aplicado, referente à entrevista editada. Este exercício conteve seis questões
retiradas do LD, sendo estas: How many children does Simon have?, Why doesn’t he have
breakfast?, How many cups of coffee does he drink?, What time does he finish work?, Why
doesn’t he have dinner with his Family? e What does he do after dinner?.
P á g i n a | 2249
A partir dos resultados apresentados no gráfico 1, verificamos que doze questões
foram respondidas de forma correta, representando cinquenta por cento (50%) do total, e
apenas quatro de forma incorreta, que representa outros dezessete por centro (17%).
Percebemos através do gráfico um número significativo de respostas corretas, deixando claro
a familiaridade dos estudantes com este tipo de áudio recorrente nos manuais didáticos de
línguas estrangeiras, uma vez que, em sua maioria, os estudantes responderam corretamente
ou tentaram obter uma resposta.
Em seguida, temos o gráfico dos resultados do segundo exercício, referente à
entrevista autêntica I, que conteve as seguintes questões: Does she work out every day?, What
sports does she practice?, How long does she work out every day?, What part of her body
does she like the most?, Is she a vegetarian? e What food does she like to eat? Essa entrevista
foi selecionada, pois contempla o mesmo tempo verbal daquela retirada do LD. As perguntas
seguiram o modelo apresentado no exercício referente à entrevista anterior.
Série1; Respostas corretas; 12; 50% Série1;
Respostas incorretas;
4; 17%
Série1; Respostas
em branco; 8; 33%
Gráfico 1 − Entrevista Editada
Respostas corretas
Respostas incorretas
Respostas em branco
Série1; Respostas
corretas; 2; 8%
Série1; Respostas incorretas;
3; 13%
Série1; Respostas
em branco; 19; 79%
Gráfico 2 − Entrevista Autêntica I
Respostas corretas
Respostas incorretas
Respostas em branco
P á g i n a | 2250
Ao observarmos o gráfico 2, fica em evidência a falta de familiaridade dos
estudantes com relação ao áudio autêntico, visto que apenas um deles conseguiu responder
todas às questões, porém, apenas três de forma correta, que representa oito por cento (8%) do
total. Ainda, ao compararmos os dois gráficos anteriores, é possível vermos uma disparidade
entre o número de respostas em branco, pois estas representam apenas trinta e três por cento
(33%) do total de respostas no primeiro gráfico e setenta e nove por cento (79%) no segundo.
Ao analisarmos os relatos dos estudantes sobre suas dificuldades na compreensão
de ambas as entrevistas, verificamos a presença de quatro variáveis-problema com relação à
entrevista autêntica I, são elas a velocidade de fala, o vocabulário desconhecido, a
sobreposição de vozes e o fundo musical. A fim de trabalharmos o áudio autêntico em sala de
aula, selecionamos uma segunda entrevista autêntica retirada do site Youtube, desta vez
eliminando ao máximo as variáveis mencionadas anteriormente, pois segundo Ur (1984), este
tipo de áudio fornece ao estudante uma preparação realista para o entendimento de fala nativa
em situações naturais de comunicação.
Após a aplicação do exercício referente à entrevista autêntica II, obtivemos o
seguinte gráfico:
De acordo com o gráfico 3, observamos que não houve nenhuma resposta
incorreta, e quarenta e dois por cento (42%) das questões foram respondidas corretamente, o
que aponta uma resposta positiva à eliminação das variáveis-problema. Também podemos
perceber que neste gráfico a porcentagem das questões em branco está um pouco elevada,
pois apenas dois dos quatro estudantes responderam à atividade.
Sendo assim, podemos apontar que a dificuldade dos estudantes não está na
execução de uma atividade que envolva uma entrevista autêntica, e sim no tipo de áudio que
está sendo utilizado. Desta forma, é ideal que ao trabalhar com áudios autênticos, o professor
leve em consideração o nível da turma e suas dificuldades específicas.
8. Considerações finais
Série1; Respostas
corretas; 5; 42%
Série1; Respostas incorretas;
0; 0%
Série1; Respostas
em branco; 7; 58%
Gráfico 3 − Entrevista Autêntica II
Respostas corretas
Respostas incorretas
Respostas em branco
P á g i n a | 2251
A partir da análise dos pressupostos teóricos e dos resultados obtidos, podemos
afirmar que a utilização da entrevista do livro didático na sala de aula de língua inglesa é
válida, pois esta pode propiciar aos aprendizes um maior contato com palavras e expressões
de uso recorrente na comunicação em língua inglesa.
A utilização de diálogos do livro didático pode ser benéfica em sala de aula, pois
estes fornecem expressões úteis ao aluno para a sua comunicação na língua-alvo (cf.
Thornbury, op.cit.), a exemplo de frases como How can I help you?, que pode ser utilizado
para explicar um dos usos do modal can.
Por outro lado, ainda segundo o autor citado, a ausência das características típicas
do texto falado (disfluências) nos diálogos dos livros didáticos, os torna mais fáceis de ler,
mas não necessariamente de escutar, devido à alta concentração de carga informativa, fato que
os torna mais difíceis de serem processados auricularmente19
, principalmente para os
aprendizes iniciantes. A ausência dessas “disfluências” pode transmitir a mensagem errada,
tanto para os aprendizes como para alguns professores, de que elas “são erros e devem ser
evitados20
” (tradução nossa).
Ainda, Ur (op. cit) afirma que o uso de exercícios de listening sem as
características do real-life listening na sala de aula é conveniente, e dá ao aluno certo tipo de
prática, porém não fornece nenhuma preparação realista para o entendimento de fala nativa
em situações naturais de comunicação. Contudo, segundo a autora, não é suficiente basear a
prática de sala de aula somente na imitação da realidade, é preciso levar em conta as
dificuldades específicas enfrentadas pelos aprendizes estrangeiros.
Baseados nas considerações de Thornbury e Ur, nas análises de ambas as
entrevistas e das amostras coletadas, sugerimos na sala de aula de língua inglesa o uso de
entrevistas que apresentem características do texto falado (ou real-life listening) com mais
frequência, tendo em vista a sua presença escassa, como pôde ser observado na análise da
entrevista do LD. Com isso, visamos fornecer ao aprendiz uma visão mais próxima do texto
falado espontâneo, para que assim possam utilizar a língua inglesa como prática social,
porém, sem descartar o livro didático, utilizando-o de maneira adequada para facilitar o
aprendizado, uma vez que apresenta pontos positivos.
Diante do exposto, concluímos que o gênero entrevista pode contribuir para a sala
de aula de língua inglesa, e que através deste gênero é possível introduzirmos o áudio
autêntico desde o nível mais elementar, tentando diminuir as barreiras entre os aprendizes e as
práticas comunicativas fora do ambiente escolar.
9. Referências
COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
DELL’ISOLA, R. L. P. Gêneros textuais em livros didáticos de língua estrangeira: o que
falta? In: DIAS, R. & CRISTÓVÃO, V. L. L. O livro didático de língua estrangeira:
múltiplas perspectivas. São Paulo: Mercado de Letras, 2009.
FARIA, Maria Alice. O jornal na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004, p. 100-124.
FIELD, John. Skills and strategies: towards a new methodology for listening. ELT Journal
Volume 52/2. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 110-118.
19
Aurally. 20
“... that such disfluencies are mistakes and are to be avoided.” (THORNBURY, 2005, p. 78)
P á g i n a | 2252
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 4. ed. São
Paulo: Cortez, 2003.
OXENDEN, Clive et al. New English File Elementary: student’s book. Oxford: Oxford
University Press, 2005.
RAMOS, Rosinda de Castro Guerra. O livro didático de língua inglesa para o ensino médio:
papéis, avaliação e potencialidades. In: DIAS, R. & CRISTÓVÃO, V. L. L. O livro didático
de língua estrangeira: múltiplas perspectivas. São Paulo: Mercado de Letras, 2009.
THORNBURY, Scott. Beyond the sentence. Oxford: Macmillan, 2005.
TOCATLIDOU, Vasso. Conversational Genre and foreign language teaching. Aristotle
University of Thessaloniki, Greece. 2002.
UR, Penny. Teaching listening comprehension (Cambridge handbooks for language
teachers). Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
Musicians@Google Presents: Google Goes Gaga. Disponível em:
www.youtube.com/watch?v=hNa_-1d_0tA.
Victoria's Secret Model's Erin Heatherton Workout Routine. Disponível em:
www.youtube.com/watch?v=FfEQUkKUsWM.
P á g i n a | 2253
A LITERATURA COMO FERRAMENTA NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA:
IMPLICAÇÕES DO PROCESSO DE LEITURA EM LÍNGUA ESTRANGEIRA NA
PERSPECTIVA ACIONAL
Raynara CORREIA – UFCG21
Rosiane XYPAS - UFCG22
RESUMO: O texto literário é documento autêntico, e na perspectiva acional, não apresenta
nenhum status particular em relação a outros textos. O presente estudo traz reflexões sobre o
uso de textos literários no ensino de língua estrangeira, objetivando analisar como os
aprendizes lançam mão dos aspectos da língua a partir do texto literário. Partimos então de
duas problemáticas: 1- Quais as estratégias de aprendizagem empregadas por aprendizes de
nível intermediário durante a leitura de um conto em língua inglesa? 2- Quais os aspectos
linguísticos que são concomitantemente abordados durante a leitura do texto? Para responder
a estas perguntas, fizemos uma análise qualitativa, baseada em uma pesquisa desenvolvida
com alunos do curso de Letras – Língua Inglesa, de nível intermediário na Universidade
Federal de Campina Grande, e dividimo-la em três etapas: a primeira correspondeu a uma
atividade de pré-leitura com o grupo; a segunda, a leitura particular do texto, havendo em
seguida uma discussão coletiva, a fim de obter um ponto de vista mais abrangente do mesmo,
dando desta forma, abertura para a execução dos exercícios de gramática; e na terceira etapa,
os alunos responderam o questionário com o qual fizemos a análise. Nosso corpus é composto
de um conto contemporâneo da literatura inglesa The blood bay (O baio puro-sangue) de
Annie Proulx. Para este trabalho apoiamo-nos em Chambers e Gregory (2006); Hill (1992);
Kleiman (2008); Koch e Elias (2010); entre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Texto literário. Estratégias de leitura em LE. Ensino-Aprendizagem.
Perspectiva Acional.
1. Introdução
Ao estabelecer o ensino de línguas no campo das discussões em que se implantam
questões sobre a educação humanizadora, a transdisciplinaridade e a relação entre linguagem
e cultura, abre-se margem para a reflexão sobre o uso da literatura no ensino de língua
estrangeira, cuja utilização, “promove situações onde os alunos, ao participarem expressando
seus sentimentos e opiniões, aceleram o processo de aquisição da língua” (LAZAR apud
CORCHS, 2006).
21
Aluna do Curso de Letras-Inglês, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-mail:
[email protected] . Este trabalho está vinculado aos trabalhos de leitura e de pesquisas em didáticas de
línguas estrangeiras realizadas no Grupo de Pesquisa DILES. 22
Letras, Professora. Doutora, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-mail:
P á g i n a | 2254
O trabalho aqui proposto tem esse objetivo, ou seja, favorecer o processo de aquisição
da língua-cultura estrangeira estudada, levando em consideração que a literatura pode
contribuir amplamente com assuntos identitários, assim como, articulá-los ao ensino da
gramática, das funções comunicativas, do vocabulário e da fonologia, desenvolvendo as
quatro habilidades no ensino de Língua Inglesa: compreensão oral, fala, leitura e escrita;
caracterizando o espaço de aprender uma segunda língua como uma possibilidade de ter
acesso ao universo cultural que a circunda.
O texto literário é visto aqui, não como a única fonte de ensino de língua estrangeira, mas
como uma das formas textuais que pode ser contemplada nessas aulas para abrir espaço a uma
leitura (trans) cultural e, consequentemente histórico- social sobre a língua estudada. Assim
sendo, abordaremos estratégias de leitura atreladas ao texto literário abrindo caminhos para
que o processo de aprendizagem de uma língua estrangeira – doravante LE – seja efetuado
com sucesso, já que enquanto professores “não podemos ensinar uma língua, podemos apenas
criar condições sobre a qual esta possa ser aprendida.”23
(HUMBOLDT apud HILL, 1992, p.
09).
Nesse sentido, seguiremos apresentando a necessidade da utilização de textos literários no
ensino de língua estrangeira, articulando a literatura e os saberes que lhe são imbuídos
associados às estratégias das quais se valem os alunos para a leitura do texto literário em LE.
2. O ensino de LE
Não nos é estranha à necessidade de reflexões e atualizações a respeito dos pensamentos
sociais, educacionais e culturais na área do ensino. No que se refere à Língua Inglesa
especificamente, as Diretrizes e Bases Curriculares exprimem que o ensino deve proporcionar
ao aluno a inclusão social, de maneira que este seja capaz de interagir em várias comunidades
e conhecimentos. A partir disso, torna-se nítida a precisão em propiciar ao aluno diferentes
tipos de experiências correlacionadas, preparando-o não somente para a aquisição de uma
língua estrangeira, mas para atuar criticamente em sociedade.
Com abordagem adotada pelo Quadro Comum Europeu de Referências de Línguas, 24
a
perspectiva acional, o contexto de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras “considera os
aprendizes de uma língua como “atores sociais” que não se limitam a tarefas apenas
linguísticas, mas objetiva que o aluno passe a agir socialmente em LE” (PIMENTEL, 2008).
Tal proposta debruça-se sobre as relações metodológicas de ensino/aprendizagem, que segue
a visão dos alvitres da abordagem comunicativa, todavia aqui, lidamos com projetos cuja
finalidade é preparar os alunos para atuarem em sociedade, fazendo com que o aprendiz trace
objetivos, dispondo dos requisitos oferecidos pela LE, a fim de se comunicar.
Segundo Krashen (apud MOTTER, 2007) para que haja aquisição de uma língua faz-se
necessário “desenvolver habilidades funcionais através de assimilação natural, intuitiva e
consciente nas situações reais e concretas de ambientes de interação humana.” Portanto, é
através da realização de tarefas por meio da língua, da coação com o outro, e da efetivação
dos atos comuns de interesses coletivos, que a aprendizagem entra em vigor, adequando-se
desta forma aos arquétipos empregados pela teoria da perspectiva acional.
23
No original: “We cannot teach language; we can only create conditions under which it can be learned.”
24
“O Quadro Comum Europeu de Referencias para o ensino aprendizagem de línguas é um guia de orientações
didáticas elaboradas pelo Conselho da Europa com o apoio de colaboradores envolvidos com a Didática das
Línguas.”(Pimentel, 2008)
P á g i n a | 2255
Sendo a literatura a língua em funcionamento, não lança mão do uso superficial da
linguagem, mas faz parte de sua construção e desenvolvimento, efetivando os benefícios já
embutidos nela.
2. Por que ensinar literatura em aulas de LE
Através dos séculos, a literatura vem auxiliando o homem a entender seus sentimentos e o
tem proporcionado a expressividade pela arte. Sua função social possibilita a apreciação pela
cultura e conhecimento de si e do outro, ampliando os horizontes dos alunos, fazendo com
que estes aprendam a respeitar outras tradições, reconhecendo a diversidade existente.
A literatura de um povo traz consigo fortes traços culturais, que por sua vez
harmonizam uma gama de conhecimento linguístico, e se, conforme nos explicita Padilha
(apud WALESKO,2006) “a cultura é, antes de tudo, a busca de conhecimento sobre a
natureza humana”, e entendendo educação como atualização histórico-cultural, como meio
pelo qual o ser humano se constrói em sua historicidade, é impossível pensar em educação
sem relacioná-la à cultura. Portanto, oportunizar o ensino de LE ancorado à literatura, é
fundamental para que haja abordagem e observação de aspectos que envolvam as diferenças
culturais, contribuindo pedagogicamente no processo de formação do sujeito em uma
concepção de pluralidade cultural.
Não obstante, “os textos literários são considerados documentos autênticos, um lugar
privilegiado para se trabalhar a alteridade, podendo mesmo até ser adaptado”. (XYPAS, 2012)
Tal autenticidade por sua vez, permite que a competência comunicativa dos alunos seja
satisfatória. Como afirma Colasante:
As literaturas em língua inglesa, quando inseridas no processo educacional
do aluno na disciplina de línguas podem contribuir muito para que o aluno
desenvolva interações comunicativas reais, indo muito além da aquisição de
um conjunto de habilidades linguísticas, da estrutura da língua, da sintaxe e
do léxico. Além de melhorar o nível de ensino, ela é capaz de "despertar no
sujeito uma consciência crítica, a qual permitirá que ele avalie e julgue o
mundo e os acontecimentos reais, e de desenvolver nele um espírito
questionador, que permitirá que ele reflita, opine e proponha mudanças para
a ordem das coisas.” (COLASANTE, 2005).
Os professores de língua inglesa contam com um estoque de materiais disponíveis para
suas aulas que, normalmente, variam de diálogos e funções comunicativas presentes desde os
manuais escolhidos até a intensa recepção midiática que permeia seu dia-a-dia. Todavia, no
que tange à literatura, é notável a escassez de recursos apontando qualquer presença de
gêneros textuais que possam aproximar-se aos moldes literários, ou representando alguma
forma de cultura.
Portanto, o uso da literatura na sala de aula parece ser bastante eficaz, pois permite ao
professor explorar as quatro habilidades comunicativas da língua, além de promover sua
utilização para diferentes fins, assim como as mais variadas funções linguísticas que
permeiam a comunicação, de modo a motivar os alunos aumentando sua criatividade,
promovendo mais subsídios para atividades interativas, aumentando seu conhecimento de
mundo, tornando os alunos mais críticos e socialmente engajados. Neste viés, HOLDEN
(2009) contribui dizendo:
Muitos dos textos autênticos que os estudantes encontram na sala de aula de
inglês serão informativos: matérias de jornal, tabelas de horários, anúncios,
P á g i n a | 2256
webpages. Todos eles serão muito úteis, mas também há lugar para textos
que combinam idioma e criatividade de maneiras diferentes em que o foco
está na imaginação e na auto expressão. Da mesma forma que a música, a
literatura pode ser usada por sua capacidade de motivar alunos e professores.
HOLDEN (2009, p.157)
O ensino de língua estrangeira, quando coligado a elementos motivacionais, tais como o
desenvolvimento dos conhecimentos e a consciência dos progressos obtidos, pode acelerar o
aprendizado do aluno. Conforme Schutz (2003) a motivação é o caminho para a satisfação de
uma necessidade, e pode ser ativada por fatores internos e/ou externos. Sendo assim, devido à
necessidade de se relacionar com os outros e com o ambiente, quando expostos a uma
atmosfera caracterizada pela presença da língua estrangeira, naturalmente somos fortemente
motivados a assimila-la, uma vez que podemos interagir, participar e atuar no ambiente.
A literatura é capaz de cumprir esse papel, motivando o aluno, aumentando seu
interesse pela língua e agilizando seu processo de aprendizagem. Chambers e Gregory (2006)
salientam que a literatura abrange condições que são inerentes a todos os seres humanos,
como a necessidade de relacionamentos, a incerteza da sorte, a fragilidade da carne e a
inevitabilidade da morte. Essa recorrência peculiar à vida real fornece suporte ao professor
para que crie meios de conexão entre os alunos e a literatura, motivando-os a estudar a língua
em questão, ao passo que explora suas funções comunicativas.
Com aponta Hill (1992), a literatura fornece não apenas um contexto para a
comunicação, mas estimula o prazer, uma vez que envolve emoções. “Se o leitor quer saber o
que vai acontecer depois, se parece importante para ele, ele vai ler apesar das dificuldades
linguísticas.” 25
(REEVES apud HILL, 1992, p. 09).
Sendo assim, a escolha dos textos é de fundamental importância para o
desenvolvimento das competências dos alunos. Uma vez que a leitura é de relevância crucial
para a literatura, e que o seu desenvolvimento faz parte do processo de aquisição de LE, neste
artigo, pretendemos discutir questões relacionadas a essa habilidade, com alunos de nível
intermediário, dentro do âmbito literário no contexto de ensino/aprendizagem.
3. O foco na leitura e suas estratégias
A leitura faz parte de uma das quatro habilidades comunicativas da língua, preconizadas
a serem desenvolvidas no aprendiz. Do ponto de vista linguístico, trata-se de um processo de
reconhecimento e organização de informações, no qual o leitor está apto a estabelecer um
juízo de valor sobre o que é ou não significativo no texto, baseado em seus próprios
conhecimentos. Neste sentido, Koch e Elias afirmam:
A leitura é uma atividade altamente complexa de produção de sentidos que
se realizam, evidentemente, com base nos elementos linguísticos, presentes
na superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer a
mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento
comunicativo. (KOCH e ELIAS, 2011, p.11)
25
No original: “If a reader wants to find out what happens next, if it seems important to him personally, he will
read on despite linguistic difficulties.”
P á g i n a | 2257
Por assim dizer, durante o processo de leitura, o leitor adquire conhecimentos a partir da
reconstrução do texto, e este sofrerá variações diferentes sempre que for lido mais uma vez e
por novos leitores. Essa reconstrução é feita a partir de dois tipos de estratégias: Hipóteses e
Antecipações. O processamento textual, portanto acontece quando “na leitura de um texto,
fazemos pequenos cortes que funcionam como entradas a partir dos quais elaboramos
hipóteses de interpretação.” (op cit, p.39). “E porque o leitor utiliza justamente diversos níveis
de conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo. Pode-
se dizer com segurança que sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor, não haverá
compreensão.” (KLEIMAN, 2008, p.13)
Sendo assim, a partir do momento em que o leitor lança mão do seu conhecimento
prévio do mundo, sua cultura, seu sistema de valores e seu domínio das estruturas linguísticas
passa concomitantemente a fazer predições e gerar hipóteses, em que estas podem ser
rejeitadas ou confirmadas no desenrolar do texto, transformando o nosso leitor no que
chamamos de sujeito-leitor ativo.
Ler é um processo que envolve várias técnicas e estratégias. Há a possibilidade de ainda
que se conheçam todas as palavras do texto, o leitor não extraia dali a informação geral e
vice-versa. No tocante a LE, o ato de decifrar palavras em si, ainda está muito distante da
compreensão, visto que tal atividade não alcança as perspectiva textual, discursiva ou
pragmática; e o domínio do vocabulário e estruturas linguísticas é, indubitavelmente, tido
como uma condição imprescindível, mas não suficiente para se compreender um texto. Por
isso, acreditamos que o leitor deve desenvolver estratégias de leitura, as quais constituem uma
importância fundamental no que diz respeito à interpretação e compreensão dos textos,
elevando assim o nível de consciência dos aprendizes acerca das principais ideias do texto, e
possibilitando a exploração e organização do mesmo.
Quando essas estratégias são aliadas a proposta da perspectiva acional, esclarece-se que,
tendo a leitura como atividade mediadora entre a língua e o aprendiz, esta funciona como um
dispositivo que concebe mentalmente aquilo que o aluno lê num processo de construção de
sentidos e correlação com as informações já armazenadas, pondo em prática “todos os
componentes e estratégias cognitivas que tem a disposição para dar ao texto uma interpretação
dotada de sentido.” (HORMANN apud KOCH e ELIAS, 2011)
De maneira generalizada as atividades relacionadas à leitura no contexto de sala de aula
nem sempre tem muito haver com a compreensão de textos. São atividades em que os alunos
limitam-se a operar com o texto, mas não constroem sentido nele; habituam-se a depender do
professor a fim de chegar a resposta imediata da interpretação, regressando à condição inicial
de passivos no processo de leitura; além de proporem atividades que trabalhem somente com
a memória curta, fazendo menção a detalhes secundários de informações obtidas naquele
instante, e que muito provavelmente não serão mais usadas. Quanto a isso, Kleiman explica:
O processamento é essencialmente de caráter cognitivo, mas quanto mais
complexo for o texto, mais se faz necessário o controle ativo desse processo
através das estratégias metacognitivas de manutenção de objetivos e
monitoração e desautomatização do processo de compreensão. (KLEIMAN,
2008, p. 63).
Fica claro então que, um caminho a se escolher, a fim de evitar atividades incapazes
de promover sentido e crescimento intelectual por parte dos alunos é lançar mão da variada
tipologia textual existente, a partir de um trabalho transdisciplinar, promovendo atividades
cujo objetivo seja trabalhar a compreensão em detrimento da participação ativa dos alunos,
tornando-os mais sensíveis e aptos a utilizar técnicas de produção de sentido, pois “os seres
P á g i n a | 2258
humanos desenvolveram muitas estratégias para ajudar a desenvolver os enigmas da vida,
modelá-la e assim interpretar o significado das coisas. Ciência, religião, história, arte, ciências
sociais, jogos e todos os sistemas jurídicos qualificam tais estratégias, mas a mais abrangente
e universal de todas elas é criar significado para a narração e consumo de histórias. Daí a
importância do estudo literário.” 26
(CHAMBERS e GREGORY, 2006, p.13)
4. Aplicação didática
Nossa proposta é baseada em um conto da escritora norte-americana Annie Prouxl, The
Blood Bay (O baio puro sangue), publicado pela primeira vez em 1999, seguido de exercícios
propostos pelo livro Twentieth-Century Stories, da Macmillan Literature Colletions, 2011.
Nesta aula, os alunos tiveram contato com um texto autêntico, e, através dos exercícios
propostos, buscamos investigar de que forma eles trabalham com o texto literário, isto é,
como utilizam sua percepção e estratégias para superar suas dificuldades, a fim de obterem
uma compreensão satisfatória do texto proposto e, igualmente sabermos de que modo eles
promovem seu desenvolvimento linguístico a partir da atividade de leitura literária em LE.
A aplicação da atividade teve duração de 2 horas. Para melhor aproveitamento deste
tempo, as atividades foram divididas em 3 fases, sugeridas por Urquhart & Weir (apud
SANTORUM E SCHERER, 2008) com objetivos distintos, a saber: 1- Pre-reading
(atividades de pré-leitura): É durante esta fase que se constroem as predições e formulam-se
as hipóteses, a fim de conjecturar os pensamentos do texto. Aqui eles analisam se de fato
lerão ou não o texto, bem como as respectivas partes a serem lidas, e tudo isso a partir do
exame feito aos elementos que mais se evidenciam: o título, a edição, o autor, o gênero do
texto e a data de publicação. O pre-reading destina-se ainda a familiarizar o aluno com o tema
e a linguagem do texto, facilitando seu acesso. 2- While-reading (atividades durante a
leitura): Nestas atividades os alunos são estimulados a questionarem a si mesmos enquanto
promotores de processos cognitivos tais como inferência, monitoramento do entendimento e
atendimento à estrutura. “Aqui, o leitor monitora a própria compreensão, verificando se esta
está se desenvolvendo efetivamente, e adota estratégias de reparo caso não esteja”
(SANTORUM e SCHERER, 2008). 3- Post-reading (pós-leitura): Aqui o aluno é estimulado
a relacionar o conteúdo lido com seu esquema já existente e a avaliá-lo à luz de suas próprias
experiências e conhecimentos, promovendo uma maior integração com o texto. Esta tarefa
tem por fim propor uma reflexão crítica das questões abordadas pelo conteúdo lido.
Dadas as teorias, delinearemos os resultados obtidos durante as atividades
supracitadas:
Inicialmente, foram direcionados aos alunos comentários sobre o texto que seria
apresentado e sobre o autor do mesmo, no intuito de que eles trouxessem à memória
intermediária tudo que sabiam sobre o assunto a fim de facilitar a compreensão. Pensando nas
dificuldades dos alunos em entender o significado de algumas palavras com as quais eles
poderiam não estar familiarizados de modo a facilitar a leitura do texto, introduzimos um
exercício no intuito de transpor tal barreira. Durante a realização da atividade, os alunos
discutiram sobre a vida dos cowboys, utilizando seus conhecimentos prévios, e foram
agregando novos vocábulos às situações comunicativas que surgiram, possibilitando-os
26
No original: “Science, religion, history, art, social sciences, games and legal systems all qualify as such
strategies, but the most comprehensive and ubiquitous of all human strategies for both finding and creating
meaning is the telling and consuming of stories. Hence the existential importance of literary study.”
P á g i n a | 2259
compartilhar suas vivências, interagindo uns com os outros, o que permitiu o igual
desenvolvimento da habilidade oral na língua alvo.
Lançando mão da compreensão global, sugerimos uma leitura silenciosa para facilitar
um contato o mais próximo possível com as ideias do texto, uma vez que esta ela possibilita
ao aluno envolver-se completamente a fim de buscar significados, utilizando seu próprio
ritmo de leitura, regressando e relendo sempre que for necessário.
Ficou explícita a dificuldade de alguns alunos para entender determinadas partes do
texto, devido ao desconhecimento do vocabulário. Como a maioria deles estava sem
dicionário, não houve hesitações em perguntar uns aos outros quais seriam os significados;
tática que algumas vezes funcionava, outras não, mas mesmo assim, foi possível entender a
mensagem principal do texto, enxergando-o como uma unidade.
Ao analisar as respostas dos questionários, os alunos disseram que faziam uso da
maioria dos textos de rodapé, que funcionava como uma espécie de glossário para conseguir
depreender o significado das palavras desconhecidas, e todos reconheceram a utilização das
estratégias de inferência.
ALUNO A: “Imaginei a cena e reli as frases que não entendi. Fiz muito uso das notas
de rodapé, que explicavam bastante o significado de determinadas palavras.”
ALUNO B: “Como eu estava sem dicionário, fui pulando as palavras desconhecidas
e tentando compreender o contexto de uma forma geral.”
Isso se explica pela grande quantidade de palavras desconhecidas que compõem o
texto, muitas das estruturas linguísticas fazem parte especificamente da linguagem de
cowboys. Usando inferências-ponte (KOCH e ELIAS, 2011), os alunos puderam adquirir uma
ideia aproximada do significado das expressões através do contexto, de modo que mesmo
quando eles não conseguiam captar o significado da palavra, este lhes permitia “preencher as
lacunas do texto, isto é, estabelecer os “elos faltantes””. (op. cit., p. 66)
Também foi possível perceber que os alunos muitas vezes recorreram às atividades de
pre-reading a fim de recuperar informações que ficaram presentes apenas na memória
imediata, em que, segundo Kleiman (2008), os momentos vividos são apreendidos com mais
detalhes, mas são rapidamente esquecidos. Com isso entendemos que a leitura de um texto em
primeira instância não serve para ampliação de vocabulário, pois, como alega Rotta (2011),
apenas uma parte da informação disponível no registro sensorial é selecionada para ser
transferida à memória imediata, ou seja, apenas aquelas que o sujeito consegue reter. Isso faz
parte do processo de construção de sentidos, visto que a capacidade limitada dessa memória é
o que permite a linha tênue de divisão de tarefas entre tratar, guardar e desativar
conhecimentos anteriores com a memória de longo prazo - em que tem-se o apagamento de
alguns detalhes, porém, o contexto vivido, os detalhes ou estruturas mais importantes desse
contexto permanecem para toda a vida. (Kleiman,2008)
Com o resgate das discussões anteriores através do professor, que funcionou como
mediador na interação aluno-texto, auxiliando-os no processo de compreensão, e procurando,
num trabalho conjunto, estabelecer a coesão e a coerência do texto, foi possível chegar à
reflexão sobre o que se leu, partindo da elaboração de um processo interativo de leitura,
estabelecendo assim a construção de sentido, unindo as informações novas com aquelas já
adquiridas.
Nesta etapa, houve uma discussão oral em grupo a fim de se interpretar o texto. Para
responder as perguntas lançadas, os alunos retornaram várias vezes ao texto para confirmar
uma resposta previamente formulada, olharam rapidamente para o local do texto onde se
P á g i n a | 2260
instaurava o contexto da resposta, releram a frase/parágrafo no intuito de enfatizar seu
discurso, e fizeram comentários para esclarecer e/ou verbalizar dificuldade de entender/
responder as questões sugeridas.
Além disso, foi proposta uma atividade de gramática, a fim de se trabalhar o texto
semanticamente. Sob esse viés, no questionário todos os alunos responderam que o texto
estava mais difícil quando contemplado do ponto de vista lexical, entretanto durante a
efetivação da tarefa houve uma discussão intensa quanto ao uso da partícula so. De acordo
com o dicionário Oxford (2005), tal partícula pode funcionar como advérbio, conjunção ou
substantivo. Nos exercícios propostos em sala, tivemos uma sessão de “Language Study”
onde afirmara a utilização do SO com o intuito de enfatizar os adjetivos, advérbios ou
substantivos na frase; relacionar duas causas dentro da mesma sentença, e mostrar porque
alguém ou algo faz determinada coisa; além de referir-se a algo que no passado já tenha sido
mencionado.
A partir disso, os alunos puderam pensar na língua, refletindo a partir dela, (re)
construindo suas próprias ideias, confirmando-as ou não a partir do uso instituído no texto
literário, alegando que trabalhar os componentes linguísticos foi de sobremodo produtivo,
uma vez que puderam revisar questões gramaticais de uma forma prática, atrativa e
interessante, lançando mão de apenas uma atividade, alcançando assim os objetivos
propostos.
4. Considerações finais
Em síntese, este trabalho buscou conscientizar o leitor para o fato de que a literatura,
quando inserida no processo educacional não se trata de uma forma limitada e reducionista da
língua, que nos delimita a resolução de exercícios puramente estruturais como elementos
básicos de sua aplicabilidade, do contrário, estimula a percepção do aluno enquanto ser
humano e cidadão do mundo.
Baseados nesses critérios, analisamos em nossa pesquisa, questionários respondidos por
alunos de nível intermediário, que participaram de uma aula na qual expusemos o texto
literário, e a partir dele, foi-se articulado o ensino de LE concomitantemente as suas funções.
Com isso, percebemos que os alunos, ao depararem-se com o texto literário, fazem uso do seu
conhecimento prévio e do levantamento de hipóteses, que se confirmam ou não no decorrer da
leitura. As inferências também ganharam um espaço especial em nosso trabalho, devido a
grande recorrência a essa estratégia, na qual os alunos gerenciavam pistas textuais, com o
objetivo de chegar à compreensão do texto. Aqui, a palavra ganhou um sentido que é
inexplícito no papel, mas que ao reconhecê-la, o leitor mentalmente aufere-a significados de
acordo com a sua própria experiência, sendo possível assim a construção de sentidos do texto.
Constatou-se ainda que o uso do texto literário não contribui diretamente para a ampliação
do vocabulário, uma vez que, mesmo com a atividade de Pre-Reading, responsável por situar
os alunos com as possíveis palavras desconhecidas, eles recorriam-na várias vezes durante a
leitura, e igualmente no exercício proposto após a leitura, a fim de confirmar seu
pensamento/discurso, e então interpretar o texto.
Nesse sentido, acreditamos que levar o texto literário para a sala de aula significa
trabalhar com um insumo rico, composto por textos autênticos, e relevantes ao aluno,
ampliando sua visão representativa cultural, permitindo-o uma aproximação linguística que o
leva a raciocinar na língua, refletindo-a, aperfeiçoando desta forma as habilidades
P á g i n a | 2261
instrumentais preconizadas no ensino da língua em estudo, que, por não se tratar de algo
estanque, o ensinará a comportar-se frente à multimodalidade proposta pela diversidade social
existente.
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P á g i n a | 2262
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intercultural&catid=62:edicao-3&Itemid=107> Acessado em 27/05/2013.
P á g i n a | 2263
ANÁLISE SEMIÓTICA EM CAPAS DE LIVROS DE FLE: QUE DIMENSÕES
SÓCIOCULTURAIS?
Gabrielly MELO (UFCG)
Rosiane XYPAS (UFCG)
RESUMO: Vivemos bombardeados o tempo todo por imagens, textos visuais riquíssimos em
detalhes que despertam curiosidade e encantamento que nos instigam e provocam novas
leituras. De acordo com a teoria cognitiva da aprendizagem multimodal, os alunos aprendem
melhor através de palavras e imagens porque são sistemas diferentes de representação do
conhecimento. No ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, sobretudo nos níveis
iniciantes, as imagens ocupam bastante espaço nos manuais didáticos e por ocuparem lugar
tão importante assim, podemos deduzir que elas são dignas de análises. Apesar de diversas
linhas de pesquisa existir no intuito de estudar textos e imagens, as capas dos materiais
didáticos são quase sempre ignoradas. Entretanto, a capa é um texto em seu contexto imediato
e produz um efeito global de significação em seu leitor. Além disso, como postulamos que
todo elemento que constitui uma capa está cheio de significados, percebe-se em contrapartida
certo descaso pelo estudo de capas de livro como se viesse a ser uma disputa entre palavra e a
imagem nos processos de edição e de leitura podendo desempenhar funções diversas nessa
conjunção. Visando ao desenvolvimento da competência cultural do aprendiz, a leitura/análise
da capa poderá abrir novos conhecimentos da cultura da língua alvo? Para responder a esta
pergunta, analisaremos as imagens de quatro capas de manuais didáticos de francês como
língua estrangeira (FLE): Carte sur table (1991); Café crème (1997); Connexions (2004 ) e
Mobile (2012). Propomos a fazer esta análise da seguinte forma: primeiramente, faremos um
inventário denotativo das mesmas, e em seguida, uma análise conotativa a fim de atingir,
níveis mais alto de significação. Apoiamo-nos neste estudo em teóricos como Bronckart
(2009) Mayer (2001); Pen (2012); Powers (2008).
PALAVRAS CHAVE: Capa. Didática de línguas estrangeiras. Imagem. Representação
cultural.
1. Introdução
Na semiótica da leitura, a interpretação começa logo quando o leitor se ampara do
texto. Mas de que texto se fala? Para nós texto é toda e qualquer imagem, toda e qualquer
palavra que se encontra desde a capa à contracapa. Tudo que consideramos texto em uma
obra, a saber, desde a capa, prefácio, sumário, quarta capa, tudo é passível de leitura. Como
não se pode falar de compreensão, de entendimento, de interpretação de texto sem que a
leitura se tenha começado, entendemos que fora do texto não há leitura e fora desta não há
análises. A leitura, vista por esse ângulo, acorda grande importância a todos os elementos que
constituem uma obra porque em graus diferentes cada elemento que compõe o texto suscita
interpretação.
P á g i n a | 2264
Ora, tudo na obra nos leva à leitura. Então, que lugar ocupa os elementos componentes
da capa, geralmente composta de textos verbais e não verbais? Segundo Otten (1986) o título,
os subtítulos e os títulos dos capítulos de uma obra, mesmo que sejam quase sempre
polêmicos constituem indubitavelmente o que ele chama de “ponto de partida de leitura” e ele
acrescenta, obrigatória. Esses elementos são os primeiros contatos que o leitor tem com o
texto, logo não deve ser ignorados nem por professores, nem por futuros professores de língua
estrangeiras. Em outros termos, esses dados evocam o conhecimento enciclopédico tanto
linguístico quanto cultural do aprendiz.
O desenvolvimento da dimensão sociocultural da língua alvo estudada pode partir da
leitura desses elementos quase sempre ignorados e pensamos que esse tipo de leitura
contribuirá positivamente para formar o aprendiz em um leitor ativo, qualidade essencial e tão
importante no ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras nos dias de hoje. Assim,
desejando aprofundar o estudo de representações socioculturais francesas, decidimos analisar
as imagens que se encontram nas capas de manuais de FLE, a saber, Carte surtable (1991);
Café crème (1997); Connexions (2004) e Mobile (2012).
Vale ressaltar ainda que segundo a semiologia da leitura, existem dois pontos
essenciais que demandam um leitor ativo: ele deve explorar os pontos de certeza e pontos de
incerteza do texto. Os pontos de incerteza suscitam o imaginário do leitor e os de certeza, seus
conhecimentos linguísticos e culturais. Ora, o ponto de certeza é fundamental para a leitura, é
dele que vão surgir elementos para se adentrar na interpretação. Neste artigo, objetiva-se
estudar a capa de cada livro didático escolhido. Otten (1986) afirma que a leitura da capa pode
favorecer o futuro professor de língua estrangeira, a adquirir novos conhecimentos da cultura
da língua alvo. De fato, analisar capas desloca os lugares comuns de estudo de representações
culturais francesas, como por exemplo, as inúmeras explorações feitas nas unidades didáticas
de diversos livros. Além disso, ler o que muitas vezes e ignorado, é contribuir para o
desenvolvimento do letramento visual e para a elaboração de uma visão crítica afim de
analisarmos as representações culturais da língua alvo.
Fundamentamo-nos em uma análise qualitativa neste estudo: primeiramente, faremos
um inventário denotativo das imagens, e em seguida, uma análise conotativa, a fim de atingir
níveis mais altos de significação da leitura das mesmas, segundo Pen (2012). Em seguida,
apresentaremos o corpus com o qual trabalhamos, as análises e os resultados das mesmas.
Enfim, algumas considerações abrem para um aprofundamento do estudo das representações
não verbais.
2. Fundamentação teórica
Colocar imagem e escrita em campos opostos e excludentes é, no mínimo,
ingenuidade, já que, mesmo à nossa revelia, tais códigos se encontram em constante interação.
(Walty, 2006). As imagens possuem um enorme potencial graças à sua linguagem, que pode
ser entendida em qualquer parte. Com a globalização, que a tecnologia tem favorecido e
incentivado, há um sistema de produção industrial de informação e publicidade centrado na
imagem, que procura, por um lado, apresentar os acontecimentos e informar, mas, por outro
lado, seduzir, argumentar e convencer.
As imagens são polissêmicas, por isso introduzem os diversos temas e mundos
sugeridos pelas mensagens. Relações com o cultural e civilizacional, a formação do leitor.
Valores que afirmam (do passado, do presente ou de projeção do futuro) e estados de alma
que representam (beleza, tristeza, depressão, angústia, euforia…). Valor utilitário como
P á g i n a | 2265
interesse comercial, didático, documental, narrativo de uma realidade atual, publicitário. O
sentido das cores: a representação do real; a tradução de estados de alma. Função informativa
a imagem fornece informações concretas sobre acontecimentos e elementos da realidade. É
testemunha dessa realidade, como sucede com os retratos e as fotos das reportagens, na
comunicação social. Vemos que a imagem nos transmite mensagens e diversas possibilidades
de leitura, o que se faz necessário introduzir os aprendizes no conhecimento do letramento
visual.
Dionísio (2012) emprega o termo letramento, abrangendo as seguintes variedades
terminológicas: letramento científico, novo letramento, letramento visual, letramento
midiático etc. Para a autora a noção de letramento apenas como habilidade de ler e escrever
não dá conta dos diferentes tipos de representação do conhecimento existentes em nossa
sociedade. Além disso, a autora ressalta a íntima relação entre imagem e palavra e destaca:
Imagem e palavra mantêm uma relação cada vez mais próxima, cada vez
mais integrada. Com o advento das novas tecnologias, com muita facilidade
se criam novas imagens, novos layouts, bem como se divulgam tais criações
para uma ampla audiência [....]. Cada vez mais se observa a combinação de
material visual com a escrita; vivemos, sem dúvida, numa sociedade cada
vez mais visual. (DIONÍSIO, 2012, p.138)
A estudiosa aborda o letramento visual e nos lembra de algumas culturas que apresentavam
sistemáticos meios de comunicação visual como as pinturas das cavernas, as pictogravuras no
Egito e na China, as igrejas da Europa medieval – verdadeiros livros didáticos sobre teologia
cristã. Ela adverte ainda que na contemporaneidade não podemos restringir a prática de
letramento apenas da escrita, do signo verbal. Faz-se necessário, portanto, incorporarmos ao
ensino, a prática de letramento da imagem, do signo visual. Sendo assim, é preciso falar em
letramentos e não em letramento.
É possível observar na atualidade o contínuo avanço dos recursos tecnológicos. Vive-
se bombardeados o tempo todo por imagens, textos visuais riquíssimos em detalhes que
despertam curiosidade, encantamento e instigam à busca pela compreensão, evocando novas
leituras.
Concordando com a autora mencionada anteriormente, não devemos fechar os olhos
para a diversidade de linguagens visuais porque estas, também objetivam construções de
sentido, significações, interpretações.
Um dos elementos mais importantes que se faz presente na leitura de imagens é a
faculdade que cada leitor tem de analisá-las.
Segundo Neiva (1993) a imagem é determinada pela posição presente do olhar. A cada
instante, o olhar cristaliza um novo padrão normal e uma nova ordem. A imagem é
essencialmente presença, e sendo possibilidade pura, nada lhe é impossível, mesmo quando o
objeto supostamente representado não tem como ser materialmente construído. Ainda Neiva
(1993) enfatiza igualmente que a imagem não é determinada exclusivamente pela
possibilidade do presente. As imagens são também históricas. A ontologia da imagem deve
conciliar as dimensões temporais do presente e sua passagem para o passado, bem como
aquilo que nos vem do passado para o presente. São fórmulas imagéticas que se repetem. As
figuras estão saturadas de sua cultura. Partindo da ideia de que diversas representações
culturais estão existentes nas imagens, o autor nos faz melhor refletir, mediante a respectiva
citação:
P á g i n a | 2266
Engana-se quem procurar interpretar imagens simplesmente a partir de uma
expressão de mestria técnica e individual - ainda que isso exista - duplicando
o mundo exterior sem mediações culturais. As imagens corporificam
concepções culturais coletivas [...]. Da imagem à ação, os vários níveis
possíveis da experiência cultural estão articulados (NEIVA, 1993, Imagem,
história e semiótica, disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v1n1/a02v1n1.pdf> acesso em: 24 de
setembro de 2013)
Partindo do pressuposto que o texto não verbal seja indispensável como uma
comunicação enquanto prática cultural, uma vez que as imagens são instrumentos que
possibilitam múltiplas interpretações como várias construções de sentidos, perguntamos por
que ignorar o gênero textual capa de livro? Powers (2008) enfatiza o quanto é espantoso que a
importância cultural das capas ainda seja negligenciada pelos bibliógrafos, ela é a parte
integrante da história de qualquer livro. Compreendemos assim a importância do letramento
visual que além de nos adentrar nesse modo de ler evocando nossa imaginação, nos faz
igualmente mergulhar na dimensão sociocultural da língua alvo aprendida.
3. Apresentação e análise do corpus de estudo
Como dissemos mais acima, nosso corpus é composto por quatro manuais didáticos de
FLE, a saber, Carte sur table (1991); Café crème (1997) Connexions (2004) e Mobile (2012).
Apresentamos primeiramente, em tabelas, a ficha catalográfica de cada manual, ou seja, o
nome do autor, o título do manual, o ano que foi publicado, os números de páginas, editora e
as unidades. Em seguida, poderemos ler as análises semióticas do corpus em questão à luz de
teorias da semiótica, quer dizer, faremos análises fundamentadas nas análises denotativa e
conotativa de cada capa escolhida.
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Livro Didático: Carte surtable
Livro didático Carte surTable
Editora Hachette
Autores René Richterich e Brigitte Suter
Unidades 15
N° de páginas 160
Ano 1991
(Elaboração própria com dados da pesquisa)
A análise denotativa orienta o leitor a ver, a descrever os elementos que compõem as
imagens fisicamente, e não àquilo que esses elementos evocam no analista, que é próprio da
função conotativa. No entanto, para efeito de leitura e compreensão mais suaves e
harmoniosas, preferimos apresentar nossa análise, fazendo um entrelaçamento das duas.
Apostamos que o leitor poderá perceber um texto fluido e interessante sobre as representações
culturais tanto as da língua alvo quanto as da língua fonte aqui presentes.
A primeira capa a ser analisada é a do livro didático Carte surtable (1991). Ela
apresenta cores fortes, predominantemente verde e amarela. Podemos observar que a cor
amarela viva está presente no fundo da capa e a cor verde destaca o título. No corpo da capa,
podemos ressaltar através de um desenho, pessoas dialogando. O diálogo é indicado através
do texto não verbal que vem interligado ao verbal dentro de balões que representam a
conversação.
Com destaque, vemos a indicação do nível do livro em questão. A indicação se
apresenta com uma imagem maior que é situada do lado direito da capa. Essa nos evoca a
representação do professor ou o chefe de empresa do mundo do trabalho. A cor de fundo dos
balões, mencionados no parágrafo anterior, é branca destacando as frases que, por sua vez,
não têm uma coerência dialógica entre elas, pois o que vemos são frases e palavras soltas
empregadas no cotidiano, tais como: j´aime (eu gosto); moi aussi (eu também); pourquoi
(porque); Moi, je n´aime pas du tout (Eu destesto); On se dit “tu”?(Pode me tratar por ‘tu’?);
Moi, je suis d´accord (eu sou de acordo); Moi, je ne peux pas dire “tu”(Não me trate por ‘tu’
). Todas estas expressões se referem ao cotidiano cultural francês e são expressões de
P á g i n a | 2268
“sobrevivência” que fazem parte do desenvolvimento linguístico de todo aprendiz iniciante de
Francês como língua estrangeira (FLE).
Vale a pena ressaltar também que as cores desta capa, nos remetem às cores da
bandeira do Brasil: verde e amarela. Como se sabe, essas cores têm uma grande significação
para todos os brasileiros, fazendo um elo entre a cultura alvo estudada com a cultura
brasileira, ou seja, a cultura de língua materna reforçando a compreensão pela empatia.
Uma análise denotativa mais aprofundada nos revela as ilustrações referentes às
pessoas adultas com suas vestimentas características de escritório, ou seja, camisa de manga
longa branca, gravata vermelha e calça comprida para os homens. Para as mulheres,
observamos vestidos simples, um de cor azul e outro de cor rosa. Outra curiosidade é que
vemos um corpo minúsculo com cabeças imensas! Vemos também as cores dos cabelos dos
homens em tons acinzentados, grisalhos e os das mulheres apresentam cor marrom claro.
Esta representação evoca uma sociedade francesa composta por pessoas mais experientes,
sobretudo os homens. Já as mulheres apresentam cabelos marrons claros demonstrando que as
mesmas são bem mais jovens que os homens, mas o mais importante é que elas estão
presentes no mercado de trabalho.
Vale à pena ressaltar a nossa fina observação na qual denominamos o traço forte nos
rostos dos personagens, a saber, o nariz. Este contrasta com seus olhos e suas bocas
pequeniníssimas. Seria o nariz protuberante, um traço físico característico dos franceses? Esta
pergunta nos evoca, dentre outras, a leitura da peça de teatro do autor Edmond de Rostand
(1897) que fala de Cyrano de Bergerac, cujo nariz proeminente pulula até hoje no imaginário
dos brasileiros fazendo relação com os narizes franceses!
Quando pensamos nos aspectos socioculturais mencionados no QECRL (2001) e
fazemos a ponte com o ensino aprendizagem da cultura em FLE, podemos afirmar que esta é
uma capa muito convidativa ao trabalho de representações culturais e instiga o leitor a fazer
várias interpretações. Enfim, é a pertinência das cores e ilustrações que pode facilitar para o
aprendiz iniciante de língua estrangeira, a interpretação ou a leitura das representações
culturais da língua alvo a ser estudada. Além do mais, evoca para os estudantes brasileiros, as
cores da bandeira do Brasil podendo o professor introduzir a interculturalidade na sala de aula
e trabalhar pontos convergentes e divergentes entre uma cultura e outra.
Livro Didático: Café crème
P á g i n a | 2269
Livro Café Crème
Editora Hachette
Autores
MassiaKaneman
MarcellaBeaccodi Giura
Sandra Trevesi
Dominique Jennepin
Unidades 16
N° de páginas 191
Ano 1997
(Elaboração própria com dados da pesquisa)
No livro didático Café crème (1997) predomina os tons de cinza escuro e marrom e
seu título se apresenta em forma de xícara nas cores bordô e branca. Pode-se ainda observar
na parte central da imagem analisada do livro didático em questão, objetos tais como, mesas,
cadeiras, como também uma imensa árvore do lado esquerdo da imagem, assim como
diversas pessoas descontraídas sentadas ao ar livre em um bar.
O texto não verbal e as cores em si presentes são muito significativas porque possuem
uma representação cultural intensa como um retrato de um dos pontos sociocultural da
sociedade Francesa. No dicionário etimológico português/francês Larousse, (2008, p.51)
traduz as palavras café Crème, estão definidas como café com leite.
O título Café Crème (1997) pode está relacionado ao consumo do café na França. Em todo
caso, sabemos que é um ponto cultural que merece destaque porque revela a paixão dos
franceses por esta bebida. Assim, fazemos a leitura do texto não verbal juntamente com o
texto verbal, pois o nome café vem em forma de fumaça e o nome crème em forma de xícara.
Como bem observamos, a cor de dentro da xícara é bege e sugere café com leite. A cor cinza
apresentada pode se referir ao clima da Europa (França): dias cinzentos e frios. Além disso, a
presença de uma árvore é bastante representativa porque evoca paisagens de outono/inverno
europeu. Em contrapartida, notamos que a imagem tem uma parte clara suscitando-nos a
representação sociocultural que o café apresenta na vida da sociedade francesa, a saber, o
prazer, o despertar, o “calor humano” em suas vidas.
Ainda esta imagem nos faz inferir um momento social na vida dos franceses que vem
através da “pause café” (intervalo para o café), que significa uma pausa dada geralmente nas
empresas ou em qualquer ambiente de trabalho para se tomar um cafezinho. As pessoas
necessitam desse descanso, podendo neste momento conversar nos corredores sobre diversos
assuntos informais ou formais referentes ou não à empresa.
Enfim, o café está presente como hábito na vida cotidiana dos franceses. Parece que
em cada esquina ou rua não falta um bar onde se possa beber café. O ato de se tomar café
pode ser considerado como um vício por uns, pelo menos é o que se sabe da cultura brasileira,
mas também pode se tornar um momento agradável de encontro entre pessoas ou uma ocasião
para trocar ideias.
Livro Didático Connexions
P á g i n a | 2270
Livro Connexions
Editora Didier
Autores Régine Mérieux
Yves Loiseau
Unidades 12
N° de páginas 191
Ano 2004
(Elaboração própria com dados da pesquisa)
O livro didático Connexions (2004) apresenta uma capa de cor alaranjada com
imagens embaçadas, ou seja, nada nítidas. O título se encontra ao centro da imagem e abaixo,
o nome dos autores e da editora.
Observando a capa do manual, ela apresenta uma mistura de tons mais claros:
amarelo, bege, branco e outros mais escuros, como marrom, azul, preto e vermelho. O título
localizado ao centro da imagem é o único que apresenta uma cor diferente das demais, a
saber, azul claro. A imagem central ocupa quase todo o espaço da capa. Este seria um índice
para chamar atenção do leitor auxiliando uma reflexão sobre a imagem que se apresenta no
corpus analisado?
No dicionário etimológico português/francês Larousse (2008, p.78) traduz a palavra
connexion como, (nf.) Conexão. Vemos que o ilustrador faz essa ponte do título com as
ilustrações, inferindo a correria, a agitação das grandes cidades na qual faz parte da vida e do
cotidiano francófono. Em um primeiro momento, esta capa exige muita reflexão da parte do
analista porque não evoca de imediato uma representação cultural francesa, pelo menos não o
podemos fazer. Entretanto, não é bem típico de todos os países do mundo moderno o corre-
corre do dia-a-dia, incluindo o Brasil?
A representação do corre-corre é feita com uma imagem que apresenta uma falta de
nitidez considerável. Dito em outras palavras, a imagem é propositadamente meio embaçada
dando a entender que se trata da correria de qualquer sociedade atual das grandes cidades do
século XXI. Em um segundo momento, com um olhar mais distante e crítico, podemos
deduzir representações culturais. Há efeitos de dimensões nas imagens provocando uma longa
exposição da mesma, como se quisesse que a capa esticasse para mostrar a energia da cidade e
P á g i n a | 2271
sua agitação através do movimento levando o leitor atento a praticamente “ver” este
movimento. Outro aspecto que queremos destacar nesta capa, são alguns pequenos pontos
laranja situados na horizontal e algumas linhas contínuas na vertical que nos remetem a traços
de imagens de televisão, dos computadores, dos telefones tentando conexão, fazendo assim
ligação com o título do manual.
Livro Didático Mobile
Livro Mobile
Editora Didier
Autores
Alice Reboul
Anne- Charlotte Boulinguez
GéraldineFouquet
Unidades 10
N° de páginas 140
Ano 2012
(Elaboração própria com dados da pesquisa)
O manual didático Mobile (2012) apresenta uma capa colorida em tons suaves, tais como,
branco, rosa claro, lilás, verde claro, entre outras cores. O título na parte superior vem com a
cor branca que sugere paz, sobretudo nos dias de hoje, na Europa, onde se fala muito no
plurimulticulturalismo.
A capa sugere uma imagem de um rosto humano formado por vários fragmentos de
pedaços de papeis coloridos incitando-nos ao multiculturalismo próprio do homem moderno.
Mas não só a isso como também a esse ser moderno que se faz não apenas com a língua-
cultura de seu país, mas também com a do outro. Segundo o filósofo Garcia (2005) só há
sujeito a partir de uma relação com o outro, com o mundo. O sujeito sempre está emaranhado
em uma teia de comunicação como destinatário, referente ou remetente. Essa afirmação nos
permite refletir, sobre a hipótese desta imagem, fazer inferência sobre a construção do
conhecimento e da impregnação de diversas culturas em um só ser. O dicionário etimológico
P á g i n a | 2272
português/francês Larousse 2008, trás a seguinte tradução para a palavra Mobile, a saber, adj.
cloison, pièce, móvel (p.221).
Sabe-se que principalmente neste século, e nessa nova geração com o avanço das
tecnologias, as pessoas estão cada vez mais interligadas e hábeis, podendo fazer várias coisas
de uma só vez: trabalhar, conversar, interagir com uma grande quantidade de pessoas ao
mesmo tempo. Entretanto, as representações culturais veiculadas pela capa em análise não é
apenas uma realidade da cultura francesa, mas também da maioria dos países no mundo que
vivenciam essa nova era digital.
4. Considerações finais
As imagens são instrumentos que possibilitam múltiplas interpretações, várias
construções de sentidos, em outras palavras, as imagens, quando trabalhadas, são portas de
entrada para diversas leituras, logo diversas interpretações é em outras palavras, o elemento
motivador do signo visual, sua polissemia.
A partir do estudo apresentado verificamos que as capas dos livros são pensadas e
muito bem elaboradas com o propósito de provocar expectativas e com o objetivo de
estimular os aprendizes à leitura.
No nosso trabalho, analisamos e demos ênfases às capas com intuito de que é possível
que o futuro professor de FLE se torne um aprendiz-leitor ativo observando as representações
culturais contidas nas capas dos livros didáticos com os quais trabalham e aprendam com elas
a fazer inferências, estratégia de aprendizagem fundamental para se fazer valer o
conhecimento do mundo dele.
Sugerimos que este tipo de leitura em capas de manuais didáticos deva ser incentivado
pelos professores de FLE dando um devido valor as mesmas já que estes textos não verbais
estão tão presentes em diversos materiais didáticos de LE, sobretudo nos níveis iniciantes.
Como vimos acima a análise das capas resulta de diversas representações do cotidiano francês
como o mundo do trabalho, a pausa café que relevou igualmente de um momento de
descontração e de encontro entre os franceses em um bar, o mundo social francês e suas
tecnologias avançadas e por fim a consciência da construção do ser humano de em dia
fragmentado com tantas culturas em si.
5. Referências bibliográficas
Dicionário Larousse francês/português, português/francês: mini/(coordenação editorial José
A. Gálvez). 2° Ed. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008.
DELACROIX, Maurice; HALLYN, Fernand, Introduction aux études littéraires IN
DIONÍSIO, P. Angela, Gêneros textuais e multimodalidade, In Gêneros textuais reflexões e
ensino, 4a edição, São Paulo: Parábola, 2011, p. 137 a 173.
GARCIA, Gabriel Cid de Garcia, multiplicidade semiótica: o real segundo uma perspectiva
intuitivo comunicacional, contemporânea, n4, 2005.1, disponível em:
<http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_04/contemporanea_n04_12_GabrielCidGarcia.pdf
> acesso em: 9 out 2013.
P á g i n a | 2273
NEIVA, Imagem, história e semiótica, 1993, disponível
em:<http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v1n1/a02v1n1.pdf> acesso em: 24 set 2013.
POWERS, Alan, Era uma vez uma capa, História ilustrada da literatura Infantil, Cosacnaify,
2008.
Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas - Aprendizagem, ensino, avaliação
Porto, Edições ASA, 2001.
WALTY, Ivete Lara Camargos, Palavra e imagem: leituras cruzadas/Ivete Lara Camargos
Walty, Maria Nazareth Soares Fonseca,Maria Zilda Ferreira Cury. – 2° Ed.reimp.- Belo
Horizonte: Autêntica,2006.
P á g i n a | 2274
A PERSPECTIVA CONTEXTUALIZADA PARA A FORMAÇÃO DE FUTUROS
PROFISSIONAIS DE FLE
Joice ARMANI GALLI
Universidade Federal de Pernambuco/UFPE
RESUMO : O conceito que emana de um conhecimento é o eixo central da formação
profissional, principalmente nos estudos relacionados à educação e particularmente nos
estudos relativos ao processo de ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras (LE). A
presente comunicação objetiva apresentar algumas possibilidades na formação universitária
dos estudantes de francês como língua estrangeira (FLE), a partir da abordagem sociodidática
preconizada pelo Guide pour la recherche en didactique des langues et des cultures:
approches contextualisées, organizada por Blanchet & Chardenet (2011) e a partir dos
referenciais teóricos de Puren (2009) e Galli (2011). Compreendendo o processo de aquisição
como letramento em LE, serão abordadas interfaces possíveis durante a formação
universitária para a tradução nesta área. Privilegiando-se, portanto, a pesquisa contextualizada
serão apresentados os resultados de trabalhos que contemplam os três eixos da formação
acadêmica: língua, literatura e pesquisa científica.
Palavras-chave: FLE/Linguagem/Tradução/Pesquisa/Formação
1. Introdução
A pesquisa científica na área das ciências humanas, particularmente nas ciências da
linguagem tem por natureza desenvolver-se em contextos de atuação subjetivos. Acrescente-
se que os fatores que lhe são intrínsecos são comumente de difícil apreensão objetiva. Dessa
forma, propomos discorrer sobre os três eixos da formação em Letras, a saber: língua,
literatura e pesquisa científica na tríade que lhe é correspondente: graduação, extensão e
pesquisa. Do ponto de vista da história das metodologias de línguas estrangeiras – LE
(GALLI, 2011:33), tal articulação tornou possíveis experimentos acadêmicos situados entre a
Abordagem Acional (AA) e a Abordagem Sociodidática (AS), também conhecida como
perspectiva contextualizada, indo ao encontro das investigações dessa natureza que se
desenvolveram no âmbito da tradução na UFPE nos últimos anos.
Assim, será desenvolvido inicialmente o relato do trabalho realizado para a tradução
de um texto literário pelo grupo de estudos franceses desta instituição, na interlocução entre
língua e literatura para a investigação científica. A seguir, será desenvolvida a reflexão sobre
o exercício acadêmico de transcrição e sua respectiva tradução, em uma entrevista sobre
gêneros textuais. Ambas as produções estão disponíveis na literatura contemporânea como
resultado de um processo de investigação pertinente para grupos de estudo de áreas afins, já
que a perspectiva contextualizada face à realidade e às condições de trabalho pode contribuir
P á g i n a | 2275
para a resolução de problemas comuns à pesquisa nas áreas humanas, sobretudo nos estudos
das ciências da linguagem.
2. Tradução literária – Gilbert Durand
Discorrer sobre o processo tradutório não é o objetivo do presente trabalho. Importa
aqui registrarmos a relação que o olhar investigativo de um grupo de pesquisa permite
desenvolver frente ao objeto bruto que representa um texto em LE, neste caso um ensaio em
francês. Desencadeado pela solicitação de um dos membros do NEPLEV (Núcleo de Estudos
de Práticas de Linguagem em Espaço Virtual), em 2011, o primeiro grupo de trabalho do
LENUFLE (Letramento ‘Numérique’/digital do Francês como Língua Estrangeira) composto
por duas alunas voluntárias sob a direção das professoras líderes do grupo, deram início à
leitura e pesquisa do campo semântico no qual se situava o texto de Gilbert Durand, intitulado
Pas à pas mythocritique, de 1996. Material que foi publicado inicialmente em Imaginários
francófonos, sob a direção de Arlette Chemain, nas ‘Publicações da Universidade de Nice’, do
mesmo ano, conforme consta no original em Nota do Autor.
Porém, nossa referência é feita à publicação da ELLUG, ‘Editions Littéraires et
Linguistiques de l’Université de Grenoble’, conforme cópia da capa do artigo a seguir:
Cabe registrar que esta editora foi devidamente contatada, visando autorizar a tradução
para fins de estudos universitários no Brasil, de acordo com a nota explicativa da publicação
final desta tradução do ensaio, conforme http://www.revistaaopedaletra.net/volume14-2-
home.html#
P á g i n a | 2276
Após uma leitura global e algumas reuniões com o membro e alunos do grupo
demandante, o material foi dividido, dividindo-se igualmente as tarefas e a orientação de cada
parte da tradução. Seguida desta etapa, encontros internos para discussões de caráter
semântico foram realizadas pelo diálogo com o NEPLEV, a fim de criar uma tessitura na
linguagem investigativa que se tentava imprimir nesta tradução literária. Consideramos
oportuno ilustrar tal processo com o excerto a seguir, no qual a subjetividade do emprego de
uma determinada palavra em detrimento de outra implica consequências decisivas para a
adequada tradução de um artigo como característica deste trabalho da extensão universitária.
O sentido ao longo de toda ação extensionista foi construído en binôme, ou seja, pelos dos
dois grupos de trabalho: LENUFLE e NEPLEV na perspectiva de elaboração conjunta do
texto final.
Na reflexão sobre a captura do mito significativo, Durand elenca algumas
possibilidades quantitativas, como o levantamento estatístico lexical ou sintático, concluindo
a respeito de sua insuficiência conforme a tradução significativa do ensaio que destacamos a
seguir:
Na sequência dessas inevitáveis reflexões que concernem ao quantitativo,
alguns pensaram (P. Guiraud, Van den Berghe, L’École de Groningue) que o
método estatístico poderia ser aplicado aos léxicos e às sintaxes de um “texto”
(literário, dramático, musical, pictórico...). Porém, o que enumerar? A Escola
de Groningue pensou que apenas o léxico era enumerável, mas então se perde
a preciosa contribuição dos conectores, das preposições. E, sobretudo, se cai
na armadilha de palavras tornadas lugares-comuns, arbitrariedades, e tendo
perdido por isso toda virtude significativa: no século XVII, na França, a
“chama” não evoca mais os incêndios! Cada época, cada grupo social tem
um jargão banalizado, tendo perdido toda raiz etimológica e semântica: a
“flamme”27
das “preciosas” não significa mais o fogo e o incêndio [...].
(BORBA & JARDIM, 2012: 135, grifo nosso)
Durand afirma que é preciso observar o qualitativo, processo que ele nomeará ‘método
qualificativo’ neste processo pela busca do mito. Dessa forma, vemos que não se tratava
apenas de somar um trabalho técnico de língua a um trabalho conceitual de literatura, mas
tecer a trama desta linguagem a partir de uma pesquisa precisamente contextualizada:
Beaucoup de chercheurs ont fait l’expérience de la difficulté d’exposer la
nuance, la complexité et la relativité d’un point de vue scientifique face par
exemple à une demande médiatique qui veut des réponses tranchées, entières,
simplistes. Cette reconfiguration de la science en croyance constitue un
détournement ou une instrumentalisation des connaissances scientifiques qui
doit attirer la vigilance des chercheurs. (BLANCHET, 2011 : 13) 28
27
A “paixão” das mulheres do século XVII, ditas “preciosas”, por suas maneiras refinadas e elegantes, porém,
não raras vezes, frívolas. (N. das Trad.) 28
Muitos pesquisadores experimentaram a dificuldade em expor a nuance, a complexidade e a relatividade de
um ponto de vista frente, por exemplo, a uma demanda mediática que pede respostas recortadas, completas,
simplistas. Tal reconfiguração da ciência em crença constitui um desvio ou uma instrumentalização dos
conhecimentos científicos que deve atiçar a vigilância dos pesquisadores. (Tradução nossa)
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Priorizando-se o conteúdo em detrimento da forma, chegamos, para este trabalho, aos
seguintes consensos: de que as aspas e grifos permaneceriam conforme original de Durand;
que títulos de obras já publicadas em língua portuguesa seriam traduzidos, enquanto as
demais permaneceriam no original francês; e que, além das Notas do Autor, haveria Notas das
Tradutoras a título de esclarecimento.
A presente produção pode ser consultada na página a seguir em que a tradução de um
texto que poderia unicamente servir de referência, o que por si só já é suficiente para justificar
o trabalho, adquiriu aqui uma dimensão bastante pertinente para o grupo de pesquisa do
LENUFLE, já que tornou autores de sua leitura todos os membros de ambos os grupos
envolvidos neste trabalho.
A repercussão deste trabalho vai igualmente ao encontro dos preceitos de ação e
interação, previstos também pela AA. Segundo Puren (2009), na obra A abordagem acional
no ensino das línguas, as teorias cognitivas atuais têm valorizado o fato de que a reflexão
sobre o processo de aprendizagem contribui com o próprio processo. Nesse sentido,
entendemos que o aprendizado de uma LE passa necessariamente pela consciência de sua
aquisição, sendo assim, nada melhor que o exercício de uma pesquisa linguística para
experimentar a reflexão suscitada por este Autor.
O resultado desta produção está disponível na Revista dos alunos de graduação em
Letras da UFPE, denominada Ao Pé da Letra, na edição de número 14/I, conforme é possível
verificar na imagem a seguir e legitimada no pensamento de Durand sobre tradução ao
afirmar que Leitura, interpretação são, em última análise, “tradução” que dá vida, que
empresta minha vida à obra imobilizada, morta. Por meio da “tradução”, minha própria
linguagem se torna una com aquela do criador. (DURAND, 1996: 235)
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TRANSCRIÇÃO E TRADUÇÃO – JEAN-MICHEL ADAM
O grupo de estudos de francês, LENUFLE, desenvolve igualmente pesquisas em
parceria com outros grupos e instituições. Desde 2010 o referido grupo realiza trabalhos
colaborativos com o NIG – Núcleo de Investigações sobre o Gênero, para a Série Bate-Papo
Acadêmico, conforme endereço a seguir:
http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/expediente-da-serie-bate-papo-academico/
No entanto, o trabalho que será desenvolvido aqui diz respeito particularmente a um
conteúdo que está em vias de ser veiculado por conta de todo o processo longitudinal que um
estudo desta envergadura implica. Assim, em 2011, iniciou-se o levantamento bibliográfico
do linguista suíço Jean-Michel Adam, da Université de Lausanne, a partir da solicitação de
transcrição da entrevista, de acordo com a imagem a seguir:
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A Série Bate-Papo Acadêmico caracteriza-se por tornar acessíveis conteúdos
contemporâneos relativos aos gêneros linguísticos em quatro línguas, a saber: português,
espanhol, inglês e francês. Assim, desta produção dependeriam as demais versões do
português, do inglês e do espanhol. A responsabilidade e exigência criteriosas demandadas
por este trabalho foram duplicadas. A implicação desta experiência acadêmica foi dobrada,
pois tínhamos de transcrever para posteriormente traduzir do francês para o português.
Finalizada esta etapa teríamos o texto em sua versão portuguesa para que colegas do inglês e
espanhol pudessem vertê-lo para suas respectivas línguas.
Em reuniões com o grupo igualmente voluntário de três jovens pesquisadores do
LENUFLE deu-se início à escuta detalhada da entrevista através do vídeo que nos foi
entregue pela líder do NIG. A análise inicial possibilitou a distribuição das cinco perguntas
que compõem esta entrevista (todas igualmente extensas), intituladas em conformidade com
as perguntas norteadoras de cada parte. A metodologia desta pesquisa interativa sobre a
linguagem demandou também conhecimento dos teóricos sobre os quais o entrevistado
remetia seu texto, como no trecho do exemplo a seguir em que destacamos alguns nomes em
negrito29
:
3. Entrevista Jean-Michel Adam
NIG Question 1 : Bonjour, Professeur Jean-Michel Adam, merci d'avoir accepté notre
invitation. Nous aimerions, enfin, vous poser quelques questions autour de votre production
scientifique. Alors, pour commencer... eh... ça serait peut-être bien de nous expliquer
comment vous voyez la question de la Linguistique Textuelle (LT) en France et les rapports
de la LT dans d'autres traditions, comme l'allemande ?
JEAN-MICHEL ADAM: Justement, ce qui est, ce qu'il faut c’est distinguer, distinguer les
pays. C’est-à-dire qu'en France, la LT est assez peu développée. J'ai des collègues qui
m'écrivent régulièrement pour me dire qu'ils doivent faire les enseignements de LT
invisiblement. Les enseignements se multiplient dans les universités – j'ai encore un collègue
de Nice qui m’a écrit il y a quelques jours – mais la recherche en LT proprement dite est
relativement peu développée, parce qu'en France ce qui l'a importée c'est la linguistique
transphrastique, la grammaire transphrastique. Et même des collègues et amis comme
Bernard Combette ou Michel Charolles disent aujourd'hui qu’ils ne font pas de LT, ils font
de la linguistique du transphrastique. Donc, c'est le secteur le plus développé, de façon
vraiment... scientifiquement... que je trouve très pertinente etc. –, mais la question du texte
n'est pas leur objet et ils le disent très, très ouvertement. Donc, en France, je suis un des rares
à continuer à tenter de poser le problème de la LT comme théorie générale du texte. [...]Chez
Coserieu c'est d’une limpidité absolue, il dit: une linguistique qui n'est pas capable de rendre
compte du fait singulier qui est un texte comme un événement sociocommunicatif unique,
jamais reproductible. Donc il doit y avoir une théorie capable de penser cette unicité et, dans
ma tête, si cette théorie se développe suffisamment, elle doit permettre de supprimer les
divisions classiques entre le domaine littéraire de la stylistique, qui ont pour objet justement
les textes singuliers littéraires et les études de type communication, études de discours
politiques ou de discours, je ne sais pas, publicitaires ou journalistiques. Il doit y avoir une
discipline unifiée qui est capable de rendre compte aussi bien d’un discours politique singulier
29
Devido à extensão das perguntas e profundidade do tema não exemplificaremos aqui toda a primeira questão,
mas somente parte dela.
P á g i n a | 2280
que d'un texte littéraire dans sa singularité. Donc, le livre qu'on a publié en portugais sur les
analyses textuelles et discursives avec Ute Heidmann et Dominique Maingueneau et nos
collègues, de... justement – je lis ce passage –, João Gomes da Silva Neto et
Magda das Graças Soares Rodrigues on a travaillé là sur les discours politiques.
Importa ressaltar que por se tratar de uma entrevista, o registro da oralidade tinha de se
fazer com marcadores textuais passíveis de leitura pelo coletivo do grupo de pesquisa
LENUFLE. Além disso, foi muito adequado para os alunos distinguirem construções e usos
que são feitos somente na estrutura escrita frásica, sendo subvertidas pela espontaneidade de
uma entrevista.
Dessa forma, podemos destacar o emprego de donc, o qual em seu registro formal não
é comumente usado no início das orações, mas abre as frases em destaque nesta tradução.
Apesar de ter o mesmo valor em português de conector conclusivo, como ‘portanto’ ou
‘assim’, cabe mencionarmos que é geralmente empregado na posição inicial na forma escrita
do português. Vejamos a tradução do mesmo excerto com estes destaques:
NIG Questão 1: Como o senhor vê a questão da Linguística Textual (LT) na França e as
relações da LT em outras tradições, como a alemã, por exemplo?
Jean-Michel ADAM: Exatamente, o que é preciso distinguir seja talvez os países. Isso
significa dizer que na França a LT é pouco desenvolvida. Tenho colegas que me escrevem
regularmente para dizer que têm de fazer o ensino da LT invisivelmente. Os cursos
multiplicam-se nas universidades – tenho ainda um colega de Nice que me escreveu há alguns
dias – mas a pesquisa em LT propriamente dita é relativamente pouco desenvolvida, porque
na França a linguística transfrásica foi a que dominou em relação à LT. Mesmo colegas e
amigos como Bernard Combettes ou Michel Charolles afirmam atualmente que não fazem
LT, mas linguística transfrásica. Portanto, é o setor mais desenvolvido, de maneira
propriamente... científica..., o que considero muito pertinente, etc. Mas a questão do texto não
é o seu objeto, e eles o afirmam de forma muito aberta. Assim, na França, sou um dos poucos
que continua tentando colocar o problema da LT como teoria geral do texto.[...] Na obra de
Coserieu isso é de uma nitidez absoluta, ele diz: uma linguística que não é capaz de dar conta
do fato singular que é um texto como um evento sócio-comunicativo único, nunca
reproduzível... Portanto, deve haver aí uma teoria capaz de pensar essa unicidade e, na minha
cabeça, se essa teoria se desenvolve suficientemente, deve permitir a supressão das divisões
clássicas entre a área literária da estilística, que tem por objeto justamente os textos singulares
literários e os estudos do tipo comunicação, estudos do discurso político ou discursos... sei lá,
publicitários ou jornalísticos. Deve haver uma disciplina unificada que seja capaz de dar conta
tanto de um discurso político singular quanto de um texto literário na sua singularidade.
Assim, o livro publicado em português sobre as análises textuais e discursivas com Ute
Heidmann e Dominique Maingueneau e nossos colegas, de... exatamente, leio essa passagem
(risos), João Gomes da Silva Neto e Magda das Graças Soares Rodrigues, trabalhou-se com
discursos políticos.
Interessante observar a passagem da transcrição para a tradução como movimentos
distintos, particularmente na preparação de um texto para ser vertido em outras línguas.
Tivemos de optar pelo apagamento do maior número possível de hesitações da expressão
P á g i n a | 2281
verbal, conforme é possível verificar desde a extensão da pergunta em seu original francês e a
tradução para o português.
Reconhece-se que inúmeros itens tanto de forma, como técnica de escuta, leitura labial
e la gestuelle (os gestos), quanto de conteúdo, como o intertexto gerado pela referência a
teóricos da linguagem fizeram com que este trabalho adquirisse uma densidade textual
bastante complexa. Frente a tais dificuldades criaram-se tabelas para cumprimento de prazos,
levantamento dos teóricos, realização por etapas da transcrição, seguida de revisão e posterior
tradução para a língua portuguesa.
Apesar desta recheche-action (pesquisa-ação) ter sido redirecionada e finalizada pelas
líderes do LENUFLE, a mesma não teria ocorrido sem a grande contribuição dos jovens
pesquisadores, responsáveis pelas primeiras etapas deste estudo linguístico.Tal acontecimento
é próprio à pesquisas desta natureza, pois
Toute recherche sociodidactique commence par étudier la spécificité
du terrain où elle s’inscrit, avant de mettre au jour des corrélations
parfois généralisables ou transférables entre les divers paramètres qui
la composent. (BLANCHET et RISPAIL, 2011 : 66)30
Teríamos uma série de outras observações a fazer, mas nenhuma delas substitui o
experimento da pesquisa, ou seja, a reverberação de seu processo na formação de futuros
profissionais do FLE em sua carreira acadêmica, seja como professores, seja como tradutores,
já que o processo de aquisição de uma LE pode ser infinitamente superior ao da
aprendizagem. Segundo Puren (2009), formar sob a nova perspectiva da abordagem acional
e, portanto, contextualizada significa considerar a realização coletiva pelos estudantes frente
aos projetos de estudos que lhe são propostos. Dessa forma, pensamos que o LENUFLE
oportuniza o mergulho na pesquisa linguística e na realização de projetos de cunho acional.
4. Conclusão
Ambas as pesquisas aqui relatadas partem da autonomia, oportunizando protagonismo
científico para jovens pesquisadores. Tanto no estudo do ensaio literário de Gilbert Durand
quanto no trabalho sobre gêneros textuais de Jean-Michel Adam. Entendemos que o registro
destas ações dos três diferentes grupos de pesquisa envolvidos: LENUFLE, NEPLEV e NIG
no tocante à formação, extensão e pesquisa mereçam maior visibilidade, particularmente pelo
fato de que investigações cuja matéria prima seja a linguagem implicam peculiaridades
próprias às ciências humanas. Daí finalizarmos com a frase de Durand, a qual afirma que [...]
nous ne sommes pas, ne serons jamais dans une science exacte (1996: 240). A ideia de que
não somos nem nunca seremos uma ciência exata convida a entendermos a potencialidade da
pesquisa na área das humanidades.
5. Referências
30
Toda pesquisa sociodidática começa por estudar a especificidade do terreno no qual se inscreve, antes de tentar
estabelecer correlações por vezes generalizáveis ou aplicáveis aos diversos parâmetros que a compõem.
(Tradução nossa)
P á g i n a | 2282
BLANCHET, Philippe ; CHARDENET, Patrick (Orgs). Guide pour la recherche en
didactique des langues et des cultures. Approches Contextualisées. Paris : Editions des
Archives Contemporaines, Université de Rennes et Agence Universitaire de la Francophonie
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BORBA, Camile Fernandes. JARDIM, Jéssica Cristina dos Santos. Tradução do ensaio ‘Pas à
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GALLI, Joice Armani. As línguas estrangeiras como política de educação pública plurilíngue.
In: GALLI, J.A. Línguas que botam a boca no mundo: reflexões sobre teorias e práticas
de línguas. Recife: Editora Universitária EDUFPE, 2011. p. 15-36.
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dos Santos, Sílvia Costa, MOZILLO, Isabela. Cultura e diversidade na Sala de Aula de
Língua Estrangeira. Pelotas: Ed. da Universidade UFPEL, 2008. P. 182-191.
_________. Sobre políticas públicas de ensino de línguas estrangeiras: um estudo sobre a
formação leitora em língua francesa no Rio Grande do Sul, relações entre ensino fundamental
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Porto Alegre: SMED, 2006. (Conversações Pedagógicas na Cidade que Aprende, v. 2), p.
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PUREN, Christian. La nouvelle perspective actionnelle et ses implications sur la conception
des manuels de langue. In : LIONS-OLIVIERI, Marie-Laure; LIRIA, Philippe. L’approche
actionnelle dans l’enseignement de langues. Paris : Maison de Langues, 2009. P. 119-137.
__________. L’Histoire des Méthodologies de l’Enseignement des Langues. Paris : Cle
International, 1988.
P á g i n a | 2283
ENTRE O VERMELHO E O AMARELO: INTERTEXTUALIDADE E PSICANÁLISE
EM CHAPEUZINHO AMARELO, DE CHICO BUARQUE
Ana Flavia da S. Oliveira31
Márcio dos Santos Gomes32
RESUMO: O presente estudo resgata a premissa exposta por Bruno Bettelheim em A
psicanálise dos contos de fada (2002) de que os contos de fada podem influenciar o
desenvolvimento psicológico das crianças. Tomando essa premissa como hipótese, propomos
uma leitura do comportamento da personagem principal no conto Chapeuzinho Amarelo, de
Chico Buarque, fundamentada em alguns teóricos da psicanálise da literatura, como
Bettelheim (2002), e da teoria psicanalítica clássica de Freud (1996 a e b), de Melanie Klein, e
mais recentemente de Cintra e Figueiredo (2004). Nosso principal objetivo é discutir alguns
indicadores internos do texto de Buarque que sugerem uma conotação sexual, a partir da
teoria psicanalítica, considerando a hipótese, apontada por Bettelheim (2002), de que, são
essas conotações que permitem à criança se identificar com as estórias ou com um/a
determinado/a personagem, uma vez que ela também guarda, em seu inconsciente, desejos
sexuais reprimidos tais como esse/as personagens. Para chegarmos a esse objetivo iniciamos o
estudo discutindo aspectos do texto relacionados com o conceito de ‘intertextualidade’, de
Julia Kristeva (2005) e de ‘intertextualidade pós-moderna’, de Linda Hutcheon (1991) que
fornecem a possibilidade de se estabelecer pontos de contato não só com a Chapeuzinho
Vermelho, de Perrault, mas também com o texto Além do Princípio de Prazer de Freud.
PALAVRAS-CHAVE: Chapeuzinho Amarelo. Intertextualidade. Psicanálise
1. Introdução
Há séculos os contos de fadas encantam crianças de todo o mundo. Por muito tempo
a literatura infantil esteve, exclusivamente, a serviço da pedagogia, no entanto, os contos de
fadas diferenciam-se dos demais gêneros literários infantis, pois, como aponta Bettelheim
(2002), ele ensina mais que qualquer outro gênero, uma vez que pode contribuir para o
desenvolvimento psicológico da criança. Assim, o presente estudo, realizado com base na
teoria psicanalítica, parte do princípio de que os contos de fada podem influenciar no
desenvolvimento psicológico das crianças, fundamentada na ideia exposta por Bruno
Bettelheim (2002), em A psicanálise dos contos de fadas. Para tanto partimos da leitura do
conto Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, com o intuito de realizar uma análise
direcionada ao comportamento da personagem principal, utilizando as contribuições de
Melanie Klein, apresentada por Cintra e Figueiredo (2004) e Freud (1996), que tratam da
sexualidade e do desenvolvimento psíquico infantil.
31
Pós-graduanda da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
32 Professor de Teoria da Literatura da Universidade Estadual da Paraíba (CCHE-UEPB).
P á g i n a | 2284
Nosso principal objetivo é demonstrar como os indicadores que apontam para uma
conotação sexual estão presentes no conto, considerando a hipótese, apontada por Bettelheim
(2002), de que, são essas conotações que permitem à criança se identificar com as estórias ou
com um/a determinado/a personagem, pois a criança também guarda, em seu inconsciente,
desejos sexuais reprimidos tais como esse/as personagens com os quais toma contato nas
estórias infantis. Intencionamos também apontar aspectos ligados à intertextualidade presente
nessa narrativa na relação que estabelece com o conto clássico Chapeuzinho Vermelho. Para
trata do tema intertextualidade lançamos mão das teorias apresentadas por Kristeva (2005) e
Hutcheon (1991).
Em seu estudo a respeito dos contos de fada, Bettelheim (2002, p. 63) considera
pouco significativo as ilustrações que realçam as narrativas nos contos infantis. Segundo o
autor “um conto de fadas perde muito de seu significado pessoal quando suas figuras e
situações recebem substância não através da imaginação da criança, mas da de um ilustrador”.
Segundo essa concepção, o uso da imagem restringiria a atividade imaginativa da criança
deixando essa imaginação limitada às gravuras do papel. A despeito das considerações de
Bettelheim (2002), percebemos que, para o nosso estudo, as ilustrações podem contribuir de
forma expressiva para a obtenção do resultado final da análise, pois essas nos asseguram a
possibilidade de se ler nas entrelinhas, uma vez que, nesse caso, as imagens nos levam,
simbolicamente, a visualizar os anseios sexuais da personagem, se partimos dos conceitos da
psicanálise, considerando-se que: “A história e a moral escrevem-se e lêem-se na infra-
estrutura dos textos.” (KRISTEVA, 2005, p. 66). Um estudo um pouco mais detalhado das
cores, por exemplo, que compõem as ilustrações das edições pode fornecer um caminho para
se chegar a essa compreensão. A edição de Chapeuzinho Amarelo utilizada nessa pesquisa é a
autenticada com o selo de Obra selecionada para o Programa Nacional Sala de
Leitura/Bibliotecas Escolares – MEC/FAE, de 1994, com planejamento gráfico de Donatella
Berlendis. Lembrando que o livro foi publicado pela primeira vez em 1979. Já as informações
sobre Chapeuzinho Vermelho parte do que expõe Bettelheim (2002), sobre esta obra.
2 A irônica intertextualidade em Chapeuzinho Amarelo
2.1 Intertextualidade: perspectivas teóricas
Preferimos inicialmente discorrer sobre o conceito de intertextualidade e suas
marcas presentes na narrativa de Chapeuzinho Amarelo. O conceito de intertextualidade é
bastante abordado em estudos científicos da área de humanas na contemporaneidade, isso
porque, como apontam (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2008, p. 13) ela promove uma
releitura de textos já existentes. Como já havia apontado Kristeva (2005) “todo texto se
constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”
(p.68). Dessa forma, cada texto dialoga com outro texto preexistente, e é por meio desse
diálogo que se estabelece a intertextualidade.
Linda Hutcheon (1991), por sua vez, apresentou uma nova contribuição ao conceito
de intertextualidade ao abordá-la no contexto da pós-modernidade. Segundo a autora, cada
texto possui um intertexto, sendo assim, “intertextualidade pós-moderna é uma manifestação
formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também de
um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto. [...]”. (HUTCHEON, 1991, p.
157). Reescrever passado é adaptá-lo, traduzi-lo. Mas de que forma se processa essa
adaptação? Para Hutcheon (1991) o que define a intertextualidade pós-moderna é o uso da
P á g i n a | 2285
paródia e da ironia, marcas essas que imprimem ao novo texto um caráter subversivo uma
vez que “aquilo que ‘já foi dito’ precisa ser reconsiderado, e só pode ser reconsiderado de
forma irônica”. (HUTCHEON, 1991, p. 62). Segundo a autora, “a paródia é uma forma pós-
moderna perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo a que parodia. Ela também
obriga a uma reconsideração da idéia de origem ou originalidade” (HUTCHEON, 1991, p.
28).
Conforme Hutcheon, a intertextualidade e a paródia mantêm uma relação de
paralelismo no interior da narrativa, uma vez que esta é construída, pelo escritor, de forma
que se permita uma ‘distorção’ dos textos referenciais, porém, sem que ocorra sua destruição.
A paródia irônica, portanto, é um dos mecanismos do que a intertextualidade pós-moderna
se utiliza, mas ironizar e parodiar no sentido de questionar, de subverter os textos originais.
Sendo assim, cada escritor produz dentro de um determinado contexto sociocultural e
político, e sua escrita se torna um reflexo desse determinado espaço temporal. Dessa forma,
cada variante de uma mesma estória, ainda que não seja original, traz consigo características
que a torna particular, pois proporciona uma nova leitura sobre um texto já existente, uma vez
que mostra o olhar de cada autor que reescreve tal texto.
Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, surgiu no século XVII, com autoria do escritor
Francês Charles Perrault, ao passo que Chapeuzinho Amarelo foi produzido no Brasil na
década de 70. Há de se concordar que os interesses que levaram Perrault a escrever sua estória
diferem dos de Chico Buarque, pois, certamente, uma vez que cada escritor atenta para as
necessidades da sua época e do contexto em que está inserido, assim, “uma obra literária já
não pode ser considerada original; se o fosse, não poderia ter sentido para seu leitor. É apenas
como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e importância.”
(HUTCHEON, 1991, p. 166).
Chapeuzinho Amarelo, portanto, torna-se importante a partir do momento que retoma
outra estória mudialmente conhecida no universo literário por crianças de todas as idades,
respeitando, porém as condições de produção de sua época. Isso não significa que todo texto
tenha um intertexto explícito, nesses casos o leitor pode não perceber a intertextualidade, mas
ela não deixa de existir por esse motivo.
2.2 Marcas intertextuais em Chapeuzinho Amarelo e a possibilidade da interpretação
psicanalítica.
Podemos destacar que as marcas da intertextualidade se fazem presentes já no título,
Chapeuzinho Amarelo, menção direta ao conto popularizado pelos Irmãos Grimm, em que o
autor muda só o segunto nome da estória. Na sequência da narrativa, o narrador apresenta
outros elementos que nos remetem a Chapeuzinho Vermelho, como a menina que usa chapéu
Amarelo, referência direta a Chapeuzinho Vermelho, o lobo e o caçador, este último, citado
uma única vez. A narrativa de Buarque se constrói, no entanto, por meio de uma espécie de
inversão dos relatos dos acontecimentos. A personagem de Chico Buarque não é a mesma
Chapeuzinho de Perrault, dos Irmãos Grimm e de tantas outras versões existentes da obra. O
narrador também não narra uma estória passada, como acontece em Chapeuzinho Vermelho.
É uma estória atual, como podemos observar na primeira frase do conto: “Era a Chapeuzinho
Amarelo”, e não “Era uma vez” como ocorre normalmente nesse tipo de narrativa. Isso
implica dizer que ao valer-se dessa estratégia o narrador do texto de Chico Buarque aproxima-
se mais do público ouvinte/leitor.
P á g i n a | 2286
Outra marca importante é o uso da paródia com relação ao intertexto original.
Ironicamente Chapeuzinho Amarelo é apresentada como uma menina medrosa: “Amarelo de
Medo./ Tinha medo de tudo aquela Chapeuzinho”, diferente do que ocorre com a
Chapeuzinho Vermelho, principalmente, no que se refere ao lobo: “E de todos os medos que
tenha/ o medo mais que medonho/ era o do tal LOBO”, pois sabemos que Chapeuzinho
Vermelho não temia o lobo.
Há outras passagens que apontam para o uso da ironia e da paródia em Chapeuzinho
Amarelo. Uma delas se relaciona com a descrição do animal, narrada quando a menina o
encontra, “de tanto pensar no LOBO,/ de tanto sonhar com o LOBO,/ de tanto esperar o
LOBO,/ um dia topou com ele”. Segundo o narrador, ele era da seguinte forma: “carão de
LOBO,/ orelhão de LOBO,/ jeitão de LOBO/ e principalmente um bocão/ tão grande que era
capaz/ de comer duas avós,/ um caçador, rei, princesa,/ sete panelas de arroz/ e um chapéu de
sobremesa”. Os aumentativos relacionados com o lobo contribuem para a construção da
imagem de um animal com características superlativas que procuram reforçar o medo de
Chapeuzinho Amarelo. O LOBO é o devorador de crianças, de seus avós, de utensílios
domésticos e de acessórios do vestuário, ou seja, um glutão voraz e malvado que não tem
medo de nada e não distingue nada por seu paladar. Irônico no texto é o fato da menina
perceber, no contato com o animal, que o lobo não é tão assustador quanto ela sempre
imaginou, o que acaba levando ao fim o seu temor, fato esse que é imageticamente
representado pela transposição da caixa alta (LOBO) para a caixa baixa (lobo) uma vez que
em Buarque a grafia acompanha esse processo de abandono do medo vivenciado pela
protagonista.
Buarque potencializa parodicamente a perda do temor de Chapeuzinho Amarelo pelo
lobo ao apresentar sua inconformidade com o fato dele não apavorar mais a menina. Ele
“ficou chateado/ de ver aquela menina/ olhando pra cara dele,/ só que sem o medo dele./
Ficou mesmo envergonhado,/ triste, murcho e branco azedo,/ porque um lobo, tirando o
medo,/ é um arremedo de lodo./ é feito um lobo sem pele./ Lobo pelado./”. A perda do poder
mágico que o lobo detinha ao insuflar medo em Chapeuzinho se potencializa, além disso, com
sua exposição ridículo, no conto de Chico Buarque, uma vez que, além do que já fora
apontado, o animal insiste em querer fazer com que a garota volte a sentir medo, como no
trecho que segue:
E ele gritou: sou o LOBO!
Mas Chapeuzinho, nada.
E ele gritou: sou um LOBO!
Chapeuzinho deu risada.
E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!!
Chapeuzinho, já meio enjoada,
com vontade de brincar de outras coisas.
Ele então gritou bem forte
aquele seu nome de LOBO
umas vinte e cinco vezes,
que era pro medo ir voltando
e a menininha saber
P á g i n a | 2287
com quem ela não estava falando:
Mesmo com a insistência do lobo, o medo não voltou, pelo contrario Chapeuzinho
reverteu à situação, fazendo com que o lobo sentisse medo dela. A menina ordenou que o lobo
parasse, e ele “parado assim/ do jeito que o lobo estava/ já não era mais um LO-BO./ Era um
BO-LO./ Um bolo de lobo fofo,/ tremendo que nem pudim,/ como medo da Chapeuzim./ Com
medo de ser comido/ com vela e tudo, inteirim”. A posição passiva de Chapeuzinho é
invertida. De objeto a ser comido pelo bocão do LOBO ela se torna aquela capaz de comê-lo,
de devorar ‘o bolo de lobo que treme que nem pudim’.
Ao inverter seu posicionamento diante de uma fantasia oral, colocando-se na posição
de devorador e não mais da presa, abandonando uma posição passiva de quem estava prestes a
ser devorada por um lobo com caracterísiticas superlativas, colocando-se agora como aquela
que é capaz de devorá-lo, a menina encontra um meio interno de superação do medo e cria,
com isso, uma nova maneira de vencer tudo o que podia lhe causar pavor. Ela aprende que
aquilo que assustava era fruto dessa sua posição passiva frente a um animal visto como
excessivamente superlativo e, com essa inversão irônico-paródica de posicionamento,
Chapeuzinho cria, mesmo que não tenha consciência disso, um meio de transformar em seus
amigos na forma de brinquedos de palavras, seres ou objetos que antes lhe suscitavam
temor e que passam agora a lhe suscitar prazer: “mesmo quando está sozinha,/ inventa uma
brincadeira./ E tranforma em companheiro/ cada medo que ela tinha:/ o raio virou orraí,/
barata é tabará,/ a bruxa virou xabru/ e o diabo é bodiá”.
Freud já havia apontado em seu texto Além do Princípio de Prazer (1996), para a
transformação do ‘temor’ em ‘prazer’ pela troca de posição que a criança pode realizar
quando, durante um jogo qualquer, cria um brinquedo. “Quando a criança passa da
passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para
um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto.”
(FREUD, 1996a, p. 28) É exatamente pela subversão da linguagem, ao transformá-la num
brinquedo que Chaeuzinho supera seu temor do lobo.
Portanto, podemos compreender em que medida a aplicação do conceito de
‘intertextualidade’ (Kristeva) e ‘intertextualidade pós-moderna’ (Hutcheon) a Chapeuzinho
Amarelo permitem elucidar não só o processo criativo de distorção dos acontecimentos do
texto original no sentido de permitir, por meio da ironia e da paródia, que haja uma troca de
posicionamento da personagem frente ao medo que ela mesmo sentia. Dessa maneira,
podemos falar de intertextualidade na relação que Chapeuzinho Amarelo estabele com o
texto clássico de Perrault uma vez que “a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras
(textos) onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto)”. (KRISTEVA, 2005, p. 68).
3. Chapeuzinho Amarelo e Chapeuzinho Vermelho: pontos e contrapontos
A sexualidade infantil é um assunto que ainda causa discordâncias entre os adultos.
Para Freud (1996b), “Faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente
na infância e só desperta no período da vida designado da puberdade [...]”. (p. 163). Algo que
o autor desmistifica comprovando, a partir de seus estudos, que existe pulsão sexual na
criança desde o momento do seu nascimento, e só um adulto mais esclarecido é capaz de
entender tal situação. Freud acredita que um ato realizado por uma criança, por mais simples
que pareça ser, pode representar a exteriorização de um desejo sexual inconsciente. Portanto,
P á g i n a | 2288
é com base nos ensinamentos da psicanálise que partimos para uma leitura de Chapeuzinho
Amarelo, comparando-o com o texto de Perrault e dos Irmãos Grimm, analisado por
Bettelheim (2002).
Observamos que Chapeuzinho Amarelo também apresenta uma série de elementos
revestidos por uma conotação sexual. Em A psicanálise dos contos de fadas, Bettelheim
(2002), apresenta um estudo sobre alguns contos de fadas conhecido no mundo tudo, dentre
eles Chapeuzinho Vermelho. Nesse trabalho, o autor utiliza as teorias psicanalíticas para
mostrar como esses textos podem contribuir para o desenvolvimento psicológico da criança.
Assim, optamos por estabelecer, neste tópico, um breve estudo comparado entre as duas obras
aqui mencionadas, com base no que expõe Bettelheim (2002).
A estória de Chico Buarque apresenta, no começo, uma menina que não consegue
realizar as atividades mais simples que uma criança consegue fazer, como brincar de
amarelinha, por causa do medo que sente, tem medo até da própria sombra: “Então vivia
parada,/ deitada, mas sem dormir,/ com medo de pesadelo”, enquanto Chapeuzinho Vermelho
não tinha medo nenhum, a ponto de desobedecer à mão, desviando-se do caminho indicado
mesmo sabendo que corria o risco de encontrar-se com o lobo. O medo de Chapeuzinho
Amarelo pode ser justificado, em princípio, pela ausência de uma figura adulta que a proteja,
pois a estória, não faz referência as figuras paternas da menina, como ocorre em Chapeuzinho
Vermelho, que além da mãe e da avó apresenta também um caçador como personagem. Ao
contrário de Chapeuzinho Amarelo: “Na sua própria casa, Chapeuzinho Vermelho, protegida
pelos pais, é a criança pré-púbere sem conflitos que é perfeitamente capaz de lidar com as
circunstâncias” (Bettelheim, 2002, p. 183). Para Chapeuzinho Amarelo, sim, o mudo fora de
casa é “uma selva”.
O lobo pode representar também em Chapeuzinho Amarelo, a imagem de um sedutor
que seduz a mocinha, tal como acontece na outra estória, porém, enquanto a capinha vermelha
da estória de Perrault e dos Irmãos Grimm, segundo Bettelheim (2002), é a cor que representa
as emoções violentas, até mesmo as sexuais, o que desperta a atenção do lobo. Na narrativa de
Chico Buarque, o amarelo pode representar o medo, mas também é uma cor vibrante,
assemelhando-se inclusive ao sol, por isso também é capaz de despertar a atenção de um
sedutor, lembrando-se que o acessório usado pela personagem de Perrault e dos Irmãos
Grimm servia para enfeitá-la, enquanto a personagem de Chico Buarque utilizava o seu para
esconder-se do próprio medo.
Percebemos que Chapeuzinho Amarelo, assim como Chapeuzinho Vermelho são
duas garotas que estão com a sexualidade aflorada, mas não estão maduras psicologicamente
para lidar com a situação. A Chapeuzinho de Chico Buarque, exatamente por temer os perigos
da vida, em especial o de ser devorada pelo lobo, não corre os mesmos riscos que
Chapeuzinho Vermelho, isso porque, diferente do que acontece a Chapeuzinho Vermelho,
Chapeuzinho Amarelo não se deixa levar pela conversa do sedutor. A menina da capinha
vermelha se mostra ingênua, o que demonstra uma imaturidade sexual, ao encontrar-se com o
lobo – o sedutor –, e a psicanálise aponta duas leituras possíveis para esse momento, como
mostra Bettelheim (2002), na citação que segue:
A pessoa imatura, que ainda não está pronta para o sexo, mas é exposta a
uma experiência que suscita fortes sentimentos sexuais, recai nas formas
edípicas de lidar com ele. A pessoa só acredita então que possa vencer no
sexo livrando-se dos competidores mais experientes - daí as instruções
específicas que Chapeuzinho dá ao lobo para que este chegue à casa da avó.
Mas nisto também mostra sua ambivalência. Orientando o lobo para a casa
P á g i n a | 2289
da avó, age como se lhe estivesse dizendo: "- Deixe-me sozinha; vá ter com
vovó que é uma mulher madura; ela será capaz de lidar com o que você
representa, eu não sou”. (BETTELHEIM, 2002, p. 187).
Já Chapeuzinho Amarelo, ao encontrar-se com o lobo – sedutor – ainda não é uma
mulher madura, mas se descobre capaz de lidar com suas emoções. Vimos como ela perde
todo o medo e passa a dar um novo sentido a sua existência. Podemos entender assim que a
personagem ultrapassa barreiras, passando do que Melanie Klein denomina posição esquizo-
paranóide para a posição depressiva por meio, processo de integração. Cintra e Figueiredo
(2004) afirmam que:
a cisão entre ‘figuras excessivamente boas ou más’ é o que caracteriza a
posição paranóide, ao passo que o desenvolvimento da posição depressiva
envolve a unificação e a relativização dessa ‘bondade’ e ‘maldade’,
conduzindo a imagos mais moderados.(CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p.
89).
A primeira posição refere-se aos seis primeiros meses de vida da criança. A segunda
inicia-se nos seis meses com o ato do desmame, mas, apesar das posições estarem
relacionadas à primeira infância, segundo Klein, aos três meses a criança encontra-se em uma
posição paranóica.
Dessa posição, ela realiza uma cisão da imagem da mãe, o que dá origem a
uma duplicidade da imago materna: surge, por um lado, uma imagem de mãe
nutridora e boa e, por outro, uma imagem de mãe negligente e má. É
exatamente essa imagem de mãe negligente e maligna que é projetada pelo
psiquismo da criança no mundo externo. Se essa imagem da mãe for
recorrente após a criança, motivada por seu ódio, ter realizado a cisão, então
essa experiência transforma-se em posição depressiva, cuja característica é a
da ânsia de reparação, ânsia de realizar o que não aconteceu, ânsia de
recriação. (SCHÖNAU e PFEIFFER, 2005, p. 8)
Cintra e Figueiredo (2004) destacam que, para Klein, pode acontecer dessa primeira
posição não ser superada, fazendo com que não haja a passagem de uma para outra e, sendo
assim, ela se prolongar por toda a vida do indivíduo. Desse modo, mesmo Chapeuzinho
Amarelo sendo uma pré-adolescente, é possível identificar que ela se encontra em uma
posição esquizo-paranóide antes de encontrar o lobo e após o encontro passa para a posição
depressiva, o que indica a integração, portanto, um amadurecimento da personagem. Tal
amadurecimento pode ser observado no trecho que segue:
Mas o engraçado é que,
assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo
o medo do medo do medo
P á g i n a | 2290
de um dia encontrar um LOBO.
Foi passando aquele medo
do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco
de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo
e ela ficou só com o lobo.
A partir dos estudos de Klein, essa passagem do livro de Chico Buarque também nos
leva à seguinte leitura: é possível que a menina tenha se deixado seduzir, uma vez que o
trecho acima nos remete ao medo comum que qualquer mulher sente em sua primeira relação
sexual, em que a expressão ‘Depois acabou o medo/ e ela ficou só com o lobo’, realça o nosso
ponto de vista, também pode ser possível que depois do encontro ela tenha dispensado-o, uma
vez que a narrativa mostra que o lobo – sedutor decadente – ficou chateado com a atitude da
garota, insistindo para que a menina voltasse a prestar a atenção nele, tendo ele, agora, a
necessidade de ser seduzido. O segmento abaixo suscita a ideia de que Chapeuzinho Amarelo
não tenha ficado com o sedutor porque, sendo ela capaz de controlar sua sexualidade, estaria
aberta a vários relacionamentos, ao invés de se prender a apenas um:
Chapeuzinho não comeu
aquele bolo de lobo,
porque sempre preferiu
de chocolate.
Aliás, ela agora come de tudo,
menos sola de sapato.
Não tem mais medo da chuva
nem foge de carrapato.
Cai, levanta, se machuca,
vai à praia, entra no mato,
trepa em árvores rouba a fruta,
depois joga amarelinha
com o primo da vizinha
com a filha do jornaleiro
com a sobrinha da madrinha
e o neto do sapateiro.
O trecho citado mais uma vez nos leva a constatar a passagem de uma posição a
outra, pois “o que sempre impulsiona a passagem de uma ‘posição’ a seguinte é a frustração
vivida na posição anterior, e a busca de novos objetos decorrente do ódio sentido dos
primeiros objetos [...]” (CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 71), a menina se decepciona e
P á g i n a | 2291
passa a buscar/viver novas aventuras. A citação nos leva ainda a perceber uma tendência à
bissexualidade por parte da menina, se tomarmos a expressão “come de tudo” e “joga
amarelinha” como metáfora para relacionamentos, compreendemos que estas envolvem
meninos e meninas, porque, na realidade sabemos que meninos não costumam jogar
amarelinha. Porém, a expressão “como de tudo, menos sola de sapato”, reafirma, mais uma
vez, a maturidade sexual da personagem, pois significa que ela já tem consciência do que faz,
sola de sapato remete a algo que não presta para se comer, e se ela não come é porque tem o
controle da situação, da sua sexualidade, deixando subentendido que ela só se envolve com
quem deseja se envolver.
Chapeuzinho Amarelo já não luta mais com problemas pubertais ao se encontrar com
o sedutor, como acontece com Chapeuzinho Vermelho, conforme destaca Bettelheim (2002):
Chapeuzinho [Vermelho] deseja descobrir as coisas, como indica a
advertência materna para que não fique espionando os cantos. Ela observa
que algo está errado quando encontra a avó “parecendo muito estranha”, mas
se confunde com o disfarce do lobo nas roupas da avó. Chapeuzinho está
tentando entender, quando pergunta à avó sobre suas orelhas grandes,
quando observa os olhos grandes e questiona as mãos enormes e a boca
horrível. Aqui temos uma enumeração dos quatro sentidos: audição, visão,
tato e paladar que a criança púbere usa para compreender o mundo.
(BETTELHEIM, 2002, p. 185).
Chapeuzinho Amarelo já sabia que o lobo existia e como ele era. O encontro dos dois
apenas confirmou em certo sentido, ou não, as ideias que tinha a seu respeito, ela não precisou
usar os sentidos e fazer todas aquelas indagações tal como Chapeuzinho Vermelho, porque já
é madura o suficiente para compreender o mundo a sua volta.
Outro aspecto que nos leva a compreender as conotações sexuais presentes na obra
são os recursos textuais gráficos utilizados. O livro analisado apresenta desde a capa gravuras
com traços em preto e branco, mas dá destaque para a cor amarela na aba do chapéu da
menina que aparece na capa sob dois grandes olhos negros, meio que escondidos sobre a aba
do chapéu com expressão de medo. Ao logo da narrativa, o amarelo do chapéu transfere-se
para as bochechas da menina, o que pode estar representando o processo de integração sexual
da personagem. Após o encontro com o lobo, depois de Chapeuzinho Amarelo reduzi-lo a
bolo, aparece na página seguinte, – na que ela começa a fazer tudo que o medo a impedia
antes, como “trepar em árvores e roubar fruta” –, uma maçã vermelha. Assim como vimos em
Chapeuzinho Vermelho, o vermelho da maçã aqui também pode representar fortes emoções
sexuais. Além disso, sabemos que desde sempre a maçã vermelha é tida como a fruta símbolo
do pecado original, ou seja, do ato sexual, nos relatos bíblicos. Depois dessa imagem, a que se
segue é a da menina já sem chapéu algum, representada com as bochechas agora rubras ao
invés de amarelas. O amarelo amadureceu e tornou-se vermelho, pronto para ser desfrutado, o
que sugere uma transição da puberdade para uma vida sexual madura – a menina torna-se
mulher.
Curioso perceber que, em outra edição da obra, ilustrada por Ziraldo – da Coleção
Itaú de Livros Infantis – também aparecem imagens que ressaltam a sexualidade. Por
exemplo, na página que se refere aos medos da menina à imagem que se destaca é a de uma
enorme cobra, que podemos tomar como uma referência indireta ao órgão sexual masculino,
assim como a imagem da língua do lodo, mostrada no trecho que narra o encontro dos dois.
P á g i n a | 2292
De acordo com Bettelheim (2002), a criança que lê ou ouve um conto, como
Chapeuzinho Amarelo, por exemplo, não será capaz de fazer tais inferências, mas, mesmo
assim, através do conto de fadas “pode-se aprender mais sobre os problemas interiores dos
seres humanos, e sobre as soluções corretas para seus predicamentos em qualquer sociedades,
do que com qualquer outro tipo de estória dentro de uma compreensão infantil”.
(BETTELHEIM, 2002, p. 5).
Com esse amadurecimento interior, a criança irá torna-se capaz de enfrentar os
desafios que lhe são impostas pala sociedade. Tal amadurecimento se dá porque a criança se
identifica com a personagem principal da estória e consegue encenar imaginativamente os
percalços vivenciados passados pelas personagens e também por ela no que se refere à lida
com seus afetos, temores e fantasmas.
4. Considerações finais
Diante do exposto, chegamos à conclusão, em primeiro lugar, que a intertextualidade
se faz presente em Chapeuzinho Amarelo, trazendo consigo o demasiado uso da ironia e da
paródia. Apesar das marcas da intertextualidade estarem presentes na obra, verificamos que
são narrativas distintas, isso porque não se trata da mesma estória. O texto de Chico Buarque
apresenta uma narrativa que é atual para o ouvinte/leitor, com características contemporâneas,
como o uso do jogo de linguagem que tende a despertar, ainda mais, a curiosidade e o
interesse por parte da criança que ler ou ouve a estória.
No que se refere aos aspectos psicológicos, constatamos que a personagem de Chico
Buarque não simboliza o conflito edípico revivenciado durante a puberdade, pois não
observamos na estória as presenças paternas, como acontece com Chapeuzinho Vermelho.
Chapeuzinho Amarelo já se encontra em fase de amadurecimento. Segundo Bettelheim
(2002), retomando Klein, esse processo de amadurecimento “começa com a resistência contra
os pais e o medo de decrescer [posição esquizo-paranóide, para Klein], e termina quando o
jovem encontrou verdadeiramente a si mesmo [posição depressiva], conseguiu independência
psicológica e maturidade moral,” (BETTELHEIM, 2002, p. 12, acréscimo nosso), a partir daí
ele/a não enxerga mais o sexo oposto como ameaçador e passa a se relacionar de forma
positiva com ele, tal como ocorre com Chapeuzinho Amarelo.
Por não ser mais tão criança o desenvolvimento psicológico da personagem do
brasileiro acontece de forma diferente, enquanto Chapeuzinho Vermelho amadurece porque
descobre que ainda não está preparada para o encontro com sua própria sexualidade, com
Chapeuzinho Amarelo acontece justamente o contrário, ela amadurece porque supera todos os
conflitos pubertais e se descobre mulher, dona de si, capaz de controlar sua sexualidade.
Assim, partindo dessa análise conseguimos atingir o nosso objetivo, comprovar que
os dois contos dialogam entre si e que, por mais inocente que pareça ser uma estória para
criança, sempre há a possibilidade de se extrair dela uma leitura psicanalítica que remeta aos
conceitos relacionados com a sexualidade infantil.
A diferença entre o conto de fadas e os outros gêneros, como a fábula, por exemplo,
segundo Bettelheim (2002), é que este não tem um caráter puramente moralista e pedagógico,
porque, para ele, essas estórias “não pretendem descrever o mundo tal como é, nem
aconselham o que alguém deve fazer” (BETTELHEIM, 2002, p. 24). De acordo com autor,
podemos considerar o conto de fadas como “terapêutico porque o paciente encontra sua
própria solução através da contemplação do que a estória parece implicar acerca de seus
P á g i n a | 2293
conflitos internos neste momento da vida” (BETTELHEIM, 2002, p. 24). Por isso a tamanha
identificação da criança com esse tipo de narrativa e, sendo assim, esse tipo de narrativa
merece uma atenção especial, por parte dos educadores, devendo ser mais utilizados em sala
de aula.
5. Referências
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Rio de Janeiro: PAZ e TERRA, 2002.
BUARQUE, Chico. Chapeuzinho amarelo. 13. ed. São Paulo: Berlendis & Vertecchia,
1994.
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pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
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HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes
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HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução Ricardo
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KOCH, Ingedore G. Villaça.; BENTES, Ana Christina.; CAVALCANTE, Mônica
Magalhães. Intertextualidade: diálogos possíveis. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução Lúcia Helena França Ferraz. 2. ed.
São Paulo: Perspectiva, 2005.
SCHÖNAU, Walter; PFEIFFER, Joachim. Einführung in die psychoanalytische
Literaturwissenschaft. Stuttgart: Metzler, 2005.
P á g i n a | 2294
CULTURAS, IMAGENS E INTERCULTURALIDADE NA MÚSICA FRANCESA:
ANÁLISE DE TEXTOS NÃO VERBAIS EM MANUAIS DE FRANCÊS LÍNGUA
ESTRANGEIRA (FLE)
Arlley Antonio de Melo Souza (UFCG)33
Rosiane XYPAS (UFCG)34
RESUMO: O estudo de línguas estrangeiras preconizado no Quadro Europeu Comum de
Referências para as Línguas (doravante QECRL, 2001) visa também ao desenvolvimento da
competência sociocultural do aprendiz. Visando a facilitar o ensino de francês como língua
estrangeira (doravante FLE), postulamos que a música com todo seu potencial artístico e
cultural se constituem como um dos suportes motivadores, pois fornece um leque de
possibilidades tanto para o trabalho com os aspectos linguísticos quanto culturais da língua.
Ora, este tema nos remete à problemática do saber sociocultural que releva traços distintivos
característicos de uma determinada sociedade, como os hábitos e costumes da vida cotidiana,
as condições de vida de um povo, as relações interpessoais existentes, valores,
comportamentos, crenças como também a linguagem corporal, o saber-viver e os
comportamentos rituais. Como se vê, a lista é vasta, mas vamos delimitá-la por uma questão
operatória. Assim, este trabalho tem como objetivo analisar a dimensão sociocultural dos
textos não verbais referentes à música e suas representações culturais francesas. Para tal,
compomos um corpus com doze manuais que vão dos anos 1980 aos 2012. Apoiamo-nos em
teorias das didáticas de línguas com os autores Dumont (1998); Volli (2012); Joly (2011); Pen
(2012); De Carlo (1998) entre outros. Em nossa análise quantitativa não foi constatado
evolução da presença de textos não verbais referentes à música nos suportes didáticos
estudados. Entretanto, na análise qualitativa, os textos não verbais são fontes de
representações culturais francesas bastante vastas podendo levar o aprendiz a desenvolver a
dimensão cultural esperada no ensino/aprendizagem de língua francesa.
Palavras-chave: Cultura. Interculturalidade. Música. Imagens. Manual.
1. Introdução
O ensino/aprendizado de Língua(s) Estrangeira(s) (doravante LE), no nosso caso a
língua francesa, tem sido realizado por meio de diversas metodologias e recursos eficazes.
Abordagens diferentes surgem no curso da história, como fruto de muitas pesquisas, sempre
apresentando inovações e melhorias referentes à prática do professor e à aquisição do
33
Aluno do curso de Licenciatura em Letras, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, 33
PB, E-mail: [email protected]. Este trabalho está vinculado à linha de pesquisa Análise de textos não
verbais do Grupo de Didáticas de Línguas Estrangeiras – DILES. 34
Professora Adjunta de Língua e Cultura francesas da Universidade Federal de Campina Grande,
P á g i n a | 2295
conhecimento por parte dos alunos. No entanto, essas melhorias não dizem respeito apenas ao
aprendizado de regras gramaticais ou ao desenvolvimento das competências linguísticas
(expressão oral e escrita, compreensão oral e escrita), mas também ao desenvolvimento da
competência sociocultural. Diante disso, somos motivados a observar a presença dessa
competência que engloba questões sociais e culturais e estabelece relações entre o aprendiz e
a cultura alvo, no estudo do Francês Língua Estrangeira (doravante, FLE).
São inúmeras as possibilidades de se realizar essa observação, mas no presente
trabalho, nos propomos a verificar a abordagem da música francesa em imagens e
consequentemente, quais as contribuições que essa abordagem traz ao estudo de FLE. Logo,
nosso trabalho é norteado pela seguinte questão: que representações culturais da música
francesa figuram nos textos não verbais dos manuais de FLE? Para respondermos de modo
eficaz, realizaremos um exposição dos conceitos de cultura e interculturalidade, peças vitais
da abordagem sociocultural, além de expormos brevemente em que consiste trabalhar
imagens. Para tais discussões, nos baseamos tanto nas preconizações do Quadro Europeu
Comum de Referências para as Línguas (doravante QECRL, 2001) quanto nas teorias de
Benac (1988), Tagliante (2006), Penn (2012), entre outros.
Inicialmente, como nosso corpus, coletamos doze manuais didáticos de FLE dos anos
80, 90, 2000 e da presente década (sendo três de cada década) e realizamos análises
quantitativas e qualitativas. Constatamos que, em termos quantitativos, não observam-se
demasiadas mudanças. Contudo, é interessante notarmos que a música tem figurado, embora
não de forma aprofundada e de maneiras que diferem de um manual para outro, desde a
década de 80 nos manuais didáticos de FLE. Em termos qualitativos, constamos grande
evolução, sobretudo no suporte que nos dispomos a analisar: os textos não verbais.
Encontramos muitas imagens que remetiam direta ou indiretamente à música francesa, mas
por uma questão operatória, nos limitamos à observação de três delas.
Durante a etapa de escolha do material de análise, só encontramos imagens que
contribuem de forma eficaz para o nosso trabalho em dois dos manuais constituintes do
corpus, os quais são: Latitude 1, de Régine Mérieux (2008), do qual retiramos duas imagens,
e Fréquence Jeunes, elaborado por Capelle, Cavalli e Gidon (1994), do qual retiramos apenas
uma imagem. Nos apoiamos nas teorias de Dumont (1998) sobre a música francesa pós anos
80 para realizar nossa análise conotativa. Dadas essas informações introdutórias,
prosseguiremos especificando nossos objetivos, analisando o nosso corpus e apresentando os
resultados de nossa análise.
2.0 A abordagem sociocultural em sala de aula de LE
O estudo da cultura de um povo pode constituir-se uma atividade exaustiva, tendo em
vista a amplitude de aspectos que permeiam a cultura alvo e suas particularidades que por si
só já garantem certa complexidade. Partindo desse pressuposto, é evidente que antes de tratar
da questão da abordagem sociocultural, precisamos entender o conceito de cultura, que possui
diversas definições complementares, que apresentam algumas divergências entre si e abrem
espaço para discussões e reflexões acerca do tema.
2.1 Cultura
P á g i n a | 2296
Como bem ressalta Fabrice Barthélemy (2011), “o conceito de cultura deu lugar a
numerosas definições”35
(p. 57), definições essas que vão desde uma consideração curta
semelhante a de Christine Tagliante (2006), que observa a cultura como sendo o “conjunto de
características próprias de uma dada sociedade”36
. (p. 165), até uma abordagem mais
exaustiva como a de Henri Benac (1988), que veremos adiante.
Barthélemy (2011) apresenta uma longa definição que, de forma geral, considera a
cultura como uma grande junção de diversos fatores. Ressaltamos, porém, como mais
interessante para nosso estudo, uma definição de Edgar Morin, apresentada por Barthélemy. O
referido autor considera que uma cultura “constitui um corpo complexo de normas, símbolos,
mitos e imagens que penetram o indivíduo na sua intimidade, estruturam os instintos,
orientam as emoções”37
(p. 57).
Henri Benac (1988) trata da variedade das culturas existentes e dos papéis que elas
possuem. Segundo ele, a cultura é responsável por nos integrar na sociedade e desenvolver
nossa personalidade. Contudo, queremos chamar a atenção para uma frase que acreditamos
resumir de forma precisa a ideia central do autor em relação à cultura, algo que ele denomina
como sendo “o conjunto das formas adquiridas do comportamento que um grupo, unidos por
uma tradição comum, transmitem à geração seguinte”38
(p. 125).
Levando em consideração cada definição que vimos, e interligando aspectos principais
de cada uma delas, temos diante de nós a ideia de que cultura relaciona-se às raízes de uma
maneira de pensar e agir; às tradições e aos costumes que são preservados por um povo, a
despeito do tempo, sendo entregues às gerações que se seguem, e por elas preservados. Isso
que chamamos de "tradição" e "costume", consiste nos aspectos que caracterizam uma dada
sociedade e a diferenciam ou assemelham a outra(s).
2.2 Interculturalidade
Como visto, a cultura de um povo é de extrema importância, pois diz respeito à sua
essência, algo foi adquirido em seu progresso histórico. Tal pensamento se confirma quando
observamos as práticas sociais tão diversas. Nisso, nasce a necessidade de se trabalhar a
cultura dos falantes da língua alvo na sala de aula de LE, já que não se pode ignorar que a
língua funciona como um meio comunicacional entre os seres humanos e, portanto, está
ligada à sua tradição e aos seus costumes. Tal necessidade é ressaltada e preconizada pelo
Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (doravante, QECRL), pois o mesmo
visa a abordagem sociocultural. Vejamos:
"Estritamente falando, o conhecimento da sociedade e da cultura da(s)
comunidade(s) onde a língua é falada é um dos aspectos do conhecimento de
mundo. É, no entanto, suficientemente importante para merecer uma atenção
especial, uma vez que, ao contrário de muitos outros aspectos do
conhecimento, parece provável que este conhecimento fique fora da
35
"le concept de culture a donné lieu à de nombreuses définitions". 36
"ensemble de caractéristiques propres à une société donnée". 37
"constitue un corps complexe de normes, symboles, mythes et images qui pénètrent l'individu dans son
intimité, structurent les instincts, orientent les émotions". 38
"l'ensemble des formes acquises de comportement qu'un groupe d'individus, unis par une tradition commune,
transmettent à la génération suivante".
P á g i n a | 2297
experiência prévia do aprendiz e seja distorcido por estereótipos" (QECRL,
2001, p. 148).
Primeiramente, notamos que o conhecimento sociocultural é visto como parte do
conhecimento de mundo, que por sua vez, diz respeito ao saber prévio e às experiências de
vida do aprendiz. Notamos também, que existe uma preocupação explícita com o fato de que
esse conhecimento de mundo nem sempre inclui informações concretas sobre as práticas da
cultura alvo, sendo atingido e influenciado por estereótipos socialmente estabelecidos.
Portanto, subentende-se que a sala de aula de LE deveria funcionar não apenas como um lugar
de aprendizagem da gramática de um idioma, mas também como um ambiente propício para a
aquisição do conhecimento sociocultural, livre dos preconceitos muitas vezes fixados no
imaginário popular da sociedade do aluno.
O QECRL (2001) ressalta a forte relação entre língua e cultura quando propõe um
ensino da língua partindo dos elementos culturais mais importantes da(s) sociedade(s) que a
possuem como língua oficial. Essa forma de ensino é realizada através da noção de
interculturalidade, que não diz respeito somente a um estudo da cultura do outro, mas sim ao
momento em que ela é colocada em contexto com a própria cultura do aprendiz, produzindo o
"conhecimento, a consciência e a compreensão da relação (semelhanças e diferenças
distintivas) entre 'o mundo de onde se vem' e 'o mundo da comunidade-alvo'" (QECRL, 2001,
p. 150).
Tagliante (2006) se preocupa em fornecer as informações necessárias para um trabalho
eficaz com a interculturalidade no ensino de LE. Ela afirma que “ensinar uma língua não é
somente aprender a comunicar”39
, e com isso, aconselha diálogos durante as aulas, com o
intuito de fazer o aluno “comunicar o que ele pensa desta nova cultura e em que ela difere ou
se aproxima da sua”40
.
Tagliante (2006) nos mostra que é notória a evolução da presença da consciência
intercultural nos materiais didáticos das últimas décadas, uma vez que trazem em seus
conteúdos diversos dos fenômenos sociais apontados pelo QECRL (op. cit), que vão desde os
aspectos da vida cotidiana, até os valores, crenças e atitudes. Existe, portanto, uma
diversidade de aspectos que podem ser observados no trabalho com a interculturalidade, no
nosso caso, em sala de aula de FLE, principalmente quando pensamos que a língua francesa
não é falada apenas na França, mas nos países francófonos, e é justamente essa consciência
que nos motiva a observar como um desses aspectos é abordado em manuais didáticos.
Escolhemos, portanto, a música (fenômeno integrante do tópico "arte", no QECRL),
por considerá-la como um dos fenômenos sociais mais fecundos para tratarmos de
representações culturais, tendo em vista seu valor histórico e o prestígio que possui entre
pessoas de qualquer nação, religião ou filosofia. Temos o intuito de observar quais são as
representações culturais fornecidas através da presença de tal fenômeno.
3.0 A música por imagens
39
"enseigner une langue, ce n'est pas seulement apprendre à communiquer". 40
"communiquer ce qu'il pense de cette nouvelle culture et en quoi elle difère ou se rapproche de la sienne".
P á g i n a | 2298
Apresentamos no final do tópico anterior o nosso objeto de observação neste trabalho:
as representações da música francesa nos manuais didáticos. No entanto, a questão não se
resume apenas a isso. Precisamos pensar em como fazê-lo, tendo em vista as diversas
possibilidades de sua abordagem. Seria possível direcionar nossa atenção às letras, às canções
propriamente ditas (eventualmente incluídas nos CD's que acompanham os manuais mais
recentes) ou às atividades propostas a partir delas. Contudo, decidimos trabalhar as
representações culturais da música nos textos não verbais, visto que os manuais,
principalmente os datados das últimas décadas, além de possuírem muito texto verbal (como
já dito), vem repletos de textos não verbais (imagens: fotos, desenhos, etc.). As imagens são
das mais diversas possíveis e frequentemente dizem respeito ao tema da unidade na qual estão
inseridas, logo, é importante que o aprendiz esteja apto para lê-las, com o intuito de apreender
o sentido global das lições presentes no manual. O que nos motivou foi observar quais as
contribuições que essas imagens referentes à música trazem para a abordagem sociocultural
em sala de aula de FLE.
Como nos propomos a analisar imagens, se faz necessário entendermos que essa
prática é estudada e proposta pela semiologia, ramo dos estudos linguísticos proveniente da
linguística estrutural, baseada na obra de Ferdinand de Saussure. Como afirma Penn (2012),
"a semiologia provê o analista com um conjunto de instrumentais conceptuais para uma
abordagem sistemática dos sistemas de signos, a fim de descobrir como eles produzem
sentido" (p. 319). A análise semiótica conta com alguns níveis ou processos que são a
denotação e a conotação. No inventário denotativo o objetivo é a identificação dos elementos
do material, onde ocorre a "catalogação do sentido literal" da imagem (PENN, op. cit.). No
inventário conotativo os níveis de significação são mais altos e evocam o conhecimento de
mundo do leitor, sendo, por vezes, um relatório subjetivo, determinado pela interpretação
individual/pessoal.
Ao analisarmos uma imagem estamos lendo a mesma, porém não da mesma forma que
lemos os textos verbais, isso porque no texto escrito (verbal) temos signos que se encadeiam e
se apresentam de forma gradual, cada signo por sua vez; todavia, nas imagens (não verbais),
todos os signos aparecem aglomerados, de modo que é necessário em muitos casos, um
esforço maior para conseguir decodificá-los (FERRARA, 2007).
Como texto que é, a imagem prevê impactos no seu leitor e deseja transmitir alguma
mensagem específica (WALTY, FONSECA & CURY, 2006). Diante disso, devemos
entender que se um manual traz imagens em seu conteúdo, isso não acontece por acaso. Os
manuais são ricos pois dizem respeito ao lugar onde textos verbais e não-verbais se
relacionam para contribuir com a aprendizagem. Portanto, o letramento visual do aluno de
FLE é importante, pois, a leitura das imagens (e de outros tipos de textos), poderá, na maioria
dos casos, evocar o conhecimento de mundo do mesmo acerca do tema exposto nelas,
contribuindo significativamente para o trabalho do professor e para a aprendizagem do
indivíduo.
5.0 Análise de Imagens
Este tópico é destinado à análise das imagens que constituem nosso corpus.
Reiteramos a informação de que iremos analisar três imagens, sendo duas do manual Latitude
1 (1008) e uma do manual Fréquence Jeunes (1994). Nossa análise, conforme introduzimos
no tópico anterior, será realizada nos níveis denotativo e conotativo.
P á g i n a | 2299
5.1 Análise Denotativa
A primeira imagem é uma fotografia de quatro jovens, sendo dois homens e duas
mulheres. Tem-se a impressão de que a fotografia foi tirada de um ângulo inferior, isto é, de
baixo para cima. O cenário não é totalmente exposto, nota-se apenas o azul do céu sem
nenhuma nuvem como plano de fundo, figurando como cor predominante, e algumas plantas
que se assemelham ao trigo (ou algum cereal do gênero), o que nos leva a imaginar um
ambiente campestre, possivelmente reservado à plantação/cultivo de determinadas plantas.
Todos as pessoas presentes na fotografia, tocam um instrumento diferente. O primeiro,
da esquerda para a direita, é um homem que toca acordeão e está recostado ao que parece ser
o transportador ou a caixa do mesmo; veste uma
camiseta branca e uma calça na cor bege. No centro
da imagem, em pé, vemos outro homem tocando um
trompete, vestido com uma camiseta que parece ser
igualmente de cor bege. Ainda no centro, na parte
inferior, uma mulher que aparenta estar de cócoras,
veste uma camiseta preta e toca um trombone. À sua
direita, de pé, outra mulher está a tocar uma tuba;
veste uma camiseta com listras azuis e brancas, e uma
calça azul, remetendo à cor predominante, a cor do
céu.
Notamos que, por causa do ângulo da
fotografia e, provavelmente, da distância em que a
mesma foi feita, as plantas dão a impressão de serem
maiores que os músicos. Outro fator interessante é
que somente o rapaz do acordeão está olhando para as
lentes do fotógrafo; todos os outros aparentam ter os
olhos fechados, o que parece ser um gesto comum
entre os músicos que tocam instrumentos de sopro, já
que tais instrumentos exigem certa concentração e
esforço corporal, ligado ao sistema respiratório.
A segunda imagem encontra-se no mesmo manual e na mesma página da primeira,
não por coincidência, mas porque ambas dizem respeito ao mesmo grupo musical. No
entanto, enquanto a primeira é uma fotografia do próprio grupo, como vimos, a segunda é a
capa do seu sexto álbum, lançado em 2007: “Du
simple au néant”41
. O grupo intitula-se "Les Ogres de
Barback”42
e foi criado no ano de 1994 por quatro
irmãos franceses. O referido álbum possui 16 faixas e
aborda diferentes temas, sempre com um ritmo que
mistura a tradicional música francesa e os modernos
arranjos da música atual.
Primeiramente, notamos que a cor
predominante na imagem é o azul, em diversos tons,
41
“Do simples ao nada”. 42
“Os Ogros do Bar do Quintal”.
P á g i n a | 2300
sobretudo nos mais escuros. Trata-se de uma imagem do planeta terra vista do universo. O
globo terrestre se encontra no centro da imagem e podemos perceber nele, os traços referentes
às marcações territoriais presentes nos mapas, que dividem os países, os continentes, etc. O
universo, na imagem, encontra-se repleto de partituras e notas musicais, na cor preta, e
diversos pontos brancos, que fazem alusão aos astros celestes. Observa-se a presença de uma
marionete ao lado direito da imagem, "flutuando" sobre o globo terrestre. O boneco,
aparentemente feito de madeira, tem em mãos uma tuba, e possui fios nos membros
superiores, inferiores, na cabeça e no tronco de seu corpo; fios esses que o ligam a um objeto
distante sobre a imagem do planeta, de difícil identificação, embora nos remeta a um foguete
ou carretel, que parece comandá-lo sendo responsável por seus movimentos. A marionete está
com a boca aberta e seus olhos estão voltados para o lado direito da capa. Quanto ao mais,
vemos o nome do grupo - Les Ogres de Barback - centralizado na parte superior, numa
mesclagem de cores que variam entre branco e amarelo, o que dá o aspecto de um letreiro
enferrujado. Alinhado à direita na parte inferior, vemos o título do álbum - "Du simple au
néant".
A terceira e última imagem não tem nenhum vínculo com o grupo retratado nas
primeiras. Retirada do manual didático Fréquence Jeunes (1994), a imagem possui diversas
cores, aspecto resaltado pelo fundo branco que as contrasta, e consiste em um desenho
representando quatro músicos, sendo três homens e uma mulher, todos com estilos distintos e
tocando instrumentos diferentes. Na verdade, os
instrumentos não estão desenhados, somente são
representados pela posição corporal das personagens.
Suas mãos revelam que tipo de instrumento tocam.
Vemos, portanto, entre outros aspectos a serem tratados
na análise conotativa, uma abordagem paralinguística
presente nessa imagem.
Observemos o desenho. Da esquerda para a
direita vê-se, de pé, um homem negro, portando
vestimentas formais: palitó e calças num tom azul bem
claro, uma camisa social rosada e uma gravata azul;
também usa um óculos brancos com lentes azuis e está
de perfil, numa posição de quem toca saxofone ou um
outro instrumento de sopro semelhante. No centro,
vemos um rapaz ruivo vestido de calças jeans e de uma
camisa amarela aberta sobre uma camiseta cinza. Concluímos que ele toca um piano (ou
teclado), ao atentarmos para a posição das suas mãos e porque sua posição corporal denuncia
que esteja sentado (embora não haja nenhuma cadeira), aspecto comum entre os pianistas.
A terceira personagem presente na imagem, na ordem que estamos a expor, é um
homem que veste calças bege, camisa verde sob um colete cinza, cinto amarelo, chapéu
amarelo claro; porta óculos de grau e uma pulseira preta. Seus olhos estão fechados e sua
posição é de quem toca gaita. Por fim, à direita, vemos uma mulher loira com um lenço
vermelho sobre a cabeça, pulseiras douradas, cinto dourado cuja fivela é um coração), e meias
tricolores (branco, vermelho e cinza); veste uma camiseta branca e uma bermuda curta, na cor
azul. Sua posição é de quem toca violino e sua aparência revela sua concentração.
5.2 Análise Conotativa
P á g i n a | 2301
Para a realização de nossa análise conotativa, tomamos como base as considerações de
Dumont (1998). Poderíamos aproveitar a totalidade de suas considerações, mas por uma
questão operatória, nos deteremos à seção de sua obra direcionada às mudanças ocorrentes na
música francesa a partir dos anos 80. Além disso, é importante lembrarmos que a análise
conotativa nos fornece a liberdade de expor nossa interpretação pessoal, desde que a mesma
seja mediada por teorias, como esta de Dumont, que oferecem respaldo histórico e social.
Imagem 1:
Em nossa primeira imagem, queremos inicialmente destacar a presença do acordeão
como uma explícita representação cultural da França, uma vez que as origens do referido
instrumento são de influência francesa, sendo frequente a sua presença nas canções populares
desse povo desde os primórdios. É bem verdade que não se inclui em nossos objetivos a
realização da análise de ritmos ou da identidade musical do grupo que figura nessa nossa
primeira imagem, portanto, não nos compete fazer isso. Queremos, contudo, afirmar que o
acordeão é um instrumento muito presente nas canções da banda Les Ogres de Barback, o que
resgata essa forte marca musical francesa.
Prosseguimos nossa observação afirmando que poderíamos descrever de forma
concisa o que essa imagem conota com apenas uma palavra: simplicidade. As vestimentas dos
músicos, o total envolvimento com o ambiente campestre no qual estão inseridos e até mesmo
sua postura corporal, são elementos que reiteram esse fato. Desse modo, vemos a
complexidade da arte musical emoldurada na simplicidade da vida no campo, como se o
grupo quisesse chamar nossa atenção para o fato de que as coisas tradicionais, aquilo que pela
sociedade é considerado belo, exuberante, e por vezes engenhoso, não perde seu vigor e sua
grandiosidade quando unido à singela beleza de ambientes como esse. Pelo contrário, sua
beleza parece ser expandida e sua utilidade passa a transcender uma mera música que encanta
os nobres, funcionando também como um chamado às causas sociais e a uma maneira simples
de vida.
Vimos que há uma enorme atenção dada à simplicidade, e vimos também a presença
de um instrumento tipicamente francês (o acordeão), além de instrumentos antigos,
tradicionais, geralmente utilizados em orquestras e musicais grandiosos, remetendo à música
comumente ouvida e apreciada pelos nobres, principalmente nos séculos XIX e XX. Diante
disso, conseguimos identificar na imagem a presença de traços que remetem ao que Dumont
(1998) chama de "La Chanson Nostalgie"43
.
A canção nostalgia se refere ao “gosto dos ouvintes contemporâneos, e
consequentemente de seus autores-compositores preferidos, pela canção ‘do tempo
passado’”44
(DUMONT, 1998, p. 31). A nosso ver, Dumont (op. cit) nos mostra que o
panorama da canção francesa após os anos 80 não seria completo se não atentássemos para
esse fato: a despeito da modernidade da música eletrônica e dos demais novos ritmos que
influenciam todo o mundo, os ouvintes e compositores franceses contemporâneos não
abandonaram a canção antiga. Vemos que isso se faz evidente na imagem do grupo "Les
Ogres de Barback", justamente por portarem instrumentos que retrataram essa música do
tempo passado, com características da tradicional canção francesa, marcada, sobretudo pelo
43
“A Canção Nostalgia”. 44
“goût des auditeurs contemporains, et par conséquent de leurs auteurs-compositeurs préféres, pour la
chanson 'du temps passé'”
P á g i n a | 2302
acordeão. Enfim, a imagem resgata essa memória e valoriza as raízes da música francesa sem,
contudo, abandonar aspectos da canção moderna.
Imagem 2:
Ao observarmos a segunda imagem, algo que nos chama a atenção é o universo
repleto de notas musicais e partituras, o que evoca a universalidade da música. A imagem
transmite a sensação de que a música não é algo exclusivo do planeta terra, mas de todo o
infinito, apresentando-a como algo transcendente ao homem, no qual nosso planeta está
completamente imergido. A ideia de que TUDO É MÚSICA é ressaltada, trazendo consigo
certa reverência a esse fenômeno que nos é apresentado em tamanha grandiosidade.
Os aspectos relatados até aqui, se confirmam quando pensamos que essa ideia de uma
marionete com um instrumento em mãos, flutuando com seus movimentos coordenados por
um determinado objeto distante, nos leva a entender que, tendo sido a música apresentada
como um fenômeno universal e transcendente, os músicos (instrumentistas e cantores),
representados pela marionete, contam com sua total influência e direta intervenção, sem a
qual não conseguiriam executar seu ofício. Note que uma marionete nada faz sem comandos
exteriores. A imagem nos mostra uma relação como essa, onde os músicos nada fazem sem
que tenham sido comandados pelo poder que a própria música possui.
Partindo para as discussões de Dumont (1998), vemos que essa imagem fornece
aspectos do que o autor chama de “L'exotisme”45
. Esse ponto de sua teoria apresenta o
momento em que ocorreu a inserção de ritmos exóticos na canção francesa, que seguia toda
uma tradição rítmica. A inovação veio nos anos 80, justamente pela inserção de ritmos
tropicais provenientes dos países da América Latina. Essa mistura de ritmos deu origem a
novos estilos musicais, e sua positividade está na relação que proporcionou entre pessoas de
culturas diferentes. Quando a imagem apresenta a música como algo universal e expõe o
globo terrestre, não privilegia uma determinada cultura ou um determinado ritmo; pelo
contrário, defende que a música não é algo restrito a uma sociedade, e não deve ser limitada
como se assim o fosse. Além disso, a imagem encoraja a compreensão de que apesar das
diferenças é possivel conviver harmonicamente e até mesmo lançar mão de certos aspectos da
cultura do próximo para aprimorar e enriquecer aspectos de sua própria cultura.
Por fim, ainda interligamos os textos verbais presentes na imagem, com a parte da
teoria de Dumont (op. cit.) que retrata a revolução na língua francesa e consequentemente nas
letras das canções, a partir dos anos 80. O autor diz que “a canção dos anos pós 80 se
caracteriza igualmente pela emergência de uma língua contemporânea”46
(op. cit., p. 30). Ele
prossegue mostrando as mudanças nas letras das canções, afirmando que os compositores
começaram a incluir gírias, linguagens populares e expressões que retratavam as realidades
sociais, transformando a música em algo mais próximo do contexto da parcela menos
favorecida da sociedade francesa. A linguagem, portanto, começou a se transformar em algo
mais leve e descontraído, quebrando um pouco a tradicional linguagem culta que era usada na
canção antiga. O título “Les Ogres de Barback”, com certeza remete a essa mudança, pois
apresenta uma linguagem atual, que possivelmente não seria utilizada, por exemplo, nas
canções do início do século passado.
45
“O exotismo”. 46
"la chanson des années post 80 se caractérise également par l'émergence d'une langue contemporaine".
P á g i n a | 2303
Imagem 3:
Para concluir, temos nossa terceira imagem que é interessante por despertar o
conhecimento paralinguístico de quem a vizualisa. Também é preciso que o aluno evoque seu
conhecimento de mundo para que possa identificar qual instrumento cada um dos personagens
toca, simplesmente pela posição de seu corpo. Para nós, é evidente que os instrumentos são:
um trompete, um piano (ou teclado), uma gaita e um violino.
Em nossa interpretação, o assunto retratado na imagem é a diversidade musical. Não
consideramos que essa imagem diga respeito a um determinado grupo, e sim a uma
representação de diversos estilos musicais, e isso por dois motivos. Primeiro, notamos a
diferença entre as vestimentas dos personagens, o que aponta para pessoas de estilos
diferentes. Não há um padrão, como geralmente existe nos grupos musicais. Depois, vemos a
junção de instrumentos que geralmente fazem parte de um estilo musical diferente. Não é
comum, por exemplo, ouvirmos músicas que contenham sons de trompete e gaita ao mesmo
tempo, ou ainda violino e gaita. Não cometeríamos o equívoco de ignorar a existência de tal
união entre os instrumentos numa mesma música, pois isso é logicamente possível, no
entanto, afirmamos que essa junção geralmente não é realizada, principalmente na música
contemporânea. Esses aspectos nos levam a crer que a imagem nos faz refletir sobre a
diversidade musical, apontando para intrumentos de sopro e de cordas e nos mostrando
maneiras diferentes da manifestação da música.
A diversidade que vemos não é apenas no que diz respeito aos instrumentos, mas
também no que tange ao próprio músico. A garota da imagem porta vestimentas bastante
contemporâneas, por exemplo, mas isso não a impede de estar tocando um instrumento tão
antigo e tradicional quanto o violino. Teríamos aqui, então, a quebra de um estereótipo a
respeito dos músicos violinistas. Ainda nesse sentido, temos o rapaz negro, trompetista,
vestido com roupas que, ao contrário da moça violinista, seguem a tradição do seu
instrumento na história do Jazz, cujos primeiros grandes músicos foram homens negros
vestidos com roupas semelhantes às suas.
Encerramos a análise dessa imagem com uma consideração não menos importante que
as demais. Diz respeito à moça cuja posição corporal revela como violinista. Já falamos a
respeito de suas vestimentas contemporâneas, mas falta-nos citar que o simples fato dessa
presença feminina que ela representa, com um estilo tão marcante, remete ao que Dumont (op.
cit.) denomina como sendo "Le temps des Lolita”47
. As mulheres, como se sabe, tem
conquistado cada vez mais lugares de destaque em determinadas sociedades e isso se reflete
também, segundo Dumont (op. cit.), na canção francesa dos anos 80, que ele define como
sendo portadora de “uma outra imagem da mulher francesa”48
(op. cit., p. 28). O autor afirma
que as mulheres, sobretudo as compositoras e cantoras influentes, começaram a passar
“lentamente da ingenuidade à perversidade”49
(op. cit.), o que significa, entre outras coisas,
que as letras traziam uma nova postura feminina que rebatia o preconceito, declarava a
liberdade da mulher e falava de sua força social. Fala-se também de uma quebra de tabus,
quando a mulher começa a cantar e a compor sobre bebidas alcoólicas, sexo e demais temas
que a sociedade francesa proibia ao público feminino.
47
“O tempo das Lolitas”. 48
"une autre image de la femme française". 49
"lentement de l’ingénuité à la perversité".
P á g i n a | 2304
Concluímos assim nossa análise conotativa verificando, sobretudo a simplicidade
retratada na primeira imagem, o aspecto universal da música retratado na segunda, a
diversidade musical e o lugar da mulher na música francesa abordada na terceira. De forma
global, as imagens expressam as mudanças ocorrentes na canção francesa a partir de 1980
(DUMONT, 1998).
6. Considerações Finais
Durante a discussão promovida no decorrer desse trabalho pode-se ver o nosso
implícito desejo de retomar reflexões acerca do quão importante é o trabalho com o
sociocultural a partir da tomada de consciência intercultural para a formação integral do
estudante de LE, especificamente de FLE. Escolhemos direcionar nossa atenção à música e
vimos que uma análise de apenas três imagens nos rendeu tantas considerações. Imaginamos,
então, quão rico será o trabalho com os demais suportes (texto verbal, audio etc). Além disso,
é vasto o quadro de possibilidades para se explorar a interculturalidade em sala de aula de
FLE, portanto, o problema não é encontrar um aspecto para trabalhar, mas sim como trabalhá-
lo em sala de aula. O professor, no entanto, possui uma grande ferramenta, por assim dizer,
para realizar seu trabalho e contribuir melhor para o aprendizado dos alunos.
Em suma, constatamos a evidência da presença de imagens referentes a música nos
manuais de FLE, o que não acontece por acaso, pois entendemos que se trabalharmos essa
união de um fenômeno social sobremodo abrangente como a música a um suporte como o
texto não-verbal, que reúne diversos signos simultaneamente, estaremos proporcionando ao
aprendiz do francês uma rica oportunidade de estabelecer contato com aspectos importantes
da cultura francesa, bem como da francófona, contribuindo de maneira eficaz para o trabalho
com a interculturalidade em sala de aula e adquirindo a competência sociocultural tão
necessária àqueles que aprendem uma LE.
7. Referências Bibliográficas
CAPELLE, G.; CAVALLI, M.; GIDON, N. Fréquence Jeunes: méthode de français. Paris:
Hachette, 1994.
BARTHÉLEMY, F.; GROUX, D.; POCHER, L. Le français langue étrangère. França:
L’Harmattan, 2011.
BENAC, H. Guide des idées littéraires. França: Hachette Education, 1988.
DUMONT, P. Le français par la chanson. Paris: L’Harmattan, 1998.
FERRARA, L. D’A. Leitura sem palavras. 5.ed. São Paulo: Ática, 2007. (Série Princípios,
100.). MÉRIEUX, R.; LOISEAU, Y. Latitudes 1: méthode de français. Paris: Didier,
2008.Quadro Europeu Comum de Referências para as Línguas – Aprendizagem, ensino e
avaliação. Porto: Edições: ASA, 2001.
ROSSI, M. H. W. Imagens que falam: leitura da arte na escola. 5.ed. Porto Alegre:
Mediação, 2011.
P á g i n a | 2305
PENN, G. Análise semiótica de imagens paradas. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. (orgs.).
Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som; tradução de GUARESCHI, P. de A. 10. ed.
Petrópolis: Vozes, 2012.
TAGLIANTE, C. La classe de langue. Paris: CLE - International, 2006.
WALTY, Ivete Lara Camargos; FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda
Ferreira. Palavra e imagem: leituras cruzadas. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
P á g i n a | 2306
A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E SEU PAPEL NO DESENVOLVIMENTO DAS
HABILIDADES COMUNICATIVAS
Ana Julia Monteiro de ASSIS - UFCG50
Rosiane XYPAS- UFCG51
RESUMO: Segundo as histórias das metodologias do ensino/aprendizagem de Línguas
Estrangeiras (LE), a tradução é uma das atividades com mais tempo de uso, que tem sido
utilizada desde o século XVIII para o ensino das línguas clássicas, na metodologia dita
gramática-tradução. Nos dias atuais esta vem sendo cada vez mais abordada pelos manuais de
LE, apresentando-se em três categorias: Interlingual, Intralingual e Intersemiótica. Se
considerarmos que, a tradução é posta como estratégia para a prática e aperfeiçoamento das
quatro habilidades comunicativas (compreensão e expressão oral e escrita), perguntamos
como esse recurso é apresentado em manuais de LE, especificamente de língua Inglesa, e até
que ponto tais habilidades são de fato trabalhadas? Para respondermos a esta pergunta,
fizemos uma análise quantitativa das atividades presentes em um livro de nível básico de LE
designado para adolescentes cuja primeira língua é o português. Em seguida, fizemos uma
análise qualitativa a fim de apresentar as habilidades de uso mais recorrente no manual
escolhido para este estudo. A análise demonstrou que o uso mais recorrente no material
investigado é o da categoria de tradução intersemiótica, priorizando o desenvolvimento das
habilidades de expressão oral e compreensão escrita que para o nível iniciante de
ensino/aprendizagem de inglês como língua estrangeira, podem ser consideradas essenciais
para o desenvolvimento cognitivo e social do aprendiz. Nosso corpus é composto de quatro
unidades didáticas do manual Action one e nossa fundamentação teórica se apoia nas
categorias de tradução de Jakobson (1958), na definição de tradução intersemiótica de Plaza
(2008) e nos estudos de tradução de Branco (2011,2012).
Palavras-chave: Categorias de Tradução. Tradução Intersemiótica. Habilidades
comunicativas.
1. Introdução
A tradução é um recurso que vem sendo muito questionado em relação a sua
eficiência em sala de aula. Ela perpassou por uma série de abordagens e métodos, os quais
tanto a engrandeceram quando a desprezaram. Hoje, a partir dos estudos do linguista
Jakobson (1958), sabemos que a tradução não se trata apenas do passar de uma língua para
outra, mas que ela se apresenta em três diferentes tipos ou categorias, a saber, interlingual,
50
Aluna do Curso de Letras-Inglês, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-mail:
Letras, Professora. Doutora, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-mail:
P á g i n a | 2307
intralingual e intersemiótica. Tais categorias vêm sendo bastante exploradas por livros
didáticos (LD), e muitas das vezes os alunos, e até mesmo alguns professores, não têm
consciência disto.
O uso de livros didáticos é de fundamental importância para o encaminhamento
da aula, uma vez que funcionam como guia. O uso de atividades de tradução em livros
didáticos de língua estrangeira mostra-se cada vez mais frequente e serve como auxílio ao
ensino de idiomas e de suas especificidades. Diante da utilização de atividades de tradução
para o ensino, de que maneira esta se apresenta nos livros didáticos? Poderia ser utilizada
como um recurso auxiliar para o aperfeiçoamento das habilidades comunicativas? Temos
como objetivo geral neste artigo analisar quantitativa e qualitativamente as atividades de
tradução presentes no livro Action One (2004) de nível elementar. Como objetivos
específicos, pretendemos classificar e analisar as atividades de tradução em suas diferentes
categorias, bem como examinar se, e de que modo, o uso destas, pode auxiliar no
desenvolvimento das quatro habilidades comunicativas (leitura, escrita, fala e escuta).
O livro didático escolhido para análise é o primeiro de uma coleção de seis livros
designados especialmente para estudantes brasileiros. O livro didático escolhido está dividido
em quatro unidades e seis sessões das quais nos deteremos para análise visando às atividades
propostas por estas unidades designadas de A a D como também as seções que lhe são
relacionadas, a saber, Fun zone e Wordzip.
Sendo assim, analisamos as atividades referentes a essas unidades para
verificarmos de que modo e com que frequência as categorias de tradução foram trabalhadas
no LD em questão, e para tanto, elaboramos uma tabela demonstrativa (ver tabela 1) na qual
explicamos seu significado. Em seguida, identificamos qual categoria era mais recorrente, e a
partir dela, observamos novamente as atividades a fim de verificar quais foram as habilidades
comunicativas priorizadas (ver tabela 2). Por fim, apresentamos algumas atividades para
demonstrarmos como está apresentado o trabalho da tradução intersemiótica atreladas ao das
quatro habilidades comunicativas.
2. O uso da tradução nas diferentes abordagens de ensino no decorrer do tempo
A tradução, segundo Leffa (1988) apud Hannuch (2006) é uma das atividades
com mais tempo de uso no ensino de línguas estrangeiras. Ela é utilizada desde o século
XVIII quando se ensinavam línguas clássicas, como Grego e Latim, que partiam do Método
Gramática e Tradução. Os métodos com o decorrer do tempo foram trocados para melhor se
adequarem às necessidades da época. Apesar de em alguns deles a tradução aparecer como
vilã, gerando dúvidas a respeito de sua eficiência, esta aos poucos volta a exercer um papel
importante para a aquisição e aprendizado da língua estrangeira estudada. Segundo Neves
(1996), as abordagens que mais influenciaram a metodologia de ensino no Brasil foram: a
Abordagem Tradicional ou Gramática e Tradução, a Abordagem Direta, a Abordagem
Estrutural ou Audio-Lingual e a Abordagem Comunicativa que, atualmente, é usada como
referencial na maioria dos livros didáticos de LE; vale à pena ressaltar como a tradução está
presente e é vista em cada uma dessas abordagens.
De acordo com Hannuch (Op.cit.), a Abordagem Tradicional nasceu no
Renascimento e estava voltada o para ensino do Grego e Latim. Entretanto, até hoje é possível
perceber, em alguns casos, a presença desta no ensino de LE. Nesta abordagem, o ensino da
P á g i n a | 2308
LE52
era feito através da LM53
, e a metodologia era pautada na memorização de listas de
palavras, na tradução de textos literários e exercícios de tradução e versão. Tratava-se de uma
abordagem dedutiva, que enfatizava a forma escrita da língua e em que a tradução era
frequentemente utilizada, porém de forma automatizada e descontextualizada, acarretando em
seu uso abusivo e muitas vezes ineficiente fazendo com que se tendesse a banir o uso desta
em sala de aula. Surge em seguida, a Abordagem Direta, e com base nos resultados do uso da
tradução na abordagem anterior, esta passa a exercer um papel diferente em sala de aula.
Sendo assim, o uso da tradução torna-se proibido e o ensino/aprendizagem da LE passa a ser
feito exclusivamente através da LE, sem nunca recorrer à língua materna ou a tradução. Sendo
assim, os professores se utilizavam de gestos e gravuras para ensinar a língua estudada. A
abordagem era indutiva e com ênfase na oralidade.
Na Abordagem Audio-Lingual, e a tradução volta a exercer um papel importante,
esta era contemplada através da utilização da Análise Contrastiva, desenvolvida por Krashen,
através da comparação dos sistemas fonológicos, lexicais, sintáticos e culturais das duas
línguas (LM e LE), visando prever os prováveis erros a serem cometidos pelos alunos.
Por fim, surge a Abordagem Comunicativa que enfatiza a produção oral (em LE)
e a tradução passa a ser criticada e definitivamente excluída por ser considerada prejudicial ao
ensino de LE. Esta abordagem, como mencionado anteriormente, nos dias de hoje é a mais
utilizada nos manuais didáticos, como modelo a ser seguido pelos professores, de modo geral.
É valido ressaltar que alguns teóricos consideram que o uso da tradução é de fato importante
em sala de aula, segundo Costa apud Hannuch (Op.cit.), devemos rever a política do ensino de
línguas, devido ao fato de esta ser muito útil para se perceber e superar as dificuldades de
ensino/aprendizagem,
"[...] uma concepção mais ampla, mais cultural e crítica pode colocar a
tradução como um dos meios mais eficientes de se estar permanentemente
atento às diferenças em relação à língua (e à cultura) estrangeira."
(COSTA, 1988, p. 283 apud Hannuch 2006).
É importante ainda ressaltar que, quando a grande maioria dos autores se refere ao
uso da tradução nestas diferentes abordagens, consideram apenas a visão de se traduzir da LE
para LM ou vice-versa. Entretanto, a tradução hoje pode ser classificada em três categorias
que foram propostas pelo linguista Russo Jakobson (1958), e que ilustram como esta é muito
mais abrangente do que apenas o “passar de uma língua para outra”; e como ela pode e vem
sendo utilizada de diferentes formas para auxiliar o ensino/aprendizagem e enriquecer as aulas
de LE.
3. A categoria intersemiótica e a construção de sentidos do verbal para o não verbal e
vice-versa
52
Língua Estrangeira (LE). 53
Língua Materna (LM).
P á g i n a | 2309
Segundo a análise quantitativa feita para o desenvolvimento de nossa pesquisa,
constatamos que estão presentes as três categorias de tradução já mencionadas neste artigo,
sendo que há uma disparidade em relação à quantidade de cada categoria em si, ou seja,
constatamos uma atividade de tradução interlingual, quatro intralingual e oitenta e cinco
intersemiótica. Seria este número por que estamos estudando por um manual de nível
iniciante? Quais as possíveis razões de tanta diferença?
Ora, sabemos que a abordagem comunicativa reprime a tradução interlingual. Não
seria por isso que o manual analisado apresenta apenas uma atividade sendo este mesmo de
abordagem comunicativa?
Nossas considerações serão feitas neste ponto em uma breve apresentação das três
categorias de tradução segundo Jakobson (1958) apud Branco (2012). Entretanto, vamos nos
aprofundar na categoria intersemiótica, ou seja, a construção de sentidos do texto verbal para
o não-verbal.54
Segundo Venuti apud Araújo & Branco (2012), Jakobson foi um teórico que se
destacou ao apresentar uma nova perspectiva da tradução. Este estabeleceu uma relação entre
a tradução e aspectos linguísticos de definição de signo, de modo que o significado de uma
palavra, frase ou imagem qualquer, é definitivamente um fato linguístico-semiótico. A partir
de então, Jakobson propôs três categorias de tradução: a Intralingual, a Interlingual e a
Intersemiótica, tendo sido ele, segundo Plaza (1938-2003), o primeiro a discriminar e definir
possíveis tipos de tradução. Segundo Branco (2012) estas categorias são relevantes tanto para
desmitificar a ideia de que a tradução está relacionada apenas a textos escritos ou orais e de
uma língua para outra, como para demonstrar que esta explora, também, outros sistemas de
signos para a comunicação.
A primeira categoria proposta pelo teórico é a Intralingual: “quando os sinais
verbais de uma língua são interpretados por outros sinais da mesma língua” (BRANCO,
op.cit.). Deste modo, essa categoria de tradução pode ser realizada com o apoio do uso de
sinônimos, definições ou equivalências. Tendo como base a Língua Inglesa, a partir do
momento em que um aluno pergunta ao professor o significado de uma palavra qualquer, e
este o responde também em inglês, utilizando-se de qualquer um dos sistemas de apoio
mencionados anteriormente, se estabelece o uso da Categoria Intralingual. Por exemplo, se
aluno pergunta o significado da palavra watch55
e o professor responde: ‘it’s a small clock
usually worn on a strap around the wrist’ 56
ou simplesmente, usa o equivalente: ‘it’s a
clock’57
, o professor utilizou-se de signos verbais para explicar outro signo verbal da mesma
língua e, portanto a Categoria Intralingual.
A segunda categoria é a Interlingual: “quando os sinais verbais de uma língua são
interpretados por sinais verbais de outra língua” (BRANCO, op.cit.), que normalmente
chamamos de tradução propriamente dita, e categoria esta que era a única reconhecida como
tradução pelas abordagens mencionadas anteriormente. Comparando com o exemplo anterior,
seria possível o uso deste tipo de categoria se, ao se perguntar o significado de ‘watch’ o
professor respondesse: ‘é um relógio de pulso’. Lidamos também como esse tipo categoria
quando utilizamos os dicionários bilíngues. Ao consultarmos o significado de uma palavra
qualquer em inglês, e obtermos o termo equivalente em português, ou vice-versa, fazemos uso
da Categoria Interlingual.
54
Para um maior aprofundamento das três categorias de tradução ver Branco, 2012. 55
“Relógio de pulso”. 56
“É um relógio pequeno, normalmente usado sobre uma pulseira em torno do pulso”. Disponível em:
http://dictionary.cambridge.org/dictionary/american-english/watch_1?q=watch 57
“É um relógio”.
P á g i n a | 2310
A Categoria Intersemiótica ocorre: “quando os sinais verbais de uma língua são
interpretados por sistemas de sinais não-verbais” (BRANCO, op.cit.) ou “de um sistema de
signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura,
ou vice-versa, poderíamos acrescentar” (PLAZA, 1938-2003). Sendo assim, a categoria
Intersemiótica trata-se da interpretação de qualquer signo não verbal como, por exemplo, uma
imagem, figura, mímica, som, pintura, entre outros; para um signo verbal, seja em forma de
texto escrito ou discurso oral.
Como observamos em nossa análise, esta é a categoria que predomina em nosso
corpus, mas será que nossos alunos tem alguma consciência de que as atividades que eles
estão realizando são de tradução intersemiótica? Segundo Oustinoff (1956),
“... a dimensão “intersemiótica” é um dado essencial, a começar pelo campo
dos próprios significantes, que são polivalentes por natureza: as palavras
escritas em uma página são significantes visuais, mas podem ser traduzidos
como significantes auditivos pela fala, em gestos na linguagem dos sinais,
em significantes táteis no alfabeto braile. Essa faculdade de tradução dos
signos parece tão natural que raramente se presta atenção a ela na vida
cotidiana.” (Oustinoff, 1956, p. 115).
Com base na citação acima, ao que nos parece, as atividades são feitas pelos
alunos em um processo tão automatizado, que provavelmente pouquíssimos ou até mesmo
nenhum, irá perceber que está realmente fazendo uma atividade de tradução. Isso acontece
primeiro porque a maioria dos alunos não tem um arcabouço teórico sobre este tópico para
reconhecer e classificar as atividades de tradução entre seus diferentes tipos; mas
principalmente porque muitas destas atividades têm como principal objetivo trabalhar ou
desenvolver uma (ou mais) das quatro habilidades comunicativas e esse trabalho é tão
focalizado, que o uso da tradução acaba por se camuflar diante dos olhos de nossos alunos.
Sendo assim, torna-se fundamental que verifiquemos, a seguir, como se dá o trabalho dessas
quatro habilidades a partir do uso da tradução, propondo para o futuro professor de língua
estrangeira uma maior consciência da importância e do uso que faz, às vezes sem se dar conta,
deste tipo de tradução.
4. O uso da tradução para o desenvolvimento das quatro habilidades comunicativas
De acordo com Malmkjaer (1998) apud Branco (2010), a tradução não se separa
do uso das quatro habilidades comunicativas, muito pelo contrário, depende delas. Segundo a
autora, ao se praticar atividades que envolvem o uso da tradução, os alunos,
consequentemente, praticam a compreensão oral e escrita e a produção oral e escrita. Para ela,
a tradução envolve a competência linguística em ambas as línguas (LM e LE) durante o
processo tradutório; uma relação entre os seguimentos linguísticos, culturais e sociais em LM
e LE; e dependendo do contexto, do público alvo e/ou contexto ou situação, a seleção da
forma mais adequada de tradução. Para tanto, é necessário que se trabalhe vocabulário e
atividades de tradução em diferentes contextos, e se bem elaboradas, tais atividades são
capazes de oferecer também a prática de qualquer uma das quatro habilidades. Deste modo,
Branco (2010) aponta a importância da tradução em sala de aula e como ela pode auxiliar no
desenvolvimento das habilidades:
P á g i n a | 2311
“... a tradução como exercício pedagógico, busca aperfeiçoar a agilidade
verbal, expandir o vocabulário em LE, desenvolver o estilo dos alunos,
aprimorar a compreensão de como as línguas funcionam, consolidar as
estruturas da LE para uso ativo e monitorar e melhorar a compreensão da
LE” (BRANCO, p.169, 2010).
Os livros didáticos trazem uma série de atividades que visam de uma forma ou de
outra o trabalho das quatro habilidades comunicativas, priorizando aquelas que consideram
primordiais de acordo com o seu público alvo e seu objetivo. As atividades que envolvem
tradução acabam por trabalhar e muitas vezes ajudar no desenvolvimento destas habilidades.
Considerando a categoria Intersemiótica e o trabalho das quatro habilidades, é
possível perceber o quanto ambas estão relacionadas e dependem uma da outra para
realização de muitas atividades. Ao se trabalhar-se tal categoria de tradução em que o aluno
deve interpretar, neste caso, o signo não verbal através de um signo verbal, ou vice-versa, é
possível, por exemplo, desenvolver a escrita ao associar-se a imagem à sua representação
gráfica; a fala ao se descrever o que se vê na imagem; a leitura quando a imagem está
relacionada a algum texto escrito e a escuta quando ao ouvir uma determinada situação o
aluno deve interpretá-la e associá-la a imagem que melhor lhe representa, por exemplo.
Comprova-se assim o que afirma Malmkjaer apud Branco (2010, p. 168): “... a tradução não
está separada das quatro habilidades, mas depende delas”.
5. Apresentação da composição do manual Action One e análise das atividades
A proposta pedagógica do livro didático analisado se fundamenta na filosofia de
uma escola que ensina a língua inglesa, adotando o Action (Ação) que visa a um curso de
nível básico, ou seja, introdutório, em aproximadamente 270 horas-aulas. Ele está dividido em
seis níveis apresentados em seis livros que compõem este nível. Sendo assim, escolhemos o
primeiro livro intitulado Action One) e verificaremos como as quatro habilidades podem ser
trabalhadas em conjunto a partir do recurso da tradução.
Esse livro foi designado especialmente para pré-adolescentes e adolescentes entre
11 e 13 anos de idade, cuja primeira língua é o Português. O livro abrange um público
específico e apresenta características que o destaca entre outros como a apresentação do
contraste entre termos em inglês Americano e Britânico, o que caracteriza a categoria de
tradução intralingual de Jackobson, além de duas seções especiais nomeadas de wordzip e fun
zone (zona de diversão), respectivamente, que apresentam uma grande riqueza de imagens e
símbolos que auxiliam no desenvolvimento das atividades e que instigaram a análise do
material estudado.
Cada unidade do Action consiste em 26 lições agrupadas em quatro unidades (A-
D) e mais duas lições de revisão nomeadas de Take Action (Aja) além das seções wordzip e
fun zone (zona de diversão), que estão estritamente relacionadas com as seções de A a D.
Apresenta também as seções: One Plus (Uma a mais), Revision section (Seção de revisão) e
Activity book (Livro de atividades) sendo as duas primeiras utilizadas como revisão de
conteúdo e a última constituída de atividades a serem feitas, em casa, pelo aluno.
Em prol de um recorte teórico, nosso corpus é composto pelas quatro unidades
didáticas do manual Action One (A-D) e das seções que lhe estão relacionadas (wordzip e fun
P á g i n a | 2312
zone). Analisamos exclusivamente as atividades destas unidades desconsiderando, portanto
quadros explicativos ou qualquer outro recurso utilizado apenas para explicação de conteúdos.
Nossa análise terá como apoio as três categorias de tradução propostas por
Jackobson (1958) apud Branco (2012): interlingual, intralingual e intersemiótica, conforme
mencionado anteriormente. Assim, coletamos e analisamos noventa atividades que utilizam o
recurso da tradução nas três categorias. Analisaremos abaixo duas tabelas, sendo a primeira
referente às atividades de tradução e a segunda às atividades relacionadas ao desenvolvimento
das quatro habilidades.
TABELA 1: Atividades de tradução coletadas no Action One
CATEGORIA DE
TRADUÇÃO
UNIT
A
UNIT
B
UNIT
C
UNIT
D
TOTAL
INTERLINGUAL
1
0
0
0
1
INTRALINGUAL
0
1
1
2
4
INTERSEMIOTICA
15
24
25
21
85
Fonte: NOGUEIRA, M. Action One: Student’s book. Updated edition. Rio de Janeiro: Learning Factory Ltda,
2004. 111 p.
O livro analisado apresenta na seção Word zip uma predominância de textos não-
verbais, ou seja, de imagens em detrimento ao texto verbal. Diferente da seção Fun zone, que
apresenta também imagens em uma quantidade menor, predominando o texto verbal.
Constatamos que na seção Word zip, composta por nove atividades, todas se enquadram na
categoria de tradução intersemiótica enquanto que na Fun zone das 24 atividades que
apresenta, apenas 6 se enquadram na mesma categoria.
A tabela acima analisada nos faz compreender que o livro em questão é repleto de
imagens. No entanto, vale ressaltar que usar imagens em atividades não está diretamente
relacionado ao uso da tradução intersemiótica, pois para que a atividade seja assim
classificada, é necessário que haja de fato a interpretação entre dois signos, a saber, do verbal
para o não-verbal ou vice e versa. Por exemplo, em uma atividade de compreensão oral na
qual são apresentadas seis imagens e cinco frases sobre as mesmas, o aprendiz estará fadado a
respondê-las a partir da utilização da imagem. Todavia, se não houver nenhuma referência de
texto verbal às imagens apresentadas junto às atividades, esta servirá apenas de ilustração. Em
uma frase, o recurso da tradução intersemiótica nas atividades deve ser indissociável entre o
signo verbal e o não-verbal.
Por uma questão metodológica, escolhemos duas atividades para análise, que
trabalham duas habilidades cada uma. As atividades analisadas foram a 1 da unidade A1 e a
atividade 10 (wordzip 1) da unidade A3, referentes à tradução intersemiótica. Como
P á g i n a | 2313
mencionamos anteriormente, segundo Malmkjaer apud Branco (2010), a tradução não se
separa do uso das quatro habilidades comunicativas. Deste modo, segue abaixo a tabela de
análise quantitativa de todas as unidades do livro didático analisado em que podemos verificar
que há uma predominância nas habilidades de Reading (Leitura) e Speaking (Fala) no Action
One:
TABELA 2: Atividades de tradução que ajudam no desenvolvimento das quatro habilidades
HABILIDADE
TRABALHADA
UNIT
A
UNIT
B
UNIT
C
UNIT
D
TOTAL
LISTENING
(escuta)
3
4
6
5
18
READING
(leitura)
4
8
5
5
22
SPEAKING
(fala)
3
5
10
6
24
WRITING
(escrita)
5
8
5
3
21
Fonte: NOGUEIRA, M. Action One: Student’s book. Updated edition. Rio de Janeiro: Learning Factory Ltda,
2004. 111 p.
Na atividade 1 da unidade A1 (Figura 1, abaixo), página 6 do livro Action One, o
aluno pratica as habilidades de listening (escuta) e reading (leitura) ao mesmo tempo em que
trabalha a categoria de tradução intersemiótica. Nesta atividade, o aluno deve primeiramente
ouvir os diálogos do CD, que apresentam também alguns recursos intersemióticos como, por
exemplo, sons de fundo que despertam no aluno, a sensação de imersão no ambiente em que o
diálogo se realiza, e associar o áudio ao texto escrito, presente na questão, através da leitura.
Depois disso, devem interpretar aquilo que leram e ouviram, ou seja, os textos verbais, e
associá-los a imagem que representam cada um deles adequadamente. Deste modo, através da
tradução intersemiótica, a saber, da interpretação dos textos verbais para os não-verbais e
vice-versa, a questão, como podemos observar, trabalha as habilidades de leitura e de escuta.
Figura 1 – Unidade A1 exercício 1 do livro Action One
P á g i n a | 2314
Fonte: NOGUEIRA, M. Action One: Student’s book. Updated edition. Rio de Janeiro: Learning Factory Ltda,
2004. 111 p.
Na Atividade 10 da Unidade A3 (figura 2, abaixo), páginas 11 e 58 do livro, o
aluno, através da tradução intersemiótica, trabalha as habilidades de speaking (fala) e writing
(escrita). Essa atividade é dividida em duas etapas, na primeira, feita em duplas, o aluno deve
testar seu colega, fazendo-o perguntas para que ele responda qual o plural de cada uma das
imagens. Deste modo, os alunos praticam a habilidade da fala, ao perguntar e responder, bem
como fazem uso da categoria de tradução intersemiótica, uma vez que interpretam o signo
não-verbal para responder as perguntas propostas. Na segunda etapa, os alunos trabalham a
escrita, na medida em que mais uma interpretam as imagens, ou seja, utiliza a categoria
intersemiótica, para escrever o signo verbal correspondente a cada uma das imagens (não-
verbais) presentes na atividade.
Figura 2 – Unidade A3 Exercícios 10: wordzip 1 do livro Action One
Fonte: NOGUEIRA, M. Action One: Student’s book. Updated edition. Rio de Janeiro: Learning Factory Ltda,
2004. 111 p.
P á g i n a | 2315
6. Considerações finais
Como pudemos perceber através da análise, a categoria que predomina neste LD,
é a categoria de tradução intersemiótica, proposta por Jakobson (1958). Segundo Santaella
(2005) apud Branco (2012), a linguagem não verbal desempenha um importante papel, pois
enquanto indivíduos sociais, nosso estar no mundo é mediado por uma rede intricada e plural
de linguagem. Sendo assim, nos comunicamos também através da leitura e produção de
formas, que podem ser representadas através de imagens, movimentos corporais, sons, entre
outros. A autora afirma ainda que ao olharmos ou tocarmos algo, despertamos sentimentos e
leituras que acabam tomando expressão a partir de outras formas de linguagem, e é assim que
se procede em sala de aula, buscamos o uso de linguagens variadas para que o objetivo da
comunicação em língua estrangeira seja alcançado.
Percebemos também a partir da análise que assim como propõe Malmkjaer (1998)
apud Branco (2010), é possível se trabalhar a partir da tradução as quatro habilidades
comunicativas, mesmo que naturalmente tenda-se a priorizar alguma(s) dela(s) de acordo com
o objetivo proposto. Segundo a autora, ao se praticar atividades que envolvem o uso da
tradução, os alunos, consequentemente, praticam a compreensão oral e escrita e a produção
oral e escrita. Enquanto realizamos as atividades que focalizam o desenvolvimento das
habilidades, traduzimos de forma tão natural e inconsciente, que muitas vezes nem
percebemos que estamos fazendo uso dela. É por este motivo que é importante que
reconheçamos o papel que a tradução desempenha no ensino/aprendizado de inglês e que
também despertemos essa consciência em nossos estudantes.
No livro didático analisado, percebemos que a ênfase foi dada às habilidades de
leitura e fala mais especificadamente a segunda, tendo em vista que por se tratar de um
material utilizado em curso de idiomas, no qual o objetivo maior é preparar o aluno para ser
capaz de se comunicar e lidar com contextos de produção oral com nativos e/ou em países
estrangeiros.
É importante observar também que, como mencionado anteriormente, a
Abordagem Comunicativa é a que predomina nos livros didáticos atuais, e esta não deixa de
apresentar-se também no LD analisado. Desta forma, explica-se o porquê da grande
quantidade de atividades de speaking em detrimento das demais, já que essa abordagem
enfatiza a produção oral, e explica-se também o fato do número tão reduzido de atividades
que trabalham, por exemplo, a categoria de tradução intralingual, uma vez que esta é vista
como prejudicial ao ensino de LE, dentro desta abordagem.
Em síntese, podemos concluir que apesar de a tradução em alguns momentos da
história do ensino de línguas, ter aparecido como uma vilã, gerando dúvidas a respeito de sua
eficiência; hoje, a partir dos estudos e análises como esta, feitas até então, juntamente com o
conhecimento e consciência de que dispomos de diferentes categorias de tradução, que nos
permitem explorar uma vasta gama de signos não só verbais, como não-verbais, podemos
afirmar que a tradução de fato pode ser utilizada como um recurso auxiliar ao
ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras como um todo, inclusive no que concerne ao
desenvolvimento das habilidades comunicativas.
7. Referências bibliográficas
P á g i n a | 2316
ARAUJO, A. A. ; BRANCO, S. O. . Atividades de tradução em um livro didático de língua
inglesa. Letras Raras, v. 1, p. 4-16, 2012.
BRANCO, S. O. . Os estudos da tradução no brasil: relatos de pesquisa. Traduzires, v. 1, p.
49-60, 2012.
________________. Estratégias de tradução, interlíngua e o ensino de línguas. In: V CIATI
- Congresso Ibero-Americano de Tradução e Interpretação, 2010, São Paulo. Estudos
Avançados (USP. Impresso). São Paulo: UNIBERO, 2010. v. V. p. 50-60.
HANNUCH, Jeane Nassar. A tradução como ferramenta no ensino/aprendizagem de língua
inglesa: explorado vocabulário. (s/d) Disponível em:
<http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/2544-8.pdf> Acessado em Julho
de 2013.
NEVES, Maralice de Souza. Os mitos das abordagens tradicionais e estruturais ainda
interferem na prática em sala de aula. In: PAIVA, Vera Lúcia Menezes de. (org.) Ensino de
Língua Inglesa: reflexões e práticas. Departamento de Letras Anglo GermânicasUFMG, 1998.
NOGUEIRA, M. Action One: Student’s book. Updated edition. Rio de Janeiro: Learning
Factory Ltda, 2004. 111 p.
OUSTINOFF, Michael, 1956. Tradução: histórias, teorias e métodos/ Michael Oustinoff;
tradução: Marco marcionilo. - São Paulo: Parábola Editorial, 2011.
PLAZA, Julio, 1938-2003. Tradução Intersemiótica/ Julio Plaza -- São Paulo: Perspectiva,
2008. – (Estudos; 93).
P á g i n a | 2317
DIDÁTICAS DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS E O LUGAR DO TEXTO LITERÁRIO
NA PERSPECTIVA ACIONAL: UMA ANÁLISE COMPARATIVA NOS MANUAIS
DE FLE EM NOUVEL EDITO B1 E ALORS B1
Rosiane Xypas (UFCG)58
RESUMO: Fazendo um levantamento de quatro décadas da presença de textos literários em
manuais de francês como língua estrangeira (doravante FLE), observamos que os textos
literários sempre estiveram presentes nos manuais dos anos 80, 90, 2000, 2011 nos níveis
intermediários e avançados. Na história da evolução das metodologias de
ensino/aprendizagem do FLE, o tratamento dado ao texto literário oscilou entre sacralizado e
banal. E nos dias de hoje, que lugar ocupa com a perspectiva acional o texto literário, sabendo
que ele é considerado como um documento autêntico qualquer? Postulamos que a leitura de
texto literário na sala de aula de língua estrangeira deva favorecer o aprendiz tanto do ponto
de vista do desenvolvimento de sua própria cultura, quanto da do outro, um caminho possível
para a tomada de consciência das representações culturais contidas nos mesmos. Ora, a
compreensão e leitura de texto literário pode causar malentendidos culturais, mesmo se o
texto seja simples e direto no plano linguístico (Xypas, 2010). Nesta pesquisa, temos dois
objetivos, o primeiro é de analisar o lugar do texto literário nos manuais de perspectiva
acional escolhidos, e o segundo, é de saber se os trechos dos textos literários propostos
favorecem o aprendiz no desenvolvimento de sua competência cultural e quem sabe a
intercultural? Para tal, nosso corpus é composto de dois livros didáticos de língua francesa e
de perspectiva acional Nouvel Edito B1 e Alors B1. Constatamos que existe um lugar
específico para os textos literários que compõem os manuais, mas também o predomínio do
gênero prosa em detrimento ao da poesia e ao do teatro. Vale ressaltar que os trechos literários
apresentados embora diversificados não são representativos da francofonia. Apoiamo-nos em
autores tais como De Carlo (1998); Zarate (1986); Wandermüller (2011); Bazin (2010);
Tagliante (2006).
Palavras-chave: Leitura em língua estrangeira. Manual de perspectiva acional. Texto
literário.
1. Introdução
Na história da evolução das metodologias de ensino/aprendizagem do Francês como
língua estrangeira (doravante FLE), o tratamento dado ao texto literário oscilou entre
sacralizado e banal. E fazendo um levantamento de quatro décadas da presença de textos
literários em livros didáticos (doravante LD) de FLE, observou-se que os textos literários e
seus diversos gêneros sempre estiveram presentes nos livros didáticos dos anos 80, 90, 2000,
2011 nos níveis intermediários e avançados.
58
Professora Adjunta de Didáticas do FLE da Universidade Federal de Campina Grande,
P á g i n a | 2318
E nos dias de hoje, que lugar oferece a perspectiva acional para a leitura de textos
literários em sala de aula em níveis intermediários e avançados? Que estatuto tem este tipo de
texto, se como se sabe, ele é tido como um documento autêntico qualquer? Que tipo de
exploração didático-pedagógica é feita nestes textos?
Postulamos que a leitura de texto literário na sala de aula de língua estrangeira deva
favorecer o aprendiz, por um lado, a descentralizar-se de sua própria cultura, pelo
conhecimento da do outro. E por outro lado, desenvolver a sua capacidade de interagir no
mundo.
Para se atingir esses dois pontos de vista, utilizando o texto literário na sala de aula de
língua, é preciso des-sa-cra-li-zar o texto literário. Nossa proposta leva em conta, a
necessidade do multiletramento na sociedade atual e com isso visamos igualmente ao
desenvolvimento do letramento literário, já que os livros didáticos de línguas estrangeiras
apresentam em sua maioria, uma grande diversidade de textos jornalísticos, injuntivos,
informativos etc. Assim, não é muito difícil constatar o lugar trincado de trechos literários em
LD de língua estrangeira, e os que escolhemos para análises, por exemplo, não inova nesse
aspecto:
o primeiro, é que os textos literários estão pouco presentes, pois o espaço físico
reservado aos mesmos equivale à metade de uma página do LD. A página
dupla, quase nunca lhe é consagrada.
o segundo, é que a exploração pedagógica dos trechos literários visa a reforçar
pontos do tema da unidade do manual ou de pontos gramaticais já trabalhados,
raramente levando em conta sua literariedade.59
A perspectiva acional preconiza o desenvolvimento do aprendiz ou do ator social
visando a sua autonomia e para isso, evoca diversas ciências humanas para ajudar o aprendiz
a se tornar autônomo. Espera-se que ele se torne um leitor confirmado ou ativo. Com efeito,
no corpus que nos serve de estudo, observamos que a utilização do excerto literário é bem
pragmática. Dito em outras palavras, o trecho literário é utilizado como modelo para, por
exemplo, se ensinar a fazer uma carta de amor, utiliza-se um excerto literário de carta de amor
e se pede ao aprendiz para escrever à maneira de. Quando exploram sua forma, pensa-se em
um estudo de vocabulário e em seus aspectos linguísticos. Os objetivos são interessantes e
válidos, mas se não se explora a literariedade do texto que marca a especificidade do mesmo e
demanda estratégias precisas de leitura.
Pensamos que para um bom desenvolvimento do letramento multimodal, o leitor-
aprendiz deve entrar em contato com diversos gêneros textuais verbais ou não verbais tais
como narrativos, argumentativos, descritivos, informativos, explicativos, expressivos,
injuntivos etc durante sua formação.Vale à pena ressaltar que nossos aprendizes vivem em
uma sociedade em que se confrontam sempre com diversos tipos de textos orais e escritos a
serem trabalhados. No entanto, ainda existem receios quanto à leitura de textos literários por
parte de diversos aprendizes. Muito dos nossos afirmam que não gostam de ler textos
literários porque são muito difíceis de entender, porque são muito específicos, que enfim não
estão ao alcance de todos. Partindo dessa constatação, não caberia ao professor de línguas
59
Essa constatação equivale também para o manual de língua espanhola Prisma B1 e o manual de inglês Cutting
Edge pre-intermediate, Pearson Longman analisado por nós.
P á g i n a | 2319
estrangeiras fazer um trabalho específico para a modificação das representações de seus
aprendizes sobre os textos literários?
Assim, a modificação das representações negativas e promovendo a dessacralização
do tipo de texto em questão poderá favorecer uma nova atitude diante do texto literário e
quem sabe facilitar sua compreensão. Caso contrário, representações do tipo que reforçam as
dificuldades de contato e de trabalho de construção de sentido de textos literários, não
reforçariam sua sacralização abrindo-se um hiato no letramento multimodal em línguas
estrangeiras?
2. Análise do lugar do texto literário em Nouvel Edito B1 e Alors B1 e apresentação do
corpus
Os livros didáticos que vamos analisar neste estudo são de nível intermediário B1 e de
perspectiva acional. Eles elaboraram sua proposta de ensino/aprendizagem à luz do que
preconiza o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECRL, 2001) e de
perspectiva acional.
No prefácio do manual Le Nouvel Edito B1 (2010) podemos ler que ele é composto de
nove unidades com dois dossiês fazendo um total de dezoito dossiês. Ele apresenta quatro
elementos, a saber, uma ampla escolha de documentos autênticos permitindo trabalhar as
cinco competências de compreensão e de expressão oral e escrita; um trabalho aprofundado e
estruturado sobre o léxico; uma abordagem da gramática ritmada em três tempos facilitando a
apropriação das diferentes estruturas: introdução, funcionamento, treino; propostas de Ateliês
para realizar as tarefas em grupos.
Lemos no trecho intitulado Abordagem metodológica do livro didático Alors? 3 nível
B1, podemos ler que ele tem como função acompanhar a aprendizagem do francês dos
aprendizes adultos ou jovens adultos. Como conhecem já outras línguas, e sobretudo, têm
uma experiência social e de curiosidades e interesses culturais, ele levará isto em conta. Ele
está organizado em nove unidades comportando cada uma das duas seções: ‘Sociedade’ e
‘Culturas’. (...) Os textos orais e escritos foram feitos para serem lidos, produzidos (só ou com
vários aprendizes, em interação ou não), compreendidos e vistos... Alors 3 se inscreve ainda
na abordagem por competências do ensino onde cada competência releva de uma forma de
guia pedagógico particular. (...) Os esquemas das unidades respondem na primeira seção a
recepção, conversação, produção oral; na segunda seção, a recepção audiovisual, recepção
escrita, produção escrita.
Nosso corpus é composto em Alors 3 de cinco textos literários: dois poemas, uma
narração, uma história em quadrinhos e um excerto literário de romance. Le Nouvel Edito B1
é composto de cinco trechos de um romance, duas histórias em forma literária de História em
Quadrinhos, um poema, um trecho de peça de teatro.
Neles os textos literários são curtos e nem sempre o encontramos em uma mesma
rubrica ou seção. Fazendo um levantamento quantitativo temos nove textos literários de
diversos gêneros no livro didático Nouvel Édito 1 e cinco textos em Alors 3. É uma
quantitativa escassa porque o primeiro livro didático apresenta sessenta e nove textos de
gênero predominantemente informativo e Alors 3 é composto de quarenta e quatro textos.
Vale ressaltar que não contamos as imagens nem os textos orais sendo que estes resultados
são unicamente dos textos verbais não literários. Podemos assim indagar que papel teria o
texto literário na aula de língua estrangeira na utilização destes manuais? Irrisório ou quase
P á g i n a | 2320
nada relevante para uma preparação do aprendiz para a leitura e compreensão literárias. Que
fazer para um letramento multimodal?
3. Ensino de língua estrangeira através de textos literários: o que propõem os livros
didáticos específicos no assunto?
Buscando ampliar nossa compreensão sobre o lugar do texto literário na aula de
línguas estrangeiras, analisamos igualmente quatro livros sobre o assunto, a saber, Littérature
progressive du français – niveau débutant de Nicole Blondeau et alli (2004); Le FLE par les
textes de Bouchery e Taillandier (2009); Livres ouverts de Estéoule-Exel e Ravier (2008) e
Littérature en dialogues de Geneviève Baraona (2006).
Desejamos compreender a proposta pedagógica dos autores ao levarem o texto
literário para a sala de aula de línguas estrangeiras no que se refere a três pontos essenciais: o
primeiro está vinculado à dessacralização do texto literário; o nível do aprendiz para a leitura
de textos literários em aula de língua; à exploração literária proposta no manual e o prazer do
texto.
Nicole Blondeau et alli (2004) afirmam já em seu primeiro volume da coleção
Littérature progressive du français – niveau débutant sobre o público a ser trabalhado nesse
manual e o nível para a introdução do ensino/aprendizagem da língua através de textos
literários em sala de aula de língua estrangeira.
As autoras do manual acima afirmam que “a obra se endereça a um público de
estudantes em fim do nível 1, quer dizer, aqueles que tiveram de 100 a 150 horas de ensino de
língua francesa” e nos alerta que é interessante observar que “no nível elementar, a escolha de
textos literários é perigosa” (2004, p.3)60
. Ainda no preâmbulo podemos ler que a exploração
pedagógica proposta que é nomeada de ‘pacto pedagógico’ é de que o professor tenha
“confiança nos aprendizes (...) aceitando a paráfrase (...) e acolhendo suas interpretações”
(2004, p. 3-4)61
. Mas a paráfrase elaborada é dita em que língua levando em conta o nível
iniciante dos mesmos?
O tempo de 100 a 150 horas de aula de língua fixado pelas autoras para a introdução
dos textos literários em sala de língua estrangeira equivale - se pensarmos em nossos cursos
universitários brasileiros – o de um ano e meio no mínimo, ou seja, dois semestres e três
meses consecutivos de aprendizagem da língua estrangeira em questão.
Concordamos com as autoras quanto ao tempo mínimo introdutório para se trabalhar o
texto literário na sala de aula de língua estrangeira. Talvez o aprendiz esteja mais aberto para
desenvolver competências que vão além das linguísticas. Mas o mesmo não ocorre quanto à
proposta das mesmas em relação ao professor se este deve ou não fazer referências a textos
literários durante essas primeiras horas do processo ensino/aprendizagem de língua.
Ainda as autoras Blondeau et alli (2004) afirmam igualmente em seu prefácio que “o
texto literário é um suporte de aprendizagens múltiplas [visando] à construção de sentido e
não à procura [de um certo] sentido [preestabelecido]” (2004, p. 4)62
. Considerando o que
60
« L’ouvrage s’adresse à un public d’etudiants en fn de niveau I, c’est-à-dire ayant suivi 100 à 150 heures
d’enseignement de français » (Avant-propos, 2004, p.3). 61
« À un niveau élémentaire, le choix des textes est périlleux (...). Faire confiance aux étudiants (...) mettre les
édutiants en confiance (...) accepter les paraphrases » (Avant-propos, 2004, p.4). 62
« Le texte littéraire est un support d’apprentissage multiples (...) dans la construction de sesn plutôt que la
recherche d’un sens (...) » (Avant-propos, p.4).
P á g i n a | 2321
acabamos de citar, compreendemos que assim há uma dessacralização do texto literário,
atitude que pensamos muito positiva para o ensino/aprendizagem da leitura literária como
também a esperança de se trabalhar com o mesmo visando à ampliação e a formação de
mundo do aprendiz de línguas estrangeiras de nível intermediário e avançado.
O segundo manual é Le FLE par les textes (2009) que se destina “aos leitores de nível
A2 ou B1. Ele é caracterizado pelo uso de verdadeiros [grifo nosso] textos literários como
suportes pedagógicos” (2009, p. 3)63
. As autoras afirmam: “Possam [esses textos] darem o
gosto desta literatura [a francesa] tão rica (...) como sublinha o poeta François Cheng em uma
mensagem,‘uma indefectível conivência entre nós todos’(...)” (2009, p.3).64
A proposta
pedagógica visa ao público de aprendizes estrangeiros do curso de “descoberta da língua e da
civilização francesa” (2009, p. 3)65
.
Estão de acordo Bouchery e Taillandier (2009) com Blondeau, Allouache e Né (2006)
no que diz respeito à introdução da leitura de texto literário em aula de língua, porque
propõem o nível de ensino/aprendizagem fim do nível A2, ou seja, fim do nível iniciante.
Ainda podemos ler no prefácio do segundo livro didático analisado, a afirmação que
visa a dar com a leitura do texto literário o gosto aos aprendizes desta literatura ‘tão rica’ que
é a francesa. Compreendemos essa afirmação como um contrassenso no que diz respeito à
dessacralização do texto literário na sala de aula de língua estrangeira. Por um lado, porque o
texto literário toma forma novamente de sacralizado recaindo em um distanciamento da
leitura dos mesmos pelos aprendizes. Por outro, a ‘tão rica’ literatura francesa é apresentada
com uma proposta de exploração pedagógica que tem função de desenvolver apenas a língua
francesa com exercícios de preencher lacunas, de produção escrita, de ligar palavras e frases,
de reformular frases, entre outras. Gostaríamos ainda de ressaltar que François Cheng não é
poeta, ele é romancista, escritor de origem chinesa que adotou a língua francesa para sua
criação literária.
O terceiro manual em análise se intitula Livres ouverts (2008) e se destina a estudantes
de nível intermediário e avançado. Os textos são classificados por nível de dificuldade no
interior de cada tema, do mais simples ao mais complexo e correspondendo aos níveis B1
(talvez A2 para alguns), [grifo do autor do livro analisado] à C2 do Quadro Europeu Comum
de Referência. (2008, p.5). Pode-se ler no preâmbulo do manual que “o conjunto de textos
pode ser abordado desde o nível B1 se nos apoiamos em uma compreensão global e se não
quisermos que os estudantes compreendam cada palavra [do texto], o acesso ao prazer do
texto pode se fazer sem isto” (2008, p. 5)66
.
Podemos dizer que nesta proposta, todos os dois manuais analisados anteriormente e
este agora são compatíveis quanto ao nível e introdução do trabalho com textos literários em
aula de línguas, equivalendo a no mínimo fim A2. Quanto ao prazer da leitura, há uma
proposta de gradação de dificuldades sugerindo o que compreendemos por aprendizagem em
espiral, quer dizer, que uma aquisição depende da outra, formando juntas, um todo crescente e
viável, para a progressão da aprendizagem da leitura literária do aprendiz de língua
estrangeira. Livres ouverts (2008) apresenta uma exploração pedagógica voltada para o
63
« Destiné aux lecteurs de niveau A2 ou B1, cet ouvrage se caractérise par l’usage de vrais textes littéraires
comme supports pédagogiques ». (2009, p. 3). 64
“Puisse-t-il Donner à tous le goût de cette littérature si riche, ce fonds commun qui établit, comme souligne le
poète François Cheng, une ‘indéfectible connivence entre nous tous’ » (2009, p.3). 65
« (...) decouvrir la langue et la civilisation française » (2009, p.3). 66
« L’ensemble de textes peut être abordé depuis le niveau B1, si nous nous apuions sur une compréhension
globale, si nous ne voulons pas que les étudiants comprennent chaque mot du texte » (2009, p. 3).
P á g i n a | 2322
vocabulário e expressões. Os exercícios são do tipo questões abertas visando ao
desenvolvimento da compreensão, da análise textual e da escrita.
O quarto livro didático analisado é Littérature en dialogues (2006) que “é divido em
trinta capítulos escolhidos em função do interesse cultural e discursivo. A progressão não é
cronológica, mas respeita a complexidade do sentido dos textos” (2006, p.3)67
. Este livro
propõe aos aprendizes adultos e adolescentes de nível intermediário descobrir tanto os autores
quanto suas obras. O objetivo da obra “é de transmitir ‘o prazer do texto’ por um enfoque na
leitura viva (...)” (2006, p. 3)68
.
O livro didático acima mencionado apresenta uma proposta de exploração pedagógica
do trecho escolhido com bastantes pontos pedagógicos a serem trabalhados em relação aos
que analisamos anteriormente. A partir do “excerto da obra, apresenta-se o autor. Em seguida,
propõem-se ao aprendiz uma observação de elementos do discurso, os principais pontos
gramaticais e atos de fala. Quanto às atividades, elas são apresentadas em páginas duplas e
correspondem ao desenvolvimento das cinco competências como as compreensões escritas e
expressões escritas e orais e a cultural visando essencialmente, como o título do livro didático
indica a desenvolver a competência oral. As atividades que relevam da competência oral são
variadas e lúdicas. Além disso, temos a compreensão escrita que privilegia uma leitura global
visando destacar os personagens, a situação vivida por eles e suas ações. Na produção escrita,
o aprendiz fará jogos de escrita, de reescritas e de diálogos. Enfim, a competência cultural
chama a atenção do auditor/leitor sobre a universalidade de temas e a singularidade de vozes
literárias francófonas” (2006, p. 3).
Como podemos observar, de todos os manuais do ensino da língua francesa aqui
analisados, Littérature en dialogues (2006) é o que demanda mais do aprendiz e talvez
contribua mais para o desenvolvimento de suas competências. O lugar do texto literário é
voltado para o desenvolvimento das funções linguísticas e pragmáticas, mas também seus
aspectos específicos, como a literacia e ao despertar do prazer do texto, que é condição ímpar
da leitura literária.
Acreditamos que o professor de língua deva contribuir tanto no desenvolvimento das
competências linguístico-culturais como também no da competência da especificidade desse
tipo de textos, a saber, a literacia em seus aprendizes. Entretanto, por um lado, postulamos
que nem todo texto literário é o vasto mundo das representações culturais da língua
estrangeira estudada, e por outro lado, se pensarmos na proposta da perspectiva acional, o
texto literário servindo a todo tipo de exploração, a linguística pode prevalecer em detrimento
da cultural ou vice-versa, disso dependerá a exploração feita no trecho escolhido, da própria
temática tratada no texto, entre outros. Esses processos não diminuem em nada o valor do
texto literário, pelo contrário apostamos neles como meios de dessacralização desse tipo de
texto.
Observou-se que os autores especialistas no assunto evocam o ensino da língua pelos
textos literários limitando um tempo mínimo de contato com a língua estudada. Falam sobre a
necessária busca do prazer do texto durante sua leitura em língua estrangeira. Isso é ainda
para nós um ponto crucial, um ponto árduo. A ‘juissance’ ou a fruição do texto na leitura de
LE são inquietações importantes que nos fazem refletir sobre o caso.69
67
« La littérature en didalogues est divisée en 30 chapitres, choisis en fonctions de leur intérêt culturel et
discursif. La progression, non chronologique, respecte la complexité du sens des textes » (2006, p. 3). 68
« L’objectif de l’ouvrage est de transmettre ‘le plasir du texte’ par une mise en lecture vivante (...) » (2006,
p.3). 69 La Juissance ou le plaisir du texte est-il possibile en lecture de textes littéraires en langues étrangères ? (No
prelo)
P á g i n a | 2323
De fato, que posição adotar, como professor de FLE, na utilização desses livros
didáticos na sala de aula de língua?
3. Ensinar língua utilizando o texto literário como suporte na sala de aula: por um
letramento literário em nível intermediário e avançado
Para quê, como e quais os objetivos da utilização do texto literário como documento
autêntico na sala de aula de língua estrangeira? Nos níveis intermediários e avançados a
leitura e compreensão de textos literários são, e até que ponto, necessários à formação do
letramento multimodal do aprendiz?
O Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECRL, 2001) preconiza
a leitura de diversos tipos de textos. É necessário que o aprendiz se insira de modo mais real
possível na sociedade da língua estrangeira aprendida sendo os textos, orais ou escritos, os
veículos mais propícios e ao alcance dos professores e dos aprendizes.
Pelo letramento multimodal do aprendiz, em um determinado momento no
ensino/aprendizagem de línguas estrangeira, todo professor de língua estrangeira deveria
refletir sobre o lugar do texto literário em suas aulas de língua. Sendo o aprendiz um ser social
que vive em um ambiente onde diversos textos circulam, onde ele mesmo está acostumado
com leitura informativa, leitura injuntiva, leitura descritiva, leitura narrativa, leitura
argumentativa entre outras, aprender a ler e compreender textos orais ou escritos nos parece
ser primordial.
Entretanto, parece que há os professores que não se ocupam disto dizendo que a leitura
do texto literário deve ser ensinado apenas pelo professor de literatura. Será? Porém, como
ignorá-lo no ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras se temos, mesmo que de forma
escassa a presença de textos literários nos manuais de língua? Nesse sentido, o texto literário
não passa a ser também do cotidiano do professor de línguas estrangeiras? Não deveria ele
refletir sobre o uso do mesmo?
Além disso, considerando o valor dos textos literários para a formação pessoal do
aprendiz, urge pensarmos em um meio eficaz para fazer com que a leitura do texto literário
despertada pelos excertos vistos em unidades do manual de língua possa ampliar a
compreensão de mundo do aprendiz. Para tal, nada de sacralização, pois como podemos ler
em Cosson (2012, p. 28-29) “(...) a atitude sacralizadora da literatura lhe faz mais mal do que
bem. Mantida em adoração, a literatura torna-se inacessível e distante do leitor terminando
por lhe ser totalmente estranha. Esse é o caminho mais seguro para destruir a riqueza
literária”. Diríamos que é o caminho mais seguro para dificultar a construção de novos
sentidos, sejam eles linguísticos, pragmáticos, étnico-sócio-culturais do aprendiz no que
concerne ao ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras.
Um dos primeiros questionamentos que nos vem à mente é de se perguntar se o texto
literário tem um lugar certo nos cursos de língua? Uma resposta clara concernente a esta
pergunta advém das palavras de Bazin (2010), como testemunha uma nítida separação
persistente entre uma pesquisa convencida cada vez mais do lugar do texto literário na sala de
língua e de fontes pedagógicas que penam a integrá-la no uso do texto literário na sala de
língua nada é seguramente certo. Ora, a força de penar fica parecendo que o texto literário
deve estar presente custe o que custar nas aulas de línguas. Não estariam os pesquisadores
desta corrente, colocando o texto literário novamente no pódio do ensino de línguas
P á g i n a | 2324
estrangeiras? Há quem ainda afirme que não conhece nada de mais interessante que se
trabalhar com texto literário em curso de língua! Frase que resta um claro enigma. Que ideia
se tem, pois, profissionais que pensam assim do ensino de língua? Embora essa questão seja
interessante, mas como foge a toda concepção de ensino de texto literário em sala de língua,
ela não será tratada aqui.
A situação acima citada longe está ainda de ficar clara em relação aos procedimentos a
fazer com o texto literário na sala de aula. Entretanto, temos em mente favorecer o letramento
literário do aprendiz, é por isso que nos apoiamos em teorias da leitura visando a atender às
novas perspectivas do ensino de línguas estrangeiras nos dias de hoje. Assim, compreendemos
a formação de um aprendiz de língua estrangeira completa se o mesmo se inicie em diversos
tipos de leitura de textos durante sua formação. Para tal, o professor de língua deveria
compreender a colaboração da neurociência no que compete à aprendizagem da leitura.
Estudos da neurociência vêm se desenvolvendo ao longo de décadas e eles descobrem
cada vez mais o entrelaçamento do cérebro com o aprender, as dimensões neurobiológicas da
leitura e o valor da atenção, das memórias de trabalho explícita e implícita e a emoção, para
citar apenas esses pontos capitais no desenvolvimento da aprendizagem.
Como desenvolver um cidadão ativo na sociedade material e virtual de hoje, ou seja,
repleta de possibilidades de leituras verbais e não verbais? A psicologia cognitiva sempre se
preocupou em estudar o comportamento do aprendiz. Atualmente, a neurociência pretende
abarcar e unir suas descobertas favorecendo a educação. Segundo Consenza e Guerra (2011),
em se tratando da aprendizagem em geral, afirmam que nosso sistema nervoso – e o cérebro é
a porção mais importante desse sistema - atua de modo incisivo e constante em nossos
sucessos e fracassos. Na aprendizagem e no desempenho da compreensão em leitura não é
diferente, mesmo que a “aprendizagem seja um fenômeno individual e privado” (2011, p. 38).
Consenza e Guerra afirmam que para que se haja aquisição é necessário “que o treino
e a aprendizagem possam levar à criação de novas sinapses e à facilitação do fluxo da
informação dentro de um circuito nervoso” (2011, p. 36).
Mas o que nos interessa ainda mais é a aprendizagem de uma língua estrangeira e sua
compreensão em leitura. Em se tratando do aprendizado de uma segunda língua, podemos ler
nos autores que acabam de ser citados que a aprendizagem “é feita com perfeição nos
primeiros anos de vida, enquanto uma aprendizagem posterior geralmente não pode evitar a
presença de um sotaque evidente. Contudo, mesmo isso pode, em certos casos, ser corrigido,
mas acarreta um grande esforço adicional.” (2011, p.35). Interessante notar que os autores se
apegam ao fator ‘sotaque’ versus ‘aprendizagem perfeita’ (perfeita?). Seria este realmente um
enfoque convincente para a aprendizagem de uma segunda língua, nos dias de hoje, onde se
promove o pluriliguismo urgente para os cidadãos do mundo? A ausência do sotaque que
nada mais é que a presença da língua materna do aprendiz? Ele não é importante se
entendemos o que se fala. O aprendiz que tenha um sotaque deverá ser entendido como
alguém que apresenta defeito de aprendizagem? Assim, o que pensar dos diversos indivíduos
que falam fluentemente e corretamente uma língua estrangeira e que têm sotaques? Estariam
eles menos aptos à aprendizagem ‘perfeita’? O importante não seria fazer prevalecer “a
grande plasticidade no fazer e no desfazer, formar e consolidar as associações existentes entre
as células nervosas [como] base da aprendizagem, [que] permanecem, felizmente, ao longo de
toda a vida?” (2011, p. 36).
Na aprendizagem fatores como a atenção, o uso da memória entre outros são
fundamentais para a compreensão de comportamentos do aprendiz, ou seja, seus fracassos e
seus sucessos. Começando pela atenção, os especialistas dizem que existem a atenção reflexa
que é aquela em que alguma coisa nos chama atenção mais que outra. Há também a atenção
P á g i n a | 2325
voluntária que é aquela em que direcionamos nossos sentidos para encontrar o que perdemos,
por exemplo. A importância da atenção na aprendizagem é crucial, pois quanto mais atenção
de forma prolongada, sem se chegar à exaustão, melhor será para inibirmos os distratores. Isto
se dá no circuito orientador que é o que permite o desligamento de algo para nos ligarmos em
outro. Entretanto, no circuito executivo, nossa atenção é prolongada e esta é importante para o
bom funcionamento da aprendizagem consciente.
Na memória, a repetição é um dos fatores que mais se credita. Ela deve ser feita de
diversas formas e em intervalos de tempo necessários ao fortalecimento do interesse contínuo
do aprendiz. Há a memória explícita, que evoca conhecimentos adquiridos ou a lembrança do
que comemos no almoço e a memória implícita, pode evocar o ato de se escovar os dentes ou
andar de bicicleta, e além disso, a memória operacional antes conhecida como memória de
curta duração que é extremamente importante na organização de nossa vida cotidiana, nos diz
Consenza e Guerra (2011, p. 52). Entretanto, a memória sensorial e o sistema de repetição nos
revelam de grande importância na aprendizagem de línguas estrangeiras porque sendo:
“componentes essenciais da memória operacional, ela retém a informação e
processa seu conteúdo, modificando-o. (...) Ela lida com vários tipos de
informação como sons, imagens e pensamentos, mantendo-os disponíveis
para que possam ser utilizados para a atividade como a solução de
problemas, o raciocínio e a compreensão” (Conzensa e Guerra, 2011, p. 54).
Nossa proposta se fundamenta levando em conta os limites de tempo e espaço, um
trabalho voltado para a compreensão e leitura em língua estrangeira de textos literários
fazendo com que o professor possa unir sobre o mesmo texto trabalhado outros gêneros. Se se
faz uma análise textual de um dos trechos de romance ou teatro, por exemplo, dever-se-á
procurar uma adaptação fílmica a fim de favorecer o aprendiz com repetições de diferentes
formas acionando sinapses diferentes e incitando a motivação, a memória e a emoção.
Ensinar a leitura de texto literário para o desenvolvimento da competência linguístico-
cultural na perspectiva acional é incitar o aprendiz a ver e saber rever, a ler e saber reler
trechos de textos literários visando a aprofundar seu conhecimento de mundo. Para tal, corpus
deve ser constituído especificamente para isso. Sugerimos que partindo do texto verbal, uma
vez feita a leitura do mesmo, possa esta ser reforçada por uma leitura de imagens fixas e em
movimentos como cenas de filme caso o texto lido já tenha sido caso de adaptação fílmica
promovendo o letramento multimoldal no ensino de língua-cultura alvo.
5. Considerações finais
O professor de língua deveria, ao adotar o letramento multimoldal, modificar as
representações negativas da leitura do texto literário para promover uma aproximação maior
dos aprendizes com o mesmo. Porém, importante é que o formador compreenda os limites e
os prazeres que englobam todo trabalho de compreensão desse tipo de texto.
As representações da leitura do texto literário em língua estrangeira é objeto possível
de trabalho, é um documento tangível e acessível aos aprendizes. Para tal, a consciência
valorizante da literariedade do texto não deve ser negligenciada, mas sem que isto venha pô-lo
em um pedestal. Muito pelo contrário. Para nós, estes textos não são tidos como a “a
P á g i n a | 2326
hierarquia das disciplinas escolares” sem, contudo cair na lisonjeira armadilha intelectual de
leitura e compreensão de textos literários desde o nível A1.
A literacia poderá ser alcançada se o aprendiz adote em suas estratégias de leitura mais
o modelo onomasiológico, ou seja, de trabalho operando no tipo de elementos e alto para
baixo, ou seja, ele poderá fazer hipóteses interagindo com o texto evocando seu conhecimento
de mundo. Ora, o aprendiz de nível iniciante não estaria fadado, à grosso modo, à descoberta
de palavras de “sobrevivência” ainda, a desenvolver certa intimidade com a língua estrangeira
aprendida antes mesmo de fazer fruir toda e qualquer tipo de texto e de leitura? Nesse estágio
o leitor em formação está apenas elaborando seu modelo semasiológico no qual se
fundamenta na evocação de estratégias de baixo para alto, ou seja, elaborando seu modo de ler
em LE dando preferência à percepção das formas.
Trabalhos da neuropsicologia tem afirmado que o cérebro humano não pode captar
duas emoções ao mesmo tempo. Voltada esta afirmação na aplicação de nossa análise de
modelos de leitura citada acima, ou o aprendiz se concentra, nos vocábulos, ou buscará prazer
no que se está lendo. Um pouco como a lei física segundo a qual dois corpos não podem
ocupar o mesmo espaço. Diferentes, entretanto para os aprendizes de nível intermediários ou
avançados que podem com um pouco menos de esforço ‘sonhar’ com o prazer do texto
literário em LE, porque se espera que esse aprendiz munido de maiores possibilidades de
adoção de estratégias mais eficazes de leitura e compreensão evocando os dois modelos acima
citados promovendo uma leitura sociointerativa, levando o aprendiz a desenvolver sua
competência literária ou como chama Tagliante (2006, p. 173) “compétence lecticielle” que é
a mistura da competência literária com a cultural.
Por fim, neste artigo, privilegiamos a análise igualmente não apenas dos dois livros
didáticos escolhidos, mas também de quatro livros didáticos franceses que foram concebidos
especificamente para o ensino do texto literário em sala de língua; em seguida, refletimos
sobre a importância do letramento literário na sala de língua estrangeira em níveis
intermediários e avançados; em terceiro lugar, fizemos a análise do lugar dos textos literários
dos dois manuais escolhidos e sua exploração pedagógica e por fim, apresentamos uma
proposta de leitura literária na aula de língua estrangeira para níveis intermediários e
avançados, fundamentada meu pensar em um tema e diversos textos para trabalhá-los. Assim,
o letramento verbal e visual deve fazer parte integrante do ensino/aprendizagem de línguas
estrangeiras, ocorrendo o que chamamos de letramento multimodal.
6. Referências bibliográficas
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La question de la norme dans l’enseignement/apprentissage, Paris : Les Éditions de
l’école polytechnique, 2010.
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International, 2006.
BLONDEAU, N. ; ALLOUACHE, F. ; NÉ, M-F. Littérature progressive du français –
avec 600 activités, Paris : CLE- International, 2004.
BOUCHERY, C. ; TAILLANDIER, I. Le FLE par les textes, Paris : BELIN, 2009.
COSSON, R. Letramento literário – teoria e prática, São Paulo: Contexto, 2012.
P á g i n a | 2327
CONSENZA, R. M.; GUERRA, L. B. Neurociência e educação – como o cérebro aprende
- Porto Alegre: Artmed, 2011.
DE CARLO, M. L’interculturel, Paris: CLE – International,1998.
ESTÉOULE-EXEL, M-H ; REGNAT, S. Livres Ouverts, Grenoble, PUG, 2008.
TAGLIANTE, C. Pratiques de Classe, Paris: CLE – International, 2006.
ZARATE, G. Representations de l’étranger et didactiques des langues, Paris : DIDIER,
1986.
WINDMÜLLER, F. Français lamgue étrangère (FLE) – L’approche culturelle et
interculturelle, Paris : Belin, 2011.
P á g i n a | 2328
REPRESENTAÇÕES DO LUTO POR EXÍLIO VOLUNTÁRIO EM CARTAS PARISIENSES
DE LEÏLA SEBBAR E NANCY HUSTON: UMA LEITURA À LUZ DA PSICANÁLISE
DO LUTO
Rosiane XYPAS (UFCG)70
RESUMO: A literatura desde sempre se ocupa de temas essenciais à reflexão dos estados da
alma do ser humano. Ela sempre apostou pela escrita, interagir de modo ativo para conceber
temas universais, como o da morte, por exemplo. Este fenômeno causa dor e sofrimento,
gerando luto que segundo Freud é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração
advinda em seu lugar, como a pátria, a liberdade, um ideal etc. Temos como objetivo neste
estudo, analisar as representações do exílio voluntário causado por perda relacionada à pátria,
à língua-cultura materna. Sabe-se que o tema do exílio na literatura evoca a vida marcada pela
dor e pelo sofrimento por viver fora de seu país de origem, logo de sua cultura e língua
maternas. E quando o exílio não é forçado? Como se apresenta o luto para àqueles que
optaram por viver em outro país, falar em outra língua, vivenciar outra cultura? Para tal,
constituímos um corpus com correspondências de duas escritoras de expressão francesa, uma
da Argélia, Leïla Sebbar e outra do Canadá anglófono, Nancy Huston em Lettres Parisiennes
– Histoires d’exil (1986). Em nossa análise, observamos em suas correspondências,
representações de seus exílios voluntários predominantemente sugeridos como um sofrimento
necessário, um caminho-pretexto para se tornar outro e fugir do traumatismo que poderia
afetar o psiquismo do exilado. Seria a dor sentida, sublimada pelo poder da criação literária?
Apoiamo-nos na leitura destas cartas em teorias da psicanálise do luto em Bacqué (2000);
Freud (1917); Aron et al (2004); Di Folco (2011); Cotet e Robert (2010); Marson (2004).
PALAVRAS-CHAVE: Criação literária. Exílio voluntário. Literatura de expressão francesa.
Representações do Luto.
1. Introdução
A literatura desde sempre se ocupa de temas essenciais à reflexão dos estados da alma
do ser humano. Ela sempre apostou pela escrita, interagir de modo ativo para conceber temas
universais, como tempo, vida, morte dentre outros. Embora tenha a literatura e diversas
ciências humanas se ocupado do fenômeno da morte, suas representações no Ocidente
revelam uma história marcada de dor e sofrimento.
Ora, a falta de prazer pode desencadear comportamentos, usos e costumes culturais
originários de diversas sociedades ocidentais que afastam tudo que estiver relacionado com a
dor e o sofrimento ou em outros casos, esses elementos servem como objetos de inspiração
literária. Assim sendo, não só o tema da morte foi destacado na literatura ocidental como
70
Professora Adjunta de Língua e Cultura Francesa da Universidade Federal de Campina Grande
P á g i n a | 2329
também o do exílio que para muitos autores, sendo considerado um estado mental, é pior que
a morte.
Como se sabe existem dois tipos diferentes de exílios: o imposto e o voluntário.
Ambos provocam perda, quer dizer, luto.
Na literatura ocidental, encontram-se representações do tema do exílio que suscitam
dor, sofrimento e luto como também a reconstrução do ser exilado. Não buscam os escritores
expulsar a dor que os assola erguendo um mundo diferente do seu real reconstruindo assim
seu psiquismo abalado? Di Folco (2001, p.429) afirma que “o exilado é simultaneamente
considerado como sujeito da perda e do objeto perdido. Sujeito da perda, porque há sempre o
sentimento de ter deixado os seus, e objeto perdido porque vive a própria perda como
abandonado pelos outros”71
. Ora, esses sentidos não aludem à necessidade de superação do
luto? Sim. Porque não se pode viver eternamente na dor e no sofrimento.
Em se tratando de exílio forçado, são criadas associações significativas relacionadas
ao sentimento de luto advindo da perda da terra natal e da língua-cultura maternas. O exilado
vive diversas mortes simbólicas: a distância dos lugares vividos na infância, na adolescência,
a distância dos genitores e de toda a história vivida em seus primeiros anos de vida. No exílio
voluntário, a perda, a dor e o sofrimento também estão presentes, por esse sentimento
provocar dor pelo contato com o novo, que embora desejado faz sofrer o sujeito. E nós o
definimos como um mergulho no luto às avessas, justamente porque se vive na contramão dos
fatos: não é o luto um comportamento rejeitado na sociedade atual? E o que fazer para superá-
lo? Quais as representações do luto voluntário em Sebbar e Huston no corpus escolhido? É
nosso objetivo neste artigo, analisar as representações do exílio voluntário em Lettres
Pariennes – Histoire d’exil (Cartas Parisienses – História de exílio) de duas escritoras, a
saber, Leïla Sebbar e Nancy Huston à luz de teorias da psicanálise.
Do luto para o exílio voluntário, porque este está na contramão dos fatos. Enquanto
àquele é banido de nossas vidas, esse é desejado, aceito de modo desafiador mesmo que seja
doloroso. O exílio voluntário visto assim, se torna um contra senso porque na cultura
ocidental, elege-se a vida sem dores, não à busca de dores na vida. Mesmo que o exílio
voluntário evoque liberdade de escolha, não se pode ignorar um hiato existente entre a vida e
a morte, a vida/morte da infância, o pleno de um vazio do ontem, a presença de uma ausência
constante, a falta do outro e das coisas de nossa infância, daqueles primeiros tempos que nos
construiu, do conviver com a falta da pátria e com ela, a ausência da língua-cultura primeira
nas expressões de nossas emoções.
Isso é luto, e como tal deve ser ultrapassado porque quem perde, sofre, e precisa
superar o sofrimento para retomar a alegria de viver.72
Postulamos que o conhecimento do processo do luto possa ser importante para superar
a dor da perda. Em seguida, apresentaremos brevemente a evolução do léxico dos vocábulos
dor, luto e exílio através de vozes de alguns escritores, de dicionários etimológicos e do
dicionário da Morte. Enfim, os resultados das análises de Cartas Parisienses – história de
exílio.
71
Di Folco e all. Dictionnaire de la MORT, 2011, p. 429 : « (...) L’exilé est simultanément considéré comme
sujet de la perte et objet perdu. Sujeet de la perte, parce qu’il a toujours le sentiment d’avoir laissé les siens, et
objet perdu puisqu’il vit sa propre perte entant qu’abandonné par les autres. » (Tradução nossa todas as notas de
roda pé). 72
Em Representações da morte em Poemas de Cecília Meireles publicado na Revista Leia Escola da
UFCG/2010, no capítulo II, pp. 27-42, apresentamos as sete etapas do luto segundo Elizabeth Klüber-Ross.
Neste trabalharemos as etapas do Luto serão apresentadas segundo Bacqué e Hanus. O leitor se deseja poderá
fazer comparações entre essas etapas.
P á g i n a | 2330
2. O processo de superação do luto pelo exílio
As representações atuais da morte e do luto no Ocidente diminuem cada vez mais nos
nosso século. O sucesso, a vitória profissional, a evolução e o destaque do ser humano para ter
‘seu lugar ao sol na sociedade’ contribuem em larga e profunda escala para o isolamento do
fenômeno da morte e das perdas em geral. Assim a morte que gera luto, é recusada e expulsa
de nossas vidas.
Mas por que tanta aversão a este fenômeno que deveria ser considerado natural já que
todo ser vivo morre? São nas palavras de Bacqué e Hanus que poderemos compreender o que
se passa. Eles afirmam que:
“O século XX é o exemplo das extremidades atingidas essencialmente quando
as duas guerras mundiais de maneira mais latente na perda da religiosidade do
mundo, os genocídios acontecidos repetidas vezes e, sobretudo a
industrialização da morte com os nazistas”. (2005, p. 11-13)73
.
Como se pode ler, já no século XX, a repulsão do fenômeno em estudo existia. Porém,
sendo a morte um fenômeno que ocorre todo dia, único e solitário em sua essência, o ser
humano que perde um ente querido ou um ideal, vive em luto. Este processo é que se faz
importante compreender porque a morte em si não é nada e nada significa em comparação ao
que ocorre no psiquismo daquele que sofre a perda. Mesmo levando em conta que no
Ocidente a peste, as epidemias e as Guerras existiram infringindo nos ocidentais o pavor, o
pânico e a falta de controle e compreensão sobre o fenômeno da vida. Hoje em dia, essas
marcas ainda persistem, diríamos elas foram consideravelmente acentuadas como a evolução
das ciências humanas nas sociedades ocidentais e a evolução do individualismo em prol do
coletivo contribuindo bastante para o comportamento anti-luto que inflige no ser enlutado, a
falta de ânimo para viver abalando-o psíquico e fisicamente.
O exílio sendo voluntário ou não provoca luto suscitado na dor porque se caracteriza
como um tipo de perda de ideal. Ele não tem mais seu lugar de nascimento, sua pátria. Dito
em outras palavras, o exílio evoca sofrimento. E o processo do luto é visto como algo
fundamental para o bem estar e a aquisição do prazer de viver após a perda de um ente
querido ou de um ideal.
O fenômeno da morte provoca dor e sofrimento gerando luto que segundo Freud
abrange o sentido deste vocábulo. Ele afirma que luto “é a reação à perda de uma pessoa
amada”, mas também acrescenta que é a perda “de uma abstração advinda em seu lugar, como
a pátria, um ideal, a liberdade etc” (1919, p.10). Ou ainda nas palavras de Bacqué e Hanus
“existem lutos ligados à perda e não só à morte” (2005, p. 3-4)74
.
Na história do luto na sociedade Ocidental, a perda sendo seu sinônimo mais próximo
evoca dor e sofrimento, como também, tudo o que é da ordem do indesejado, rejeitado,
incompreensível. Em uma frase, a representação viva da dor do objeto de amor perdido. Por
73
« Le XXe siècle est l’emple des extremités atteintes essentielement quand deux guerres mondiales de manière
plus lente dans la perte de religiosité du monde, les genocides arrivent maintes fois et surtout l’industrialisations
de la mort avec les nazis » (2005, p.11-14). 74
« Il existe des deuils liés à la perte et pas seulement à la mort » (2005, p. 3-4).
P á g i n a | 2331
isso, tudo que nos faz lembrar luto não nos instiga ao convívio com o mesmo. Se pudermos
resumir o comportamento que representa o luto na sociedade atual, diríamos que ele é uma
atitude expulsa da vida dos seres humanos, como tudo, aliás, que nos atormenta. Todavia,
mesmo que seja o luto uma das experiências mais dolorosas e difíceis da vida, por mais
pungente que seja o trabalho a ser feito, o processo de superação do luto tem uma finalidade
única: Levar a vida do enlutado adiante, ou seja, fazer com que ele recobre o desejo de viver
novamente. E esse não está apenas relacionado com a morte de um ente querido, como
anteriormente mencionado, mas também ao que é ligado às perdas como à perda da pátria e da
língua-cultura materna, tema que privilegiamos refletir neste trabalho.
Antes do estudo das representações do exílio voluntário nas cartas das duas autoras
acima citadas, apresentaremos breves linhas sobre as palavras dor, exílio e luto na língua
francesa porque as mesmas agem com uma função sinonímica nos contextos aqui
apresentados.
3. Representações das palavras dor, exílio e luto na língua francesa
A palavra latina dolore quer dizer sofrer e está na origem da palavra luto e
especialmente na palavra dor. O fenômeno da morte ganhou proporções negativas
consideráveis porque não é mais visto como o processo natural, como um ciclo de fim da vida
como na Idade Média, mas como ruptura do sucesso da era moderna. Neste contexto, o luto
passa a ser uma carga emocional pesadíssima, uma aversão à dor que poderá impedir que o
enlutado redescubra a alegria de viver.
Na terminologia francesa, a palavra luto significa experiência de vida subjetiva. O
léxico francês da palavra em questão se amplia com a terminologia anglo-saxônica, tais como,
bereavement que é a situação tal qual existe. No entanto, ela não faz parte de investimento
afetivo do enlutado; grief é traduzido em francês por ‘chagrin’ que significa mágoa, mas que
em inglês é algo bem mais forte. De fato esse léxico descreve uma tristeza estonteante,
dolorosa e de arrependimento que nada pode consolar. Existe também o vocábulo mourning
que é a realização social do luto, ou seja, a dicotomia entre os rituais funerais e o (des)
investimento afetivo empregado ao objeto de amor perdido.
Acreditamos que o léxico em questão é valorizado e conota a finalidade de explicitar o
processo do luto, ou dito em outras palavras, de tomar consciência do mesmo. É preciso
compreender que cada momento serve para liberar o ser que sofre com a perda. Alexandre-
Bidon afirma que “no século XV, a igreja limita as manifestações ostensivas e dilacerantes em
prol da discrição do sentimento de dor” (2005, p. 21)75
, e restringindo as ações de
manifestação da dor e do sofrimento, o ser humano precisa reinvestir o objeto de amor
perdido. Senão, como suportar tal perda?
No Dictionnaire du littéraire (2004, p.214), podemos ler que este tema está “inscrito
nas raízes da literatura ocidental pela Odisseia de Homero”76
. Além disso, “o exílio finca uma
ligação indelével com a nostalgia, dor do país perdido e do desejo de retorno, presente assim
nas narrações bíblicas dos que foram deportados do Egito e da Babilônia pelos Hebreus”77
. O
tema do exílio é muito vasto e ele vai da deportação à emigração voluntária. Acrescente-se
75
« Au XVe siècle l’église, l’église limite les manifestations ostensives et dilacerantes du sentiment de la
douleuer » (2005, p. 21). 76
« L’exil est inscrit aux racines de la littérature occidentale, par l’Odyssée d’Homere » (2004, p.214). 77
« L’exil garde un lien indélébile, avec la nostalgie, doulaeur du pays perdu et désir du retour, présente aussi
dans les récits bibliques des déportations en Égypte et à la Babylone pour les Hébreux » (2004, p.214).
P á g i n a | 2332
igualmente que “o exílio é uma escolha e porque não dizer uma estratégia literária” que não
alivia o exilado em sua dor.
Assim, se sabe que a melancolia e o luto andam de mãos dadas, mas que evocam com
diferenças psíquicas muito importantes. Freud afirma que “no luto o mundo se torna pobre e
vazio, na melancolia é o eu que se torna vazio” (2005, p.22). É preciso que o ser enlutado
compreenda que há diferença no sentimento do objeto de amor perdido, o objeto real entre a
ignorância que há o melancólico confundindo-se com a perda de si mesmo! Além disso, a
atitude de ausência de aflição diante de uma perda é considerada por Freud como patológica,
os etnólogos que estudam o indivíduo enlutado em grupos diversos destacam a importância de
se fazer os rituais do luto e será Daniel Lagache (1938, 2005, p.23) que demonstra que “os
rituais do luto permitem uma separação estrita entre os vivos e os mortos e isso, limita tanto a
culpabilidade quanto a duração do luto”. E vemos aqui a conotação do vocábulo mourning em
inglês favorecendo a realização do rito social do luto para a superação da perda.
Antes de mais, lemos no dicionário Houaiss (2001, p. 190) que o termo exílio é um
substantivo masculino que significa “uma expatriação forçada ou voluntária, lugar onde vive
o exilado”. Já no dicionário Le Petit Robert (1986, p.730), o termo presente desde o século
dezessete, ou seja, em 1800, significa “expulsão de sua pátria e proibição de voltar para ela”.78
Vale ainda ressaltar que no dicionário francês, a palavra em questão apresenta em sua segunda
entrada o vocábulo exílio como “obrigação de permanecer fora de um lugar, longe de uma
pessoa de quem sentimos saudades”79
.
Como podemos observar, nas três significações citadas no parágrafo acima, o exílio está
relacionado a algo forçado existindo, entretanto, uma ocorrência conotando o sentido de
voluntário pode ser contada no meio das outras.
Na voz de diversos escritores que têm feito deste tema objeto de inspiração, o exílio segundo
o escritor francês Staël representa o que “é algumas vezes, pelas características vivas e
sensíveis, um suplício muito mais cruel que a morte”80
. A concepção de exílio deste autor se
inspira possivelmente dos “atenienses que já consideravam seus antecedentes históricos do
exílio, a saber, a instituição política do Ostracismo (487-416, a.v. JC), como um castigo “pior
que a morte”81
” Di Folco (2011, p. 429). O poeta e escritor francês Victor Hugo afirma que “o
exílio não é algo material, mas moral”82
.
Consideramos que as representações do exílio de Satäel e Hugo ganham outra dimensão que
as que lemos nos dicionários supracitados. Suas representações falam do exílio, não tendo
como único fato, o de uma expulsão do país natal. O que se destaca significativamente no que
acabamos de ler, é que o exílio é tido como um estado d’alma.
Na voz do escritor de expressão francesa, o afeganistão Atiq Rahimi, a definição do exilado é
como segue: “Uma noite, um homem o descobre procurando as chaves de sua casa sob um
poste. O desconhecido o ajuda, depois para e pergunta: “Você as perdeu aqui?” (...) Não, eu
78
Fundamentando-nos em uma bibliografia escrita em francês sobre o tema em questão, todas as citações em
língua francesa estarão em nota de roda pé sendo a tradução feita por nós. Le Petit Robert: EXIL: Expulsion de
qqun hors de sa patrie, avec la défense d’y rentrer; p. 730. 79
« Obligation de séjourner hors d’un lieu, loin d’une personne qu’on regrette » (Le Petit Robert, 1986, p. 730). 80
« L’exil est quelquefois, pour les caractères vifs et sensibles, un supplice beaucoup plus cruel que la mort »
(Le Petit Robert, 1986, p. 730 Staël). 81
Di Folco e all. Dictionnaire de la MORT, 2011, p. 429 : « Les Athéniens considéraient déjà l’antécédent
historique de l’exil, à savoir l’institution politique de l’Ostracisme (487-416 av. J.C.), comme un châtiment
« pire que la mort ». 82
« Lexil n’est une chose morale, c’est une chose morale » (Le Petit Robert, 1986, p. 730 Hugo).
P á g i n a | 2333
as perdi perto de minha casa. (...) Mas porque as procura aqui? Por que lá não há luz”.83
Essa
passagem nos faz entender que a busca é voltada para a superação de uma perda (irreparável?)
na vida do personagem desse romance. Diz o autor do trecho do romance em questão, que ele
adota a escrita em língua francesa porque “se tornou alguém incapaz de escrever em Persa”
sua língua materna. O exílio na voz de Eduardo Manet representa “a pátria [que] é a língua na
qual escreve”. A alusão à pátria vista nestes termos está vinculada à criação literária.
Podemos entender o termo exílio com o que acabamos de ler de duas maneiras: ou ele se
refere à pessoa que foi forçada a deixar seu país natal para viver em um país de língua-cultura
diferente da sua de origem, ou como àquela que imigrou para outro país voluntariamente.
Essas duas diferentes concepções do termo em questão apresentam um ponto essencial e
convergente: elas não isentam o exilado do luto causado pelo objeto de amor perdido e como
se trata de textos literários, a dimensão da criação literária está bem presente nos mesmos
como possivelmente um meio de poder ampliar a compreensão da dor da perda.
Em se tratando de compreender o processo do luto e fazendo uma ponte com o tema
do exílio tratado neste artigo, a criação literária se apresenta como um espaço favorável à
reflexão do trabalhão feito com estes temas. A psicanálise refletindo sobre o processo de
criação literária poderá ampliar a compreensão da consciência do processo de superação do
luto.
A criação literária levou Freud a refletir sobre a mesma e ele leu muitos autores
literários como os gregos, Esquilo (-525 – 456), Sófocles (-495 – 406) e Eurípedes (-480 -
406) citados em Introdução à psicanálise; Cervantes (1547 -1616); Shakespeare (1564-1616);
Diderot (1713-1784); Beaumarchais (1732-1799) citados em Interpretações dos sonhos.84
Evocando a criação poética segundo Freud, ela é comparada à brincadeira e à
realidade. Ele diz que a criança brinca e cria um mundo só para ela. O poeta escreve e cria seu
próprio mundo. A criança tem vontade de crescer, de se tornar adulto. O poeta escreve para
fazer crescer a criança magoada que existe dentro dele. A criança quando se torna adulta, não
brinca mais como antigamente e se desfazer do prazer que sentia quando brincava, é muito
doloroso, logo o adulto troca a brincadeira pela realidade e o poeta recria seu mundo de adulto
não tal qual é, mas como ele gostaria que fosse.
Ainda Freud dirá que “existe uma categoria de seres humanos aos quais, não um deus,
mas uma deusa severa chamada – A Necessidade – ordenou que falassem do que sofrem e do
que os fazem gozar” (2010, p. 14)85
. Assim sendo, compreendemos que contar e recontar suas
dores, seus sofrimentos, suas angústias é fonte criativa para diversos autores. Assim, o objeto
de temas de inspiração desponta profundamente de uma inquietação, de um mal estar vivido,
de uma dor sentida.
Ora, não seriam os desejos insatisfeitos forças das fantasias, e cada uma delas, não é
um modo de realizar um desejo, corrigindo a realidade insatisfeita?
Na criação literária, essa insatisfação é posta para o papel de modo já transfigurado,
um ‘jogo’ entre o presente, o passado e o futuro advindo de suas lembranças:
83
« Un soir, un homme le découvre en train de rechercher les clés de sa maison sous un lampadaire. L’inconnu
commence par l’aider puis s’interrompt. ‘Les as-tu perdues ici ?’ (...) [Il] les a perdues près de chez lui. Mais
porquoi les cherches-tu donc ici ? lui demande l’homme. – Parce que là-bas il n’y a pas de lumière. » In Le
magazine littéraire (Sept. 2009, p.12). 84
Fontes retiradas de Em guise du préface (No preâmbulo) do livro Freud et la création littéraire, 2010 dos
autores Pierre Cotet e François Robert da editora PUF. 85
“Eh bien, Il existe une catégorie d’êtres humains auxquels certes non pas um dieu, mais um déesse – la
Nécessité – a donné pour consigne de dire ce qu’ils souffrent et ce dont ils se réjouissent » (2010, p.14).
P á g i n a | 2334
“Uma forte experiência vivida atualmente, desperta no poeta a lembrança de
uma experiência vivida anteriormente, pertencendo as mais das vezes à
infância de onde emana agora o desejo que se crer na realização da sua obra
poética. Esta permite conhecer tanto os elementos da ocasião recente quanto
os elementos da antiga lembrança” (2010, p.19)86
.
Esse jogo da experiência presente mistura-se com algo já vivido evocando o passado, faz
surgir a escrita. De fato, o pai da psicanálise sempre esteve admirado pelos poetas, estes ‘seres
singulares’ que tiram não se sabem de onde, os temas que trabalham e a forma como
apresentam esses temas. Freud afirma:
Nosso interesse neste este tema só faz aumentar pela circunstância que o poeta
mesmo, quando o interrogamos, não nos dá nenhuma informação satisfatória,
e que este interesse não é absolutamente perturbado porque sabemos que a
melhor inteligência das condições de escolha dos temas pelo poeta e de
essência da arte da forma poética não contribuiria em nada a nos tornar poeta
(2010, p.11)87
.
Não é fácil compreender como acontece a criação literária segundo Freud que nos
deixa com sede de entendimento sobre este ato. Mas o trabalho feito com os temas em que o
poeta “os tira não se sabe onde”, nos remete à criação literária fundamentada nas teorias da
inspiração. Entretanto, quando afirma que “a melhor inteligência das condições de escolha
dos temas trabalhados pelos poetas e de essência da arte da forma poética não contribuiria em
nada a nos tornar poeta”, Freud nos abre frestas para ver a criação literária como fruto de um
labor!
É para escapar da morte e fugir de sua violência que o sujeito escolhe ou se infringe no
exílio que se não for superado poderá causar-lhe problemas em seu psiquismo. Em se tratando
do tema da morte, perda, luto e exílio, dom ou labor para àquele que cria? Como são
representados o exílio na voz das escritoras Leïla Sebbar e Nancy Huston? Como se apresenta
o trabalho de superação da perda causada pelos seus exílios voluntários?
Enfim, como se dá esse processo quando o exílio é desejado, procurado, optado como
uma buscar de outro modo de vida?
4. Representações do exílio em Lettres Parisiennes – Histoires d’exil - de Leïla Sebbar e
Nancy Huston
86
« (...) une forte expérience vécue actuelle éveille chez le poète le souvenir d’une expérience vécue antérieure
appertenant le plus souvent à l’enfance, d’où émane maintenant le souhait qui se crée son accomplissement dans
l’oeuvre poétique : l’oeuvre poétique elle-même permet de connaître aussi bien des élements e l’occasion récente
que des éléments du souvenir ancien » (2010, p.19). 87
« Notre intérêt à cet égard ne fait que s’accroître par la circonstance que le poète lui-même, lorsque nous
l’interrogeons, ne nous donne aucun renseignement satisfaisant, et cet intérêt est nullemnet perturbé par ce que
nous savons : la meilleure intelligence des conditions du choix des thèmes par le poète et de l’essence de l’art de
la mise en forme poétique ne contribuerait en rien à faire de nous-memes poètes » (2010, p.11).
P á g i n a | 2335
As representações do tema do exílio voluntário serão apresentadas por dois pontos: (1) a
escolha da língua da escrita e sua importância da criação literária e (2) as representações da
perda da pátria.
O que uma escritora nascida na Argélia e a outra no Canadá anglófono têm em comum?
As duas escolheram escrever em língua francesa para contar sua dimensão nostálgica talvez
melancólica, de tristeza e de solidão representativa da dor que envolve seus exílios
voluntários mútuos.
Escrever em língua francesa para Leïla Sebbar vai de encontro à língua paterna, a árabe,
que não fala. Seus pais são bilíngues: mãe francesa e pai argelino. No entanto, escolheu a
língua francesa para escrita literária adotando o sobrenome de seu pai Sebbar que significa
‘noite paciente’ com o intuito – diz ela – “de se tornar uma escritora francófona”. Embora
tenha vivido vinte anos na Argélia, recusou aprender a língua árabe porque “teria o mesmo
efeito que fazer análise”. Mas se sente dividida, multiplicada. A sua relação com a escrita
parece ser compulsória, pois escreve em tudo que vê, em todos os pedacinhos de papeis em
branco como “guardanapos, papel que forra a mesa do bar, notas de compras e até em couro
de bolsas”. Ela sempre se sentiu sozinha no colégio onde estudava porque as “filhas dos
colonizadores” se recusavam a falar com ela.
A sua escrita “vem do silêncio do exílio na qual transforma, reinventa os lugares onde
vive por onde quer que viaje”. Leïla também tem as raízes francesas da parte do marido e
filhos e se define como uma “croisée” “misturada” mestiça. Seu exílio é representado de
diversas formas como “algo móvel, um objeto tal como uma bolsa, os lugares públicos” que
“encarnam nela o próprio exílio”. No entanto, esse exílio é necessário para sua escrita, pois
nele retrata outros tipos de exílio como os femininos. Diz ainda que sua condição de exilada
começou “logo na casa de estado francês onde morava com seu pai que era professor do
ensino fundamental”, e que “sua condição de ser filha de um árabe professor de francês era a
manifestação do seu exílio na cultura do Outro, do colonizador, longe da família em ruptura
da religião e de costumes”.
A mãe de Leïla vivia em exílio geográfico e cultural porque “deixou sua família de
agricultores de Dordogne para seguir um árabe em seu país distante”. Ela diz que isso a fez
herdar deste duplo exílio parental que qualifica de “disposição ao exílio” significando também
“solidão e excentricidade” como “as professoras de ensino fundamental, as solteiras, as
guerreiras e as prostitutas em exílio de sexo, de seu meio social, de suas terras natais, de suas
religiões”. Leïla conta ainda que a ilusão da ancoragem, do enraizamento da Argélia, ela não
tem. Seu sentimento de exílio nasce também quando se sente que é posta de lado, à margem, à
distância – assim é como se sente, desde sempre e hoje. Estar perto do seu eu que pensa no
exílio, que reflete sobre ele, da consciência da perda da terra natal de uma terra evidente e
simples é “remoer a memória para encontrar o exílio de carta em carta” e isso é “muito
doloroso” é na verdade, dirá a escritora, “expor-se sem defesa a todo tipo de maldade”.
Enfim, se pudermos resumir as representações do exílio voluntário em Leïla Sebbar
seria com suas próprias palavras: “(...) Guardei o nome de meu pai para escrever na minha
língua materna, o francês, e me inscrever na literatura francesa como escritora francesa. (...)
Se eu falo do exílio, é que é o único lugar de onde posso tanto contradizer como dividir... é
tão complexo que fico com raiva de mim cada vez que simplifico. Se eu falo do exílio, eu falo
também de cruzamento de culturas”. Para concluir, seu exílio é sua terra de inspiração, de
lirismo, de emoção, de escritura porque como ela mesma afirma que é “sempre na ficção que
se sente livre de pai, de mãe, do clã, de dogmas, mas também se sente um ser forte graças à
carga do exílio”.
P á g i n a | 2336
Quanto à adoção da língua francesa na escrita por Nancy Huston - que é de pai americano
e de mãe canadense anglófona – ela se dá pela primeira vez com a experiência de escrever um
artigo para uma revista francesa. Porém, antes disso, ainda na adolescência, conversava em
francês com seu irmão criando um mundo só deles porque seus pais não sabiam francês. Nas
primeiras Lettres Nancy deixa bem claro que não quer se parecer com uma “Americana em
Paris, não quer cair neste clichê”. Sua relação com a escrita passa primeiramente pelo
manuscrito, depois ela datilografa tudo, ela não anota nada do que se passa na cabeça para
criar suas histórias. Nancy Huston afirma guardar uma nostalgia da infância de uma família
vasta que nunca teve. Como não tem mais casa natal, sua casa agora é Paris, afirma. Seu pai e
sua mãe vivem cada um em países diferentes, onde ela nunca viveu. Quando deixou seu país
natal, era adolescente e diz “que não tem um país certo pelo qual sinta remorsos.” Aos 17
anos, deixa sua família com “um enorme alívio”. Embora sofresse de solidão, estava contente
“de poder fazer escolhas”. Ela falava com seu irmão que mora no Quebec em francês para se
exilar de sua língua materna. As lembranças de infância de Nancy lhe fazem sofrer e são
referentes ao sentimento de exclusão e de solidão. Ela preferia deste modo os livros porque
entre sete e quinze anos sempre se sentia sozinha. O livro e a religião foram um refúgio para
Nancy. Ela afirma que deste modo “nunca esteve no exílio, mas no ecletismo”. Ainda criança,
acontece o casamento de seu pai com uma alemã católica fervorosa. Mas aos olhos da
sociedade, a mulher do seu pai era excomungada porque se casou com um divorciado. E
admirando sua madrasta afirma: “Jamais teria renunciado por ninguém neste mundo o que
mais amo no mundo, que é escrever”. Ainda relembrando sua infância, a escritora diz que
“sentiu a rejeição de suas coleguinhas da escola que a esnobavam porque a madrasta dela era
católica em um vilarejo protestante”.
Outras rupturas aconteceram na vida dessa escritora, como por exemplo, a ruptura com a
fé, logo após uma aula de filosofia. Especialmente, porque antes disso tinha sentido uma
grande decepção com o padre da igreja “por ele não ter escutado nada de minha confissão que
nomeei de litania desatada por meus malfeitos”.
Sua relação com a língua francesa vai mais além. Para Nancy ter a nacionalidade francesa
- ela e seu marido - é sonhar os dois em línguas diferentes, contar tudo em uma terceira
língua. O francês se torna assim a língua do amor entre eles. Além disso, relata em Lettres que
seu lado francês “vem do fato que ela tem uma criança agora e deve ter suas relações
obrigatórias com a escola na qual ignorava totalmente o sistema”.
Conta que por volta doa anos 1973 e 1975, começa o fenômeno de mudança de uma
língua a outra, ou seja, a transição do inglês para o francês. Ela diz que foi lá que o verdadeiro
exílio começou. Voltada para o seu bilinguismo, Nancy Huston conta a memória da perda de
uma língua, possivelmente de sua língua materna. Seu ato de escrever é para “verificar a
existência uma da outra (...) em um combate na busca de seu verdadeiro eu”. Ela confessa que
depois de dez anos vivendo na França, o vocabulário de sua língua materna começa a se
sufocar e que no lugar de se tornar perfeitamente bilíngue, ela se sente “meio-língue”. E
conclui sua relação com a escrita assim: “Para a página em branco, parada de morte,
transforma-se de repente, em um campo cheio de possibilidades”.
Sobre o exílio afirma que “os verdadeiros exilados são aqueles que possuem um
sentimento de pertença a um determinado país, e que embora o seu exílio não seja deste tipo,
diz que ele não é superficial, que não é menos real por isso, ao contrário à medida que o
tempo passa, ele é mais real que nunca”. A noção do exílio vem ligada ao do sentimento de
fugacidade da vida e dos valores representados das coisas na vida na América, fazendo
comparação com os Marrocos, por exemplo. Seu exílio lhe molda o ser: “é que viver no
estrangeiro me dá civilidade, sobretudo no que concerne ao falar alto”, comparando-se aos
seus conterrâneos quando os veem em Paris. Voltar para a casa dela, a América, é encontrar a
P á g i n a | 2337
“Ambivalência” e a autora escreve com a letra “A”. Assim, Montreal, Boston e New York
“são sempre uma camada fina de estranho assim que chega lá”. Seu exílio se dá igualmente
quando “ela esbarra com a língua materna e com sua pátria e tem uma sensação que se
sufoca”! Ela diz que “sente ânsia de vômito do seu país, náusea”. Mas em seguida diz que
“seu exílio é está com os seus, abraçá-los com uma tristeza sincera, depois vem o pior: sempre
renovar a amizade, o amor, sempre abrir as portas sabendo que elas se fecharão novamente
daqui a pouco”.
O sofrimento descrito em Lettres por Nancy, mistura-se com a partida da América, seu
coração se despedaça de viver sua vida em um entre-dois e afirma que “é sua língua materna
lá na América que a faz encontrar com sua família, que revive seu eu de infância, depois ela
vai embora”, e esse exílio doloroso aumenta quando volta para Paris, e chegando lá, iz a
autora em Lettres “odeio a França, os franceses e seus sotaques por contraste com o do
Quebec”. Mas para ela de fato, “tudo está certo e no lugar certo”. O seu comportamento muda
incluindo o corporal, porque se sente “invadida de um ressentimento forte porque não é uma
alegria as idas-e-vindas de um país a outro e tudo isso é pesado para mim”, afirma.
Para concluir, sugerem as representações do exílio de Nancy Huston um vínculo de
uma estreita relação na escrita em língua francesa. Seu estado d’alma é lapidado pelo viver
em luto cada dia e superá-lo pela criação poética porque é “a linguagem que lhe dá fôlego
para se distanciar das catástrofes da vida cotidiana.”
5. Considerações finais
O trabalho do luto ou a elaboração da perda analisada nas correspondências de Huston
ou Sebbar está fundamentado no reinvestimento afetivo, intelectual ou social através de seus
escritos. Dito em outras palavras, o recurso à criação literária as ajuda a reconstruir o mundo
interior das mesmas. Além disso, entendemos que a perda do país natal mesmo voluntária
provoca ruptura do objeto de amor perdido, logo sofrimento e vontade de superá-lo ampliando
seu entendimento graças ao reinvestimento pela arte sublimando-o, pois a verdadeira arte
poética nos faz refletir sobre “como o poeta usa sua técnica de superação da dita repulsão que
certamente tende a fazer com que as barreiras se levantem entre cada eu individual e os
outros” e venha a “liberar as tensões da nossa alma” (2010, p.20-21).
Superar o luto, reinventando a vida requer domínio e certa intimidade com a linguagem.
Postulamos que o texto literário é pleno de ‘nós’ e de ‘eus’ que falam em várias línguas, em
vários níveis. Ele passa antes por todos os domínios e mexe com os sentidos, indo além do
que define dicionários sobre qualquer tema que trate. E o mistério fica, e cala fundo porque
não se entende que a criação literária sem pretensão alguma assume lugares distintos desde
muito tempo no psiquismo humano, ajudando os homens a compreenderem e a representarem
a si mesmo e aos outros em todas as épocas da humanidade.
Para concluir, dissemos que o tema do exílio voluntário é uma contradição nos termos
e na voz dessas escritoras, o tema recriado, nasce de outro modo: ele é fonte de entusiasmo
criador, fonte de prazer, abertura ao novo e alento para encarar suas próprias dores. Elas
parecem realmente ‘brincar’ com as palavras, como se a vida real de ambas se tornassem ali,
uma brincadeira de gente grande, de gente capaz de fazer da linguagem um ato construtivo de
substituição da dor, causado pelo incômodo da perda.
6. Referências bibliográficas
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ARON, P. ; SAINT-JACQUES, D. e VIALA, A. Le Dictionnaire du litteraire. Paris : PUF,
2004.
BACQUÉ, M-F. Le Deuil à vivre. Paris : Éditions Odile Jacob, 2000.
BACQUÉ, M-F. ; HANUS, M. Le Deuil – Que sais-je ? Paris : PUF, 2000.
COTET, P. ; ROBERT, F. Freud et la création littéraire, Paris : PUF, 2010.
DI FOLCO (Org). Dictionnaire de la MORT, Paris: Editora Larousse, 2011.
FREUD, S. Luto e melancolia, Rio de janeiro: Editora IMAGO, 1917.
HUSTON, N.; SEBBAR, L. Lettres Parisiennes – Histoires d’exil, Paris : J’ai Lu, 1986.
XYPAS, R. O processo do luto em poemas de Cecília Meireles. In Leia Escola – Revista da
Pós-Graduação em Linguagem e ensino da UFCG, v. 10, n1 2010, pp. 27 – 42.
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AS REPRESENTAÇÕES CULTURAIS FRANCESAS EM DUAS UNIDADES
DIDÁTICAS DOS MANUAIS ALORS? (2007) E ÉCHO (2010)
Heloisa Costa de Oliveira – UFCG88
Rosiane Xypas – UFCG89
RESUMO: Os estudos das representações culturais adviram dos pressupostos teóricos das
representações sociais de Moscovici (1984) na obra organizada pelo mesmo, intitulada
Psicologia Social. Em um dos capítulos da referida obra, Jodelet (1984) traz o conceito de
representação social que designa um fenômeno de produção dinâmica, cotidiana e informal de
conhecimento, um saber de senso comum de caráter eminentemente prático e orientado para a
comunicação, a compreensão ou o domínio do ambiente social, material e ideal de um
determinado grupo. De maneira geral, ele designa uma forma de pensamento social. Essa
reflexão sobre os estudos das representações sociais influenciaram, entre outros campos do
conhecimento, os estudos das representações culturais que são, de maneira geral, as imagens,
ideias e juízos que temos sobre determinada sociedade. No presente trabalho desejamos saber
que tipo de representação cultural está presente em duas unidades dos livros de Francês
Língua Estrangeira (FLE) Alors? (2007) e ÉCHO (2010) – através das imagens das seções de
cultura – e de que forma a cultura da língua materna dos aprendizes se aproxima ou se
distancia da cultura da língua alvo. De acordo com os resultados da nossa pesquisa,
observamos que a representação cultural existente nos manuais é relativa à do povo francês e
dos povos francófonos que habitam o continente europeu e a América do Norte (Canadá),
excluindo as representações culturais dos povos francófonos que habitam o continente
africano. Há também o resgate da cultura materna diante dos estudos da cultura alvo. Para tal,
apoiamo-nos nos estudos teóricos de Moscovici (1984), Aron; Saint-Jacques e Viala (2004),
Cuq (2003), Blanchet e Chardenet (2011), Neiva Júnior (1994), Dionísio (2011) e no Quadro
Europeu Comum de Referências (2001).
PALAVRAS-CHAVE: FLE. Manuais. Representações culturais.
1. Introdução
De modo geral, sabe-se que, dentre as tantas ferramentas que podem e/ou devem ser
utilizadas no ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira, o livro didático, na maioria dos
casos (sobretudo no contexto exolíngue), é peça base para o desenvolvimento da língua
estudada. A maior parte dos professores de Língua Estrangeira (doravante LE) apoia-se nesses
suportes em busca de uma progressão do conteúdo. Os estudantes, entre outros aspectos,
buscam no livro uma abordagem mais didática, ou seja, mais operacional do assunto a ser
88
Aluna do curso de Licenciatura em Letras, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-
mail: [email protected]. Este trabalho é vinculado ao projeto de pesquisa PIBIC/CNPq/UFCG 2012-2013. 89
Professora, Doutora, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-mail:
P á g i n a | 2340
estudado. Essa seria uma das razões pelas quais a escolha do suporte é tão importante na
aprendizagem de uma LE.
O ensino/aprendizagem do francês como língua estrangeira (doravante FLE),
sobretudo em um contexto exolíngue e para o nível iniciante, visa igualmente ao
conhecimento da cultura/civilização do outro fazendo inevitavelmente um apelo ao próprio
conhecimento de mundo do aprendiz. Assim, consideramos importante o ensino de
língua/cultura como algo que deve ser desenvolvido, destacando os modos de vida, os
costumes e hábitos dos povos da língua alvo desde o nível elementar A1, segundo o Quadro
Europeu Comum de Referência para línguas (doravante QECRL).
Nós optamos por essa temática como objeto de estudo, por considerarmos que língua e
cultura são fatores indissociáveis que se fazem presentes para um bom desenvolvimento das
quatro habilidades de base, a saber: leitura, escuta, fala e escrita que todo o
ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras deve ter. Além disso, a dimensão intercultural
pode se fazer presente nessas quatro habilidades, podendo ampliar o conhecimento de mundo
do aprendiz.
Dessa maneira, tivemos como ponto de partida para a realização do presente trabalho
os estudos das representações sociais de Moscovici (1984) na obra organizada pelo mesmo,
intitulada Psicologia Social, uma vez que os pressupostos teóricos das representações sociais
contribuíram de maneira relevante para os estudos das representações culturais. Em um dos
capítulos da referida obra, Jodelet (1984) traz o conceito de representação social que designa
um fenômeno de produção dinâmica, cotidiana e informal de conhecimento, um saber de
senso comum de caráter eminentemente prático e orientado para a comunicação, a
compreensão ou o domínio do ambiente social, material e ideal de um determinado grupo. De
maneira geral, ele designa uma forma de pensamento social.
Essa reflexão sobre os estudos das representações sociais influenciaram, entre outros
campos do conhecimento, os estudos das representações culturais que são, de maneira geral,
as imagens, ideias e juízos que temos sobre determinada sociedade. No presente trabalho
desejamos saber que tipo de representação cultural está presente em duas unidades dos livros
de Francês Língua Estrangeira (FLE) Alors? A1 (2007) e ÉCHO A1 (2010) – através das
imagens das seções de cultura – e de que forma a cultura da língua materna dos aprendizes se
aproxima ou se distancia da cultura da língua alvo. Em seguida, apresentamos uma análise
descritiva e interpretativa de como são abordados os aspectos culturais da sociedade estudada
através de textos não verbais, ou seja, gráfico, fotografia, ilustração, desenho etc.
Os livros didáticos Alors? A1 (2007) e ÉCHO A1 (2010) foram escolhidos com base
nos seguintes critérios: ser de nível iniciante; apresentar mais imagens ou textos não verbais
do que textos verbais e sugerir representações culturais da França, dos franceses e dos povos
francófonos. As seções Compétence culturelle e Civilisation, que correspondem
respectivamente aos suportes didáticos citados logo acima, são compostas de textos,
atividades e imagens que favorecem a análise temática em questão tendo em vista que esses
elementos podem incitar o aprendiz iniciante a fazer uma ponte com sua língua/cultura
materna e que foram objeto de nossa análise. Entretanto, antes de apresentar os resultados das
análises das rubricas, faz necessário compreender o que significam os vocábulos
representações, cultura e civilização. Ora, o que seria cultura e civilização?
Os autores J. Girardet e J. Pécheur do livro ÉCHO A1 (2010) entendem a palavra
Civilisation como “os saberes e o saber-fazer linguísticos e não linguísticos que permitem
uma adaptação em uma sociedade francófona”. Já os autores Marcella di Giura e Jean-Claude
Beacco do suporte didático Alors? A1 (2007) afirmam que a rubrica Compétence culturelle dá
P á g i n a | 2341
informações pertinentes sobre a vida na França a fim de refletir sobre as questões de
sociedade e as relações entre as pessoas.
Postulamos que estudar cultura é poder fazer análise comparativa da língua alvo com a
língua materna, é apreender a vida de outra forma e compreender outros modos de vida.
Buscamos, assim, verificar se os textos verbais e não verbais encontrados nas rubricas fazem
ou não alusão à cultura do aprendiz para que este possa ter uma sensação de pertencimento
em relação à cultura da língua alvo aprendida.
Além da verificação citada acima, esta pesquisa visa a responder a seguinte questão:
Como a sociedade francesa e as francófonas são representadas nas segundas e terceiras
unidades Compétence culturelle do Alors? A1 (2007) e Civilisation do ÉCHO A1 (2010)?
Para tal reflexão e análise apoiamo-nos nos estudos teóricos de Moscovici (1984),
Aron; Saint-Jacques e Viala (2004), Cuq (2003), Blanchet e Chardenet (2011), Neiva Júnior
(1994), Dionísio (2011) e no Quadro Europeu Comum de Referências para as Línguas (2001).
2. Procedimentos metodológicos
Nosso corpus é composto por duas unidades dos livros didáticos de FLE: Alors? A1
(2007) e ÉCHO A1 (2010). Esta pesquisa apresenta as análises descritivas das imagens de
modo denotativo e conotativo e faz uma comparação intramanual e extramanual dos
resultados a partir dos itens dos suportes didáticos escolhidos. Ressaltamos os elementos que
mencionam direta e/ou indiretamente a cultura de língua francesa, e verificamos se elas levam
em conta a cultura do aprendiz interpelando-o em sua reflexão sobre a cultura aprendida.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa e interpretativa baseada em teorias advindas da história
das metodologias do ensino de línguas estrangeiras.
Os resultados desta pesquisa serão apresentados em duas partes: a primeira, concerne à
evolução dos conceitos do termo representação; e a segunda, o resultado do estudo dos textos
verbais e não verbais encontrados nas rubricas dos suportes didáticos pesquisados.
Analisamos um total de quatro unidades (duas unidades de cada livro didático) em que seu
conteúdo (as imagens das mesmas) será apresentado nesse artigo.
3. Considerações sobre o conceito de representações culturais
Buscando entender o conceito da palavra representação – no sentido de reprodução em
imagem ou símbolo sobre determinado grupo social – optamos por analisar o termo em
questão tanto sob o ponto de vista das didáticas de línguas estrangeiras como da pesquisa
desenvolvida pelo psicólogo social Serge Moscovici (1984), uma vez que o vocábulo tal
como hoje é entendido, foi desenvolvido pelo referido autor.
O objetivo dos estudos de Moscovici (1984) como entendemos era redefinir o campo
da psicologia social, estudando a representação social da psicanálise, enfatizando, entre outros
aspectos, o seu poder de construção do real. De acordo com o autor citado acima, para
entender as relações humanas, é necessário fazer uma análise do coletivo, verificando assim a
troca de conhecimentos que a representação social é capaz de promover dentro do grupo.
Moscovici ainda afirmou nos seus estudos que existem duas formas de representação social: a
ancoragem e a objetivação. A primeira faz referência às ideias abstratas que ganham um
formato real, já a segunda desenvolve novas imagens de um assunto e propicia a criação de
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novos conceitos a partir de um tema. É válido lembrar que o estudo da representação social se
mostra importante para compreender o avanço da sociedade e o comportamento do indivíduo
inserido em um grupo.
Uma de suas principais colaboradoras na obra Psicologia Social, Jodelet (1984) traz o
conceito de representação social que designa um fenômeno de produção dinâmica, cotidiana e
informal de conhecimento, um saber de senso comum de caráter eminentemente prático e
orientado para a comunicação, e ainda, a compreensão ou o domínio do ambiente social,
material e ideal de um determinado grupo. De maneira geral, o conceito designa uma forma
de pensamento social. Essa reflexão sobre os estudos das representações sociais
influenciaram, entre outros campos do conhecimento, os estudos das representações culturais
que são, de maneira geral, as imagens, ideias e juízos que temos sobre determinada sociedade.
No livro “Política I”, Aristóteles defende a ideia de que o homem é um animal social.
Ele explica sua afirmação indicando que a relação entre os homens é natural, pois o ser
humano necessita de outras pessoas (ou de outras coisas) para se tornar pleno, isto é, o
homem enquanto cidadão só existe se estiver integrado em uma sociedade.
Podemos acrescentar, ainda, que somos um ser social não apenas porque dependemos
de outros para viver, como destacava Aristóteles, mas porque os outros influenciam na
maneira como convivemos com nós mesmos e com aquilo que fazemos. Diante desse
contexto, no qual o homem é um ser inerente à sociedade e suas ações são influenciadas pela
maneira como os outros o vê, é importante compreendermos como se dá a construção dessas
percepções, atribuições, ideias, expectativas e como elas são mantidas no imaginário social.
Por que, diante de um contexto cultural, o francês é considerado chique? O italiano,
expansivo? O brasileiro, festeiro? Como essas “imagens” são construídas e porque elas se
tornam tão socialmente enraizadas ao ponto de serem reproduzidas por tanto tempo?
Nesta pesquisa, embora não pretendamos responder a todas essas questões – de fato
instigantes – elas contribuem para o desenvolvimento de nossa reflexão sobre o tema em
estudo. Para entender melhor esses fenômenos, os estudos das representações sociais parece
ser um caminho promissor para ampliarmos nossa compreensão sobre o referido assunto, na
medida em que esse campo do conhecimento investiga como se formam e como funcionam os
sistemas de referência que utilizamos para classificar pessoas e grupos e para interpretar os
acontecimentos cotidianos de cunho cultural: modo de vida, costumes, hábitos etc.
Delimitando os estudos das representações sociais para o campo dos estudos culturais,
verificamos a importante contribuição de alguns autores franceses nas didáticas do ensino de
línguas-culturas estrangeiras. Assim, a palavra representação na entrada do dicionário de
Aron, Saint-Jacques e Viala (2004), nos remete imediatamente a palavra imagem,
demonstrando assim, a relação íntima entre esses dois vocábulos. Entre outros significados,
imagem, para os referidos autores são esquemas coletivos de pensamento que estruturam o
imaginário.
O conceito de representação, segundo Cuq (2004), trata-se de uma noção transversal
que se encontra em inúmeros domínios no seio das ciências humanas e da sociedade que a
adquire, bem como na sociolinguística.
Didier de Robillard (apud BLANCHET e CHARDENET, 2011) afirma que um ser
não constrói representações sobre o que lhe é indiferente. As representações dependem de
nossas antecipações, de nossa maneira de ver, uma vez que elas mesmas tratam da nossa
história, da nossa experiência. Nesse sentido, a representação faz parte de uma página da
história e constitui, assim, uma construção prévia de referências, de categorias que
poderíamos ter a necessidade de agir ou intervir sobre o mundo.
P á g i n a | 2343
Podemos afirmar, diante de tais conceitos que a representação cultural constitui-se
como um campo do conhecimento que está inserida no âmbito dos estudos das representações
sociais, portanto, as mesmas encontram-se intimamente relacionadas. Falar sobre
representações sociais é também falar de representações culturais.
Dessa maneira, trataremos em capítulo específico do presente trabalho sobre análise de
imagens, quais representações culturais estão presentes nos livros didáticos ora estudados.
4. Aspectos socioculturais segundo o Quadro Europeu Comum de Referências para
Línguas (QECRL)
A imagem segundo Neiva Júnior (1994, p.5) se caracteriza como “[...] infinitamente
mais expressiva [que as palavras], mais fiel ao fato do que nosso discurso”. Num tempo onde
a tecnologia não era acessível da forma como é hoje, percebíamos que a representação de
mensagens era feita, sobretudo, através de palavras. Nos dias atuais, não é possível conceber
uma interação social sem relacioná-la a imagem, visto que
Quando falamos ou escrevemos um texto, estamos usando no mínimo dois
modos de representação: palavras e gestos, palavras e entonações, palavras e
imagens, palavras e tipográficas, palavras e sorrisos, palavras e animações
etc (DIONÍSIO, 2011, p. 139).
Devido à importância que os elementos visuais têm no nosso cotidiano, analisaremos
as imagens que compõem as unidades dos suportes didáticos referentes à abordagem das
seções de cultura. Nosso objetivo é identificar se elas apresentam os requisitos concernentes
ao conhecimento sociocultural proposto pelo QECRL.
O Quadro é um documento que fornece, entre outras coisas, uma base comum para a
elaboração dos livros didáticos e estabelece uma espécie de guia para os professores de LE,
delimitando o que se espera desses profissionais.
Dessa maneira, o QECRL (2001, p. 148 a 150) preconiza a forma como a
cultura/civilização das comunidades onde a língua é falada deveria ser abordada em suporte.
Embora a lista seja um pouco longa, julgamos necessário apresentar aqui os pontos propostos
pelo Quadro para uma abordagem satisfatória dos conhecimentos socioculturais, a saber:
Vida cotidiana (comidas e bebidas, refeições, maneiras à mesa; feriados; horários e
hábitos de trabalho); atividades dos tempos livres (passatempos, desportos, hábitos de
leitura, meios de comunicação social);
Condições de vida (nível de vida – variantes regionais, sociais e étnicas; condições de
alojamento; cobertura da segurança social);
As relações interpessoais, incluindo relações de poder e de solidariedade (estrutura
social e relações entre classes; relações entre sexos (gênero, intimidade); estruturas e
relações familiares; relações entre gerações; relações no trabalho; relações entre
público e polícia, organismos públicos etc, relações entre comunidades e raças;
relações entre grupos políticos e religiosos);
P á g i n a | 2344
Os valores, as crenças e as atitudes (classe social; grupos socioprofissionais -
acadêmicos, quadros, funcionários públicos, artesãos, trabalhadores manuais; riqueza -
rendimento e patrimônio; culturas regionais; segurança; instituições; tradição e
mudança social; história; minorias – étnicas ou religiosas; identidade nacional; países
estrangeiros, estados, povos; política; artes – música, artes visuais, literatura, teatro,
música e canções populares; religião; humor);
A linguagem corporal (o conhecimento das convenções que regem os
comportamentos deste tipo constitui a competência sociocultural do aprendiz);
As convenções sociais, no que diz respeito à hospitalidade (pontualidade; presentes;
roupa; refrescos, bebidas, refeições; convenções e tabus da conversação e do
comportamento; duração da visita; modo de sair/de se despedir);
E os comportamentos rituais (prática religiosa e ritos; nascimento, casamento,
morte; comportamentos do auditório e do espectador em espetáculos públicos e
cerimônias, celebrações, festivais, bailes, discotecas etc.
Vale à pena relembrar que os processos de nossa análise se voltam primeiramente para
uma análise descritiva das unidades escolhidas, e em um segundo momento, a análise será
feita de acordo com o que preconiza o Quadro ao que concerne o desenvolvimento da
competência sociocultural do aprendiz.
5. Análise Descritiva da Terceira e da Quarta Unidades do Livro Didático ÉCHO A1
(2010).
Figura 1: Unidade 3 do livro didático ÉCHO
Fonte: (ÉCHO, 2010)
Figura 2: Unidade 4 do livro didático ÉCHO
Fonte: (ÉCHO, 2010)
P á g i n a | 2345
Na unidade 3 intitulada Juillet en France (“Julho na França”) temos cinco imagens
relativas à França: a primeira, de uma praça na cidade de Arras, onde as pessoas estão
sentadas em pequenas mesas aproveitando um dia ensolarado; a segunda, do mapa da França,
em que a região montanhosa do país está destacada; a terceira imagem de uma pessoa
praticando asa delta que é um esporte em um tipo de aeronave composta por tubos de
alumínio, que proporcionam a sua rigidez estrutural, e uma vela feita de tecidos, que funciona
como superfície que sofre forças aerodinâmicas, proporcionando a sustentação da asa-delta no
ar e a origem deste nome deu-se pela semelhança da letra grega, que tem forma de triângulo,
como o formato da asa desta aeronave; a quarta imagem é de uma praia onde uma pessoa
pratica kitesurf. Este é um desporto aquático que utiliza uma pipa e uma prancha com uma
estrutura de suporte para os pés. A pessoa, com a pipa presa à cintura, coloca-se em cima da
prancha e, sobre a água, é impulsionada pelo vento que atinge a pipa. Ao controlá-lo, através
de uma barra, consegue-se escolher o trajeto e realizar saltos; e por fim, vemos a quinta
imagem de um rio onde pessoas praticam rafting, esporte que envolve remar em um rio com
correnteza forte em um bote inflável grande.
Todas essas imagens nos evocam lazer. A estação do ano em que essas atividades
podem ser praticadas é o verão e como o próprio nome da unidade deixa claro “Julho na
França”, trata-se do mês das férias não só na França, mas em todos os países que se localizam
no hemisfério norte do planeta.
Na unidade 4, Rythmes de vie (“Ritmos da vida”), vemos um calendário que destaca as
datas mais importantes entre os meses de maio a novembro e também um grupo de pessoas
trabalhando em uma central de teleatendimento; em seguida, uma imagem que se refere a uma
folha de agenda, em que as atividades do cotidiano estão distribuídas entre sexta-feira e
segunda-feira; e por fim, vemos a imagem de um grupo de alunos entrando em uma escola.
6. Análise Descritiva da Terceira e da Quarta Unidades do Livro Didático Alors? A1
(2007)
P á g i n a | 2346
Na unidade 3 Samedi (“Sábado”) vemos quatorze imagens: a primeira é de uma placa
que indica a abertura e o fechamento de um estabelecimento comercial; de um café onde
inúmeras pessoas estão sentadas na calçada, degustando suas bebidas e comidas; de
adolescentes indo à escola, de uma família sentada à mesa para jantar, comendo, conversando
e assistindo televisão; de uma estação de metrô fechada; de um calendário que marca os
meses de julho à janeiro em que estão destacados os feriados dos meses mostrados; do arco
do Triunfo em um dia comemorativo, a saber, 14 de julho (faz parte do senso comum afirmar
que no dia 14 de julho é comemorada a queda da Bastilha, ato que marcou o início da
Revolução Francesa em 1789. Pouca gente sabe, no entanto, que a data entrou para o
calendário cívico daquele país como a celebração de outro evento: a Festa da Federação,
realizada em 14 de julho de 1790); das estações do ano na França, quais sejam, primavera,
verão, outono e inverno; de símbolos do Natal e Ano Novo.
Verificamos que as imagens dessa unidade nos informam sobre os lazeres do povo
francês. Essas imagens representam, basicamente, três aspectos da vida dos franceses: vida
cotidiana (café, volta às aulas, estabelecimento comercial, jantar francês), datas
comemorativas (Natal, Ano Novo e 14 de julho – dia da independência francesa) e estações
do ano (primavera outono, inverno e verão). Ainda vemos a imagem de um calendário
marcando as férias de verão até o inverno, ou seja, de julho a janeiro.
Figura 3: Primeira página da unidade 3 do livro
didático Alors?
Fonte: (Alors?, 2007)
Figura 4: Segunda página da unidade 3 do livro
didático Alors?
Fonte: (Alors?, 2007)
P á g i n a | 2347
Figura 5: Primeira página da unidade 4 do livro
didático Alors?
Fonte: (Alors?, 2007)
Figura 6: Segunda página da unidade 4 do livro
didático Alors?
Fonte: (Alors?, 2007)
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Na unidade 4 Dimanche (“Domingo”) temos nove imagens: primeiramente, de
uma senhora praticando jardinagem; de uma aquarela; de pessoas em um lugar aberto
dançando e tocando instrumentos musicais; de um homem e uma mulher fazendo
caminhada no campo em um dia ensolarado; de uma tabela que nos informa as
principais atividades de lazer realizadas pelos franceses de 1973 a 1997; de um cartaz
do filme americano E.T. – O extraterrestre; de um cartaz de um filme francês
denominado Le Grand Bleu (“O grande Azul”); e a imagem de uma mulher lendo um
livro. As imagens ali presentes destacam bem as atividades culturais desenvolvidas
pelos franceses nos fins de semana.
7. Análise interpretativa e comparativa das imagens em Alors? A1 (2007) e ÉCHO
A1 (2010) de acordo com o QECRL (2001)
Realizada a análise descritiva das imagens, dos textos e das atividades contidas
nas seções que abordam o tema cultura, realizamos a análise interpretativa das mesmas.
Trata-se, assim, de uma análise conotativa em que descrevemos de modo subjetivo
nossas impressões sobre as imagens. Em seguida, apresentamos na análise comparativa
dos textos não verbais em questão e destacamos o que cremos ser relevante nas culturas
estudadas nessa etapa do projeto. Tomando também como base o QECRL que sugere os
conhecimentos socioculturais que o aprendiz deve ter quando estuda uma língua
estrangeira.
De acordo com o conhecimento sociocultural preconizado no QECRL (2001),
podemos observar a presença de elementos diversos que representam a cultura francesa.
Como vimos mais acima, de acordo com o QECRL, existem sete aspectos distintivos
característicos de uma determinada sociedade europeia e da sua cultura: vida cotidiana,
condições de vida, relações interpessoais, valores, atitudes e crenças, linguagem
corporal, convenções sociais e comportamentos rituais. Levando em consideração os
elementos socioculturais propostos do Quadro, chegamos aos seguintes resultados.
Nas unidades analisadas do livro didático ÉCHO A1 (2010) que apresenta uma
seção específica sobre a cultura francesa – Civilisation – podemos constatar a presença
de elementos da cultura francesa representados através de objetos; de pessoas; esportes
e lazer; tempo dedicado ao trabalho e à escola; feriados típicos nacionais franceses;
comportamentos na sociedade francesa.
Nossos resultados apontam na seguinte direção: O manual ÉCHO A1 (2010)
atende ao rol proposto pelo QECRL no que concerne à análise de imagens dispostas na
rubrica que aborda o tema cultura.
Nas unidades analisadas do livro didático Alors? A1 (2007) também apresenta
uma rubrica específica sobre cultura francesa – Compétence Culturelle. Nela,
observamos a presença de elementos da cultura francesa que são representados através
de objeto, de pessoas, esporte e lazer, tempo dedicado à escola, feriados típicos
nacionais, hábitos culturais franceses como assistir à televisão, pintar, plantar, caminhar
e ler.
Assim como o manual ÉCHO A1 (2010), o manual Alors? A1 (2007) atende aos
requisitos dispostos no QECRL no que diz respeito ao conhecimento sociocultural do
aprendiz em relação às imagens da rubrica que trata sobre cultura. Numa comparação
P á g i n a | 2349
entre esses manuais, observamos que eles são muito parecidos no que tange a
abordagem do tema cultura, trazendo os mais variados aspectos socioculturais da vida
na França.
Alors? A1 (2007) ÉCHO A1 (2010)
Vida cotidiana Esporte, lazer etc Comprar (padaria,
supermercado etc)
Condições de vida Acesso a diferentes tipos de lazer Utilização de meios de
transporte
Relações
interpessoais
Relação entre as pessoas no local
de trabalho, na escola
Dança de rua
Valores, atitudes e
crenças
Leitura Comportamento à mesa
Linguagem corporal Dança Dança, cumprimentos
Convenções sociais Como estar à mesa Como estar à mesa
Comportamentos
rituais
Casamento Casamento
Através dos textos não verbais analisados, verificamos que a maioria deles
representa a cultura francesa e aos povos francófonos que habitam o continente europeu
e a América do Norte (Canadá). A francofonia relativa ao continente africano não é
representada nas unidades analisadas.
8. Considerações finais
Essa pesquisa teve como principal objetivo de verificar que tipos de
representações culturais estavam presentes nas unidades (terceiras e quartas) dos livros
didáticos estudados. Para tanto, analisamos as imagens das unidades das rubricas
cultura/civilização dos suportes didáticos de língua francesa para estrangeiros ÉCHO
A1 (2010) e Alors? A1 (2007), nos detendo também na observância dos conhecimentos
socioculturais propostos pelo QECRL (2001) que o livro deveria abordar para uma
melhor aprendizagem da LE em questão. É importante frisar que também utilizamos os
textos e legendas que compunham as seções de cultura na leitura das imagens, isto é, os
textos verbais serviram de suporte, de complementação do entendimento de uma
imagem.
Feitas essas considerações, é relevante destacar que no preâmbulo dos já citados
livros didáticos, os autores traçam como uma de suas metas a apresentação das culturas
existentes no mundo francófono. Assim, consideramos como ponto positivo a tentativa
Quadro: Análise dos manuais segundo o QECRL (2001)
P á g i n a | 2350
dos autores de mostrar para o aprendiz utilizador destes suportes didáticos, a existência
de imagens que não nos remetem somente à Paris, mas a outros países, outros povos que
também falam francês. Dessa maneira, a possível abordagem feita pela rubrica destes
livros didáticos ampliaria nossos horizontes em relação à língua que estamos estudando
e fazendo com que não fiquemos restritos tão somente ao universo da cultura francesa
da França. Observamos, entretanto, que as imagens dispostas nas unidades das duas
seções dos suportes didáticos analisados estão relacionadas, preponderantemente, aos
costumes e hábitos do povo francês que habita a França e ao povo francófono que
habitam o continente europeu e a América do norte. Assim, os livros didáticos fazem
pouca referência às culturas dos países francófonos oriundos da África, ou seja, não
abrem o espaço para a francofonia africana quebrando mais uma expectativa. Há um
hiato entre o dizer pedagógico encontrado no preâmbulo dos livros e a concepção dos
materiais analisados.
Verificamos também durante a realização da nossa pesquisa que os livros
atingem a proposta do Quadro Europeu. Este elenca uma série de requisitos (sete
critérios) que um suporte didático deveria preencher para as habilidades concernentes
aos conhecimentos socioculturais propostos pelo Quadro.
Por fim, consideramos que as imagens sobre diversas culturas auxiliam no
aprendizado de uma LE, visto que quando um estudante se confronta com uma cultura
diferente da sua, ele se enxerga melhor e poderá se posicionar na condição do outro,
tornando-se, na maioria das vezes, uma pessoa que respeita a diversidade e a
heterogeneidade que caracterizam a sociedade global.
9. Referências bibliográficas
ARON, P.; SAINT-JACQUES, D. e VIALA, A. Le dictionnaire du littéraire. Paris:
PUF, 2004.
BLANCHET, P. e CHARDENET, P. Guide pour la recherche en didactique des
langues et des cultures – approches contextualisés. Paris: AUF, 2011.
CUQ, J. P. Dictionnaire de didactique du français – langue étrangère et seconde.
Paris: CLE – International, 2003.
GIRARDET, J. e PÉCHEUR, J. Écho: Méthode de français A1. Paris: CLE –
International, 2010.
GIURA, M. e BEACCO, J. C. Alors?: Méthode de français fondée sur l’approche par
compétence A1. Paris: Les Éditions Didier, 2007.
MOSCOVICI, S. Psychologia sociale. Paris: PUF, 1984.
NEIVA JR, E. A Imagem. 2 ed. Série Princípios, São Paulo: Ática, 1994.
Quadro Europeu Comum de Referências para as Línguas – Aprendizagem, ensino e
avaliação. Porto: Edições: ASA, 2001.
WALTY, I. L. C.; FONSECA, M. N. S.; CURY, M. Z. F. Palavra e imagem: leituras
cruzadas. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
P á g i n a | 2351
DIONÍSIO, A. P. Gêneros Textuais e Multimodalidade. In: KARWOSKI, A. M.;
GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. Genêros Textuais: reflexões e ensino. 4ª edição. São
Paulo: Parábola, 2011.
P á g i n a | 2352
A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL EM FRANCÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA:
UMA ANÁLISE SEMIÓTICA DE ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS MISS DIOR
CHÉRIE
Albenise Mariana de Queiroz (UFCG)
Rosiane Xypas (UFCG)
RESUMO: No ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras a dimensão sociocultural é
preconizada no Quadro Europeu Comum de Referências para as Línguas (QECRL,
2001). Mas para adquiri-la o estudante deve aprender a ler diversos tipos de documentos
orais ou escritos. Estes se encontram em todos os manuais com os quais trabalhamos e
são fontes autênticas da cultura da língua estudada. Assim, os textos jornalísticos,
informativos, cartas de amor, cartas de motivação, trechos de textos literários como
também anúncios publicitários. Quanto à aprendizagem da leitura destes, postulamos
por um lado, que estes tipos de textos favorecem o aprendiz a refletir sobre a língua
veiculada na mensagem publicitária cheia de cultura alvo, e por outro, ele aprenderá a
fazer uma leitura consciente da imagem nos textos vinculados, fazendo assim uma
leitura semiótica ampliando seu horizonte de dimensão sociocultural da língua
aprendida. Neste trabalho temos como objetivo principal, estudar os textos e as
imagens que formam os anúncios publicitários escolhidos através de uma análise
semiótica apoiando-nos em Pen (2010), Joly (2011) e Barthes (1969). Por uma questão
pragmática, nosso corpus recolhido em Internet é formado pelas três últimas campanhas
de publicidade do perfume francês Miss Dior Chérie. Observamos que o público visado,
o foco principal das publicidades escolhidas são mulheres jovens. Perguntamos quais os
elementos mais usados para chamar a atenção do público alvo? Qual a caracterização da
mulher nesses anúncios?
Palavras-chave: Dimensão sociocultural. Mulher. Publicidade. Semiótica. Texto
publicitário.
1. Introdução
Consideramos relevante o estudo de diversos tipos de textos na sala de aula de
línguas estrangeiras, pois sabemos que temos que desenvolver no aprendiz uma
capacidade de leitura cada vez mais ampla abrangendo diversos gêneros textuais.
Sabemos que a leitura de documentos autênticos faz com que esse aprendiz de línguas
estrangeiras tenha um contato direto com a cultura do outro, e essa dimensão sócio
cultural é tida como essencial segundo o Quadro Europeu Comum de Referências para
as Línguas (QECRL, 2001) que é um documento base para a elaboração de livros
didáticos do ensino de línguas. Este preconiza a cultura/civilização ligada ao ensino de
línguas, como vida cotidiana, condições de vida, relações interpessoais, valores sociais,
linguagem corporal, história, humor etc. Logo, sabemos que a imagem também pode ser
considerada como um texto, e como qualquer texto, ela está repleta de elementos que a
P á g i n a | 2353
compõem para que o sentido seja formado. Assim, consideramos de grande relevância o
estudo das imagens publicitárias no ensino de línguas estrangeiras.
Desejamos compreender até onde a leitura de textos publicitários favorece o
aprofundamento de aspectos culturais da língua francesa? Podemos dizer, inclusive, que
alguns textos publicitários tais como charges, histórias em quadrinhos entre outros
favorecem o aprendiz a refletir sobre essa nova língua, porque suscita a capacidade de
vincular diretamente língua e cultura. Em textos publicitários podemos observar fatos
repletos da cultura alvo e que para estudá-los é preciso que o aprendiz desenvolva em
sala de aula a capacidade de ler esse gênero, ou seja, ele deve aprender a fazer uma
leitura consciente da imagem publicitária.
Neste trabalho, temos como objetivo principal ensinar o aprendiz a ler o gênero
textual. Apostamos na relevância deste estudo porque nossa hipótese é que a
aprendizagem da leitura de imagens publicitárias em sala de aula de língua estrangeira,
sobretudo em francês como língua estrangeira (doravante FLE), favorece o contato com
os aspectos linguístico-culturais da língua alvo. Além disso, quais os elementos mais
usados para chamar a atenção do público alvo já que sabemos que o texto publicitário é
de todo manipulador? No que concerne às imagens estudadas vemos a mulher como
elemento central. Perguntamos, qual a caracterização da mulher nesses anúncios?
Para isso, vamos fazer uma análise semiótica de algumas publicidades apoiando-
nos em Pen (2010), Joly (2011) e Barthes (1969). Compomos um corpus com as três
últimas campanhas de publicidade do perfume francês Miss Dior Chérie. Nossa análise
se fundamenta na observação dos seguintes aspectos: (1) de formação desses anúncios,
quer dizer, dos elementos que o compõe, como por exemplo, cor, espaço, entre outros;
(2) observar qual o público esses anúncios estariam direcionados, (3) analisar a presença
efetiva da mulher nos anúncios escolhidos.
Primeiramente este artigo se divide em fundamentação teórica onde discorremos
de forma breve sobre os vocábulos chave, a saber, miss, chérie e Dior; em seguida,
apresentamos a análise das três imagens que compõem o corpus com o qual
trabalhamos, e por fim, apresentamos as considerações finais sobre o tema em questão.
2. Fundamentação Teórica
As três imagens que analisamos foram retiradas da Internet e se referem ao
perfume Miss Dior Chérie. Começamos por dizer que a palavra Miss é pronome de
tratamento que faz referência às jovens inglesas, ou falantes da língua inglesa. No
entanto, essa palavra foi adotada pela língua francesa (Hachette, 1997 p.1226). No
dicionário Houaiss (2001, p.299), encontramos a definição do vocábulo Misse que é o
nome dado para as mulheres selecionadas em concursos de beleza. Segundo o
dicionário Petit Robert (1986), na primeira entrada o vocábulo Misse, que data de 1713,
é uma palavra americana que significa senhorita, e na terceira entrada que data de 1931
este vocábulo significa que é um substantivo designado para nomear as jovens rainhas
da beleza eleita em concursos internacionais e locais. Podemos compreender que os dois
dicionários trazem a mesma definição do vocábulo em estudo. Entretanto, no cotidiano
francês, a palavra miss é empregada espontaneamente pelos usuários da língua
designando um pronome de tratamento de elogio e afeto, deslocando assim do seu
sentido etimológico e entrando no sociocultural.
P á g i n a | 2354
Quanto ao vocábulo Chérie segundo (Micro Robert, 1971, p.172), ele é um
adjetivo empregado para definir algo ou alguém muito querido. Ainda no Houaiss,
(2001, p.366), o adjetivo Querido significa amado, preferido. A palavra em questão tem
a mesma função linguístico-cultural, pois é empregada pelos utilizadores nativos da
língua designando carinho, afeto e familiaridade. Ora, não seria essa a intenção da
propaganda, apelando para a função emocional da língua?
Como a palavra Dior se refere a uma marca famosa conhecida pelos aprendizes
de FLE e pessoas do mundo inteiro, intencionamos apenas dizer que ela foi criada pelo
francês Christian Dior. Sua primeira indústria foi fundada em 1946 e ficou famosa pelos
vestidos de alta costura. Ao passar do tempo, a empresa Dior desenvolveu-se também
em perfumaria, cosméticos, bolsas etc. Enfim, os três vocábulos em estudo nos faz
entender que o nome do perfume pode se constituir, pode soar bastante familiar já que
apela para a dimensão afetiva e emocional do consumidor.
Assim, observamos que o gênero escolhido nesse estudo é relevante porque
tanto ele está presente na vida cotidiana dos nativos franceses como também nos livros
didáticos de FLE. Defendemos a ideia que os anúncios publicitários sendo presença na
vida cotidiana francesa, o ensino/aprendizagem desse tipo de texto, não deve ser
relegado, ao contrário, tanto os professores de FLE quanto os futuros professores
deveriam se interessar no desenvolvimento das estratégias de leitura deste tipo de texto.
Podemos ler com Andreea Teletin (2008, p.216) que “em um texto publicitário, o
destinatário está presente como um consumidor potencial. (...) Sua interpelação pode ser
feita através de pronomes de tratamento”. Tomando esta citação como base, fazemos
aqui uma observação de como o pronome de tratamento do anúncio miss juntamente
com as imagens que compõe a publicidade fazem para chamar a atenção do público
alvo. Pois, sabemos que um texto publicitário é constituído por textos verbais e não
verbais.
Ressaltamos desse modo igualmente à importância da leitura visual no
ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras por implicar na ampliação da
representação de mundo do aprendiz. Para Joly, os textos/anúncios publicitários, são
dentre os gêneros textuais, textos propícios para análise e de uma força interativa
considerável, pois, estes estão repletos de conteúdos socialmente construídos que são
representados através de texto gráfico e imagens.
A publicidade, de fato, é uma grande consumidora de teoria, ou pelo
menos "ferramentas teóricas para analisar, e compreender o indivíduo
em suas relações com os seus próprios desejos e motivações nas suas
interações com outros indivíduos da sociedade, como na percepção
das mídias e seus modos de representação " 90
Sendo assim, o texto publicitário exerce grande influência no ser humano,
porque está repleto de teorias sociais, que visam os pontos principais da relação do ser
com o ambiente no qual ele está inserido. Diversos estudos sobre o comportamento do
consumidor face ao produto a ser consumido nos faz compreender que se o sujeito na
sociedade moderna compra, mesmo se não houver necessidade, e parece que compra se
90
La publicité, en effet, est une grande consommatrice de théorie, ou tout au moins d’outils théoriques lui
permettant d’analyser, de comprendre l’individu dans ses rapports avec ses propes désirs et motivations,
dans ses interactions avec les autres individus de la société, dans la perception des médias et de leurs
modes de représentation.’ (Joly,p.57) (Todos os trechos aqui citados foram traduzidas por nós).
P á g i n a | 2355
sobretudo, não houver necessidade, o consumidor de fato é preso em uma teia, mas
longe de se sentir preso na mesma, ele acha essa teia confortável porque lhe faz gozar
do prazer do ter, do possuir, e do querer mais e tudo e sempre. A influência da era
moderna do consumismo propicia também um meio de integrar o sujeito na sociedade
reforçando sua autoestima.
As primeiras pesquisas comportamentais, inspiradas pelo
behaviorismo, não encontraram resposta global ao esquema estímulo /
resposta e fora desta primeira visão mecanicista, levam a hierarquia
dos modelos de aprendizagem baseada em três seguintes etapas:
cognitiva, afetiva e comportamental. Então o que eram as motivações
de pesquisa estabeleceram metas para analisar as necessidades pré-
conscientes e inconscientes que compram menos e mais para
satisfazer o consumidor (segurança, narcisismo, identificação com
uma classe...) fazendo um apelo não somente a psicologia, mas
também a psicanálise , a sociologia, e a antropologia (Joly, p.58). 91
Como podemos perceber através do texto da autora acima citada, a publicidade
está repleta de teorias da psicologia aplicada, como as relações de estímulo/resposta que
a campanha pode causar no indivíduo para qual está direcionada. E também da
sociologia, como uma forma de compreender os desejos e motivações do ser em sua
construção social. Entretanto, não vamos nos aprofundar nesses aspectos por julgar que
os mesmos não fazendo parte da didática de línguas estrangeiras fogem ao nosso
propósito neste artigo como também pelo que foi dito seja o bastante por hora no
assunto aqui tratado.
De um ponto de vista metodológico, temos que observar cada objeto que
compõem a imagem, minuciosamente. Pois, seus materiais são múltiplos e articulam
suas significações específicas umas com as outras para produzirem uma mensagem
global. Segundo Joly “é que ‘a imagem pura’, quer dizer, tudo o que está no anúncio e
não é linguístico, interpreta-se em um segundo grau e remete a outros universos que si
mesmo, segundo leis particulares”.92
Entendemos que a imagem funciona como um conjunto de signos. Cada um
desses signos tem uma representação diferente dependendo do uso ou da cultura onde
estão sendo interpretados pelos indivíduos em seus universos particulares. Joly se apoia
em Barthes para afirmar que temos que observar tais “objetos” que constituem a
imagem. Para isso, temos que dividir a imagem em dois pontos principais, a saber, o
denotativo e o conotativo. Sendo o primeiro fundamentado pela descrição desses
objetos, observando sua simbologia; e o segundo, fazendo referência ao que Joly chama
de “saber preexistente” da mente do leitor, é nesse ponto que podemos começar a
atribuir sentido a tais objetos.
91
Les premiers recherches comportementales, inspirées du béhaviorisme, n’ont pas trouvé de réponse
globale dans le schèma stimulus/réponse et ont du, ‘pour sortir de cette première vision mécaniste,
déboucher sur les modeles de hièrachie de l’apprentissage basée sur les trois étapes suivantes: cognitive,
affective et comportementale’; puis ce que fut la recherche des motivations que se fixa pour objectif
d’analyser les besoins préconscients et inconscients que l’achat satisfait plus ou moin chez le
consommateur (sécurité, narcissisme, identification à une classe sociale...) en faisant appel non seulement
à la psychologie, mais aussi à la psychanalyse, la sociologie, l’anthropologie. (Joly, p.58)
92
« c’est que ‘ l’image pure’, c’est-a-dire, tout ce qui dans l’annoce n’est pas linguistique, s’interprete au
second degré et renvoie à des univers autres que lui-meme, selon des lois particulières .» (Joly, p.61)
P á g i n a | 2356
Segundo Barthes, a definição de representação equivale a um tipo de
ressurreição no sentido de fazer viver a imagem vista por muitos. Assim, em Barthes
lemos que para explicar a mensagem linguística da imagem devemos levar em
consideração o que ele chama de ‘retórica’. A retórica da imagem se baseia na
pluralidade de significações que esta tem, levando em consideração que a imagem é
constituída por signos, e esses sempre remetem a outra imagem, e outra imagem, assim
em diante.
(...) A imagem é uma re-apresentação, isto é, em última análise,
ressurreição, e nós sabemos que o inteligível é considerado hostil à
experiência. Assim, em ambos os lados, a analogia sentida como em
pobres sentidos: alguns acham que a imagem é um sistema rudimentar
sobre a língua, e outros que o significado pode esgotar a riqueza
inefável da imagem. (Barthes, p.573)93
O que nos interessa igualmente ao analisar textos publicitários, é justamente
observar o fato de que essas campanhas possuem em si, aspectos que formam um
sentido geral, e esses, segundo Barthes, são intencionais, pois “a imagem publicitária é
seguramente intencional: são alguns atributos do produto que formam a priori os
significados da mensagem”.94
Para fazer análise do texto publicitário, Barthes o separa em duas partes: A
primeira daria enfoque ao nível verbal, que analisa o texto gráfico. A segunda, dividida
em dois níveis, o nível conotativo e denotativo da mensagem asseguram a metodologia
aplicada nas análises das imagens. Assim, a imagem denotada é a representação “pura”,
real da constituição dos objetos da mesma. Já a mensagem conotada ou simbólica
representa a construção dos sentidos produzidos pela imagem segundo a percepção do
conhecimento cultural daquele que está lendo, observando a mensagem.
3. Análise das imagens
É importante relembrar que neste artigo, temos como objetivo analisar imagens
referentes às duas últimas campanhas publicitárias do perfume Miss Dior Chérie. Para
tal, constituímos um corpus com três imagens retiradas da Internet. Para analisá-las
faremos em duas partes: a primeira, destacamos os elementos físicos e a posição
corporal da modelo, a segunda análise é voltada para os objetos como o frasco do
perfume, o que vemos no plano de fundo da foto e a simbologia da cor rosa nas duas
dimensões: denotativa e conotativa.
Figura 1 – Miss Dior Chérie 2010
93 (...) l’image est re-présentetion, c’est-à-dire en définitive résurrection, et l’on sait que l’inteligible est
reputé antipathique au vécu. Ainsi, des deux côtés, l’analogie est sentie comme en sens pauvre: les uns
pensent que l’image est un système très rudimantaire par rapport à la langue, et les autres que la
signification ne peut épuiser la richesse ineffable de l’image (Barthes, p.573).
94 l’image publicitaire est assurement intentionelle: ce sont certains atributs du produit qui forment a
priori les signifies du message (Barthes, p.573).
P á g i n a | 2357
Fonte: Luxury Activist95
Esta imagem corresponde à campanha do perfume Miss Dior Chèrie referente
ao ano de 2010. Em um primeiro momento, damos enfoque analítico para o tratamento
da imagem feito primordialmente no lado direito da mesma. Um pouco mais abaixo, a
análise do lado direito da imagem será feita.
3.1. Análise Denotativa da Imagem
A modelo desta campanha apresenta as seguintes características físicas:
cabelos loiros, olhos claros, pele bronzeada. Quanto à expressão facial da modelo
podemos ver que ela está com os olhos apontados para frente, sua boca está levemente
aberta segurando uma rosa. Será que estas características estariam relacionadas com a
imagem do público alvo deste anúncio? Ou seja, meninas jovens, as que fazem parte de
um grupo padrão de beleza estabelecido na nossa sociedade?
95
Disponível em: <http://luxuryactivist.com/beauty/miss-dior-cherie-marketing-wins/> Acesso em
29/11/2013
P á g i n a | 2358
Ainda observamos na imagem, que a modelo por não tem marcas de expressão,
esbanja jovialidade como a de uma menina em fase de crescimento. No entanto, ela se
descaracteriza como uma mulher adulta. O perfume então não visa à compra pela
mulher adulta, mas sim pela menina em fase de crescimento ou ao contrário, as
mulheres adultas podem usá-lo e se sentiram como ‘meninas em fase de crescimento’?
Outros elementos que julgamos importantes na análise semiótica é o uso das
cores e das formas. Quanto ao uso da cor, ressaltamos tons claros mais especificamente
a cor rosa. A utilização dessa cor é estabelecida na nossa sociedade culturalmente como
a cor do universo feminino e evocaria o mundo de uma menina pequena. Todavia,
sabemos que esse anúncio publicitário está direcionado para mulheres adultas.
Supomos que a escolha desta cor faria com que o público alvo, as mulheres, pudessem
se sentir mais jovens. Ainda quanto à forma, vemos no lado direito da imagem, que se
encontra o nome da marca escrito com fita de cetim, mesmo que na imagem analisada
possamos ver apenas o nome Miss.
No lado esquerdo da fotografia, vê-se o frasco do perfume que está sendo
mostrado pela modelo. Ora não seria o lado esquerdo o do coração? Apostamos que a
função emotiva da linguagem também possa ser evocada pela localização do produto
em questão. Destacamos também as unhas da modelo em tom rosa, reforçando o
universo feminino, mas também o ser jovial que pode ser evocado na dimensão do tipo
de público que se deseja atingir nesta publicidade.
3.2. Análise Conotativa da Imagem
A análise conotativa evoca como o nome sugere a dimensão suscitada pela
leitura feita do texto não verbal fundamentado nos conhecimentos prévios do analista.
Sendo então esta análise puramente subjetiva, faremos atenção para não fazer
divagações o que seria um tanto prejudicial à compreensão da análise do texto não
verbal em seu todo. Para iniciarmos tal analise, podemos começar pela imagem em
foco, que dizer a da modelo, e depois partiremos para as representações dos demais
objetos que compõem a imagem.
A partir da análise denotativa acima descrita, sobre as características físicas da
modelo e o espaço onde ela se encontra, percebemos que as mesmas estão direcionadas
para um padrão de beleza pré-estabelecido socialmente dando vazão a eterna juventude
buscada nos tempos de hoje, ou seja, correspondendo às expectativas do público que a
campanha quer atingir. A jovialidade da modelo, que não parece uma mulher adulta,
mas sim uma menina, para qual o anúncio está sendo direcionado.
Observamos como mencionado acima que neste anúncio o uso excessivo da
cor rosa se faz presente em diversos objetos na imagem, a saber, as vestimentas da
modelo, o laço de fita utilizado por ela, o perfume, o cenário.
Em cada cultura as cores podem atribuir significados diversos como
sentimentos, religião, sexo e infinitas outras representações. Tomando essa afirmação
como base, questionamos qual seria a representação da cor em questão nesta campanha?
Na cultura ocidental, o rosa pode significar romantismo, ternura, ingenuidade
etc. Essa também está sempre associada ao universo feminino, o que pode ser visto por
alguns como uma representação negativa da cor como uma forma de estereótipo. O rosa
também é atribuído à beleza, suavidade, pureza, fragilidade etc. Notamos então, que o
P á g i n a | 2359
rosa está estritamente ligado às outras representações como a infância das meninas, à
beleza, à ingenuidade e até mesmo à suavidade, neste caso representado na imagem da
modelo.
Podemos confirmar algumas dessas representações positivas da cor rosa aqui
mesmo no nosso contexto brasileiro, quando no ano de 2009 a revista CAPRICHO da
editora Abril destinada aos adolescentes, lançou uma campanha como o título de “Deixe
o mundo mais Pink”, que tinha o intuito de mostrar relatos de meninas que faziam do
mundo um lugar melhor.96
Sendo assim, podemos ver que na campanha acima analisada estão presentes
alguns elementos em sua composição que portam características positivas da rosa na
cultura ocidental e assim absorver o público alvo da publicidade trabalhada.
Figura 2- Miss Dior Chérie 2011/2013
Fonte: Luxuo97
3.3. Análise Denotativa da Imagem
Cabelos castanhos claros, olhos claros, pele branca são estas as características
físicas da modelo da imagem analisada. Fazemo-nos aqui desde já o seguinte
questionamento: Estas características estariam relacionadas com a imagem do público
alvo deste anúncio? Ao observarmos ainda a imagem da mulher, vemos que ela está de
costas dando em si mesma um abraço, está com o rosto em ângulo desfocado e um
pouco abaixado e sua boca está levemente aberta mostrando a ponta de seus dentes.
Qual seria a intencionalidade por traz da postura desta modelo? Vemos também que em
seus traços físicos estão expressos uma extrema jovialidade.
96
Para os interessados segue aqui o link de uma das imagens usadas na campana:
http://i166.photobucket.com/albums/u118/nathaliagrun/deixepink1.jpg 97
Disponível em: < http://www.luxuo.com/celebrities/dior-vegan-shoes-natalie-portman.html> Acesso
em: 29/11/2013
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Quanto ao espaço da imagem analisada, observamos que o fundo desta
imagem está constituído por uma parede cor de rosa em tom claro com aspectos de
arquitetura clássica e iluminada no canto direito. Levando também o nome do perfume e
da marca Miss Dior Chérie, acompanhando o frasco do perfume que é pequeno e
retangular com um laço de fita carregando dentro o liquido do perfume dourado.
3.4. Análise Conotativa da Imagem
Vamos começar observando a modelo da publicidade que se chama Natalie
Portman. Ela é uma atriz americana de descendência judaica. No ano do lançamento da
nova campanha da Dior, Natalie era uma das principais indicadas ao Oscar, e seus
filmes haviam tido repercussão mundial. A escolha de Natalie para fazer a campanha foi
clara: ela era um objeto de desejo, pois naquele ano muitas mulheres desejariam estar
em seu lugar.
Outro motivo que também podemos apontar é que a mesma trata-se de uma
mulher pele clara, olhos claros, e cabelos escuros indicando um determinado padrão de
beleza da atualidade, e também a aparência das pessoas de uma determinada classe
social, aquelas que comprarão a mercadoria oferecida.
Podemos não perceber em um primeiro momento, mas tudo na imagem tem
uma apologia sexual e erótica como demonstramos na análise denotativa pela posição
corporal relativa à pose da modelo. Primeiramente, o fato de que ela não usa roupas, e
depois que ela esconde seus seios, abraçando-se ou fazendo um gesto de acariciar a
própria pele. Mesmo que a imagem faça incitações sexuais, ela não se usa de elementos
claros como na linguagem pornográfica, ela se utiliza da imagem do ingênuo ressaltados
na maquiagem que como se pode ver, modelo não está fortemente maquiada, ela não
tem olhos maquiados de preto, nem usa batom vermelho, ou unhas vermelhas, que são
símbolos de feminilidade e poder entre as mulheres.
A imagem evoca simplicidade tendo em vista que sua maquiagem é bem suave
que não pinta suas unhas, que passa uma camada de brilho apenas demonstrando pureza
e simplicidade. Seu olhar, assim como seu rosto está levemente abaixado reforçando a
ideia de ingenuidade. Ela tem um sinal no canto da boca que representa símbolo de
charme e sedução na década de 50 e nos dias de hoje também. Para acentuar ainda mais
a sensualidade ingênua, vemos que ela tem em seu cabelo, uma tiara com um laço que é
acessório mais usado em meninas pequenas do que em mulheres adultas favorecendo
uma leitura de uma imagem que oscila ora no ingênuo, ora no sensual, menina mulher.
Agora passando para o plano de fundo da imagem, podemos observar que se
trata possivelmente da parede de um quarto, uma parede com toque antigo e está na cor
rosa claro. A parede que vemos parece ser a de um quarto de meninas pequenas.
Entretanto, os elementos até agora analisados não convergem para esse resultado,
contrapondo o mostrado com o idealizado. Dito em outras palavras, os elementos que
compõem o anúncio mostram que o mesmo está voltado para um público mais adulto,
pois percebemos que a modelo está despida e que o único acessório que podemos ver na
imagem é um laço de fita de cetim em seu cabelo. Aqui a cor rosa pode estar sendo
também atribuída à sedução, à feminilidade, e ao romantismo como também à
ingenuidade, à pureza, à fidelidade e ao amor.
P á g i n a | 2361
Voltando agora para o último elemento do plano de fundo, podemos ver o
frasco do perfume. Neste anúncio o líquido do perfume é dourado fazendo lembrar
alguns tipos de bebida. Temos na tampa do frasco um laço, que pode estar remetendo a
um presente, ou a um laço de cabelo, como o acessório que está presente na modelo.
Aqui podem ser feitas diferentes leituras, resolvemos partir do principio de que a
intencionalidade na composição deste objeto é que o frasco do perfume e a modelo
podem ser vistos como um mesmo objeto. Ou seja, comprando o perfume você pode
estar comprando a beleza, a ingenuidade e a jovialidade representadas pela modelo.
Sendo assim, perfume e modelo se tornam o mesmo alvo do desejo do consumidor.
4. Considerações finais
A partir da análise que fizemos das campanhas do perfume francês Miss Dior
Chèrie notamos que ambas as campanhas atingem o objetivo de chamar atenção do
público alvo, a mulher, através de elementos da jovialidade e pureza com certo teor
infantil em sua composição. Observamos ainda que as modelos são jovens como
meninas e não como mulheres, e este apelo é feito pela presença (exagero?) da cor rosa,
que evoca em nossa cultura, a cor favorita das mães das meninas pequenas. Este
reforço, muito bem pensado por sinal, favorece significados positivos reforçando
igualmente a ingenuidade e pureza desejados na sociedade familiar ‘bem comportada’.
Através desta pesquisa podemos notar que o estudo de campanhas publicitárias
é bastante relevante, pois a publicidade além de ser um texto propício à análise cultural
da língua alvo em estudo está presente em todo tempo no nosso cotidiano imediato.
Sabendo que o aprendiz de línguas estrangeiras deve desenvolver uma boa leitura e
compreensão de diversos tipos de textos nessa segunda língua, e que esses devem ser
compreendidos a partir das culturas nos quais estão inseridos, consideramos assim
relevantes as leituras da publicidade em sala de línguas estrangeiras como suporte de
estudo de língua e cultura.
5. Referências bibliográficas
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_____, Elementos da semiologia, 19ª edição, São Paulo, Cultrix, 2012.
P á g i n a | 2362
COMO LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA INGLESA ABORDAM A
INTERFACE ORALIDADE/ESCRITA NO GÊNERO HISTÓRIA EM
QUADRINHOS?
Vivian Monteiro SILVA98
(UFCG)
RESUMO: O avanço nos estudos sobre as modalidades oral e escrita de uso da língua
tem proporcionado aos pesquisadores da área uma percepção mais clara e ampla das
particularidades de cada modalidade e do fato de elas estarem situadas em um
continuum e não em pólos diametralmente opostos. Assim, considerando-se o âmbito da
sala de aula de língua estrangeira, defende-se um ensino de língua que preconize as
características da fala e da escrita como tais, e que considerem suas diferenças dentro de
um continuum, e não numa relação dicotômica como tradicionalmente tem sido feito. O
gênero história em quadrinhos (HQ) é um exemplo clássico de texto que pertence à
modalidade escrita, mas com muitas características típicas da fala, o que favorece a
investigação dessa interface, além de ser um gênero bastante explorado em manuais
didáticos de língua inglesa. Esta pesquisa exploratória de abordagem qualitativa,
portanto, objetiva investigar se e como duas coleções de livros didáticos abordam a
interface oralidade/escrita no gênero HQ. Ancorados em Marcuschi (2003), Pretti
(2004), Thornbury (2005), Tocatlidou (2002), entre outros, observamos que, em geral,
os manuais didáticos ainda pressupõem um ensino centrado no sistema normativo da
língua e não levam em conta o continuum entre as duas modalidades.
PALAVRAS-CHAVE: Interface oralidade/ escrita – Livro didático – História em
quadrinhos
1. Considerações iniciais
Os estudos sobre as modalidades oral e escrita cada vez mais têm contribuído
para o redimensionamento da aula de língua estrangeira no que diz respeito à ampliação
das concepções de língua e de texto uma vez que os apresenta como um conjunto de
práticas sociais, com suas peculiaridades, e não como um sistema normativo de formas
abstratas. Além disto, tais pesquisas têm mostrado que uma modalidade não deriva da
outra, pois o texto falado têm propriedades dialógicas que diferem das propriedades dos
textos escritos, nem estão em polos dicotômicos, como tradicionalmente se pensava,
porém se situam em um continuum, e ambas se complementam no contexto das práticas
sociais (cf. FÁVERO, et al. 1999; MARCUSCHI, 2003).
98
A autora é professora Assistente da Universidade Federal em Campina Grande, integrante do grupo de
pesquisa DILLES, e ministrante da disciplina Estudos de Oralidade e Escrita para as turmas de língua
inglesa, cujas discussões deram origem ao presente trabalho.
P á g i n a | 2363
Na visão dicotômica da fala e da escrita pressupunha-se uma concepção de
língua como um sistema de regras que constitui a norma culta e padrão dessa língua.
Nessa visão, a escrita tem supremacia sobre a fala, apresentando, portanto, um status
social mais elevado. Segundo Marcuschi (2003), a visão dicotômica considerava a fala
como algo não planejado, impreciso, não-normatizado e fragmentado; enquanto que a
escrita era considerada planejada, precisa, normatizada e não fragmentada.
Entretanto, o referido autor afirma que essa divisão da fala e escrita em polos
antagônicos é superficial e limitada porque há gêneros textuais que pertencem ao
domínio da escrita, mas apresentam elementos bastante característicos da fala, e vice-
versa, a exemplo dos chats, das palestras e das histórias em quadrinhos (doravante HQ),
que são gêneros que se situam no entrecruzamento das duas modalidades. As HQ
apresentam muitos elementos característicos da fala, como veremos mais adiante, mas
se manifestam no domínio escrito, e são, portanto, consideradas um gênero da
modalidade escrita. Além disto, elas têm certas peculiaridades que as tornam atrativas
para serem objeto de estudo tanto na sala de aula de língua materna (LM) quanto na de
língua estrangeira (LE). Sendo assim, alguns livros didáticos (LD) de língua inglesa
(LI), por exemplo, incluem as HQ em parte de suas unidades seja para explorar
compreensão textual, seja para abordar algum tema transversal ou tópico gramatical,
seja simplesmente para familiarizar o aluno um pouco melhor com o gênero.
Feitas essas considerações, e dada a importância do estudo da HQ como um
gênero que situa no entrecruzamento das modalidades oral e escrita, objetivamos com
esta pesquisa investigar se e como duas coleções de livros didáticos, uma do Ensino
Fundamental e outra do Ensino Médio, abordam em suas unidades a interface
oralidade/escrita no gênero HQ.
2. Ensino de oralidade e escrita no estudo de gêneros na aula de LI
Durante muito tempo a língua falada foi considerada o lugar do caos por conter
muitos elementos pragmáticos tais como pausas, hesitações, digressões, repetições,
truncamentos etc. (cf. FÁVERO et al., 1999), sendo atribuído à língua escrita um lugar
de prestígio e valorização. Entretanto, conforme Thornbury (2005), atualmente, tem
sido dada uma atenção especial à modalidade oral da língua tanto pelo fato de ser a mais
amplamente utilizada pelos usuários em seu dia-a-dia como pelo fato de ser a primeira
modalidade que um usuário nativo aprende em seu desenvolvimento linguístico. No
âmbito do ensino-aprendizagem de uma LE, Thornbury (op.cit.) explica que o texto
falado deve ser objeto de estudo tanto quanto o texto escrito, pois, além de muitos
aprendizes desejarem obter certa fluência na sua oralidade, não poderão compreender
certas práticas de linguagem se dissociarem o texto escrito do falado, uma vez que as
linhas que separam alguns gêneros dessas modalidades são muito tênues.
Tal visão corrobora com os pressupostos de Marcuschi (2003) sobre o fato de
alguns gêneros textuais estarem situados no entrecruzamento da modalidade oral e da
escrita. De acordo com o autor (op.cit.), os gêneros textuais99
estão situados em dois
99
Em outra obra, Marcuschi (2002, p.19) define gêneros textuais como “fenômenos históricos
profundamente vinculados à vida cultural e social” que “contribuem para ordenar e estabilizar as
atividades comunicativas do dia-a-dia”.
P á g i n a | 2364
domínios linguísticos, fala e escrita, e estes domínios se dão em dois contínuos. Há
gêneros que representam espécies de protótipos de determinado domínio, como por
exemplo, uma conversação espontânea, que é típica da modalidade oral, e uma
monografia, que é um gênero bastante representativo da modalidade escrita. Porém,
muitas vezes, os textos se entrecruzam em alguns aspectos, e constituem o que o autor
denomina de domínios mistos. É o caso da carta íntima e do chat, que se realizam no
meio escrito, mas se aproximam da oralidade por sua linguagem informal e pela relação
espontânea entre os interlocutores, e os gêneros aula expositiva e palestra, que se
manifestam oralmente, entretanto tem características típicas do domínio escrito, uma
vez que se constituem de leituras prévias feitas pelo professor, requerem planejamento,
tem certo grau de formalidade etc.
Cabe neste momento, então, definir oralidade e escrita para podermos explicar
como se dão as relações mistas entre os gêneros de ambas as modalidades. De acordo
com Marcuschi (op.cit., p.25), oralidade é
“uma prática social interativa para fins comunicativos que se
apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na
realidade sonora; ela vai desde uma realização mais informal à mais
formal nos mais variados contextos de uso”.
E a escrita seria,
“um modo de produção textual-discursiva para fins comunicativos
com certas especificidades materiais e se caracterizaria por sua
constituição gráfica, embora envolva também recursos de ordem
pictórica e outros” (op.cit., p.26).
Para percebermos as relações mistas entre os gêneros dos dois domínios,
precisamos compreender as noções de meio e concepção discursiva. O meio
corresponde ao modo de recepção de um texto, que pode ser sonoro ou gráfico. Por
exemplo, o meio de recepção de uma conversa telefônica será sempre o sonoro ao passo
que o de um bilhete sempre será o gráfico. A concepção discursiva diz respeito à
natureza do meio em que o texto foi originalmente produzido (cf. MARCUSCHI, 2008).
Um artigo científico, por exemplo, tem uma concepção discursiva escrita, pois foi
pensado e elaborado através da escrita, e seu meio de recepção é o gráfico, pois não
existe outra forma de produção/ recepção para este gênero. Já a conversa telefônica tem
uma concepção discursiva oral, pois é originada através da fala, e seu meio de recepção
é o sonoro, uma vez que não há como estabelecer uma conversa telefônica por meio
gráfico. O que há em comum em ambos os casos é que o meio de recepção e a
concepção discursiva para cada gênero são da mesma modalidade, ou seja, para o artigo
científico, o meio e a concepção são do domínio da escrita (foi desenvolvido e
compartilhado através de um sistema gráfico), e, para a conversa telefônica, o meio e a
concepção são do domínio da oralidade (pois foi desenvolvido e partilhado através da
fala).
Entretanto, há gêneros que são de domínios mistos porque “neles a produção e
o meio são de modalidades diversas” (MARCUSCHI, 2003. p. 40). Uma notícia de TV,
por exemplo, tem uma concepção discursiva escrita, pois foi originalmente planejada e
desenvolvida de forma escrita, porém, tem um meio de recepção sonoro, porque foi
P á g i n a | 2365
compartilhada na televisão por meio da fala de algum repórter. As HQ, que são objeto
de nosso estudo, possuem um modo de recepção gráfico, pois são gêneros que só se
manifestam através do sistema gráfico/pictórico, mas têm uma concepção discursiva
escrita e ao mesmo tempo oral, pois, por um lado, o quadrinhista tem um roteiro e certo
planejamento a seguir para poder desenvolver sua história, mas, por outro lado, os
balões típicos desse gênero reproduzem diálogos, que são característicos da fala. Esses
aspectos, portanto, as situam no domínio misto das duas modalidades.
Tais considerações são importantes para o ensino-aprendizagem de LI, pois
poderá propiciar ao aprendiz uma compreensão/produção mais adequada de
determinado gênero ao ampliar-lhe a visão do que é adequado/ inadequado em termos
de linguagem em determinadas situações comunicativas e com certos interlocutores.
“Desvios” da norma padrão, por exemplo, são aceitos em instâncias comunicativas mais
informais (TOCATLIDOU, 2002). Assim, apesar de ser um gênero da modalidade
escrita, uma HQ permite o uso informal da língua e a presença de elementos
característicos da fala espontânea, porque tais aspectos são típicos desse gênero.
Portanto, acreditamos que se explorarmos os gêneros adequadamente, mostrando a
importância das duas modalidades da língua para a melhor compreensão dos textos,
poderemos favorecer uma melhor qualidade de leitura em LE, pois propiciará ao
aprendiz o reconhecimento de regras socialmente estabelecidas para o uso linguístico
em dadas circunstâncias de produção textual.
3. Os elementos típicos do gênero HQ e a interface oralidade/escrita
Dissemos que o gênero HQ situa-se no domínio misto das modalidades oral e
escrita, e explicamos o que significa esse tipo de domínio. Agora iremos abordar a
definição de HQ, os seus elementos típicos, e a sua relação com as modalidades oral e
escrita.
Segundo Mendonça (2002, p. 199, 200), a HQ é “um gênero icônico ou icônico
verbal narrativo cuja progressão temporal se organiza quadro a quadro”. Desse modo, a
história se constitui da relação da imagem com a palavra, numa organização espácio-
temporal, cujas ações são demarcadas por cada quadro da história. As HQ de um modo
geral situam-se no que a autora chama de “constelação de gêneros não-verbais ou
icônico-verbais assemelhados” (p.197), dentre estes gêneros estão os cartuns, as
charges, as caricaturas, as tiras e as próprias HQ. Tais gêneros apresentam não só
aspectos em comum, mas também diferenças entre si. As HQ, por exemplo, compõem-
se de vários quadrinhos com uma sequência narrativa, ao passo que a charge constitui-se
de um único quadro, e as tiras de, no máximo quatro quadros (Mendonça, op.cit.). A
charge normalmente satiriza pessoas ou situações conhecidas publicamente e são
marcadas pela atualidade, enquanto que o cartum é mais atemporal e envolve
acontecimentos e pessoas comuns, sem destaque público (AROEIRA, 2001).
Mendonça (op.cit.) explica que quanto o tipo textual as HQ são do tipo
narrativo, dada a predominância dessa espécie de sequência no gênero, contudo, outras
sequências tipológicas podem aparecer tais como a argumentativa, a injuntiva, a
expositiva, entre outras.
P á g i n a | 2366
Ao falar sobre os elementos das HQ, Mendonça (ibidem) aponta os balões, os
quadros e os desenhos, e Nicolau (2008) acrescenta a estes, as onomatopeias e as caixas
de texto com a voz do narrador. Os balões servem de moldura para a fala/pensamento da
personagem. Os quadros, ou vinhetas, funcionam como moldura de um momento da
ação, situando-a no tempo. Eles em geral aparecem na forma retangular ou quadrada.
Segundo McCloud (2005), “o quadro funciona como um tipo de indicador de que o
tempo ou espaço está sendo dividido.” (p.99). Os desenhos aparecem imóveis na
história, mas o leitor os “movimenta” em sua imaginação, a partir da leitura de cada
quadro, dando-lhes vida e movimento, e reconstruindo o fluxo narrativo. As
onomatopeias são componentes verbais de intensa sonoridade e componentes visuais de
intensa expressividade. Apesar de se apresentarem de modo gráfico/pictórico, elas dão a
impressão ao leitor de que ele está ouvindo aquele determinado som. As caixas de texto
indicam a voz do narrador.
Apesar do fácil reconhecimento de uma HQ quanto à identificação dos seus
elementos, elas se constituem em gêneros bastante complexos quanto ao seu
funcionamento discursivo, que demanda do leitor vários tipos de conhecimentos se
quiser interpretá-las adequadamente. O leitor precisa estar consciente, por exemplo, de
como os elementos icônicos se harmonizam com o tamanho das letras e alguns símbolos
para poder reproduzir certos aspectos da fala. Desse modo, se um quadrinhista quiser
apresentar um personagem xingando outro, ele pode lançar mão de palavras em negrito,
ou em caixa alta para expressar a altura da voz, ou pode se utilizar de símbolos como
caveiras, ossos e estrelas, que representam palavrões, para poder comunicar sua ideia
(cf. MONTEIRO, 2003).
Além disto, é fundamental que se compreenda que as HQ são constituídas de
uma dimensão verbal e de uma dimensão não verbal, e que, portanto, ao serem
abordadas na sala de aula de LE, não devem ter nenhuma dessas dimensões
negligenciadas, visto que dialogam harmoniosamente na produção de sentidos
(OLIVEIRA, 2001; MONTEIRO, op.cit.). Hoje, o reconhecimento de que ambas as
semioses são igualmente importantes para a produção de significados é algo
amplamente aceito e defendido pelos estudiosos de quadrinhos, mas, durante algum
tempo, o desenho nos quadrinhos foi relegado a um lugar secundário em detrimento da
narrativa (texto verbal), conforme atesta Groensteen (2004). Entretanto, ao falar sobre a
complexidade desse gênero, e ao pôr em relevo a importância do desenho na sua
composição, o referido autor defende que a representação do desenho “deixaria de estar
em segundo plano nos quadrinhos, em função da história (narrativa) tornando-se uma
escrita singular, a expressão de uma sensibilidade e o resultado de uma habilidade”
(op.cit. p.15).
Para além dos elementos já elencados e das semioses envolvidas na composição
do gênero, McCloud (2005) apresenta as noções de sarjeta e conclusão. A sarjeta (ou
hiato) corresponde ao espaço existente entre os quadros que é preenchido pelo leitor e
que estabelece a relação entre o quadro anterior e o posterior no fluxo narrativo da HQ.
Nesse aspecto, o leitor exerce uma espécie de co-autoria da HQ, pois ele é quem
preenche o que não foi “dito” pelo autor. A conclusão refere-se ao fenômeno de
observação das partes, mas compreensão do todo por parte do leitor. A esse respeito,
observe a tira (fig.1) a seguir:
P á g i n a | 2367
http://www.timetravelturtle.com/wp-content/uploads/2011/11/mafalda_nuclear_war.jpg
Fig.1
Ao ler a tira da Mafalda, o leitor pode ter algumas percepções sobre a história
mesmo ela não estando em movimento. Na passagem do segundo para o terceiro
quadro, por exemplo, ele pode “visualizar” os três colegas (Mafalda, Manolito e
Susanita) se digladiando e se ferindo, apesar da imagem apenas mostrar os três estirados
ao chão e a onomatopeia ‘booom!’. Isto é, não há detalhes sobre a brincadeira, nem
sobre o que acontece para que eles venham a cair, mas o leitor pressupõe e preenche
esses espaços (ou hiatos) em sua mente. A conclusão diz respeito exatamente a essa
capacidade de examinar as partes e fazer deduções sobre o todo. Pode-se perceber aqui
a participação do leitor, assumindo uma espécie de co-autoria com a obra, ao preencher-
lhe as sarjetas e atribuir-lhe uma conclusão.
As características e elementos das HQ ilustram o quanto elas estão situadas na
interface oralidade/escrita. Como dito anteriormente, o diálogo espontâneo é
característico da oralidade e tem uma concepção discursiva oral, no entanto, no gênero
HQ (e seus subtipos), seu meio de expressão é o gráfico/ pictórico. Os quadrinhistas têm
que lançar mão de certos elementos gráficos tais como pontos de exclamação, letras em
negrito, tamanho diferenciado de letras, entre outros, para poder expressar o que
acontece numa conversação face a face. No caso da tira, foram utilizados pontos de
exclamação uma onomatopeia para ilustrar a ‘briga’ entre os garotos. Isto é resgatado
pelo quadrinhista de tal forma que o leitor consegue quase “presenciar” o evento,
“ouvindo” os gritos entre os personagens e o “barulho” deles caindo ao chão. O
preenchimento dessas sarjetas e essas conclusões só são possíveis porque o leitor, além
de conhecer as pistas deixadas pelo quadrinhista para a construção da história,
reconhece o que é típico numa briga e consegue relacionar esses elementos mesmo
estando diante de um gênero da escrita.
Sobre o uso dos manuais didáticos na aula de LI
A proposta dos PCN do Ensino Médio (2000) para o ensino de LE é de que ele
seja voltado para o desenvolvimento de competências comunicativas (gramatical,
sociolinguística, discursiva e estratégica) ao invés de um enfoque em normas
gramaticais, que, via de regra, priorizam a modalidade escrita da língua em detrimento
da modalidade oral. Nesse sentido, um trabalho adequado com gêneros orais e escritos é
primordial para auxiliar a desenvolver no aluno tais competências e torná-lo mais
P á g i n a | 2368
consciente sobre as diferentes formas de produção textual, inseridas num contexto
histórico-social. Em outras palavras, tal proposta de ensino de LE deve familiarizar o
aluno com os mais diferenciados gêneros de texto, conscientizando-lhe sobre o que é
aceito socialmente e o que não é. E isto não tem tanto a ver com informar-se apenas
sobre a norma culta da língua, mas em que situações comunicativas (e gêneros) essa
norma deve ser mais considerada e em que situações ela não é tão necessária.
Uma das principais ferramentas para o ensino de LE, e, no nosso caso, de LI, é o
livro didático (RAMOS, 2009). Portanto, sendo um instrumento tão utilizado pelos
professores de LI, pressupomos que deve considerar o que preconizam os PCN em sua
proposta teórico-metodológica100
. Ao abordar os gêneros textuais, por exemplo,
acreditamos que o LD necessita mostrar as peculiaridades de determinados gêneros
orais e escritos, explicitando suas diferenças e semelhanças, e relacionando tais
características ao uso da norma culta. Assim, se em sua proposta apresentar o gênero
HQ, pode ressaltar que o uso de abreviações, gírias e repetições é perfeitamente
aceitável porque, apesar de ser um gênero típico da modalidade escrita, reproduz
aspectos da fala e, por conseguinte, permite um uso mais informal da língua.
Tais aspectos foram levados em consideração ao refletirmos sobre as atividades
propostas para o trabalho com quadrinhos nas duas coleções de LD analisadas. A seguir,
apresentamos uma breve descrição das coleções.
4. Sobre as coleções
A coleção RADIX, da Editora Scipione, é composta por uma pasta pedagógica e
4 volumes de livros (com seus respectivos CDs), um para cada ano do 3º e 4º ciclos do
Ensino Fundamental II. Cada volume da coleção abre com uma unidade chamada All on
board, que, segundo as autoras da coleção, Elizabeth Young Chin e Maria Lúcia Zarob
(2013), “dá as boas-vindas aos alunos a mais um ano de aprendizagem” (p.46)101
. Os
livros são compostos por oito módulos. Cada módulo do 3º ciclo (volumes 1 e 2) possui
duas unidades de trabalho que compreendem as seguintes seções: Get in the mood,
Presentation, Language Work and Skills Work. A cada duas unidades, há o acréscimo
da seção intitulada Review, com o objetivo de revisar as unidades, e perfaz um total de
oito revisões em todo o livro. Ao final de cada volume há ainda as seguintes seções: The
8 Millenium Developing Goals, Surfing the web e Extra activity. O projeto Surfing the
web visa utilizar o computador como um instrumento de ampliação do currículo do
aluno e de impulsionamento do desenvolvimento de suas competências e habilidades.
No volume destinado ao 9º ano, esta seção está inteiramente dedicada à criação de uma
tirinha, pelo que será objeto de nosso estudo nesta pesquisa.
Os módulos do 4º ciclo têm o mesmo tipo de estrutura dos módulos do 3º ciclo
com a diferença de que apresenta 12 unidades de trabalho e apenas 6 revisões. Algumas
unidades apresentam uma seção com o nome de Project, que visa instigar os aprendizes
100
Não é nossa intenção aqui discutir as vantagens e desvantagens do uso do LD na aula de LI, mas
apenas fazer algumas reflexões sobre sua abordagem ao gênero textual HQ. Para um estudo sobre os
papéis do LD no ensino de LI sugerimos a leitura do artigo de Ramos (2009) intitulado O livro didático
de língua inglesa para o ensino médio: papéis, avaliação e potencialidades. 101
Essas instruções sobre a organização do livro e os objetivos de cada seção encontram-se na pasta
pedagógica da coleção RADIX.
P á g i n a | 2369
a partilharem o que aprenderam em sala com o mundo exterior e a trazerem para dentro
dela os conhecimentos adquiridos lá fora. Em cada unidade, situados em diferentes
lugares ao longo dos volumes, existe um boxe chamado Cool, que consiste de atividades
curtas e lúdicas para o aluno realizar ou de curiosidades sobre a linguagem ou cultura de
diferentes povos, com o intuito de criar um momento de descontração na aula e ainda
contribuir para o desenvolvimento da habilidade de leitura. É nesta seção que se
encontra a maioria dos cartuns e tiras da coleção pelo que também constituirá parte do
corpus de nossa análise.
A coleção On stage, de autoria de Amadeu Marques (2011), Editora Ática, é
composta por três volumes e está destinada aos estudantes do Ensino Médio. Os dois
primeiros volumes possuem quatro partes temáticas, cada uma composta por quatro
unidades (intituladas Units) intercaladas por testes, que incluem questões dos exames de
acesso ao Ensino Superior. Esses volumes, segundo o autor (op,cit. p.2), “cobrem todo o
conteúdo programático das estruturas gramaticais da língua inglesa” 102
. O terceiro livro
se diferencia um pouco dos demais porque não aborda conteúdos gramaticais, mas
apresenta uma grande quantidade de gêneros textuais com o objetivo de enfocar a
prática de leitura. Ao longo dos três volumes aparecem cartuns e tiras, mas apenas no
volume 2 tem uma unidade totalmente destinada ao trabalho com o gênero HQ. Esta
unidade, portanto, será o objeto maior da nossa análise.
5. Enquadrando os quadrinhos no livro didático de LE
Devido ao grande número de atividades com HQ em ambas as coleções, fizemos
um recorte das que consideramos mais representativas da proposta pedagógica de cada
livro e mais relevantes para o objetivo desta pesquisa.
A primeira atividade de HQ que gostaríamos de destacar encontra-se na unidade
7 do segundo volume de RADIX (7º ano). Essa unidade aborda a importância dos
hábitos de estudo para o desempenho escolar. Observemos a tira a seguir:
CHIN, E. Y. & ZAROB, M. L. Radix (7º ano). São Paulo: Scipione, 2013, p.67.
Fig. 2
102
MARQUES, Amadeu. On Stage 1 (Manual do professor). São Paulo: Ática, 2011. O manual do
professor vem ao final do livro do professor com os pressupostos teóricos norteadores da coleção e com
as traduções de alguns textos do livro.
P á g i n a | 2370
As autoras perguntam se o aluno tem um perfil de estudante mais parecido com
o de Marcie ou o de Patricia (tradução nossa) 103
. Para responder a esta pergunta o
estudante precisa perceber que o ambiente em que as personagens estão inseridas é uma
sala de aula (pelo posicionamento das carteiras, o quadro negro etc.), e que a situação é
um pedido de cola na realização de uma prova, pois Patricia (em tom de sussurro) pede
que Marcie responda rapidamente se a primeira questão é verdadeira ou falsa. Patricia
se surpreende com a segurança da colega ao dar a resposta e questiona como ela pode
ter tanta certeza assim. Marcie justifica sua certeza quanto à resposta porque fez as
atividades de casa e estudou para a prova. Patricia se admira da atitude da colega e
responde “Wow!”. Nesta atividade, os alunos são estimulados a perceber os hábitos de
estudos das personagens e compará-los com os seus, relacionando a leitura à sua prática
social, em consonância com o que preconizam os PCN e com a proposta pedagógica da
coleção, porém, os elementos típicos da HQ, que poderiam enriquecer a leitura, não são
explorados. Aspectos da fala tais como “Depressa, Marcie104
”, no primeiro quadro,
poderiam ser evidenciados como característicos da conversação espontânea, mas que
estão presentes no texto escrito pela natureza do gênero HQ.
Aqui não houve exploração do gênero em si, nem da interface oralidade/escrita,
mas procurou-se abordar compreensão textual através do estudo vocabular e da
recuperação do tema da unidade. Esse resgate do tema através das HQ é recorrente em
quase todas as lições da coleção e faz parte da sua proposta pedagógica, entretanto,
algumas atividades também focaram aspectos outros tais como as duas semioses
envolvidas no gênero.
Na unidade 11 do volume do 6º ano, aparece um cartum (fig.3), que, conforme
Chin & Zarob (2013), tem a finalidade de introduzir o humor para o tema da unidade
que é sobre a matéria escolar favorita do aluno 105
e explorar as duas semioses do
gênero. Segundo elas, as questões levam o aluno “a perceber a relação entre as
linguagens visual e verbal nos quadrinhos, como ele pode usar uma para entender a
outra e, consequentemente, o quadro todo” (op.cit. p.103).
CHIN, E. Y. & ZAROB, M. L. Radix (6º ano). São Paulo: Scipione, 2013, p.103.
Fig.3
A primeira questão pede que, após a leitura, o aluno identifique a matéria escolar
abordada no cartum (Inglês, Educação Física ou Ciências). A segunda pede que o aluno
103
No original: “Are you more like Marcie or Patricia?” 104
No original: Quick, Marcie. 105
No original: “What’s your favorite subject?”
P á g i n a | 2371
discuta com os colegas o que o ajudou a compreender o quadrinho (se o desenho, o
balão de fala ou os dois) e se ele considerou o quadrinho engraçado e por que. Aqui já
pode se observar um avanço na abordagem ao gênero HQ quanto aos seus elementos,
pois foram postas em relevo as duas dimensões típicas do gênero e o fato de que o balão
representa a fala das personagens.
No último volume, encontramos uma seção, intitulada Surfing on the web
(p.156), inteiramente dedicada à elaboração de uma HQ. Aqui, verifica-se a proposta de
elaborar uma tira ou HQ completa a partir de ferramentas da internet enfocando o tema
da unidade 11 do mesmo volume, com o objetivo de expressar os sentimentos do
estudante sobre certas questões típicas da adolescência. Primeiramente, as autoras falam
sobre a importância da internet como ferramenta de aprendizagem. Em segundo lugar,
elas apresentam o objetivo do projeto, que é a criação de uma HQ, e definem o que vem
a ser este gênero. Segundo elas (op. cit., p.156), “Uma tirinha é uma sequência de
desenhos que conta uma história com ou sem o auxílio de palavras em balões ou
quadros. Ela pode ser humorística ou não” – (Tradução nossa)106
. Somente neste
último volume aparece a concepção de HQ adotada pela coleção. Em seguida, elas dão
as orientações para a elaboração do gênero: divisão dos grupos, escolha do tema, estudo
do gênero em questão, criação da tira a partir de uma website, publicação e auto-
avaliação em todo o processo.
Este projeto de fato pressupõe um trabalho mais adequado com o gênero HQ,
pois apresenta e define alguns de seus elementos típicos (quadro, personagem,
onomatopeias, objetos, formas e balões) e apresenta os balões como representativos da
fala, como pode ser observado na fig. 4. As noções de tempo, hiato e conclusão não são
mencionadas, mas já há um avanço no trabalho com este gênero.
CHIN, E. Y. & ZAROB, M. L. Radix (9º ano). São Paulo: Scipione, 2013, p.157.
Fig.4
As autoras recomendam que se explorem as características da linguagem das
HQ, mas não há menção a que tipo de linguagem seria essa: se mais objetiva, ou mais
elaborada, se mais próxima da fala ou da escrita. Fica o espaço para o professor levar
seu aluno a perceber que tipo de linguagem é mais apropriado neste gênero através da
observação minuciosa da HQ. Ao explorar a linguagem peculiar das HQ, o professor
pode enfatizar o emprego de elementos típicos da oralidade neste gênero escrito. No
106
No original: “A comic strip is a sequence of drawings that tells a story with or without the help of
words in balloons and captions. It can be humorous or not”.
P á g i n a | 2372
caso da tira da fig.5, o professor pode mostrar o uso do Hey, por exemplo, que é
informal e utilizado na interação face a face, mas é perfeitamente aceitável numa HQ
uma vez que está retratando uma conversação espontânea. Pode ainda mostrar que o Ha
ha foi utilizado para expressar o riso da personagem, entre outros.
Na coleção On Stage, a primeira parte temática do livro 1 aborda a relação do
homem com a natureza e, portanto, trata de assuntos relacionados à poluição,
aquecimento global, desmatamento etc. O primeiro cartum do volume (fig.5) aparece na
seção In a few words (p.23) da unidade 1 com o objetivo de resgatar o tema da lição,
aquecimento global, e trabalhar compreensão textual.
MARQUES, Amadeu. On Stage 1. São Paulo: Editora Ática, 2011, p.23.
Fig.5
O exercício referente a esse cartum requer que o aluno assinale a alternativa
correta e compreende três questões feitas em língua portuguesa. São elas: “O problema
que preocupa a pessoa que fala é”, “O homem acha que esse problema” e “Como
consequências dos efeitos desse problema”. Para responder às primeiras perguntas da
atividade, o estudante precisa compreender apenas a linguagem verbal do texto, mas
para responder à última, a linguagem não verbal também é necessária. As características
típicas do gênero bem como a sua inserção na interface oralidade/escrita não são
mencionadas talvez por ser uma coleção destinada ao Ensino Médio e que visa
primordialmente preparar o estudante para realizar exames de ingresso no Ensino
Superior. As atividades com as HQ, portanto, concentram-se em revisar itens
gramaticais, testar vocabulário, levar o aluno a realizar inferências e trabalhar
compreensão geral e detalhada.
Entretanto, há algumas atividades em que as duas semioses típicas do gênero são
consideradas. É o caso da quarta parte temática do volume 2 em que o autor irá enfocar
magia e ficção. O capítulo 13 abre essa sessão e está todo voltado para as HQ de Calvin
& Hobbes. Logo no início da lição, há uma HQ da dupla e uma pequena introdução
mostrando o quanto essas personagens são populares e difundidas e suas histórias são
queridas pelos leitores.
Como atividade de pré-leitura, o autor faz questionamentos sobre quem são as
personagens, o conhecimento prévio do estudante sobre elas etc. Entretanto, tais
P á g i n a | 2373
perguntas já foram em parte respondidas na página anterior, o que impossibilitaria uma
real resposta do aluno. Em seguida, uma HQ sobre um dia na rotina de Calvin é
apresentada logo após a atividade de pré-leitura. São feitas perguntas objetivas ora com
o propósito de identificar a ideia ‘principal’ do texto ora com o objetivo de levar o aluno
a identificar alguma ideia pontual na HQ.
Depois são realizadas várias atividades de vocabulário, inclusive muito
importantes para a compreensão leitora, mas que não são do escopo deste trabalho. Há
atividades que requerem a busca por informação específica, exercícios estruturais, i.e.
discurso indireto, imperativo, mas nenhuma atividade trabalha a HQ enquanto gênero.
A visão de leitura como decodificação em alguns momentos é bastante perceptível,
embora na proposta pedagógica seja ressaltado que não. Os elementos das HQ não são
evidenciados e a relação fala/escrita não é considerada.
A última HQ que aparece nesta unidade, na seção In a few words, poderia
ilustrar muito bem a relação fala/escrita típica do gênero. Há dois gêneros escritos com
características da fala numa única HQ (fig.6).
MARQUES, Amadeu. On Stage 2. São Paulo: Editora Ática, 2011, p.173.
Fig.6
O texto aborda o fato de Calvin estar escrevendo um cartão para sua mãe
desejando-lhe uma pronta convalescência. Assim como a HQ, um cartão desse tipo
permite uma linguagem mais informal e um cumprimento mais espontâneo, apesar de
serem gêneros da modalidade escrita. O professor pode usar esse texto para explorar
usos da língua, a relação fala/escrita, além de abordar as questões de interpretação
textual propriamente ditas.
Entretanto, o que se observa na coleção é que as perguntas de resgate seguem
por quase todas as atividades envolvendo os cartuns e tiras do livro, sem considerar as
suas características típicas, embora na proposta pedagógica seja mencionado um
trabalho adequado com os diferentes gêneros propostos. Obviamente, muitas das
atividades apresentadas contribuem para a formação do aprendiz-leitor de LE que
pretende prestar exame de ingresso para o ensino superior, mas deixa lacunas no que
concerne a uma proposta de estudo dos diversos gêneros, pois aborda quase todos da
mesma forma independentemente de suas especificidades.
P á g i n a | 2374
5. Considerações Finais
As sociedades mudam e com elas as maneiras de pensar, agir e significar.
Paradigmas e tabus são quebrados a cada momento da história. Aquilo que era prestígio
ontem, hoje é relativizado, tal como acontece com a escrita (que historicamente sempre
teve supremacia sobre a fala), e o que era negligenciado no passado, agora é posto em
relevo. O texto que era considerado apenas de entretenimento há algum tempo atrás, a
exemplo da HQ, hoje é objeto de estudo de inúmeras pesquisas científicas, por sua
complexidade, beleza e riqueza de elementos. Nas palavras de Pretti (2004:19): “novas
maneiras de dizer se constituíram” porque “se alteraram profundamente os critérios de
aceitabilidade social da linguagem”.
Considerando essas rupturas de paradigmas nos estudos da linguagem,
resultando na valorização da fala como objeto de ensino-aprendizagem na aula de LE,
objetivamos com esta pesquisa investigar se e como livros didáticos de LI estão
contemplando a relação fala/escrita em suas propostas de atividades aos gêneros, e, mais
especificamente ao gênero HQ, que tem sido tão amplamente investigado em nossos
dias.
Com a investigação, observamos que as atividades em geral propostas pela
coleção RADIX concentram-se em requerer que o aluno identifique o tema abordado
pela HQ, debater suas respostas em classe e mostrar as implicações sociais dos temas
abordados. Em alguns momentos, verifica-se uma orientação para uma boa exploração
dos desenhos e sua relação com o verbal e um incentivo à percepção de como o humor é
configurado no gênero. Porém, a questão da identificação da modalidade oral presente
em um gênero da escrita só é rapidamente explorada na última atividade com HQ no
último volume da coleção.
Considerando a coleção On Stage, observamos que, embora na sua proposta
pedagógica, haja a menção a um trabalho com gêneros, os elementos típicos deles em
geral não são explorados (com algumas exceções), mas apenas são realizadas atividades
de compreensão textual com o mesmo tipo de abordagem aos textos independentemente
do gênero utilizado. Observamos que talvez isto se deva ao fato de ser uma coleção
destinada a quem vai prestar exames de ingresso no ensino superior, mas, acreditamos
que, mesmo assim, um trabalho adequado com os gêneros poderia ajudar na formação
de aprendizes mais conscientes do que acontece no conjunto das práticas sociais.
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P á g i n a | 2376
REPRESENTAÇÕES DE IDOSOS VEICULADAS NOS MAMUAIS DE FRANCÊS
LÍNGUA ESTRANGEIRA
Maria Auxiliadora de A. V. Filha
(CESREI)107
Rosiane Xypas (UFCG)108
RESUMO: O ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras pode feito em todas as
idades. As representações da aprendizagem de línguas estrangeiras em crianças,
adolescentes, jovens e adultos têm sido enfoque de diversos estudos sobre o tema.
Contudo, as representações do ensino/aprendizagem no que concerne o idoso são bem
mais raras. Sendo o manual um dos suportes didáticos mais utilizados para se trabalhar
as competências socioculturais, o presente trabalho pretende analisar as imagens do
idoso nos manuais didáticos de Francês Língua Estrangeira (FLE). Sabe-se que a
sociedade francesa é composta por mais de 45% por idosos, as imagens dos mesmos
quase não são encontradas nos manuais. Por isso questionamos: quais representações do
idoso veiculadas nos manuais de Francês como língua estrangeira? Será que o idoso
francês está bem inserido na sua sociedade e tem relação com a aprendizagem? Será que
ele interage nos espaços sociais de forma participativa? Para responder a estes
questionamentos realizamos uma pesquisa de cunho quantitativo e qualitativo com um
corpus composto por manuais dos anos 80, 90, 2000 até 2012. Ora, para nossa surpresa
o idoso não é representado nos manuais dos anos 80 nem nos anos 90. Ele aparece
significativamente em 2007, depois há uma leve decaída e reaparece nos dias de hoje.
Os nossos resultados sugerem que as representações dos idosos indicam a inserção de
modo ativo desta camada da população. Em outras palavras, indicam um
envelhecimento saudável, com oportunidades de aprendizagem, crescimento e
realização no âmbito social no qual estão inseridos. Esta pesquisa de cunho qualitativo
apresenta resultados à luz de teóricos tais como Bauer (2012), Volli (2012),
Jodelet(1984) entre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Francês Língua Estrangeira; Idoso; Manuais Didáticos,
Representações
1. Introdução
Sabemos que o número de idosos cresce mais e mais e as imagens que os
representam vêm se modificando com o passar dos anos. Na França, esse cenário não é
diferente, por exemplo. Mais de 45% da população francesa são do grupo da melhor
idade. E o que essa realidade representa? Que cada vez mais novos espaços necessitam
ser pensados para que esse público possa ter, além dos cuidados necessários nesta fase
107
Professora de Comunicação da CESREIS, E-mail: [email protected] e pesquisadora do
Grupo de Pesquisa Didática de Línguas Estrangeiras: Teorias, culturas e representações – DILES, Cnpq –
UFCG. 108Professora, Doutora, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-mail:
P á g i n a | 2377
da vida, novas oportunidades de convivência, experiência e aprendizado. Tendo em
vista que muitos dos aspectos da sociedade e das pessoas que a compõem através das
imagens, perpassam pelos manuais didáticos, pensamos ser importante verificar como
esse público é representado nos manuais de Francês Língua Estrangeira (doravante
FLE), já que estes são direcionados para estudantes de diversos países ao redor do
mundo. Questionamos: como se dá as representações do idoso nos manuais de francês
como língua estrangeira? Será que o idoso francês está bem inserido na sua sociedade e
tem certa relação com aprendizagem e o lazer, motivando-o a viver de forma
participativa, interagindo nos espaços sociais, construindo caminhos para um
envelhecimento saudável?
Observamos que o ensino de línguas estrangeiras pode ser feito em todas as
idades. As representações da aprendizagem de línguas estrangeiras em crianças,
adolescentes e adultos têm sido enfoque de diversos estudos sobre o tema. Contudo, as
representações do ensino/aprendizagem no que concerne ao idoso ainda são pouco
estudadas por profissionais do âmbito das linguagens. Assim, justificamos nossa
escolha por essa temática.
Sabemos que o manual é um dos suportes didáticos mais utilizados para se
trabalhar as competências socioculturais. Sendo assim, pretendemos com o presente
trabalho analisar as imagens do idoso nos manuais didáticos de Francês Língua
Estrangeira (FLE). Tendo em vista que, as imagens quando valorizadas, são aberturas
para diversas possibilidades de leituras e de interpretações, não devemos desconsiderar
àquelas apresentadas nos manuais. Se aguçarmos nosso olhar, perceberemos que elas
nos instigam a fazermos referências, inferências a algo que está explícito, como
também, ao que muitas vezes, está implícito. Elas sempre estão representando pessoas,
fatos, acontecimentos que significam socialmente.
Realizamos uma pesquisa em manuais dos anos 80 até 2012 com o intuito de
verificar se as representações do idoso francês na atualidade estão relacionadas com
aspectos negativos associados à velhice como doença, inutilidade e ausência social ou
não. Será que as imagens do idoso francês nos referidos manuais representam
integração ou ausência social dessa camada da população?
2. Fundamentação teórica
Uma das primeiras reflexões a respeito das imagens dos idosos, encontramos em
Ariès (2011) quando ele apresenta seu estudo sobre as idades da vida. Ele assinala que,
em geral, antes do século XVIII, o ancião era considerado ridículo. Ou seja, a França
antiga não respeitava a velhice. Essa fase da vida era considerada a idade do
recolhimento, dos livros, da devoção e da caduquice. A imagem do homem integral nos
séculos XVI-XVII era a de um homem jovem. Podemos afirmar de acordo com o
estudioso que o século XVII se reconhecia na juventude, o século XIX na infância e o
século XX na adolescência.
Ainda segundo o autor, na atualidade a velhice desapareceu do francês falado,
onde a expressão vieux subsiste com sentido de gíria, pejorativo ou protetor. Essa
mudança se deu em dois momentos. Inicialmente houve o ancião respeitável, o ancestral
de cabelos de prata, o patriarca de experiência preciosa. E em um segundo momento, o
ancião desapareceu e foi substituído pelo “homem de uma certa idade” e por “senhores
e senhoras muito bem conservados”. Trata-se de uma noção burguesa que tende a se
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popularizar. Aos poucos, afirma o estudioso, a ideia tecnológica de conservação vai
substitui a ideia ao mesmo tempo biológica e moral da velhice.
Debert (2012) assinala que a partir da segunda metade do século XIX, a velhice
era percebida como uma etapa da vida caracterizada pela decadência física e ausência
de papéis sociais. Já na contemporaneidade a tendência é rever os estereótipos
associados ao envelhecimento. Ou seja, a ideia de um processo de perdas vem sendo
substituída pela “consideração de que os estágios mais avançados da vida são os
melhores momentos para realizações de projetos abandonados em outras etapas da vida
e estabelecer relações mais profícuas com o mundo dos mais jovens e dos mais velhos”.
De certa maneira, a autora está concordando com as reflexões de Ariès (1884, p.?????)
A nova imagem do idoso, de acordo com a antropóloga, não oferece
instrumentos capazes de enfrentar a decadência em habilidades cognitivas e os controles
físicos e emocionais que são fundamentais na nossa sociedade. Dito de outra maneira,
nas representações atuais da velhice há um silenciamento dos problemas e dificuldades
referentes a essa fase da vida.
Pensando no contexto francês, Guillemard (1986, apud DEBERT 2012) ressalta
que a sensibilidade no que diz respeito ao idoso perpassa por três grandes conjuntos de
transformações, entre1945 aos dias atuais. A autora defende que entre de 1945 a 1960 a
velhice é associada à situação de pobreza. Nesse período há uma discussão sobre os
meios de subsistência dos trabalhadores idosos e além da aposentadoria eles passam a
ter outras formas de assistência. Entre 1959 e 1967, a velhice passa a ser associada à
ideia de solidão e marginalidade. As condições de vida dessa camada da população
francesa são enfatizadas e novas práticas são pensadas e realizadas, como por exemplo,
o lazer, as férias e os serviços especializados para os aposentados, fazendo assim, do
modo de vida, o campo privilegiado de intervenção. Em seguida tem-se o terceiro
período que é caracterizado pela ideia de pré-aposentadoria. Assim há uma revisão da
idade cronológica própria à aposentadoria. A nova sensibilidade em relação à velhice é
justamente percebê-la como o momento em que o trabalho é ilegítimo. Podemos
observar nas reflexões acima que a imagem da velhice vem mudando à medida que a
sociedade vai se transformando. Outrora, a imagem do idoso é relacionada a
estereótipos estigmatizados. Na atualidade, esses estereótipos estão cada vez mais sendo
repensados e transformados pela ideia da saúde e juventude eterna, projeções e
realizações sociais.
Segundo Jodelet (1984) essa designação “representação social” foi retomada por
Moscovici no início dos anos 60, mas é um conceito que já havia sido pensado por
Durkheim. Trata-se de uma noção oriunda da Psicologia Social. Ela nos dá uma
definição geral do seja representação:
« O Conceito de representação social designa uma forma de
conhecimento específico, o saber do senso comum, no qual os
conteúdos manifestam a operação dos processos generativos e
funcionais socialemente marcados. Mais largamente, ele deseigna uma
foram de pensamento social (JODELET, 2012, p.361)109
».
109
« Le concept de représentation sociale designe une forme de connaissance spécifique, le savoir de sens
commun, dont les contenus manifestent l’opération de processus génératifs et fonctionnels socialment
marqués. Plus largement, Il designe une forma de pensée sociale. » (Jodelet, 1984, p.361).
P á g i n a | 2379
Podemos afirmar de acordo com autora que, a representação social diz respeito a
imagens que condensam um conjunto de significações, sistema de referência que nos
permitem interpretar o que nos chega.
Após, mencionar alguns dados de pesquisas realizadas no campo das
representações, a estudiosa apresenta duas constatações que podem definir a
representação social:
“De um lado, a representação social é definida por um conteúdo:
informações, imagens,, opiniões, atitudes etc. Este conteúdo se volta
para um objeto : um trabalho a fazer, um evento econômico, um
personagem social etc. Por outro, a reprsentação social de um sujeito.
A representação é pois a tributária que os sujeitos ocupam na
sociedade, na cultura etc.” 110
Ou seja, é importante refletir sobre as significações que permeiam as imagens
nos manuais de FLE. Estas não se encontraram no livro didático aleatoriamente, sem
um motivo específico, elas não representam sem uma intencionalidade. De um lado,
pode ser definida por um conteúdo de informações como imagens, por exemplo. E por
outro lado, a representação social de um sujeito. No caso do nosso trabalho, as imagens
estudadas nos manuais concernem às representações do sujeito idoso percebido pela
sociedade francesa.
Entendemos por meio do texto da referida autora que a representação social diz
respeito a um conhecimento de mundo, construído, reconstruído e partilhado
socialmente.
Volli (2012) no seu livro Manual de Semiótica já no seu segundo capítulo
assinala que os significados que são aceitos por uma determinada sociedade variam com
o tempo. Pensamos que as representações também assim acontecem nos seus processos
de construção e reconstrução. A infância não é representada hoje, por exemplo, igual era
no passado. Assim, as representações da velhice se modificam conforme as mudanças
socioculturais e econômicas que vão acontecendo ao longo do tempo nas sociedades.
O teórico reflete de forma didática sobre a relação entre significante e
significado esclarecendo que a mesma algumas vezes “aparece simples, direta, bem
delimitada” e aí é possível falarmos em denotação de um signo. Esclarece ainda que
outras vezes “o significante é utilizado para evocar significados mais amplos e vagos”.
Trata-se do ele que nomeia de “halo semântico” e que tradicionalmente é traduzido por
conotação. (VOLLI, 2012, p.49). Ou seja, esta última, nos dá inúmeras possibilidades
de significações, interpretações e sentidos. Enquanto aquela nos indica de forma direta e
objetiva o significado básico, geral de um signo verbal ou visual.
Quando nos deparamos com uma imagem logo percebemos do que se trata: uma
pintura, um desenho, uma fotografia etc. Ela nos indica um lugar, uma pessoa, um fato
conhecido ou desconhecido. Essa indicação servirá para darmos voos mais altos nas
110 D’un côté, la représentation sociale est définie par un contenu: informations, images, opinions,
attitudes,etc. Ce contenu se rapporte à un objet: um travail à faire, um événement écoconomique, um
personnage social, etc. D’un autre côté, la répresentation sociale d’un sujet (individu, famille, groupe,
classe...) en rapport avec un autre sujet. La representation est donc tributaire de la position que les sujets
occupant dans la societé, l’économie, la culture. (JODELET, 1984, p.362)
P á g i n a | 2380
nossas interpretações a depender do nosso conhecimento de mundo, do acesso aos bens
educacionais e culturais.
Bauer e Gaskell (2012) tratando da análise semiótica de imagens paradas
ressaltam que linguagem e imagens são diferentes. A imagem é sempre polissêmica ou
ambígua e é por isso que a maioria está sempre acompanhada de algum tipo de texto.
Este tira a ambiguidade da imagem. Esta relação, segundo os autores, Barthes (1964a:
11) denomina de ancoragem, em contraste com a relação mais recíproca de
revezamento, onde tanto imagens como texto contribuem para o sentido completo.
Outra diferença importante é que tanto na linguagem escrita quanto falada, os signos
surgem sequencialmente. Enquanto que nas imagens os signos se fazem presentes
simultaneamente. Conforme os teóricos, Barthes ainda apresenta dois diferentes níveis
de significação. O denotativo, também chamado de primeiro nível. Nesse nível, que é
literal, ou motivado o leitor necessita para ler apenas conhecimentos linguísticos e
antropológicos. E os níveis mais altos ou de segunda ordem, são mais arbitrários e
dependentes de convenções culturais. É o que o teórico denomina de conotação. As
colocações acima realizadas sobre os níveis de significação dialogam com o que
ressaltou Volli (2012) sobre a relação entre significado e significante mencionada
anteriormente.
3. Uma abordagem quantitativa e qualitativa
Esta pesquisa nasce, fomentada a partir de discussões que aconteceram nos meses de
maio e junho sobre as representações construídas via imagens, realizadas pelo Grupo de
Pesquisa Didáticas de Línguas Estrangeiras do qual fazemos parte. Percebemos a
necessidade de realizarmos um estudo sobre as representações de idosos franceses nos
manuais de FLE tendo em vista que as representações da aprendizagem de línguas
estrangeiras em crianças, adolescentes e adultos têm sido enfoque de diversas pesquisas.
No entanto, quase não encontramos estudos com as representações do
ensino/aprendizagem no que diz respeito ao idoso.
Para realizarmos esta pesquisa, observamos um corpus constituído por manuais de
FLE dos anos 80, 90, 2000 até 2012. É interessante esclarecer que priorizamos as
fotografias por terem estas uma relação direta e mais “concreta” com o imaginário
ocidental. Constatamos que o idoso não é representado nos manuais dos anos 80, nem
dos anos 90. Ele aparece significativamente em 2007 no manual didático Alors.
Observamos que depois de 2007, há uma leve decaída. Contudo, ele reaparece nos dias
de hoje nos manuais de FLE. As análises qualitativas se fundamental no que Volli
(2012, p.49) denomina de denotação e conotação e nas reflexões de Jodelet (1984)
sobre a noção de representação social.
4. As imagens e suas representações
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Figura 1: Unidade 3 do livro didático ALORS
Fonte: (ALORS, 2007)
Na imagem acima, logo no primeiro momento quando lançamos o nosso olhar,
observamos que a cor verde do jardim toma toda a imagem contrastando com a cor azul,
presente na vestimenta das pessoas que a compõe. Na nossa percepção, denota uma
conversa no jardim entre vizinhos, uma situação cotidiana. Se aguçarmos nosso olhar, é
possível verificar que cada um se encontra do lado das suas respectivas residências que
se encontram separadas por plantas. A conversa é entre um idoso e uma mulher adulta.
Ele nos parece em plena atividade, faz uso de um avental por cima da vestimenta, um
chapéu provavelmente para se proteger do sol, e segura uma ferramenta utilizada na
prática de jardinagem, muito comum na França. Entendemos que esta imagem
representa um idoso não com os estigmas da velhice que conhecemos, mas um idoso
saudável, que cuida da sua casa, que tem contato com as pessoas que o cercam e tem
uma vida ativa
Figura 2: Unidade 5 do livro didático ALORS
Fonte: (ALORS, 2007)
P á g i n a | 2382
Na segunda imagem analisada percebemos um grupo de pessoas, entre elas,
idosas, que se encontram ao redor de uma mesa, ao que nos parece, praticando pintura.
Podemos observar que quatro adultos estão vestindo blusas na cor laranja em uma
tonalidade bem forte. O homem que está de costas se destaca. Não é à toa. A escrita
“Unis Cité – Génération Volontaire” (Unidos Cidade – Geração de Voluntários),
estampada na sua camisa, conota uma informação considerada importante que precisa
ser repassada para os leitores dessa imagem.
Verificamos que o ponto da letra i de “unis” foi substituído por uma estrela, que
as duas primeiras palavras estão em negrito enquanto as últimas estão na cor preta sem
destaque. Notamos também que, apesar da informação ser curta, traz três fontes de
letras, o que chama a atenção para o leitor que se depara com a imagem. As mulheres
idosas estão tranquilas, sentadas, pintando. Provavelmente estão sendo acompanhadas,
auxiliadas no exercício da pintura. Que representação do idoso nos traz essa imagem?
Compreendemos que aqui se tem representações de uma sociedade que se preocupa,
valoriza e proporciona ao seu idoso oportunidades de aprendizagem no que diz respeito
à prática de artes. Essa sociedade é tão sensibilizada e consciente com a questão da
velhice que até voluntários colaboram com a sua assistência. Em outras palavras, a
imagem nos apresenta um idoso respeitado e com acesso aos bens sociais.
Figura 3: Unidade 6 do livro didático ALORS
Fonte: (ALORS, 2007)
A terceira imagem denota um lindo dia de verão e um possível casal no jardim.
Enquanto ele pratica jardinagem com disposição, ela o observa tranquila, descontraída,
bem vestida enquanto toma uma bebida refrescante. Trata-se de imagem muito
agradável de ver. A cor verde das árvores, grama e plantas contrastam com o branco e o
tom neutro acinzentado das vestimentas, da cadeira e o do jarro de chão do lado direito
da imagem. A conotação é de um casal que está de bem com a vida, são saudáveis,
moram com qualidade, não dependem de ninguém, geram as suas vidas. Nesta imagem,
assim como nas anteriores, não encontramos os estereótipos estigmatizados associados à
velhice. Muito pelo contrário, as representações são de idosos que demarcam seu espaço
na sociedade, sentem prazer e aproveitam essa fase da vida da melhor maneira possível.
P á g i n a | 2383
Figura 4: Unidade 7 do livro didático ALORS
Fonte: (ALORS, 2009)
A quarta e última imagem consideramos ser muito interessante. Logo quando
olhamos percebemos um casal de idosos em meio à cor cinza e branca que estão
ressaltadas ao fundo da imagem, nos cabelos do casal, na camisa do idoso, nos ícones
que se encontram acima das suas cabeças e representam o uso da internet. O casal
sugere estar nas nuvens, inteirados com o mundo. Eles estão juntinhos e denotam
felicidade de frente a um notebook de uma marca muito conceituada no mercado
internacional. Não é qualquer notebook que eles utilizam. É um notebook da Apple. No
canto esquerdo, por traz do casal, observamos o corpo de uma jovem com vestimenta
azul e vermelha e abaixo um pedaço de papel com letras digitadas indicando o uso do
computador. O rosto da jovem não aparece. Dessa forma, entendemos que o foco dessa
imagem são mesmo os idosos. Eles não dependem dela para fazer uso do computador.
Eles são independentes e se conectam sem ajuda de ninguém. As representações do
idoso nessa fotografia são de acessibilidade à tecnologia, de participação das mudanças
socioculturais, de prazer e realizações na etapa da vida em que se encontram.
Considerações finais
Após a realização das nossas análises podemos afirmar que no manual estudado
as representações do idoso francês não reflete ausência social, adoecimento, inutilidade
e confinamento como antigamente. Percebemos que essa camada da população está
muito bem inserida nos espaços sociais. A velhice na França não é esquecida e nem
negligenciada. Ao contrário, é percebida, valorizada e assistida. O idoso tem acesso aos
bens sociais, artísticos, culturais e educacionais.
As imagens apresentadas no Alors suscintam a inserção de modo ativo desta
população em dois aspectos importantes: os aspectos socioculturais, como o trabalho
com jardinagem e a presença de pessoas mais jovens para assisti-los em suas atividades.
O outro aspecto é, justamente, o estímulo à relação com o saber como a
aprendizagem de pintura, a utilização do computador, o acesso às inovações
tecnológicas. Essas representações indicam que os idosos franceses envelhecem com
dignidade, se sentindo saudáveis, uteis, ativos, integrados na sua sociedade.
P á g i n a | 2384
Essas representações sugerem um envelhecimento saudável e a relação com o
saber, são tidas pelos estudiosos como fundamentais para que esse público continue
tendo oportunidades de aprendizado, crescimento e realização nos seus espaços sociais.
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CULPA E MELANCOLIA: “A CULPA É MINHA” EM A HORA DA ESTRELA
DE CLARICE LISPECTOR
Ângela Maria de Souto (Mestranda – PPGLI- UEPB)111
Rosilda Alves Bezerra (Orientadora – PPGLI – UEPB)
RESUMO: Em A hora da estrela (1977), obra clariceana, analisaremos a relação entre
o autor-personagem Rodrigo S.M. e a sua personagem, Macabéa, evidenciando o
sentimento de culpa no discurso dele que por sua vez torna-o melancólico
manifestando-a por intermédio de sua protagonista que também acaba sofrendo dessa
depressão. No decorrer do trabalho mostraremos a razão dessa culpa por parte do
criador (Rodrigo) sobre sua criatura (Macabéa). Para a fundamentação de nossas ideias
sobre a melancolia tivemos que recorrer a Freud, em suas obras Sobre o Narcisismo:
Uma introdução (1914) e Luto e melancolia (1915), assim como as colocações de
Rouanet em Riso e melancolia, Lambotte em Estética da melancolia, Edler em Luto e
melancolia: À sombra do espetáculo, dentre outros que se fizeram necessários. Sabemos
que desde sua estreia como escritora com o romance Perto do coração selvagem, Clarice
intriga até hoje os estudiosos quanto ao uso de sua linguagem literária, uma linguagem
quase que “incorpórea”; em A hora da estrela nos chama a atenção para a relação
estabelecida entre como já expomos Rodrigo e Macabéa, ambos melancólicos, porém o
sentimento que paira sobre aquele é de uma culpa confessada aos poucos no decorrer da
criação que não paira nesse sentido sobre sua personagem, já que ele é quem destina a
vida desta, sendo que a leva de encontro à morte, acreditamos que ela representa na obra
o duplo dele. Quanto a sua culpa para nós é fingida e por isso ele lhe concede um
destino trágico, para uma vida cômica.
PALAVRAS-CHAVE: Culpa, melancolia, A hora da estrela, Clarice Lispector.
O presente artigo tem como objetivo analisar a obra A hora da estrela, de
Clarice Lispector. Nesse romance ocorre algo atípico quanto à escolha de um dos
personagens, já que a maioria é feminina, contudo a presença de um personagem
masculino, Rodrigo S.M., já nos intriga; perguntamos-nos qual a razão da autora em tê-
lo criado. Por isso, diante deste fato, resolvemos analisar a obra aqui tomada, quanto à
relação entre ele, personagem-autor fazendo uso das palavras de Rodrigues Lima
(2009). Segundo Lima (p.73), trata-se de “personagem- autor (ou autor-personagem que
faz lembrar aquela história de defunto autor de Brás Cubas)”. Macabéa evidencia o
sentimento de culpa no discurso, que por sua vez torna-o melancólico manifestando e
111
Este trabalho é fruto do andamento da dissertação Ironia e subversão na escritura de Clarice
Lispector, no Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual
da Paraíba em Campina Grande.
P á g i n a | 2386
transferindo seu estado de melancolia por intermédio de sua personagem que assim
também acaba sofrendo dessa depressão.
A razão dessa culpa por parte do criador (Rodrigo) sobre sua criatura
(Macabéa) relaciona-se aos estudos sobre melancolia desenvolvida nas obras Sobre o
Narcisismo: Uma introdução (1914) e Luto e melancolia (1915), de Sigmund Freud,
assim como as discussões de Rouanet, em Riso e melancolia, Lambotte, em Estética da
melancolia e Edler, em Luto e melancolia.
Lambotte (2000) elabora um estudo detalhado sobre a melancolia desde a
Idade grega, Idade medieval até o século XX. Afirma que a melancolia foi ligada a bile
negra, faz uma união da etimologia da palavra com relação a esse período:
A etimologia grega da melancolia, melas (negra) e chole (bile), nos
indica a fonte do que temos o hábito de designar antes como um traço
de caráter do que como uma doença propriamente falando, a saber, a
bile negra que entrava na composição do corpo com os três outros
humores: o sangue, a linfa, ou o fleuma e a bile amarela ou pituíta.
(p.32).
Lambotte (2000) expõe a etimologia da palavra ligada aos estudos de Freud,
que no caso da obra de Clarice Lispector, parece-nos de acordo com a elaboração acerca
da culpa e da melancolia:
E é Freud quem, paralelamente, e já em 1895, vai dar conta da
etimologia problemática da melancolia pela revelação de um
mecanismo econômico, primeiramente, e de um processo dinâmico
em seguida, sem por isso sentir a necessidade imediata de uma
classificação rigorosa sob a qual colocar.
Freud classifica a melancolia entre as psicoses de defesa e, mais
precisamente, entre as neuroses narcísicas. Ligada a série das neuroses
de angústia, particularmente a depressão periódica, ela se liga ao
terceiro modo de transformação da energia não liquidada, o da
transformação do afeto; mas enquanto que a neurose de angústia
provém de uma acumulação de tensão sexual física, a melancolia
provém de uma acumulação de tensão sexual psíquica, o que
determina nos sujeitos por ela afetados “ uma grande tensão erótica
psíquica”. Foi em relação a esta, compreendida a um só tempo como
sintoma e como mecanismo, que Freud comparou a melancolia a uma
espécie de “hemorragia interna” em virtude da qual a excitação sexual
inteiramente bombeada escorreria como que por um buraco situado no
psiquismo, acarretando assim, no sujeito, uma inibição generalizada
de suas outras funções. (p.38).
O personagem-autor em a HE, e a protagonista da obra sofrem dessa depressão
(ou psicose)112
estudada por Freud. Percebe-se nas falas de Rodrigo S.M. que se sente
frustrado em ter em suas mãos o destino da jovem, como pode ser percebido na seguinte
112
O termo “psicose” é designado por Edler referindo-se aos dias de hoje na obra Luto e melancolia: À
sombra do espetáculo. Está nas nossas referências.
P á g i n a | 2387
passagem: “O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e, no entanto não me sinto
com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha fatal”. (HE: p. 21).113
Rodrigo S.M. transfere as amarguras de escritor e a melancolia inerentes à
personagem. Segundo Martins (1997),
O narrador de A Hora de Estrela sente-se culpado por se ver afastado
do homem comum, ao perceber que uma real identificação com sua
personagem – e com os que ela representa – é fato negado pela
experiência, muito cuja inviabilidade prática mostra-se na
incapacidade que ele carrega de por ela sentir compaixão, no sentido
primeiro do sofrer – com, atingindo, no máximo, os limites da piedade
– ainda assim recusado porque culpada e culposa... Vê Macabéa, mas
não a alcança, seu fracasso o atormenta e atrasa seu relato. (p.48).
Contudo, a referida culpa se deve ao fato do material básico ser a palavra. Ele
afirma: “Sim, mas não esquecer que para escrever não sei o quê o material básico é a
palavra. Assim é que esta história será feita de palavras, que se agrupam em frases e
destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases.” (HE: p.14). É por
meio desse objeto, que se busca “um sentido secreto” assim como por intermédio de
Macabéa.
Queiroz (2006), em seu trabalho elabora um discurso acerca da escrita, no
artigo Por dentro de um fazer poético, no qual relaciona o ato de escrever a um prazer
culposo. Segundo a autora:
Escrever, para o raciocínio melancólico, é um prazer culposo; se o
surto maníaco do fazer impele irremediavelmente o ego à escrita, que
ela seja , então, presidida pela dor. Esta fruição masoquista do prazer
encontra-se na fronteira entre prazer e dor que Freud (1920) assinala
em Além do princípio do prazer como o domínio do equilíbrio entre
a ação do ego e a do agente crítico. (p.124-5).
Queiroz (2006) notifica que o personagem-autor Rodrigo S.M. ao mesmo
tempo em que se sente culpado pela vida miserável de sua personagem, sente um prazer
no ato da escrita, sendo assim, ele “encontra-se na fronteira entre prazer e dor”, também
discutido anteriormente por Freud (1925).
A HE é uma obra em que alguns pesquisadores como Bedasee (1999), por
exemplo, destaca o fato de que Rodrigo é uma persona de Clarice Lispector, sendo por
meio dele, que a escritora faz denúncias de cunho social, já que as personagens,
Olímpico e Macabéa são nordestinos e estão fora do seu hábitat natural, numa “cidade
toda feita” contra eles (o Rio de Janeiro). Não só neste sentido, já que a personagem
Macabéa é mulher, também há a denúncia quanto ao patriarcalismo, que por sua vez
também era questionado por Clarice. Segundo Bedasee (1999)
113
Utilizaremos HE para nos referir a obra A hora da estrela.
P á g i n a | 2388
[...] Esta personagem é um tipo a mais neste imenso conjunto e a sua
grande importância deve-se ao fato de, entre outros fatores, ela ser a
veiculadora mais prosaica das denúncias da escritora. (p.136).
A Hora da Estrela narra a trajetória criativa de um escritor que um
dia, numa rua do Rio de Janeiro pegou no ar de relance o sentimento
de perdição no rosto de uma moça nordestina [HE:26]. Sente que é o
seu dever escrever sobre ela, porque há o direito ao grito e ele grita.
Entretanto, “a sua personagem principal, a nordestina” de dezenove
anos, nunca exercerá esse direito ao grito. Segundo a autora, a história
é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima. (Idem).
Esse direito ao grito, quem exerce é a própria Clarice que, repetindo
frases já ditas em depoimentos seus anteriores, reitera sua posição
quanto a sua profissionalização enquanto escritora, através do
personagem narrador de A Hora da Estrela [...]. (Idem).
A relação ora já citada entre o personagem-autor e a personagem Macabéa,
relaciona-se aos estudos de Freud (1925), que faz uma analogia entre o luto e a
melancolia: “Tendo os sonhos nos servido de protótipo das perturbações mentais
narcisistas na vida normal, tentaremos agora lançar alguma luz sobre a natureza da
melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto.” (p.141).
A comparação feita por Freud (1925) baseia-se quanto à questão da perda, uma
vez que tanto no luto quanto na melancolia há a perda. Entretanto, o melancólico não
consegue superá-la, no luto: “O teste da realidade revelou que o objeto amado não
existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com
aquele objeto” (p.142). Isto é, há uma transferência da libido para um “novo” objeto e
assim o sujeito continua sua vida superando a perda (O luto).
O melancólico, diante do que foi exposto no parágrafo anterior, não supera a
perda e se auto-consome. Para Freud (1925),
Os traços distintivos da melancolia são um desânimo profundo
penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da
capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma
diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar
expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando
numa expectativa de punição.(p.142).
Rodrigo S.M. manifesta essa auto-recriminação e essa diminuição de estima,
assim, cria uma personagem tão marginalizada quanto ele. Nesse contexto, Rodrigo
afirma:
[...] Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca
de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a
pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer,
ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás _ descubro eu
agora_ também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um
outro escreveria. Um outro escritor sim, mas teria que ser homem
porque escritora mulher pode lacrimejar piegas. (HE: pp.13-14).
P á g i n a | 2389
Em outra passagem da obra, o narrador interpreta a sociedade de modo irônico:
“A classe social me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que
eu possa desequilibrá-la [...]” (HE: p.19). Isto ratifica o que assinalamos.
Em HE, o narrador-personagem (Ou personagem-autor), ao descrever a jovem
Macabéa também se auto-descreve. Nesse sentido, segundo Sá (2000, p.173), “o
narrador desvenda-se na narrativa a sua problemática interior e à medida que nos faz
conhecer a protagonista, também conhece a própria identidade”. Como o próprio
Rodrigo afirma: “ser a procura da palavra no escuro”. Sá (idem) também acrescenta:
“que toda ficção de Clarice é da espécie metafísica”, ou seja, transcendente. A relação
de Rodrigo com Macabéa serve para conhecermos a própria identidade dele, através
dela.
Há no discurso de Rodrigo, um sentimento culposo. Quem é Macabéa?
“Nordestina” e “pobre”, sua pobreza nem enfeitada é, como interroga: “porque escrevo
sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem?” (HE: p.21). Rodrigo escreve porque
busca o encontro com o outro “eu”, já que, de acordo com Nunes (1969, p.119),
“ninguém é ninguém. Cada qual empenhado no fingimento de ser, que a memória
estimula e a imaginação conduz, busca a si mesma para encontrar-se. E o que o homem
encontra, afinal, é quem ele quer ser e não quem ele é”. O autor afirma que “a
identificação pessoal parece mais um ideal a atingir, um produto da imaginação, uma
meta a alcançar, do que um dado real”. Enfim, a busca do outro “eu” será uma constante
procura, porque Rodrigo necessita da forma, ou seja, escrever sobre o que é e sente.
Entretanto, não conseguirá alcançar a meta, conforme Nunes (idem, p.133):
“alcançamos expressões parciais da existência indefinida, imagens sucessivas do nosso
ser, que aparecem no momento para desfazer-se em outro”.
Essa busca do homem “de quem ele é e que encontra apenas o que ele quer
ser”, como fora colocado por Nunes (1969), Freud (1925) define como ser ideal em
Sobre o Narcisismo: Uma introdução (1914). Enfatiza que “para o ego, a formação de
um ideal seria o fator condicionante da repressão”. (p.57). Ainda sobre isto afirma que
“[...] O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo
perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal”. (FREUD, pp.57-8).
Macabéa tinha como ideal Marylin Monroe, símbolo sexual da época e também
admirava Greta Garbo; ela confessa a sua colega de trabalho Glória o seu sonho:
Macabéa que nunca se irritava com ninguém, arrepiava-se com o
hábito que Glória tinha de deixar a frase inacabada. Glória usava uma
forte água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que tinha o estômago
delicado, quase vomitava ao sentir o cheiro. Nada dizia porque Glória
era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo fora composto
pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico_ e de muito longe as
moças com as quais repartia o quarto. Em compensação se conectava
com o retrato de Greta Garbo quando moça. Para minha surpresa, pois
eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como
esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa mulher deve ser a
mais importante do mundo. Mas o que ela queria mesmo ser não era a
altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal
solitário. O que ela queria, como eu já disse, era parecer com Marylin.
P á g i n a | 2390
Um dia, em raro momento de confissão, disse a Glória quem ela
gostaria de ser. E Glória caiu na gargalhada:
− Logo ela, Maca? Vê se te manca! (HE: p.64).
O ideal de Rodrigo era se aproximar das classes desfavorecidas, para isso criou
uma personagem como estamos colocando advinda da classe social que ele não
alcançava, essa é a sua frustração, ele afirma “a classe baixa nunca vem a mim” (HE:
p.19).
Ao ler o romance ou novela como a própria autora Clarice declarou em uma
entrevista a Júlio Lerner:
_ “Antes de entrarmos aqui no estúdio você me dizia que está
começando um novo trabalho.
− “Não, eu acabei a novela.”” (IANNACE, 2001, p.115).
Identificamos que todos os sonhos da moça são frustrados. Além do sonho de
ser artista de cinema, encontramos no decorrer da leitura em HE, outras fantasias
frustradas. Fantasiar, sonhar é uma característica do melancólico conforme Kristeva “no
plano literário, o discurso do melancólico revela sucessivas imagens de solidão e
devaneio” (Apud CORREIA, 2004, p. 13), é esse o motivo das fantasias constantes de
Macabéa.
Um dos trechos no qual podemos perceber uma temática bastante interessante e
abordada na obra é a temática do “desejo”.
Ela sabia o que era o desejo embora não soubesse que sabia, era
assim: ficava faminta, mas não de comida, era um gosto meio
doloroso que subia do baixo-ventre e arrepiava o bico dos seios e os
braços vazios sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía.
Ficava então meio nervosa e Glória lhe dava água com açúcar (HE:
p.45).
No tocante ao desejo de Macabéa, a reação de Rodrigo é de ordem emocional.
Ela percebe através das reações do corpo. Quanto a esta questão é interessante à ligação
que o narrador faz entre a sobremesa preferida da protagonista – goiabada com queijo –
e o seu namorado: “A moça bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiabada
– com – queijo” (HE: p. 43). A saciedade de Macabéa nas duas situações foi privada e o
seu desejo frustrado, já que sua tia a privava de comer a sobremesa, assim como,
quando Olímpico rompeu com o namoro.
Com relação ao desejo de Macabéa, Homem (2000) argumenta que a “sua
relação com o desejo – aquela “força” que nos impulsiona para os outros, para as coisas
e no tempo – mostra-se muito frágil, como se ela não fosse permitido querer
profundamente alguma coisa”. (p. 17). É por isso que Rodrigo sente-se culpado pelo
“viver ralo” possuído por Macabéa, ele tem consciência de que poderia dar um destino
melhor a sua protagonista, mas ao invés disso, destina a moça ao fracasso e ao destino
da morte.
P á g i n a | 2391
Desde o inicio da narração, o caminho traçado para Macabéa é óbvio que
Rodrigo tenta falsear, encobrir o “gran finale” que teria a moça: “... Só não inicio pelo
fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a vida – porque preciso
registrar os fatos antecedentes”. (HE: p. 12). Neste trecho evidenciam-se os paradoxos:
inicio / fim, morte / vida. Os paradoxos são constantes indícios da melancolia,114
pois
introduzem ao início da narrativa um aspecto mórbido. A partir daí, outros sinais
apontam para uma possível morte da protagonista: “Escrevo neste instante com algum
prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde,
no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe se coagular em
cubos de geleia trêmula”. (HE: p. 12).
Para confirmar o que foi destacado anteriormente em relação ao paradoxo ou à
ambivalência, a ideia de Freud (1925) desenvolvida em Luto e melancolia, considera
que há três precondições para ela, uma delas é a ambivalência115
:
Das três precondições da melancolia- perda do objeto, ambivalência e
regressão da libido do ego-, as duas primeiras também se encontram
nas auto-recriminações obsessivas que surgem depois da ocorrência de
uma morte. Indubitavelmente, nesses casos é a ambivalência que
constitui a força motora do conflito, revelando-nos a observação que,
depois de determinado o conflito, nada mais resta que se assemelhe ao
triunfo de um estado de mente maníaco. (p.151).
Na própria dedicatória do autor no livro encontramos: “Dedico à cor rubra
muito escarlate como o meu sangue de homem em plena idade e, portanto, dedico-me a
meu sangue.” A marca do sangue nos leva a deduzir desde o princípio a morte de
Macabéa por Rodrigo.
A hora da estrela possui ao todo treze títulos, embora tenha sido este o
escolhido, um deles já evidencia o sentimento de culpa: “A culpa é minha”. Culpa de
quê? Por Rodrigo saber que Macabéa será morta pelo seu criador?
Rouanet (2007) discorre em Riso e melancolia acerca da melancolia
conceituada na obra de Laurence Sterne: A vida e as opiniões de Tristram Shandy,
cavalheiro, que o pai dele (de Tristram), Walter Shandy afirma que: “Para o filósofo,
disse Walter, a morte é uma libertação, porque o ajuda a libertar-se de sua melancolia”.
(Apud, ROUANET, 2007, p.204). Sendo assim, tanto Macabéa quanto Rodrigo se
libertam.
Para Bedasee (1999)
Mas é Rodrigo quem a mata. Clarice precisou da persona masculina
para cometer o ato da violência final contra Macabéa. A ligação forte
entre a autora e a personagem é das mais profundas na literatura
114
A Doutora em Literatura e Cultura pela UFPB e Professora Titular de Literatura e Psicanálise na
UEPB, Rosângela Queiroz, em seu trabalho Por dentro de um fazer poético: Motivação e arte em Museu
de tudo, de João Cabral de Melo Neto, trabalha o termo ambivalência. É bastante interessante, cremos
que é o equivalente ao que chamamos de “paradoxo”, termo empregado por Lambotte. 115
Usamos o termo “paradoxo” de Lambotte, mas equivale a “ambivalência” de Freud.
P á g i n a | 2392
feminina. Matar Macabéa sem a mediação de Rodrigo seria suicídio,
tal a identidade e a presença de Clarice Lispector mulher real na
fictícia. (p.95).
Deste modo, compreendemos que a autora de A hora da estrela, por meio do
narrador-personagem, Rodrigo, se isenta da morte de Macabéia. É a sua Saída discreta
pela porta dos fundos, aspecto que se repete na obra.
Para Souza (2006), “Do ponto de vista estrutural, A hora da estrela compõem-
se de dois segmentos narrativos: a história de Macabéa e a história de Rodrigo, que vão
sendo construídas por desdobramentos”. (p.100). Concordamos com Souza, já que ao
delinear a personagem ele também se auto-delineia, conforme nossa exposição dos
fatos.
A verdade é que Rodrigo precisa de Macabéa. Ele alega que necessita falar
dessa nordestina senão sufoca. Pois ao falar de Macabéa, fala sobre si: “Quero neste
instante falar da nordestina. É o seguinte: ela como uma cadela vadia era teleguiada
exclusivamente por si mesma. Pois reduzira-se a si. Também eu, de fracasso em
fracasso, me reduzi a mim, mas pelo menos quero encontrar o mundo e seu Deus”. (HE:
p. 18).
Em um outro fragmento da obra, Rodrigo destaca o fato de que andava nu, em
farrapos, não fazia a barba durante alguns dias, chegou ao ponto de adquirir olheiras por
dormir pouco. Vestia-se com roupa velha e rasgada, tudo para se por ao nível de
Macabéa:
Por enquanto quero andar nu ou em farrapos, quero experimentar pelo
menos uma vez a falta de gosto que dizem ter a hóstia será sentir o
insosso do mudo e banhar-se no não. Isso será coragem minha, a de
banhar-se no não. Isso será coragem minha, a de abandonar
sentimentos já confortáveis.
Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a
barba durante dias e adquirir olheiras escuras para dormir pouco, só
cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-
me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da
nordestina. (HE: p. 19).
A organizadora da obra escrita por Edler (2008), Luto e melancolia: À sombra
de um espetáculo, Nina Saroldi, afirma no prefácio do livro que: “a melancolia é
descrita por Freud como um quadro de suspensão de interesse pelo mundo externo, de
acentuada diminuição da auto-estima, podendo até mesmo chegar a uma expectativa
delirante de punição.” (p.13). A falta de interesse pelo mundo externo é perceptível no
personagem-autor, uma vez que se afasta dele só para se colocar ao nível de Macabéa.
Porém, é por meio dela que Rodrigo diz ser obrigado a procurar uma verdade que lhe
ultrapassa. Chegou a fazer a seguinte indagação: “por que escrevo sobre um jovem que
nem pobreza enfeitada tem?” (HE: p. 21). Não seria porque Rodrigo precisa de
Macabéa para manifestar as suas angústias?
P á g i n a | 2393
A HE é uma obra tida como existencialista, Souza (2006) em O humanismo em
Clarice Lispector: Um estudo do ser social em A hora da estrela afirma:
As pesquisas sobre Clarice Lispector contêm elementos expressivos
de uma possível identidade entre a autora e suas personagens. Alguns
elementos colhidos sobre sua vida e discurso, como também o registro
pontual da crítica, dão a conhecer a autora em aspectos que justificam
um estudo acerca do projeto ideológico que perpassa sua obra e que a
move em torno de uma busca incessante do homem, da sua natureza
social e condição existencial. (SOUZA, 2006, p.23).
Sabemos de pesquisas que fazem essa analogia entre Clarice e suas
personagens, portanto, não podemos deixar de destacá-las. Também há o fato de que no
ano em que a HE foi publicada, a autora morreu de câncer (1977). Quando escrevia a
“novela” descobriu que estava cancerosa, então pesquisadores dela apontam a ligação
existente entre ela, o narrador masculino Rodrigo S.M. como sua persona, e por sua vez
a protagonista, Macabéa.
Na própria dedicatória da obra a qual expomos uma parte dela quanto ao
“sangue”, confirma-se essa presença da escritora, assim como em outros fragmentos,
como o da “escritora mulher que fazia lacrimejar piegas”, etc. O título do livro é
irônico, A hora da estrela, pois todos os sonhos de Macabéa são frustrados, como temos
frisado com constância aqui. Rodrigo, o narrador – personagem, afirma para os leitores:
“... Que não esperem, então, estrelas no que se segue nada cintilará, trata-se de matéria
opaca e por sua própria natureza desprezível por todos” (HE: p. 16).
Encontramos outras evidências a este respeito (título), Rodrigo afirma “que a
narrativa está acompanhada do início ao fim por uma levíssima e constante dor de
dentes, coisa de dentina exposta” (HE: p. 24). Afirma ser a história quase nada,
“História de cordel” como sugere um dos títulos. Segundo Sà “escreve não por causa do
assunto ou da protagonista nordestina, mas por motivo de força maior como se diz nos
requerimentos oficiais por força de lei” (1979, p. 213).
O personagem-autor sente-se culpado pelo estado da vida lastimável da moça,
este sentimento por sua vez, desencadeia em um estado melancólico. A jovem, assim
como seu criador, é melancólica e manifesta-se como tal com seus sonhos fracassados.
O ápice da história acontece com a morte da protagonista, que deveria ter um futuro
glorioso, segundo a cartomante, porém seu “sonho de estrela” de cinema só ocorreria se
abraçasse seu único papel, “a morte”. A morte que aparece como “personagem
predileto” do narrador na história (HE: p.84).
A marca constante do sangue no romance já prenunciava também a possível
morte da protagonista como outrora afirmamos. Então, a morte foi a saída discreta pela
porta dos fundos do autor-personagem, como sugere um dos títulos da obra.
Ironicamente na página final, ele afirma: “No fundo ela não passara de uma caixinha de
música meio desafinada” (HE: p.87). O próprio Rodrigo sente-se frustrado quanto à sua
profissão.
Rodrigo S.M. confirma a morte de Macabéa e o fragmento em que o
personagem-autor nos lembra que morremos:
P á g i n a | 2394
E então_ então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de
repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra,
o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come
vida.
Até tu, Brutus?!
Sim, foi este o modo como eu quis anunciar que _ que Macabéa
morreu. Vencera o Príncipe das Trevas. Enfim a coroação. (HE:
p.85).
E agora_ agora só me resta acender um cigarro e ir para casa.
Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas_ mas
eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim. (HE: p.87).
Como já afirmamos com a ideia contida na obra de Sterne (ROUANET, 2007),
a morte é uma libertação para o melancólico, portanto liberta está a protagonista de sua
vida miserável, liberto está Rodrigo de sua personagem e de sua culpa e liberta está
Clarice de sua responsabilidade já que ela lhe foi outorgada ao autor-personagem.
Porém, Rodrigo, supera sua melancolia como o maníaco, já que sua vida segue.
Para Freud (1925) “[...] o indivíduo maníaco demonstra claramente sua
liberação do objeto que causou seu sofrimento, procurando como um homem
vorazmente faminto, novas catexias objetais”. (p.149). Para Rodrigo, acabou seu
sofrimento, sua dor, seu vazio, já que a morte de sua personagem e o fim da história o
libertou da sua dor, a dor de escrever.
Referências
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