p ú b l i c a s : p o l í t i c a s p s i c o l o g i a e

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Pesquisas em Psicologia e Políticas Públicas: Diálogos na pós-graduação Volume 1 1ª Edição Mariana Prioli Cordeiro Maria Fernanda Aguilar Lara Henrique Araujo Aragusuku Rodolfo Luis Almeida Maia (Organizadores) São Paulo Psicologia/USP Universidade de São Paulo 2019

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Page 1: P ú b l i c a s : P o l í t i c a s P s i c o l o g i a e

Pesquisas emPsicologia ePoliacuteticasPuacuteblicasDiaacutelogos na poacutes-graduaccedilatildeo Volume 1 1ordf Ediccedilatildeo

Mariana Priol i CordeiroMaria Fernanda Aguilar LaraHenrique Araujo AragusukuRodolfo Luis Almeida Maia(Organizadores)

Satildeo PauloPsicologiaUSP

Universidade de Satildeo Paulo2019

Pesquisas em Psicologia e

Poliacuteticas Puacuteblicas

Diaacutelogos na poacutes-graduaccedilatildeo

Volume 1

Mariana Prioli Cordeiro

Maria Fernanda Aguilar Lara

Henrique Araujo Aragusuku

Rodolfo Luis Almeida Maia

(Organizadores)

DOI 10116069788586736926

1

E permitida a reproduccedilatildeo parcial ou total desta obra desde que citada a fonte e autoria

proibido qualquer uso para fins comerciais

Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo

Biblioteca Dante Moreira Leite

Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

Pesquisas em psicologia e poliacuteticas puacuteblicas organizado por Mariana Prioli Cordeiro [et al] ‐ Satildeo Paulo IPUSP 2019 298 p (Diaacutelogos na Poacutes‐Graduaccedilatildeo v1) ISBN 978-85-86736-92-6 DOI 10116069788586736926 1 Psicologia social 2 Pesquisa cientiacutefica 3 Poliacuteticas puacuteblicas I Tiacutetulo HM 251

2

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

Reitor Vahan Agopyan

Vice reitor Antonio Carlos Hernandes

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Diretora Marilene Proenccedila Rebello de Souza

Vice diretor Andreacutes Eduardo Aguirre Antuacutenez

CONSELHO EDITORIAL

Profa Dra Adriana Marcondes Machado

Prof Dr Arley Andriollo

Prof Dr Danilo Silva Guimaratildees

Profa Dra Marina Ferreira da Rosa Ribeiro

Profa Dra Miriam Debieux Rosa

Prof Dr Nelson Ernesto Coelho Junior

Prof Dr Rogeacuterio Lerner

3

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 5

Maria Fernanda Aguilar Lara Henrique Araujo Aragusuku Rodolfo Luis Almeida

Maia e Mariana Prioli Cordeiro

1 Contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para anaacutelise da relaccedilatildeo entre atores estatais e

natildeo estatais na implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas 10

Joseacute Fernando Andrade Costa

2 A assistecircncia social no Brasil uma anaacutelise histoacuterica das relaccedilotildees entre OSC e Estado 30

Maria Fernanda Aguilar Lara e Mariana Prioli Cordeiro

3 Proteccedilatildeo Social e Fortalecimento de Viacutenculos contribuiccedilotildees da Poliacutetica de Assistecircncia

Social a mulheres idosas 50

Izabela Penha Silva e Renata Fabiana Pegoraro

4 A Psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social estudo de caso de um jovem em

cumprimento de medidas socioeducativas 66

Liandra Savanhago Camila Trindade Tielly Rosado Maders e Maria Chalfin

Coutinho

5 Medidas socioeducativas as narrativas de adolescentes e o uso da literatura como

disparadores de anaacutelise 86

Beatriz Saks Hahne e Adriana Marcondes Machado

6 A Implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo em SAICAs de Osasco

103

Andrielly Darcanchy de Toledo e Mariana Prioli Cordeiro

7 A concepccedilatildeo desenvolvimentista de adolescecircncia e seus impasses para a poliacutetica de

Assistecircncia Social 128

Mariana Belluzzi Ferreira e Carolina Esmanhoto Bertol

8 Jovens da escola Nazareacute Flor experiecircncias de vida no assentamento Maceioacute litoral do

Cearaacute 148

Denise Zakabi e Maria Luisa Sandoval Schmidt

9 O Programa Mais Educaccedilatildeo e a produccedilatildeo de uma subjetividade aprendiz 168

Patriacutecia Peixoto Zapletal e Adriana Marcondes Machado

4

10 Poliacuteticas Puacuteblicas de Orientaccedilatildeo Profissional uma anaacutelise socioconstrucionista sobre a

construccedilatildeo do Projeto de Vida no Programa Ensino Integral (PEI) 189

Omar Calazans Nogueira Pereira e Marcelo Afonso Ribeiro

11 A tessitura de redes de diaacutelogo e de participaccedilatildeo de crianccedilas no cuidado hospitalar

pediaacutetrico 210

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo Daniela Barros da Silva Freire Andrade e

Adriana Marcondes Machado

12 Psicologia Social e Poliacuteticas Puacuteblicas em diaacutelogo com sauacutede e educaccedilatildeo questotildees de

gecircnero sauacutede mental justiccedila violecircncia e permanecircncia estudantil 230

Mariana Fagundes de Almeida Rivera Tatiana Alves Romatildeo Ana Carolina

Martins de Souza Felippe Valentim Fernanda Lyrio Heinzelmann Kate Delfini

Santos Paula Rosana Cavalcante e Ianni Regia Scarcelli

13 Algumas contribuiccedilotildees da Psicologia para o campo da Sauacutede do Trabalhador 251

Heloiacutesa Aparecida de Souza Johanna Garrido Pinzoacuten Marcia Hespanhol

Bernardo e Mariana Pereira da Silva

14 Mulheres e Mineraccedilatildeo contribuiccedilotildees da Psicologia Social no campo das poliacuteticas

puacuteblicas 273

Paula Sassaki Coelho

Sobre asos autorases 291

Pareceristas 297

5

Apresentaccedilatildeo

Maria Fernanda Aguilar Lara

Henrique Araujo Aragusuku

Rodolfo Luis Almeida Maia

Mariana Prioli Cordeiro

No Brasil as relaccedilotildees entre a Psicologia e as poliacuteticas puacuteblicas satildeo complexas e

multifacetadas e natildeo existe um uacutenico modo de compreendermos essa questatildeo Ao realizarmos

uma breve busca nos bancos de dados acadecircmicos utilizando de forma combinada esses dois

descritores constatamos que haacute uma vasta literatura em Psicologia que trata sobre a temaacutetica

das poliacuteticas puacuteblicas em suas diversas aacutereas ndash como na sauacutede educaccedilatildeo assistecircncia social

seguranccedila puacuteblica direitos humanos entre outras Estes textos foram produzidos a partir de

distintas perspectivas analiacuteticas e mobilizam muacuteltiplos repertoacuterios teoacutericos conceituais e

metodoloacutegicos de pesquisa e intervenccedilatildeo Foram escritos principalmente por psicoacutelogosas

ainda que em algumas publicaccedilotildees constatamos a participaccedilatildeo de profissionais de outros

campos Psicoacutelogosas com diferentes tipos de formaccedilatildeo profissional atuando a partir de

distintas localidades e aacutereas em um paiacutes de tamanho continental marcado por uma grande

diversidade geograacutefica institucional e sociocultural

Poderiacuteamos dizer que para discutirmos as relaccedilotildees entre esses dois ldquocamposrdquo teriacuteamos

de nos perguntar o que eacute a Psicologia E o que satildeo poliacuteticas puacuteblicas Como se estabelecem

as conexotildees entre ambas No entanto essas perguntas que em princiacutepio parecem simples (e ateacute

ingecircnuas) natildeo satildeo nada faacuteceis de responder Afinal as palavras ldquoPsicologiardquo e ldquopoliacuteticas

puacuteblicasrdquo funcionam como termos guarda-chuvas que aglutinam uma seacuterie de conceitos e

sistemas de representaccedilatildeo (ontologias epistemologias e teorias) estando permeadas por

contradiccedilotildees conflitos e polissemias Isto eacute natildeo eacute possiacutevel estabelecer uma uacutenica verdade sobre

esses termos e seus sentidos Prova disso eacute que em muitos momentos vemos que os estudos

em Psicologia trabalham as poliacuteticas puacuteblicas a partir de linguagens diferentes que pouco

dialogam entre si

De forma geneacuterica a Psicologia pode ser compreendida como um campo disciplinar

institucional e profissional autocircnomo Poreacutem essa definiccedilatildeo natildeo daacute conta da complexidade de

6

sua natureza e funccedilatildeo enquanto campo do conhecimento Trata-se de uma aacuterea da sauacutede da

educaccedilatildeo das ciecircncias sociais das ciecircncias do comportamento Seu objeto eacute a mente a psique

o comportamento o social a cultura Por outro lado em termos gerais as poliacuteticas puacuteblicas

podem ser compreendidas como as accedilotildees promovidas pelo poder puacuteblico (Judiciaacuterio Executivo

e Legislativo) nas mais diversas aacutereas de atuaccedilatildeo No entanto o poder puacuteblico se manifesta

unicamente pela via estatal As poliacuteticas puacuteblicas satildeo apenas accedilotildees estruturadas e de longo

prazo ou seriam todas as accedilotildees (fragmentaacuterias de curto e meacutedio prazo) promovidas pelo poder

puacuteblico Como a esfera privada se relaciona com as poliacuteticas puacuteblicas

Neste sentido acreditamos que eacute de fundamental importacircncia a proposiccedilatildeo de diaacutelogos

e aproximaccedilotildees entre as vaacuterias abordagens que constituem esse campo ndash compreendendo que

existem diferentes formas de conceituaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas e de definiccedilatildeo dos ldquoobjetosrdquo e

ldquoobjetivosrdquo da Psicologia Cabe ressaltar que natildeo se trata de estabelecermos uma uacutenica verdade

sobre o que eacute um estudo em ldquoPsicologiardquo sobre ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo mas sim de pensarmos

como estes dois campos podem se relacionar a partir de diferentes olhares espaccedilos

temporalidades e perspectivas

A proposta de construccedilatildeo desta coletacircnea surgiu a partir dessas inquietaccedilotildees recorrentes

em diversos espaccedilos de diaacutelogo e reflexatildeo acadecircmica Inquietaccedilotildees que apontam para a

necessidade de discutirmos as diferentes abordagens teorias e metodologias utilizadas em

pesquisas sobre o tema Para alcanccedilar esse objetivo optamos por enfocar pesquisas receacutem

realizadas (ou em fase de conclusatildeo) no acircmbito dos programas de poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia

Esta escolha foi motivada fundamentalmente pela necessidade de dar visibilidade a pesquisas

de mestrado e doutorado que trataram a temaacutetica das poliacuteticas puacuteblicas a partir dos referenciais

da Psicologia estabelecendo tambeacutem pontes de diaacutelogo e aproximaccedilotildees entre distintos aportes

Notamos que a maioria das pesquisas desenvolvidas no acircmbito da poacutes-graduaccedilatildeo ficam

restritas aos formatos de teses e dissertaccedilotildees natildeo sendo publicadas em versotildees resumidas como

artigos capiacutetulos e ensaios que facilitam a circulaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo do conhecimento

acadecircmico Em conversas entre estudantes da poacutes-graduaccedilatildeo do IPUSP satildeo frequentes os

relatos sobre as dificuldades que perpassam a publicaccedilatildeo de artigos em perioacutedicos cientiacuteficos

tendo em vista a falta de estrutura profissional (em relaccedilatildeo agrave vida acadecircmica) para a elaboraccedilatildeo

e submissatildeo dos textos e o longo processo de avaliaccedilatildeo e editoraccedilatildeo dos perioacutedicos Por outro

lado osas estudantes tambeacutem relatam que sentem a necessidade de publicar suas pesquisas em

formato de artigo tanto para a melhoria de seus curriacuteculos quanto pela circulaccedilatildeo e

compartilhamento dos resultados produzidos ao longo de anos de estudo

7

Somado a isto natildeo podemos deixar de mencionar o momento poliacutetico que enfrentamos

no Brasil no que concerne agrave poacutes-graduaccedilatildeo Temos presenciado e sentido as medidas

sancionadas pela atual gestatildeo do Governo Federal que reduzem significativamente o nuacutemero

de bolsas destinadas a pesquisas de poacutes-graduaccedilatildeo Ateacute setembro de 2019 foram cortadas

aproximadamente doze mil bolsas da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior (Capes) Concomitantemente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e

Tecnoloacutegico (CNPq) informou que natildeo possui orccedilamento para pagar as mais de oitenta mil

bolsas de pesquisa ateacute o final do ano gerando uma imensa crise administrativa na pasta de

Ciecircncia e Tecnologia Essas medidas se natildeo revogadas prejudicam o desenvolvimento

imediato e futuro da pesquisa cientiacutefica no Brasil que somadas a outras accedilotildees do governo

resultaratildeo no desmonte e na privatizaccedilatildeo das universidades puacuteblicas Assim as duas maiores

agecircncias brasileiras de fomento agrave pesquisa cientiacutefica encontram-se ameaccediladas por um projeto

de governo que ataca a democratizaccedilatildeo da ensino superior no Brasil

Foi a partir deste contexto poliacutetico e institucional que tem afligido milhares de

pesquisadoresas que pensamos em dar visibilidade agraves pesquisas cientiacuteficas desenvolvidas por

estudantes de poacutes-graduaccedilatildeo Portanto a construccedilatildeo deste livro eacute para noacutes um ato de

resistecircncia uma forma de ilustrar quantos trabalhos importantes estatildeo sendo desenvolvidos por

meio do financiamento puacuteblico de pesquisa cientiacutefica ndash seja atraveacutes da estrutura que a

universidade puacuteblica oferece ou pelo fomento direto proporcionado pelas bolsas de mestrado

e doutorado do CNPq e da Capes Todo esse debate demonstra o quanto as poliacuteticas puacuteblicas

atravessam as pessoas e a vida social em seus mais diversos aspectos e que dificilmente

conseguimos nos esquivar dessa temaacutetica

Sobre o processo de construccedilatildeo deste livro inicialmente fizemos uma chamada aberta

a pesquisadoresas que desenvolveram estudos sobre poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito de

programas de poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Recebemos uma grande quantidade de propostas

de capiacutetulo com significativa relevacircncia social e acadecircmica o que acabou fazendo com que

fossem necessaacuterios dois volumes para a publicaccedilatildeo de todos os trabalhos selecionados O

processo de anaacutelise avaliaccedilatildeo e revisatildeo dos trabalhos tambeacutem foi feito de forma coletiva

Convidamos asos proacuteprios autoresas assim como outrosas pesquisadoresas para atuar como

pareceristas Assim cada texto foi avaliado por doisduas pareceristas que fizeram comentaacuterios

e contribuiccedilotildees que ajudaram no aperfeiccediloamento dos textos Entendemos que a avaliaccedilatildeo por

pares natildeo apenas tornou o processo de elaboraccedilatildeo do livro mais colaborativo mas tambeacutem

contribuiu para melhorar a explicitaccedilatildeo do meacutetodo a descriccedilatildeo das resultados e o

8

amadurecimento das proposiccedilotildees teoacutericas presentes nos capiacutetulos favorecendo um processo

reflexivo

O resultado desse processo coletivo resultou em uma coletacircnea composta por 14

capiacutetulos No primeiro deles Joseacute Fernando Andrade Costa recorre aos pressupostos da

Psicologia Social Criacutetica para discutir implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas enfocando a relaccedilatildeo

entre atores estatais e natildeo estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos O debate em torno da

relaccedilatildeo estado-sociedade civil segue sendo tema do capiacutetulo seguinte de autoria de Maria

Fernanda Aguilar Lara e Mariana Prioli Cordeiro Mas nele o foco recai sobre como essa

relaccedilatildeo foi se constituindo ao longo da histoacuteria da Assistecircncia Social no Brasil

Jaacute no capiacutetulo 3 de autoria de Izabela Penha Silva e Renata Fabiana Pegoraro eacute o

presente da poliacutetica de Assistecircncia Social que estaacute em debate Mais especificamente as autoras

apresentam os resultados de uma pesquisa que buscou investigar como um grupo de mulheres

idosas compreendem e avaliam as accedilotildees do Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social do qual

satildeo usuaacuterias No capiacutetulo seguinte Liandra Savanhago Camila Trindade Tielly Rosado

Maders e Maria Chalfin Coutinho articulam reflexotildees sobre as trajetoacuterias de vida de um jovem

em cumprimento de medida socioeducativa com a discussatildeo em torno das praacuteticas psi em

serviccedilos de assistecircncia social No capiacutetulo 5 de autoria de Beatriz Saks Hahne e Adriana

Marcondes Machado a discussatildeo dessa medida ganha outros contornos Nele o foco recai

sobre as memoacuterias e narrativas de adolescentes que cumprem ou cumpriram recentemente

medida socioeducativa

Ainda sobre a poliacutetica de assistecircncia social de autoria de Andrielly Darcanchy de

Toledo e Mariana Prioli Cordeiro o capiacutetulo 6 debate a implementaccedilatildeo do Programa de

Apadrinhamento Afetivo no municiacutepio de Osasco-SP atraveacutes do relato de experiecircncia de

trabalho com Serviccedilos de Acolhimento Institucional para Crianccedilas e Adolescentes (SAICA) E

no capiacutetulo 7 Mariana Belluzzi Ferreira e Carolina Esmanhoto Bertol levantam reflexotildees sobre

as poliacuteticas puacuteblicas destinadas agrave garantia de direitos de adolescentes no acircmbito da assistecircncia

social discutindo o discurso ldquomenoristardquo que perpassa a histoacuteria desta poliacutetica no Brasil

Nos capiacutetulos seguintes a discussatildeo sobre poliacuteticas puacuteblicas ganha outros rumos com

o enfoque na temaacutetica da educaccedilatildeo em diaacutelogo com outras poliacuteticas puacuteblicas No capiacutetulo 8

Denise Zakabi e Maria Luisa Sandoval Schmidt abordam as contribuiccedilatildeo da Psicologia para o

estudo das ruralidades e das poliacuteticas puacuteblicas relacionadas ao campo Para isto as autoras

analisam as experiecircncias de jovens que frequentam a escola Nazareacute Flor localizada em uma

assentamento rural na planiacutecie litoracircnea oeste do Cearaacute Jaacute no capiacutetulo 9 de autoria de Patriacutecia

9

Peixoto Zapletal e Adriana Marcondes Machado o Programa Mais Educaccedilatildeo ndash promovido pelo

Governo Federal de 2007 a 2016 ndash se torna o centro do debate Utilizando a noccedilatildeo de

governamentalidade oriunda dos escritos foucaultianos as autoras problematizam a

formulaccedilatildeo e a implementaccedilatildeo deste programa governamental

No capiacutetulo 10 Omar Calazans Nogueira Pereira e Marcelo Afonso Ribeiro discutem

como a Orientaccedilatildeo Profissional enquanto campo teoacuterico-metodoloacutegico da Psicologia se insere

nas poliacuteticas puacuteblicas de educaccedilatildeo a partir da anaacutelise do Programa de Escola Integral (PEI) do

Governo do Estado de Satildeo Paulo

Os dois proacuteximos capiacutetulos discutem a temaacutetica da Psicologia e poliacuteticas puacuteblicas em

diaacutelogo com a educaccedilatildeo e a sauacutede O capiacutetulo 11 ndash de autoria de Andreia Maria de Lima

Assunccedilatildeo Adriana Marcondes Machado e Daniela Barros da Silva Freire Andrade - apresenta

uma pesquisa realizada na ala pediaacutetrica de um hospital puacuteblico da cidade de Cuiabaacute

levantando questotildees sobre como considerar as vivecircncias das crianccedilas nas poliacuteticas de sauacutede Jaacute

no capiacutetulo 12 Mariana Fagundes de Almeida Rivera Tatiana Alves Romatildeo Ana Carolina

Martins de Souza Felippe Valentim Fernanda Lyrio Heinzelmann Kate Delfini Santos Paula

Rosana Cavalcante e Ianni Regia Scarcelli apresentam as pesquisas de mestrado e doutorado

desenvolvidas pelo Laboratoacuterio de Estudos em Psicanaacutelise e Psicologia Social (LAPSO) do

IPUSP

No capiacutetulo seguinte a poliacutetica de sauacutede eacute debatida em conjunto agrave temaacutetica do Trabalho

Heloiacutesa Aparecida de Souza Johanna Garrido Pinzoacuten Marcia Hespanhol Bernardo e Mariana

Pereira da Silva apresentam uma siacutentese dos resultados das discussotildees e pesquisas realizadas

pelo grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que desde

2009 tem se dedicado ao estudo dos fenocircmenos vinculados agrave sauacutede de trabalhador Por fim no

capiacutetulo 14 Paula Sassaki Coelho traz algumas reflexotildees sobre o papel do Estado diante da

induacutestria da mineraccedilatildeo a partir de uma experiecircncia de pesquisa em Conceiccedilatildeo do Mato Dentro

no estado de Minas Gerais

10

Capiacutetulo 1

Contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para anaacutelise da relaccedilatildeo entre

atores estatais e natildeo estatais na implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

Joseacute Fernando Andrade Costa

Introduccedilatildeo

Este capiacutetulo tem como objetivo apresentar e discutir algumas contribuiccedilotildees atuais da

Psicologia Social Criacutetica para a anaacutelise de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas tomando como

recorte a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos Trata-se

de realizar um aprofundamento analiacutetico de parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado

sobre a implementaccedilatildeo de serviccedilos socioassistenciais na cidade de Satildeo Paulo (Costa 2016) A

intenccedilatildeo aqui natildeo eacute repetir os argumentos jaacute apresentados na referida pesquisa mas

desenvolver melhor alguns pontos que laacute foram apenas esboccedilados sobretudo em termos de uma

fundamentaccedilatildeo teoacuterico-metodoloacutegica baseada na articulaccedilatildeo entre uma teoria criacutetica do

reconhecimento reciacuteproco (Honneth 2003) e a sociologia da accedilatildeo puacuteblica (Lascoumes amp Le

Galegraves 2012) para o estudo psicossocial das poliacuteticas puacuteblicas

Cabe frisar uma motivaccedilatildeo para o resgate da pesquisa empiacuterica e o esforccedilo de continuar

a refletir sobre seus achados quando do iniacutecio do processo do mestrado o projeto fora escrito

tendo em vista compreender o papel das poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social para o

fortalecimento da cidadania Contudo os desafios do trabalho de pesquisa e o curto tempo de

um mestrado acabaram provocando algumas transformaccedilotildees significativas na forma de abordar

esse objeto Nem sempre todas as transformaccedilotildees e aprendizados decorrentes de uma pesquisa

de poacutes-graduaccedilatildeo satildeo depurados no relatoacuterio final por isso vale a pena seguir desenvolvendo

as ideias em novos foacuteruns (Costa 2017)

Das transformaccedilotildees do projeto inicial a principal foi uma radical mudanccedila na

compreensatildeo sobre o que satildeo as poliacuteticas puacuteblicas e sobre como abordaacute-las numa perspectiva

psicossocial criacutetica Se inicialmente a ideia era pesquisar as ldquoPoliacuteticas Puacuteblicas de Assistecircncia

Socialrdquo no decorrer do processo de pesquisa passei a conhecer o ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah

2016) e em especial a perspectiva da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo A importacircncia analiacutetica atribuiacuteda a tal

11

deslocamento seraacute tratada neste capiacutetulo na medida em que se pretende discutir possiacuteveis

contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para a anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas

Houve tambeacutem a necessidade de problematizar o que se convencionou chamar de

Psicologia Social Criacutetica Toda Psicologia Social enseja de certa forma um esclarecimento

sobre de qual Psicologia Social se trata exatamente uma vez que este natildeo eacute um campo

homogecircneo (Silva Juacutenior amp Zangari 2017) Isso eacute verdadeiro tambeacutem para a Psicologia Social

Criacutetica Este qualificativo ndash ldquocriacuteticardquo ndash refere-se efetivamente a quecirc Agrave criacutetica de determinado

modelo teoacuterico-metodoloacutegico ldquotradicionalrdquo Agrave criacutetica de uma determinada atitude (passiva)

perante as contradiccedilotildees da realidade social Agrave proposiccedilatildeo de um determinado referencial

analiacutetico ldquocriacuteticordquo Ou ainda ele designa uma subaacuterea da Psicologia Social na qual se

encontram determinadas pessoas e ideias A Psicologia Social Criacutetica com a qual irei trabalhar

nesse texto eacute aquela que se vale reflexivamente das contribuiccedilotildees da filosofia moral e da teoria

social com o intuito de explicar processos e padrotildees de interaccedilatildeo interpessoais institucionais

e societaacuterios de forma articulada mas sem perder de vista os horizontes normativos de

libertaccedilatildeo e emancipaccedilatildeo humana

Nessa perspectiva as disciplinaridades tambeacutem merecem ser questionadas A

ultraespecializaccedilatildeo exigida pelo mercado simboacutelico do campo acadecircmico tem um alcance

limitado e limitador para produzir conversas instrutivas e alargar o espaccedilo formativo de seus

participantes Se por um lado a especializaccedilatildeo contiacutenua eacute um valor intriacutenseco ao

desenvolvimento do pensamento cientiacutefico e da capacitaccedilatildeo teacutecnica por outro eacute necessaacuterio

olhar para aleacutem das fronteiras para enxergar no horizonte os benefiacutecios da interdisciplinaridade

da transdisciplinaridade e inclusive de certa dose de indisciplinaridade

Assim espero contribuir para ampliar as perspectivas criacuteticas de anaacutelise das poliacuteticas

puacuteblicas pela Psicologia Social e para favorecer a busca de um diaacutelogo profiacutecuo entre esses dois

campos Afinal como diz Howard Becker (2015) a vida intelectual nada mais eacute do que um

diaacutelogo entre pessoas interessadas no mesmo assunto

O presente capiacutetulo estaacute estruturado da seguinte maneira num primeiro momento (1)

seraacute abordada a questatildeo da relaccedilatildeo entre Psicologia Social e Teoria Criacutetica com o intuito de

apresentar a teoria do reconhecimento reciacuteproco de Axel Honneth e o modo como ela pode ser

uacutetil para a anaacutelise de instituiccedilotildees em seguida (2) seraacute proposto o deslocamento da perspectiva

das poliacuteticas puacuteblicas em direccedilatildeo agrave compreensatildeo mais ampla da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo enfatizando o

potencial do campo psicossocial em contribuir com estudos sobre anaacutelise do processo de

implementaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos e por fim (3) as articulaccedilotildees entre as duas perspectivas

12

anteriores seratildeo desenvolvidas a partir de alguns dos resultados da pesquisa empiacuterica com foco

na relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais que atuam na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos de

assistecircncia social no municiacutepio de Satildeo Paulo Nas consideraccedilotildees finais satildeo apresentas algumas

reflexotildees sobre as potencialidades e os limites dessa proposta

1 Psicologia Social e Teoria Criacutetica

A Psicologia Social Criacutetica costuma ser genericamente identificada como resultado da

crise de referecircncia da disciplina na deacutecada de 1970 quando o modelo dominante da Psicologia

Social positivista passou a ser sistematicamente criticado por sua insuficiecircncia em dar respostas

efetivas aos diversos problemas sociais cada vez mais urgentes nos paiacuteses latino-americanos

Esse movimento fez surgir uma concepccedilatildeo alternativa de Psicologia Social orientada natildeo

apenas por pressupostos cientiacuteficos mas principalmente pela ideia de um compromisso social

e poliacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade

Diversos referenciais teoacuterico-metodoloacutegicos passaram a ser desenvolvidos desde entatildeo

pela Psicologia Social com destaque para a assimilaccedilatildeo de abordagens marxistas poacutes-

estruturalistas e construcionistas1 Como observa Fernaacutendez Christlieb (2019) em sua descriccedilatildeo

das transformaccedilotildees da disciplina nas uacuteltimas deacutecadas hoje a Psicologia Social encontra-se

enormemente enriquecida pela quantidade de leituras produccedilotildees e debates sobre os mais

variados temas que a tornaram ldquouma disciplina paradoxalmente soacutelida e consolidada mas sem

ser canocircnica nem dogmaacuteticardquo (p 17) O elemento da ldquocriacuteticardquo parece funcionar como pivocirc da

articulaccedilatildeo de diferentes perspectivas e modos de fazer Psicologia Social capazes natildeo apenas

de desvelar a realidade mas tambeacutem de buscar caminhos para transformaacute-la

Dentre os modelos que informam os trabalhos teoacutericos e empiacutericos da Psicologia Social

Criacutetica no Brasil destacam-se as contribuiccedilotildees da tradiccedilatildeo de pensamento conhecida como

ldquoTeoria Criacutetica da Sociedaderdquo ou ldquoEscola de Frankfurtrdquo (Crochiacutek 2013 Lima 2015) As

1Em relaccedilatildeo agraves Poliacuteticas Puacuteblicas a Psicologia Social tem buscado contribuir teoacuterico-metodologicamente a partir

de diferentes bases epistemoloacutegicas que vatildeo se fortalecendo em diversos foacuteruns profissionais e acadecircmicos Por

exemplo desde uma perspectiva marxista haacute trabalhos que discutem as contradiccedilotildees estruturais das poliacuteticas

sociais implementadas pelo Estado como resposta agrave questatildeo social no Modo de Produccedilatildeo Capitalista (Oliveira amp

Costa 2018) desde uma perspectiva poacutes-estruturalista ressalta-se o aspecto biopoliacutetico dos dispositivos puacuteblicos

enquanto tecnologias de governo das populaccedilotildees e de gerenciamento dos riscos sociais (Cavagoli amp Guareschi

2018) desde uma perspectiva (poacutes-)construcionista as poliacuteticas puacuteblicas satildeo entendidas como processos

heterogecircneos que constituem redes hiacutebridas fruto de muacuteltiplos processos de associaccedilatildeo nos quais participam uma

grande quantidade de elementos de forma complexa e por vezes complicada (Brigagatildeo Nascimento amp Spink

2011) Minha proposta neste capiacutetulo eacute contribuir com esse debate desde as perspectivas da Teoria Criacutetica

(Honneth 2003) e do ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah 2016)

13

principais caracteriacutesticas dessa tradiccedilatildeo de pensamento satildeo a busca pela formulaccedilatildeo de

diagnoacutesticos do tempo presente e a orientaccedilatildeo para a emancipaccedilatildeo Metodologicamente a

criacutetica da sociedade requer a reconexatildeo entre filosofia e ciecircncias sociais de modo a proceder agrave

investigaccedilatildeo sistemaacutetica das promessas de emancipaccedilatildeo contidas na realidade mas que satildeo

sistematicamente bloqueadas pela proacutepria organizaccedilatildeo social Em outras palavras a Teoria

Criacutetica natildeo visa criticar a realidade de fora como se houvesse um ponto externo do qual se pode

observar melhor a dinacircmica societaacuteria ou segundo um horizonte utoacutepico formulado idealmente

mas procura filosoficamente desvelar o possiacutevel no existente A reconexatildeo entre filosofia e

ciecircncias empiacutericas visa fundamentar uma criacutetica imanente da sociedade na qual por um lado

o pensamento natildeo seja refeacutem da empiria e por outro a teoria natildeo prescinda dos meacutetodos

cientiacuteficos

Autores como Theodor Adorno Herbert Marcuse Walter Benjamin e Juumlrgen Habermas

foram decisivos para a formaccedilatildeo de muitos psicoacutelogos(as) sociais brasileiros(as) e para o

desenvolvimento de pesquisas criacuteticas sobre diversos assuntos como preconceito violecircncia

identidade etc Eacute possiacutevel afirmar que a relevacircncia das duas primeiras geraccedilotildees da Teoria Criacutetica

para a Psicologia Social brasileira eacute bastante conhecida e consolidada jaacute a recepccedilatildeo das

geraccedilotildees mais recentes de teoacutericos criacuteticos eacute um processo atual e encontra-se ainda em

construccedilatildeo

O principal representante da chamada ldquoterceira geraccedilatildeordquo da Teoria Criacutetica eacute o filoacutesofo

e socioacutelogo alematildeo Axel Honneth autor de vasta obra nas uacuteltimas trecircs deacutecadas sobre filosofia

moral e teoria social A grande contribuiccedilatildeo de Honneth consiste em desenvolver uma filosofia

social de teor normativo ancorada no processo de construccedilatildeo da identidade (pessoal e coletiva)

como resultado de padrotildees de interaccedilatildeo social mediados pelo conflito social Mais

precisamente Honneth (2003) elabora seu projeto de teoria criacutetica sobre o paradigma da

intersubjetividade na forma de uma teoria do reconhecimento reciacuteproco Conveacutem analisar em

detalhes como esse projeto pode ser uma via promissora para a Psicologia Social Criacutetica

brasileira inclusive para a anaacutelise de processos de implementaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos

11 Axel Honneth e a renovaccedilatildeo da Teoria Criacutetica

Honneth eacute conhecido por sua pretensatildeo de renovar o projeto original da Teoria Criacutetica

a partir da criacutetica ao ldquodeacuteficit socioloacutegicordquo que ele identifica em seus antecessores Ele mostra

que em Horkheimer e Adorno a criacutetica funcionalista da razatildeo instrumental e do mundo

14

totalmente administrado leva a um impasse em relaccedilatildeo aos fundamentos para a criacutetica social

em termos normativos Em Habermas ele critica a concepccedilatildeo dual de sociedade que opotildee dois

conceitos concorrentes de organizaccedilatildeo social (sistema e mundo da vida) pois entende que natildeo

eacute possiacutevel supor a existecircncia de instituiccedilotildees (sistemas) desprovidas de normatividade e

tampouco eacute plausiacutevel conceber esferas de accedilatildeo comunicativa (mundo da vida) privadas de

relaccedilotildees de poder Honneth retoma os escritos de Hegel para fazer uma atualizaccedilatildeo da teoria

criacutetica pautada pelo paradigma das relaccedilotildees intersubjetivas no qual estatildeo inseridas as

instituiccedilotildees mas tomando o conflito como elemento constitutivo

Como observa Saavedra (2007) na obra de Honneth as concepccedilotildees teoreacuteticas de

continuidade histoacuterica estatildeo ancoradas materialmente em espaccedilos vitais devendo ser

fundamentadas objetivamente no acircmbito da accedilatildeo social no qual os acontecimentos histoacutericos

satildeo interpretativamente derivados Em outras palavras com essa concepccedilatildeo processual de

histoacuteria a proacutepria noccedilatildeo de sujeito histoacuterico passa a ser redefinida de modo que este ldquonatildeo eacute

mais considerado uma pura imposiccedilatildeo teoacuterica ou histoacuterica mas sim uma projeccedilatildeo normativa

na qual a possiacutevel integraccedilatildeo histoacuterica de todas as diferentes unidades sociais e regionais eacute

tematizada na humanidade consciente de si mesmardquo (Saavedra 2007 p 99)

Nesta perspectiva a histoacuteria natildeo deve ser vista como uma grande trama de relaccedilotildees sem

sujeitos e nem deve ser assimilada como acircmbito de acontecimentos caoacuteticos que soacute podem ser

apreendidos em construccedilotildees narrativas situadas na representaccedilatildeo imediata que os sujeitos fazem

de si e dos outros O esforccedilo teoacuterico de Honneth situa-se na intersecccedilatildeo entre filosofia moral e

teoria social procurando desenvolver a criacutetica da sociedade fundada na identificaccedilatildeo dos

princiacutepios normativos constitutivos dos conflitos sociais A categoria-chave para esse projeto eacute

a luta por reconhecimento reciacuteproco (Honneth 2003)

12 Uma teoria criacutetica do reconhecimento

Em sua principal obra Honneth (2003) busca atualizar a concepccedilatildeo hegeliana sobre a

formaccedilatildeo intersubjetiva das relaccedilotildees pessoais e institucionais segundo as exigecircncias poacutes-

metafiacutesicas das teorias sociais de base empiacuterica Ele encontra na psicologia social de G H

Mead os fundamentos para essa atualizaccedilatildeo O intuito eacute elaborar uma teoria social de teor

normativo isto eacute uma teoria criacutetica das patologias sociais que bloqueiam os processos de

autorrealizaccedilatildeo praacutetica necessaacuterios agrave formaccedilatildeo de uma vida eacutetica ou ldquoeticidaderdquo (Sittlichkeit)

Para tanto deve-se partir da reconstruccedilatildeo das regras e valores morais estruturantes das relaccedilotildees

15

sociais especialmente daquelas experiecircncias de desrespeito natildeo simbolizadas nas relaccedilotildees

intersubjetivas

Esquematicamente Honneth (2003) mostra que para Hegel a formaccedilatildeo do indiviacuteduo

se daacute a partir de embates intersubjetivos que ocorrem nos acircmbitos da famiacutelia do direito e da

formaccedilatildeo da vontade puacuteblica isto eacute da solidariedade Em Mead o reconhecimento social

aparece na forma de relaccedilotildees primaacuterias (guiadas pelo amor) juriacutedicas (pautadas por leis) e na

esfera do trabalho (na qual os indiviacuteduos poderiam mostrar-se valiosos para a coletividade) A

partir dos insights desses dois autores Honneth refina as categorias de relaccedilotildees de

reconhecimento social extraindo delas trecircs princiacutepios integradores as ligaccedilotildees emotivas fortes

a adjudicaccedilatildeo de direitos e a orientaccedilatildeo por valores

Para tornar esses princiacutepios base de uma filosofia social criacutetica Honneth (2003) adota o

procedimento metodoloacutegico negativo isto eacute ele parte dos sentimentos de injusticcedila dos atores

sociais para elaborar uma teoria da base moral das concepccedilotildees de justiccedila e suas violaccedilotildees O

interesse inicial de Honneth era analisar as formas de resistecircncia agrave dominaccedilatildeo no acircmbito dos

chamados ldquoestudos culturaisrdquo em que haacute primazia da perspectiva dos participantes sobre as

narrativas das grandes revoluccedilotildees Isso o leva a investigar sistematicamente as formas mais

sutis ou menos expliacutecitas de resistecircncia em suma as violaccedilotildees de certas expectativas de

reciprocidade que satildeo processadas pelos indiviacuteduos como sentimentos de injusticcedila e por isso

podem ser a base da formaccedilatildeo tanto de coletivos e movimentos sociais organizados quanto de

reaccedilotildees natildeo articuladas Honneth identifica que a anaacutelise dessas violaccedilotildees de expectativas

representa uma lacuna psicoloacutegica na filosofia social pois as reaccedilotildees emocionais negativas tais

como vergonha raiva ofensa ou desprezo devem ser interpretadas dentro do quadro teoacuterico da

experiecircncia social de desrespeito em relaccedilatildeo agraves demandas de reconhecimento

Com isso a centralidade da teoria criacutetica de Honneth repousa sobre o conflito social

cuja gramaacutetica moral satildeo as lutas por reconhecimento reciacuteproco A partir da leitura de Hegel e

Mead Honneth apresenta trecircs esferas do reconhecimento social amor direito e estima social

A cada uma delas correspondem respectivamente uma forma de autorrelaccedilatildeo praacutetica dos

indiviacuteduos e uma forma de desrespeito

Na esfera do amor as demandas por reconhecimento se expressam nas relaccedilotildees afetivas

primaacuterias pois satildeo as mais fundamentais para a estruturaccedilatildeo da personalidade Sejam as

relaccedilotildees de filiaccedilatildeo de amizade ou entre parceiros sexuais a autocompreensatildeo de si como

indiviacuteduo autocircnomo depende do reconhecimento do outro Retomando a psicanaacutelise de Donald

Winnicott Honneth aponta para os conflitos existentes na relaccedilatildeo matildee-bebecirc na primeira

16

infacircncia cuja resoluccedilatildeo da tensatildeo dependecircncia x autonomia seraacute a base para a formaccedilatildeo do

sentimento de autoconfianccedila Tal sentimento seraacute fundamental para a participaccedilatildeo segura na

esfera puacuteblica O desrespeito correspondente a essa esfera do reconhecimento satildeo os maus-

tratos e a violaccedilatildeo

As relaccedilotildees de direito ou de cidadania por sua vez pautam-se pelos princiacutepios morais

universalistas que um sistema juriacutedico garante aos membros de uma determinada comunidade

poliacutetica Honneth observa que a institucionalidade dos direitos eacute resultado de conflitos sociais

histoacutericos Mais do que apenas normas juriacutedicas o conceito de direito indica toda uma gama de

relaccedilotildees modernas pautadas por demandas de liberdade individual e que conseguem estabelecer

uma consistecircncia e legitimidade moral assentida pelos participantes da comunidade Isso

significa que da perspectiva da igualdade pelo direito todos podem se reconhecer como seres

humanos capazes de participaccedilatildeo social A autorrelaccedilatildeo praacutetica decorrente dessas relaccedilotildees

juriacutedicas seraacute o autorrespeito e a ela corresponde o tipo de desrespeito associado agrave privaccedilatildeo de

direitos e agrave exclusatildeo

A terceira dimensatildeo do reconhecimento refere-se ao domiacutenio das relaccedilotildees de

solidariedade ou mais precisamente de estima social No interior de uma comunidade de

valores os indiviacuteduos podem encontrar a valorizaccedilatildeo de suas habilidades particulares a partir

do reconhecimento puacuteblico de seus feitos e realizaccedilotildees em prol da coletividade Dessa forma

a autorrelaccedilatildeo praacutetica associada seraacute a autoestima isto eacute um sentimento de orgulho do grupo

ou de honra coletiva O desrespeito nesse caso seraacute a vexaccedilatildeo a degradaccedilatildeo puacuteblica os tipos

de ofensa o preconceito e a humilhaccedilatildeo

Honneth reivindica a heranccedila da Teoria Criacutetica na medida em que sob as bases de uma

concepccedilatildeo naturalista e pragmaacutetica das ciecircncias sociais procede agrave reconstruccedilatildeo dos conflitos

intersubjetivos (sua gramaacutetica eacute a luta por reconhecimento) do ldquoespiacuterito objetivordquo para usar os

termos hegelianos e aponta para uma eticidade formal (Sittlichkeit) isto eacute para uma concepccedilatildeo

de vida boa que visa natildeo apenas a realizaccedilatildeo da autonomia moral dos indiviacuteduos mas tambeacutem

as condiccedilotildees eacuteticas de sua autorrealizaccedilatildeo como um todo societaacuterio

As formas de reconhecimento do amor do direito e da solidariedade formam dispositivos de

proteccedilatildeo intersubjetivos que asseguram as condiccedilotildees da liberdade externa e interna das quais

depende o processo de uma articulaccedilatildeo e de uma realizaccedilatildeo espontacircnea de metas individuais de

vida Com esse potencial interno de desenvolvimento migra para as condiccedilotildees normativas

de autorrealizaccedilatildeo um iacutendice histoacuterico que deve limitar as pretensotildees de nossa concepccedilatildeo formal

de eticidade o que pode ser considerado condiccedilatildeo intersubjetiva de uma vida bem-sucedida

torna-se uma grandeza historicamente variaacutevel determinada pelo niacutevel atual de

desenvolvimento dos padrotildees de reconhecimento (Honneth 2003 p 274)

17

Nesses termos um sistema filosoacutefico derivado da teoria do reconhecimento seraacute capaz

de explicar a gecircnese moral dos conflitos histoacutericos como as lutas de classe ndash no sentido de uma

luta pelo reconhecimento da classe trabalhadora como produtora da riqueza socialmente

produzida ndash mas tambeacutem das diferentes reivindicaccedilotildees de reconhecimento das identidades

como por exemplo as lutas antirracistas feministas de diversidade sexual e de gecircnero etc De

fato o modelo honnethiano repercutiu na filosofia social como uma contribuiccedilatildeo maior para a

nossa autocompreensatildeo do tempo presente em seus desejos e lutas

13 Reconhecimento e instituiccedilotildees

Das criacuteticas feitas a essa teoria criacutetica do reconhecimento destacam-se a objeccedilatildeo de

Nancy Fraser (2006) quanto agrave capacidade de um conceito de reconhecimento cultural abarcar

demandas de redistribuiccedilatildeo econocircmica e a discussatildeo de Rahel Jaeggi (2013) sobre certas

relaccedilotildees de reconhecimento fracassarem ou serem deficitaacuterias enquanto relaccedilotildees de

reconhecimento pois mesmo certas adscriccedilotildees positivas podem ser limitantes e injuriosas Haacute

tambeacutem um conjunto de debates sobre o vieacutes individualista da teoria de Honneth ao priorizar

as relaccedilotildees pessoais em detrimento da criacutetica das instituiccedilotildees Dentre essas uacuteltimas eacute

particularmente importante para a discussatildeo deste capiacutetulo as consideraccedilotildees de Emmanuel

Renault (2011) sobre o papel atribuiacutedo agraves instituiccedilotildees na teoria do reconhecimento

Renault (2011) questiona se Honneth foi capaz de explicar adequadamente a relaccedilatildeo

entre expectativas intersubjetivas de reconhecimento reciacuteproco e a formaccedilatildeo de instituiccedilotildees que

encarnam certos princiacutepios normativos como uma ldquosegunda naturezardquo seja na forma de modos

relativamente mais simples de coordenaccedilatildeo das accedilotildees (escolas prisotildees etc) seja em sistemas

mais complexos de organizaccedilatildeo da vida social (famiacutelia estado mercado) O problema central

para Renault consiste em estabelecer a ordem de prioridade entre as demandas de

reconhecimento e as exigecircncias institucionais Por um lado numa concepccedilatildeo ldquoexpressivistardquo

de reconhecimento as instituiccedilotildees expressam relaccedilotildees de reconhecimento isto eacute as relaccedilotildees

intersubjetivas precedem as instituiccedilotildees operando num niacutevel ldquopreacute-institucionalrdquo Assim as

instituiccedilotildees seriam apenas um resultado em diferentes niacuteveis de lutas por reconhecimentos que

sedimentaram determinadas praacuteticas sociais Ocorre que as relaccedilotildees de reconhecimento nunca

acontecem de forma pura mas sempre condicionadas por regras sociais e expectativas

normativas das quais as instituiccedilotildees participam ativamente Desse modo por outro lado

argumenta Renault as instituiccedilotildees tambeacutem produzem relaccedilotildees de reconhecimento Numa

18

perspectiva histoacuterica diferentes settings institucionais satildeo capazes de coordenar accedilotildees

individuais e de sustentaacute-las em conformidade com certas promessas normativas

Ao provocar a reflexatildeo sobre a necessidade de explicitar os elos entre reconhecimento

e instituiccedilotildees Renault (2011) entende estar contribuindo para dar agrave filosofia de Honneth um

ldquocomplemento socioloacutegicordquo (p231) Isso significa que as demandas por reconhecimento

operam tanto no niacutevel mais elementar das relaccedilotildees intersubjetivas (como expectativas

normativas) quanto no niacutevel dos fatos sociais (como efeitos do reconhecimento) mas o link

entre esses dois niacuteveis natildeo eacute de todo evidente A criacutetica de Renault seraacute que a resoluccedilatildeo desse

problema afeta a ambiccedilatildeo do projeto de uma teoria do reconhecimento como criacutetica social

Em minha opiniatildeo explicitar isso implica em uma concepccedilatildeo diferente de reconhecimento na

medida em que nos obriga a renunciar agrave ideia de pressupostos normativos da vida social bem

como a desenvolver uma teoria do reconhecimento como teoria da justiccedila As expectativas

baacutesicas de reconhecimento satildeo demasiado indeterminadas para definir princiacutepios de justiccedila e

para serem entendidas como pressupostos da vida social2 (Renault 2011 p 231 traduccedilatildeo livre)

Honneth (2011) responde a Renault argumentando por uma consideraccedilatildeo ldquomais

dialeacuteticardquo da relaccedilatildeo entre instituiccedilotildees e reconhecimento a partir do que ele chama de ldquoordens

de reconhecimentordquo Isso significa que as instituiccedilotildees natildeo satildeo apenas instacircncias que refletem

ou expressam o reconhecimento intersubjetivo uma vez que os indiviacuteduos recorrem a normas

institucionalizadas em suas demandas de reconhecimento e eacute apenas agrave luz dessas instituiccedilotildees

que concedem uns aos outros determinado status normativo Para Honneth (2011) ldquoessas

lsquoordens de reconhecimentorsquo consistem em estruturas normativas institucionalizadas que

historicamente se desenvolveram em torno das exigecircncias de reproduccedilatildeo social ao mesmo

tempo em que tornaram tais exigecircncias dependentes do preenchimento de certas obrigaccedilotildees e

papeacuteis pelos atores sociaisrdquo (p 403 traduccedilatildeo livre)

A efetivaccedilatildeo da autonomia individual soacute poderaacute ser possiacutevel se vir acompanhada de

complexos institucionais que garantam a realizaccedilatildeo da liberdade social (Honneth 2015) Isso

significa que para cada ordem de reconhecimento correspondem sistemas de accedilatildeo

normativamente institucionalizados agraves relaccedilotildees pessoais correspondem instituiccedilotildees como a

amizade a intimidade e a famiacutelia agraves relaccedilotildees econocircmicas correspondem as instituiccedilotildees

produtivas de consumo e de mercado e agraves relaccedilotildees poliacuteticas correspondem a vida puacuteblica

democraacutetica a cultura poliacutetica e o Estado democraacutetico de direito (Honneth 2015)

2 Em resposta a essas e outras criacuteticas Honneth desenvolve em O direito da liberdade uma teoria da justiccedila como

criacutetica social Esta obra marca um giro teoacuterico em direccedilatildeo agraves instituiccedilotildees na qual o objetivo central eacute a reconstruccedilatildeo

normativa da ideia moderna de liberdade (Honneth 2015)

19

Em suma Emmanuel Renault apresenta uma questatildeo extremamente importante mas sua busca

por uma resposta leva-o na direccedilatildeo errada Uma anaacutelise abrangente da sociedade natildeo deve se

contentar apenas em reconstruir normativamente aquelas formas de reconhecimento inerentes

ao cerne da reproduccedilatildeo social Para compreender o padratildeo de acordo com o qual os sujeitos satildeo

integrados agrave sociedade tambeacutem precisamos de uma anaacutelise das formas de reconhecimento

praticadas em organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas Seria fatal simplesmente assumir que somente

encontraremos formas de reconhecimento sob o niacutevel normativo das formas gerais de interaccedilatildeo

A questatildeo sobre quais padrotildees de interaccedilatildeo devem ser implementados em cada organizaccedilatildeo eacute

sempre decidida em processos conflitivos de negociaccedilatildeo social Os resultados natildeo podem ser

previstos teoricamente mas soacute podem ser explorados com o auxiacutelio de investigaccedilotildees empiacutericas

(Honneth 2011 pp 404-405 traduccedilatildeo livre)

A questatildeo agora natildeo consiste em estabelecer a prioridade das instituiccedilotildees sobre o

reconhecimento ou do reconhecimento sobre as instituiccedilotildees mas de proceder agrave investigaccedilatildeo

dos processos conflitivos de negociaccedilatildeo cotidiana que dialeticamente conformam determinadas

ordens de reconhecimento institucionalizadas seja na esfera das relaccedilotildees pessoais econocircmicas

ou da vida puacuteblico-poliacutetica Tendo em vista essa uacuteltima proponho considerar a seguir o

processo de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas como uma possibilidade para tal investigaccedilatildeo

tomando como exemplo um padratildeo de interaccedilatildeo especiacutefico a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo

estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos

2 Das ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo agrave ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo

Passemos agora a considerar de que modo a filosofia social de Axel Honneth pode

contribuir para as ciecircncias sociais especialmente para a anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas De fato

a teoria do reconhecimento pode ser categorizada como filosofia social na medida em que parte

da filosofia moral e poliacutetica para determinar as bases normativas da interaccedilatildeo social mas

tambeacutem se configura como teoria social criacutetica pois reconstroacutei os sistemas de accedilatildeo coletiva

observando a formaccedilatildeo dos sentimentos de injusticcedila e as patologias sociais enquanto resultado

de demandas e lutas por reconhecimento reciacuteproco assim como tambeacutem o satildeo as noccedilotildees de

progresso moral e emancipaccedilatildeo social Da breve explanaccedilatildeo feita no toacutepico anterior resulta que

a teoria do reconhecimento de Axel Honneth oferece bons fundamentos para a construccedilatildeo de

uma Psicologia Social Criacutetica atualizada em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da criacutetica social

contemporacircnea No entanto a questatildeo agora eacute saber como essa teorizaccedilatildeo se reconecta com as

exigecircncias metodoloacutegicas das ciecircncias empiacutericas Essa eacute uma discussatildeo da maior importacircncia

e que jaacute vem sendo feita haacute algum tempo (OrsquoNeill amp Smith 2012)

Todo programa de pesquisa cientiacutefica fundamenta-se em pressupostos teoacutericos e utiliza

de hipoacuteteses auxiliares e de meacutetodos rigorosos para o desenvolvimento sistemaacutetico de novos

conhecimentos sobre a realidade As ciecircncias sociais diferente das ciecircncias formais se

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desenvolvem a partir da pesquisa empiacuterica Assim para que a Psicologia Social Criacutetica

fundamentada em uma teoria criacutetica do reconhecimento possa oferecer alguma contribuiccedilatildeo

para o estudo das Poliacuteticas Puacuteblicas eacute necessaacuterio partir dos problemas da realidade social em

busca de respostas que visem consequecircncias praacuteticas Eacute neste sentido que a relaccedilatildeo entre

Psicologia e o campo das Poliacuteticas Puacuteblicas emerge como uma questatildeo da maior relevacircncia na

atualidade3 Antes de discutir os achados da pesquisa de mestrado que norteia a discussatildeo

proposta neste capiacutetulo vamos dar mais um passo na direccedilatildeo da construccedilatildeo de elementos

teoacutericos que subsidiam a anaacutelise psicossocial criacutetica das poliacuteticas puacuteblicas fundamentada na

teoria do reconhecimento Como mencionado na introduccedilatildeo no decorrer do processo de

pesquisa foi essencial uma aproximaccedilatildeo ao ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah 2016) e em especial

agrave sociologia da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2012)

21 A sociologia da accedilatildeo puacuteblica

A relaccedilatildeo entre Psicologia e Poliacuteticas Puacuteblicas eacute marcada por uma histoacuteria de conexotildees

e desconexotildees com a promessa recente de uma reconexatildeo mais duraacutevel As produccedilotildees mais

recentes indicam maior possibilidade de diaacutelogo entre esses dois campos ainda que ambos

sejam marcados por uma multiplicidade de enfoques teoacutericos e linguagens de accedilatildeo (Spink

2013) Se por um lado as poliacuteticas puacuteblicas satildeo frequentemente encaradas como um artefato

isto eacute como um sistema de accedilatildeo institucional voltado a obtenccedilatildeo de resultados com alto grau

de eficiecircncia eficaacutecia e efetividade por outro lado elas tambeacutem satildeo encaradas como processos

fluiacutedos e dinacircmicos em busca de coerecircncia diante da ambiguidade contiacutenua dos processos

organizativos poliacuteticos e sociais que a conformam Como sintetiza Spink (2013 p 172) mais

do que um conceito ldquopoliacutetica puacuteblica eacute tambeacutem algo que as pessoas fazemrdquo

Tambeacutem o estudo das poliacuteticas puacuteblicas eacute uma praacutetica construiacuteda socialmente Eacute o que

argumentam Pierre Lascoumes e Patrick Le Galegraves (2010) Para esses autores o modelo claacutessico

de anaacutelise das poliacuteticas centradas no protagonismo da administraccedilatildeo estatal como se esta fosse

o uacutenico ator responsaacutevel pela materializaccedilatildeo das poliacuteticas ldquoestaacute completamente ultrapassadordquo

de modo que ldquoa expressatildeo poliacutetica puacuteblica tem sido abandonada em benefiacutecio da noccedilatildeo de accedilatildeo

puacuteblicardquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 pp 32-33) Isso natildeo significa evidentemente

3 Em geral a Psicologia tem abordado o universo das poliacuteticas puacuteblicas desde o enfoque das praacuteticas profissionais

setorializadas em funccedilatildeo do nuacutemero crescente de postos de trabalho em diferentes serviccedilos puacuteblicos Podemos

dizer que a Psicologia foi a reboque da demanda social e institucional Reflexo dessa situaccedilatildeo eacute a criaccedilatildeo do

CREPOP (Centro de Referecircncia Teacutecnica em Psicologia e Poliacutetica Puacuteblica) pelo Conselho Federal de Psicologia

em 2006 e o crescente nuacutemero de teses e dissertaccedilotildees sobre poliacuteticas puacuteblicas (Spink 2013)

21

abandonar a criacutetica do Estado e de sua responsabilidade na gestatildeo dos interesses dos cidadatildeos

e cidadatildes Trata-se de ampliar o escopo de anaacutelise para aleacutem do Estado tomando-o como um

(importante) ator no jogo de relaccedilotildees que determinam a realidade das poliacuteticas mas natildeo como

o uacutenico O problema das poliacuteticas puacuteblicas nessa perspectiva passa a considerar um intrincado

jogo de relaccedilotildees disputas e orientaccedilotildees coletivas que envolvem atores puacuteblicos e privados em

diferentes niacuteveis ampliando a noccedilatildeo de governanccedila (Bichir 2018) Dessa forma ldquoo

emaranhado de niacuteveis de formas de regulaccedilatildeo e de redes de atores forccedilou uma revisatildeo das

concepccedilotildees estatistas de intervenccedilotildees puacuteblicas em benefiacutecio de sistemas de anaacutelise muito mais

abertosrdquo (p 33)

A anaacutelise das poliacuteticas puacuteblicas na medida em que natildeo se ateacutem exclusivamente agrave

burocracia estatal contribui para a compreensatildeo da dinacircmica das sociedades A sociologia da

accedilatildeo puacuteblica situa-se no domiacutenio das ciecircncias sociais mas natildeo reivindica uma epistemologia

especiacutefica Ela enfatiza ldquoas accedilotildees dos atores suas interaccedilotildees e o sentido que eles lhes atribui

mas tambeacutem as instituiccedilotildees as normas as representaccedilotildees coletivas e os procedimentos que

disciplinam o conjunto de tais interaccedilotildeesrdquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 p 40) Os autores

defendem um modelo de anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica denominado ldquopentaacutegono das poliacuteticas

puacuteblicasrdquo que compreende cinco elementos articulados entre si atores representaccedilotildees

instituiccedilotildees processos e resultados

Os atores podem ser individuais ou coletivos eles satildeo dotados de recursos possuem certa

autonomia estrateacutegias e capacidade de fazer escolhas Satildeo mais ou menos guiados por interesses

materiais eou simboacutelicos As representaccedilotildees satildeo os espaccedilos cognitivos e normativos que datildeo

sentido agraves suas accedilotildees as condicionam e as refletem As instituiccedilotildees satildeo normas regras rotinas

procedimentos que governam as interaccedilotildees Os processos satildeo as formas de interaccedilatildeo e sua

recomposiccedilatildeo no tempo Eles justificam as muacuteltiplas atividades de mobilizaccedilatildeo dos atores

individuais e coletivos Os resultados (outputs) satildeo as consequecircncias os efeitos da accedilatildeo puacuteblica

(Lascoumes amp Le Galegraves 2010 pp 45-46)

A perspectiva da accedilatildeo puacuteblica eacute uma abordagem centrada mais nas interaccedilotildees do que

nos efeitos das poliacuteticas puacuteblicas De forma simplificada pode-se dizer que a perspectiva das

ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo eacute tradicionalmente a da ciecircncia poliacutetica interessada no alcance e nos efeitos

das poliacuteticas produzidas nos niacuteveis mais centrais da administraccedilatildeo estatal (modelo top-down)

enquanto a perspectiva da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo eacute a da sociologia e dirige-se prioritariamente para a

compreensatildeo das interaccedilotildees entre os muacuteltiplos atores que compotildeem a poliacutetica (modelo bottom-

up) Com isso natildeo quero dizer que a sociologia da accedilatildeo puacuteblica natildeo atribui a devida importacircncia

para os processos poliacuteticos A mudanccedila eacute mais de ecircnfase pois tambeacutem na Ciecircncia Poliacutetica tem

sido dada cada vez mais a devida atenccedilatildeo agraves interaccedilotildees no seio das instituiccedilotildees (Marques

2013) Em suma a ldquopostura fecundardquo como argumentam os autores ldquoconsiste em trabalhar as

22

articulaccedilotildees entre regulaccedilatildeo social e regulaccedilatildeo poliacutetica entre o que eacute ou natildeo governado pelas

poliacuteticas puacuteblicasrdquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 p 52) Um acircmbito privilegiado de anaacutelise

empiacuterica satildeo os processos de implementaccedilatildeo de poliacuteticas

22 Implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas e ordens de reconhecimento

O ciclo de poliacuteticas puacuteblicas ndash elemento analiacutetico baacutesico no ldquocampo de puacuteblicasrdquo ndash

parece ser pouco conhecido ou de certa forma negligenciado pela Psicologia Eacute no estaacutegio de

implementaccedilatildeo que as poliacuteticas seratildeo ldquoentreguesrdquo aos cidadatildeos e cidadatildes E nesse estaacutegio do

ciclo que a execuccedilatildeo do serviccedilo no cotidiano materializa as intenccedilotildees dos formuladores e

decisores E eacute nesse momento que a funccedilatildeo dos agentes implementadores ndash os chamados

ldquoburocratas do niacutevel da ruardquo (Lipsky 2019) ndash ganha centralidade para a perspectiva da

sociologia da accedilatildeo puacuteblica Afinal o que acontece ldquona pontardquo dos serviccedilos natildeo reflete apenas

desenhos institucionais e modos de gestatildeo mas da objetivaccedilatildeo cotidiana dos cinco elementos

do ldquopentaacutegono da accedilatildeo puacuteblicardquo E isso supotildee processos conflitivos de negociaccedilatildeo que

dialeticamente conformam determinadas ordens de reconhecimento

Esses burocratas do niacutevel da rua satildeo todos aqueles funcionaacuterios que cotidianamente

entregam as poliacuteticas para os usuaacuterios independente se contratados diretamente pelo Estado ou

de forma indireta Satildeo eles professores policiais assistentes sociais agentes de sauacutede etc Entre

eles encontram-se todas as psicoacutelogas e psicoacutelogos que atuam em serviccedilos puacuteblicos O estudo

seminal de Lipsky (2019) revela como esses atores natildeo satildeo passivos diante dos niacuteveis mais

ldquoelevadosrdquo da poliacutetica de certa forma esses burocratas tambeacutem ldquofazemrdquo a poliacutetica

cotidianamente ao fazerem escolhas e tomarem decisotildees com relativa margem de liberdade no

interior dos procedimentos e legislaccedilotildees estabelecidas pelo ordenamento juriacutedico das poliacuteticas

Natildeo se trata de uma subversatildeo mas de reconhecer a existecircncia de um espaccedilo de atuaccedilatildeo

relativamente livre para o exerciacutecio de certo poder discricionaacuterio

Nessa perspectiva a discricionariedade natildeo eacute uma anomalia do desenho de uma poliacutetica

puacuteblica mas um resultado inevitaacutevel que emerge nas interaccedilotildees cotidianas dos burocratas entre

si e com os usuaacuterios A accedilatildeo desses burocratas eacute permeada por valores e referecircncias individuais

que para a populaccedilatildeo pode se mesclar com os valores das instituiccedilotildees Para compreender a

implementaccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender natildeo apenas os fatores organizacionais e institucionais

do trabalho desses burocratas mas tambeacutem fatores individuais e relacionais que podem ser

igualmente importantes para determinar a natureza a qualidade e quantidade dos benefiacutecios

23

aleacutem de sanccedilotildees e direcionamentos Desse modo o debate sobre a discricionariedade dos

burocratas do niacutevel da rua costuma girar em torno da legitimidade ou natildeo das escolhas e

decisotildees por eles tomadas pois se por um lado podem adaptar as poliacuteticas para melhor alcanccedilar

os objetivos previstos por outro lado eles natildeo possuem legitimidade democraacutetica para tomar

decisotildees que afetem negativamente a vida dos cidadatildeos4

Nesse ponto uma contribuiccedilatildeo importante para os estudos sobre implementaccedilatildeo pode

ser encontrada na teoria do reconhecimento a partir do conceito de ldquoordens de

reconhecimentordquo Vimos que essas ordens correspondem a padrotildees de interaccedilatildeo mais ou menos

institucionalizados cujo fundamento satildeo as expectativas e demandas por reconhecimento Se

retomarmos as trecircs esferas do reconhecimento ndash amor direito e estima social ndash veremos que a

sociologia da accedilatildeo puacuteblica concentra-se nas duas uacuteltimas Natildeo obstante a ecircnfase dada aos

processos e interaccedilotildees cotidianas ainda falta ao campo de anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas como

um todo um suporte propriamente psicoloacutegico ou mais precisamente psicossocial Penso que

esse suporte pode ser dado pela Psicologia Social Criacutetica orientada pela teoria do

reconhecimento Ao tomar as ordens institucionalizadas do reconhecimento como pano de

fundo para a pesquisa social dos processos de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas creio que eacute

possiacutevel ir aleacutem de alguns limites encontrados em ambos os lados pela Psicologia que nesse

assunto padece de seu relativo insulamento e pelo ldquocampo de puacuteblicasrdquo que parece reticente

quanto a retomar perspectivas psicoloacutegicas

Considero que uma indicaccedilatildeo importante para construir esse diaacutelogo foi dada por Peter

Spink (2013) ao distinguir a linguagem dos direitos da linguagem das poliacuteticas puacuteblicas Para

ele enquanto a linguagem dos direitos evocada pelos coletivos e movimentos sociais eacute

imperativa ndash pois fundada na segunda esfera do reconhecimento ndash a linguagem das poliacuteticas

puacuteblicas eacute uma linguagem de possibilidades de orientaccedilatildeo de processos poliacuteticos e de

orientaccedilatildeo ndash pertence portanto agrave terceira esfera das relaccedilotildees de reconhecimento Em meio agraves

diferentes linguagens de accedilatildeo e ontologias poliacuteticas vislumbradas pelo autor surge como

estrateacutegia metodoloacutegica e analiacutetica que ldquooptar pela cacofonia performaacutetica poderia ser mais

adequado do que aceitar a hegemonia automaacutetica e articuladora da poliacutetica puacuteblicardquo (Spink

2013 p 179) E sobre o espaccedilo da Psicologia Social nesse debate acrescenta

Talvez uma maneira de ampliar o foco fosse relocalizar a temaacutetica da poliacutetica puacuteblica para a

discussatildeo da accedilatildeo puacuteblica em geral Se entendermos accedilatildeo puacuteblica natildeo somente em relaccedilatildeo

agraves atividades do setor puacuteblico mas incluindo os diversos arranjos entre governo e sociedade

presentes na formulaccedilatildeo e gestatildeo do agir puacuteblico e a pressatildeo de novas instacircncias da sociedade

4 Sobre os estudos de burocracia de niacutevel da rua no Brasil ver o prefaacutecio de Gabriela Lotta em Lipsky (2019)

24

civil e a provisatildeo de serviccedilos proacuteprios pelas comunidades segue que eacute aqui que precisaremos

aprofundar nossas investigaccedilotildees (Spink 2013 p 180 grifos meus)

Seguindo essa pista mas sem abrir matildeo de uma teoria social criacutetica de longo alcance

como a que encontramos na obra de Axel Honneth proponho agora utilizar essas elaboraccedilotildees

para a anaacutelise de um caso concreto decorrente da etapa empiacuterica da pesquisa de mestrado

referida no iniacutecio deste capiacutetulo (Costa 2016)

3 Um exemplo empiacuterico a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais na accedilatildeo puacuteblica de

assistecircncia social

Partindo desses referenciais a pesquisa de mestrado visou compreender as accedilotildees dos

serviccedilos socioassistenciais para efetivaccedilatildeo da proteccedilatildeo social como um direito de cidadania

Para tanto foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa compreensiva de cunho

teoacuterico e empiacuterico utilizando os seguintes meacutetodos revisatildeo bibliograacutefica (sobre ldquocidadaniardquo

ldquoreconhecimentordquo e ldquoproteccedilatildeo socialrdquo) e pesquisa de campo (observaccedilatildeo participante em um

serviccedilo estatal e um natildeo estatal aleacutem de nove entrevistas semi-dirigidas sendo seis com

trabalhadoras e trecircs com usuaacuterias dos serviccedilos socioassistenciais) Como mencionado acima a

mudanccedila de ecircnfase das ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo para a ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo decorreu da proacutepria

especificidade do objeto a rede socioassistencial do municiacutepio de Satildeo Paulo caracteriza-se pela

articulaccedilatildeo de atores estatais (Poder Puacuteblico) e natildeo estatais (Organizaccedilotildees da Sociedade Civil)

na provisatildeo dos serviccedilos puacuteblicos agrave populaccedilatildeo Assim para compreender as accedilotildees desses

serviccedilos foi necessaacuterio observar as particularidades da relaccedilatildeo entre esses diferentes atores

Por se tratar de uma pesquisa que tomou como recorte um territoacuterio especiacutefico natildeo

houve a pretensatildeo de estender os achados para a rede como um todo pois isso demandaria um

estudo detalhado da diversidade de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil (OSCs) que atuam em

diferentes territoacuterios Trata-se portanto de uma discussatildeo situada no espaccedilo e no tempo pois

reflete as caracteriacutesticas que foram observadas em um momento especiacutefico No entanto a partir

desse recorte algumas consideraccedilotildees podem ser bastante uacuteteis para entender melhor a relaccedilatildeo

entre atores estatais (no caso um Centro de Referecircncia da Assistecircncia Social) e atores natildeo

estatais (no caso um Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos gerenciado por uma

OSC) na provisatildeo da accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia social

A primeira consideraccedilatildeo a ser feita diz respeito agrave configuraccedilatildeo da rede socioassistencial

em Satildeo Paulo como exemplo para anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica jaacute que a provisatildeo dos serviccedilos eacute

executada quase em sua totalidade pelas OSCs por meio de contratos estabelecidos com a

25

administraccedilatildeo municipal (Costa 2016 p 76) Essa caracteriacutestica confere certa

excepcionalidade na operacionalizaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) na

metroacutepole paulista5 Isso natildeo significa que os serviccedilos sejam ldquoterceirizadosrdquo como se costuma

argumentar na literatura Uma anaacutelise mais detalhada dos processos e interaccedilotildees entre esses

diferentes atores como a realizada por Brettas (2016 citada por Costa 2016 pp 77-78) revela

a existecircncia de uma ldquorede socioassistencial do SUAS uacutenica de finalidade puacuteblica independente

da natureza da organizaccedilatildeo ofertante do serviccedilordquo Haacute diversos exemplos que ilustram essa

situaccedilatildeo de maneira mais adequada do que a simples ideia de ldquoterceirizaccedilatildeordquo (que pressupotildee a

centralidade do Estado na realizaccedilatildeo da poliacutetica e ignora a diversidade de OSCs de tensotildees e

processos que materializam a accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia) Para resumir basta ressaltar que

as OSC satildeo muito diversas Geralmente satildeo associaccedilotildees ciacutevicas ligadas a grupos com declarada

vocaccedilatildeo para a accedilatildeo social como setores comunitaacuterios da Igreja Catoacutelica associaccedilotildees de

moradores ou grupos beneficentes e humanitaacuterios Tambeacutem podem ser associaccedilotildees poliacuteticas

como movimentos sociais tradicionais com maior ou menor enraizamento no territoacuterio onde

atuam Desse modo o estudo da accedilatildeo puacuteblica no niacutevel local deve considerar a accedilatildeo de ambos

atores estatais e natildeo estatais em relaccedilatildeo agrave dinacircmica socioterritorial na qual estatildeo inseridos

(Costa 2016 p 78)

Como afirma Bichir (2018 p 54) tambeacutem a ldquoregulamentaccedilatildeo das organizaccedilotildees eacute

definida na interaccedilatildeo entre burocratas da Secretaria Municipal de Assistecircncia e atores ligados

agraves OSCs e ocorre tanto em espaccedilos formais como o conselho e o foacuterum da aacuterea quanto em

arenas informaisrdquo Outro exemplo nesse sentido satildeo as conferecircncias autocircnomas tambeacutem

denominadas ldquoConferecircncias Livresrdquo ldquoCiacutevicasrdquo ou ldquoDemocraacuteticasrdquo que satildeo realizadas por um

conjunto de atores das OSCs ligados agrave poliacutetica de assistecircncia para discutir caminhos da accedilatildeo

puacuteblica Isso significa que a relaccedilatildeo entre atores estatais eacute muito mais complexa do que supotildee

uma simples ldquoterceirizaccedilatildeordquo pois a dinacircmica da accedilatildeo puacuteblica inclui tensotildees disputas e

capacidades institucionais de ambos os atores envolvidos

Ao observarmos essas situaccedilotildees de conflito veremos que elas satildeo marcadas por lutas

por reconhecimento Um exemplo observado durante a pesquisa empiacuterica foi a disputa

linguiacutestica sobre como definir a relaccedilatildeo entre esses atores enquanto as burocratas da

administraccedilatildeo direta apregoavam o caraacuteter de ldquoconvecircniordquo as representantes da OSC insistiam

na ideia de ldquoparceriardquo O primeiro termo diferencia as posiccedilotildees e ressalta o trabalho burocraacutetico

da administraccedilatildeo puacuteblica enquanto o segundo termo por sua vez ldquosupotildee que obrigaccedilotildees dos

dois lados para aleacutem do decretordquo (Costa 2016 p 124) Em ambos os casos haacute para aleacutem das

5 Essa caracteriacutestica do caso paulistano eacute analisada entre outras por Bichir (2018)

26

tensotildees e disputas a reivindicaccedilatildeo de que sejam reconhecidas as contribuiccedilotildees e realizaccedilotildees

(terceira esfera do reconhecimento) de cada ator para a efetivaccedilatildeo da poliacutetica socioassistencial6

Aleacutem da natureza da relaccedilatildeo entre os atores envolvidos na accedilatildeo puacuteblica outros termos

satildeo ressignificados nas lutas por reconhecimento dos atores que realizam a accedilatildeo puacuteblica no

cotidiano tais como a noccedilatildeo de ldquoporta de entradardquo e de ldquocidadaniardquo (Costa 2016)

Tambeacutem as capacidades institucionais e a discricionariedade desses atores devem ser

observadas enquanto ordens de reconhecimento institucionalizadas Ficou patente na pesquisa

empiacuterica que determinadas OSCs possuem motivaccedilotildees morais para o desenvolvimento do

trabalho assistencial (uma vocaccedilatildeo religiosa por exemplo) e podem mobilizar determinados

recursos (financeiros e humanos como doaccedilotildees e voluntariado) para aleacutem daquilo que recebem

da parceria com o poder puacuteblico Dessa forma natildeo eacute descabido levantar a seguinte hipoacutetese os

baixos repasses financeiros feitos pela administraccedilatildeo puacuteblica para as OSCs acabam forccedilando

essas uacuteltimas a complementarem os recursos necessaacuterios para garantir a accedilatildeo puacuteblica

assistencial enquanto totalidade (para aleacutem dos termos estritos dos contratos estabelecidos)

assim o montante de recursos mobilizados pela accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia acaba sendo maior

do que aquele destinado pelos orccedilamentos puacuteblicos de modo que as decisotildees e orientaccedilotildees

sobre quais caminhos devem ser seguidos pela poliacutetica de assistecircncia social acabam sendo

motivo de intensas lutas por reconhecimento entre diferentes atores

Por fim uma uacuteltima consideraccedilatildeo possiacutevel de ser feita a partir da pesquisa empiacuterica

consiste em observar as demandas de reconhecimento natildeo apenas das trabalhadoras das

poliacuteticas7 mas tambeacutem da populaccedilatildeo usuaacuteria Nesse caso podemos ir aleacutem das duas esferas

puacuteblicas do reconhecimento (direito e estima social) e acrescentar tambeacutem a relevacircncia de

observar as lutas por reconhecimento na esfera das relaccedilotildees pessoais (amor) Afinal como

argumenta Honneth (2003 p 177) ldquoa experiecircncia intersubjetiva do amor constitui o

pressuposto psiacutequico do desenvolvimento de todas as outras formas de autorrespeitordquo

constituindo portanto a base indispensaacutevel para a participaccedilatildeo autocircnoma na vida puacuteblica

Para uma pessoa que busca os serviccedilos da assistecircncia social o simples fato de ser bem recebida

respeitada e acolhida pelas teacutecnicas possui consequecircncias profundas em relaccedilatildeo agrave validaccedilatildeo de

suas pretensotildees normativas Receber o devido reconhecimento como diz Charles Taylor

natildeo eacute apenas uma cortesia mas uma necessidade humana vital Assim podemos questionar as

accedilotildees dos serviccedilos socioassistenciais natildeo apenas quanto aos impactos produzidos nas famiacutelias e

6 Para mais detalhes sobre esse exemplo ver o capiacutetulo 7 (toacutepico 73) em Costa (2016) 7 Para mais detalhes sobre essas demandas conferir o capiacutetulo 7 (toacutepico 71 subtoacutepico ldquoenfrentando as dificuldades

do trabalho precarizadordquo) em Costa (2016) E importante notar que a pesquisa revelou naquele momento aspectos

de precarizaccedilatildeo do trabalho relativamente maiores no acircmbito da administraccedilatildeo direta do que no acircmbito da OSC

contrariamente ao que de modo geral tem sido observado na literatura

27

nos territoacuterios mas tambeacutem com relaccedilatildeo ao que pode e deve ser feito nos momentos de

atendimento individual onde deveria predominar a ldquoseguranccedila de acolhidardquo entendida natildeo

como um mero instrumento ldquoteacutecnicordquo mas como uma verdadeira abertura para o

reconhecimento do outro em suas necessidades e capabilidades Penso que este eacute um caminho

que vale a pena a ser seguido por quaisquer profissionais que atuam nos serviccedilos puacuteblicos da

assistecircncia social uma formaccedilatildeo criacutetica da sociedade comeccedila pela compreensatildeo do potencial

contido nos encontros intersubjetivos e por aiacute que devemos caminhar (Costa 2016 p 154)

Consideraccedilotildees finais

Os argumentos apresentados neste capiacutetulo pretendem servir como um convite para a

reflexatildeo sobre o potencial da articulaccedilatildeo entre uma teoria criacutetica do reconhecimento

intersubjetivo e o campo de anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica Esse exerciacutecio do pensamento visto sob a

perspectiva da Psicologia Social Criacutetica poderaacute ser uma via bastante promissora para explicar

a dinacircmica das poliacuteticas puacuteblicas

Diferente de outras propostas que tomam a poliacutetica puacuteblica como um fato (uma

consequecircncia do Modo de Produccedilatildeo Capitalista) ou como processos mais ou menos

fragmentados (seja como dispositivos de controle dos corpos ou como construccedilatildeo social) com

base no referencial teoacuterico apresentado advogo por uma via alternativa isto eacute uma postura

pragmaacutetica e criacutetico-normativa diante da realidade dos processos de accedilatildeo puacuteblica e do

fundamento intersubjetivo das relaccedilotildees sociais que podem ser adequadamente entendidas como

lutas por reconhecimento reciacuteproco

Isso natildeo significa tomar uma via uacutenica em detrimento das outras linguagens que tecircm

procurado dizer algo sobre as poliacuteticas puacuteblicas desde a Psicologia Antes o que parece estar

em jogo agora eacute o alargamento dos recursos disponiacuteveis para a compreensatildeo da accedilatildeo puacuteblica

de forma mais ampla Considerando a complexidade do objeto o estudo psicossocial criacutetico

deveria se pautar natildeo apenas pela criacutetica das determinaccedilotildees sociais e intersubjetivas que

conformam as poliacuteticas do ldquoEstado em accedilatildeordquo mas tambeacutem deveria aprofundar a anaacutelise dos

processos de interaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais que constituem a accedilatildeo puacuteblica

Evidentemente a discussatildeo sobre todas as mediaccedilotildees e nuances dessa proposta natildeo se

encerra neste texto Na realidade se a Psicologia Social Criacutetica almeja dar alguma contribuiccedilatildeo

efetiva para a anaacutelise das poliacuteticas puacuteblicas entatildeo eacute fundamental buscar o diaacutelogo

comprometido e interessado com outras disciplinas Essa tarefa natildeo eacute faacutecil pois implica em

correr uma seacuterie de riscos como por exemplo a articulaccedilatildeo de linguagens que aparentemente

natildeo conversam tatildeo facilmente Mas eacute preciso ousar sem perder a modeacutestia em relaccedilatildeo ao alcance

do nosso saber afinal como escreveu Leandro Konder (2011 p 36) ldquoa realidade eacute sempre

28

mais rica do que o conhecimento que temos dela Haacute sempre algo que escapa agraves nossas siacutenteses

isso poreacutem natildeo nos dispensa do esforccedilo de elaborar siacutenteses se quisermos entender melhor a

nossa realidaderdquo

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30

Capiacutetulo 2

A assistecircncia social no Brasil uma anaacutelise histoacuterica das relaccedilotildees entre OSC

e Estado

Maria Fernanda Aguilar Lara

Mariana Prioli Cordeiro

Introduccedilatildeo

As parcerias entre organizaccedilotildees da sociedade civil (OSC) e o Estado na implementaccedilatildeo

de poliacuteticas puacuteblicas satildeo atualmente uma realidade na administraccedilatildeo puacuteblica brasileira Assim

temos presenciado o crescimento e a relevacircncia do papel que as OSC ocupam na implementaccedilatildeo

de serviccedilos em vaacuterias esferas de poliacuteticas puacuteblicas Concomitantemente na literatura de

diversos campos acadecircmicos (como na Ciecircncia Poliacutetica na Administraccedilatildeo Puacuteblica na

Sociologia no Direito na Psicologia Social no Serviccedilo Social etc) este tem sido um assunto

recorrente e latente tendo em vista como se estabelece este tipo de relaccedilatildeo puacuteblico-privada (ou

estatalnatildeo estatal) e quais os efeitos produzidos natildeo apenas no acircmbito das poliacuteticas puacuteblicas

mas tambeacutem na proacutepria configuraccedilatildeo de distintas dimensotildees da esfera puacuteblica e da esfera

privada

No acircmbito da poliacutetica puacuteblica de assistencial social a relaccedilatildeo entre organizaccedilotildees da

sociedade civil1 e Estado na execuccedilatildeo de accedilotildees assistenciais eacute antiga e se constitui enquanto um

eixo estruturante da poliacutetica Se recorrermos a uma anaacutelise histoacuterica sobre as praacuteticas

assistenciais no Brasil constataremos o papel central que as organizaccedilotildees da sociedade civil ndash

entidades filantroacutepicas organizaccedilotildees religiosas (sobretudo vinculadas ao catolicismo)

organizaccedilotildees natildeo-governamentais ndash ocuparam na promoccedilatildeo de serviccedilos e accedilotildees voltadas agraves

populaccedilotildees em situaccedilatildeo de vulnerabilidade e extrema pobreza Por outro lado historicamente

o Estado assumiu um papel residual e subsidiaacuterio atuando de forma perifeacuterica atraveacutes da

1 Haacute uma grande variedade de termos utilizados para se referir agraves ldquoinstituiccedilotildees privadas sem fins lucrativosrdquo que

satildeo conveniadas ao Estado para a implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas como organizaccedilotildees natildeo governamentais

(ONG) organizaccedilotildees sociais de interesse puacuteblico (OSCIP) entidades de assistecircncia social organizaccedilotildees da

sociedade civil (OSC) organizaccedilotildees sociais (OS) organizaccedilotildees do Terceiro Setor entre outros Contudo nos

documentos oficiais de caraacuteter teacutecnico-administrativo e regulatoacuterio os termos que aparecem com maior frequecircncia

satildeo ldquoentidades de assistecircncia socialrdquo e mais recentemente ldquoorganizaccedilotildees da sociedade civilrdquo Neste trabalho

optamos por utilizar o termo OSC para fazer menccedilatildeo agraves organizaccedilotildees conveniadas que ofertam serviccedilos

socioassistenciais

31

concessatildeo de subsiacutedios e subvenccedilotildees para as organizaccedilotildees Foi apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 e com a promulgaccedilatildeo da Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) em 1993 que a

assistecircncia social passou a ser concebida enquanto uma poliacutetica puacuteblica e um dever do Estado

se tornando um direito inalienaacutevel de toda(o) cidadatilde(o) (Amacircncio 2008 Marin 2012

Mestriner 2008)

Este cenaacuterio de ampla participaccedilatildeo das OSC na poliacutetica de assistecircncia social nos traz

algumas inquietaccedilotildees que tecircm se tornado inclusive tema de pesquisa de diferentes aacutereas Aqui

lanccedilaremos matildeo de algumas perguntas que se constituem como importantes eixos

mobilizadores deste trabalho2 como ocorreu a participaccedilatildeo das OSC na histoacuteria da assistecircncia

social Qual o papel que as OSC ocupam atualmente na assistecircncia Como eacute tratada a relaccedilatildeo

entre as OSC e o Estado nas principais normativas que regem esta poliacutetica puacuteblica

Desse modo o objetivo deste capiacutetulo eacute discutir o processo de constituiccedilatildeo da poliacutetica

puacuteblica de assistecircncia social no Brasil de modo a analisar como ocorreu a participaccedilatildeo do

Estado e das organizaccedilotildees da sociedade civil (OSC) na construccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica3 De

forma mais especiacutefica buscamos discorrer sobre (I) a participaccedilatildeo das organizaccedilotildees da

sociedade civil na assistecircncia social (II) o processo de consolidaccedilatildeo e regulamentaccedilatildeo da

assistecircncia enquanto uma poliacutetica puacuteblica Em termos metodoloacutegicos utilizamos duas

estrateacutegias principais para a construccedilatildeo desta narrativa (a) revisatildeo da literatura que discute a

poliacutetica de assistecircncia social no Brasil (b) levantamento e anaacutelise documental de normativas

que regulamentam a aacuterea da assistecircncia social principalmente daquelas que versam sobre os

convecircnios firmados com as OSC

Tendo em vista o escopo deste livro podemos lanccedilar matildeo de mais duas perguntas com

as quais tambeacutem pretendemos dialogar qual a importacircncia do estudo da poliacutetica puacuteblica de

assistecircncia social a partir da Psicologia Social Qual seria a contribuiccedilatildeo deste campo

acadecircmico para o estudo desta poliacutetica puacuteblica De forma breve podemos apresentar algumas

consideraccedilotildees que julgamos relevantes Em primeiro lugar compreendemos que houve um

2 Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla de mestrado que estudou o discurso de profissionais do

Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) sobre as estabelecidas entre OSC e Estado na poliacutetica de assistecircncia

social no municiacutepio de Satildeo Paulo A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Psicologia Social do Instituto de

Psicologia da USP sob orientaccedilatildeo da Profa Dra Mariana Prioli Cordeiro 3 Neste trabalho partirmos da perspectiva de poliacutetica puacuteblica como um ldquocampo de conhecimento que busca ao

mesmo tempo ldquocolocar o governo em accedilatildeordquo eou analisar essa accedilatildeo (variaacutevel independente) e quando necessaacuterio

propor mudanccedilas no rumo ou curso dessas accedilotildees (variaacutevel dependente)rdquo (Souza 2006 p 26) Neste sentido o

estudo das poliacuteticas puacuteblicas vai desde a formulaccedilatildeo implementaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo agrave anaacutelise dos processos

relacionais dos atores envolvidos e dos desenhos institucionais que perpassam a construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

como um fenocircmeno amplo e complexo (Farah 2016 Marques 2013)

32

aumento significativo no nuacutemero de psicoacutelogos(as) que atuam na assistecircncia social Este

nuacutemero acompanhou o proacuteprio crescimento da aacuterea aumentando consideravelmente a partir da

publicaccedilatildeo da Norma Operacional Baacutesica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RHSUAS)

ndash que prevecirc a contrataccedilatildeo de psicoacutelogos(as) nas equipes de referecircncias de diversos serviccedilos do

SUAS De acordo com Mariana Cordeiro Bernardo Svartman e Laura Souza (2018) em 2017

eram cerca de 22 mil profissionais de psicologia atuantes na assistecircncia social ou seja cerca

de 8 dos(as) psicoacutelogos(as) em atividade no Brasil Concomitantemente presenciamos

tambeacutem um aumento no nuacutemero de pesquisas em Psicologia que tratam sobre a assistecircncia

social (Cordeiro Svartman amp Souza 2018)

Destarte grande parte dos artigos e trabalhos acadecircmicos que versam sobre a Psicologia

na assistecircncia social tem tido como foco a atuaccedilatildeo profissional nos diversos serviccedilos do SUAS

Certamente este eacute um assusto bastante relevante e fundamental para a aacuterea tendo em vista a

importacircncia da praacutetica profissional da Psicologia para o funcionamento desta poliacutetica puacuteblica

Poreacutem acreditamos ser fundamental que as pesquisa em Psicologia expandam os objetos de

estudos vinculados agrave assistecircncia tratando de assuntos como construccedilatildeo de normativas do

SUAS espaccedilos de controle social anaacutelise de normativas e regulamentaccedilotildees gestatildeo e

operacionalizaccedilatildeo da poliacutetica anaacutelise institucional da estruturaccedilatildeo da aacuterea relaccedilatildeo puacuteblico-

privada na assistecircncia entre outros Todos estes aspectos interferem na configuraccedilatildeo da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica e por conseguinte afetam a atuaccedilatildeo dos(as)

psicoacutelogos(as) nos serviccedilos

Neste sentido acreditamos que satildeo aspectos relevantes que podem se tornar temas de

pesquisa da Psicologia Afinal em todos eles haacute a presenccedila de pessoas ndash gestores(as)

trabalhadores(as) poliacuteticos usuaacuterios(as) ndash que interagem em processos constantes de

negociaccedilotildees disputas e pactuaccedilotildees de acordos necessaacuterios para a operacionalizaccedilatildeo da poliacutetica

nos mais diferentes niacuteveis e instacircncias Em acordo com Peter Spink (2018) ldquoconsiderando que

governos e equipes de agecircncias puacuteblicas satildeo compostos por pessoas podemos presumir que as

accedilotildees foram acompanhadas e fundadas em conversas ndash muitas conversas Decisotildees foram

tomadas escolhas feitas novas materialidades e socialidades produzidasrdquo (P Spink 2018 p

19) estabelecendo a institucionalidade que rege as poliacuteticas puacuteblicas Portanto na nossa

concepccedilatildeo o estudo das institucionalidades eacute tambeacutem um objeto de estudo da Psicologia

Desta forma neste capiacutetulo propomos o estudo da histoacuteria institucional da assistecircncia

social como poliacutetica puacuteblica a partir das contribuiccedilotildees da Psicologia Social Quando vamos

falar especificamente sobre o histoacuterico da poliacutetica de assistecircncia social podemos constatar que

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haacute uma vasta literatura acadecircmica que se debruccedilou sobre esta temaacutetica (Amacircncio 2008

Chiachio 2006 Cordeiro 2018 Cruz amp Guareschi 2009 Jacooud Bichir amp Mesquita 2017

Brettas 2016 Marin 2012 Sposati Bonetti Yazbek amp Falcatildeo 1987) que narra de diversas

maneiras e a partir de diferentes enfoques os acontecimentos que configuram a estruturaccedilatildeo da

assistecircncia social como uma poliacutetica puacuteblica

Na nossa concepccedilatildeo existem muitas formas de narrar uma histoacuteria dando maior ou

menor destaque a eventos e fatos a partir dos nossos objetivos da nossa visatildeo de mundo do

desenho da pesquisa e de outros fatores que constrangem e influenciam a forma em como uma

narrativa seraacute apresentada Neste trabalho buscamos construir uma narrativa tendo como lente

a Psicologia Social de perspectiva construcionista (Ibantildeez 2001 2003 Intildeiguez 2003 M J

Spink 2010 P Spink 2018) Nesta perspectiva sujeitos e objetos satildeo resultantes de

convenccedilotildees e praacuteticas sociais portanto social e historicamente produzidos (Intildeiguez 2001

2003) Parte-se do princiacutepio de que a ldquorealidaderdquo eacute mediada por processos que estatildeo

condicionados pelas interaccedilotildees linguiacutesticas e socioculturais impossibilitando a apreensatildeo de

uma ldquoessecircncia naturalrdquo das ldquocoisasrdquo que conformam o mundo (Ibantildeez 2003 M J Spink

2010)

Nesta forma de compreender o mundo as proacuteprias poliacuteticas puacuteblicas satildeo um produto

social que foi historicamente construiacutedo por meio das interaccedilotildees linguiacutesticas Nas palavras de

Peter Spink (2018) poliacutetica puacuteblica ldquoeacute uma ferramenta discursiva ou um conceito que

utilizamos para conversar sobre o que governos fazem dizem que querem mudar ou priorizar

e pela mesma loacutegica ndash porque a falta de accedilatildeo eacute tambeacutem accedilatildeo ndash aquilo que governos natildeo querem

fazer ou que natildeo querem mudar ou priorizarrdquo (Spink 2018 pp 13-14) Neste sentido a partir

da perspectiva construcionista damos ecircnfase ao estudo do uso das diferentes linguagens que

conformam o funcionamento das poliacuteticas puacuteblicas tendo em vista a compreensatildeo da ldquoformardquo

como satildeo produzidas e dos ldquoefeitosrdquo que produzem nos sujeitos envolvidos

Neste estudo em especiacutefico daremos ecircnfase no estudo da ldquolinguagem normativardquo que

estrutura a assistecircncia social ou seja na anaacutelise das normas leis diretrizes que regem esta

poliacutetica puacuteblica De forma complementar utilizamos como base a literatura acadecircmica que

tratou do mesmo objeto Assim a histoacuteria que seraacute narrada expotildee fatos acontecimentos trechos

discursivos que apresentam uma certa linha argumentativa com foco na participaccedilatildeo das OSC

no processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica Desse modo escolhemos tratar a assistecircncia social sob

a oacutetica da institucionalidade puacuteblica ou seja daquilo que foi ou natildeo incorporado nas accedilotildees do

Estado Nesta perspectiva o Estado ndash que eacute composto por muacuteltiplos atores abrangendo

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teacutecnicos(as) gestores(as) governos burocracias instituiccedilotildees normativas e legislaccedilotildees etc ndash

assume uma centralidade na narrativa sendo colocado como agente principal ou sujeito ldquoda

accedilatildeordquo por ser protagonista dos eventos que seratildeo narrados Entretanto a despeito da escolha

narrativa se centrar na oacutetica da institucionalidade ndash afinal marcos institucionais satildeo importantes

para compreender a dinacircmica atual da poliacutetica ndash buscamos tambeacutem discutir outras

possibilidades de pensar a consolidaccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica tentando expor diferentes

perceptivas e olhares sobre a relaccedilatildeo entre OSC e Estado na implementaccedilatildeo da poliacutetica de

assistecircncia social Cabe destacar que os documentos utilizados para a construccedilatildeo desta narrativa

foram analisados como ldquodocumentos de domiacutenio puacuteblicordquo

Os documentos de domiacutenio puacuteblico satildeo produtos sociais tornados puacuteblicos Eticamente estatildeo

abertos para anaacutelise por pertencerem ao espaccedilo puacuteblico por terem sido tornados puacuteblicos de

uma forma que permite a responsabilizaccedilatildeo Podem refletir as transformaccedilotildees lentas em

posiccedilotildees e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simboacutelicos que permeiam o dia a

dia ou no acircmbito das redes sociais pelos agrupamentos e coletivos que datildeo forma ao informal

refletindo o ir e vir de versotildees circulantes assumidas ou advogadas (P Spink 2013 p 112)

A histoacuteria que seraacute apresentada tem por objetivo lanccedilar luz a uma perspectiva diferente

de se compreender a participaccedilatildeo das OSC no processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica Em alguns

trabalhos que tratam sobre a mesma temaacutetica o processo de participaccedilatildeo das OSC eacute visto como

uma ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal ou um processo de ldquoterceirizaccedilatildeordquo (Perez 2005 Souza

2016 Souza 2017 T Cordeiro 2017 Pereira 2015 Reis 2013 Souza 2017) Em outros

momentos a atuaccedilatildeo das OSC eacute associada manutenccedilatildeo de resquiacutecios de caridade e filantropia

(Nunes 2010 Souza 2017) Aqui pretendemos apresentar mais uma possibilidade de

compreender a participaccedilatildeo das OSC Como seraacute exposto a seguir constataremos que as OSC

atuam na assistecircncia muito antes desta aacuterea se tornar uma poliacutetica puacuteblica e algumas aturam no

processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica sendo atores importantes na luta em prol da assistecircncia

social

Assim iremos argumentar que a participaccedilatildeo das OSC na assistecircncia social natildeo se

constitui em essecircncia enquanto um processo de ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal A

desresponsabilizaccedilatildeo por parte do Estado com a poliacutetica de assistecircncia social no Brasil ocorreu

em muitos momentos da histoacuteria e ainda ocorre nos tempos atuais Poreacutem na nossa

compreensatildeo a desresponsabilizaccedilatildeo estaacute vincula agrave falta de centralidade que a assistecircncia ocupa

nas agendas governamentais e natildeo necessariamente agrave existecircncia de uma rede socioassistencial

mista composta por instituiccedilotildees estatais e natildeo estatais

Por fim no que concerne a estrutura deste capiacutetulo dividiremos o trabalho em trecircs

partes aleacutem da presente introduccedilatildeo Na primeira parte nos remetemos agraves primeiras accedilotildees

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socioassistenciais iniciadas no periacuteodo colonial perpassando o processo de institucionalizaccedilatildeo

da assistecircncia ao longo do seacuteculo XX Na segunda parte apresentamos a consolidaccedilatildeo da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica no final dos anos 1980 junto agrave efetivaccedilatildeo do SUAS

nos anos 2000 E na terceira parte apresentaremos a linha argumentativa que o texto propotildee

1 Histoacuterico das relaccedilotildees entre organizaccedilotildees da sociedade e Estado do Brasil Colonial agrave

Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS)

Ao remontarmos agraves primeiras praacuteticas socioassistenciais no Brasil durante a eacutepoca

Colonial vemos que as accedilotildees ndash como dar alimento abrigo e atendimento meacutedico aos pobres ndash

eram executadas fundamentalmente por instituiccedilotildees vinculadas agrave Igreja Catoacutelica pautadas

pelos preceitos da caridade e benevolecircncia (Cruz amp Guareschi 2009) Como exemplo temos a

criaccedilatildeo da primeira ldquoRoda dos Expostosrdquo4 no seacuteculo XVIII em Salvador como uma demanda

das autoridades brasileiras diante do crescente nuacutemero de bebecircs abandonados nas ruas

A Santa Casa de Misericoacuterdia vinculada agrave Igreja ficou responsaacutevel pela realizaccedilatildeo dos

trabalhos da ldquoRodardquo recebendo subsiacutedios da Coroa para o seu funcionamento Vemos nesta

iniciativa como destacado por Lilian Cruz e Neuza Guareschi (2009) um marco histoacuterico para

pensarmos nas relaccedilotildees entre sociedade civil e Estado ao longo do processo de constituiccedilatildeo das

primeiras accedilotildees socioassistenciais em que a sociedade civil guiada pelo princiacutepio da caridade

tomava a iniciativa e o Governo entrava com o financiamento das accedilotildees Dessa forma

ldquoconstatamos que as alianccedilasparcerias entre Estado e sociedade civil satildeo antigas e atravessam

a histoacuteria nas quais a Igreja Catoacutelica marca significativa presenccedilardquo (Cruz amp Guareschi 2009

p 20)

Ao avanccedilarmos na histoacuteria vemos que esta relaccedilatildeo entre Estado e Igreja continuou a

perpassar as accedilotildees assistenciais pois compreendia-se que o auxiacutelio aos pobres e a ldquocaridaderdquo

natildeo era uma funccedilatildeo a priori do poder puacuteblico Contudo a partir do final do seacuteculo XIX o

Brasil passou por importantes transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas ndash como por

exemplo o fim da escravidatildeo o aumento da matildeo de obra assalariada a chegada de imigrantes

de diversos paiacuteses o ecircxodo rural e o crescimento desordenado das cidades Tais transformaccedilotildees

provocaram graves problemas sociais vinculados ao alto iacutendice de desemprego e ao

4 A ldquoRoda dos Expostosrdquo era um dispositivo utilizado para o abandono de bebecircs sendo uma espeacutecie de tabuleiro

em forma ciliacutendrica fixado na janela das Casas de Misericoacuterdia Este dispositivo funcionava a partir de um

mecanismo giratoacuterio de forma a preservar a identidade das matildees que tocavam uma sineta avisando que um bebecirc

havia sido deixado na casa (Cordeiro 2018)

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crescimento da miseacuteria urbana Neste cenaacuterio o Estado ndash que ateacute entatildeo intervinha sobre a

pobreza majoritariamente a partir de seus aparelhos repressivos ndash comeccedilou a assumir o papel

de organismo ldquocivilizadorrdquo promotor e organizador de accedilotildees poliacuteticas que garantiam um

miacutenimo de coesatildeo social e ordem puacuteblica (Cordeiro 2018 Cruz amp Guareschi 2009 Sposati et

al 1987)

Seguindo tais transformaccedilotildees institucionais em 1942 temos a criaccedilatildeo da primeira

grande instituiccedilatildeo filantroacutepica de assistecircncia social no paiacutes a Legiatildeo Brasileira de Assistecircncia

(LBA) tendo em sua presidecircncia a primeira-dama Darcy Vargas A LBA foi inicialmente criada

para prestar assistecircncia agraves famiacutelias dos soldados que lutavam na Segunda Guerra e com o fim

da guerra a instituiccedilatildeo voltou-se para as populaccedilotildees em situaccedilatildeo de pobreza (Cruz amp Guareschi

2009 Sposati et al 1987) Como apresentado por Mariana P Cordeiro (2018) podemos

destacar duas caracteriacutesticas centrais da LBA (1) tratava-se de uma organizaccedilatildeo da sociedade

civil sem finalidade econocircmica que compreendia a assistecircncia social como uma accedilatildeo de ldquoboa

vontaderdquo e natildeo um direito agrave cidadania e (2) assegurava estatutariamente sua presidecircncia agrave

primeira-dama da Repuacuteblica instituindo assim o chamado ldquoprimeiro-damismordquo (Cordeiro

2018) Neste sentido percebe-se que o Estado mais uma vez delegou agraves organizaccedilotildees da

sociedade civil a responsabilidade pela execuccedilatildeo de accedilotildees de assistecircncia social pautando-se

agora na ldquoboa vontaderdquo das mulheres da alta sociedade e da esposa do governante

Continuando nosso relato histoacuterico podemos afirmar que o primeiro-damismo bem

como a filantropia e o assistencialismo marcaram as praacuteticas socioassistenciais nas deacutecadas

que se seguiram Ateacute final dos anos 1980 a assistecircncia social natildeo foi concebida enquanto uma

poliacutetica estruturada mas era entendida como ldquoum mix de accedilotildees dispersas e descontiacutenuas de

oacutergatildeos governamentais e instituiccedilotildees privadas nas quais o Estado figurou desde sempre um

papel subsidiaacuteriordquo (Amacircncio 2008 p 31) Eacute apenas no final dos anos 70 e iniacutecio dos anos 80

com o avanccedilo dos movimentos da sociedade civil pela redemocratizaccedilatildeo do paiacutes ndash apoacutes quase

vinte anos de autoritarismo e Ditadura Militar ndash que presenciamos transformaccedilotildees mais

significativas no debate puacuteblico em torno da assistecircncia social com a entrada de uma agenda

cidadatilde que ampararia as discussotildees para a formalizaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 (Cordeiro

2018 Ximenes Paula amp Barros 2009)

Podemos considerar a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 como um marco para a

consolidaccedilatildeo do papel do poder puacuteblico enquanto promotor de poliacuteticas sociais Um dos grandes

avanccedilos trazidos pela nova Constituiccedilatildeo foi a instituiccedilatildeo do chamado ldquotripeacute da Seguridade

Socialrdquo ndash a partir disso a promoccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de Sauacutede Previdecircncia Social e

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Assistecircncia Social se tornam um dever do Estado Por conseguinte a assistecircncia social (ao

menos no plano juriacutedico e discursivo) deixou de se pautar pelas noccedilotildees de caridade

benevolecircncia e filantropia dando lugar agraves noccedilotildees de cidadania direito e poliacutetica puacuteblica

(Cordeiro amp Sato 2017 Macedo et al 2011) Para Thais Marin (2012) a Constituiccedilatildeo de 1988

inaugurou uma nova fase no sistema de proteccedilatildeo social brasileiro que apesar de natildeo ter

significado o fim do legado do assistencialismo e das praacuteticas caritativasfilantroacutepicas se

apresentou como um importante marco simboacutelico e juriacutedico que iria ldquodisputarrdquo as concepccedilotildees

sobre assistecircncia social a partir dos princiacutepios da cidadania e dos direitos humanos

Outra contribuiccedilatildeo importante foi a instituiccedilatildeo da descentralizaccedilatildeo das poliacuteticas sociais

outorgando maior autonomia aos municiacutepios para a implementaccedilatildeo e adequaccedilatildeo das diretrizes

nacionais A partir da utilizaccedilatildeo de modelos federalistas com corresponsabilizaccedilotildees e

atribuiccedilotildees especiacuteficas dos trecircs niacuteveis de governos (uniatildeo estados e municiacutepios) as poliacuteticas

sociais passam a ser implementadas a partir de sistemas uacutenicos ndash com diretrizes nacionais

unitaacuterias que norteiam o processo de implementaccedilatildeo que deve se dar a partir da realidade dos

municiacutepios (Jaccoud Bichir amp Mesquita 2017)

Em confluecircncia com esta mudanccedila constitucional tivemos em 1993 a promulgaccedilatildeo da

Lei nordm 874293 intitulada de Lei Orgacircnica da Assistecircncia Social (LOAS) que estabeleceu

normas e criteacuterios para organizaccedilatildeo da assistecircncia social reafirmando a proteccedilatildeo social

enquanto um direito inalienaacutevel e um dever do Estado Em seu artigo 5ordm a LOAS define trecircs

diretrizes gerais que devem nortear o processo de construccedilatildeo da poliacutetica (1) descentralizaccedilatildeo

poliacutetico-administrativa para os Estados o Distrito Federal e os Municiacutepios e comando uacutenico

das accedilotildees em cada esfera de governo (2) participaccedilatildeo da populaccedilatildeo por meio de organizaccedilotildees

representativas na formulaccedilatildeo das poliacuteticas e no controle das accedilotildees em todos os niacuteveis (3)

primazia da responsabilidade do Estado na conduccedilatildeo da poliacutetica de assistecircncia social em cada

esfera de governo (Brasil 1993 2009)

Portanto o Estado deve conduzir e protagonizar o processo de construccedilatildeo e

implementaccedilatildeo da poliacutetica a partir de um ldquojogordquo coordenado pelos trecircs niacuteveis de governos

com ampla participaccedilatildeo popular em todo o processo Neste documento normativo o poder

puacuteblico reafirma o papel complementar das OSC na assistecircncia social reconhecendo-as

juridicamente como ldquoentidades e organizaccedilotildees de assistecircncia socialrdquo Assim afirma-se a

importacircncia das organizaccedilotildees para a construccedilatildeo e consolidaccedilatildeo da poliacutetica desde que se

adequem e passem a ser regidas por esta normativa conforme Art 6 ordm

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As accedilotildees na aacuterea de assistecircncia social satildeo organizadas em sistema descentralizado e

participativo constituiacutedo pelas entidades e organizaccedilotildees de assistecircncia social abrangidas por

esta lei que articule meios esforccedilos e recursos e por um conjunto de instacircncias deliberativas

compostas pelos diversos setores envolvidos na aacuterea (Brasil 1993)

Outro avanccedilo importante da LOAS foi instituir o Conselho Nacional de Assistecircncia

Social (CNAS) como oacutergatildeo superior de deliberaccedilatildeo colegiada da poliacutetica de assistecircncia social

de composiccedilatildeo paritaacuteria entre sociedade civil e governo Este oacutergatildeo eacute uma importante instacircncia

de pactuaccedilatildeo controle e deliberaccedilatildeo da assistecircncia social a niacutevel federal

Se paramos a nossa anaacutelise neste momento de consolidaccedilatildeo normativa da poliacutetica

percebemos que a trajetoacuteria histoacuterica da assistecircncia social no Brasil deixou muitas ldquomarcasrdquo e

ldquolegadosrdquo que certamente influenciaram a forma como o Estado compreendeu implementou e

consolidou o que naquele momento passou a ser uma poliacutetica puacuteblica Temos como exemplo

a ideia da assistecircncia social como qualquer accedilatildeo voltada a populaccedilotildees vulneraacuteveis (Mestriner

2008) as concepccedilotildees da assistecircncia social como caridade benevolecircncia clientelismo vinculada

a figura da primeira dama (Amacircncio 2008 Marin 2012) a falta de prioridade desta poliacutetica

nas agendas governamentais (T Cordeiro 2017) entre outros

O reconhecimento da assistecircncia social como uma poliacutetica de ampliaccedilatildeo da cidadania ndash

circunscrita na Constituiccedilatildeo de 1988 e na LOAS ndash foi um importante meio de disputa discursiva

na concepccedilatildeo da assistecircncia social jaacute que a partir deste momento as organizaccedilotildees que

desejassem firmar convecircnios e parcerias com a administraccedilatildeo puacuteblica deveriam fazecirc-lo a partir

das disposiccedilotildees contidas em lei se pautando pelos princiacutepios dispostos em ambas as

normativas Portanto tendo como premissa central a noccedilatildeo de cidadania Certamente o processo

de mudanccedila de paradigma da assistecircncia da caridadefilantropia agrave cidadaniapoliacutetica puacuteblica

natildeo seria realizado de forma abrupta e imediata mas como todo processo de transformaccedilatildeo

seria gradual processual e dialoacutegico incorporado pelos indiviacuteduos a partir de diferentes formas

e significaccedilotildees

2 O periacuteodo poacutes-LOAS e o desafio da construccedilatildeo o Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social

A partir da promulgaccedilatildeo da LOAS em 1993 passou a ser de competecircncia dos governos

(nos trecircs niacuteveis) implementar e consolidar as normativas e diretrizes contidas em lei Esperava-

se assim o compromisso real e contiacutenuo por parte do poder puacuteblico na construccedilatildeo da poliacutetica

de assistecircncia social ou seja a priorizaccedilatildeo desta agenda nos planos de governo e

consequentemente na disposiccedilatildeo orccedilamentaacuteria necessaacuteria para a sua implementaccedilatildeo (Amacircncio

2008) Contudo a deacutecada que sucedeu a LOAS natildeo foi um periacuteodo de grandes avanccedilos na

39

consolidaccedilatildeo da poliacutetica de assistecircncia social (Chiachio 2006 Marin 2012 Mestriner 2008)

Pelo contraacuterio pouco sistemaacuteticas foram as iniciativas em prol da construccedilatildeo e consolidaccedilatildeo

desta poliacutetica

Juacutelia Amacircncio (2008) afirmou que apoacutes a Constituiccedilatildeo de 88 o Governo Federal passou

a dar ecircnfase a construccedilatildeo de programas de transferecircncia de renda como forma de enfrentamento

agrave pobreza Isto ficou evidente com a criaccedilatildeo de uma seacuterie de programas como o Fundo de

Combate agrave Pobreza o Bolsa Alimentaccedilatildeo o Agente Jovem o Auxiacutelio gaacutes o Bolsa Escola entre

outros Damos destaque para a criaccedilatildeo em 2003 do Programa Bolsa Famiacutelia que se constituiu

como um dos principais programas de transferecircncia de renda no paiacutes Na mesma perspectiva

Luciana Jaccoud Renata Bichir e Ana Mesquita (2017) salientaram que nos anos 1990

tivemos alguns avanccedilos normativos ndash como a implementaccedilatildeo do primeiro benefiacutecio assistencial

de acircmbito nacional o benefiacutecio de prestaccedilatildeo continuada (BPC) em 1996 e a mobilizaccedilatildeo da

sociedade em torno da construccedilatildeo da Conferecircncia Nacional de Assistecircncia Social em 1995

Entretanto poucos foram os avanccedilos observados ldquono que se refere agrave afirmaccedilatildeo da gestatildeo

puacuteblica e compartilhada em niacutevel federativo e tampouco no campo dos serviccedilos entatildeo

majoritariamente operados por entidades privadas sem fins lucrativosrdquo (Jaccoud Bichir amp

Mesquita 2017 p 41)

No entanto a implementaccedilatildeo das poliacuteticas de Assistecircncia Social preconizadas pela

LOAS ocorreu em um momento de avanccedilo do projeto neoliberal no cenaacuterio internacional

(Coutinho 2011) preconizando a ldquodiminuiccedilatildeordquo do Estado e restringindo a sua capacidade de

intervenccedilatildeo sobre a economia e a sociedade Dessa forma os governos que se seguiram nos

anos de 1990 natildeo incluiacuteam em sua agenda prioritaacuteria a construccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica de

assistecircncia social que consolidasse as prerrogativas da LOAS Certamente o cenaacuterio econocircmico

e poliacutetico de instabilidades influenciou este processo de poucos avanccedilos

Foi apenas na deacutecada seguinte nos anos 2000 que presenciamos a efetivaccedilatildeo das

diretrizes estabelecidas pela LOAS com a publicaccedilatildeo da Poliacutetica Nacional de Assistecircncia

Social (PNAS) em 2004 ndash formulada a partir do acuacutemulo de amplas discussotildees com a sociedade

civil organizada em torno da IV Conferecircncia Nacional de Assistecircncia Social realizada em 2003

(Brasil 2005)

Por meio da PNAS tivemos a retomada das diretrizes da LOAS e em 2005 iniciou-se

o processo de construccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) ndash que tem como

objetivo a integraccedilatildeo e articulaccedilatildeo da rede socioassistencial em seus diferentes niacuteveis

40

(municipal estadual e federal) regulamentando tambeacutem a participaccedilatildeo da sociedade civil para

a efetivaccedilatildeo do controle social5

No texto da PNAS foi afirmado que a proteccedilatildeo social deve garantir as seguranccedilas de

sobrevivecircncia (de rendimento e de autonomia) de acolhida e de conviacutevio ou vivecircncia familiar

Para materializar estas prerrogativas a seguranccedila de renda deve ser provida pela concessatildeo de

benefiacutecios e as outras seguranccedilas devem ser garantidas atraveacutes da oferta de serviccedilos programas

e projetos organizada a partir de dois niacuteveis de complexidade a Proteccedilatildeo Social Baacutesica (PSB)

e a Proteccedilatildeo Social Especial (PSE) A gestatildeo e implementaccedilatildeo destes programas ficariam ldquosob

encargo de equipamentos puacuteblicos diferenciados os Centros de Referecircncia de Assistecircncia

Social (CRAS) e os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) aleacutem

da rede puacuteblica e privada voltada a puacuteblicos e atendimentos especiacuteficosrdquo (Jacooud Bichir amp

Mesquita 2017 p 42)

Este documento tambeacutem versa sobre as relaccedilotildees estabelecidas entre Estado e sociedade

civil e afirma que diante dos problemas sociais que caracterizam a sociedade brasileira eacute

necessaacuterio que o Estado assuma a ldquoprimazia da responsabilidade em cada esfera de governo na

conduccedilatildeo da poliacutetica Por outro lado a sociedade civil participa como parceira de forma

complementar na oferta de serviccedilos programas projetos e benefiacutecios de Assistecircncia Social

Possui ainda o papel de exercer o controle social sobre a mesmardquo (Brasil 2005 p 47) Em

outro trecho importante consta que ldquosomente o Estado dispotildee de mecanismos fortemente

estruturados para coordenar accedilotildees capazes de catalisar atores em torno de propostas

abrangentes que natildeo percam de vista a universalizaccedilatildeo das poliacuteticas combinada com a garantia

de equidaderdquo (Brasil 2005 p 47) Neste sentido entendemos que as organizaccedilotildees da sociedade

civil vinculadas agrave assistecircncia social continuam sendo reconhecidas como agentes importantes

no processo de consolidaccedilatildeo da poliacutetica Contudo eacute ressaltado o seu papel complementar

cabendo ao Estado o papel protagonista e condutor na estruturaccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica

Nos anos que se seguiram presenciamos o aumento crescente na implementaccedilatildeo de

CRAS e CREAS Em algumas localidades este aumento da oferta de serviccedilos ocorreu por meio

de convecircnios com OSC Este cenaacuterio de aumento da provisatildeo indireta exigiu do poder puacuteblico

o aperfeiccediloamento dos instrumentais juriacutedicos que regulamentam a participaccedilatildeo das OSC na

rede socioassistencial (Amacircncio 2008 Bretas 2016 Jacooud Bichir e Mesquita 2017 Marin

2012) Desse modo em 2009 foi promulgada a Lei nordm 121012009 que desvinculou a

5 A organizaccedilatildeo do SUAS tambeacutem estaacute regulamentada pela Norma Operacional Baacutesica do SUAS (NOB-SUAS) e

pela Norma Operacional Baacutesica de Recursos do SUAS (NOB-RHSUAS) (Brasil 2005 2011)

41

concessatildeo do Certificado de Entidades Beneficentes de Assistecircncia Social (CEBAS)6 do

Conselho Nacional de Assistecircncia Social (CNAS) e atribui esta responsabilidade agrave cada

ministeacuterio setorial ou seja no caso na assistecircncia social passou a ser competecircncia do Ministeacuterio

de Desenvolvimento Social (MDS) a concessatildeo da certificaccedilatildeo Este movimento possibilitou

que o CNAS que acabava atuando numa loacutegica cartorial concedendo ou negando certificaccedilotildees

pudesse assumir de fato a sua atribuiccedilatildeo de oacutergatildeo superior de deliberaccedilatildeo controle social e

coordenaccedilatildeo da poliacutetica de Assistecircncia Social

Naquele mesmo ano tivemos a aprovaccedilatildeo da Tipificaccedilatildeo Nacional de Serviccedilos

Socioassistenciais (Brasil 2009) que estabeleceu padrotildees de organizaccedilatildeo e execuccedilatildeo dos

serviccedilos dividindo-os por niacuteveis de complexidade (PSB e PSE de meacutedia e alta complexidade)

Nesse documento constam paracircmetros miacutenimos de desenvolvimento e execuccedilatildeo dos serviccedilos

puacuteblicos de assistecircncia social que devem ser seguidos por todas as instituiccedilotildees que os executem

ndash sejam estatais ou natildeo estatais Ao estabelecer ldquoparacircmetros miacutenimosrdquo para a execuccedilatildeo dos

serviccedilos avanccedilou-se na consolidaccedilatildeo de uma rede uacutenica de assistecircncia social na qual todas as

instituiccedilotildees (estatais e natildeo-estatais) satildeo regidas pelas mesmas normativas que norteiam a

construccedilatildeo do SUAS

Seguindo a mesma perspectiva tivemos em 2012 a revisatildeo e atualizaccedilatildeo da LOAS que

em sua nova redaccedilatildeo institui o ldquoviacutenculo SUASrdquo e o Cadastro Nacional de Entidades de

Assistecircncia Social ldquoambos visando integrar a rede privada agraves normativas e agrave fiscalizaccedilatildeo

puacuteblicardquo (Jaccoud Bichir e Mesquita 2017 p 42) Desde entatildeo temos observado o aumento

da rede socioassistencial em niacutevel nacional seja por meio apenas da provisatildeo direta ou atraveacutes

da integraccedilatildeo de serviccedilos estatais e natildeo estatais Entretanto apesar de termos presenciado

avanccedilos na consolidaccedilatildeo de programas accedilotildees e serviccedilos na assistecircncia social a rede atualmente

implementada natildeo eacute suficiente para tratar as demandas sociais que caracterizam a realidade

brasileira

3 Analisando a participaccedilatildeo das OSC na poliacutetica de assistecircncia social

Em linhas gerais tentamos apresentar o histoacuterico do desenvolvimento da assistecircncia

social enquanto uma poliacutetica puacuteblica Certamente natildeo eacute consenso nem na literatura acadecircmica

6 O CEBAS eacute definido como um ldquoinstrumento que possibilita a organizaccedilatildeo usufruir da isenccedilatildeo das contribuiccedilotildees

sociais tais como a parte patronal da contribuiccedilatildeo previdenciaacuteria sobre a folha de pagamento e permite ainda a

priorizaccedilatildeo na celebraccedilatildeo de contratualizaccedilatildeoconvecircnios com o poder puacuteblico entre outros benefiacuteciosrdquo

Informaccedilatildeo retirada do site oficial do Ministeacuterio da cidadania ndash disponiacutevel em httpmdsgovbr acesso em

10022019

42

nem na arena poliacutetica o papel da assistecircncia social no sistema de proteccedilatildeo social brasileiro Ao

longo das deacutecadas a assistecircncia social ganhou diferentes posiccedilotildees e contornos em relaccedilatildeo agrave

priorizaccedilatildeo nas agendas dos governos e agrave proacutepria concepccedilatildeo do que seria esta aacuterea Ainda hoje

vemos que mesmo apoacutes 26 anos da promulgaccedilatildeo da LOAS e 31 anos da Constituiccedilatildeo de 88 a

ldquoidentidaderdquo da assistecircncia social eacute alvo de constantes disputas e ataques sendo necessaacuterio a

atuaccedilatildeo exaustiva de ativistas e militantes em prol da defesa da assistecircncia a partir das

prerrogativas destas normativas

Isto fica ainda mais evidente nas uacuteltimas gestotildees no Governo Federal principalmente

na gestatildeo de Michel Temer (2016-2018) que cortou significativamente os repasses direcionados

a assistecircncia social bem como suas accedilotildees se restringiram a fomentar o Programa Crianccedila Feliz

amplamente questionado por especialistas trabalhadores da assistecircncia por estar desvinculados

dos princiacutepios normativos do SUAS Outra importante medida sancionada por este governo

que afeta as poliacuteticas puacuteblicas como um todo foi a aprovaccedilatildeo da Emenda Constitucional 95 ndash

intitulada de PEC do teto de gastos durante sua tramitaccedilatildeo no Congresso Nacional Esta

emenda vincula os investimentos puacuteblicos ao crescimento do PIB por vinte anos ou seja

restringe o investimento em aacutereas sociais a despeito da atual condiccedilatildeo de subfinanciamento No

atual governo apesar de natildeo termos presenciado significativas mudanccedilas na assistecircncia social

ateacute este momento a proposta de reforma da previdecircncia se aprovada nos termos propostos iraacute

reconfigurar o sistema da proteccedilatildeo social restringindo ainda mais o alcance da poliacutetica de

assistecircncia social

No que diz respeito a oferta de serviccedilos socioassistenciais por meio de parcerias com

OSC haacute muitas controveacutersias (nos espaccedilos acadecircmicos e poliacuteticos) sobre o papel e a

centralidade destas organizaccedilotildees Gabriela Brettas (2016) que tambeacutem estudou a relaccedilatildeo entre

OSC e Estado na implementaccedilatildeo da Assistecircncia Social afirmou que existem trecircs momentos

sobre o entendimento do papel das OSC na poliacutetica de Assistecircncia Social Em um primeiro

momento na fase inicial de implementaccedilatildeo do SUAS havia uma visatildeo estatista da execuccedilatildeo

desta poliacutetica puacuteblica Entendia-se que implementaccedilatildeo da rede socioassistencial deveria ser

realizada unicamente atraveacutes de serviccedilos administrados de forma direta pelo poder puacuteblico As

organizaccedilotildees por outro lado eram associadas de forma generalizante a praacuteticas conservadoras

assistencialistas e filantroacutepicas Portanto vincular os serviccedilos agrave oferta pelas OSC seria atrelar

assistecircncia social a estas praacuteticas

Em um segundo momento em que o SUAS comeccedilou a ganhar contornos mais

estruturados a administraccedilatildeo puacuteblica passou a entender que haacute uma rede socioassistencial

43

privada do SUAS ou seja que a despeito da implementaccedilatildeo direta (realizada primordialmente

atraveacutes dos CRAS e CREAS) as organizaccedilotildees continuaram ofertando serviccedilos especiacuteficos a

populaccedilotildees em situaccedilatildeo de vulnerabilidade Neste sentido as OSC passam a ser vistas como

instituiccedilotildees que tem expertise e capilaridade Concomitantemente algumas OSC

(principalmente as grandes) participaram de espaccedilos nacionais de construccedilatildeo da poliacutetica

reivindicando o seu lugar no sistema Por fim no terceiro momento a partir de 2011 entendeu-

se que as organizaccedilotildees satildeo importantes ficando evidente o discurso em prol de uma rede

socioassistencial do SUAS uacutenica Iniciou-se entatildeo um processo de aprimoramento das

regulamentaccedilotildees que tratam da relaccedilatildeo entre OSC e Estado (Brettas 2016)

A autora destacou que estas concepccedilotildees ainda hoje permeiam as discussotildees na

assistecircncia social Evidentemente isto natildeo eacute ldquoum processo no qual essas ideias se substituem

no tempo de modo linear ao contraacuterio envolve dinacircmicas complexas e tensotildees entre as distintas

concepccedilotildees poliacuteticas a respeito do papel do Estado e das OSCrdquo (Brettas 2016 p 151) Em

complementariedade a autora apresentou que

Questotildees como o ldquotamanhordquo do Estado as implicaccedilotildees nos espaccedilos de autonomia e papeis das

OSC (de controle social de prestadoras de serviccedilo de articulaccedilatildeo intersetorial etc) ou sobre a

loacutegica de vinculaccedilatildeo e participaccedilatildeo das OSC ao SUAS (seu lugar institucional no sistema) por

exemplo natildeo satildeo consensuais e continuam em disputa nos espaccedilos de reflexatildeo e construccedilatildeo da

poliacutetica ndash na academia entre as equipes da SNASMDS no CNAS entre as OSC nos conselhos

e oacutergatildeos gestores locais de assistecircncia ou ainda nas instacircncias de discussatildeo e deliberaccedilatildeo sobre

as relaccedilotildees entre Estado e OSC em sentido mais abrangente (como a SGPR ou a Plataforma do

Marco Regulatoacuterio e tambeacutem nos foacuteruns em acircmbito local) (Brettas 2016 p 152)

Seguindo esta linha de pensamento Julia Amacircncio (2008) destacou que se por um lado

a participaccedilatildeo das OSC na implementaccedilatildeo de serviccedilos socioassistenciais aumenta por outro a

relaccedilatildeo que o Estado estabelece com estas organizaccedilotildees natildeo se daacute nos mesmos moldes daquelas

historicamente construiacutedas antes da promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 Como descrito

anteriormente a oferta de serviccedilos era feita de forma fragmentada sendo considerada como

qualquer accedilatildeo a populaccedilotildees vulneraacuteveis baseadas em diferentes princiacutepios (da cidadania

filantropia assistencialismo primeiro-damismo)

Apoacutes a promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 e da LOAS a luta pela consolidaccedilatildeo da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica caminhou num sentido contraacuterio Buscou-se a

construccedilatildeo de um sistema uacutenico com diretrizes princiacutepios e paracircmetros universais pautados

nos preceitos da cidadania e do direito social Disputou-se assim a ldquoidentidaderdquo da assistecircncia

social tentando imprimir o caraacuteter de poliacutetica puacuteblica de direito de todo cidadatildeo e dever do

Estado Esta ldquodisputa identitaacuteriardquo natildeo apenas chegou nas OSC que ofertavam os serviccedilos mas

tambeacutem foi construiacuteda de forma ativa por muitas organizaccedilotildees que participaram dos espaccedilos

44

de construccedilatildeo da poliacutetica Neste sentido vemos que a relaccedilatildeo entre Estado e sociedade civil natildeo

se constroacutei a partir de relaccedilotildees unilaterais de passividade e atividade mas sim em um processo

dialoacutegico de muacutetua constituiccedilatildeo

Por outro lado isto natildeo quer dizer que acreditamos que natildeo houve

ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo por parte do poder puacuteblico como abordado por parte da literatura

(Souza 2016 Souza 2017 Perez 2005) Na nossa leitura isto aconteceu em muitos momentos

afinal a histoacuteria natildeo eacute linear e a construccedilatildeo natildeo foi puramente progressiva Tivemos governos

nos quais a assistecircncia social ganhou destaque na agenda poliacutetica com a maior disponibilidade

de recursos e governos que foram marcados por um momento de retraccedilatildeo e pouco investimento

Contudo nos parece que em alguns momentos a utilizaccedilatildeo do termo

ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estaacute associada apenas a realizaccedilatildeo de convecircnios e parcerias

Certamente a construccedilatildeo de parcerias com as OSC foi algo ldquorentaacutevelrdquo e ldquoconvenienterdquo para o

poder puacuteblico pois o governo comumente investe um montante de recuso financeiro

insuficiente para a execuccedilatildeo efetiva dos serviccedilos Contudo esta precarizaccedilatildeo ocorre tambeacutem

em serviccedilos da administraccedilatildeo direta em que haacute a contraccedilatildeo de uma equipe muito reduzida com

baixas remuneraccedilotildees para a execuccedilatildeo de um volume muito grande de trabalho Nesse sentido

compreendemos que a desresponsabilizaccedilatildeo estaacute associada agrave centralidade que a assistecircncia

social ocupa (ou no caso natildeo ocupa) na agenda governamental ndash e natildeo apenas do desenho

institucional de uma rede socioassistencial mista

Para Amacircncio (2008) o fato de a assistecircncia social passar a ser considerada como

poliacutetica puacuteblica de dever do Estado natildeo condiciona sua execuccedilatildeo exclusivamente pela accedilatildeo

direta do poder puacuteblico Portanto puacuteblico natildeo quer dizer exclusivamente estatal A autora

desenvolveu uma linha de pensamento a partir de alguns trechos escritos por Raquel Raichelis

(1998) e por Maria Luiza Mestriner (2005) ndash que compreendemos ser bastante pertinente para

a discussatildeo desta questatildeo Assim neste diaacutelogo

Esta compreensatildeo [do puacuteblico natildeo apenas como estatal] natildeo restringe o universo da assistecircncia

social a uma intervenccedilatildeo exclusiva dos governos uma vez que supotildee a participaccedilatildeo em

diferentes niacuteveis dos segmentos organizados da sociedade civil em sua formulaccedilatildeo

implementaccedilatildeo e gestatildeo (RAICHELIS 1998 129)

No entanto

Conceber a assistecircncia social nesta perspectiva natildeo implica diluir a responsabilidade estatal por

sua conduccedilatildeo Ao contraacuterio situaacute-la no campo dos direitos remete agrave ativa intervenccedilatildeo do Estado

para garantir sua efetivaccedilatildeo dentro dos paracircmetros legais que a definem (RAICHELIS 1998

37)

A soluccedilatildeo para esse impasse depende

45

A possibilidade de uma parceria com o Estado na elaboraccedilatildeo implementaccedilatildeo e controle de uma

poliacutetica puacuteblica de assistecircncia social com clara definiccedilatildeo das responsabilidades deste Estado

enquanto normatizador coordenador e financiador da poliacutetica que integra agrave sua accedilatildeo as

iniciativas privadas num sistema articulado e agrave sua accedilatildeo as iniciativas privadas num sistema

articulado e coerente de accedilotildees (Mestriner 2005 p 47 citado por Amacircncio 2008 p 173)

Numa apreciaccedilatildeo similar Peter Spink e Ana Marcia Ramos (2016) sustentam que ldquoser

o condutor das poliacuteticas sociais natildeo impede que os governos tenham parceiros tanto para a

execuccedilatildeo dos serviccedilos que adveacutem dessas poliacuteticas quanto para a construccedilatildeo conjunta de

projetos societaacuterios que venham ao encontro de maior justiccedila e equidade socialrdquo (p288) Dessa

forma no que diz respeito agrave assistecircncia social entende-se que o caraacuteter puacuteblico das poliacuteticas

natildeo adveacutem exclusivamente da oferta direta do Estado mas do enquadramento normativo

construiacutedo nas instacircncias de pactuaccedilatildeo e negociaccedilatildeo socioestatais em que a sociedade civil

tambeacutem estaacute presente Ou seja o caraacuteter puacuteblico dos serviccedilos depende da vinculaccedilatildeo das accedilotildees

desenvolvidas agraves diretrizes e princiacutepios nacionais dispostos em lei (como na LOAS na PNAS

e no SUAS)

Consideraccedilotildees finais

O argumento central do presente artigo foi sustentar a ideia de que as parcerias puacuteblico-

privadas com organizaccedilotildees da sociedade civil natildeo necessariamente marcam um processo de

ldquoterceirizaccedilatildeordquo ou ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal conforme defendido por parte da literatura

acadecircmica ndash ou que a participaccedilatildeo das OSC necessariamente faccedila menccedilatildeo a resquiacutecios de

caridade e filantropia Acreditamos que certamente existem OSC que atuam a partir destas

perspectivas assim como deve haver profissionais concursados(a)s e gestores(as) que pautam

sua atuaccedilatildeo nos mesmos preceitos Como apresentado anteriormente foram muitos anos da

assistecircncia social baseados nos paradigmas da caridade benevolecircncia filantropia A histoacuteria da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica ndash ou seja de direito de toda(o) cidadatilde(o) e de dever do

Estado ndash eacute recente em termos histoacutericos

Desse modo como todo processo de transformaccedilatildeo macroestrutural a mudanccedila de

paradigma eacute gradual processual e dialoacutegica incorporada de diferentes formas pelos sujeitos

ressignificada a partir das experiecircncias particulares e do cotidiano Assim vemos que

atualmente haacute diferentes concepccedilotildees sobre a assistecircncia social tanto por parte da sociedade

civil quanto dos governos que perpassam um processo de constantes disputas e negociaccedilotildees

sobre os rumos desta poliacutetica puacuteblica Neste sentido a Psicologia Social de perspectiva

construcionista pela ecircnfase no estudo das interaccedilotildees discursivas e dos processos dialoacutegicos se

46

constitui enquanto uma importante ferramenta teoacuterica e metodoloacutegica para o estudo das

poliacuteticas puacuteblicas

Por fim argumentamos que a Constituiccedilatildeo de 1988 a LOAS a PNAS e todos as outras

normativas que regem a assistecircncia social foram importantes meios de disputa discursiva na

concepccedilatildeo desta poliacutetica influindo sobre a sua operacionalizaccedilatildeo Posto que com base nestas

legislaccedilotildees as organizaccedilotildees conveniadas devem prestar serviccedilos baseados nos princiacutepios

expostos nestes documentos ndash portanto tendo como premissa central a noccedilatildeo de direito e

cidadania Dessa forma acreditamos que o intento em resgatar os marcos histoacutericos e as

normativas relevantes para a constituiccedilatildeo das parcerias puacuteblico-privadas (ou estataisnatildeo-

estatais) pode nos servir com um importante recurso analiacutetico para a compreensatildeo dos efeitos

deste legado histoacuterico no desenvolvimento institucional e na dinacircmica organizacional na

poliacutetica de assistecircncia social nos dias atuais

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Capiacutetulo 3

Proteccedilatildeo Social e Fortalecimento de Viacutenculos contribuiccedilotildees da Poliacutetica de

Assistecircncia Social a mulheres idosas

Izabela Penha Silva

Renata Fabiana Pegoraro

Introduccedilatildeo

A Psicologia vem tendo participaccedilatildeo importante nas poliacuteticas sociais desde o final da

deacutecada de 1970 por meio da criaccedilatildeo de sindicatos e efetiva ocupaccedilatildeo dos mesmos pela classe

profissional bem como do chamado ldquosistema conselhosrdquo Na deacutecada de 1980 os psicoacutelogos

brasileiros se envolveram em importante movimento no campo social o que auxiliou na

definiccedilatildeo de algumas condiccedilotildees para uma inserccedilatildeo mais extensiva da Psicologia no campo das

poliacuteticas puacuteblicas (Yamamoto 2007)

A temaacutetica das poliacuteticas sociais tem sido alvo de investigaccedilotildees e debates no acircmbito

acadecircmico da Psicologia tanto no que diz respeito agrave compreensatildeo das accedilotildees e serviccedilos

vinculados agraves poliacuteticas puacuteblicas quanto agrave sua articulaccedilatildeo com o trabalho dos(as) psicoacutelogos(as)

buscando compreender como tem se dado atualmente a participaccedilatildeo da categoria no campo

social Neste contexto este capiacutetulo versa sobre uma pesquisa de mestrado realizada em um

Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) do interior de Minas Gerais com 13

usuaacuterias pertencentes ao ldquoGrupo de Mulheresrdquo ofertado pelo Serviccedilo de Convivecircncia e

Fortalecimento de Viacutenculos (SCFV) da instituiccedilatildeo com objetivo de investigar como tais

usuaacuterias compreendem as accedilotildees do CRAS Abordaremos em seccedilatildeo seguinte a poliacutetica de

assistecircncia social e o CRAS enquanto um dispositivo dessa aacuterea

1 A Poliacutetica de Assistecircncia Social e a Proteccedilatildeo Social Baacutesica

A Assistecircncia Social no Brasil configurou-se enquanto poliacutetica puacuteblica a partir da

Constituiccedilatildeo Federal de 1988 quando passou a constituir um dos pilares da Seguridade Social

junto agrave Sauacutede e agrave Previdecircncia Seus serviccedilos accedilotildees projetos e programas satildeo geridos pelo

Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) que eacute organizado a partir de uma loacutegica estrutural

51

de proteccedilatildeo em dois niacuteveis a Proteccedilatildeo Social Baacutesica (PSB) e a Proteccedilatildeo Social Especial (PSE)

A PSB eacute considerada a porta de entrada da Assistecircncia Social e desenvolve accedilotildees de caraacuteter

preventivo isto eacute atua para que a violaccedilatildeo de direitos constitucionais seja prevenida tendo suas

accedilotildees referenciadas nos Centros de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) Jaacute a PSE tem

caraacuteter protetivo uma vez que se destina a sujeitos e famiacutelias que se encontram em situaccedilatildeo de

risco pessoal ou social isto eacute aqueles que jaacute tiveram seus direitos violados As accedilotildees deste niacutevel

de proteccedilatildeo estatildeo referenciadas nos Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social

(CREAS) (Pereira amp Guareschi 2018 Cruz amp Guareschi 2013 Couto 2013) Neste texto

abordaremos a PSB por se tratar do contexto em que foi realizada a pesquisa aqui relatada

Como mencionado anteriormente as accedilotildees da PSB estatildeo referenciadas no CRAS Esta

unidade da Poliacutetica de Assistecircncia Social atua em municiacutepios e no Distrito Federal e tem como

foco aqueles que em seu territoacuterio de abrangecircncia encontram-se em situaccedilatildeo de

vulnerabilidade e risco social decorrente de pobreza privaccedilatildeo eou fragilidade de viacutenculos

afetivos familiares comunitaacuterios e de pertencimento Sua proposta eacute prevenir a violaccedilatildeo de

direitos por meio do desenvolvimento de potencialidades aquisiccedilotildees fortalecimento de

viacutenculos familiares e comunitaacuterios e acesso a benefiacutecios eventuais e de transferecircncia de renda

(tais como cesta baacutesica cobertor auxiacutelio natalidade auxiacutelio funeral Bolsa Famiacutelia e Benefiacutecio

de Prestaccedilatildeo Continuada) Para isso faz-se importante o conhecimento do territoacuterio de atuaccedilatildeo

do CRAS e das famiacutelias que nele vivem suas necessidades vulnerabilidades situaccedilotildees de risco

bem como suas potencialidades e as ofertas jaacute existentes no territoacuterio em questatildeo Este trabalho

eacute denominado busca ativa e possibilita compreender melhor a realidade para nela atuar O

CRAS tambeacutem tem como funccedilatildeo promover a articulaccedilatildeo intersetorial do territoacuterio buscando

dialogar com as demais poliacuteticas e setores (educaccedilatildeo sauacutede previdecircncia cultura esporte

lazer) viabilizando o acesso das famiacutelias aos serviccedilos setoriais para que tenham um

atendimento integral (Brasil 2009)

No Brasil de acordo com o Censo SUAS realizado no ano de 2018 haacute um total de 8360

unidades de CRAS os quais atendem 28823500 famiacutelias sendo 1173 destas unidades

alocadas no Estado de Minas Gerais Em todo o Brasil os CRAS empregam 103625

profissionais dos quais 10529 satildeo psicoacutelogos(as) Em Minas Gerais atuam 1660 profissionais

da Psicologia isto eacute haacute a presenccedila de ao menos um psicoacutelogo em todos os CRAS do Estado

(Brasil 2019)

Dentre as accedilotildees que se encontram na alccedilada do CRAS temos (a) Serviccedilo de Proteccedilatildeo

e Atendimento Integral agrave Famiacutelia (PAIF) (b) Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de

52

Viacutenculos (SCFV) e (c) Serviccedilo de Proteccedilatildeo Social Baacutesica no domiciacutelio para pessoas com

deficiecircncia e idosas (Ministeacuterio do Desenvolvimento Social 2016) Seraacute abordado mais

especificamente neste capiacutetulo o Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos uma

vez que o ldquoGrupo de Mulheresrdquo eacute uma accedilatildeo que pertence ao SCFV do CRAS pesquisado

11 O Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos (SCFV) e a contextualizaccedilatildeo da

pesquisa

Como o proacuteprio nome sugere o Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos

(SCFV) tem como principal objetivo a promoccedilatildeo da convivecircncia coletiva e o fortalecimento de

viacutenculos afetivos familiares comunitaacuterios e de pertencimento Devido a isso suas accedilotildees satildeo

organizadas no formato de grupos e satildeo propostas atividades que promovam trocas culturais e

de vivecircncias entre os usuaacuterios bem como contribuam com o desenvolvimento do sentimento

de pertenccedila e de identidade Para isto eacute importante que a formaccedilatildeo dos grupos leve em

consideraccedilatildeo as especificidades do ciclo de vida dos usuaacuterios podendo ser organizados grupos

de crianccedilas adolescentes jovens adultos pessoas idosas entre outros As atividades do SCFV

satildeo ofertadas na proacutepria instituiccedilatildeo [CRAS] ou em instituiccedilotildees parceiras (Brasil 2016)

O ldquoGrupo de Mulheresrdquo do qual as participantes da pesquisa aqui apresentada satildeo

frequentadoras integra o SCFV de um CRAS do interior de Minas Gerais Este grupo eacute

composto por mulheres em sua maioria idosas aposentadaspensionistas e viuacutevas que estatildeo no

serviccedilo haacute pelo menos oito anos O grupo eacute ofertado semanalmente na instituiccedilatildeo tem duraccedilatildeo

aproximada de 60 minutos e eacute coordenado por uma psicoacuteloga da equipe de referecircncia do CRAS

Nele satildeo abordadas diversas temaacuteticas relacionadas aos interesses das participantes por vezes

contempladas por palestrantes convidados Satildeo realizadas atividades que promovem a sauacutede

mental e fiacutesica (ex memoacuteria concentraccedilatildeo coordenaccedilatildeo motora) e o fortalecimento de

viacutenculos aleacutem de espaccedilo para compartilhamento de experiecircncias diversas por meio de rodas de

conversa acerca de conteuacutedos relacionados ao cotidiano e agraves relaccedilotildees sociais e comunitaacuterias das

usuaacuterias

Esta pesquisa buscou investigar como as usuaacuterias deste grupo compreendem as accedilotildees

ofertadas pelo CRAS O ldquoGrupo de Mulheresrdquo foi eleito para fase de campo da pesquisa por

agregar as usuaacuterias mais antigas do serviccedilo e que apresentam elevada taxa de frequecircncia no

grupo Para a construccedilatildeo de dados foram aplicados questionaacuterios para caracterizaccedilatildeo das

usuaacuterias e realizados trecircs encontros para entrevistas em grupo no formato de Grupos Focais

53

os quais contaram com materiais de apoio como disparadores de discussotildees acerca do tema

proposto Os dados foram analisados por meio de Anaacutelise de Conteuacutedo Temaacutetica proposta por

Bardin (1977) Abordaremos em seccedilatildeo seguinte o uso de Grupo Focal como teacutecnica de

construccedilatildeo de dados na pesquisa no campo das poliacuteticas puacuteblicas

2 O uso de Grupos Focais em pesquisas no campo das poliacuteticas puacuteblicas organizaccedilatildeo

conduccedilatildeo vantagens e desvantagens

A teacutecnica de Grupos Focais (GF) foi eleita para fase de construccedilatildeo de dados por ser um

procedimento raacutepido praacutetico e que permite acessar com facilidade as contribuiccedilotildees que a

populaccedilatildeo investigada tem a oferecer sendo comumente utilizado nos campos das Ciecircncias

Sociais Antropologia e Sauacutede Essa teacutecnica tem como objetivo investigar por meio de

entrevistas em grupo um tema comum aos participantes proporcionando espaccedilo interacional

que possibilita a expressatildeo de sentimentos crenccedilas valores experiecircncias representaccedilotildees e

percepccedilotildees dos participantes sobre o fenocircmeno investigado Para isto eacute importante que os

participantes sejam escolhidos de forma intencional isto eacute tenham relaccedilatildeo com os objetivos da

pesquisa Aleacutem disso eacute recomendado que o grupo seja composto por uma meacutedia entre quatro e

quinze participantes e que tenha uma duraccedilatildeo meacutedia de 60 a 120 minutos atentando-se para

que encontros muito longos sejam evitados uma vez que podem causar cansaccedilo e desgaste

mental (Busanello Lunardi-Filho Kerber amp Santos 2013 Backes Colomeacute Erdman amp

Lunardi 2011) A literatura tambeacutem aponta que o nuacutemero de encontros necessaacuterios para

investigaccedilatildeo de um tema varia de acordo com a complexidade do mesmo sendo recomendado

o uso do criteacuterio de saturaccedilatildeo como estrateacutegia para delimitaccedilatildeo do nuacutemero de encontros

necessaacuterios pois considera a repeticcedilatildeo a previsibilidade dos testemunhos e a ausecircncia do

surgimento de novas ideias identificando que o esgotamento do tema foi alcanccedilado (Trad

2009)

Para desenvolvimento dos grupos focais eacute necessaacuteria a presenccedila de um moderador que

tem como funccedilatildeo coordenar o grupo esclarecer sobre o objetivo da pesquisa e a dinacircmica dos

encontros bem como criar um clima agradaacutevel entre os participantes e fomentar as discussotildees

O moderador pode contar com o auxiacutelio de um observador para controle do tempo

monitoramento dos equipamentos de gravaccedilatildeo e registro da dinacircmica grupal expressotildees dos

participantes e demais aspectos que julgar importantes O espaccedilo para realizaccedilatildeo dos encontros

deve ser localizado preferencialmente em territoacuterio neutro protegido de ruiacutedos ou demais

interrupccedilotildees confortaacutevel e que assegure a privacidade dos participantes (Busanello et al 2013

54

Backes et al 2011 Trad 2009) O desenvolvimento e a observaccedilatildeo do GF podem ser

facilitadas pela organizaccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico com as cadeiras dispostas em ciacuterculo (Gaskell

2002)

Compreendemos que o uso da teacutecnica de GF pode ser vantajosa no campo das poliacuteticas

puacuteblicas em especial por ofertar um espaccedilo confortaacutevel para a livre expressatildeo de ideias e

opiniotildees sobre determinado assunto o que permite aos pesquisadores explorarem perguntas natildeo

antevistas e incentivar a participaccedilatildeo dos integrantes possibilitando o entendimento das

questotildees de forma mais ampla Aleacutem disso a flexibilidade em seu formato o qual permite o

uso de imagens metaacuteforas ou estiacutemulos projetivos tambeacutem eacute vantajoso para uma construccedilatildeo de

dados de maior qualidade e mais rica em detalhes (Gaskell 2002 Trad 2009)

A literatura aponta alguns limites do procedimento de GF que versam sobre o risco de

interferecircncia dos juiacutezos de valores do moderador bem como a dificuldade de generalizaccedilatildeo dos

dados construiacutedos visto que a seleccedilatildeo de participantes eacute feita de forma intencional e por

conveniecircncia Quanto agrave generalizaccedilatildeo em pesquisas qualitativas vale pontuar que natildeo se

objetiva encontrar uma unidade entre as representaccedilotildees sobre determinado objeto de estudo

Pelo contraacuterio busca-se a compreensatildeo dos diferentes e muitas vezes divergentes pontos de

vista sobre o tema em foco Em alguns casos no entanto a discussatildeo em grupo pode impedir a

expressatildeo de opiniotildees que sejam divergentes das dos demais participantes e alguns integrantes

do grupo podem dominar a discussatildeo ou desviar o assunto proposto enviesando a construccedilatildeo

de dados A dificuldade de garantir o total anonimato dos participantes por se tratar de uma

entrevista grupal tambeacutem eacute apontada como uma desvantagem da teacutecnica (Trad 2009 Backes

et al 2011)

Na pesquisa com o ldquoGrupo de Mulheresrdquo foram realizados trecircs encontros de GF com

duraccedilatildeo aproximada de 90 minutos Cada encontro contou com materiais de apoio como

dispositivos disparadores de ideias reflexotildees e sentimentos acerca do tema a ser investigado

naquele encontro No primeiro encontro foi utilizado como material disparador de discussatildeo a

foto da fachada do CRAS investigado procurando compreender os sentidos atribuiacutedos agrave

instituiccedilatildeo por suas usuaacuterias Em um segundo momento deste encontro foram apresentadas agraves

participantes imagens de diferentes serviccedilos puacuteblicos de aacutereas diversas como Sauacutede Educaccedilatildeo

Previdecircncia Assistecircncia Social Cultura Esporte e Lazer com o intuito de investigar o

conhecimento que as idosas tinham a respeito da Poliacutetica de Assistecircncia Social e do CRAS

enquanto pertencente a essa aacuterea No segundo encontro objetivou-se investigar o conhecimento

que as participantes tinham sobre as atividades e accedilotildees realizadas pela instituiccedilatildeo sendo

55

convidadas a comporem uma lista com todas aquelas que se lembrassem Em seguida foram

apresentadas imagens dos benefiacutecios eventuais e de transferecircncia de renda da Proteccedilatildeo Social

Baacutesica para investigaccedilatildeo minuciosa do conhecimento que as mesmas apresentavam sobre cada

um deles bem como de sua relaccedilatildeo com o CRAS No terceiro e uacuteltimo encontro as idosas

foram convidadas a circular pelos espaccedilos da instituiccedilatildeo observando sua estrutura

organizaccedilatildeo dinacircmica corpo de funcionaacuterios para em seguida fazerem uma avaliaccedilatildeo do

CRAS pontuando o que estava funcionando bem e o que precisava ser melhorado Nesse

mesmo encontro tambeacutem foi investigado o lugar que o CRAS ocupa na vida das usuaacuterias

contando com a apresentaccedilatildeo de um viacutedeo produzido pela equipe com seus momentos na

instituiccedilatildeo como material disparador de reflexotildees

O nuacutemero de participantes em cada encontro variou entre 8 e 12 A partir do uso dessa

teacutecnica de construccedilatildeo de dados (GF) e da Anaacutelise de Conteuacutedo Temaacutetica proposta por Bardin

(1977) foi possiacutevel elencar alguns eixos de anaacutelise construiacutedos ao longo da pesquisa os quais

seratildeo discutidos em seccedilatildeo seguinte A pesquisa foi aprovada pelo Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa

com seres humanos da Universidade Federal de Uberlacircndia (Parecer 2735403) e cada

participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias uma

ficou com a participante e a outra foi entregue agrave pesquisadora Os encontros ocorreram em uma

sala reservada no proacuteprio CRAS

3 Contribuiccedilotildees da Poliacutetica de Assistecircncia Social a mulheres usuaacuterias do CRAS

As 12 mulheres que participaram da pesquisa tinham entre 53 e 92 anos sendo a grande

maioria idosas (n=10) viuacutevas (n=8) aposentadas ou pensionistas Destas 11 acessaram o

CRAS por demanda espontacircnea (convidadas por familiares ou conhecidos jaacute vinculados ao

serviccedilo) e apenas uma por busca ativa A maior parte (n=8) eacute usuaacuteria do CRAS haacute pelo menos

oito anos

De acordo com os resultados da pesquisa a participaccedilatildeo de mulheres idosas nas poliacuteticas

sociais e neste caso no serviccedilo de Proteccedilatildeo Social Baacutesica tem feito com que elas identifiquem

nesses espaccedilos um lugar que lhes pertence Ao longo do processo de construccedilatildeo de dados da

pesquisa um dos aspectos investigados pelas pesquisadoras dizia respeito ao puacuteblico-alvo da

instituiccedilatildeo isto eacute foi investigado junto agraves usuaacuterias para quem os serviccedilos ofertados na

instituiccedilatildeo [CRAS] satildeo destinados As participantes mencionaram que aquele serviccedilo se

destinava agraves pessoas em situaccedilatildeo de vulnerabilidade enfatizando o puacuteblico da terceira idade

56

As demais faixas etaacuterias segundo as participantes tambeacutem satildeo contempladas nas accedilotildees do

CRAS entretanto em segundo plano como ilustrado pelo trecho ldquo- O adolescente eacute puacuteblico

alvo do CRASrdquo (Pesquisadora GF1) ldquo- O CRAS Soacute se for [adolescente] deficiente Isso aqui

eacute mais para noacutes [idosas mulheres]rdquo (Neide1 GF1)

Nesse sentido mesmo sendo um serviccedilo destinado ao puacuteblico em situaccedilatildeo de

vulnerabilidade independente de sua faixa etaacuteria o CRAS tem sido reconhecido por essas

mulheres como um lugar que tem como foco acolher as questotildees da terceira idade Alguns

autores (Stuart-Hamilton 2002 citado por Morais 2009) apontam situaccedilotildees que contribuem

para a elucidaccedilatildeo de conflitos nesse momento de vida como (1) surgimento de algumas

doenccedilas muitas vezes crocircnicas que afetam a qualidade de vida dos idosos (2) mudanccedilas

corporais e orgacircnicas que podem influenciar a autoimagem do idoso (3) viuvez eou morte de

amigos e parentes (4) perda de algumas funccedilotildees sociais que podem ocasionar uma sensaccedilatildeo de

invalidezinutilidade ao idoso (5) dificuldades financeiras muitas vezes ocasionadas pela

diminuiccedilatildeo da renda apoacutes saiacuteda do mercado de trabalho eou aposentadoria Estas questotildees

podem afetar a autoestima e a identidade do idoso gerar crises e conflitos fazendo com que ele

recorra a recursos tanto internos quanto externos para enfrentamento das consequecircncias

ocasionadas pelas mudanccedilas que vivencia (Morais 2009)

Segundo a Poliacutetica Nacional de Sauacutede da Pessoa Idosa (Brasil 2006) a proporccedilatildeo de

usuaacuterios idosos nos serviccedilos puacuteblicos em todos os setores tende a ser cada vez maior tanto pelo

maior acesso a informaccedilotildees que as pessoas da terceira idade vecircm tendo quanto pelo aumento

relativo e absoluto da populaccedilatildeo pertencente a essa faixa etaacuteria no paiacutes A presenccedila da mulher

idosa nos serviccedilos puacuteblicos tambeacutem eacute marcante visto que 55 da populaccedilatildeo idosa brasileira eacute

composta por mulheres e 35 da populaccedilatildeo feminina do paiacutes pertence a esta faixa etaacuteria Nesta

pesquisa 10 participantes eram mulheres idosas A forte presenccedila da mulher nas poliacuteticas

puacuteblicas tambeacutem estaacute relacionada com a busca por atendimento natildeo apenas para suas demandas

pessoais mas sobretudo para filhos netos outros familiares pessoas idosas com deficiecircncia e

ateacute mesmo vizinhos e amigos por ser a mulher a pessoa identificada como principal e agraves vezes

uacutenica cuidadora (Brasil 2011)

Esse excesso de funccedilotildees desempenhadas pelo gecircnero feminino (matildee avoacute educadora

cuidadora e em geral principal provedora) pode muitas vezes ocasionar sobrecarga fiacutesica e

emocional agrave mulher desencadeando adoecimento psiacutequico (Batista Reinaldo Martins

1 Todas as participantes foram identificadas por meio de nome fictiacutecio visando preservar sua identidade

57

Paschoal amp Santos 2015) Tal aspecto alerta para a necessidade de que as poliacuteticas puacuteblicas

levem em consideraccedilatildeo a perspectiva de gecircnero para o planejamento de suas accedilotildees Segundo

Madureira Peliser Beltrame e Stamm (2008) incluir o debate sobre gecircnero na construccedilatildeo de

accedilotildees de promoccedilatildeo de sauacutede e ndash incluiacutemos de proteccedilatildeo social ndash contribui para uma melhor

assistecircncia das mulheres de forma integral visto que deixa de considerar o envelhecer como

um processo universal vivenciado da mesma forma por homens e mulheres possibilitando

assim atender de forma efetiva as especificidades do puacuteblico feminino

A participaccedilatildeo em grupos ofertados por serviccedilos puacuteblicos voltados agrave terceira idade tem

se mostrado um recurso externo interessante utilizado por idosas no enfrentamento das

intercorrecircncias relacionadas ao envelhecer As participantes do ldquoGrupo de Mulheresrdquo por

exemplo relataram ter encontrado no CRAS um lugar de acolhimento e apoio em especial

emocional pois contribuiu em momentos difiacuteceis como luto e depressatildeo ldquoquando eu perdi meu

filho amigas me convidaram e eu vim para caacute Estava em depressatildeo fiquei em depressatildeo trecircs anos

tomando remeacutedio Eu vim para caacute e graccedilas a Deus foi uma belezardquo (Ceacutelia GF1)

E outra usuaacuteria complementa ldquoO CRAS nos tira do fundo do poccedilo Eu tambeacutem perdi

minha menina e foi aqui que eu natildeo que eu aguentei Se eu ficasse em casa eu natildeo

aguentariardquo (Neide GF1) As idosas relataram com carinho e apreccedilo sobre o viacutenculo que

construiacuteram por meio do Grupo de Mulheres ofertado pela instituiccedilatildeo considerando ainda

terem ganhado uma nova famiacutelia ldquoA uniatildeo nossa eacute muito bonita aquirdquo (Neide GF3) e Marcela

complementa ldquoEu falo que aqui a gente tem uma famiacuteliardquo Carmona Couto e Scorsolini-Comin

(2014) pontuam que as relaccedilotildees de amizade entre idosos podem oferecer consequecircncias

positivas uma vez que amplia a rede de apoio social e funciona como um recurso de proteccedilatildeo

contra a solidatildeo ao proporcionar o contato com outras pessoas significativas que experimentam

vivecircncias semelhantes agraves deles

Souza (2016) relatou experiecircncia semelhante ao realizar estudo sobre um grupo de

convivecircncia composto por idosos usuaacuterios de um CRAS da cidade de Serra Negra do NorteRN

buscando identificar as contribuiccedilotildees que a participaccedilatildeo nesse grupo oferecia agrave vida dos

mesmos Segundo a autora fazer parte de tal grupo auxiliou na melhoria da qualidade de vida

dos idosos visto que naquele espaccedilo eles tinham oportunidade de socializaccedilatildeo e consequente

construccedilatildeo de viacutenculos afetivos entre si participavam de atividades diversas incluindo

passeios se sentiam acolhidos pela equipe sendo tratados com carinho e atenccedilatildeo o que os

auxiliava na lida com as dificuldades cotidianas

58

Neri (2001) tambeacutem apontou como uma das alternativas atuais de enfrentamento das

intercorrecircncias relacionadas agrave velhice a participaccedilatildeo em grupos voltados ao puacuteblico da terceira

idade por serem interessantes espaccedilos de construccedilatildeo de novas possibilidades e perspectivas de

vida agravequeles que muitas vezes se deparam com uma realidade marcada pelo sentimento de

solidatildeo inutilidade invalidez e mesmice

as pessoas de mais idade dentro de um grupo sociocultural podem afirmar a sua proacutepria

identidade expandir as fronteiras de seu valor reconhecerem-se como participantes da vida

atual do grupo por meio da memoacuteria compartilhada porque a identidade individual eacute uma

instacircncia que depende do outro (Neri 2001 p 144)

Aleacutem de um espaccedilo de acolhimento e apoio estes grupos podem ser proporcionadores

de aprendizados As participantes do ldquoGrupo de Mulheresrdquo relataram encontrar no CRAS um

espaccedilo importante para veiculaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre sauacutede nutriccedilatildeo poliacuteticas puacuteblicas

entre outros assuntos importantes por meio de atividades realizadas nos grupos de convivecircncia

e de palestras que satildeo ofertadas na instituiccedilatildeo

a gente aprende muita coisa aqui Atraveacutes dessas palestras que [trabalhadores do CRAS] fizeram

aiacute eu aprendi tanta coisa necessaacuteria importante doenccedila que eu nem sabia que existia acabei

descobrindo que meu neto estaacute com essa doenccedila Entatildeo a gente vai aprendendo muita coisa

eu acho muito importante a gente que tem famiacutelia saber as coisas melhor sobre a sauacutede de cada

um (Marcela GF1)

Aleacutem disso ao longo de suas trajetoacuterias na instituiccedilatildeo as idosas tambeacutem evidenciaram

nos encontros de GF terem aprendido sobre a Poliacutetica de Assistecircncia Social As mesmas

demonstraram ter bom conhecimento dos serviccedilos e accedilotildees ofertados pela Proteccedilatildeo Social

Baacutesica como os benefiacutecios de transferecircncia de renda (Bolsa Famiacutelia e Benefiacutecio de Prestaccedilatildeo

Continuada) os benefiacutecios eventuais (cesta baacutesica cobertor auxiacutelio natalidade) bem como as

atividades realizadas na instituiccedilatildeo e pela equipe de referecircncia (visitas domiciliares acolhidas

encaminhamentos mediaccedilatildeo de grupos do SCFV atividades culturais de danccedila e atividades

infantis) Isto mostra que a instituiccedilatildeo tem conseguido contar por meio de sua praacutetica cotidiana

ldquoa que veiordquo e ldquoa quem veiordquo e que seus usuaacuterios natildeo satildeo meros participantes mas ativos atores

na efetivaccedilatildeo do serviccedilo

Leandro-Franccedila e Murta (2014) tambeacutem apontam a experiecircncia de grupo como

importante estrateacutegia de promoccedilatildeo de sauacutede mental entre idosos Segundo as autoras a

participaccedilatildeo em grupos que tenham como objetivo a promoccedilatildeo da valorizaccedilatildeo do envelhecer e

de discussotildees sobre as questotildees que afetam a vida na terceira idade pode ser interessante

caminho de empoderamento dos idosos no lidar com as adversidades deste periacuteodo

beneficiando a sua sauacutede mental De acordo com as autoras a prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da sauacutede

mental podem contribuir tambeacutem com (1) melhoria na sauacutede em geral (2) promoccedilatildeo de

59

cidadania (3) planejamento e adaptaccedilatildeo agrave saiacuteda do mercado de trabalhoaposentadoria (4)

reduccedilatildeo de sintomas de depressatildeo e ansiedade (5) prevenccedilatildeo do suiciacutedio Leandro-Franccedila e

Murta (2014) pontuam ainda que as estrateacutegias mais eficazes para este puacuteblico satildeo aquelas

que apresentam abordagens abrangentes isto eacute que englobam intervenccedilotildees que levam em

consideraccedilatildeo natildeo apenas os determinantes individuais de sauacutede (comportamentos haacutebitos

conhecimentos) mas tambeacutem determinantes sociais como a rede de apoio ao idoso a

comunidade em que vive as instituiccedilotildees e as poliacuteticas puacuteblicas

Rabelo e Neri (2013) orientam que intervenccedilotildees grupais com idosos podem funcionar

como catalisadores para maximizar ldquoas potencialidades compensar perdas reorganizar a vida

e ajustar-se agraves situaccedilotildeesrdquo (Rabelo amp Neri 2013 p 61) Para tanto eacute necessaacuterio que os

profissionais responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo e conduccedilatildeo desses grupos respeitem os valores a

escolaridade e a cultura de seus participantes estimulem a livre expressatildeo de memoacuterias e

sentimentos num clima de confianccedila e acolhimento mediante um contrato de convivecircncia

efetuado previamente que garanta o sigilo o compromisso com o grupo e seguranccedila para

expressar diferentes opiniotildees

Carmona Couto e Scorsolini-Comin (2014) defendem que a terceira idade precisa ser

olhada natildeo mais como um periacuteodo de perdas crises e limitaccedilotildees mas sim como uma

experiecircncia que possibilita transformaccedilotildees aquisiccedilotildees significados e novas possibilidades

Sobre isto Zimmerman (2000 citado por Morais 2009) pontua que pessoas mais saudaacuteveis e

otimistas estatildeo mais propensas a ver a velhice como um tempo de acuacutemulo de experiecircncias

maturidade liberaccedilatildeo de certas responsabilidades e liberdade para assumir novas ocupaccedilotildees

4 A Psicologia frente agrave poliacutetica de Assistecircncia Social

As questotildees abordadas neste texto dialogam de maneira importante com a formaccedilatildeo em

Psicologia e demais aacutereas que se debruccedilam nos estudos sobre o desenvolvimento humano uma

vez que apesar de mudanccedilas importantes ao longo dos uacuteltimos anos ainda estatildeo marcados por

olhares que enfocam a incapacidade funcional e limitaccedilotildees fiacutesicas cognitivas e sensoriais dos

idosos bem como o controle e a prevenccedilatildeo de agravos de doenccedilas Precisamos nos lembrar

diariamente que a sauacutede do idoso se caracteriza como a ldquointeraccedilatildeo multidimensional entre sauacutede

fiacutesica sauacutede mental independecircncia na vida diaacuteria integraccedilatildeo social suporte familiar e

independecircncia econocircmica (Ramos 2003 p 794)

60

Os(as) psicoacutelogos(as) por se tratar de uma classe profissional fortemente presente nas

poliacuteticas puacuteblicas de atenccedilatildeo aos idosos podem contribuir com a mudanccedila desta perspectiva

para um olhar mais positivo voltado ao envelhecimento em suas praacuteticas Eacute importante destacar

que a presenccedila de uma psicoacuteloga na coordenaccedilatildeo e mediaccedilatildeo do ldquoGrupo de Mulheresrdquo pode

ofertar experiecircncias interessantes agraves usuaacuterias Apesar de natildeo terem um formato terapecircutico

visto que a praacutetica psicoteraacutepica se consolida como responsabilidade da poliacutetica de Sauacutede o

grupo do SCFV coordenado por uma psicoacuteloga pode trazer benefiacutecios que acabam sendo

terapecircuticos para seus participantes O(a) psicoacutelogo(a) quando no papel de facilitador do

processo grupal auxilia na socializaccedilatildeo e compartilhamento de experiecircncias em comum e na

construccedilatildeo de uma rede de suporte psicossocial entre os participantes promovendo sauacutede

mental e fortalecimento de viacutenculos Nesse sentido o formato de grupos tem se mostrado uma

alternativa interessante e viaacutevel para a promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo da sauacutede biopsicossocial dos

idosos no serviccedilo puacuteblico (Reis Giuglliani amp Pasini 2012)

A participaccedilatildeo da Psicologia na Poliacutetica de Assistecircncia Social natildeo eacute um evento novo

Inicialmente o trabalho da Psicologia neste campo se configurava de forma mais pontual

atuando apenas em praacuteticas focalizadas em grupos considerados de risco ficando fora de seu

acircmbito de atuaccedilatildeo as demais parcelas da populaccedilatildeo Aos poucos com a divulgaccedilatildeo dos

resultados de suas experiecircncias relacionadas a intervenccedilotildees em situaccedilotildees de vulnerabilidade

social bem como do apontamento de recursos subjetivos como mediadores da minimizaccedilatildeo de

tais vulnerabilidades houve uma ampliaccedilatildeo da concepccedilatildeo social e governamental das

contribuiccedilotildees que a Psicologia oferecia agraves poliacuteticas puacuteblicas o que implicou em sua inserccedilatildeo

na Proteccedilatildeo Social Baacutesica a partir da estruturaccedilatildeo do SUAS em 2005 (Reis Giuglliani amp Pasini

2012 Conselho Federal de Psicologia 2005)

Mas afinal o que faz um(a) psicoacutelogo(a) no cotidiano da Proteccedilatildeo Social Baacutesica Esta

pergunta eacute importante uma vez que ainda haacute um desconhecimento sobre a atuaccedilatildeo do psicoacutelogo

em contextos que sejam diferentes do setting cliacutenico-terapecircutico Este dado se revela como um

reflexo da predominacircncia das cliacutenicas tradicionais como referenciais norteadores das praacuteticas

do psicoacutelogo desde sua formaccedilatildeo em detrimento das atuaccedilotildees que envolvem o cenaacuterio das

poliacuteticas puacuteblicas Por esta razatildeo intervenccedilotildees ligadas agrave psicoterapia ainda satildeo percebidas em

alguns serviccedilos de Proteccedilatildeo Social Baacutesica como a praacutetica do psicoacutelogo por excelecircncia o que

reforccedila sua manutenccedilatildeo neste contexto (Flor amp Goto 2015 Reis Giuglliani amp Pasini 2012)

Na Assistecircncia Social o(a) psicoacutelogo(a) tem como funccedilatildeo baacutesica atuar junto agrave equipe

para o fortalecimento das poliacuteticas puacuteblicas e de seus usuaacuterios enquanto sujeitos de direitos

61

tendo sempre como foco as necessidades e potencialidades de seu puacuteblico alvo Ao considerar

e atuar sobre a subjetividade a Psicologia pode favorecer o desenvolvimento da autonomia e

cidadania dos usuaacuterios do serviccedilo Para isto eacute importante que o psicoacutelogo tenha uma postura

de trabalho que seja contra qualquer accedilatildeo que categorize patologize ou objetifique as pessoas

atendidas Ao contraacuterio disso eacute imprescindiacutevel que o profissional busque compreender os

aspectos histoacuterico-culturais envolvidos no contexto de vulnerabilidade bem como os processos

e recursos psicossociais de que dispotildeem os sujeitos que ali vivem (Conselho Federal de

Psicologia 2007)

Sobre isso Cruz e Guareschi (2012) alertam que de acordo com resgate histoacuterico sobre

as praacuteticas da Psicologia na Assistecircncia Social muitas accedilotildees tecircm sido pautadas em dicotomias

como ldquonormalpatoloacutegicordquo ldquofamiacutelia estruturadadesestruturadardquo orientadas agrave manutenccedilatildeo da

norma categorizaccedilatildeo de vulnerabilidades sociais culpabilizaccedilatildeo das famiacutelias por sua condiccedilatildeo

socioeconocircmica eou daquilo que natildeo transcorre dentro do esperado e psicologizaccedilatildeo das

questotildees que atravessam o social Com isto o saber cientiacutefico neste campo vem produzindo

subjetividades desqualificadas ao considerar o conhecimento dos especialistas como verdade

uacutenica sobre o sujeito Nesse contexto as autoras apontam a necessidade de promover

diariamente o exerciacutecio reflexivo sobre a proacutepria praacutetica e fazem interessante questionamento

ldquoateacute que ponto nossas accedilotildees natildeo tecircm se configurado como dispositivo de controle sobre as

famiacutelias e sujeitosrdquo (Cruz amp Guareschi 2012 p 31)

Para evitar tais condutas indesejadas o(a) psicoacutelogo(a) deve tomar como princiacutepios em

sua praacutetica na Proteccedilatildeo Social Baacutesica (1) conhecer previamente o territoacuterio de abrangecircncia no

qual atuaraacute para entatildeo planejar accedilotildees e intervenccedilotildees condizentes com os objetivos da PSB (2)

identificar valorizar e auxiliar no desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos e da

comunidade por meio de intervenccedilotildees individuais familiares grupais e coletivas (3) trabalhar

sempre buscando o diaacutelogo entre o saber popular e o saber cientiacutefico da Psicologia natildeo

deixando de valorizar as mais diversas experiecircncias expectativas e conhecimentos em sua

atuaccedilatildeo (4) contribuir com o exerciacutecio ativo da cidadania com o empoderamento e autonomia

dos sujeitos bem como com o controle social por meio da oferta de espaccedilos de participaccedilatildeo da

comunidade mobilizaccedilatildeo social e organizaccedilatildeo comunitaacuteria evitando que as vulnerabilidades

se cronifiquem (Conselho Federal de Psicologia 2007)

Diante disto os(as) psicoacutelogos(as) atuantes na Proteccedilatildeo Social Baacutesica tecircm como desafio

pensar em um sujeito para aleacutem daquele que precisa ser normalizado adequado a padrotildees Eacute

preciso olhar para o sujeito para aleacutem das ldquovulnerabilidades sociaisrdquo ou da ldquopobrezardquo que o

62

acometem isto eacute reconhecer nele um sujeito ativo vivo que tem contradiccedilotildees saberes

potencialidades e que tem o que dizer Isso implica na necessidade de que diferentes olhares

possam ser construiacutedos e que natildeo apontem apenas para o que ldquofaltardquo mas tambeacutem para a

potecircncia de resistir desses sujeitos que escancaram todos os dias que a pobreza e a carecircncia natildeo

se configuram enquanto impossibilidade de vida (Lasta Guareschi amp Cruz 2012)

Consideraccedilotildees finais

A participaccedilatildeo de mulheres idosas em grupo focal sobre o alcance das accedilotildees de um

CRAS apontou a valorizaccedilatildeo do espaccedilo grupal por elas frequentado e coordenado por um

profissional de Psicologia como facilitador da formaccedilatildeo de viacutenculos e de promoccedilatildeo de sauacutede

mental contribuindo para o bem-estar das participantes A idade avanccedilada de algumas

participantes a condiccedilatildeo de viuacuteva a experiecircncia de perda de pessoas importantes e a vivecircncia

do luto datildeo um contorno de proteccedilatildeo agrave sauacutede ao Grupo Convivecircncia e Fortalecimento de

Viacutenculos o qual dialoga natildeo apenas com as poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social mas tambeacutem

com poliacutetica de sauacutede do idoso e poliacutetica integral de sauacutede da mulher

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66

Capiacutetulo 4

A Psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social estudo de caso de

um jovem em cumprimento de medidas socioeducativas

Liandra Savanhago

Camila Trindade

Tielly Rosado Maders

Maria Chalfin Coutinho

Introduccedilatildeo

A atuaccedilatildeo da Psicologia nas Equipes de Referecircncia da poliacutetica puacuteblica de assistecircncia

social tem se intensificado nos uacuteltimos anos Sobretudo a partir de 2005 com a concretizaccedilatildeo

do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) E mais especificamente a partir do ano de

2011 com a implementaccedilatildeo da Norma Operacional Baacutesica de Recursos Humanos do SUAS

(NOB-RHSUAS) a qual dispotildee sobre a obrigatoriedade da presenccedila de psicoacutelogosas nos

respectivos serviccedilos (Brasil 2011) Mesmo sendo uma profissatildeo essencial para o SUAS apenas

apoacutes um longo tempo de concretizaccedilatildeo oa psicoacutelogoa passou obrigatoriamente a integrar a

equipe de referecircncia dos serviccedilos de Proteccedilatildeo Social Baacutesica e Proteccedilatildeo Social Especial de

Meacutedia e de Alta Complexidade os quais constituem os trecircs niacuteveis de complexidade do SUAS

Ao longo deste trabalho elucidamos algumas atividades que se inserem na Proteccedilatildeo

Social Especial de Meacutedia Complexidade a qual oferece atendimentos para pessoas em situaccedilatildeo

de violaccedilatildeo de direitos tal como o serviccedilo de medidas socioeducativas (MSE) em meio aberto

(Brasil 2005) em um municiacutepio localizado no litoral norte do estado de Santa Catarina cuja

populaccedilatildeo foi estimada segundo o Censo demograacutefico de 2010 em 45797 habitantes (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2010)

As MSE elementos centrais dessa discussatildeo satildeo serviccedilos preconizados pelo Estatuto

da Crianccedila e do Adolescente (ECA) instituiacutedo pela Lei Federal nordm 8069 de 1990 (Brasil 1990)

Tal legislaccedilatildeo tem como base os pressupostos da Doutrina da Proteccedilatildeo Integral dos direitos das

Crianccedilas e dos Adolescentes a qual teve marco no artigo ndeg 227 da Constituiccedilatildeo Federal da

Repuacuteblica Federativa do Brasil do ano de 1988 Esses serviccedilos satildeo realizados quando haacute a

praacutetica de atos infracionais por jovens que estejam na faixa etaacuteria dos 12 ateacute os 18 anos As

67

medidas podem ser privativas de liberdade (Internaccedilatildeo e Semiliberdade) e natildeo privativas de

liberdade (Liberdade Assistida Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade Obrigaccedilatildeo de Reparaccedilatildeo

de Danos e Advertecircncia) (Brasil 1990)

Em relaccedilatildeo agraves medidas de Liberdade Assistida (LA) e Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave

Comunidade (PSC) o ECA estabelece que a LA tem o propoacutesito de acompanhar auxiliar e

orientar o jovem durante o tempo miacutenimo de seis meses com o objetivo de fornecer auxiacutelio em

projetos de profissionalizaccedilatildeo e de inserccedilatildeo no mercado de trabalho (Brasil 1990) A PSC tem

a funccedilatildeo de realizar ldquotarefas gratuitas de interesse geral por periacuteodo natildeo excedente a seis meses

junto a entidades assistenciais hospitais escolas e outros estabelecimentos congecircneres bem

como em programas comunitaacuterios ou governamentaisrdquo (Brasil 1990) ou seja por meio desta

medida eacute exigido que o jovem realize trabalho comunitaacuterio

A partir destas breves consideraccedilotildees este trabalho objetivou discutir algumas relaccedilotildees

entre as trajetoacuterias de vida de um jovem em cumprimento de medidas socioeducativas e as

praacuteticas psis em serviccedilo da poliacutetica de assistecircncia social Para isso realizamos um estudo de

caso de um jovem em cumprimento de MSE em meio aberto em que problematizamos suas

trajetoacuterias juvenis com as poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social de forma a enfatizar como

as praacuteticas psis podem se revelar no cenaacuterio da assistecircncia

Para essas reflexotildees tomamos como base a questatildeo social entendida por Iamamoto e

Carvalho (2001) como siacutentese explicativa do processo de pauperizaccedilatildeo massiva da classe

trabalhadora expressa por meio de muacuteltiplas determinaccedilotildees tais como desemprego

subemprego violecircncia criminalizaccedilatildeo e patologizaccedilatildeo da pobreza entre outras

1 Trajetoacuteria dos jovens inseridos nas medidas socioeducativas

Para discutir a atuaccedilatildeo da psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social optamos

por dar visibilidade agrave trajetoacuteria de um jovem inserido no serviccedilo de meacutedia complexidade da

Proteccedilatildeo Social Especial Poreacutem antes de nos atentar a um fenocircmeno especiacutefico julgamos

necessaacuterio evidenciar algumas determinaccedilotildees histoacutericas e sociais que constituem a presente

discussatildeo Com isso objetivamos natildeo recair em meacutetodos e compreensotildees que individualizam

as questotildees sociais que constituem a nossa sociedade

Rizzini (1997) ao realizar uma anaacutelise histoacuterica da construccedilatildeo social do jovem

criminalizado a partir do advento da Repuacuteblica brasileira afirma que tal contexto foi permeado

por diversas alteraccedilotildees sociais as quais tinham como finalidade tornar o Brasil uma ldquonaccedilatildeo

68

culta e civilizadardquo (Rizzini 1997 p 27) Para a autora a concepccedilatildeo de alteraccedilatildeo posta nesse

momento histoacuterico era baseada no entendimento da necessidade de educar instruir e vigiar a

grande massa da populaccedilatildeo brasileira considerada como ldquoignoranterdquo E o iniacutecio dessa

empreitada seria com os sujeitos que eram considerados ldquoo futuro do paiacutesrdquo isto eacute as crianccedilas

e jovens brasileiros

Tal discurso salvacionista acabava por mascarar as contradiccedilotildees e posicionamentos

higienistas para com a infacircncia pobre e criminalizada e ao mesmo tempo era pautado pela

loacutegica da era industrial capitalista a qual tinha como preocupaccedilatildeo conter a ldquodelinquecircnciardquo e a

ldquovadiagemrdquo em razatildeo da natildeo absorccedilatildeo da matildeo-de-obra (Cabral amp Sousa 2004) Este controle

da populaccedilatildeo juvenil tornou-se politicamente viaacutevel pois assumiu uma funccedilatildeo regulatoacuteria

desde a infacircncia quando por exemplo a pedagogia do trabalho era considerada como a

principal estrateacutegia para a ldquoregeneraccedilatildeordquo daqueles que natildeo estavam inseridos no regime

produtivo vigente (Santos 2013)

Ainda com o advento da Repuacuteblica Brasileira Rizzini (1997) destaca a origem de ldquoum

complexo aparato meacutedico-juriacutedico-assistencial cujas metas eram definidas pelas funccedilotildees de

prevenccedilatildeo educaccedilatildeo recuperaccedilatildeo e repressatildeordquo (pp 29-30) Tal aparato possuiacutea a funccedilatildeo de

prestar assistecircncia e vigilacircncia agrave populaccedilatildeo pobre com a intenccedilatildeo de efetivar uma formaccedilatildeo

moral e de ldquocivilizaccedilatildeordquo Nesse sentido a necessidade de controle da infacircncia e juventude era

efetivada desde uma educaccedilatildeo direcionada para a absorccedilatildeo de matildeo-de-obra ateacute um sistema de

classificaccedilatildeo para aqueles sujeitos que ora eram classificados como ldquoperigososrdquo e por isso

precisavam de puniccedilatildeo ora eram considerados em ldquoperigordquo e precisavam de proteccedilatildeo

Assim observamos que as preocupaccedilotildees relacionadas ao gerenciamento das condutas

das crianccedilas e dos jovens das camadas populares possuem raiacutezes antigas relacionadas com a

histoacuteria do Brasil Algumas dimensotildees do controle de crianccedilas e jovens foram observadas

pontualmente no sistema educativo Para Mayer e Nuacutentildeez (2017) a massificaccedilatildeo e a

universalizaccedilatildeo dos sistemas escolares se traduziram em processos de discriminaccedilatildeo e

estigmatizaccedilatildeo na experiecircncia de crianccedilas e jovens de camadas populares em toda Ameacuterica

Latina Baseada em valores e comportamentos hegemocircnicos da classe meacutedia e diante de

infacircncias e juventudes atravessadas pela pobreza isto eacute pela necessidade de trabalho precoce

muitas vezes ilegal e consequente evasatildeo escolar o sistema educacional maquiado pelo

discurso da meritocracia produziu desigualdades legitimando hierarquias e novas

diferenciaccedilotildees sociais em sua maioria individualizantes e excludentes

69

Associado a isso historicamente a juventude tem sido compreendida de forma

naturalizada e individualizante ou seja ldquocomo um periacuteodo muito difiacutecil para os que nele se

encontram cheio de conflitos instaacutevel com mudanccedilas de comportamento muito grandesrdquo (Leal

amp Facci 2014 p 17) Com isso observamos o desenvolvimento histoacuterico de associaccedilotildees entre

concepccedilotildees que naturalizam a juventude com concepccedilotildees de prevenccedilatildeo e a repressatildeo presentes

no discurso social e juriacutedico na passagem do seacuteculo XIX ao XX (Rizzini 1997) Entendemos

que o desdobramento disso se revela na construccedilatildeo de praacuteticas profissionais e concepccedilotildees que

reiteram a individualizaccedilatildeo de contradiccedilotildees de cunho estrutural de nossa sociedade na mesma

medida em que a pobreza e os jovens pobres passam a ser entendidos como sujeitos que carecem

de civilizaccedilatildeo de cultura enfim da proacutepria vida

Eacute tambeacutem nesse contexto e com base nessas concepccedilotildees que temos o desenvolvimento

da ciecircncia psicoloacutegica no Brasil Patto (1990) aponta que diante de noccedilotildees baseadas na

necessidade de ldquoculturalizarrdquo os brasileiros tal ciecircncia assumiu um papel ideoloacutegico de

avaliaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo dos aspectos subjetivos que constituem os sujeitos pobres

Para Patto (1990) o foco era comparar esses sujeitos com os da classe dominante

considerados superiores cultural e intelectualmente Com isso tem-se o impulso dos testes

psicoloacutegicos enquanto instrumentos utilizados por psicoacutelogosas que vinham para legitimar a

condiccedilatildeo inferior do pobre e da pobreza na medida em que analisavam por exemplo variaacuteveis

comportamentais ou cognitivas de forma descontextualizada fragmentada e baseada na

avaliaccedilatildeo de elementos que ldquofaltavamrdquo no sujeito (Patto 1990)

Bock (2009) nos recorda para atentarmos agraves questotildees ideoloacutegicas voltadas aos

interesses burgueses que constituiacuteram a histoacuteria da ciecircncia psicoloacutegica Por isso entendemos

que mesmo sendo superadas determinadas praacuteticas e concepccedilotildees desenvolvidas napela aacuterea

ainda na atualidade nos deparamos com uma ciecircncia psicoloacutegica mais preocupada em ajustar

os indiviacuteduos agrave sociedade do que possibilitar o desenvolvimento de mediaccedilotildees que lhe

impulsionem a emancipaccedilatildeo ao inveacutes do ajustamento A discussatildeo acerca da emancipaccedilatildeo

humana passa por uma reformulaccedilatildeo de toda estruturaccedilatildeo da sociedade e pela superaccedilatildeo do

modo de produccedilatildeo capitalista uma vez que a atuaccedilatildeo profissional da psicologia deva ser

pautada na eacutetica e direcionada ao desenvolvimento humano em seus aspectos totais fiacutesicos

subjetivos e relacionais Praacuteticas de formataccedilatildeo de sujeitos para adaptaccedilatildeo do mercado de

trabalho extrapolam natildeo soacute as dimensotildees eacuteticas da atuaccedilatildeo profissional das aacutereas psis mas

acabam por reproduzir e reiterar loacutegicas excludentes e adoecedoras que desconsideram os

sujeitos de direito e a proacutepria sauacutede mental

70

Mesmo diante desse cenaacuterio contraditoacuterio observamos o histoacuterico esforccedilo para o

desenvolvimento de novas formas e praacuteticas psis voltadas para a compreensatildeo dos sujeitos em

suas muacuteltiplas relaccedilotildees e contextos Oliveira e Costa (2018) discorrem que eacute a partir da inserccedilatildeo

dos profissionais da psicologia no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) e no SUAS que ocorre

tambeacutem um movimento de ldquoexpansatildeo e diversificaccedilatildeo das atividades e praacuteticas psicoloacutegicasrdquo

(p 36) Com isso satildeo impulsionados ldquonovos debates em torno dos direcionamentos eacutetico-

poliacuteticos do trabalho dos[as] psicoacutelogos[as]rdquo (Oliveira amp Costa 2018 p 36)

Em relaccedilatildeo ao SUAS as autoras enfatizam que esse foi o primeiro momento da histoacuteria

da profissatildeo no qual efetivamente o trabalho dosas psicoacutelogosas teve como base a questatildeo

da ldquocondiccedilatildeo de pobrezardquo (Oliveira amp Costa 2018 p 38) Contudo muitas vezes a mesma foi

tomada como ldquoimpeditivo ou como empecilho a um trabalho efetivo e de qualidaderdquo (Oliveira

amp Costa 2018 p 39)

Retomamos tambeacutem a discussatildeo sobre a importacircncia da implementaccedilatildeo do ECA para

enfatizar que se mostrou como uma legislaccedilatildeo importante para as mudanccedilas em relaccedilatildeo agraves

compreensotildees das condiccedilotildees de vidas das crianccedilas e jovens brasileiros sobretudo quando esses

passam a ser entendidos como sujeitos de direitos Entretanto eacute nesta e em outras legislaccedilotildees

como o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)1 (Brasil 2012) que se

revelam outras contradiccedilotildees que colocam em xeque essas possibilidades de mudanccedila quando

dispotildeem sobre concepccedilotildees baseadas em ressocializaccedilatildeo e reeducaccedilatildeo Aleacutem do imaginaacuterio

social o qual (ainda) permanece adotando a antiga ideologia do menorismo enquanto um

sistema discriminatoacuterio das crianccedilas pobres e natildeo brancas

Batista (2013) faz uma criacutetica a essas perspectivas das possibilidades ldquorerdquo

(ressocializaccedilatildeo reeducaccedilatildeo reintegraccedilatildeo) as quais na verdade mantecircm praacuteticas punitivas e

excludentes que objetivam normalizar modos de comportamento Da mesma forma Calado e

Souza (2014) apontam que os fundamentos pedagoacutegicos das medidas socioeducativas satildeo

baseados em concepccedilotildees educativas que tecircm como foco os indiviacuteduos e suas capacidades de

ajustamento e regulaccedilatildeo diante das contradiccedilotildees sociais

Eacute importante frisar que a socioeducaccedilatildeo eacute vista como uma poliacutetica puacuteblica direcionada

para o resgate de uma diacutevida histoacuterica da sociedade brasileira com uma parte especiacutefica da

populaccedilatildeo jovem Poreacutem a histoacuteria tem mostrado muitas contradiccedilotildees entre as legislaccedilotildees

1 O Sinase eacute uma legislaccedilatildeo que regulamenta as medidas socioeducativas Instituiacutedo em 2012 seu objetivo eacute

demarcar princiacutepios regras e programas especiacuteficos a niacutevel municipal estadual e nacional de atendimento aos

jovens (Brasil 2012)

71

brasileiras e a execuccedilatildeo do que preconizam por meio das poliacuteticas puacuteblicas Tanto que no que

tange agrave legislaccedilatildeo brasileira atual mesmo com a implantaccedilatildeo do ECA e seus princiacutepios de

proteccedilatildeo integral diversas denuacutencias de violaccedilotildees de direitos humanos satildeo relatadas em espaccedilos

puacuteblicos na miacutedia e em ambientes acadecircmicos Calado e Souza (2014) alertam para as diversas

dimensotildees que assumem essas violecircncias de Estado enfatizando o quanto muitas vezes elas satildeo

aceitas socialmente enquanto uma forma de ldquocorreccedilatildeordquo eou ldquopuniccedilatildeordquo para os jovens Nesse

cenaacuterio mais uma vez temos a reproduccedilatildeo de uma loacutegica desigual excludente que visa o

funcionamento do mercado e natildeo o desenvolvimento humano

Passetti (2013) considera questionaacutevel que a mentalidade juriacutedica no Brasil permaneccedila

penalizadora e cada vez mais distante do ECA Entretanto ao analisarmos tal estatuto

percebemos que apesar de seus avanccedilos normativos o mesmo ainda se mostra distante de sanar

a referida diacutevida histoacuterica a que se propotildee Nessa perspectiva Cabral e Sousa (2004) apontam

que ldquoainda existe certa distacircncia entre aquilo que dispotildee a lei e a realidaderdquo (p 85) Entendemos

que mesmo passados quinze anos de tal constataccedilatildeo a mesma ainda se sustenta Pois apesar

dos avanccedilos no acircmbito dos Direitos Humanos que dispotildee a lei do Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo (Sinase) (Brasil 2012) as MSE ainda abarcam as tensotildees e as

(con)tradiccedilotildees do contexto social brasileiro em que o estigma social continua refletindo nos

nuacutemeros dos jovens apreendidos pela justiccedila2

Eacute nesse cenaacuterio que o trabalho dao psicoacutelogao eacute desenvolvido isto eacute em meio a uma

seacuterie de contradiccedilotildees estruturantes de um modelo social excludente Eidelwein (2007) destaca

que mesmo diante de determinaccedilotildees limitadoras que constituem o trabalho dao psicoacutelogao no

contexto capitalista ainda assim podem e devem ser construiacutedas possibilidades de superaccedilatildeo

dessas formas de relaccedilotildees Quanto as praacuteticas psi em termos imediatos um passo importante

que envolve o trabalho dao psicoacutelogao eacute a delimitaccedilatildeo das opccedilotildees eacuteticos-poliacuteticas teoacuterico-

metodoloacutegicas e teacutecnico-operativas (Eidelwein 2007) visto que satildeo essas que orientam

possibilidades de construccedilatildeo de novas formas de compreensatildeo atuaccedilatildeo e intervenccedilatildeo psi para

aleacutem das hegemocircnicas e excludentes apresentadas anteriormente em relaccedilatildeo aos jovens

brasileiros

2 Exemplo disso nos sistemas socioeducativos atuais bem como no sistema prisional observamos ldquoum padratildeo de

intervenccedilatildeo racialmente seletivo e higienista que se configura como forma de anulaccedilatildeo e eliminaccedilatildeo das pessoas

que compotildeem a categoria forjada dos ditos lsquoperigososrsquo e lsquodelinquentesrsquordquo (Instituto de Pesquisa Econocircmica e

Aplicada 2016 p 71) Isto eacute tais espaccedilos satildeo ocupados majoritariamente por jovens negros do gecircnero

masculino com baixa escolarizaccedilatildeo e renda

72

A mesma autora destaca que mesmo em meio ao modelo social excludente apresentado

ainda assim eacute possiacutevel construir possibilidades de emancipaccedilatildeo e superaccedilatildeo de condicionantes

da realidade social (Eidelwein 2007) Um exemplo a ser evidenciado eacute a adoccedilatildeo dos

pressupostos apresentados pela autora a partir da perspectiva da classe trabalhadora posto que

satildeo esses que orientam possibilidades de construccedilatildeo de novas formas de compreensatildeo atuaccedilatildeo

e intervenccedilatildeo psi para aleacutem das hegemocircnicas e excludentes apresentadas anteriormente em

relaccedilatildeo aos jovens brasileiros Ou seja o entendimento de pertencimento a classe trabalhadora

que natildeo abarca apenas os jovens mas tambeacutem os profissionais da psicologia deve ser pensado

enquanto entendimento basilar que estrutura nossas accedilotildees profissionais nossa categoria e que

estrutura a sociedade do capital

2 Meacutetodo

Este estudo de caso eacute um recorte de uma pesquisa mais ampla realizada pela primeira

autora no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia da Universidade Federal de Santa

Catarina finalizada em fevereiro de 2019 Na pesquisa de mestrado a autora investigou os

sentidos sobre o trabalho para quatro jovens utilizando a perspectiva teoacuterica e metodoloacutegica da

Psicologia Histoacuterico-Cultural preconizada por Lev Semyonovich Vigotski Alexis Leontiev e

Alexander Luria

Partindo de uma compreensatildeo Histoacuterico-Cultural esta pesquisa se trata de uma anaacutelise

qualitativa em que realizamos um estudo de caso com um jovem em cumprimento de medidas

socioeducativas em meio aberto Aleacutem do Diaacuterio de Campo utilizamos a entrevista

semiestruturada como ferramenta de pesquisa A entrevista foi composta pela identificaccedilatildeo

dados sociodemograacuteficos e por questotildees abertas sobre temas como trajetoacuterias de estudo e de

trabalho cotidiano de trabalho e interfaces entre trabalho medidas socioeducativas e atos

infracionais As entrevistas foram gravadas e transcritas

Em consonacircncia com a perspectiva teoacuterica e metodoloacutegica adotada as anaacutelises foram

realizadas por meio dos Nuacutecleos de Significaccedilatildeo inspirados em Aguiar Soares e Machado

(2015) Na dissertaccedilatildeo de mestrado as anaacutelises foram realizadas por meio de quatro etapas de

siacutenteses e aglutinaccedilotildees temaacuteticas Preacute-indicadores indicadores separados por jovem

indicadores entrelaccedilados e Nuacutecleos de Significaccedilatildeo Neste estudo de caso pela ausecircncia dos

outros jovens participantes as anaacutelises foram realizadas por meio de trecircs etapas sucessivas de

aglutinaccedilotildees e siacutenteses temaacuteticas Preacute-indicadores indicadores e Nuacutecleos de Significaccedilatildeo

73

Para a dissertaccedilatildeo foram formados trecircs nuacutecleos de significaccedilatildeo nomeados como

ldquoTrajetoacuterias de educaccedilatildeo e de trabalhordquo ldquoCotidiano e trabalhordquo ldquoInterfaces entre trabalho e

medidas socioeducativasrdquo A fim de dialogar com o objetivo deste trabalho construiacutemos dois

nuacutecleos de significaccedilatildeo o primeiro chamado ldquoTrajetoacuterias de Pedro uma vida marcada pelo

trabalhordquo e o segundo tal como a pesquisa de mestrado ldquoInterfaces entre trabalho e medidas

socioeducativasrdquo

O primeiro Nuacutecleo teraacute visibilidade nesta pesquisa de forma a contextualizar a vida do

jovem entrevistado e dar suporte para as discussotildees presentes do segundo nuacutecleo Nesse sentido

o uacuteltimo nuacutecleo que possui uma interface com as poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social e

instituiccedilotildees proacuteximas teraacute um papel central na discussatildeo do trabalho

Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos o projeto da investigaccedilatildeo foi

submetido e aprovado pelo Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSHUFSC)

e contamos com a autorizaccedilatildeo por escrito do jovem participante

3 Trajetoacuterias de Pedro uma vida marcada pelo trabalho

Pedro eacute um jovem extrovertido que tem muitas histoacuterias a serem contadas sobre a sua

vida histoacuterias estas que iniciaram tatildeo rapidamente desde o iniacutecio do contato com a pesquisadora

que muitas natildeo puderam ser registradas no gravador Pedro se declarou como pardo tem 18

anos de idade e no momento da entrevista estudava no segundo ano do ensino meacutedio do EJA

- Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos O jovem tem uma extensa trajetoacuteria nos serviccedilos de Proteccedilatildeo

Social Especial de Meacutedia e Alta Complexidade Em sua adolescecircncia frequentou o Serviccedilo de

Proteccedilatildeo e Atendimento Especializado a Famiacutelias e Indiviacuteduos (PAEFI) em seguida transitou

entre medidas socioeducativas em meio fechado e meio aberto em diversos municiacutepios e

estados No momento em que a pesquisa foi realizada cumpria medida de LA e PSC no

municiacutepio em que residia

O municiacutepio em questatildeo estaacute localizado no litoral catarinense Sobre seu bairro de

residecircncia Pedro diz que mora em um ldquobecordquo caracterizado por ele como o menor bairro da

cidade por essa razatildeo relata natildeo frequentar muitos locais da regiatildeo O jovem mora com sua

avoacute um irmatildeo de 17 anos e uma irmatilde de 14 anos Aleacutem de seus dois irmatildeos diz ter uma irmatilde

por parte de pai trecircs irmatildes que foram segundo o jovem ldquoadotadas por consideraccedilatildeordquo e um

irmatildeo que faleceu antes do nascimento Sua matildee reside em outro municiacutepio de Santa Catarina

74

e seu pai encontra-se encarcerado em um presiacutedio de seguranccedila maacutexima tambeacutem em Santa

Catarina motivo este que relata ter ingressado no PAEFI

Sobre as ocupaccedilotildees familiares a avoacute com quem reside trabalha haacute muito tempo em uma

padaria da regiatildeo Aleacutem de trabalhar como doceira trabalha com revendas de cosmeacuteticos

nacionais A irmatilde caccedilula por sua vez trabalha informalmente nas temporadas de veratildeo com os

tios vendendo milho churros e aacutegua Em relaccedilatildeo ao irmatildeo Pedro diz que o jovem ldquoeacute

malandratildeordquo pois as vezes aparece com dinheiro cuja origem eacute desconhecida

Em relaccedilatildeo ao contexto de trabalho Pedro traz muitas histoacuterias e diz que sempre teve

muito incentivo de sua famiacutelia para trabalhar Na infacircncia havia um engenho de farinha em que

todos os familiares trabalhavam inclusive Pedro Poreacutem o engenho entrou em processo de

falecircncia Em seguida Pedro trabalhou em diferentes praias vendendo castanhas-de-caju e

fazendo bijuterias artesanais segundo o jovem ldquoeu mesmo fazia e eu mesmo vendiardquo Por certo

tempo de sua vida o jovem diz que ganhou bastante dinheiro realizando atividades ligadas ao

narcotraacutefico e atividades afins

Atualmente Pedro e seu tio trabalham na aacuterea de construccedilatildeo civil realizando o serviccedilo

de calfinagem isto eacute o acabamento de paredes internas de casas e apartamentos com cal fina

Em concomitacircncia com esse trabalho o jovem e sua tia realizaram um curso de importaccedilatildeo pela

internet e hoje importam produtos de outro paiacutes para vender no Brasil

Como vimos Pedro iniciou sua trajetoacuteria de trabalho de forma precoce Aos sete anos

de idade jaacute desenvolvia trabalhos na aacuterea alimentiacutecia em conjunto com sua famiacutelia Calil (2003)

aponta que ldquohistoricamente o trabalho eacute uma presenccedila constante na vida de crianccedilas e

adolescentes das camadas popularesrdquo (p 151) A condiccedilatildeo de pobreza e de trabalho infantil

acabam marcando a experiecircncia em relaccedilatildeo ao trabalho e a proacutepria vida em geral para esses

sujeitos Tendo em vista que os jovens passam a significar e a construir sentidos tomando

contato com outras realidades a realidade em que o trabalho era a uacutenica forma de garantir o

sustento familiar (Pereira 2003) eacute constitutiva na vida de Pedro

Para que conseguisse um trabalho com retorno financeiro satisfatoacuterio Pedro contou que

teve que trabalhar bastante durante sua vida Todos os seus trabalhos ateacute o momento da

entrevista foram considerados pelo jovem como ldquoautocircnomosrdquo ndash ldquoeu mesmo fazia e eu mesmo

vendiardquo ndash embora sempre atrelados aos trabalhos familiares e lugares puacuteblicos

Trabalhei muito em diversos lugares Trabalhei na praia igual a minha irmatilde Fazia tipo

aqueles negoacutecios de bijuteria artesanal O meu tio fazia no quadro eu fazia aqueles negoacutecios

75

de prosperidade incenso noacutes fazia tambeacutem coisas pra colocar tabaco vendia castanha na praia

Trabalhei muito sempre em lugares que tinha bastante pessoas (Pedro)

A condiccedilatildeo de pobreza persistente conforme Calil (2003) leva os adultos a utilizarem

o trabalho infantil como estrateacutegia de sobrevivecircncia do grupo familiar Nesse sentido embora

Pedro afirme que toda sua trajetoacuteria laboral foi como ldquoautocircnomordquo o suporte familiar

possibilitou sua autonomia no trabalho na medida em que necessitava auxiliar na sobrevivecircncia

proacutepria e da famiacutelia (Calil 2003) Eacute interessante perceber como tais relaccedilotildees entre trabalho e

famiacutelia se mostram paradoxais pois o trabalho infantil foi utilizado como subsiacutedio para a

complementaccedilatildeo da renda familiar atrelando-se assim a uma forma de sobrevivecircncia familiar

ao mesmo tempo em que as experiecircncias de trabalho para a sobrevivecircncia de si e de sua famiacutelia

lhe permitiram atribuir sentidos de autonomia e emancipaccedilatildeo precoce

O jovem relatou que desde sua juventude trabalhou no traacutefico de drogas e em atividades

afins

Natildeo era soacute traacutefico neacute Eu com 15 anos era patratildeo tinha duas trecircs biqueiras3 jaacute Jaacute tinha 15

anos e jaacute cuidava neacute E comprava coisas com caras que tavam dentro do sistema neacute Comprava

creacutedito pra eles dava telefone pra eles pra falar com eles Jaacute tava bem mais avanccedilado tambeacutem

entendeu (Pedro)

Consideramos tal como Feffermann (2006) o traacutefico de drogas como um fenocircmeno que

transpassa a ordem policial e criminal pois estaacute inserido na sociedade como parte integrante do

sistema social poliacutetico e econocircmico vigente Este sistema ldquoalicerccedilado na acumulaccedilatildeo do

capital cria e reproduz uma reserva de forccedila de trabalho desempregada ou parcialmente

desempregada e uma grande parcela desta populaccedilatildeo passa a desenvolver estrateacutegias de

sobrevivecircncia sendo que alguns transpassam o limite da legalidaderdquo (Feffermann 2006 p

209)

O trabalho no traacutefico de drogas eacute portanto uma atividade que surge para o jovem como

resposta a uma marginalidade econocircmica (Feffermann 2006) e que possui caracteriacutesticas de

um trabalho duplamente informal pois aleacutem de ser um trabalho sem regulamentaccedilatildeo formal

ldquoeacute um mercado de circulaccedilatildeo de mercadorias iliacutecitas cuja atividade eacute em si mesmo

criminalizadardquo (Misse 1999 p 293)

Em seu trabalho atual o jovem afirma conciliar duas formas de trabalho os serviccedilos de

calfinagem e de revenda de produtos importados O trabalho com cal fina por ser um serviccedilo

informal natildeo gera um salaacuterio fixo mas sim uma remuneraccedilatildeo por dia de trabalho conforme o

metro de revestimento realizado por exemplo ldquovamos fazer as contas faz uns 15 20 metros

3 Terminologia coloquial que significa o lugar onde se vendem substacircncias psicoativas

76

por dia daiacute agraves vezes 18 aiacute daacute uns 400 300 [reais] por diardquo A flexibilidade desse tipo de

trabalho eacute considerada pelo jovem como um aspecto positivo tendo em vista que natildeo precisa

estar subordinado a ningueacutem ldquose eu trabalhei hoje eu ganho se eu natildeo trabalhar eu natildeo ganho

eu natildeo preciso ficar dependendo de ningueacutem escutando coisa dos outrosrdquo

Por residir em um municiacutepio onde a construccedilatildeo civil eacute um dos principais ldquomotoresrdquo da

economia regional o jovem diz que ldquosempre tem bastante serviccedilo mas tem bastante

concorrecircncia tambeacutem mas daiacute eu melhoro o preccedilo e melhoro a qualidade aiacute sempre vai neacuterdquo

O jovem trabalha durante o dia e estuda no periacuteodo noturno

Segundo Mattos e Chaves (2010) para conciliar o tempo de estudo e de trabalho que

ocorrem em turnos diferentes do dia os jovens precisam (re)organizar a rotina diaacuteria para

acomodar a atividade laboral Os mesmos autores dizem que o tempo gasto no deslocamento

entre o trabalho e a escola foi apontado em sua pesquisa empiacuterica com jovens trabalhadores

como uma dificuldade a ser superada Tais constataccedilotildees tambeacutem foram encontradas no discurso

de Pedro o jovem diz que precisa sair mais cedo do trabalho deixando de ganhar mais dinheiro

no dia pois a localizaccedilatildeo da escola eacute afastada dos locais onde normalmente trabalha

A conciliaccedilatildeo de estudo e trabalho faz com que o cotidiano de Pedro seja exaustivo isso

se deve agrave carga horaacuteria de trabalho agrave distacircncia da escola e ao fato de ser um trabalho pesado

ldquoEacute braccedilal pra caramba toda hora eu tenho peso na matildeordquo ldquoEacute corrido pra mim tambeacutem eu

chego cansado porque o cal fino cansardquo ldquoeacute calo na matildeo pra carambardquo

Antunes (2011) ao descrever os diversos modos de ser da informalidade cita os que se

inserem em setores de prestaccedilatildeo de serviccedilos sem garantias e direitos sociais Caso fiquem

doentes pelo excesso de trabalho braccedilal por exemplo correm o risco de perder sua renda Outra

caracteriacutestica sobre os modos de ser na informalidade diz respeito agrave carga horaacuteria de trabalho

segundo Antunes (2011 sp) ldquonatildeo haacute horaacuterio fixo de trabalho e as jornadas de trabalho levam

frequentemente ao uso das horas vagas para aumentar a renda oriunda da atividaderdquo Tal

realidade pode ser ilustrada pela fala de Pedro ao dizer que ldquo[em] dois dias eu tive que

trabalhar cheio Ateacute 8 9 horas da noite no saacutebado por exemplo fiquei ateacute 9 horas da noite

trabalhando porque a gente faz pra terminarrdquo

Dialogando sobre aspectos gerais sobre a categoria trabalho Pedro definiu a mesma

enquanto uma forma de rotina que garante sua sobrevivecircncia Tal definiccedilatildeo acaba por

evidenciar sua origem social

Trabalho pra mim eacute uma coisa que a pessoa precisa da nossa comunidade da minha

comunidade mesmo eu natildeo sei da tua neacute mas na minha comunidade eu nasci na pobreza

77

neacute Eu preciso de um trabalho pra crescer neacute pra adquirir Trabalho eacute o que a pessoa precisa na

minha comunidade por exemplo que todo mundo precisa e natildeo tem taacute em falta neacute E hoje em

dia tem bastante pessoa que natildeo consegue trabalho Taacute em crise (Pedro)

A condiccedilatildeo de pobreza situada por Pedro eacute considerada uma das expressotildees da questatildeo

social a qual se manifesta dentre muitos outros determinantes pelas desigualdades de renda

entre os grupos sociais

Para os grupos sociais empobrecidos que vivem em condiccedilotildees precaacuterias de trabalho

basta uma situaccedilatildeo conjuntural de crise de subsistecircncia para que esta populaccedilatildeo seja suscetiacutevel

de ser desestabilizada tanto pela queda de produccedilatildeo de atividades quanto pelo desemprego

conforme afirma Castel (2008) Tal caracteriacutestica eacute visualizada no trecho em que Pedro relata

sobre a crise econocircmica que se faz presente no atual contexto brasileiro a qual afetou e vem

afetando pessoas que residem em sua comunidade (e que compartilham de sua situaccedilatildeo de

pobreza) agravando a condiccedilatildeo de trabalhadores subempregados e desempregados

Em referecircncia a seu meio social e a seu trabalho com a cal fina o jovem diz que realiza

um trabalho o qual tem condiccedilotildees de executar de modo a obter um retorno financeiro ldquoeu tenho

condiccedilotildees que eu tenho como trabalhar eacute um jeito que eu acho de guardar mais dinheirordquo

Atrelado a isso o trabalho de importaccedilotildees que realiza com sua tia eacute um ldquotrabalho que me ajudou

muito porque pra mim ter condiccedilotildees de taacute vendendo isso taacute importando passei por bastante

coisa e foi difiacutecil natildeo eacute faacutecilrdquo ldquoeu tenho o maior orgulho de venderrdquo Mesmo diante das

inuacutemeras contradiccedilotildees que perpassam o cotidiano de trabalho de Pedro o jovem se refere com

sentimentos positivos em relaccedilatildeo agraves atividades que vem desenvolvendo

Eu fico bastante orgulhoso de mim porque eu tenho aprendido essa profissatildeo e o significado

dela eacute que me motiva a cada dia Eacute o dinheiro neacute pra eu ter o meu sustendo e eu sofri bastante

pra poder fazer o que eu faccedilo E eu me orgulho muito e tem um significado de gratidatildeo De

aprender mesmo a fazer esse negoacutecio (Pedro)

Isto eacute mesmo desenvolvendo trabalhos informais e conciliando uma rotina exaustiva

Pedro expressa orgulho em revender produtos importados e executar serviccedilos de calfinagem

uma vez que esses trabalhos lhe trouxeram autonomia financeira em sua vida Por fim podemos

considerar que a histoacuteria de Pedro eacute marcada desde sua infacircncia pela necessidade de muito

trabalho

4 Manifestaccedilotildees da questatildeo social Interfaces entre trabalho Psicologia e MSE

A histoacuteria de Pedro nos revela que aleacutem de uma vida marcada por muito trabalho o

jovem vivenciou uma longa experiecircncia com alguns equipamentos de assistecircncia social Por

78

exemplo antes de cumprir a medida socioeducativa ele relata que frequentou o CREAS no

serviccedilo de Proteccedilatildeo e Atendimento Especializado a Famiacutelias e Indiviacuteduos (PAEFI) desde os

14 anos de idade junto a seu irmatildeo Ao relatar tais experiecircncias Pedro destaca que

mas daiacute ela era psicoacuteloga tambeacutem Mas natildeo era referente ao ato infracional Mas era tipo na

minha famiacutelia tinha pessoa que tava fazendo ato infracional e ela sabia tinha denuacutencia E eu

tinha que vir aqui pra ela ver meu psicoloacutegico pra eu natildeo cair na vida daiacute tinha que vir (Pedro)

Cruz Hillesheim e Guareschi (2005) alertam para a existecircncia de praacuteticas psis

hegemocircnicas em serviccedilos de prevenccedilatildeo e vigilacircncia direcionada aos jovens ldquopotencialmente

perigososrdquo que acabam por se desdobrar em uma concepccedilatildeo dicotomizada de infacircncia dita

normal ideal e desejaacutevel em oposiccedilatildeo a uma infacircncia de risco Nesse sentido eacute interessante

observar a referecircncia que Pedro faz ao trabalho da psicoacuteloga que lhe prestou atendimento

Enquanto profissional que ao desenvolver seu trabalho tem como horizonte manter a

estabilidade das possibilidades de desenvolvimento dele conforme um padratildeo do que eacute

considerado normal e natildeo a partir das contradiccedilotildees que envolvem a sua vida concreta

Entendemos que o trabalho doa psicoacutelogoa na aacuterea da assistecircncia social eacute psicossocial

ou seja eacute um serviccedilo realizado junto a profissionais do serviccedilo social e logo supera as praacuteticas

tradicionais da psicologia tais como atendimento individual e cliacutenico Em relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo

profissional nos serviccedilos do PAEFI as atividades satildeo realizadas conforme as demandas das

pessoas atendidas por isso as atuaccedilotildees profissionais satildeo diversas como orientaccedilotildees sobre seus

direitos sociais encaminhamentos para outros equipamentos da rede atendimento

especializado ateacute oficinas com famiacutelias (Brasil 2012) nesse sentido constitui-se uma gama de

possibilidades para o desenvolvimento do trabalho doa psicoacutelogoa no respectivo serviccedilo

Pedro nos relata ter passado por grande parte das MSEs que estatildeo tipificadas no ECA

tais como medida socioeducativa de internaccedilatildeo de liberdade assistida e de prestaccedilatildeo de

serviccedilos agrave comunidade aleacutem de jaacute ter pago cestas baacutesicas ldquoJaacute paguei cesta baacutesica jaacute paguei

um monte de coisardquo As trajetoacuterias de Pedro nos respectivos serviccedilos o PAEFI como forma de

ldquoproteccedilatildeo e prevenccedilatildeordquo e a medida socioeducativa como forma de ldquorecuperaccedilatildeo e reeducaccedilatildeordquo

se desdobram na relaccedilatildeo experienciada pelas crianccedilas e adolescentes pobres que ora satildeo

consideradas perigosas necessitando de medidas de ldquocorreccedilatildeordquo ora estatildeo em perigo de ser e

precisam de ldquoproteccedilatildeordquo e ldquoprevenccedilatildeordquo (Rizzini 1997) E interessante pontuar que tal

representaccedilatildeo ambivalente foi construiacuteda no advento da urbanizaccedilatildeo e da industrializaccedilatildeo

brasileira estando associada a determinados grupos sociais do jovem pobre negro morador

de periferia na medida em que eacute transformado em ldquomenor infratorrdquo (Meneghetti 2018) pela

periculosidade invariavelmente atrelada agraves classes populares (Rizzini 1997)

79

Durante seu percurso de internaccedilotildees o jovem diz que ldquovivia dopadordquo pois enquanto

permanecia no centro de internaccedilatildeo recebia psicotroacutepicos com receita meacutedica A

medicalizaccedilatildeo4 de jovens em ambientes socioeducativos de internaccedilatildeo eacute um fato que ocorre

frequentemente e eacute um tema presente na literatura brasileira (Anjos 2018 Vicentin Gramkow

amp Rosa 2010) portanto eacute tambeacutem um tema de sauacutede puacuteblica

Historicamente as praacuteticas psis estiveram atreladas ao modelo hegemocircnico pautado na

medicina e psiquiatria em que as praacuteticas cliacutenicas estatildeo direcionadas agrave adaptaccedilatildeo das pessoas

na busca por padrotildees de normalidade A partir disso problematizamos a responsabilidade eacutetico-

poliacutetica que constitui o trabalho dosas psicoacutelogosas quando natildeo satildeo questionados os processos

de medicalizaccedilatildeo patologizaccedilatildeo e institucionalizaccedilatildeo em ambientes socioeducativos Mesmo

que a categoria de psicoacutelogosas natildeo possa receitar medicamentos a atuaccedilatildeo nestes serviccedilos

conta com uma equipe teacutecnica multidisciplinar o que coloca todosas os profissionais

envolvidos num lugar de responsabilidade e postura eacutetica com suas praacuteticas Assim reiteramos

a necessidade de superaccedilatildeo dessa loacutegica uma vez que fenocircmenos sociais devem ser tratados

em sua totalidade e singularidade e natildeo como doenccedilas ou como comportamentos a serem

medidos e ldquoajustadosrdquo de forma individual

Diante disso entendemos a necessidade do desenvolvimento de um trabalho

efetivamente multidisciplinar no acircmbito da assistecircncia social envolvendo desde meacutedicosas

psicoacutelogosas assistentes sociais advogados educadores sociais entre outros Em certa

medida a legislaccedilatildeo da poliacutetica jaacute prevecirc essa disposiccedilatildeo contudo o que se observa eacute que apesar

da existecircncia dessa prerrogativa muitas vezes os profissionais acabam atuando de forma

fragmentada

No que diz respeito agrave interface entre medidas socioeducativas ato infracional e trabalho

na vida de Pedro o jovem relata suas experiecircncias de trabalho dentro e fora do campo da

legalidade Nesse sentido o traacutefico de drogas para o jovem eacute significado como uma atividade

importante pois remete a sua adolescecircncia e sua forma de sobrevivecircncia naquele momento

Segundo o jovem

antes eu soacute traficava natildeo trabalhava soacute vivia das coisas erradas Era soacute coisa errada realmente

era soacute coisa errada Eu quando tinha uma cabeccedila mais era mais menor tinha uma cabeccedila

diferente de pensar eu achava isso uma maneira de ganhar dinheiro hoje em dia eu jaacute natildeo acho

mais (Pedro)

4 Salientamos a necessidade de compreender as muacuteltiplas determinaccedilotildees que envolvem tal temaacutetica tais como a

patologizaccedilatildeo da infacircncia os mecanismos de controle social da populaccedilatildeo juvenil a sauacutede mental em instituiccedilotildees

socioeducativas a ideia de periculosidade atrelada aos transtornos mentais entre outras

80

Feffermann (2006) destaca que o mercado ilegal surge como uma das respostas agrave

marginalidade econocircmica para jovens pertencentes agraves classes populares viacutetimas do crescimento

econocircmico desigual Sabendo da complexidade do trabalho e do traacutefico de drogas enquanto

importante dimensatildeo da constituiccedilatildeo subjetiva e natildeo querendo esgotar tais dimensotildees

afirmamos a partir dos relatos de Pedro que o traacutefico de drogas esteve presente em sua vida

como uma estrateacutegia de sobrevivecircncia e um meio de ganhar dinheiro

Entendemos que o trabalho doa psicoacutelogoa nas poliacuteticas puacuteblicas com questotildees

relacionadas a atos infracionais natildeo deve ser pautado em concepccedilotildees moralizantes que

contribuem para a criminalizaccedilatildeo da juventude envolvida nessas relaccedilotildees Mas sim uma

atuaccedilatildeo voltada para compreender o lugar que tais relaccedilotildees assumem na vida desses jovens e

para a construccedilatildeo de soluccedilotildees coletivas que visam superar esse contexto de produccedilatildeo de

criminalidade no qual se constituem as vidas de tantos jovens

Segundo Oliveira e Costa (2018) o desafio da psicologia consiste em compreender que

eacute a proacutepria pobreza que condiciona produz e reverbera os mais variados problemas

apresentados no cotidiano da profissatildeo Natildeo se trata apenas de uma formaccedilatildeo precaacuteria que natildeo

prepara seus profissionais para atuar em contextos de pobreza enquanto uma postura eacutetica

social e de classe comprometida com nossa realidade mas tambeacutem a proacutepria estrutura da

economia e da poliacutetica que satildeo permeadas por interesses da classe dominante (Oliveira amp Costa

2018) Por exemplo uma atuaccedilatildeo voltada a inserccedilatildeo de jovens no mercado de trabalho parece

desconsiderar a realidade dezenas de milhotildees desempregados na atualidade isto eacute o

desemprego estrutural

Em relaccedilatildeo ao cotidiano de trabalhadores do traacutefico outro aspecto a ser visibilizado diz

respeito ao cotidiano de sucessivas violecircncias atreladas agrave atividade Pedro revela ter

interrompido as atividades de traacutefico de drogas pois estava em busca de sua liberdade

Tambeacutem pelo amor que sente por sua famiacutelia e pelo medo de morrer ou de perder algum

membro de sua famiacutelia para a violecircncia por isso diz ter se distanciado das atividades ilegais e

passou a desenvolver atividades na construccedilatildeo civil conforme jaacute mencionamos

Poreacutem esse tempo de permanecircncia em atividades natildeo legalizadas fizeram com que o

jovem ficasse ldquorotuladordquo pela poliacutecia militar e sofresse diversas violaccedilotildees de direitos Segundo

o jovem tais violaccedilotildees acontecem com frequecircncia

foi de noite Eu tava na rua da minha casa eles me pegaram laacute eu tava vendendo droga eles

sabiam neacute tinha muita denuacutencia jaacute sabiam e eu tava marcado jaacute avisaram Eu natildeo tava

escutando eles eles podiam falar eu natildeo tava nem aiacute Daiacute foi o que aconteceu eles me pegaram

perto da 130 1h me levaram e me bateram (Pedro)

81

De acordo com Wacquant (2001) o uso constante da violecircncia pela poliacutecia militar

contra pessoas de camadas populares banalizou a brutalidade no seio do Estado Aleacutem disso o

uso da violecircncia policial estaacute ancorado em concepccedilotildees hieraacuterquicas e paternalistas que atingem

trabalhadores e pessoas ldquoem conflito com a leirdquo de forma que a manutenccedilatildeo da ordem de classe

e da ordem puacuteblica se confundem

Na histoacuteria de Pedro a violecircncia policial natildeo se restringe ao momento imediato da

abordagem policial mas sim se constitui em ameaccedilas constantes napara vida do jovem ldquoEles

[policiais militares] avisaram na frente do advogado falaram ldquoah se noacutes te pegar de novo

na rua vocecirc jaacute sabe a gente vai te matar [me] ameaccedilou ameaccedilou assim com o advogado

vendo eu natildeo meti um processo neles porque eu natildeo quero morrerrdquo A fala de Pedro eacute

reveladora de um contexto no qual natildeo raramente as ameaccedilas de morte se materializam em

assassinatos de jovens pobres e negros por parte da poliacutecia entrando para as estatiacutesticas de

genociacutedio dessa populaccedilatildeo

Eacute importante ressaltar que mesmo cumprindo as medidas socioeducativas e afirmando

que encerrou as atividades ligadas ao narcotraacutefico as abordagens policiais e violaccedilotildees de

direitos continuam na vida de Pedro Desse modo Pedro poderia ser situado como provaacutevel

alvo daquilo que Meneghetti (2018) considera como ldquocisma policialrdquo a qual eacute constituiacuteda a

partir da imagem construiacuteda em relaccedilatildeo aos jovens desde sua primeira ocorrecircncia sobretudo

caso ele apresente atributos baacutesicos de suspeiccedilatildeo em termos de gecircnero raccedila e classe somados

agrave aparecircncia No caso de Pedro observamos a seguinte situaccedilatildeo

Aqui acontece direto Me pegaram em quatro agora e me pegaram 100 reais Faz duas ou trecircs

semanas tava com 500 reais no bolso e eles [policiais militares] falaram ldquode quem eacute esse

dinheiro aquirdquo E eu falei ldquoacabei de receber tava voltando do serviccedilordquo Me pegaram eu tava

com roupa e o sapatatildeo de tecircnis e tudo Me pegaram eles me conhecem neacute Se eles pegassem

os 500 reais que eu tivesse recebido no dia aiacute meu deus eu ia levar na corregedoria e eles iam

se incomodar neacute Soacute que por 100 reais eu natildeo ia me incomodar Depois ele vai querer me matar

ainda neacute (Pedro)

Em busca de desfazer o estereoacutetipo ldquomenor suspeitordquo Pedro recorre ao trabalho O

uniforme de trabalho ldquoroupa e o sapatatildeordquo adquire um sentido para aleacutem de subsistecircncia mas

sim envolve uma possibilidade de condiccedilatildeo de seguranccedila relacionada a um status de natildeo

delinquecircncia Ao mesmo tempo em que Pedro enfatiza o orgulho e a autonomia que o seu

trabalho proporciona tambeacutem retrata que a realidade de desemprego estaacute presente para muitas

pessoas que residem ao seu redor Isto eacute a contradiccedilatildeo sobressalente nos sentidos sobre o

trabalho diz respeito ao sistema social e econocircmico que precariza as condiccedilotildees mais baacutesicas de

82

existecircncia tirando das pessoas o direito ao trabalho que se tratando de uma classe que necessita

trabalhar para (sobre)viver trata-se de uma ameaccedila agrave proacutepria vida humana

Consideraccedilotildees finais

Este trabalho teve como objetivo compreender as trajetoacuterias de vida de um jovem em

cumprimento de medidas socioeducativas e algumas reflexotildees acerca das praacuteticas psis em

serviccedilo da poliacutetica de assistecircncia social Ao longo do desenvolvimento da pesquisa que deu

origem agrave presente reflexatildeo diversos questionamentos sobre essas relaccedilotildees principalmente

acerca do trabalho doa psicoacutelogoa no ambiente socioeducativo foram se constituindo no

diaacuterio de campo Como acolher as histoacuterias dos jovens que estatildeo por vir Como abordar as

temaacuteticas de cunho institucional sem que gere desconforto ou que criminalize ainda mais os

jovens Qual eacute a melhor forma ou instrumentos de trabalho para que eles se sintam acolhidos

numa instituiccedilatildeo direcionada a temaacuteticas que transversalizam questotildees sobre criminalidade

Como a psicologia pode ajudar na superaccedilatildeo de condiccedilotildees de vidas precaacuterias

Os desafios postos na construccedilatildeo de praacuteticas psi que indiquem possibilidades de romper

com preconceitos e concepccedilotildees que naturalizam a condiccedilatildeo de pobreza em relaccedilatildeo aos jovens

satildeo muitos Tais desafios apontam tanto para a revisatildeo das concepccedilotildees teoacutericas que sustentam

as praacuteticas como para as proacuteprias praacuteticas dosas psicoacutelogosas Oliveira e Costa (2018) nos datildeo

uma pista para que possamos compreender e superar tais condiccedilotildees qual seja pressupor que o

cerne das contradiccedilotildees postas na atualidade estaacute situado nas relaccedilotildees capital-trabalho E por

isso por mais acessiacutevel inclusiva ou democraacutetica que sejam as poliacuteticas puacuteblicas elas ainda

em maior ou menor grau satildeo engendradas nesse contexto de contradiccedilotildees

Entendemos que essa compreensatildeo retoma a funccedilatildeo histoacuterica social e poliacutetica do

trabalho doa psicoacutelogoa E neste caso pensar e concretizar possibilidades de superaccedilatildeo do

que estaacute posto em relaccedilatildeo a ele desdobra-se em uma responsabilidade eacutetico-poliacutetica com a

classe trabalhadora brasileira isto eacute com a proacutepria de vida de jovens como Pedro Destacamos

na histoacuteria de Pedro a persistecircncia de desigualdades de classe constituiacuteda por relaccedilotildees

complexas de uma estrutura social precaacuteria e perversa que coloca a vida humana nas margens

Portanto eacute importante resgatar a urgecircncia de uma praacutetica profissional baseada na eacutetica na

permanente reflexatildeo e autocriacutetica e ainda comprometida com a realidade e com os jovens

brasileiros As diversas trajetoacuterias de trabalho de Pedro evidenciam o quanto na vida deste

jovem trabalhador a ocupaccedilatildeo em serviccedilos informais e ilegais se colocou como uacutenica

83

possibilidade assim como para outros jovens inclusive de sua proacutepria famiacutelia E tambeacutem o

quanto tais condiccedilotildees o colocaram em relaccedilotildees contraditoacuterias e sucessivas com as poliacuteticas de

assistecircncia social

Por fim reiteramos como ressaltam Mayer e Nuacutentildeez (2017) a importacircncia de

considerarmos processos de longo prazo e natildeo apenas conjunturas especiacuteficas pois ao conhecer

a constituiccedilatildeo histoacuterica do Estado brasileiro e a trajetoacuteria de Pedro comum a tantos jovens de

camadas populares cabe a Psicologia contribuir para identificar e natildeo permitir a reproduccedilatildeo de

padrotildees e loacutegicas excludentes de praacuteticas psicologizantes correcionistas e culpabilizadoras de

questotildees que satildeo de ordem social

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86

Capiacutetulo 5

Medidas socioeducativas as narrativas de adolescentes e o uso da literatura

como disparadores de anaacutelise

Beatriz Saks Hahne

Adriana Marcondes Machado

Introduccedilatildeo

Seratildeo apresentadas a partir de pesquisa de doutorado em andamento1 experiecircncias

construiacutedas em parceria com adolescentes e jovens que cumprem ou cumpriram recentemente

medida socioeducativa Satildeo meninos e meninas que ao praticarem ato infracional tecircm suas

trajetoacuterias carregadas de vivecircncias em unidades de internaccedilatildeo e se percebem transitando na

comunidade em que habitam tomados como autores de ato infracional isso estaacute presente na

famiacutelia na escola nos olhos dos vizinhos e na relaccedilatildeo com a poliacutecia

Situada no departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do

Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo a incursatildeo acadecircmica no campo das

medidas socioeducativas se alia agrave afirmaccedilatildeo da Psicologia como lugar do debate a favor da

garantia de direitos Para tanto um primeiro tensionamento parece necessaacuterio falamos em

Psicologias no plural compreendendo seu saber inserido em uma disputa (Coimbra amp

Nascimento 2008) de mundos representada por aquilo que eacute solicitado de sua praacutetica

Profissionais do campo ldquopsirdquo satildeo frequentemente convocados a agir por meio de verbos como

nomear definir e significar demandados a corrigir caminhos ou de outra forma no que diz

respeito agrave discussatildeo deste artigo a ressocializar o adolescente que ldquodesviardquo (Batista 2003)

Com a perspectiva de ampliar a discussatildeo sobre o trabalho com os adolescentes

atendidos por essa poliacutetica puacuteblica a pesquisa de doutorado que alimenta estas linhas realiza a

construccedilatildeo de narrativas com jovens que hoje cumprem medidas socioeducativas de meio

aberto ndash Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade e Liberdade Assistida ndash ou que possuem trajetoacuteria

anterior de cumprimento de alguma das seis sanccedilotildees descritas na Lei 8069 (Brasil 1990)

Importa escutar histoacuterias para alongar o olhar em relaccedilatildeo a um horizonte que diz respeito a

vidas ameaccediladas ndash de sua dignidade e do corpo fiacutesico Na intenccedilatildeo de conhecer o que esses

1 O trabalho de campo da presente pesquisa foi iniciado em dezembro de 2018

87

adolescentes contariam sobre suas trajetoacuterias em meio ao tempo de cumprimento das medidas

socioeducativas tomamos o ato infracional vinculado ao contexto histoacuterico que tambeacutem o

constitui

Certos modos de pensar e de operacionalizar os atendimentos teacutecnicos e os

encaminhamentos aos serviccedilos e atores do Sistema de Garantia de Direitos2 aleacutem da elaboraccedilatildeo

do Plano Individual de Atendimento3 e dos relatoacuterios enviados ao poder judiciaacuterio fazem colar

nos adolescentes discursos de uma identidade totalizada Falamos dos procedimentos que se

repetem ao natildeo considerarem aquilo que singularmente suas trajetoacuterias solicitam Ao

contribuir para um certo enrijecimento identitaacuterio (Rolnik 2006) afirmando determinadas

formas de vida em detrimento de outras ndash avaliaccedilatildeo sempre do campo da moral e da

arbitrariedade ndash potencializam as chances de que todos fiquem assimilados como adolescentes-

infratores4

Esse modo de operar cria elo com a natildeo variaccedilatildeo da vida pois atribuindo agrave medida

socioeducativa o objetivo de ressocializar arriscamos ver no jovem algueacutem desinteressado ou

destoante que natildeo consegue alcanccedilar a ideia socialmente constituiacuteda do que seria uma vida boa

e correta Essa posiccedilatildeo tambeacutem produz efeitos nos profissionais cujas praacuteticas ficam menos

criativas e mais pressionadas a responder a demandas judiciais que em geral natildeo se articulam

aos desafios dos enfrentamentos cotidianos Opor-se a esse modo de pensar a juventude implica

uma atuaccedilatildeo que conquiste discussotildees elaboraccedilotildees e conversas para que a cada passo as

estrateacutegias de atendimento considerem as especificidades daqueles para quem e com quem

trabalhamos

A produccedilatildeo da realidade passa necessariamente pelas trocas que se datildeo no mundo de

forma que a duacutevida pode ser alimento para a accedilatildeo ao natildeo restringir a vida a ser aquilo que se

supotildee que deveria ser Nessa reduccedilatildeo fica de fora o singular cuja importacircncia eacute permitir ver o

2 Resoluccedilatildeo 113 Conanda (2006) ldquoArt 1ordm O Sistema de Garantia dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente

constitui-se na articulaccedilatildeo e integraccedilatildeo das instacircncias puacuteblicas governamentais e da sociedade civil na aplicaccedilatildeo

de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoccedilatildeo defesa e controle para a efetivaccedilatildeo

dos direitos humanos da crianccedila e do adolescente nos niacuteveis Federal Estadual Distrital e Municipalrdquo Disponiacutevel

em httpwwwcrpsporgbrportalcomunicacaodiversosmini_cdpdfsRes_113_CONANDApdf Acesso em

23 jul 2019 3 Lei 1259412 Art 1 sect 2ordm ldquoEntendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art 112 da Lei nordm 8069

de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Crianccedila e do Adolescente) as quais tecircm por objetivos I - a responsabilizaccedilatildeo

do adolescente quanto agraves consequecircncias lesivas do ato infracional sempre que possiacutevel incentivando a sua

reparaccedilatildeo II - a integraccedilatildeo social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais por meio do

cumprimento de seu plano individual de atendimento e III - a desaprovaccedilatildeo da conduta infracional efetivando as

disposiccedilotildees da sentenccedila como paracircmetro maacuteximo de privaccedilatildeo de liberdade ou restriccedilatildeo de direitos observados os

limites previstos em leirdquo 4 A historiadora Vera Malaguti Batista (2003) traz esta questatildeo ao estudar relatoacuterios produzidos por psicoacutelogas nas

unidades da Febem da cidade do Rio de Janeiro ao longo de 20 anos (1960-1980)

88

que faz uma existecircncia persistir O que faz uma vida vingar Agamben (2007) em diaacutelogo com

Foucault ressalta as vidas que satildeo caladas e colocadas agrave margem ao serem acessiacuteveis por meio

de escritas feitas sobre elas que registram a marca da infacircmia daqueles sobre quem se escreve

Convocar esses adolescentes a produzirem narrativas a partir de saberes sobre a proacutepria

trajetoacuteria eacute uma estrateacutegia entre outras contra o apagamento de uma autoria de vida

Para acessar e discutir com nossos colaboradores suas memoacuterias ndash aquilo que constitui

sua existecircncia ndash utilizamos a construccedilatildeo de narrativas como ferramenta Ouvir os relatos

escrevecirc-los ler conjuntamente e reescrevecirc-los eacute processo animado pelo uso da literatura

Romances letras de muacutesicas e poemas satildeo tomados como recursos para dignificar a vida

coletivizar as existecircncias e criar alianccedilas em um contexto em que a marca juriacutedica coloca esses

jovens como se fossem maacutes exceccedilotildees Os textos emprestam uma experiecircncia ao leitor fazendo

de suas linhas moradas do afeto pois ao compartilhar sentimentos duacutevidas e amores neles

presentes o leitor emprestando essas experiecircncias torna-se algueacutem menos isolado

Para continuaccedilatildeo da discussatildeo apresentaremos a poliacutetica puacuteblica das medidas

socioeducativas e o procedimento que temos utilizado a partir de uma certa Psicologia junto

aos adolescentes que vivem essas medidas

1Medidas socioeducativas entre a poliacutetica puacuteblica e o sujeito-adolescente

Data de 1923 a poliacutetica de proteccedilatildeo social brasileira voltada agravequeles entatildeo nomeados

como ldquomenores abandonados e delinquentesrdquo5 Dela a criaccedilatildeo do Juizado de Menores e o

reforccedilo ao termo que mora em tempo contiacutenuo no saber social como marca do jovem que

diverge ou que delinque ou que eacute pobre e em geral negro Menor palavra que com o Coacutedigo

de Menores eacute associada ldquodefinitivamente a crianccedilas pobres a serem tuteladas pelo Estado para

a preservaccedilatildeo da ordem e asseguramento da modernizaccedilatildeo capitalista em cursordquo (Batista 2003

p 69) Processo de capitalizaccedilatildeo de um Brasil recentemente saiacutedo dos tempos de escravatura e

que natildeo teve de seu seio retiradas as marcas da escravizaccedilatildeo dos negros roubados agrave sua terra

(Gomes amp Schwarcz 2018) Ao contraacuterio tais feridas persistem e constroem incessantemente

dados estatiacutesticos acerca das desigualdades sociais no Brasil6

5 Decreto nordm 16272 de 20 de dezembro de 1923 ndash Artigo 24 sect 2ordm ldquoSe o menor focircr abandonado pervertido ou

estiver em perigo de o ser a autoridade competente promoveraacute a sua collocaccedilatildeo em asylo casa de educaccedilatildeo escola

de preservaccedilatildeo ou o confiaraacute a pessoa idonea por todo o tempo necessario aacute sua educaccedilatildeo comtanto que natildeo

ultrapasse a idade de 21 annosrdquo (Passetti 2013 p 354) 6 Atlas da Violecircncia 2019 Disponiacutevel em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=

articleampid=34784ampItemid=432 Acesso em 23 jul 2019

89

O primeiro Coacutedigo de Menores de 1927 reafirmava o papel do Estado de assistir e

cuidar dos ldquoabandonadosrdquo e o fazia por meio da institucionalizaccedilatildeo A lei colocou fim agrave

condiccedilatildeo de anonimato da praacutetica de renuacutencia a crianccedilas atraveacutes do uso da Roda dos Expostos

O Estado assumia legalmente a responsabilidade pelo atendimento de uma camada da infacircncia

e juventude brasileiras por meio de estrateacutegias que como efeito ampliavam sua segregaccedilatildeo

(Hahne 2017)

Todas as crianccedilas e jovens tidos como em perigo ou perigosos (por exemplo abandonado

carente infrator apresentando conduta dita antissocial deficiente ou doente ocioso

perambulante) eram passiacuteveis em um momento ou outro de serem enviados agraves instituiccedilotildees de

recolhimento Na praacutetica isto significava que o Estado podia atraveacutes do Juiz de Menor destituir

determinados pais do paacutetrio poder atraveacutes da decretaccedilatildeo da sentenccedila de ldquosituaccedilatildeo irregular do

menorrdquo Sendo a ldquocarecircnciardquo uma das hipoacuteteses de ldquosituaccedilatildeo irregularrdquo podemos ter uma ideia

do que isto podia representar em um paiacutes onde jaacute se estimou em 36 milhotildees o nuacutemero de crianccedilas

pobres (Arantes 2004 p 163)

Em 1979 o Coacutedigo de Menores eacute reformulado e sem mudanccedilas estruturais naquilo que

conferia a crianccedilas e adolescentes a condiccedilatildeo de inclusatildeo marginal ndash pois com a pecha de

destoantes ndash funda a Doutrina da Situaccedilatildeo Irregular Satildeo irregulares os pobres abandonados

ou natildeo filhos da escravidatildeo Essa concepccedilatildeo foi enfrentada na letra da lei apenas 63 depois

com a implementaccedilatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Brasil 1990) que institui a

Doutrina da Proteccedilatildeo Integral e assume os direitos fundamentais e as poliacuteticas que devem

asseguraacute-los A ordem eacute menos controle e mais proteccedilatildeo

Medida socioeducativa eacute a poliacutetica puacuteblica apresentada pelo Estatuto da Crianccedila e do

Adolescente (Brasil 1990) que determina e aplica sanccedilatildeo legal aos brasileiros e brasileiras em

idade entre 12 e 18 anos7 Posterior agrave primeira legislaccedilatildeo destinada exclusivamente a crianccedilas

e adolescentes ndash o Coacutedigo de Menores ndash o Estatuto carrega histoacuterias de luta pela afirmaccedilatildeo de

direitos em meio agrave entatildeo recente redemocratizaccedilatildeo do Brasil A todas as crianccedilas e adolescentes

inclusive agravequeles apreendidos por ato infracional satildeo aplicaacuteveis sob avaliaccedilatildeo judicial

medidas de proteccedilatildeo8 de forma que a transgressatildeo natildeo apaga ndash e ao contraacuterio em muitas

7 Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) ndash Art 112 ldquoVerificada a praacutetica de ato infracional a autoridade

competente poderaacute aplicar ao adolescente as seguintes medidas I - advertecircncia II - obrigaccedilatildeo de reparar o dano

III - prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade IV - liberdade assistida V - inserccedilatildeo em regime de semiliberdade VI -

internaccedilatildeo em estabelecimento educacionalrdquo 8 Art 101 do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente define as medidas protetivas ldquoI - Encaminhamento aos pais

ou responsaacutevel mediante termo de responsabilidade II - Orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III -

matriacutecula e frequecircncia obrigatoacuterias em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV - inclusatildeo em serviccedilos

e programas oficiais ou comunitaacuterios de proteccedilatildeo apoio e promoccedilatildeo da famiacutelia da crianccedila e do adolescente V -

requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI - inclusatildeo

em programa oficial ou comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII -

acolhimento institucional VIII - inclusatildeo em programa de acolhimento familiar IX - colocaccedilatildeo em famiacutelia

substitutardquo

90

histoacuterias de vida faz ver ndash necessidades de ordem socioeconocircmica que marcam jovens

trajetoacuterias

Mais recentemente outra lei voltada agrave juventude ndash especiacutefica aos adolescentes objeto

das medidas socioeducativas ndash foi criada para regular orientar e normatizar a execuccedilatildeo desta

poliacutetica puacuteblica A Lei 12594 (Brasil 2012) foi bastante reduzida no momento de sua

promulgaccedilatildeo especialmente no que diz respeito aos aspectos pedagoacutegicos das medidas

socioeducativas que receberam menor ecircnfase se comparados agrave defesa da responsabilizaccedilatildeo que

a Lei ressalta (Barone Botarelli Frassetto amp Guaraacute 2012)

O Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Brasil 1990) ao posicionar seu puacuteblico-alvo

como sujeitos de direitos sociais cujas vozes devem compor a construccedilatildeo do mundo9 convoca

os profissionais no que diz respeito agrave execuccedilatildeo das medidas a trazerem para si o adolescente

e fazerem com ele a composiccedilatildeo dos processos educativos de reflexatildeo e de debate sobre sua

trajetoacuteria singular A Lei 12594 (Brasil 2012) ressalta a construccedilatildeo do Plano Individual de

Atendimento (PIA) como ferramenta estrateacutegica para essa composiccedilatildeo coletiva

A centralidade nos sujeitos-adolescentes se faz importante porque procura respeitar o indiviacuteduo

em sua singularidade ressaltando sua efetiva participaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo do Plano Individual de

Atendimento que sugerimos deve ser posicionado no projeto de vida dos adolescentes e em

sua histoacuteria e no projeto pedagoacutegico das instituiccedilotildees que executam as medidas socioeducativas

(Barone et al 2012 p 68)

A legislaccedilatildeo brasileira portanto defende a participaccedilatildeo do adolescente na construccedilatildeo

das ponderaccedilotildees e das accedilotildees que permitiratildeo a constituiccedilatildeo de trajetoacuterias distanciadas do

universo infracional tornando sociedade e Estado coautores de suas histoacuterias e natildeo apenas

cobradores de mudanccedilas ndash da chamada ressocializaccedilatildeo termo complexo quando satildeo tomadas

as condiccedilotildees para uma primeira socializaccedilatildeo daqueles cujas cidadanias tecircm sido historicamente

impedidas ou nas palavras do geoacutegrafo Milton Santos mutiladas (Santos 19961997)

Sob essa loacutegica os adolescentes fazem parte dos momentos que servem agrave construccedilatildeo do

trabalho socioeducativo tomando os processos tatildeo ou mais importantes que o produto final

Ocorre que suas ferramentas podem ser capturadas e burocratizadas fechando os olhos agravequilo

que a vida de cada adolescente apresenta e solicita O sujeito quando ausente daquilo que

9 Art 53 ldquoA crianccedila e o adolescente tecircm direito agrave educaccedilatildeo visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa

preparo para o exerciacutecio da cidadania e qualificaccedilatildeo para o trabalho assegurando-se-lhes I - igualdade de

condiccedilotildees para o acesso e permanecircncia na escola II - direito de ser respeitado por seus educadores III - direito de

contestar criteacuterios avaliativos podendo recorrer agraves instacircncias escolares superiores IV - direito de organizaccedilatildeo e

participaccedilatildeo em entidades estudantis V - acesso agrave escola puacuteblica e gratuita proacutexima de sua residecircncia garantindo-

se vagas no mesmo estabelecimento a irmatildeos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educaccedilatildeo

baacutesica (Redaccedilatildeo dada pela Lei nordm 13845 de 2019) Paraacutegrafo uacutenico Eacute direito dos pais ou responsaacuteveis ter ciecircncia

do processo pedagoacutegico bem como participar da definiccedilatildeo das propostas educacionaisrdquo

91

constitui discursos sobre si eacute tornado objeto do saber de um outro que se supotildee mais saacutebio

sobre o que ele pode Na posiccedilatildeo de representaccedilatildeo ndash adolescente-infrator ndash fica destituiacutedo de

seus conhecimentos

Naquilo que tem constituiacutedo a realidade do adolescente que cumpre medida

socioeducativa hoje exemplificamos a explicaccedilatildeo com duas notiacutecias recentes A primeira delas

eacute o pedido de revisatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente a favor da ampliaccedilatildeo do poder

punitivo contra os adolescentes10 No mesmo periacuteodo em que era veiculada a notiacutecia ocorria o

lanccedilamento de pesquisa sobre a aplicaccedilatildeo e a execuccedilatildeo das medidas socioeducativas em meio

aberto nas cidades do Rio de Janeiro e Satildeo Paulo11 que aponta para a prevalecircncia do caraacuteter

punitivo em relaccedilatildeo aos adolescentes a quem satildeo atribuiacutedas medidas socioeducativas de meio

aberto em ambas as cidades A persistecircncia da chamada progressatildeo de medida12 afirma o olhar

sancionatoacuterio

Com esse pano de fundo a Psicologia sempre sob o risco de ser fisgada por modos de

agir burocratizados e homogeneizadores a partir de crenccedilas socialmente aprendidas (Machado

2008) eacute convocada a questionar suas praacuteticas A construccedilatildeo coletiva dos processos educativos

e participativos eacute tatildeo complexa quanto a defesa da vida dos adolescentes que vivem a medida

socioeducativa13 atravessada que eacute por discursos que o tomam como sujeito violento e

antissocial (Violante 1984 Trassi 2006) Sob essa identidade esses adolescentes satildeo

colocados em posiccedilotildees que natildeo tecircm variado ao menos na maior parte das experiecircncias

localizadas e debatidas na cidade de Satildeo Paulo quando estatildeo perante a um juiz que pouco

conhece suas condiccedilotildees de vida e em seguida a adultos convocados a produzir registros sobre

suas tatildeo erradas vidas (Miraglia 2005 Malvasi 2012)

10 STF marca para agosto julgamento de accedilatildeo contra ECA Disponiacutevel em httpsogloboglobocomsociedade

stf-marca-para-agosto-julgamento-de-acao-contra-eca-23594873 Acesso em 19 abr 2019 11 A pesquisa intitulada Juventude e cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto entre a garantia

de direitos e a judicializaccedilatildeo foi apresentada no evento Execuccedilatildeo das medidas socioeducativas para adolescentes

haacute mais o que saber sobre o ldquomeio abertordquo realizada pelo Nuacutecleo de estudos poacutes-graduados em Serviccedilo Social

ndash Nuacutecleo de estudos em seguridade e assistecircncia social (NEPSAS) da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo

Paulo em 15042019 12 Aplicaccedilatildeo de uma ou ambas as medidas em meio aberto ndash Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade e Liberdade

Assistida ndash apoacutes o cumprimento de internaccedilatildeo eou semiliberdade alongando em meses ou anos o

acompanhamento do adolescente pelo poder judiciaacuterio 13 IPEA (2015) Nota Teacutecnica ndash O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Reduccedilatildeo da Maioridade

Penal esclarecimentos necessaacuterios Brasiacutelia Sobre o perfil do adolescente em conflito com a lei no Brasil mais

de 60 dos adolescentes privados de liberdade eram negros 51 natildeo frequentavam a escola 49 natildeo

trabalhavam quando cometeram o delito e 66 viviam em famiacutelias consideradas extremamente pobres Disponiacutevel

em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=articleampid=25621ampItemid =9 Acesso

em 26 jun 2019

92

Eacute nesse contexto que se inscreve a pesquisa em andamento em meio agrave produccedilatildeo

massificada de vidas-adolescentes construir narrativas singulares com aqueles cujas

existecircncias satildeo marcadas pelo cometimento de ato infracional e pelas formas com as quais o

Brasil tem escolhido agir a partir dele o encarceramento natildeo precisa ser consequecircncia uacutenica ou

primeira agrave infraccedilatildeo A retomada de solicitaccedilotildees pela reduccedilatildeo da maioridade penal e pela

ampliaccedilatildeo do tempo de privaccedilatildeo da liberdade torna urgente a discussatildeo

Consideramos que assumir esses adolescentes como narradores do vivido eacute brigar pela

dignificaccedilatildeo e duraccedilatildeo de suas vidas Apostando na importacircncia da literatura para afirmar a

singularidade das existecircncias algo que lhes teria sido furtado (Petit 2009) ela se torna suporte

para o registro de suas palavras Satildeo utilizados contos letras de muacutesicas poemas e histoacuterias

presentes na literatura como recursos estrateacutegicos para dignificar a vida dessas pessoas

produzindo saberes sobre si

2 Experiecircncia e variaccedilatildeo da vida na literatura

A histoacuteria pregressa e atual de parcela consideraacutevel da juventude brasileira ndash aquela que

eacute objeto das sanccedilotildees legais14 ndash daacute a ver os desafios agrave Psicologia para que considere a

singularidade das vidas que encontra em seu fazer Adolescentes autores de atos infracionais

com frequecircncia satildeo tomados como sujeitos-supostos submetidos a histoacuterias que antecedem

sua vinda ao mundo e com muitas experiecircncias cotidianas de indignidade que desafiam a

construccedilatildeo de trajetoacuterias que sejam pensadas por eles mesmos O desafio eacute o de ldquouma

singularizaccedilatildeo existencial que coincida com um desejo com um gosto de viver com uma

vontade de construir o mundo no qual nos encontramosrdquo (Guattari amp Rolnik 2013 p 22)

A construccedilatildeo de narrativas atua como dispositivo para provocar a pensar as formas como

os adolescentes parceiros dessa pesquisa sobrevivem em contextos tatildeo indignos Memoacuterias e

experiecircncias permitem ver como o Sistema Socioeducativo e em seu interior o atendimento

teacutecnico satildeo percebidos por eles e os efeitos que neles produzem A escrita das narrativas e as

reflexotildees nascidas no processo de elaboraccedilatildeo permitem afirmarmos que os adolescentes se

constituem a partir dos discursos que os atravessam de forma que o falado e o escrito sobre

eles compotildeem a existecircncia e a maneira de cumprir a medida socioeducativa ldquoa singularidade

carrega uma experiecircncia coletiva em que haacute um elemento impessoal um comum o que

14 Brasiacutelia Distrito Federal (2016) Caderno de Orientaccedilotildees Teacutecnicas Serviccedilo de Medidas Socioeducativas em

Meio Aberto Secretaria Nacional de Assistecircncia Social Disponiacutevel em httpswwwmdsgovbrwebarquivospu

blicacaoassistencia_socialCadernoscaderno_MSE_0712pdf Acesso em 28 jul 2019

93

significa que aquilo que eacute narrado eacute agregado singular de mil outros casosrdquo (Alaion 2017 p

104) Identificaccedilotildees e nomeaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves situaccedilotildees que esses jovens vivem satildeo

construiacutedas a partir das compreensotildees de mundo de quem de uma forma ou outra com eles

convive

O processo educativo da sanccedilatildeo disciplinar eacute disputado por visotildees de mundo e

idealizaccedilotildees socialmente construiacutedas sobre esses adolescentes e sobre suas vidas Teacutecnicos que

realizam seu atendimento com frequecircncia referem-se a solicitaccedilotildees do poder judiciaacuterio para

encaminhamentos que devem ser realizados aos adolescentes como afirmaccedilatildeo corrente meio

para a criaccedilatildeo de alternativas ao ato infracional Se a desigualdade socioeconocircmica eacute ponto

crucial para o problema aqui discutido ao ser considerada uacutenica motivaccedilatildeo esconde o sujeito

por traacutes de quem o pratica ou seja os sentidos pensados e construiacutedos em relaccedilatildeo ao vivido

Essa constataccedilatildeo eacute um convite ao psicoacutelogo para agir tal como um cartoacutegrafo como um

investigador curioso sobre as coisas do mundo e os repertoacuterios de vida de quem acompanha em

seu trabalho

A praacutetica de um cartoacutegrafo diz respeito fundamentalmente agraves estrateacutegias das formaccedilotildees do

desejo no campo social natildeo tem o menor racismo de frequecircncia linguagem ou estilo Tudo

o que der liacutengua para os movimentos do desejo tudo o que servir para cunhar mateacuteria de

expressatildeo e criar sentido para ele eacute bem-vindo Todas as entradas satildeo boas desde que as saiacutedas

sejam muacuteltiplas (Rolnik 2006 p 65 destaques do original)

Ao cartoacutegrafo natildeo cabe a valoraccedilatildeo dos modos de agir no mundo mas a sustentaccedilatildeo da

expansatildeo da vida natildeo a revelaccedilatildeo do sentido das existecircncias mas a criaccedilatildeo de sentido com

elas Eacute sempre no campo relacional e por meio das alianccedilas que nos constituiacutemos essa

composiccedilatildeo eacute mais conectada agrave variaccedilatildeo da vida quando haacute lugar para a construccedilatildeo de

experiecircncias que rompam mesmo que por poucos momentos com a impossibilidade de

elaboraccedilatildeo da proacutepria existecircncia construccedilatildeo que se daacute por meio de uma certa qualidade das

relaccedilotildees estabelecidas que permita a transformaccedilatildeo dos lugares operaacuteveis natildeo apenas nos

adolescentes mas naqueles que os acompanham

Entre aquilo que eacute roubado a esses adolescentes ndash a moradia a escola o alimento o

lazer a seguranccedila os amigos ndash estaacute a cultura Os livros natildeo chegam15 e sem eles as paacuteginas

que tornariam a vida menos solitaacuteria ao ver-se na narrativa do outro Afirmar a vida eacute accedilatildeo que

tambeacutem compete agrave Psicologia A dor o amor a tristeza e a sobrevivecircncia narradas por um outro

a quem se lecirc permitem que o vivido seja apreendido como experiecircncia do um e tambeacutem de

15 Rede Nossa Satildeo Paulo Mapa da desigualdade 2017 Disponiacutevel em httpsnossasaopauloorgbrportalmapa_

2017_completopdf Acesso em 27 jun 2019

94

todos se o outro sofrendo existe pode-se construir a hipoacutetese de uma dimensatildeo puacuteblica da

vida em seu sofrimento e sua persistecircncia

A leitura dos textos literaacuterios opera como instrumento de confirmaccedilatildeo de suas

biografias ao ressaltarem que satildeo ldquosoacute mais umrdquo ndash sensaccedilatildeo mencionada por vaacuterios de nossos

colaboradores ndash natildeo com pouca frequecircncia os adolescentes-parceiros mostram-se

surpreendidos com aquilo que leem ao descobrirem na dor e na beleza narrada por um outro o

valor da proacutepria existecircncia conferindo sentido agrave persistecircncia dos dias

Alagar a vida ajudar a tornar mais real uma existecircncia e dar a ela destaque particular

que legitima sua forma de ser comprova sua autenticidade e o direito de existir A existecircncia eacute

sempre efeito de gestos de movimentos contiacutenuos e nunca finitos ndash ldquonatildeo haacute mais seres soacute haacute

processos ou melhor as uacutenicas entidades a partir de agora satildeo atos mudanccedilas transformaccedilotildees

metamorfoses que afetam esses seres e os fazem existir de outra maneirardquo (Lapoujade 2017 p

61 destaque do original) Instaurar atraveacutes do gesto eacute fazer valer o direito de ser e de nos

tornarmos reais

3 O percurso dos encontros

O lugar de iniacutecio da pesquisa aqui compartilhada eacute um Serviccedilo de Medidas

Socioeducativas de Meio Aberto (SMSE-MA) da cidade de Satildeo Paulo responsaacutevel por

acompanhar adolescentes que em sua comunidade semanalmente se encontram com a equipe

teacutecnica que os acompanha no caminho ateacute a extinccedilatildeo da sanccedilatildeo

As relaccedilotildees em que as primeiras conversas foram provocadas foram possibilitadas por

experiecircncias de uma das autoras desse trabalho realizadas nos uacuteltimos anos junto agrave juventude

atendida pelas medidas socioeducativas e a profissionais que atuam com este puacuteblico O SMSE-

MA em questatildeo eacute antigo parceiro de trabalho profissional que aceitou facilitar o acesso a

adolescentes que pudessem ser convidados a compor com esse trabalho As narrativas satildeo

constituiacutedas em encontros atravessados em muitos momentos pelas experiecircncias na infacircncia

na famiacutelia na medida socioeducativa e na rua

A construccedilatildeo do espaccedilo narrativo eacute apoiada na histoacuteria oral que tem sido o meio para

conhecer as vivecircncias singulares tomadas em um campo plural que carrega consigo Histoacuteria e

Sociedade (Portelli 2016) Na metodologia alguns elementos pedem atenccedilatildeo accedilatildeo entre

aquele que escuta e quem fala tempo em que a fala eacute realizada e tempo que criou a memoacuteria

o fato de que a histoacuteria ocorre em meio agrave Histoacuteria aleacutem da oralidade e da escrita produzidas

95

As narrativas com os adolescentes satildeo construiacutedas em pelo menos trecircs tempos (1)

constituiccedilatildeo do relato (2) escrita posterior pela pesquisadora e (3) encontros para releitura com

os colaboradores sempre com a abertura para correccedilotildees e mudanccedilas de rotas Esses tempos satildeo

constituiacutedos em muitos encontros quantos forem necessaacuterios para o estabelecimento de

confianccedila que torne possiacutevel o relato das cenas vividas O tempo eacute distinto em cada relaccedilatildeo e

precisa ser considerado para que evitemos atravessamentos que por vontade nossa

desrespeitassem a vida vivida pelo jovem Nesse sentido o tempo da pesquisa motiva mas natildeo

determina o trabalho

O primeiro encontro com a maioria dos adolescentes ocorreu no SMSE-MA com a

intermediaccedilatildeo da equipe teacutecnica Aproveitamos eventos festivos e reuniotildees buscando

momentos em que os adolescentes estando em coletivo talvez ficassem mais agrave vontade para

iniciar uma conversa para a qual seriam convidados a continuar em outro momento Alguns

encontros passaram a ocorrer inesperadamente quando em serviccedilo da rede socioassistencial a

partir do cuidado atento da pesquisadora provocamos conversas com jovens que natildeo

frequentavam mais o SMSE-MA mas que ao estarem naquele territoacuterio e terem passado por

medida socioeducativa puderam ser convidados para compor com a pesquisa Entre os seis

adolescentes entrevistados ateacute o momento uma era menina que aceitou uma conversa breve

nos avisando que naquele momento natildeo havia espaccedilo para continuar os encontros

Haacute sempre um primeiro pedido de licenccedila da pesquisadora seguido da apresentaccedilatildeo do

que a motiva a iniciar a conversa a hipoacutetese formada por meio de vivecircncias em outros trabalhos

que fazem pensar que os adolescentes satildeo os menos escutados no processo socioeducativo Os

tempos de cada adolescente satildeo tatildeo distintos quanto eles o satildeo mais ou menos tiacutemidos falantes

curiosos ou desconfiados

Construir narrativas sobre histoacuterias de vida-adolescente-sancionada carrega o desejo de

que sobrevivam e possam viver outras variaccedilotildees de suas trajetoacuterias Para alguns adolescentes

narrar as proacuteprias memoacuterias eacute aposta de proteccedilatildeo em relaccedilatildeo a outros que como eles poderiam

vir a ser apreendidos e encaminhados agraves unidades de privaccedilatildeo da liberdade disse um de nossos

parceiros ldquoquero falar natildeo por mim que jaacute lsquotocircrsquo velho mas pelos outros menores Eu jaacute tenho

dezessete anos e natildeo vou mais ser preso [em unidade de internaccedilatildeo para adolescentes] mas tem

os outros que eu natildeo quero que passem pelo o que eu passeirdquo Compartilhar experiecircncias e

estrateacutegias de cuidado com o proacuteprio corpo eacute uma maneira de cuidar inclusive de algueacutem que

natildeo conhecem Para outros ainda contar as proacuteprias experiecircncias eacute dar a elas visibilidade

dando importacircncia agrave vida aprendemos com um dos jovens que uma cena vivida por uma pessoa

96

pode retratar um campo muito vasto ldquoeacute como beber aacutegua ou comer ou escrever A gente pode

falar do mundo pelas coisas que uma pessoa fazrdquo Mora aiacute a vontade de que saibamos de um

algueacutem que existe

Os encontros com cada adolescente pedem uma primeira organizaccedilatildeo de horaacuterio data e

local que melhor contemplem cada entrevistado de forma que as conversas satildeo realizadas em

serviccedilos da rede socioassistencial praccedilas em seu local de trabalho ou em equipamentos de

cultura nos quais trabalham ou cumprem medida socioeducativa Nos primeiros encontros satildeo

retomadas as ideias que alimentam a vontade de escuta e escrita das experiecircncias que contam

testemunhar suas existecircncias (Lapoujade 2017) e contribuir para o debate sobre o que vem

concorrendo com suas vidas

Palavras como oacutedio relatos sobre violecircncia fiacutesica sofridas pelas matildeos das instituiccedilotildees

estatais e da famiacutelia e um mundo vivido como inflexiacutevel satildeo tomados como produccedilotildees que a

pesquisa opera Os relatos trazem o ato infracional praticado e as violecircncias vividas ainda na

infacircncia Haacute uma convocaccedilatildeo da pesquisadora agrave posiccedilatildeo de testemunha do corpo que sofre e

duvida solicitando a criaccedilatildeo de estrateacutegias para que o silenciamento natildeo domine A literatura

e a palavra escrita (como letras de muacutesica) criam um comum nesse encontro em que a posiccedilatildeo

social da pesquisadora implica um natildeo compartilhamento de muitas das experiecircncias que

marcam a juventude dos entrevistados os textos e os autores emprestam vivecircncias que agem

no isolamento da dor apostando no fortalecimento do adolescente para a criaccedilatildeo de estrateacutegias

de vida

Nesse momento satildeo contadas histoacuterias de diferentes fontes literaacuterias16 e lidos poemas

inspirados nas palavras dos entrevistados Com as biografias que permitem a variaccedilatildeo do olhar

sobre o vivido o mundo vai ficando maior permitindo uma elaboraccedilatildeo mais autoral dos

discursos sobre si Juntos lemos textos e entrelaccedilamos palavras agravequelas que haviam sido antes

pronunciadas pelos entrevistados Um dos apoios convocados tem sido o poeta Manuel de

Barros (2015)

Eu queria fazer parte das aacutervores como os paacutessaros fazem Eu queria fazer parte do orvalho

como as pedras fazem Eu soacute natildeo queria significar Porque significar limita a imaginaccedilatildeo E com

pouca imaginaccedilatildeo eu natildeo poderia fazer parte de uma aacutervore Como os paacutessaros fazem Entatildeo a

razatildeo me falou o homem natildeo pode fazer parte do orvalho como as pedras fazem Porque o

homem natildeo se transfigura senatildeo pelas palavras E era isso mesmo (Barros 2015 p 97)

16 Lemos juntos aleacutem de poemas de Manuel de Barros tambeacutem os de Eduardo Galeano (O livro dos abraccedilos)

comentamos sobre as histoacuterias narradas na obra A guerra natildeo tem rosto de mulher falamos sobre a ativista

americana Acircngela Davis discutimos letras de muacutesica do cantor Tim Maia indicamos uns aos outros filmes como

Cortina de fumaccedila e 400 contra 1

97

Com alguns adolescentes satildeo realizados muitos encontros com outros apenas dois

seratildeo possiacuteveis tornando-os ainda mais preciosos Aceitamos seu tempo As entrevistas tecircm

priorizado o relato oral sem o uso de gravador buscando menos o caraacuteter de entrevista e mais

a conversa fluida um encontro-entrevista Sabe-se de partida que os registros seratildeo revisitados

e poderatildeo ser recompostos a construccedilatildeo de sentido eacute incessante A cada novo encontro vamos

repensando os termos escolhendo palavras ndash quais satildeo eleitas e por quecirc Tomadas como

substacircncia que constituem a existecircncia interessa o processo de construccedilatildeo das linhas escritas

que disputa com a ilusoacuteria suposiccedilatildeo de existir uma verdade fundamental

E isto a partir da convicccedilatildeo de que as palavras produzem sentido criam realidades e agraves vezes

funcionam como potentes mecanismos de subjetivaccedilatildeo Eu creio no poder das palavras na forccedila

das palavras creio que fazemos coisas com as palavras e tambeacutem que as palavras fazem coisas

conosco As palavras determinam nosso pensamento porque natildeo pensamos com pensamentos

mas com palavras natildeo pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligecircncia mas a

partir de nossas palavras E pensar natildeo eacute somente ldquoraciocinarrdquo ou ldquocalcularrdquo ou ldquoargumentarrdquo

como nos tem sido ensinado algumas vezes mas eacute sobretudo dar sentido ao que somos e ao que

nos acontece (Larrosa 2002 p 21)

Tendo em matildeos uma escrita construiacuteda com a direccedilatildeo eacutetica de potencializar a existecircncia

convidamos o jovem a um novo encontro em que lhe eacute apresentada a narrativa escrita a partir

da conversa inicial Juntos pesquisadora e adolescente leem as narrativas que se tornam nova

palavra a ser escutada uma espeacutecie de outra voz em que se compotildee um corpo formado em

coautoria Revisam frase por frase questionam-se quanto agrave escolha das palavras repensam

aquelas que parecem deslocadas enfatizam as que satildeo importantes reconstroem outras a

produccedilatildeo de sentidos eacute alimentada pela escolha das palavras e pelo trabalho da memoacuteria As

frases satildeo construiacutedas como uma associaccedilatildeo entre a memoacuteria do narrador e a escuta da

pesquisadora satildeo elaboradas em terceira pessoa buscando alcanccedilar as lembranccedilas em uma

posiccedilatildeo afirmativa quanto agraves vidas sobre as quais falam Nesse momento as reaccedilotildees variam

adolescentes veem-se no relato e lendo a proacutepria vida muitos se espantam com a largueza

percebida Surpreendem-se alguns como se suas vidas se tornassem elas mesmas poesia Em

uma seacuterie de encontros em que dois adolescentes eram entrevistados juntos chegamos agrave

seguinte construccedilatildeo

O menino que fala raacutepido e bastante gruda uma histoacuteria atraacutes da outra Quer compartilhar

vivecircncias de seu dia a dia e contar sobre como elas entram em seu corpo o afetam e fazem

pensar Ao seu lado estaacute L que observador daacute espaccedilo agrave voz do amigo em meio agrave narrativa

corrida vai cavando momentos para falar sobre si Compotildeem uma dupla disposta a lembrar de

fatos que poderiam endurecer o coraccedilatildeo mas que neles movimenta o sangue que corre atraacutes

de novas ideias As muitas violecircncias satildeo localizadas em cenas que exemplificam dilemas de

todos os dias

98

O material colhido pela oralidade implica performance e processo natildeo estanque Haacute uma

certa presenccedila de quem narra sua histoacuteria e do modo como o faz que se mostra por meio da

construccedilatildeo das frases A passagem do narrado para a escrita elaborada pela pesquisadora precisa

respeitar que aquilo que eacute falado pelos adolescentes seraacute efeito de uma multiplicidade de

elementos entre eles as formas de compreender que a pesquisadora tem da vida e das situaccedilotildees

Respeitar nesse sentido implica (i) criar narrativas que permitam abertura de questotildees e natildeo

adjetivaccedilotildees e julgamentos (ii) desenvolver um procedimento de trabalho em que os jovens

possam avaliar e se posicionar em relaccedilatildeo aos efeitos que a leitura da narrativa escrita lhes

produz (iii) considerar que haacute elementos da singularidade do narrador natildeo captaacuteveis pela

pesquisadora ndash talvez nem mesmo pelo contador ndash e isso eacute condiccedilatildeo da pesquisa ldquoa tonalidade

e as ecircnfases do discurso oral carregam a histoacuteria e a identidade dos falantes e transmitem

significados que vatildeo bem aleacutem da intenccedilatildeo consciente destesrdquo (Portelli 2016 p 21)

Na pesquisa a escrita age pelo estabelecimento de alianccedilas com o pensamento por meio

do fazer a quatro matildeos Convidamos os adolescentes agrave posiccedilatildeo de coautores a partir da reflexatildeo

de suas memoacuterias Essa metodologia vai operando como

um espaccedilo onde encontrar um lugar viver tempos que sejam um pouco tranquilos poeacuteticos

criativos e natildeo apenas ser o objeto de avaliaccedilotildees em um universo produtivista Conjugar os

diferentes universos culturais de que cada um participa Tomar o seu lugar no devir

compartilhado e entrar em relaccedilatildeo com outros de modo menos violento menos desencontrado

paciacutefico (Petit 2010 p 289)

Apanhar ser humilhado e silenciado satildeo experiecircncias que produzem oacutedio Ao sofrer e vendo-

se tatildeo sozinho com esse sentimento a vida lhes eacute de certo modo furtada Muitos jaacute foram

tombados como Gomes (2017) afirma ao narrar os enfrentamentos de Dom Quixote Pixaim

Eu natildeo queria mais cultivar o oacutedio mas eles nos obrigam a vencer desde que o inventaram o

poacutedio Uhuru a liberdade ainda eacute sonho Um triste soneto o medo de cair destroccedilos Nessa

terra em que jaacute tombaram tantos dos nossos Mas enquanto constroem pelourinhos eu sigo

erguendo mocambos enfrentando moinhos e todos os traumas de ser assim Dom Quixote

Pixaim (Gomes 2017 p 45)

Amor oacutedio duacutevida e violecircncia existem singularmente no corpo de um e coletivamente

no corpo social Na histoacuteria narrada oralmente o vivido eacute percebido como algo do particular e

do plural que diz de cada adolescente e de muitos outros Os adolescentes apresentam suas

referecircncias no compartilhamento dos textos em geral de filmes e muacutesica e nas conversas

sugerem palavras que permitam o exerciacutecio de compreender o que se passou com eles A

pesquisa toma o alargamento do imaginaacutevel como ensaio de um lugar natildeo-determinado e aposta

que a discussatildeo a partir das relaccedilotildees construiacutedas das narrativas escritas e do material literaacuterio

partilhado contribui para um trabalho que vise agrave garantia de direitos desses adolescentes

99

4 Fazer advir aquilo que natildeo deve existir

Animada pela vontade de conhecer e registrar percursos de experiecircncias de adolescentes

que em um terreno no qual pressupor o outro tantas vezes o adianta em relaccedilatildeo a quem eacute ou

agravequilo que poderia realizar de sua existecircncia a pesquisa faz alianccedila com o campo

socioeducativo Contar sobre a constituiccedilatildeo de uma metodologia de acesso aos nossos

interlocutores e de construccedilatildeo de narrativas com eles a partir de suas vivecircncias tem como

desafio acessar as infacircncias as abordagens policiais os entraves que percebem no percurso e

as vinculaccedilotildees com os profissionais que os atendem na execuccedilatildeo da medida socioeducativa A

preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave sua sobrevivecircncia eacute dimensatildeo que para muitos adolescentes

fortalece a presenccedila nos atendimentos realizados pelas equipes socioeducativas e a vontade de

conversar A conversa com um dos jovens constroacutei a seguinte narrativa

faz diferenccedila o teacutecnico que mostra o relatoacuterio antes que siga ao juiz e pergunta a opiniatildeo do

adolescente Com eles [a equipe que o atendia no SMSE-MA] nunca foi preciso pedir mudanccedila

na escrita sempre fiel agravequilo que ocorria naquela eacutepoca da vida Eacute bom quando o teacutecnico daacute

conselhos e natildeo julga deixando a L o direito de decidir As boas conversas fazem quando de

volta agrave comunidade pensar e fortalecer a vontade de mudar de vida era verdade que com o

dinheiro do traacutefico fica difiacutecil ter uma reserva Vem faacutecil vai faacutecil e aleacutem disso a famiacutelia natildeo

aceita o dinheiro sujo em casa

Suas histoacuterias variam e inspiram modos de fazer alianccedilas Essa eacute uma dimensatildeo que

desafia conquistar uma qualidade de relaccedilatildeo a partir da qual a palavra e o pensamento

produzam possiacuteveis Aacuterdua tarefa pois satildeo muitos os atravessamentos que concorrem com

essas interaccedilotildees necessidade de tempo grandes distacircncias fiacutesicas falta de dinheiro precaacuterias

condiccedilotildees de trabalho violecircncia territorial e descontinuidade das poliacuteticas puacuteblicas

O convite aos adolescentes para narrarem suas trajetoacuterias foi possibilitado pelas relaccedilotildees

estabelecidas a partir da atuaccedilatildeo profissional no campo da psicologia junto a um SMSE-MA de

determinado territoacuterio da cidade de Satildeo Paulo No processo uma das condiccedilotildees reconhecidas

como necessaacuterias para esses encontros tem sido o tempo tempo para as distacircncias em que os

encontros se datildeo tempo para a espera tempo para sustentar um intervalo entre os encontros

sem se saber direito por que o adolescente desmarca o agendado outros compromissos surgem

e a disponibilidade muda

A persistecircncia em promover a continuidade dos encontros tem permitido a construccedilatildeo

de alianccedilas e a possibilidade de o jovem interlocutor ver-se coautor das linhas que registram

suas experiecircncias As condiccedilotildees que nossos colaboradores apresentam exigem consenso

100

Na construccedilatildeo dos registros uma questatildeo eacute colocada agrave pesquisa como responder aos

relatos de violecircncias sofridas desde a infacircncia O racismo e as situaccedilotildees violentas ao longo da

vida solicitam respostas e a afirmaccedilatildeo de que natildeo deveriam ter ocorrido Na narrativa abaixo

o jovem pede alianccedila parceria e compreensatildeo e segundo ele talvez isso fosse possiacutevel se na

cena algum policial fosse negro

Agrave noite na praccedila em que muitos traficam mas natildeo ele vem um carro de poliacutecia e de dentro

dele algueacutem manda que levante a camiseta para provar o que o menino sabe natildeo levava em seu

corpo arma alguma Na ausecircncia do objeto que mata algueacutem grita ldquosai fora natildeo vou nem descer

do carro lsquoprarsquo natildeo sujar a matildeo com vocecirc seu macaco preto Sai forardquo De fora do carro pocircde

ver que dentro dele havia apenas brancos Seus olhos buscavam algueacutem que fosse da mesma

cor de sua pele para nele encontrar a conivecircncia com a cena que o humilhava Satildeo sempre

brancos os que fazem isso fosse negro poderia ir embora sem essa

O fato de o adolescente compartilhar sobre seu corpo que sofre pede um deslocamento

em relaccedilatildeo a uma suposta neutralidade da pesquisa ou agrave ideia de que natildeo haacute nada que possa ser

feito Falar sobre a medida socioeducativa quando toda uma vida eacute invocada implica vermo-

nos testemunhas da dor alheia ndash e natildeo haacute silenciamento possiacutevel frente a tais horrores Haacute

movimentos necessaacuterios de desterritorializaccedilatildeo de todos narrador e escutador Reconhecer o

horror de uma cena de violecircncia e advogar por uma existecircncia eacute testemunhar o valor da vida e

aquilo que a impede Os efeitos da escuta de tantas violecircncias passam pelo corpo da

pesquisadora fica-se quente ao ouvir a violecircncia enquanto se pensa no que dizer em uma

situaccedilatildeo em que um direito natildeo foi garantido pois os relatos vivos exigem a emergecircncia de uma

resposta A narrativa escrita eacute uma escrita-ato que toma a funccedilatildeo de natildeo deixar calar

Fazer existir implica brigar contra o apagamento e contra a sombra Lapoujade (2017)

afirma a posiccedilatildeo de advogar em defesa das existecircncias que satildeo impedidas como uma questatildeo

poliacutetica pois jaacute natildeo se trata de (apenas) existir mas de ter o direito de natildeo existir conforme

modelos predeterminados

Referecircncias

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Capiacutetulo 6

A Implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo em

SAICAs de Osasco

Andrielly Darcanchy de Toledo

Mariana Prioli Cordeiro

Introduccedilatildeo

A aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 trouxe importantes transformaccedilotildees para

o campo das poliacuteticas sociais brasileiras Entre outras coisas determinou que o sistema de

seguridade social do paiacutes passasse a ser composto pelo tripeacute assistecircncia social sauacutede e

previdecircncia social (Brasil 1988) Seguindo as diretrizes propostas pela nova Constituiccedilatildeo em

1993 eacute aprovada a Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) que estabelece as diretrizes da

poliacutetica de assistecircncia social ao defini-la como direito do cidadatildeo e dever do Estado (Brasil

1993) A fim de transformar em accedilotildees diretas os pressupostos da LOAS e da Constituiccedilatildeo de

1988 em 2004 eacute aprovada a Poliacutetica Nacional de Assistecircncia Social (PNAS) que prevecirc o

reordenamento da poliacutetica em dois niacuteveis de proteccedilatildeo social baacutesica e especial sendo a proteccedilatildeo

especial subdividida em dois graus de complexidade meacutedia e alta A partir da PNAS em 2005

tem iniacutecio a implementaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) (Alberto Freire

Leite amp Gouveia 2014)

Uma das funccedilotildees da proteccedilatildeo social especial eacute garantir a seguranccedila de acolhida de

usuaacuterios e famiacutelias em situaccedilatildeo de risco pessoal e social Tal seguranccedila eacute oferecida em casos

em que haacute situaccedilatildeo de abandono e isolamento quando haacute necessidade de separaccedilatildeo da famiacutelia

ou da parentela (motivada por situaccedilotildees de violecircncia familiar ou social drogadiccedilatildeo alcoolismo

criminalidade entre outras) ou em situaccedilotildees de acidentes e desastres naturais Seu objetivo

central consiste em restaurar a autonomia a capacidade de conviacutevio e o protagonismo das(os)

usuaacuterias(os) por meio da oferta de condiccedilotildees materiais de abrigo repouso alimentaccedilatildeo

higienizaccedilatildeo vestuaacuterio e aquisiccedilotildees pessoais (Brasil 2005)

A seguranccedila de acolhida eacute ofertada em diferentes tipos de instituiccedilatildeo (para crianccedilas

jovens adultos idosos pessoas com deficiecircncia etc) todos considerados parte da rede de

proteccedilatildeo social especial de alta complexidade Neste capiacutetulo enfocaremos o acolhimento

104

institucional de crianccedilas e adolescentes Mais especificamente apresentaremos e discutiremos

a experiecircncia de implementaccedilatildeo do Programa de Apadrinhamento Afetivo no municiacutepio de

Osasco enfocando seus resultados dificuldades e avanccedilos Com isso o presente trabalho

pretende contribuir com a circulaccedilatildeo de relatos e reflexotildees entre os municiacutepios que possuem

programa semelhante Aleacutem disso tambeacutem busca suprir uma lacuna na literatura acadecircmica

uma vez que em pesquisas realizadas em maio de 2019 em trecircs bases de dados (Scientific

Electronic Library Online - SciELO Applied Social Sciences Index amp Abstracts - ASSIA e

Banco de Teses da Capes) encontramos apenas seis trabalhos que abordam diretamente o

programa de apadrinhamento afetivo no Brasil Em buscas no Google Acadecircmico foram

encontrados mais textos contudo nenhum abordava a implementaccedilatildeo da mesma maneira

proposta neste artigo a partir de um relato de experiecircncia1 Mas antes de apresentarmos ndash e

discutirmos ndash a experiecircncia propriamente dita consideramos importante apresentar ainda que

de forma breve algumas caracteriacutesticas importantes do acolhimento institucional no acircmbito do

SUAS bem como a ideia central que embasa o programa de apadrinhamento afetivo

1 Acolhimento Institucional e Apadrinhamento Afetivo

De acordo com a Tipificaccedilatildeo Nacional dos Serviccedilos Socioassistenciais (Brasil 2014)

existem duas modalidades de Serviccedilos de Acolhimento Institucional para Crianccedilas e

Adolescentes (SAICA) 1) abrigo institucional que acolhe ateacute 20 crianccedilas e adolescentes tendo

profissionais que se revezam em plantotildees e 2) casa-lar que atende ateacute 10 acolhidos com uma

pessoa ou casal como educadorcuidador residente Jaacute o apadrinhamento afetivo natildeo eacute

propriamente um serviccedilo de acolhimento nem estaacute tipificado nas normativas do SUAS Mas eacute

uma iniciativa que vem ocorrendo em cada vez mais municiacutepios com o objetivo de lidar com

alguns dos resultados do acolhimento institucional prolongado

No entanto a despeito de natildeo ser oficialmente um serviccedilo do SUAS podemos dizer que

esse programa constitui uma poliacutetica puacuteblica uma vez que envolve escolhas essenciais feitas

pelo poder puacuteblico que produzem materialidades e socialidades (Spink 2018) Aleacutem disso

assim como toda poliacutetica puacuteblica eacute uma accedilatildeo intencional implica implementaccedilatildeo execuccedilatildeo e

avaliaccedilatildeo possui objetivos determinados e apesar de produzir impactos no curto prazo visa

resultados continuados e no longo prazo (Brigagatildeo Nascimento amp Spink 2011) Um dos

1 Vale destacar que o Instituto Fazendo Histoacuteria tem uma publicaccedilatildeo proacutepria que inspirou essa experiecircncia mas

que conteacutem muitas diferenccedilas pois eacute focada em propor etapas e atividades para possiacuteveis implementaccedilotildees mas

natildeo narra uma experiecircncia com seus diversos resultados Essa publicaccedilatildeo eacute citada mais abaixo

105

principais resultados almejados eacute a diminuiccedilatildeo das sequelas de longos periacuteodos de acolhimento

institucional

Apesar de o acolhimento institucional prolongado ser uma realidade em muitos

municiacutepios do paiacutes de acordo com as diretrizes do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA)

(Brasil 1990) essa medida protetiva deveria ser excepcional e provisoacuteria Afinal o ECA

compreende que toda crianccedila e adolescente estaacute em uma condiccedilatildeo peculiar por encontrar-se

ainda em desenvolvimento sendo seu direito ldquoser criado e educado no seio de sua famiacutelia e

excepcionalmente em famiacutelia substituta assegurada a convivecircncia familiar e comunitaacuteria em

ambiente que garanta seu desenvolvimento integralrdquo (Art19) Seguindo essas diretrizes

recentemente o prazo maacuteximo de acolhimento institucional de crianccedilas e adolescentes foi

reduzido de dois anos (Lei 120102009) para 18 meses (Lei 135092017) Assim quando uma

crianccedila ou adolescente eacute acolhido eacute necessaacuteria uma reavaliaccedilatildeo constante de sua situaccedilatildeo a

fim de garantir que a institucionalizaccedilatildeo seja de fato excepcional e provisoacuteria

Rachel Baptista e Maria Helena Zamora (2016) afirmam que a medida protetiva de

acolhimento institucional atinge quase exclusivamente as classes pobres o que para as autoras

daria margem agrave associaccedilatildeo enganosa da pobreza com uma possiacutevel incompetecircncia em fornecer

proteccedilatildeo e cuidados adequados agraves crianccedilas Irene Rizzini Irma Rizzini Luciene Naiff e Rachel

Baptista (2007) entendem que atualmente ldquoressaltam-se as competecircncias da famiacutelia mas na

praacutetica com frequecircncia cobra-se dos pais que deem conta de criar seus filhos mesmo que

faltem poliacuteticas puacuteblicas que assegurem as condiccedilotildees miacutenimas de vida dignardquo (p 18) Na

mesma direccedilatildeo Maria Liacutevia Nascimento (2012) sustenta que haacute situaccedilotildees em que o acolhimento

realmente ocorre como medida provisoacuteria enquanto a famiacutelia se reorganiza contudo a

ldquoproblematizaccedilatildeo se faz em torno do abrigamento como salvaccedilatildeo quando se destinam

recursos apenas para o abrigamento e natildeo para outras possibilidadesrdquo (p 43)

Apoacutes o acolhimento eacute intensificado o trabalho com suas famiacutelias de origem e extensas

(tios avoacutes etc) visando o desacolhimento o mais breve possiacutevel Somente depois de encerradas

as possibilidades de retorno a essas famiacutelias eacute que se considera a destituiccedilatildeo do poder familiar

para futura colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta inscrita no Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e

Acolhimento (SNA)2 (ECA Art101 sect1ordm)

Contudo devido a diversos fatores os SAICAs atendem muitas crianccedilas e adolescentes

2 O antigo e mais conhecido Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo que esteve ativo desde 2008 foi substituiacutedo pelo

Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e Acolhimento (SNA) em 2018 com o objetivo de aperfeiccediloar a busca por

pretendentes agrave adoccedilatildeo Mais informaccedilotildees disponiacuteveis em httpswwwcnjjusbrprogramas-e-acoescadastro-

nacional-de-adocao-cna

106

que legalmente poderiam ser adotados mas permanecem acolhidos ateacute a maioridade Um dos

fatores principais eacute a diferenccedila jaacute conhecida entre o perfil daqueles que podem ser adotados e o

procurado pelos adotantes3

Em pesquisa realizada no antigo Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo (CNA) em julho de

2018 no paiacutes todo havia quase 9 mil crianccedilasadolescentes aptos agrave adoccedilatildeo e mais de 44 mil

pretendentes Entretanto aproximadamente 95 deles desejava crianccedilas de ateacute sete anos e

somente 36 dos acolhidos estava nessa faixa etaacuteria A isso se somam outros fatores como o

fato de aproximadamente 60 dos acolhidos terem irmatildeos e mais de 20 apresentarem

doenccedilas eou deficiecircncias Dessa forma eacute expressivo o nuacutemero de crianccedilas e principalmente

adolescentes que estatildeo acolhidos haacute vaacuterios anos e hoje tecircm pouquiacutessimas chances de adoccedilatildeo

tendo como previsatildeo o desacolhimento por maioridade

Em nova pesquisa realizada no Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e Acolhimento (SNA) em

julho de 2019 foi possiacutevel acessar os dados da Vara da Infacircncia e Juventude (VIJ) ndash Foro

Central Ciacutevel da capital de Satildeo Paulo Nessa VIJ constavam 193 crianccedilas e adolescentes

acolhidos sendo que naquele momento 4 estavam aptas agrave adoccedilatildeo e todas tinham entre 9 e 18

anos Na mesma VIJ ao mesmo tempo havia 203 pretendentes habilitados aguardando para

se tornarem pais haacute ateacute 36 meses contudo nenhum aceitava crianccedilas maiores de 10 anos

O acolhimento institucional prolongado gera consequecircncias bastante estudadas pela

Psicologia Aline Siqueira e Deacutebora DellAglio (2006) fizeram uma revisatildeo bibliograacutefica sobre

os impactos da institucionalizaccedilatildeo que mostrou convergecircncia de muitos estudos ao apontarem

dificuldades funcionais dos serviccedilos de acolhimento (profissionais pouco capacitados e em

nuacutemero insuficiente aleacutem de precariedades de diversas ordens) que resultavam em pouca

efetividade da atuaccedilatildeo da rede de garantia de direitos das crianccedilas e adolescentes As autoras

afirmam ainda que o tempo de permanecircncia em instituiccedilotildees pode ultrapassar dez anos o que

interfere na sociabilidade e na manutenccedilatildeo de viacutenculos na vida adulta

Como uma medida excepcional o acolhimento institucional carrega paradoxos que tecircm

chamado cada vez mais atenccedilatildeo de profissionais e pesquisadores O Plano Nacional de

Promoccedilatildeo Proteccedilatildeo e Defesa dos Direitos de Crianccedilas e Adolescentes agrave Convivecircncia Familiar

e Comunitaacuteria (PNCFC) foi criado em 2006 justamente para ressaltar a necessidade de

combater algumas das dificuldades dessa medida Maria Moreira (2014) afirma que a ldquomedida

de acolhimento institucional traz agrave tona as contradiccedilotildees entre o direito agrave convivecircncia familiar e

3 Esses nuacutemeros satildeo puacuteblicos e podem ser consultados no site do Conselho Nacional de Justiccedila

(httpwwwcnjjusbr)

107

a supressatildeo dessa convivecircncia como condiccedilatildeo para restaurar esse mesmo direito agrave

convivecircnciardquo Ou seja observa-se que o proacuteprio acolhimento promove a tatildeo nociva ruptura de

viacutenculos e limita o direito agrave convivecircncia familiar de quem eacute acolhido em uma instituiccedilatildeo

Diante dessa contradiccedilatildeo o atual modelo de apadrinhamento afetivo surgiu com o

objetivo maior de restaurar o direito agrave convivecircncia familiar e comunitaacuteria dos acolhidos em

instituiccedilotildees Isso vem ocorrendo atraveacutes da modificaccedilatildeo de antigas praacuteticas assistencialistas

criando maior comprometimento dos voluntaacuterios que desejem se aproximar dos SAICAs por

meio de relaccedilotildees individualizadas

Cada programa de apadrinhamento afetivo estabelece suas proacuteprias regras e haacute cidades

que tecircm portarias municipais com as especificaccedilotildees do apadrinhamento naquela localidade ndash

um exemplo disso eacute Satildeo CarlosSP com a Lei nordm 180322016 Mesmo com essa diversidade

pelo paiacutes tal ideia ganhou tanta notoriedade que os poderes judiciaacuterio e legislativo

concentraram esforccedilos para regulamentaacute-la e ampliar sua implementaccedilatildeo

Em 2014 a Corregedoria Geral da Justiccedila do Estado de Satildeo Paulo publicou o

Provimento nordm 362014 regulamentando o apadrinhamento afetivo no estado (Jusbrasil 2016)

O Provimento tinha o objetivo de ldquocriar e estimular a manutenccedilatildeo de viacutenculos afetivos

ampliando assim as oportunidades de convivecircncia familiar e comunitaacuteriardquo (Art 2ordm) No acircmbito

nacional em 2017 a Lei Federal no 13509 incluiu no ECA o seguinte artigo

Art 19-B A crianccedila e o adolescente em programa de acolhimento institucional ou familiar

poderatildeo participar de programa de apadrinhamento

sect 1o O apadrinhamento consiste em estabelecer e proporcionar agrave crianccedila e ao adolescente

viacutenculos externos agrave instituiccedilatildeo para fins de convivecircncia familiar e comunitaacuteria e colaboraccedilatildeo

com o seu desenvolvimento nos aspectos social moral fiacutesico cognitivo educacional e

financeiro

sect 4o O perfil da crianccedila ou do adolescente a ser apadrinhado seraacute definido no acircmbito de cada

programa de apadrinhamento com prioridade para crianccedilas ou adolescentes com remota

possibilidade de reinserccedilatildeo familiar ou colocaccedilatildeo em famiacutelia adotiva (Brasil 2017)

A partir do texto da lei (Brasil 2017) e da literatura consultada (Dantas 2011 Oliveira

2011 Leal 2015 Nascimento amp Malveira 2017 Instituto Fazendo Histoacuteria 2017) eacute possiacutevel

observar que existem ao menos dois tipos de apadrinhamento o afetivo focado em estabelecer

relaccedilotildees de convivecircncia e o financeiro em que pessoas fiacutesicas ou juriacutedicas suprem diferentes

necessidades materiais dos acolhidos

Percebe-se que a lei natildeo define a maneira exata como deve ser executado cada programa

de apadrinhamento nem quais criteacuterios devem ser levados em conta para avaliar a qualidade

da relaccedilatildeo estabelecida ela apenas determina que os acolhidos poderatildeo participar de tais

programas Sendo assim na maior parte das vezes esse trabalho (de seleccedilatildeo capacitaccedilatildeo e

108

acompanhamento das relaccedilotildees) eacute realizado pelas proacuteprias equipes teacutecnicas dos serviccedilos de

acolhimento ndash as quais satildeo compostas necessariamente por uma(um) assistente social e

uma(um) psicoacuteloga(o) (Brasil 2006)

Recentemente foram publicados os resultados de pesquisas que investigaram alguns

programas de apadrinhamento com diferentes enfoques meacutetodos referenciais teoacutericos e

conclusotildees Deacutebora Nascimento e Jamille Malveira (2017) por exemplo realizaram entrevistas

com atores do judiciaacuterio e concluiacuteram que um dos efeitos duradouros do programa seria ldquoa

inserccedilatildeo das crianccedilas na sociedaderdquo (Nascimento amp Malveira 2017 p 50) Juliana Goulart e

Simone Paludo (2014) analisaram a evoluccedilatildeo de cinco ediccedilotildees de um programa de

apadrinhamento Para isso entrevistam 25 afilhados e aplicaram questionaacuterios em seus

respectivos padrinhos com o intuito de identificar o significado da relaccedilatildeo para os envolvidos

As pesquisadoras observaram que os afilhados relataram o apadrinhamento como possibilidade

de afeto e cuidado fora do espaccedilo institucional enquanto que os padrinhos o enxergavam de

maneira assistencialista como forma de ajudar outras pessoas

Jaacute Livia Leal (2015) afirma a importacircncia de tais programas no sentido de proporcionar

visibilidade social para essas crianccedilas e adolescentes o que estimularia o pleno exerciacutecio da

solidariedade e da cidadania Ela sugere que o apadrinhamento pode ter um resultado ainda

mais extremo na garantia da convivecircncia familiar ao defender a utilizaccedilatildeo do mesmo como

instrumento facilitador da adoccedilatildeo homoafetiva Segundo a autora ainda haacute resistecircncia de alguns

magistrados em reconhecer a adoccedilatildeo por casais do mesmo sexo assim a existecircncia de uma

relaccedilatildeo afetiva preacutevia atraveacutes do apadrinhamento poderia ser usada como argumento para

justificar a adoccedilatildeo por esses casais como maior interesse da crianccedilaadolescente

Aline Zerbinatti e Verocircnica Kemmelmeier (2014) por sua vez argumentam que o

apadrinhamento afetivo eacute permeado por ambiguidades e contradiccedilotildees As autoras entrevistaram

padrinhos que demonstraram entendimento sobre as possibilidades e limites de seus viacutenculos

quando perguntados sobre seus desejos de adotar os afilhados todos disseram natildeo ter essa

intenccedilatildeo por diversos fatores circunscrevendo sua motivaccedilatildeo em apadrinhar dentro das

categorias assistecircncia realizaccedilatildeo e condiccedilatildeo No mesmo sentido Karollyne de Sousa e Joatildeo

Paravidini (2011) analisaram quatro entrevistas com madrinhas e o caso cliacutenico de uma crianccedila

apadrinhada Os autores observaram haver em relaccedilatildeo ao apadrinhamento ldquoexaltaccedilatildeo da

solidariedade correlacionada a sentimentos como a bondade e o amor ao proacuteximo narcisismo

exacerbado como tentativa de recuperar a onipotecircncia perdida nos primoacuterdios da existecircncia a

seduccedilatildeo que perpassa a relaccedilatildeo padrinho-crianccedila institucionalizada a ambivalecircncia de

109

sentimentosrdquo (Sousa amp Paravidini 2011 p 537)

Neste artigo seguimos um caminho diferente As reflexotildees que aqui apresentaremos

natildeo estatildeo embasadas em questionaacuterios ou entrevistas mas na experiecircncia de uma das autoras

como membro da comissatildeo responsaacutevel pela implementaccedilatildeo do programa de apadrinhamento

em Osasco o Laccedilos Consideraremos como implementaccedilatildeo um periacuteodo que comeccedilou com a

formaccedilatildeo da Comissatildeo de Implementaccedilatildeo do Programa incluiu o lanccedilamento oficial do Laccedilos

as reuniotildees de rede a preparaccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes os encontros de capacitaccedilatildeo e

seleccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos e os primeiros seis meses de monitoramento e

acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas

2 A Primeira Ediccedilatildeo do Programa Laccedilos

Osasco tem aproximadamente 700 mil habitantes um dos maiores Produtos Internos

Brutos (PIB) do Estado de Satildeo Paulo (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2018) e

tem sua aacuterea urbana conurbada com a cidade de Satildeo PauloSP mantendo caracteriacutesticas de uma

cidade de grande importacircncia econocircmica e social No ano de 2017 contava com cinco abrigos

institucionais de administraccedilatildeo direta e trecircs conveniados agrave Prefeitura

A Secretaria de Assistecircncia Social de Osasco comeccedilou a realizar apadrinhamentos

afetivos em 2016 com algumas crianccedilas e adolescentes acolhidas em SAICAs de administraccedilatildeo

direta de maneira pontual e sempre acordada entre as teacutecnicas dos SAICAs e da VIJ Entatildeo a

partir dos resultados dessas primeiras experiecircncias em 2017 o municiacutepio decidiu implementar

o referido programa de apadrinhamento afetivo A implementaccedilatildeo de um programa municipal

tinha o objetivo de garantir um processo de seleccedilatildeo capacitaccedilatildeo e acompanhamento de maior

qualidade e padronizaccedilatildeo entre os padrinhos de todos os SAICAs

21 A Comissatildeo de Implementaccedilatildeo

Por ser a primeira ediccedilatildeo do Programa houve um processo licitatoacuterio que resultou na

contrataccedilatildeo de uma consultoria Aleacutem das consultoras a comissatildeo responsaacutevel pela

implementaccedilatildeo do programa contou tambeacutem com uma equipe de profissionais do municiacutepio4

A Comissatildeo batizou o projeto como Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo e estabeleceu

4 Danielle Silva Bueno Diretora do Departamento de Proteccedilatildeo Social Especial da Secretaria de Assistecircncia Social

da Prefeitura Municipal de Osasco (DPSE-SAS-PMO) Maacutercia Marciana Favorim Supervisora do DPSE-SAS-

PMO e as Teacutecnicas de SAICA Valquiacuteria De Conto (assistente social) e Andrielly Darcanchy (psicoacuteloga)

110

os criteacuterios para os candidatos a padrinhos

22 Os Criteacuterios para Apadrinhar

Apoacutes consultar algumas experiecircncias existentes (Goulart amp Paludo 2014 Souza amp

Paravidini 2011) optamos por realizar apadrinhamentos exclusivamente de pessoas fiacutesicas e

com o uacutenico intuito de formarem viacutenculos afetivos Era necessaacuterio residir em Osasco ou

comprovar faacutecil acesso agrave cidade Os candidatos natildeo poderiam estar inscritos no entatildeo ativo

CNA e obviamente era imprescindiacutevel ter disponibilidade afetiva e de tempo mantendo ao

menos encontros quinzenais com os afilhados5

23 Lanccedilamento do Programa

Em novembro de 2017 houve a apresentaccedilatildeo oficial do Programa contando com o

prefeito conselheiros tutelares funcionaacuterios dos SAICAs organizaccedilotildees parceiras e

representantes do poder legislativo Do poder judiciaacuterio foi convidada a equipe da Vara de

Infacircncia e Juventude

Foram apresentados dados gerais dos acolhimentos no municiacutepio Naquele momento

havia quatro SAICAs de administraccedilatildeo direta da Prefeitura e trecircs conveniados No total havia

aproximadamente 120 acolhidos sendo a maioria adolescentes

Tambeacutem foi exibido um viacutedeo feito para a divulgaccedilatildeo do Programa com o objetivo de

ilustrar as ideias que os acolhidos tinham sobre ele O viacutedeo continha desenhos e falas das

crianccedilas e adolescentes respondendo a questotildees sobre a importacircncia da relaccedilatildeo com um adulto

e suas expectativas em relaccedilatildeo ao apadrinhamento Nesse viacutedeo os acolhidos relatavam que

precisavam de um adulto para cuidados cotidianos e lazer mas tambeacutem para trocas afetivas

para se sentirem valorizados e para ldquonatildeo ser tratado como um objeto que pode ser trocadordquo nas

palavras de um adolescente Eles relatavam ainda que considerariam os padrinhos como ldquouma

segunda famiacuteliardquo (sic) uma famiacutelia substituta com a qual poderiam contar independentemente

das dificuldades que passassem

Apoacutes a cerimocircnia de lanccedilamento do programa iniciamos as primeiras formaccedilotildees Elas

foram realizadas entre dezembro de 2017 e marccedilo de 2018 e incluiacuteram seis reuniotildees de rede

(com teacutecnicos dos SAICAs dos CREAS e da VIJ) a preparaccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes e

5 Os criteacuterios para apadrinhar e ser apadrinhado estatildeo melhor detalhados no anexo 1

111

seis encontros com os candidatos a madrinhas e padrinhos sendo um deles de caraacuteter luacutedico

Eacute importante ressaltar que todas essas atividades aconteceram simultaneamente durante

o mesmo intervalo de meses Contudo faremos uma divisatildeo didaacutetica dentro dos eixos em que

as atividades se concentraram com os profissionais da rede com os acolhidos e com os

candidatos a madrinhas e padrinhos Dessa forma algumas atividades seratildeo mencionadas mais

de uma vez enfocando o trabalho proposto dentro de cada eixo

24 Reuniotildees de Rede e Preparaccedilatildeo das Crianccedilas e Adolescentes

Na primeira reuniatildeo com diversos atores da rede de proteccedilatildeo apresentamos os marcos

legais e os resultados esperados a criaccedilatildeo de referecircncias afetivas fora de instituiccedilotildees a melhora

na qualidade das relaccedilotildees interpessoais dos afilhados o enriquecimento dos referenciais sociais

e culturais e o suporte emocional oferecido na saiacuteda do acolhimento por maioridade (Goulart

amp Paludo 2014) Seguiram-se a essa outras cinco reuniotildees de rede nas quais decidimos

coletivamente os detalhes da implementaccedilatildeo conforme relatado a seguir (anexo 2)

Na segunda reuniatildeo acordamos os criteacuterios para as crianccedilas e adolescentes

participarem do Programa (1) ter mais de sete anos (2) o apadrinhamento afetivo ser parte do

Plano Individual de Atendimento (PIA) (3) estar acolhido haacute mais de oito meses ndash tempo

acordado como miacutenimo necessaacuterio para a equipe teacutecnica elaborar e avaliar o desenvolvimento

do PIA (4) previsatildeo de longa permanecircncia no SAICA (5) manter poucas referecircncias afetivas

eou todas as referecircncias serem institucionalizadas (6) estar disposto a estabelecer novas

relaccedilotildees

Como naquele momento havia um SAICA que recebia somente crianccedilas de zero a trecircs

anos sem irmatildeos ndash ou seja que natildeo atendiam aos criteacuterios que acabaacutevamos de estabelecer ndash

decidimos que esse equipamento natildeo participaria do Programa Assim foram incluiacutedos apenas

seis SAICAs sendo trecircs de administraccedilatildeo direta e trecircs conveniados

Nessa reuniatildeo tambeacutem solicitamos que as equipes teacutecnicas dos SAICAs fizessem

organogramas com as referecircncias afetivas dos acolhidos qualificando a relaccedilatildeo e a forccedila do

viacutenculo estabelecido Esses organogramas continham o acolhido no centro e todas as pessoas

eou instituiccedilotildees com as quais ele se relacionava sendo que o traccedilo indicativo da relaccedilatildeo poderia

ter caracteriacutesticas (ser uma linha reforccedilada simples ou um tracejado) e cores diferentes para

indicar a intensidade da relaccedilatildeo se ela era conflituosa entre outros adjetivos que a equipe

achasse necessaacuterio ressaltar Esse exerciacutecio foi utilizado principalmente para observar se as

112

relaccedilotildees estabelecidas por cada crianccedilaadolescente eram prioritariamente vinculadas a uma

instituiccedilatildeo principal criteacuterio utilizado para estabelecer quais crianccedilasadolescentes

participariam dessa primeira ediccedilatildeo tendo em vista natildeo haver candidatos a padrinhos para todos

os que se enquadravam aos outros criteacuterios

Na terceira reuniatildeo de rede discutimos coletivamente os casos levantados como

prioritaacuterios e assim criamos uma lista daqueles que participariam dessa e da proacutexima ediccedilatildeo

do programa de acordo com o nuacutemero de candidatos a padrinhos Pelas caracteriacutesticas dos

acolhidos naquele momento essa lista continha somente maiores de 11 anos que jaacute estavam em

acolhimento institucional havia mais de 6 anos chegando a um caso que estava acolhido havia

14 anos

Na quarta reuniatildeo de rede orientamos as equipes teacutecnicas a fazerem duas atividades

de preparaccedilatildeo de todos os acolhidos Primeiramente os teacutecnicos de cada SAICA conduziriam

no seu Serviccedilo uma roda de conversa com todos os integrantes (acolhidos e funcionaacuterios) para

explicar o Programa os criteacuterios estabelecidos quais crianccedilasadolescentes participariam

daquela ediccedilatildeo e por quecirc (anexo 3) As equipes relataram esse momento como uma

oportunidade para observarem a solidariedade entre os acolhidos pois eles foram

gradativamente entendendo os criteacuterios e passaram a compreender e concordar com nossa

escolha de quem deveria participar daquela ediccedilatildeo em detrimento de seus proacuteprios interesses

em ter padrinhos afetivos rapidamente

Em seguida as equipes teacutecnicas de cada SAICA realizaram atendimentos individuais

com os participantes daquela ediccedilatildeo para tirar duacutevidas e confirmar seu interesse ressaltando

que o apadrinhamento envolvia um compromisso com responsabilidades reciacuteprocas Nesse

momento tambeacutem foi solicitado que refletissem sobre como queriam se apresentar aos

padrinhos Essa proposta surgiu da observaccedilatildeo de que as histoacuterias dos acolhidos satildeo muitas

vezes expostas em demasia fazendo com que nunca estejam em uma relaccedilatildeo de maneira

igualitaacuteria podendo escolher o que contar e o que guardar pra si Afinal tal como afirma Maria

Moreira (2014) apesar de repetirmos que a crianccedila e o adolescente satildeo sujeitos de direitos ldquoeles

ainda satildeo pouco escutados sobre a compreensatildeo que tecircm de suas proacuteprias trajetoacuterias sobre as

suas escolhas e sobre as alternativas que propotildeem para seus problemas e dificuldadesrdquo (Moreira

2014 p 36) Thalita Poker (2017) completa ao afirmar que a ldquocrianccedila institucionalizada por

longos periacuteodos eacute um dos sintomas de uma sociedade colonizada cujas poliacuteticas de identidade

infantojuvenis pressupotildeem que as crianccedilas e os adolescentes deveratildeo ter representantes isso

significa que na maioria das situaccedilotildees elas natildeo podem se representarrdquo (Poker 2017 p 8)

113

Com esse cuidado em mente ainda nessa quarta reuniatildeo decidimos fazer um encontro

luacutedico entre todos os candidatos a padrinhos e os acolhidos que poderiam ser apadrinhados

Afinal esse momento descontraiacutedo eacute importante para facilitar a primeira experiecircncia entre os

participantes (Instituto Fazendo Histoacuteria 2017) O encontro luacutedico consistiu em uma gincana

incluindo diversos jogos e brincadeiras aleacutem de um piquenique Ele ocorreu em um parque

sem que houvesse predeterminaccedilatildeo dos apadrinhamentos pois aquele era um momento para

que todos pudessem se conhecer ndash essa informaccedilatildeo foi transmitida e reiterada aos acolhidos e

aos pretendentes por diversas vezes pois eles estavam ansiosos com a formaccedilatildeo das duplas

afilhados-padrinhos

A quinta reuniatildeo ocorreu em seguida e nela discutimos as impressotildees que as crianccedilas

e os adolescentes expressaram agraves equipes Aleacutem disso tambeacutem acordamos os detalhes dos

proacuteximos passos que incluiacuteam uma visita domiciliar aos candidatos a padrinhos para avaliar

a receptividade da famiacutelia expandida ao apadrinhamento a confirmaccedilatildeo do interesse daquela

crianccedilaadolescente em ter aquela pessoa como padrinhomadrinha um atendimento individual

aos candidatos a padrinhos apresentando de maneira breve o possiacutevel afilhado (apenas

caracteriacutesticas e preferecircncias gerais respeitando o acordo de deixar que a crianccedilaadolescente

se apresentasse e escolhesse se iria quando e como contar sua histoacuteria) e por fim os primeiros

passeios individuais dos candidatos a padrinhos com as crianccedilas e adolescentes que desejavam

apadrinhar

Na sexta e uacuteltima reuniatildeo de rede as equipes informaram como foram as visitas

domiciliares os atendimentos aos padrinhos e os primeiros passeios para os acolhidos

25 Capacitaccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos6

Do primeiro encontro participaram 12 nuacutecleos familiares com diferentes composiccedilotildees

ndash casais heterossexuais com e sem filhos casais homossexuais sem filhos famiacutelias

monoparentais e pessoas solteiras Desses nuacutecleos sete estavam dispostos a conhecer qualquer

crianccedilaadolescente Trecircs famiacutelias haviam conhecido previamente alguma crianccedilaadolescente

e participavam do encontro com o interesse de iniciar um apadrinhamento especiacutefico com essa

pessoa jaacute conhecida Outros dois nuacutecleos jaacute apadrinhavam e participaram para qualificar eou

oficializar essa relaccedilatildeo

Realizamos uma rodada de apresentaccedilatildeo em que cada um dizia resumidamente seu

6 O anexo 4 apresenta uma siacutentese das atividades de capacitaccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos

114

interesse em participar do Programa Apareceram motivos variados algumas famiacutelias jaacute tinham

filhos de vaacuterias idades e outras natildeo desejavam tecirc-los mas todas compartilhavam o interesse em

contribuir socialmente e estabelecer uma nova relaccedilatildeo de cuidados e proteccedilatildeo ndash cabe apontar

que tais motivos estatildeo em consonacircncia com os resultados de pesquisas anteriores sobre

programas semelhantes (Sousa amp Paravidini 2011 Goulart amp Paludo 2014 Zerbinatti amp

Kemmelmeier 2014)

No segundo encontro abordamos as principais caracteriacutesticas dos antigos orfanatos e

dos atuais serviccedilos de acolhimento promovendo a discussatildeo sobre conceitos ainda presentes

socialmente como por exemplo o questionamento sobre os acolhidos terem ou natildeo famiacutelia ou

a duacutevida sobre as crianccedilas poderem sair do serviccedilo de acolhimento pois a instituiccedilatildeo algumas

vezes eacute confundida com uma medida de restriccedilatildeo de liberdade para adolescentes em conflito

com a lei As famiacutelias expuseram muitas de suas duacutevidas e preconceitos que puderam ser

trabalhados durante a formaccedilatildeo

Por fim lemos uma paraacutebola de Walter Benjamin (1995) que conta a histoacuteria de um rei

e seu desejo por comer uma omelete de amoras exatamente igual a uma que comera na infacircncia

sendo que ao longo do texto eacute explicado se tratar na verdade do desejo de reviver uma

experiecircncia com grande valor emocional Essa paraacutebola foi usada para ilustrar como as

memoacuterias afetivas satildeo constitutivas das histoacuterias de vida e das identidades

Assim o terceiro encontro foi dedicado agraves referecircncias e memoacuterias afetivas de cada

participante Notamos que todos se referiram exclusivamente a familiares com os quais

mantinham laccedilos consanguiacuteneos por isso aprofundamos a discussatildeo sobre a possibilidade de

estabelecer viacutenculos tatildeo relevantes quanto aqueles com pessoas sem parentesco

O quarto encontro foi o luacutedico Eacute importante ressaltar que ao longo dos encontros o

nuacutemero de candidatos foi diminuindo por motivos que seratildeo explicados a seguir mas ateacute aquele

momento havia seis famiacutelias participando ativamente Todas tinham confirmado presenccedila no

encontro luacutedico por isso levamos ao parque tambeacutem as seis primeiras crianccedilasadolescentes

determinadas nas reuniotildees de rede relatadas Entretanto um dos candidatos faltou e natildeo

conseguimos mais contato com ele Portanto compareceram ao encontro cinco nuacutecleos

familiares e seis acolhidos aleacutem de uma das pessoas que jaacute apadrinhava com a respectiva

afilhada O encontro durou cerca de 4h e ao longo das atividades foi possiacutevel observar quatro

duplas (de padrinhos e afilhados) se aproximando enquanto dois adolescentes apresentaram

dificuldades para se relacionar com os candidatos

115

Apoacutes o encontro luacutedico realizamos a reuniatildeo de rede jaacute relatada na qual os teacutecnicos dos

SAICAs informaram os desejos das crianccedilas e dos adolescentes Com esses dados da reuniatildeo

de rede no quinto encontro com os candidatos a madrinhas e padrinhos ouvimos suas

impressotildees as quais no geral combinavam com as apontadas pelos acolhidos dessa forma

estabelecemos as cinco duplas possiacuteveis

Lembrando que houve uma adolescente que natildeo pocircde ser apadrinhada por causa de uma

desistecircncia repentina trecircs famiacutelias se ofereceram para realizar encontros esporaacutedicos com ela

e assim ampliar seu ciacuterculo de convivecircncia comunitaacuteria

A partir de entatildeo as equipes teacutecnicas dos SAICAs deveriam realizar as visitas

domiciliares e iniciar o apadrinhamento em si com frequecircncia quinzenal Para garantir que jaacute

tivesse ocorrido ao menos um encontro individual com os afilhados realizamos o uacuteltimo

encontro pouco mais de um mecircs depois

Nesse intervalo entre os encontros com os candidatos uma das duplas se desfez Ela era

formada por um adolescente que apresentara dificuldades em se relacionar durante o encontro

luacutedico e logo no primeiro passeio com o candidato a padrinho a comunicaccedilatildeo entre eles foi

difiacutecil O candidato tambeacutem afirmou ter percebido somente naquele momento que desejava

adotar outro perfil de crianccedilaadolescente natildeo apadrinhar por isso pediu para encerrar sua

participaccedilatildeo no Programa Conforme exposto acima jaacute haviacuteamos acordado entre todos os

participantes (candidatos a padrinhos e afilhados) que as possiacuteveis desistecircncias deveriam incluir

uma uacuteltima conversa de encerramento para poderem ser rompimentos cuidados e natildeo

repentinos Contudo naquele momento avaliamos que realizar outro encontro para despedida

seria uma situaccedilatildeo danosa para o adolescente por se tratar apenas de um primeiro passeio que

durou menos de meia hora e por especificidades daquelas pessoas ndash o candidato a padrinho

demonstrou muita dificuldade em lidar com a situaccedilatildeo parecia sentir-se amedrontado por estar

sozinho com o adolescente e o adolescente voltou do encontro dizendo que a relaccedilatildeo natildeo teria

continuidade e que preferia assim Entatildeo realizamos atendimentos individuais com os dois e

compreendemos que seria melhor encerrar o apadrinhamento somente com o adolescente

Por uacuteltimo o sexto encontro encerrou o ciclo de capacitaccedilatildeo do Programa Laccedilos

contando com quatro apadrinhamentos iniciados e dois continuados Esse momento foi

dedicado agrave discussatildeo das impressotildees dos padrinhos em relaccedilatildeo aos primeiros encontros com os

afilhados Em comum todas as famiacutelias relataram entusiasmo com o iniacutecio da relaccedilatildeo

116

26 Acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas

Conforme mencionado consideramos os primeiros seis meses de convivecircncia como

parte do processo de implementaccedilatildeo pois estaacutevamos realizando acompanhamentos constantes

a fim de verificar a efetividade das accedilotildees realizadas ateacute entatildeo Os acompanhamentos envolviam

trabalhos com os afilhados e com os padrinhos divididos entre as equipes teacutecnicas dos SAICAs

e a Comissatildeo sendo necessaacuteria comunicaccedilatildeo constante e organizada

As equipes teacutecnicas dos SAICAs realizavam atendimentos individuais com os afilhados

e em separado com os padrinhos sendo os resultados informados periodicamente agrave Comissatildeo

(anexo 5) Esses atendimentos tinham o objetivo de monitorar periodicamente como a relaccedilatildeo

estava se desenvolvendo no cotidiano

Jaacute agrave Comissatildeo cabiam encontros com periodicidade bimestral com todos os padrinhos

A proposta desses encontros era fornecer um momento para os padrinhos partilharem como

estava sendo a experiecircncia de apadrinhar uma crianccedilaadolescente que residia havia muitos anos

em um SAICA Portanto nesses encontros eles podiam compartilhar de maneira mais geral

como estavam sendo os contatos e dividir os sentimentos que esses encontros provocavam

Dentre os quatro apadrinhamentos iniciados dois resultaram em desistecircncias durante

esses primeiros seis meses de convivecircncia Uma das desistecircncias envolveu uma adolescente

proacutexima do seu desacolhimento por maioridade A relaccedilatildeo comeccedilou a apresentar dificuldades

nos primeiros meses de convivecircncia a ponto de os padrinhos solicitarem o encerramento Esse

apadrinhamento foi estabelecido com uma adolescente de 16 anos pertencente a um grande

grupo de irmatildeos com acolhimentos anteriores e uma histoacuteria transgeracional de extrema

vulnerabilidade social

Antes do encontro luacutedico a adolescente havia sido selecionada para trabalhar como

Jovem Aprendiz em um programa organizado pelo casal na empresa em que trabalhavam entatildeo

ela comeccedilou a trabalhar chefiada pela madrinha no mesmo periacuteodo em que iniciou a relaccedilatildeo

Poucas semanas apoacutes o iniacutecio do trabalho a madrinha disse que a jovem natildeo estava se

comportando adequadamente (usava vestes inadequadas e chegou a dormir em algumas

atividades no horaacuterio de trabalho) e o apadrinhamento estava afetando o programa Jovem

Aprendiz na empresa como um todo pois os outros jovens entendiam que ela estava tendo um

tratamento privilegiado O casal de padrinhos expressou ainda que o acompanhamento teacutecnico

teria sido insuficiente para lidar com essas questotildees Por isso eles decidiram encerrar a relaccedilatildeo

sozinhos recusando nossas indicaccedilotildees de realizar o encerramento na presenccedila da equipe teacutecnica

117

do SAICA ou da Comissatildeo Ademais logo apoacutes o fim do apadrinhamento eles tambeacutem

desligaram a adolescente do trabalho

A outra desistecircncia envolveu uma adolescente acolhida desde crianccedila e com um

transtorno mental em tratamento Depois de alguns encontros os padrinhos que tinham dois

filhos pequenos pediram para encerrar o apadrinhamento por falta de tempo questotildees de sauacutede

na famiacutelia e ciuacutemes por parte dos filhos Da mesma forma solicitamos que o encerramento

fosse mediado pela Comissatildeo e nos oferecemos para atendecirc-los a qualquer dia e horaacuterio

(inclusive fora dos nossos horaacuterios de trabalho agrave noite ou em algum final de semana) mas eles

afirmaram total indisponibilidade Por fim eles tiveram uma uacuteltima conversa raacutepida com a

adolescente por telefone e a psicoacuteloga que a tratava ficou responsaacutevel por retomar os

significados daquele encerramento com a adolescente

3 Discussatildeo sobre os resultados da primeira ediccedilatildeo do Programa Laccedilos

Essa primeira experiecircncia produziu natildeo somente novas relaccedilotildees novos viacutenculos novos

afetos Mas produziu tambeacutem desistecircncias e frustraccedilotildees aleacutem da percepccedilatildeo de que era possiacutevel

(e necessaacuterio) aperfeiccediloar o Programa

Conforme mencionado no toacutepico anterior no primeiro encontro havia 12 famiacutelias

(Quadro 1) sete dispostas a conhecer qualquer crianccedilaadolescente trecircs desejavam iniciar uma

relaccedilatildeo especiacutefica e duas jaacute apadrinhavam As duas famiacutelias que participaram do Programa para

qualificar e oficializar seus apadrinhamentos concluiacuteram os encontros e mantiveram as

relaccedilotildees

As trecircs famiacutelias que desejavam iniciar uma relaccedilatildeo de apadrinhamento especiacutefica natildeo

concluiacuteram o programa Uma delas relatou logo no primeiro encontro que desejava adotar as

adolescentes mencionadas e foi orientada a procurar a VIJ A segunda famiacutelia era composta

pela professora da crianccedila desejada o casal tinha dois filhos menores de quatro anos e estava

muito sensibilizado com a situaccedilatildeo da crianccedila acolhida mas ao longo das formaccedilotildees eles

perceberam que naquele momento natildeo conseguiriam assumir mais esse compromisso A

terceira famiacutelia desistiu apoacutes o encontro em que discutimos preconceitos pois percebeu que

tinha muitos receios quanto agraves dificuldades que poderia vivenciar nesse tipo de relaccedilatildeo

Das outras sete famiacutelias uma delas engravidou durante o ciclo de encontros Outra

conforme relatado desistiu no dia do encontro luacutedico sem nos informar os motivos nem

retornar nossas diversas tentativas de contato Uma terceira desistiu apoacutes o primeiro passeio

118

sozinho com o adolescente quando percebeu que queria adotar em vez de apadrinhar Por fim

quatro apadrinhamentos foram iniciados

Dentre esses quatro dois foram encerrados por solicitaccedilatildeo dos padrinhos conforme

descrito acima Entatildeo ao final do periacuteodo que denominamos implementaccedilatildeo somente duas

relaccedilotildees foram iniciadas pelo Programa e outras duas relaccedilotildees anteriores permaneceram

Quadro 1 ndash Resultados da implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos

Famiacutelia Interesse inicial Desfecho Momento Motivo

1 Qualificar e oficializar

apadrinhamento

Relaccedilatildeo

mantida

______ ______

2 Qualificar e oficializar

apadrinhamento

Relaccedilatildeo

mantida

______ ______

3 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo

______ ______

4 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo

______ ______

5 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo e

Desistecircncia

No iniacutecio da

convivecircncia

Dificuldades na relaccedilatildeo

6 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo e

Desistecircncia

No iniacutecio da

convivecircncia

Falta de tempo questotildees de

sauacutede e ciuacutemes

7 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Dificuldades na relaccedilatildeo e

desejo por adoccedilatildeo

8 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Gravidez

9 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Natildeo justificado

10 Apadrinhamento

especiacutefico

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Desejava adotar

11 Apadrinhamento

especiacutefico

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Sem condiccedilotildees no

momento familiar

12 Apadrinhamento

especiacutefico

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Tinha receios

Portanto percebemos que das doze famiacutelias iniciais mais de 65 (oito) desistiu por

motivos diversos durante as formaccedilotildees ou no iniacutecio da convivecircncia O que mais chama a

atenccedilatildeo eacute o fato de 25 do grupo inicial (trecircs famiacutelias dentre as doze iniciais) ter desistido por

motivos que indicavam natildeo terem seus projetos familiares concluiacutedos - como o iniacutecio de uma

gravidez ou a decisatildeo por adotar Esse dado se destaca porque pode indicar como nossa

sociedade enxerga essas crianccedilas e adolescentes acolhidos e como se relaciona com eles como

aqueles com quem se pode assumir um compromisso e abandonaacute-lo sem grandes preocupaccedilotildees

119

O fato de algumas dessas famiacutelias desejarem adotar levanta a duacutevida sobre os motivos

que as levaram a procurar o apadrinhamento afetivo Apoiadas na dissertaccedilatildeo de mestrado de

Karollyne de Sousa (2011) que reflete sobre o processo de apadrinhamento observando que ele

envolve um ldquonarcisismo exacerbado como tentativa de recuperar a onipotecircncia perdida nos

primoacuterdios da existecircnciardquo (Sousa 2011 p 7) eacute possiacutevel questionar se esse interesse estaria

relacionado agrave intenccedilatildeo de utilizar o apadrinhamento como um teste drive uma experiecircncia de

convivecircncia com uma crianccedila ou adolescente acolhido sem o compromisso de filiaccedilatildeo sabendo

que assim que quisessem adotar teriam plenas condiccedilotildees legais para isso Se fosse esse o caso

seraacute que soacute desistiram do apadrinhamento pela nossa insistecircncia em explicitar o

comprometimento necessaacuterio para iniciar aquela relaccedilatildeo

Provavelmente nem os candidatos saberiam responder essas questotildees pois eacute comum a

situaccedilatildeo do acolhimento levantar sentimentos ambiacuteguos nos primeiros contatos Sendo assim

eacute importante que a capacitaccedilatildeo mobilize repetidas reflexotildees sobre as dimensotildees afetivas

envolvidas no apadrinhamento a fim de que os candidatos estejam seguros quanto ao desejo de

iniciar a relaccedilatildeo Portanto eacute fundamental contribuir na elucidaccedilatildeo do interesse dessas famiacutelias

em participar do Programa e eacute esperado que haja um nuacutemero de desistecircncias

Quanto agraves desistecircncias que chegaram a envolver alguns contatos com os adolescentes

(seja na aproximaccedilatildeo ou no iniacutecio da convivecircncia) eacute importante refletir sobre alguns pontos

Nina Costa e Maria Rossetti-Ferreira (2009) afirmam que ldquoa ameaccedila ou existecircncia de rupturas

afetivas anteriores parece criar enredamentos ou tramas que as pessoas em interaccedilatildeo reeditam

nas suas praacuteticas dialoacutegicas e discursivas coconstruindo no momento atual os problemas ou

uma visatildeo de desenvolvimento inadequado para essas crianccedilasrdquo (Costa amp Rossetti-Ferreira

2009 p 116) Na mesma direccedilatildeo Bruna Wendt Luana Dullius e Deacutebora DellAglio (2017)

realizaram uma pesquisa quantitativa sobre as imagens sociais atribuiacutedas aos jovens em

acolhimento institucional Atraveacutes da aplicaccedilatildeo de questionaacuterio fechado em 224 pessoas de 18

a 71 anos que tinham ou natildeo contato com acolhidos as autoras observaram que as

caracteriacutesticas negativas foram mais associadas aos jovens em acolhimento institucional

(Wendt Dellius amp DellrsquoAglio 2017 p 529) em comparaccedilatildeo com os jovens cuidados por suas

famiacutelias Essas informaccedilotildees demonstram obstaacuteculos que permeiam o processo de

apadrinhamento afetivo de adolescentes com perspectiva de longa permanecircncia na instituiccedilatildeo

como era o caso dos que participaram dessa ediccedilatildeo do Programa

Outro fator que pode ter contribuiacutedo para o alto nuacutemero de desistecircncias eacute o fato de haver

ldquosemelhanccedilas do processo de apadrinhamento com o processo de adoccedilatildeo no que diz respeito agrave

120

busca do filho ideal que se estende agrave procura do padrinho ideal e do afilhado idealrdquo (Sousa amp

Paravidini 2011 p537) Ou seja haacute afilhados que apresentam comportamentos que aos olhos

dos padrinhos satildeo vistos como inadequados (comportamentos agressivos ou desafiadores)

mas tambeacutem eacute possiacutevel observar idealizaccedilotildees e baixa toleracircncia por parte de alguns padrinhos

A partir dessa primeira experiecircncia uma liccedilatildeo importante que levamos para a segunda

ediccedilatildeo do Programa foi a realizaccedilatildeo de encontros luacutedicos com menos acolhidos que candidatos

a padrinhos preferindo formar uma lista de espera dos adultos e natildeo das crianccedilas e adolescentes

Outra modificaccedilatildeo baseada nessa experiecircncia relatada foi a realizaccedilatildeo de dois encontros

luacutedicos na segunda ediccedilatildeo que foi iniciada em 2018 Na segunda ediccedilatildeo fizemos o primeiro

encontro luacutedico totalmente livre como em 2017 mas entatildeo a partir das afinidades nele

observadas aliadas aos perfis dos acolhidos e dos candidatos realizamos um segundo encontro

luacutedico em que indicamos aos adultos que se aproximassem mais de duas crianccedilasadolescentes

que avaliaacutevamos como combinaccedilotildees possiacuteveis Eacute importante indicar que essa segunda ediccedilatildeo

contou com a consultoria do Instituto Fazendo Histoacuteria sendo que muitas das alteraccedilotildees foram

resultantes da nossa experiecircncia combinada com as propostas daquela equipe

Tambeacutem ampliamos o acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas nessa e na segunda

ediccedilatildeo Incluiacutemos encontros coletivos entre os afilhados aleacutem de manter os atendimentos

individuais e os encontros dos padrinhos com a Comissatildeo passaram a ter frequecircncia mensal

Como resultados imediatos observamos uma diminuiccedilatildeo do percentual de desistecircncias de

candidatos durante a capacitaccedilatildeo e eles relataram seguranccedila e satisfaccedilatildeo com o processo de

formaccedilatildeo das duplas de padrinhos-afilhados por terem tido dois encontros luacutedicos As

mudanccedilas no acompanhamento apoacutes iniacutecio da convivecircncia ainda estatildeo sendo avaliadas mas a

maior parte dos padrinhos tem frequentado os encontros e aproveitado esse espaccedilo de trocas de

experiecircncias Por fim planejamos continuar realizando ediccedilotildees anuais do Programa no

municiacutepio com o intuito de ter padrinhos para todos os acolhidos que possam se beneficiar

dessa relaccedilatildeo

Consideraccedilotildees finais

Notamos que apesar de haver alguns estudos relativos agraves motivaccedilotildees que levam pessoas

a apadrinhar e reflexotildees quanto aos sentimentos envolvidos nesse ato os estudos sobre efeitos

do apadrinhamento afetivo ainda estatildeo em passo inicial principalmente quanto agrave contribuiccedilatildeo

especiacutefica da Psicologia nesses processos Da mesma forma a efetividade dessa iniciativa na

121

garantia de convivecircncia familiar e na diminuiccedilatildeo dos impactos da institucionalizaccedilatildeo estaacute em

construccedilatildeo necessitando de mais estudos sobre seus resultados

Contudo se faltam estudos que discutam as contribuiccedilotildees da Psicologia para esse

programa especiacutefico haacute uma ampla literatura que discorre sobre suas contribuiccedilotildees para as

poliacuteticas puacuteblicas em geral ou mais especificamente para a poliacutetica de Assistecircncia Social Para

isso partem de diferentes abordagens e posicionamentos poliacuteticos bem como apresentam

argumentos distintos Apesar dessas diferenccedilas muitas(os) autoras(es) parecem concordar com

a afirmaccedilatildeo de que a entrada maciccedila da Psicologia no campo das poliacuteticas puacuteblicas trouxe agrave

tona a necessidade de repensar suas praacuteticas hegemocircnicas (Brigagatildeo Nascimento amp Spink

2011 Cordeiro 2018 Yamamoto 2007) Afinal nesse campo natildeo haacute a presenccedila do setting

tradicional as demandas satildeo outras as possibilidades de intervenccedilatildeo satildeo distintas No caso

especiacutefico da Assistecircncia Social a cliacutenica tradicional tatildeo enfatizada pelos cursos de graduaccedilatildeo

eacute inclusive proibida - documentos normativos do SUAS e referecircncias teacutecnicas do conselho de

classe afirmam claramente que usuaacuterias(os) que necessitam de atendimento cliacutenico devem ser

encaminhadas(os) para serviccedilos de sauacutede (Conselho Federal de Psicologia 2012 2013) Mas o

que fazem entatildeo as psicoacutelogas e psicoacutelogos que atuam nessa poliacutetica puacuteblica Ou melhor

como a Psicologia pode contribuir para sua implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo

Diversas(os) autoras(es) sustentam que nossa contribuiccedilatildeo reside sobretudo na nossa

capacidade de intervir em questotildees subjetivas eou intersubjetivas (Cordeiro 2019) Aleacutem

disso ressaltam a importacircncia da interface entre os fatores psicoloacutegicos e sociais nas situaccedilotildees

de risco e vulnerabilidade e destacam a necessidade de pensar a subjetividade sempre de forma

contextualizada (Cordeiro 2019 pp 170-171) Maria Luacutecia Afonso e colaboradoras(es)

(2012) chamam a nossa atenccedilatildeo para o fato de que fazer isso implica

criar condiccedilotildees sociais para o exerciacutecio da cidadania (promoccedilatildeo dos direitos socioassistenciais)

bem como favorecer as condiccedilotildees subjetivas para o seu exerciacutecio (circular informaccedilatildeo

fortalecer participaccedilatildeo desenvolver potencialidades facilitar processos decisoacuterios dentre

outros) Transformaccedilotildees sociais tecircm impacto sobre identidades sociais relaccedilotildees e valores

(Afonso et al 2012 p 197)

Nesse sentido garantir o exerciacutecio da cidadania de crianccedilas e adolescentes acolhidos

natildeo significa simplesmente oferecer um teto embaixo do qual eles podem dormir Mas criar

condiccedilotildees para que possam se desenvolver aprender ressignificar suas histoacuterias construir

novos viacutenculos afetar e ser afetado E eacute justamente nesse ponto que os programas de

apadrinhamento afetivo buscam intervir

No entanto cabe ressaltar que tal intervenccedilatildeo natildeo acontece sem contradiccedilotildees

122

Conforme exposto o apadrinhamento visa garantir o direito agrave convivecircncia familiar e

comunitaacuteria modificando o formato de relaccedilotildees que jaacute se formavam entre acolhidos e adultos

que natildeo trabalham na instituiccedilatildeo Entatildeo notamos que apesar de ser um direito e como tal deve

ser garantido pelo Estado o apadrinhamento afetivo depende da disponibilidade de voluntaacuterios

os quais geralmente satildeo motivados primeiramente por uma ideia de caridade

Eacute importante salientar que esse tipo de viacutenculo soacute pode se formar com pessoas que natildeo

tecircm sua relaccedilatildeo mediada por uma questatildeo trabalhista O padrinho natildeo poderia ser um

profissional contratado para estabelecer uma relaccedilatildeo diferenciada com o acolhido pois o

viacutenculo mais importante de um funcionaacuterio eacute com o trabalho natildeo com a crianccedilaadolescente

(Mariotto 2009) Assim vale lembrar que nossa Constituiccedilatildeo Federal se destaca por propor a

participaccedilatildeo social e convocar a populaccedilatildeo a tambeacutem se comprometer com a garantia de seus

direitos contribuindo ativamente para as poliacuteticas puacuteblicas Sendo assim o apadrinhamento

efetiva a participaccedilatildeo da sociedade na garantia de seus direitos de maneira solidaacuteria

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Anexos

Anexo 1 Caracteriacutesticas gerais do Programa Laccedilos

Tipo de Apadrinhamento exclusivo com pessoas fiacutesicas com o objetivo de formar viacutenculos

afetivos entre padrinhos e afilhados

Criteacuterios para apadrinhar

Residir em Osasco ou comprovar faacutecil acesso agrave cidade

Natildeo estar inscritos no Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo

Ter disponibilidade afetiva e de tempo

Manter encontros presenciais com o afilhado ao menos duas vezes por mecircs

Criteacuterios para ser apadrinhado

Ter mais de sete anos

O apadrinhamento afetivo deve ser parte do Plano Individual de Atendimento (PIA)

Estar acolhido haacute mais de oito meses ndash tempo acordado como miacutenimo necessaacuterio para a equipe

teacutecnica elaborar e avaliar o desenvolvimento do PIA

Ter previsatildeo de longa permanecircncia no SAICA

Manter poucas referecircncias afetivas ou todas serem institucionalizadas

Estar disposto a estabelecer novas relaccedilotildees

Anexo 2 Reuniotildees de Rede ndash com teacutecnicos dos SAICAs dos CREAS e da VIJ

Objetivos Resultados

1ordf Apresentar os marcos legais e os

resultados esperados do Programa

Maior conhecimento e disponibilidade para

participaccedilatildeo dos profissionais envolvidos

com o acolhimento em diferentes dimensotildees

2ordf Estabelecer os criteacuterios para os

acolhidos participarem do Programa

Criaccedilatildeo de consenso entre os profissionais

sobre as especificidades do programa

3ordf Decidir quais crianccedilas e adolescentes

participaratildeo daquela ediccedilatildeo

Anaacutelise da rede de relaccedilotildees de cada acolhido

e estabelecimento de prioridade de casos para

a participaccedilatildeo

4ordf Orientaccedilatildeo das equipes teacutecnicas dos

SAICAs sobre a preparaccedilatildeo de todos os

acolhidos para o programa e dos

participantes daquela ediccedilatildeo para o

encontro luacutedico

Estabelecimento de um roteiro com temas a

serem abordados em uma roda de conversa

com todos os acolhidos e um atendimento

individual com os participantes daquela

ediccedilatildeo

5ordf Elencar as impressotildees das crianccedilas e

adolescentes quanto aos candidatos a

Apresentaccedilatildeo dos relatos dos acolhidos sobre

o encontro luacutedico e seus candidatos

126

padrinhos a fim de combinaacute-las com as

impressotildees dos adultos e acertar os

proacuteximos passos da aproximaccedilatildeo com

as equipes teacutecnicas dos SAICAs

preferidos aleacutem do acordo de que as equipes

de cada SAICA realizariam visita domiciliar

confirmaccedilatildeo do interesse do acolhido

atendimentos individuais e os primeiros

encontros das duplas

6ordf Acompanhar o desenvolvimento da

aproximaccedilatildeo acordada na reuniatildeo

anterior

Apresentaccedilatildeo das visitas domiciliares dos

atendimentos aos padrinhos e das primeiras

saiacutedas com os acolhidos

Anexo 3 Preparaccedilatildeo das Crianccedilas e Adolescentes ndash realizadas em cada SAICA

Presentes Objetivos Resultados

Rodas de

Conversa

Todos os

acolhidos e

funcionaacuterios

de cada abrigo

Explicar etapas e

criteacuterios do Programa e

quais acolhidos

participariam daquela

ediccedilatildeo

Observaccedilatildeo da

compreensatildeo e

solidariedade entre os

acolhidos e capacitaccedilatildeo dos

demais funcionaacuterios do

SAICA

Atendimentos

individuais antes

do encontro

luacutedico

Apenas os

acolhidos

participantes

da ediccedilatildeo

Confirmar interesse na

criaccedilatildeo de uma nova

relaccedilatildeo

Promoccedilatildeo da implicaccedilatildeo

dos acolhidos em

participar pois passaram a

entender seu protagonismo

Encontro luacutedico Apenas os

acolhidos

participantes

da ediccedilatildeo

Promover a

aproximaccedilatildeo entre

candidatos e acolhidos

Alguns acolhidos

participaram das atividades

e outros natildeo

Atendimentos

individuais apoacutes

o encontro luacutedico

Apenas os

acolhidos

participantes

da ediccedilatildeo

Levantar como estava a

interaccedilatildeo com os

candidatos e a

aproximaccedilatildeo

Levantamento de dados

importantes para avaliar a

continuidade das

aproximaccedilotildees

Anexo 4 Encontros com candidatos a madrinhas e padrinhos

Objetivos Resultados

1ordm Apresentaccedilatildeo dos candidatos e de

seus interesses em participar

Iniacutecio da formaccedilatildeo do grupo

2ordm Diferenciar orfanatos de SAICAs e

refletir sobre conceitos associados

aos acolhidos

Promoccedilatildeo de reflexotildees sobre a realidade dos

acolhimentos com os quais teriam contato

3ordm Refletir sobre as referecircncias e

memoacuterias afetivas dos candidatos

Todos se referiram a familiares por isso discutimos

a possibilidade de estabelecer viacutenculos relevantes

com pessoas sem parentesco

4ordm Encontro luacutedico Todos os candidatos a padrinhos estavam bastante

participativos

5ordm Ouvir suas impressotildees sobre o

encontro luacutedico

Levantamento de informaccedilotildees para realizar a

combinaccedilatildeo das duplas de padrinhos e afilhados

6ordm Acompanhar os primeiros

encontros sozinhos com os

afilhados e as expectativas

Encerramento da capacitaccedilatildeo e observaccedilatildeo de que

todos estavam animados com o iniacutecio da

convivecircncia

127

Anexo 5 Acompanhamento

Com afilhados Atendimentos individuais com as equipes de cada SAICA e encontros

coletivos dos afilhados

Com padrinhos Contatos semanais dos teacutecnicos dos SAICAs com os padrinhos e encontros

bimestrais dos padrinhos com a Comissatildeo do Programa

128

Capiacutetulo 7

A concepccedilatildeo desenvolvimentista de adolescecircncia e seus impasses para a

poliacutetica de Assistecircncia Social

Mariana Belluzzi Ferreira

Carolina Esmanhoto Bertol

Introduccedilatildeo

As poliacuteticas do campo da Assistecircncia Social foram instituiacutedas pela Constituiccedilatildeo Federal

(Brasil 1988) trazendo importantes mudanccedilas ao tomar como responsabilidade puacuteblica

necessidades ateacute entatildeo consideradas de acircmbito pessoal ou individual (Brasil 2013 Sposati

2009) Como poliacutetica puacuteblica a Assistecircncia Social ancora-se na prevalecircncia do interesse

puacuteblico possuindo caraacuteter contiacutenuo regular universal e obrigatoacuterio Regulamentada em 1993

por meio da Lei 8742 (Brasil 1993) ela passa a compreender as situaccedilotildees de desproteccedilatildeo

social como expressatildeo de uma questatildeo social ou seja produzida por determinantes histoacutericos

poliacuteticos e sociais que natildeo podem ser atribuiacutedos a um sujeito ou agraves particularidades de uma

determinada famiacutelia ou grupo Ao entender que uma poliacutetica puacuteblica trata de necessidades

sociais e coletivas ainda que essas se manifestem concretamente em situaccedilotildees e pessoas eacute

preciso que a gestatildeo ganhe competecircncia e conhecimento na atenccedilatildeo superaccedilatildeo e ateacute mesmo

prevenccedilatildeo dessas necessidades (Brasil 2013)

Destaca-se assim o fato de o Estado tambeacutem estar implicado em situaccedilotildees de

desproteccedilatildeo situando o sofrimento do sujeito e de sua famiacutelia nos contextos histoacuterico e poliacutetico-

social nos quais estatildeo inseridos e natildeo mais em si mesmos Assume-se que o Estado eacute

responsaacutevel pela proteccedilatildeo da famiacutelia e de seus membros pois dada a estruturaccedilatildeo social e

econocircmica do paiacutes em uma histoacuteria de escravidatildeo ele tambeacutem foi e eacute produtor de desigualdades

sociais e desproteccedilatildeo de muitas famiacutelias

Apesar das mudanccedilas descritas observamos contudo que a concepccedilatildeo da Assistecircncia

Social como poliacutetica puacuteblica centrada no princiacutepio do direito ainda eacute um modelo a ser

implantado um norte muito mais do que uma realidade jaacute efetuada (Sposati 2009) Estamos

diante do processo de institucionalizaccedilatildeo desta poliacutetica de seus princiacutepios e concepccedilotildees

129

fundantes e de suas seguranccedilas socioassistenciais1 resultante da tensatildeo entre dois discursos

antagocircnicos presentes neste campo (Ferreira 2015) Sposati (2009) acrescenta que avanccedilar na

institucionalizaccedilatildeo da Assistecircncia Social como poliacutetica puacuteblica consiste em efetuar um tracircnsito

do acircmbito individual para o social consistindo esse tracircnsito na ldquoraiz fundante da poliacutetica

puacuteblicardquo e exigindo o seu deslocamento do acircmbito assistencialista para o da compreensatildeo da

proteccedilatildeo e do direito

No caso de crianccedilas e adolescentes podemos compreender que o discurso que se

encontra instituiacutedo consiste no discurso assistencialista menorista que atribui agrave crianccedila e ao

adolescente os lugares de carecircncia anormalidade e perigo e agrave sua famiacutelia o lugar de ldquoincapazrdquo

Jaacute o discurso instituinte refere-se agrave compreensatildeo da proteccedilatildeo e do direito como necessidades

coletivas responsabilidades puacuteblicas e potecircncias relacionais No que diz respeito

especificamente ao campo dos direitos da infacircncia e juventude o Estatuto da Crianccedila do

Adolescente (ECA) (Brasil 1990) efetivou um tracircnsito do acircmbito individual para o social ao

prever o direito universal de Proteccedilatildeo Integral aplicado portanto a todas as crianccedilas e

adolescentes deixando assim de ser restrito como seraacute visto a seguir aos filhos das famiacutelias

pobres identificados anteriormente pelo Coacutedigo de Menores agrave categoria menor (Brasil 1979)

A contiacutenua institucionalizaccedilatildeo da poliacutetica de Assistecircncia Social exige o seu

deslocamento do discurso instituiacutedo para o discurso instituinte consistindo assim em desafio

presente no cotidiano de trabalho dos diversos serviccedilos e nas muacuteltiplas relaccedilotildees estabelecidas

entre trabalhadores crianccedilas adolescentes e familiares Essas relaccedilotildees satildeo construiacutedas de

acordo com os lugares atribuiacutedos no discurso institucional e no discurso social mais amplo agraves

famiacutelias e agraves crianccedilas e aos adolescentes

Assim nesse artigo procuramos problematizar como a execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

destinadas a garantir os direitos dos adolescentes eacute ainda um grande desafio no acircmbito da

Assistecircncia Social A despeito dos avanccedilos legais e poliacuteticos em nossa atuaccedilatildeo profissional e

de pesquisa fica evidente que as principais poliacuteticas para essa populaccedilatildeo ainda atribuem ao

adolescente os lugares de carente desviante ou perigoso como o antigo Coacutedigo de Menores o

fazia

Neste trabalho problematizaremos entatildeo como o discurso menorista insiste e

reatualiza-se muitas vezes na noccedilatildeo de proteccedilatildeo e de desenvolvimento que estaacute na base das

atuais poliacuteticas puacuteblicas dirigidas a essa populaccedilatildeo atravessando o cotidiano dos serviccedilos

1 A poliacutetica puacuteblica de Assistecircncia Social deve afianccedilar trecircs seguranccedilas sociais especiacuteficas de sobrevivecircncia (ou

de rendimento e autonomia) de acolhida e de convivecircncia (familiar e comunitaacuteria) (Brasil 2004)

130

socioassistenciais e ratificando praacuteticas de exclusatildeo Partiremos da discussatildeo de dois casos

institucionais ndash o desacolhimento institucional de adolescentes por maioridade e as medidas

socioeducativas em meio aberto ndash para apresentar os efeitos desse discurso e como dispositivos

coletivos de discussatildeo de caso podem operar novos efeitos As discussotildees apresentadas

baseiam-se em parte nas pesquisas de mestrado e doutorado realizados pelas autoras sob o

aporte da Psicanaacutelise Implicada (Rosa 2012) no Programa de Estudos Poacutes-Graduados em

Psicologia Social da PUC-SP

1 O lugar da crianccedila e do adolescente na Doutrina de Situaccedilatildeo Irregular

O seacuteculo XX foi caracterizado como um periacuteodo de grande presenccedila do Estado na

implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de atendimento agrave categoria dos entatildeo chamados

ldquomenoresrdquo Ele inicia-se com a instituiccedilatildeo do Coacutedigo de Menores de 1927 o qual sofreu

algumas alteraccedilotildees culminando no novo Coacutedigo de Menores de 1979 Esse periacuteodo que ficou

amplamente conhecido como tutelar buscava identificar crianccedilas que estivessem em risco

devido agrave falta de condiccedilotildees morais e materiais de suas famiacutelias e colocaacute-las sob a tutela do

Estado Os processos de reeducaccedilatildeo eram a diretriz das instituiccedilotildees que se ocupavam destas

crianccedilas nas quais investia-se na compreensatildeo dos comportamentos da infacircncia e suas causas

e da construccedilatildeo de teacutecnicas e intervenccedilotildees mais eficazes na prevenccedilatildeo e na mudanccedila de

comportamentos indesejaacuteveis (Donzelot 1980)

Como passaram a ser vistos com caracteriacutesticas e necessidades especiacuteficas agraves suas fases

da vida aqueles que apresentavam condutas antissociais foram diagnosticados como carentes

e desajustados em funccedilatildeo da ldquoausecircncia moral da falta de formaccedilatildeo de valores haacutebitos e atitudes

desejaacuteveis dentro do considerado padratildeo liberal bem como resultado da falta de afeto e amor

da famiacuteliardquo (Silva 2011 p 86) Juntamente com esta nova concepccedilatildeo se produziu a ideia de

que as famiacutelias pobres natildeo estavam aptas a educar e dar condiccedilotildees adequadas ao

desenvolvimento de seus filhos

Entretanto nesse periacuteodo natildeo se buscava levantar as condiccedilotildees sociais das famiacutelias para

avaliar suas necessidades e contribuir para sua promoccedilatildeo social mas apenas para julgaacute-las e

apontar falhas nas suas formas de vida Nesse sentido elas acabavam sendo culpabilizadas pela

sua situaccedilatildeo de precariedade social pela sua inadequaccedilatildeo a uma norma moral dominante Por

outro lado o Estado se desresponsabilizava pela produccedilatildeo das condiccedilotildees de pobreza na qual

essas famiacutelias viviam e assumia o controle de seus filhos atraveacutes da sua institucionalizaccedilatildeo

Como eram considerados incapazes as vontades e os interesses das crianccedilas e dos adolescentes

131

natildeo eram considerados Quem falava por eles eram os educadores e os trabalhadores sociais os

quais por serem especialistas conheciam mais dos adolescentes e de sua dinacircmica familiar do

que eles mesmos (Guirado 1986 Gadelha 1998)

Produzia-se uma relaccedilatildeo na qual as crianccedilas os adolescentes e suas famiacutelias ocupavam

o lugar de objetos de cuidados de higiene de exame de avaliaccedilatildeo e de diagnoacutesticos como

objeto a ser cuidado e controlado Ao analisar este periacuteodo autores como Silva (2011) Mendez

(2013) e Sposato (2011) ressaltam como ele contribuiu para uma judicializaccedilatildeo dos problemas

sociais e para a criminalizaccedilatildeo de crianccedilas e jovens pobres que tinham seus direitos violados

em nome da sua proteccedilatildeo As famiacutelias eram punidas duas vezes pois aleacutem de viverem em

situaccedilotildees sociais e materiais precaacuterias ainda eram criminalizadas e tinham suas crianccedilas

retiradas de seu conviacutevio Nesse periacuteodo milhares de crianccedilas foram institucionalizadas

arbitrariamente separadas de suas famiacutelias ou voluntariamente entregues por elas com o

objetivo de serem educadas e cuidadas em regime de internaccedilatildeo

2 O lugar da crianccedila e do adolescente na Doutrina de Proteccedilatildeo Integral

O processo de redemocratizaccedilatildeo do paiacutes no final do seacuteculo XX permitiu a discussatildeo

sobre a garantia de direitos incluindo os direitos das crianccedilas e dos adolescentes em

consonacircncia com o debate internacional sobre o tema O campo da proteccedilatildeo agrave infacircncia e agrave

adolescecircncia foi marcado particularmente nesse periacuteodo pelo questionamento das praacuteticas e

concepccedilotildees assistencialistas e institucionalizantes tendo como principal efeito a

descentralizaccedilatildeo de suas poliacuteticas e praacuteticas Foram herdeiros da redemocratizaccedilatildeo do paiacutes e de

forte mobilizaccedilatildeo social e poliacutetica a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o Estatuto da Crianccedila e do

Adolescente (ECA) em 1990 e a Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) em 1993

Entre as mudanccedilas que ocorreram nesse momento destacamos o reconhecimento de

crianccedilas e adolescentes como sujeito de direitos2 Segundo Rosemberg e Mariano (2010) nesse

2 Esses direitos estatildeo descritos nos artigos nordm 15 nordm 16 e nordm 17 do ECA (Brasil 1990) Art nordm 15 ndash A crianccedila e o

adolescente tecircm direito agrave liberdade ao respeito e agrave dignidade como pessoas humanas em processo de

desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis humanos e sociais garantidos na Constituiccedilatildeo e nas leis Art nordm

16 ndash O direito agrave liberdade compreende os seguintes aspectos I ndash ir vir e estar nos logradouros puacuteblicos e espaccedilos

comunitaacuterios ressalvadas as restriccedilotildees legais II ndash opiniatildeo e expressatildeo III ndash crenccedila e culto religioso IV ndash brincar

praticar esportes e divertir-se V ndash participar da vida familiar e comunitaacuteria sem discriminaccedilatildeo VI ndash participar da

vida poliacutetica na forma da lei VII ndash buscar refuacutegio auxiacutelio e orientaccedilatildeo Art nordm 17 ndash O direito ao respeito consiste

na inviolabilidade da integridade fiacutesica psiacutequica e moral da crianccedila e do adolescente abrangendo a preservaccedilatildeo

da imagem da identidade da autonomia dos valores ideias e crenccedilas dos espaccedilos e objetos pessoais (Brasil

1990)

132

processo eles passam a usufruir dos direitos garantidos pela Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos

Humanos entre eles o direito a participaccedilatildeo expressatildeo e liberdade ndash sendo dever da famiacutelia da

sociedade civil e do Estado assegurar com absoluta prioridade esses direitos uma vez que

crianccedilas e adolescentes natildeo possuem plena autonomia sendo considerados sujeitos em

desenvolvimento Em um cenaacuterio no qual eles eram punidos arbitrariamente com a privaccedilatildeo de

sua liberdade em nome de sua proteccedilatildeo essa mudanccedila foi fundamental para regular as

intervenccedilotildees do Estado junto a crianccedilas e adolescentes que deixam de ser objeto de tutela

controle e vigilacircncia do adulto para serem sujeitos com direitos a serem garantidos entre eles

a liberdade e a participaccedilatildeo social e poliacutetica

Nesse sentido as mudanccedilas natildeo satildeo somente teacutecnicas implicam em uma mudanccedila na

forma de o Estado perceber e se relacionar com as crianccedilas e os adolescentes (Mendez 2008

2013) Apesar da centralidade do cuidado e da educaccedilatildeo ser da famiacutelia se reconhece o dever

do Estado de dar condiccedilotildees para que esta cumpra sua funccedilatildeo de proteccedilatildeo por meio de suas

poliacuteticas sociais promovendo a diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais e priorizando crianccedilas e

adolescentes

Estas mudanccedilas trouxeram novos impasses para as relaccedilotildees de poder intergeracionais

pois ao mesmo tempo que o paradigma da Proteccedilatildeo Integral implica o direito agrave liberdade e agrave

participaccedilatildeo eles natildeo possuem autonomia plena devendo receber proteccedilatildeo especial Nesse

sentido Rosemberg e Mariano (2010) discutem as tensotildees que emergiram entre duas

perspectivas no campo dos direitos das crianccedilas e adolescentes as que priorizam os direitos

individuais ndash entre eles o direito agrave liberdade e agrave participaccedilatildeo ndash conhecidas como correntes

liberacionista e as que priorizam a proteccedilatildeo especial conhecidas como protecionistas

Enquanto na primeira perspectiva haacute um princiacutepio de igualdade que sustenta as relaccedilotildees entre

os sujeitos na segunda sustenta-se a ideia de que as crianccedilas satildeo dependentes daqueles que tecircm

o poder sobre suas vidas Trata-se de uma dialeacutetica entre o direito agrave liberdade e os direitos de

proteccedilatildeo inerentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito em um pacto social democraacutetico A doutrina da

Proteccedilatildeo Integral coloca entatildeo novos impasses para o trabalho junto a crianccedilas e adolescentes

uma vez que se trata de respeitar seu direito de liberdade e de participaccedilatildeo e ao mesmo tempo

garantir sua proteccedilatildeo o que em muitas situaccedilotildees pode levar a direccedilotildees de trabalho antagocircnicas

3 O discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia

Compreendemos que muitas questotildees estatildeo envolvidas na dinacircmica

133

participaccedilatildeoproteccedilatildeo mas ressaltamos que entre elas encontra-se o fato de o discurso juriacutedico

sobre a infacircncia e adolescecircncia particularmente no Brasil estar articulado agrave noccedilatildeo de

desenvolvimento3 a partir da qual entende-se que ao longo da vida haacute uma aquisiccedilatildeo linear de

caracteriacutesticas e habilidades marcadas cronologicamente que culminam na maturidade moral

cognitiva e na autonomia Poreacutem estudos de autores como Ariegraves (1981) e Del Priore (2010)

ressaltam que a concepccedilatildeo da infacircncia e da adolescecircncia como etapas da vida consiste em uma

construccedilatildeo histoacuterica e social que no ocidente contemporacircneo ao hierarquizar as idades atribui-

se determinados lugares agrave crianccedila ao adolescente e ao adulto sendo esse uacuteltimo considerado o

aacutepice de um processo de desenvolvimento Trata-se natildeo somente da atribuiccedilatildeo de lugares

diversos a depender das diferentes caracteriacutesticas atribuiacutedas a cada etapa da vida mas de como

essas diferenccedilas satildeo tomadas para justificar uma desigualdade e atribuir uma suposta

inferioridade agrave crianccedila e ao adolescente em relaccedilatildeo ao adulto Nesse sentido os adultos satildeo

compreendidos como indiviacuteduos completos enquanto crianccedilas e adolescentes satildeo

compreendidos e tratados a partir das suas faltas e natildeo a partir das suas capacidades e

potencialidades

Observamos que ao atuar a partir de etapas do desenvolvimento predeterminadas o

discurso juriacutedico trabalha com o dever ser com a norma (Foucault 1988) parte de categorias

ideais sobre o dever ser crianccedila e adolescente consistindo em um discurso normativo e

operacionalizando-se a partir de um saber preacutevio sobre o sujeito adolescente compreendendo

como desviante aquele que escapa a essa norma ideal socialmente construiacuteda (Cerruti e Rosa

2008)

Segundo Jobim e Souza (2010) a perspectiva desenvolvimentista concebe a crianccedila e o

adolescente marcados predominantemente por uma matriz bioloacutegica-evolucionista A ideia de

um aprimoramento linear e contiacutenuo que culmina na maturidade adulta implica em conceber

a passagem da infacircncia agrave vida adulta como um processo padronizado e gradual de socializaccedilatildeo

vindo a transformar o discurso sobre o desenvolvimento na proacutepria natureza da crianccedila e do

adolescente

De acordo com a autora a perspectiva desenvolvimentista pretende-se assim universal

3 A condiccedilatildeo peculiar de desenvolvimento da crianccedila e do adolescente estaacute descrita nos artigos n 3 e n 6 do ECA

(Brasil 1990) Art No 3 - A crianccedila e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes agrave pessoa

humana assegurando-se-lhes por lei ou por outros meios todas as oportunidades e facilidades a fim de lhes

facultar o desenvolvimento fiacutesico mental moral espiritual e social em condiccedilotildees de liberdade e de dignidade

Art No 6 - Na interpretaccedilatildeo desta Lei levar-se-atildeo em conta os fins sociais e a que ela se dirige as exigecircncias do

bem comum os direitos e deveres individuais e coletivos e a condiccedilatildeo peculiar da crianccedila e do adolescente como

pessoas em desenvolvimento

134

desconsiderando os fatores culturais histoacutericos e sociopoliacuteticos que permitem em determinada

eacutepoca uma caracterizaccedilatildeo particular das diferentes fases da vida Esse discurso afirma a

homogeneidade negando a multiplicidade e a diferenccedila afirma uma adolescecircncia uacutenica e ideal

baseada em um modelo eurocecircntrico (Burman 2008) refutando a diversidade de experiecircncias

dos sujeitos as vaacuterias adolescecircncias possiacuteveis e por eles vivenciadas

Nessa leitura o adolescente eacute concebido em fase de desenvolvimento em busca de sua

independecircncia e de construccedilatildeo de uma identidade fixa Os ldquoproblemasrdquo ldquoinsucessosrdquo e

ldquodesviosrdquo enfrentados durante o processo de desenvolvimento satildeo compreendidos como

dificuldades vivenciadas pelo adolescente em sua constituiccedilatildeo ou ainda na sua capacidade no

estabelecimento de laccedilos com os outros sobretudo com os adultos e as instituiccedilotildees que esses

representam Nessa articulaccedilatildeo entre direito e desenvolvimento as crianccedilas e os adolescentes

que natildeo correspondem agraves normas e aos ideais previamente e universalmente determinados satildeo

entendidos como desviantes num processo de patologizaccedilatildeo eou criminalizaccedilatildeo de seus

comportamentos

Partilhamos com Ceciacutelia Coimbra e colaboradoras (2005) que o uso generalizado e

indiscriminado da concepccedilatildeo de adolescecircncia como uma fase universal e a-histoacuterica do

desenvolvimento humano incide sobretudo em discursos e praacuteticas oficiais Desta forma essa

concepccedilatildeo incide principalmente junto a adolescentes submetidos agraves instituiccedilotildees de proteccedilatildeo e

socioeducativas sendo necessaacuteria sua problematizaccedilatildeo sobretudo no contexto do sistema de

Justiccedila e das poliacuteticas puacuteblicas incluindo a de Assistecircncia Social

O discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia ao aliar-se a discursos meacutedico-psiquiaacutetricos

apresenta-se com uma roupagem de cientificidade conferindo-lhe assim maior difusatildeo no

campo social (Cerruti amp Rosa 2008) Essa ampla difusatildeo faz com que essa concepccedilatildeo

desenvolvimentista tambeacutem atravesse o sistema de proteccedilatildeo e os serviccedilos referenciados agraves

poliacuteticas puacuteblicas

Ressaltamos que a concepccedilatildeo desenvolvimentista ao individualizar os ldquoproblemasrdquo e

ldquodesviosrdquo vivenciados pelos adolescentes produz a contenccedilatildeo e o velamento dos conflitos

institucionais e poliacutetico-sociais que subjazem e forjam essas ldquodificuldadesrdquo Notamos assim que

essa concepccedilatildeo se baseia na dicotomia indiviacuteduo-sociedade vindo a produzir a falsa ilusatildeo de

autonomia (Rosa amp Vicentin 2012) Essa noccedilatildeo de autonomia em sua acepccedilatildeo individual e

liberal concebe o sujeito adolescente como independente dos laccedilos com seus semelhantes e o

campo social em que se inscreve opondo-se agrave concepccedilatildeo de autonomia prevista pela poliacutetica

135

de Assistecircncia Social4

Em nossa atuaccedilatildeo propomos entatildeo uma compreensatildeo de sujeito que manteacutem o lugar das

questotildees soacutecio-poliacuteticas no cerne dos processos de subjetivaccedilatildeo contrapondo-se a leituras que

individualizam o sofrimento e responsabilizam exclusivamente o sujeito por ele Assim sob o

aporte da psicanaacutelise salientamos que a constituiccedilatildeo subjetiva longe de ser fruto de um

processo intrapsiacutequico ou predeterminado biologicamente se daacute necessariamente na relaccedilatildeo do

sujeito com seus semelhantes e com o campo social em que se inscreve (Rosa 2012)

Nesta abordagem e em consonacircncia com as diretrizes da poliacutetica puacuteblica de Assistecircncia

Social o sujeito natildeo eacute concebido como unidade isolada e independente mas sim constituiacutedo na

relaccedilatildeo com seus semelhantes e o campo social Este seraacute representado ao longo da vida do

sujeito por diferentes atores No contexto dos serviccedilos socioassistenciais em particular tais

representantes seratildeo os familiares professores profissionais dos serviccedilos socioassistenciais e

intersetoriais operadores do Direito conselheiros tutelares dentre outros Esses representantes

do campo social estatildeo incluiacutedos em uma rede discursiva e libidinal enunciando diversas

narrativas e mensagens que atribuem ao sujeito lugares e posiccedilotildees sociais diferentes (Rosa

2004)

Vejamos entatildeo os efeitos que o trabalho a partir de concepccedilotildees desenvolvimentistas

podem produzir no laccedilo com os adolescentes e como a desconstruccedilatildeo e problematizaccedilatildeo destas

produz efeitos nas praacuteticas profissionais no sentido de contribuir para a consolidaccedilatildeo dos

direitos dos adolescentes Partiremos da discussatildeo de dois casos institucionais os adolescentes

em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto e aqueles em vias de

desacolhimento institucional por maioridade

4 A Pesquisa-intervenccedilatildeo e a construccedilatildeo de um saber coletivo

Frente ao processo de individualizaccedilatildeo e despolitizaccedilatildeo das desproteccedilotildees e violaccedilotildees de

direitos agraves quais os adolescentes estatildeo submetidos seja por fragilidade e ruptura de laccedilos

familiares e comunitaacuterios ou como efeitos de segregaccedilatildeo e isolamento que a atuaccedilatildeo baseada

em concepccedilotildees desenvolvimentistas e individualizantes produzem no cotidiano dos serviccedilos

socioassistenciais propomos em nossas pesquisas a discussatildeo coletiva de casos como forma

4 A poliacutetica socioassistencial introduz uma concepccedilatildeo de autonomia oriunda da Sauacutede Coletiva que consiste em

uma coconstruccedilatildeo (Torres amp Gouveia 2013) Esta concepccedilatildeo inclui um conjunto de fatores como o sujeito sua

histoacuteria e sua rede de relaccedilotildees articulando assim esse conceito aos contextos institucional e poliacutetico-social nos

quais o sujeito estaacute inserido e que o constituem

136

de construir um endereccedilamento das questotildees e dificuldades manifestadas pelo adolescente para

o grupo de profissionais que atuam na proteccedilatildeo de seus direitos

Tratam-se de pesquisas que natildeo se caracterizam entatildeo por uma pesquisa psicanaliacutetica

cliacutenica stricto sensu mas por uma metodologia que se insere no que Rosa (2012) nomeia

psicanaacutelise implicada e que se propotildee estudar o sujeito enredado nos fenocircmenos sociais e

poliacuteticos dando visibilidade natildeo soacute ao adolescente mas tambeacutem aos discursos e natildeo ditos que

se articulam a seus atos e comportamentos concebidos frequentemente como problemas

desvios patologia e violecircncia

Trabalhamos assim com a noccedilatildeo de implicaccedilatildeo (Lourau 1993) que permite pocircr em

anaacutelise o lugar ocupado pelos diversos profissionais no campo sociopoliacutetico bem como aquele

ocupado pelo pesquisador A anaacutelise das implicaccedilotildees pressupotildee assim conceber que as praacuteticas

profissionais incluindo o proacuteprio processo de pesquisa natildeo possui caraacuteter objetivo baseada

numa suposta neutralidade do profissional (ou do pesquisador) mas inclui sua subjetividade

seu desejo O meacutetodo psicanaliacutetico de pesquisa supera assim a dicotomia pesquisador-

pesquisado compreendendo-os como construccedilotildees histoacutericas e natildeo como categorias

transcendentais refutando assim a noccedilatildeo de neutralidade cientiacutefica Observamos tambeacutem que

o meacutetodo de pesquisa psicanaliacutetico supera a dicotomia teoria-praacutetica uma vez que ldquovai do

fenocircmeno ao conceito e constroacutei uma metapsicologia natildeo isolada mas fruto da escuta

psicanaliacutetica que natildeo enfatiza ou prioriza a interpretaccedilatildeo a teoria por si soacute mas integra teoria

praacutetica e pesquisardquo (Rosa 2004 p 341) Ao desfazer essas dicotomias o meacutetodo psicanaliacutetico

revela seu caraacuteter de pesquisa-intervenccedilatildeo

Foi a partir destes pressupostos que nas pesquisas realizamos discussotildees coletivas de

caso Uma das pesquisas foi realizada com profissionais que atuam nos serviccedilos de medidas

socioeducativas em meio aberto e a outra com profissionais dos serviccedilos socioassistenciais e

intersetoriais que compotildeem a rede de um territoacuterio do municiacutepio de Satildeo Paulo

Ao discorrer sobre a construccedilatildeo de casos Viganoacute (2010) ressalta que a construccedilatildeo de

caso visa produzir um saber sobre o discurso e natildeo sobre o sujeito consistindo em construccedilatildeo

que se interroga sobre a posiccedilatildeo do sujeito no laccedilo social Nesse sentido o autor aponta que na

construccedilatildeo do caso existe um questionamento sobre qual a posiccedilatildeo do sujeito no laccedilo com o

Outro possibilitando uma interrogaccedilatildeo dos profissionais sobre o lugar e funccedilatildeo que ocupam

para o sujeito pois promove um corte no saber uma interrogaccedilatildeo das certezas e permite um

questionamento do lugar que eles ocupam no discurso no qual o sujeito estaacute enlaccedilado Eacute

possiacutevel pensar como o sujeito se posiciona no discurso que discurso eacute esse e como atuar de

137

forma a realizar uma rachadura um questionamento deste discurso permitindo ao sujeito a

formulaccedilatildeo de questotildees sobre sua posiccedilatildeo nesse laccedilo

Assim a discussatildeo coletiva de caso permite incidir nos discursos dos profissionais sobre

os adolescentes possibilitando trabalhar os afetos e as fantasias daqueles sobre estes incluindo

os determinantes institucionais e poliacutetico-sociais que subjazem os atos e comportamentos dos

adolescentes Esse dispositivo contribui assim para a problematizaccedilatildeo das relaccedilotildees construiacutedas

entre profissionais e adolescentes e entre estes e os serviccedilos socioassistenciais e os efeitos

subjetivos produzidos nestas relaccedilotildees procurando produzir mudanccedilas de posiccedilatildeo dos

profissionais e por conseguinte dos adolescentes

A construccedilatildeo de espaccedilos coletivos de discussatildeo de caso somente eacute possiacutevel em funccedilatildeo

do posicionamento eacutetico-poliacutetico dos profissionais participantes comprometidos com a oferta

de um outro lugar aos adolescentes que natildeo o de desvio patologia ou violecircncia

Comprometidos tambeacutem com a construccedilatildeo de estrateacutegias efetivas de intervenccedilatildeo junto a eles e

com a sustentaccedilatildeo de espaccedilos democraacuteticos de discussatildeo A sustentaccedilatildeo desse dispositivo natildeo

se daacute sem impasses e dificuldades implicando em uma estrutura complexa lugar de trocas de

relaccedilotildees e de discussotildees muitas vezes marcadas por divergecircncias e contradiccedilotildees Na medida

em que o grupo sustenta contudo as tensotildees suscitadas pelas discussotildees ele se mostra potente

na construccedilatildeo coletiva de um saber singular sobre o adolescente

5 Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto

As medidas socioeducativas satildeo poliacuteticas puacuteblicas destinadas a atender todos aqueles

adolescentes que cometeram um ato infracional ou seja um ato considerado antijuriacutedico e que

apoacutes terem passado por um processo legal com direito a defesa foram sentenciados com uma

das cinco medidas previstas pelo ECA obrigaccedilatildeo de reparar danos prestaccedilatildeo de serviccedilos a

comunidades liberdade assistida semiliberdade e internaccedilatildeo Estas medidas tecircm tanto uma

dimensatildeo punitiva como forma de exercer um controle social atraveacutes da sanccedilatildeo e que visa

responsabilizar o adolescente pela sua accedilatildeo e consequecircncias desta quanto uma dimensatildeo

pedagoacutegica e social uma vez que busca promover a integraccedilatildeo social dos adolescentes atraveacutes

da garantia de seus direitos (Brasil 1990)

Os profissionais que atuam na medida socioeducativa embasam seu trabalho tanto no

ECA (Brasil 1990) quanto no SINASE lei n 12594 (Brasil 2012) que orienta e estabelece

princiacutepios e paracircmetros nacionais para as medidas socioeducativas bem como as

138

responsabilidades dos profissionais e instituiccedilotildees envolvidas na sua execuccedilatildeo Com a

promulgaccedilatildeo desta uacuteltima lei a execuccedilatildeo das medidas socioeducativas em meio aberto passa a

ser efetivamente executadas pelos municiacutepios e fica vinculada tanto ao Sistema Nacional

Socioeducativo (SINASE) quanto ao Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS)

Os teacutecnicos socioeducativos que atuam nos serviccedilos tecircm como funccedilatildeo contribuir para o

acesso do adolescente aos seus direitos para o desenvolvimento de suas potencialidades e para

a introjeccedilatildeo ou a ressignificaccedilatildeo de valores que contribuam para sua integraccedilatildeo social criando

condiccedilotildees para a ruptura da praacutetica do ato infracional observando-se sempre a sua

responsabilizaccedilatildeo Para a realizaccedilatildeo desse trabalho destacam a importacircncia de duas aacutereas

fundamentais a educaccedilatildeo formal e a educaccedilatildeo para o trabalho sendo entatildeo uma poliacutetica que

necessita de articulaccedilatildeo com outras poliacuteticas puacuteblicas como as de sauacutede e de educaccedilatildeo para

efetivar o atendimento ao adolescente (Brasil 2012 2016 Prefeitura de Satildeo Paulo 2016)

O eixo de toda medida socioeducativa eacute o Plano Individual de Atendimento no qual

devem ser descritas todas as atividades a serem realizadas com e pelo adolescente durante a sua

medida bem como os objetivos das mesmas O adolescente deve participar ativamente da

elaboraccedilatildeo e da execuccedilatildeo das atividades a serem realizadas e portanto seus interesses desejos

e opiniotildees devem ser considerados no planejamento das accedilotildees a serem desenvolvidas por ele e

com ele durante a medida Assim direitos como a liberdade a participaccedilatildeo e o protagonismo

aparecem como diretrizes do trabalho socioeducativo (Brasil 2012 2016) Os teacutecnicos sociais

natildeo mais decidem o destino dos adolescentes mas o acompanham e produzem reflexotildees criacuteticas

sobre seus atos sobre seus direitos e portanto tambeacutem sobre sua posiccedilatildeo enquanto sujeito no

laccedilo social

Eacute na medida que conseguem experenciar o lugar de sujeito na relaccedilatildeo com os teacutecnicos

que os adolescentes podem reproduzir essa posiccedilatildeo em suas outras relaccedilotildees consolidando seu

lugar de sujeito e elaborando e enfrentando os conflitos que emergem com esse deslocamento

de posiccedilatildeo de objeto para a posiccedilatildeo de sujeito (Bertol 2019)

Eacute importante ressaltar que na praacutetica a execuccedilatildeo deste Plano Individual de Atendimento

natildeo eacute um processo tatildeo simples pois o adolescente deve conseguir conciliar as escolhas

baseadas em seus interesses aquelas que se mostram como exigecircncias do juiz para sancionar o

cumprimento de sua medida (como as medidas de proteccedilatildeo de escolarizaccedilatildeo e

profissionalizaccedilatildeo) bem como as oportunidades que lhes satildeo possiacuteveis dentro de sua trajetoacuteria

de vida e condiccedilotildees sociais

139

Assim ao nos aproximarmos do cotidiano dos serviccedilos de medidas socioeducativas em

meio aberto encontramos uma realidade de trabalho na qual os profissionais se deparavam com

diferentes impasses na construccedilatildeo e execuccedilatildeo deste Plano Era recorrente a queixa dos teacutecnicos

sobre uma natildeo adesatildeo dos adolescentes agrave medida ou seja de que estes natildeo cumpriam as metas

determinadas em seu Plano Individual de Atendimento (PIA) pois eles natildeo viam perspectiva

no estudo ou entatildeo porque eram ldquopreguiccedilososrdquo natildeo queriam estudar e nem trabalhar Os

profissionais tambeacutem apontavam que muitas vezes o juiz que aplicava a medida

socioeducativa jaacute determinava metas preacutevias que o adolescente deveria cumprir mas que na

visatildeo deles muitas vezes natildeo fazia sentido para a vida dos adolescentes e para operar uma

transformaccedilatildeo na mesma Os PIAs se transformavam entatildeo em um instrumento burocraacutetico no

qual nem a participaccedilatildeo e nem os interesses dos adolescentes eram contemplados E o natildeo

cumprimento destas demandas e de outras normas institucionais era compreendido como natildeo

aderecircncia agrave medida falta de responsabilidade do adolescente e portanto como um fracasso no

seu processo socioeducativo

Quando iniciamos o trabalho de pesquisa junto aos teacutecnicos sociais de um serviccedilo de

medidas socioeducativas em meio aberto da cidade de Satildeo Paulo eles optaram por discutir o

caso de um adolescente que segundo o seu teacutecnico de referecircncia tinha muito potencial mas natildeo

aderia a nenhum encaminhamento realizado pelos profissionais Jaacute estava sendo atendido haacute

dois anos e eles natildeo percebiam nenhuma mudanccedila Quando iniciamos as discussotildees os

teacutecnicos quase natildeo tinham o que dizer sobre o adolescente afirmando que todas as informaccedilotildees

necessaacuterias estavam em sua pasta Eles entendiam que todos os encaminhamentos realizados

tinham fracassado porque o adolescente era desinteressado e apresentava problemas que

excediam as capacidades de atuaccedilatildeo dos profissionais dentro do campo das medidas

socioeducativas O adolescente natildeo se vinculava aos teacutecnicos comparecendo agrave medida de forma

intermitente natildeo aderia ao Plano proposto mas tambeacutem natildeo descumpria o que era solicitado

Ao longo dos encontros para discussatildeo de seu caso a equipe foi se dando conta da

fragmentaccedilatildeo do trabalho realizado junto ao adolescente e de como sentiam-se hiper-

responsabilizados pelo que ocorria com ele Aleacutem disso havia uma percepccedilatildeo homogeneizada

dos adolescentes atendidos pois eles ldquoeram todos iguais com os mesmos problemasrdquo Na

percepccedilatildeo dos teacutecnicos os atos infracionais eram decorrentes das condiccedilotildees materiais e sociais

precaacuterias da falta de estrutura familiar e da apatia dos adolescentes Entretanto eles natildeo

reconheciam em seu trabalho a possibilidade de operar mudanccedilas nestas condiccedilotildees reduzindo

seu trabalho a incorporaccedilatildeo de limites pelo adolescente

140

Havia um saber sobre os comportamentos e as motivaccedilotildees para seus atos infracionais

que se antecipava ao adolescente que assim muitas vezes natildeo era escutado Assim

encaminhavam o adolescente para escola e oportunidades de trabalho poreacutem sem articular com

as singularidades da histoacuteria do adolescente pois natildeo conseguiam escutaacute-las

Esse cenaacuterio foi sendo modificado na medida em que com as discussotildees de caso os

profissionais puderam entrar mais em contato com a histoacuteria do adolescente no serviccedilo e

passaram a questionar o laccedilo que estabeleciam com ele sua dificuldade de escutaacute-lo pela

anguacutestia que o sofrimento contido em sua histoacuteria lhes causava e como isso afastava o

adolescente produzindo uma manutenccedilatildeo de sua desproteccedilatildeo e portanto uma natildeo garantia de

seus direitos

Em um dos encontros nos propusemos a pensar sobre o PIA do adolescente como ele

tinha sido elaborado e as possibilidades de execuccedilatildeo do mesmo Ao realizar uma apropriaccedilatildeo

coletiva das praacuteticas e um questionamento sobre seus processos de trabalho os teacutecnicos

puderam perceber como a ldquovozrdquo do adolescente natildeo aparecia nos registros e como tambeacutem ldquoa

vozrdquo deles muitas vezes natildeo era ouvida natildeo ldquointeressavardquo ao juiz Eles puderam sustentar a

partir de um trabalho de busca e construccedilatildeo de conhecimento compartilhado um

questionamento das accedilotildees realizadas pelos diversos teacutecnicos junto ao adolescente e tambeacutem

produzir interrogaccedilotildees sobre sua histoacuteria no serviccedilo Aos poucos novas informaccedilotildees foram

surgindo bem como recordaccedilotildees sobre aspectos singulares do adolescente que contribuiacuteram

para pensar novos encaminhamentos e accedilotildees em seu processo socioeducativo Com esta

discussatildeo de caso os profissionais repensaram seus processos de trabalho junto ao adolescente

o qual passou a estar mais presente na instituiccedilatildeo conseguiu retornar agrave escola e foi inserido em

um curso de cabeleireiro

6 O desacolhimento institucional por maioridade

Concebido frequentemente como uma sentenccedila juriacutedica ou como simples medida

administrativa ndash referente agrave oferta de vagas no serviccedilo de acolhimento ndash o desacolhimento por

maioridade tende a ser realizado abruptamente e de modo desarticulado dos recursos e

necessidades dos adolescentes natildeo consistindo portanto em um processo Neste cenaacuterio esse

desacolhimento produz como principais efeitos a perda de direitos baacutesicos dos adolescentes na

medida em que natildeo raras vezes permanecem impedidos de acessar as instituiccedilotildees que os

viabilizaram socialmente Os adolescentes permanecem assim frequentemente expostos a

141

situaccedilotildees de desproteccedilatildeo e violecircncia e em alguns casos inclusive de risco de vida Alguns

deles reingressam agraves vezes pouco tempo depois na Proteccedilatildeo Social Especial em funccedilatildeo de

situaccedilotildees de grave desproteccedilatildeo Observamos assim que neste contexto a violecircncia reincide de

modo silencioso contudo natildeo menos mortificante e desta vez perpetrada pelo Estado

(Ferreira 2017)

Apesar dos discursos hegemocircnicos sobre a importacircncia do direito agrave convivecircncia familiar

e comunitaacuteria e sobre a excepcionalidade e a provisoriedade da medida de acolhimento

institucional5 o desacolhimento por maioridade apresenta-se como destino para 338 dos

acolhidos (Assis amp Farias 2013) sendo a terceira causa mais comum de desligamento

Diante da insuficiecircncia de diretrizes concepccedilotildees e estrateacutegias da poliacutetica

socioassistencial que possam nortear os profissionais e tomados por sentimentos de forte

anguacutestia e impotecircncia estes tendem a silenciar os desafios presentes no desacolhimento por

maioridade e seus efeitos destacando-se a (re)produccedilatildeo de situaccedilotildees de desproteccedilatildeo e violecircncia

durante esse processo (Ferreira 2017)

Ali onde encontramos frequentemente silecircncio e anguacutestia procuramos ofertar aos

profissionais envolvidos um espaccedilo para a palavra a partir da constituiccedilatildeo de grupo de caraacuteter

intersetorial composto por profissionais da rede de um territoacuterio do municiacutepio de Satildeo Paulo6

Nos encontros inicias do grupo parte dos profissionais compartilharam certo

estranhamento com o proacuteprio dispositivo coletivo e o objetivo proposto Com exceccedilatildeo dos

profissionais dos SAICAs do poder judiciaacuterio e das Repuacuteblicas Jovens os demais mostravam-

se distantes da temaacutetica do desacolhimento por maioridade tendo dificuldade inclusive de

compreenderem os motivos que justificavam a discussatildeo desse tema em rede Parte dos

5 Art 92 - As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional deveratildeo adotar os

seguintes princiacutepios I- preservaccedilatildeo dos viacutenculos familiares e promoccedilatildeo da reintegraccedilatildeo familiar II- integraccedilatildeo

em famiacutelia substituta quando esgotados os recursos de manutenccedilatildeo na famiacutelia natural ou extensa III- atendimento

personalizado e em pequenos grupos IV- desenvolvimento de atividades em regime de coeducaccedilatildeo V- natildeo

desmembramento de grupos de irmatildeos VI- evitar sempre que possiacutevel a transferecircncia para outras entidades de

crianccedilas e adolescentes abrigados VII- participaccedilatildeo na vida da comunidade local VIII- preparaccedilatildeo gradativa para

o desligamento IX- participaccedilatildeo de pessoas da comunidade no processo educativo (Brasil 1990)

Art 101 - Verificada qualquer das hipoacuteteses previstas no art 98 a autoridade competente poderaacute determinar

dentre outras as seguintes medidas I- encaminhamento aos pais ou responsaacutevel mediante termo de

responsabilidade II- orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III- matriacutecula e frequecircncia obrigatoacuterias

em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV- inclusatildeo em serviccedilos e programas oficiais ou comunitaacuterios

de proteccedilatildeo apoio e promoccedilatildeo da famiacutelia da crianccedila e do adolescente V- requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico

psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI- inclusatildeo em programa oficial ou

comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII- acolhimento institucional VIII-

inclusatildeo em programa de acolhimento familiar IX- colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta (Brasil 1990) 6 Participou da coordenaccedilatildeo do grupo o pesquisador Gabriel Bartolomeu cujo mestrado defendido em 2017 no

Programa de Psicologia Cliacutenica da USP debruccedilou-se sobre o papel do psicanalista na poliacutetica puacuteblica de

Assistecircncia Social

142

profissionais dizia entatildeo que os adolescentes ao completarem a maioridade ldquoseguem sua vidardquo

ldquoacabam resolvendo a vida deles sozinhosrdquo (SAICA 10o Encontro)

As dificuldades presentes no desacolhimento por maioridade eram reduzidas a

caracteriacutesticas individuais dos adolescentes e mais particularmente a supostas falhas deacuteficits e

desvios deles Como apontam as noccedilotildees que circularam no grupo que compreendiam o

adolescente como ldquoimaturordquo ldquoacomodadordquo ldquofracassadordquo ldquofraacutegil psiacutequica ou subjetivamenterdquo

ldquonatildeo- resilienterdquo ldquopouco autocircnomordquo

Os desafios restringiam-se agrave possibilidade do adolescente ldquoaprender a fazer as coisas

sozinhordquo ldquoa manter-se sozinhordquo O grupo parecia considerar o adolescente a partir de um ideal

(ou suposto ideal) distanciando-se de sua singularidade O adolescente deveria assim ldquoestar

pronto aos 18 anosrdquo e o alcance da maioridade representava momento de suposta aquisiccedilatildeo da

ldquomaturidade adultardquo e da condiccedilatildeo de ldquoindiviacuteduordquo daquele que prescinde dos laccedilos com seus

semelhantes e o campo social Nesse momento inicial mostrava-se hegemocircnica a concepccedilatildeo

de adolescecircncia baseada na dicotomia indiviacuteduo e sociedade produzindo a crenccedila de que eacute

possiacutevel ao adolescente autoengendrar-se e criando a ilusatildeo de que ele pode prescindir do

investimento de seus semelhantes e do campo social no qual estaacute inserido

Foi entatildeo escolhido para discussatildeo em grupo e pelo proacuteprio grupo o caso Paulo7

adolescente que parecia pelo menos em um primeiro momento aproximar-se desse ideal de

adolescecircncia Ele completou a maioridade em dezembro de 2015 e foi desacolhido em marccedilo

de 2016 durante a realizaccedilatildeo do grupo Paulo permaneceu institucionalizado por 11 anos

Quando da escolha de seu caso para discussatildeo em grupo Paulo havia completado o

Ensino Meacutedio e diversos cursos profissionalizantes bem como participado de Programa Jovem

Aprendiz e efetivado na empresa A respeito do seu processo de desacolhimento e sobretudo a

partir de uma perspectiva material-financeira os profissionais diretamente envolvidos pareciam

acreditar que o seu desacolhimento ldquodaria muito certordquo Paulo contudo natildeo se reconhecia

nesse ideal de adolescecircncia que forja a maacutexima de que ele deve ldquoestar pronto aos 18 anosrdquo e

solicitava explicitamente acompanhamento das equipes profissionais

Pra me ajudar natildeo sei No maacuteximo me dando apoio no maacuteximo mesmo Como se tivesse

um ombro amigo vamos se dizer assim Esse eacute um apoio que eu vou precisar pra conseguir

colocar minha vida laacute fora pra tirar a minha vida que estaacute aqui no abrigo e conseguir colocar

ela laacute fora Esse seria o apoio que eu ia precisar

O adolescente parecia assim compreender que o desacolhimento requer a continuidade

7 Nome fictiacutecio de modo a preservar a identidade do adolescente participante

143

de um trabalho no territoacuterio na comunidade natildeo coincidindo com sua saiacuteda da instituiccedilatildeo e

natildeo se restringindo a um trabalho intramuros (do SAICA) Paulo parecia contudo solicitar algo

que natildeo consistia pelo menos formalmente em atribuiccedilatildeo dos serviccedilos representados no grupo

de modo que a discussatildeo sobre a continuidade de um trabalho no territoacuterio que implicava o

exerciacutecio de um trabalho articulado e em rede demandou significativas discussotildees em grupo e

representou em alguns momentos divergecircncias e conflitos entre os diversos serviccedilos E a

respeito deste processo de desacolhimento os profissionais mencionaram

O SAICA sempre ajuda esses adolescentes mas essa natildeo eacute responsabilidade do abrigo pois o

processo eacute arquivado na Vara da Infacircncia e Juventude Esses adolescentes acabam resolvendo

a vida deles sozinhos (SAICA Encontro 10)

Por exemplo se hoje tem o desacolhimento de uma adolescente fechadinho redondinho foi

desacolhido por maioridade e tudo e se de repente natildeo deu certo fugiu do roteiro natildeo eacute por

isso que soacute agora eu vou referenciar esse caso no NPJ Porque antes que tudo tava redondinho

natildeo precisava referenciar Existem casos assim tambeacutem (NPJ Entrevista)

Os serviccedilos pareceriam mostrar-se assim fechados em si mesmos fechados em sua

expertise naquilo que jaacute sabiam ou reconheciam saber fazer E o grupo viu-se diante de um

impasse ou os serviccedilos seguem fechados em sua expertise concebendo o desacolhimento por

maioridade como uma sentenccedila juriacutedica ou simples medida administrativa e a despeito das

desproteccedilotildees produzidas ou ao escutar e acolher o sofrimento de Paulo constroem um Projeto

para o adolescente que leve em consideraccedilatildeo a complexidade de sua condiccedilatildeo singular e em

detrimento do ideal de adolescecircncia almejado

A partir da escuta do adolescente e do reconhecimento de seu sofrimento o grupo

passou a ser considerando um dispositivo puacutebico e coletivo do territoacuterio e comprometido com

a construccedilatildeo de um Projeto de desacolhimento para Paulo Esse posicionamento permitiu ao

grupo tomar novos rumos ampliando e adensando as discussotildees coletivas Se notaacutevamos antes

a prevalecircncia do discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia as discussotildees em grupo contribuiacuteram

para que este avanccedilasse na compreensatildeo do desacolhimento por maioridade como demanda

referente a um determinado seguimento da populaccedilatildeo de adolescentes em detrimento de

compreendecirc-lo como expressatildeo do fracasso de casos individuais Esse processo de

desacolhimento passou a ser compreendido como demanda coletiva do territoacuterio (mas natildeo

restrita a esse) e portanto como responsabilidade do Estado e objeto de discussatildeo e intervenccedilatildeo

da poliacutetica puacuteblica

Como resultados da pesquisa-intervenccedilatildeo destacamos a realizaccedilatildeo de um trabalho

articulado e em rede a construccedilatildeo de discurso institucional que permitiu incluir esses

adolescentes na poliacutetica socioassistencial e a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de trabalho pactuadas

144

entre os serviccedilos socioassistenciais que permitiram operar o desacolhimento por maioridade de

modo articulado agrave condiccedilatildeo singular do adolescente

Consideraccedilotildees finais

Observamos em nossas praacuteticas profissionais e de pesquisa que a concepccedilatildeo

desenvolvimentista de adolescecircncia permanece largamente naturalizada nos discursos e praacuteticas

dos serviccedilos socioassistenciais em razatildeo sobretudo de sua ampla difusatildeo no campo social Esse

fenocircmeno natildeo eacute casual na medida em que permite circunscrever os conflitos e tensotildees

institucionais e sociopoliacuteticos ao sujeito adolescente individualizando-os (Matheus 2010) Em

detrimento do reconhecimento dessas tensotildees e conflitos estabelece-se uma relaccedilatildeo causal que

os justifica pelas transformaccedilotildees bioloacutegicas sofridas pelo adolescente esvaziando o debate

sobre os contextos institucionais histoacutericos e sociais que os produziram

Ao natildeo reconhecer estas tensotildees e conflitos sociais construiacutedos historicamente e

individualizar os problemas vividos pelos adolescentes os profissionais contribuem para a

desproteccedilatildeo e por vezes para a violaccedilatildeo dos direitos dos adolescentes na medida em que natildeo

basta o encaminhamento do adolescente a um serviccedilo pois antes eacute preciso construir a noccedilatildeo de

pertencimento para que ele possa se sentir no direito de usufruir dos direitos e bens que satildeo

produzidos socialmente e que possa se perceber tambeacutem contribuindo para essa produccedilatildeo

Dada a tradiccedilatildeo autoritaacuteria e tutelar do Paiacutes no campo da proteccedilatildeo da infacircncia e

juventude percebemos que muitas vezes eles satildeo subjugados como objetos de proteccedilatildeo e de

intervenccedilatildeo produzindo uma desqualificaccedilatildeo de sua fala e uma identificaccedilatildeo ao lugar de objeto

na relaccedilatildeo com o outro Portanto a garantia de direitos implica tambeacutem um trabalho junto aos

serviccedilos que asseguram direitos como educaccedilatildeo e sauacutede desconstruindo discursos que

objetificam patologizam e criminalizam os adolescentes

Como efeito essa concepccedilatildeo constitui-se como instrumento poliacutetico que permite aos

atores sociais a perpetuaccedilatildeo de uma sobreimplicaccedilatildeo definida em oposiccedilatildeo agrave anaacutelise de suas

implicaccedilotildees bem como a destituiccedilatildeo do discurso adolescente de sentido e valor restringindo

seus efeitos no campo social em que se inscreve Quando impossibilitados de realizarem a

anaacutelise de suas implicaccedilotildees os diversos atores da rede territorial tendem a tomar em anaacutelise um

uacutenico elemento um uacutenico objeto a saber o proacuteprio adolescente seus comportamentos e atos

frequentemente concebidos a partir da noccedilatildeo de indiviacuteduo que forja o discurso

desenvolvimentista sobre a adolescecircncia Outros elementos natildeo satildeo considerados de modo que

145

os saberes e as praacuteticas dos serviccedilos natildeo satildeo colocados em anaacutelise

Quando os atos e comportamentos dos adolescentes satildeo compreendidas

individualmente e portanto como responsabilidade exclusiva de cada adolescente produz-se

como efeito a cisatildeo e a fragmentaccedilatildeo da compreensatildeo sobre o trabalho realizado junto a ele e

sua famiacutelia Diante da impossibilidade de construir um saber sobre o adolescente considerando

sua singularidade em alguns casos atocircnitos os profissionais seguem testemunhas da

desarticulaccedilatildeo de seu proacuteprio trabalho junto a ele trabalho este realizado arduamente e agraves

vezes durante um longo periacuteodo

Diante da fragmentaccedilatildeo do trabalho das equipes profissionais propomos por meio de

nossas pesquisas-intervenccedilatildeo restituir a dimensatildeo de processualidade que permeia o trabalho

dos profissionais procurando pocircr em anaacutelise suas muacuteltiplas dimensotildees Para tanto faz-se

necessaacuteria a desconstruccedilatildeo dos discursos instituiacutedos sobre a adolescecircncia e sobre os

adolescentes procurando nos manter atentas agrave potecircncia instituinte e agraves forccedilas que impedem sua

emergecircncia Compreendemos que eacute neste embate entre os movimentos instituiacutedo e instituinte

que a construccedilatildeo do conhecimento em sua dimensatildeo coletiva se faz

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Capiacutetulo 8

Jovens da escola Nazareacute Flor experiecircncias de vida no assentamento

Maceioacute litoral do Cearaacute1

Denise Zakabi

Maria Luisa Sandoval Schmidt

Introduccedilatildeo

A Psicologia tem se debruccedilado nos uacuteltimos anos ao estudo das ruralidades no que se

denomina Psicologia Rural Diferentemente de outras aacutereas de conhecimento dentro das

Humanidades a Psicologia tem se dedicado mais fortemente agraves questotildees urbanas Apesar de

ser uma questatildeo pensada desde 1925 com a publicaccedilatildeo de James Williams nos Estados Unidos

de Our rural heritage The social psychology of rural development e em 1973 com a

publicaccedilatildeo de Erich Fromm e Michael Macooby no Meacutexico de Socioanaacutelisis del campesino

mexicano segundo Landini (2015) apenas nos anos 2000 essa questatildeo comeccedilou a ser mais

debatida em congressos e conjuntos de publicaccedilotildees Optou-se por utilizar neste trabalho o

termo Psicologia Rural por ser um termo comumente utilizado na Ameacuterica Latina Espera-se

que este trabalho possa contribuir para a construccedilatildeo deste campo de conhecimento

Segundo Weil (19492001) desde o seacuteculo XIV os camponeses sofrem mais que os

operaacuterios pois estes quando passavam feacuterias nos vilarejos contavam vantagens sobre a

superioridade de se viver na cidade

No seacuteculo XIV os camponeses eram de muito longe os mais desgraccedilados Mas mesmo quando

satildeo materialmente mais felizes - e quando eacute o caso eles natildeo se datildeo muito conta disso porque

os operaacuterios que vecircm passar no vilarejo alguns dias de feacuterias sucumbem agrave tentaccedilatildeo da

fanfarronice - estatildeo sempre atormentados pelo sentimento de que tudo acontece nas cidades e

que eles estatildeo out of it

Evidentemente esse estado de espiacuterito eacute agravado pela instalaccedilatildeo nos vilarejos de TSF

[Telefonia sem fio raacutedio - N T] de cinemas e pela circulaccedilatildeo de jornais como Confidences e

Marie Claire perto dos quais a cocaiacutena eacute um produto sem perigo

Sendo essa a situaccedilatildeo eacute preciso primeiro inventar e aplicar alguma coisa que decirc doravante aos

camponeses o sentimento de que estatildeo in it (Weil 19492001 p 75)

1 Este capiacutetulo eacute baseado na tese de doutorado intitulada ldquoJovens assentados histoacuterias de vida e projetos de futuro

em um assentamento no litoral do Cearaacuterdquo apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

na aacuterea Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano de autoria de Denise Zakabi orientada pela Profordf Drordf

Maria Luisa Sandoval Schmidt

149

Candido (1975) considerava que a urbanizaccedilatildeo do campo se processaria como um

ldquovasto traumatismo cultural e social em que a fome e a anomia continuaratildeo a rondar o seu

velho conhecidordquo (p 225) caso natildeo houvesse um planejamento racional como a reforma

agraacuteria de forma que possibilitasse ao caipira ter condiccedilotildees de se ajustar a novas instituiccedilotildees

que impotildeem valores teacutecnicas e padrotildees culturais urbanos Assim essa obra apesar de ter sido

publicada no ano de 1975 levanta uma questatildeo brasileira ainda atual e natildeo resolvida que tem

sido discutida e enfrentada pelos movimentos sociais principalmente pelo Movimento Sem-

Terra (MST) e que tem tido avanccedilos e recuos a depender das gestotildees governamentais mais ou

menos abertas ao diaacutelogo

Esta pesquisa visou contribuir com os conhecimentos sobre a Psicologia relacionada agraves

ruralidades a partir das experiecircncias de juventudes em um assentamento que seraacute detalhado

adiante na parte de meacutetodo deste capiacutetulo Buscou ainda fornecer subsiacutedios para se refletir

sobre poliacuteticas puacuteblicas para jovens do campo

A partir dos anos 2000 propulsionadas pela maior presenccedila de jovens dentro de

organizaccedilotildees poliacuteticas e culturais foram criadas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para juventude

principalmente entre 2005 e 2015 eacutepoca dos Governos Lula e Dilma segundo Castro (2016)

Essa mudanccedila de paradigma de poliacuteticas puacuteblicas possibilita a concepccedilatildeo de jovens agentes no

processo de construccedilatildeo participativa de poliacuteticas puacuteblicas e natildeo apenas passivos de um Estado

provedor Ao analisar os dez anos dos governos Lula e Dilma Castro (2016) destaca que o

marco legal foi o maior avanccedilo no entanto a institucionalidade e as accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas

natildeo se consolidaram como poliacuteticas de Estado A autora observa que pode haver uma

fragilizaccedilatildeo dessas iniciativas para a juventude pelo ldquogolpe parlamentar que interrompeu o

Governo Dilmardquo (Castro 2016 p 195) E aqui eacute possiacutevel acrescentar que os governos

seguintes Temer e Bolsonaro satildeo marcados por accedilotildees governamentais fascistas que ameaccedilam

criminalizar os movimentos sociais derrubar a democracia e impedir o exerciacutecio dos direitos

humanos

1 Relaccedilotildees de poder

Moradores e moradoras da comunidade estudada podem ser discriminados(as) pela

desvalorizaccedilatildeo que haacute na sociedade sobre quem tem um modo de vida ligado agraves ruralidades

Tambeacutem podem ser discriminados(as) por terem baixa renda pela cor de sua pele negra e por

150

natildeo se enquadrarem nos papeacuteis associados agraves relaccedilotildees de gecircnero Satildeo situaccedilotildees que remetem

ao processo de humilhaccedilatildeo social

O latim ensina que a palavra humilhar (humiliare) eacute formada pelo radical huacutemus e que quer

dizer terra solo humilhar eacute pocircr em terra pocircr para baixo Humilhado eacute quem estaacute no chatildeo

abaixo Soberbo superbus eacute quem estaacute acima brotou por cima fora da terra e por cima dos

outros (Gonccedilalves Filho 2005 p 32)

A humilhaccedilatildeo social eacute fenocircmeno que se caracteriza por sentimentos de anguacutestia que satildeo

sentidos subjetivamente desencadeados pelas relaccedilotildees intersubjetivas e por condiccedilotildees sociais

Relaciona-se com aspectos poliacuteticos sociais e relaccedilotildees de poder desiguais como raccedila etnia

condiccedilotildees sociais gecircnero orientaccedilatildeo sexual e o que eacute especialmente importante para este

estudo relaciona-se com a condiccedilatildeo deter um modo de vida rural ou urbano

Em psicanaacutelise o nome para afetos inominaacuteveis eacute sempre o mesmo anguacutestia o mais

desqualificado dos afetos moeda dos afetos traumaacuteticos O mais abstrato e o mais humano dos

afetos a anguacutestia ndash tal como Laplanche (1987) natildeo cansa de demonstrar ndash representa sempre a

ressonacircncia em noacutes mecaniacutesmica de um enigma intersubjetivo (Gonccedilalves Filho 1998a p 48)

A humilhaccedilatildeo social eacute um fenocircmeno sofrido por um grupo silenciado dentro dos

processos decisoacuterios coletivos impedido de sua accedilatildeo poliacutetica

Como maneira de lidar com situaccedilotildees cotidianas de humilhaccedilatildeo e a anguacutestia advinda

delas as pessoas podem se valer de formas taacuteticas Segundo Certeau (19902013) a taacutetica difere

da estrateacutegia a estrateacutegia eacute a accedilatildeo de quem tem domiacutenio social relaciona-se com as elites ou

usando o termo de Freire (1982) com o opressor representados natildeo por indiviacuteduos e sim por

grupos poliacuteticos e instituiccedilotildees

Chamo de estrateacutegia o caacutelculo (ou a manipulaccedilatildeo) das relaccedilotildees de forccedilas que se torna possiacutevel

a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa um exeacutercito uma

cidade uma instituiccedilatildeo cientiacutefica) pode ser isolado A estrateacutegia postula um lugar suscetiacutevel de

ser circunscrito como algo proacuteprio e ser a base de onde se podem gerir as relaccedilotildees com uma

exterioridade de alvos ou ameaccedilas (os clientes ou os concorrentes os inimigos o campo em

torno da cidade os objetivos e objetos da pesquisa etc) (Certeau 19902013 p 93 itaacutelicos do

original)

A taacutetica se relacionaria ao fraco ou usando novamente termo de Freire (1982) ao

oprimido

a accedilatildeo calculada que eacute determinada pela ausecircncia de um proacuteprio Entatildeo nenhuma delimitaccedilatildeo

de fora lhe fornece a condiccedilatildeo de autonomia A taacutetica natildeo tem por lugar senatildeo o do outro E por

isso deve jogar com o terreno que lhe eacute imposto tal como o organiza a lei de uma forccedila estranha

Aproveita as ldquoocasiotildeesrdquo e delas depende sem base para estocar benefiacutecios aumentar a

propriedade e prever saiacutedas O que ela ganha natildeo se conserva Em suma a taacutetica eacute a arte do

fraco (Certeau 19902013 pp 94-95)

Certeau (19902013) elaborou esses conceitos a partir do pressuposto de que as pessoas

natildeo recebem passivamente informaccedilotildees e experiecircncias sem apropriar-se delas de alguma

151

maneira possiacutevel para sua sobrevivecircncia e usufruto Sua equipe realizou estudos a partir dessa

compreensatildeo por exemplo com pessoas da cultura popular em Pernambuco as quais se

apropriaram da religiosidade trazida pelo branco europeu e veneravam Frei Damiatildeo um santo

a favor das pessoas locais e dos mais pobres Esse autor faz o mesmo questionamento sobre a

suposta passividade dos meios de comunicaccedilatildeo atuais por exemplo como os telespectadores

recebem os conteuacutedos passados pela televisatildeo

Apesar da anaacutelise de Certeau (19902013) remeter agrave relaccedilatildeo entre opressor e oprimido

analisada por Freire (1982) este uacuteltimo ampliando sua esfera considera que esta situaccedilatildeo

somente pode ser superada atraveacutes da libertaccedilatildeo do oprimido por meio de uma transformaccedilatildeo

social a qual passa por um processo de conscientizaccedilatildeo e se concretiza atraveacutes de uma accedilatildeo

Daiacute a necessidade que se impotildee de superar a situaccedilatildeo opressora Isto implica no reconhecimento

criacutetico na ldquorazatildeordquo desta situaccedilatildeo para que atraveacutes de uma accedilatildeo transformadora que incida socircbre

ela se instaure uma outra que possibilite aquela busca do ser mais (Freire 1982 p 35)

Pessoas que moram em contextos rurais podem agir taticamente diante do pouco

investimento de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para os(as) pequenos(as) produtores(as) e a

agricultura familiar em busca de frestas nas quais possam se beneficiar dentro de condiccedilotildees

que lhes sejam desfavoraacuteveis No caso particular do assentamento aqui estudado seus(suas)

moradores(as) podem agir taticamente diante de situaccedilotildees sobre as quais tecircm pouco ou nenhum

poder de decisatildeo e planejamento por exemplo as lutas travadas em torno da implantaccedilatildeo da

induacutestria eoacutelica a grilagem de terras a valorizaccedilatildeo da produccedilatildeo em massa o pouco

investimento de governos em relaccedilatildeo agrave infraestrutura local Da mesma maneira em conflitos

internos entre as proacuteprias pessoas do assentamento nos quais haja desigualdade de poder

grupos com menor poder podem agir taticamente e grupos com maior poder estrategicamente

a depender de como a relaccedilatildeo de poder se compotildee por exemplo mulheres em relaccedilatildeo a homens

jovens em relaccedilatildeo a adultos(as) funcionaacuterios(as) em relaccedilatildeo a diretores(as) da escola

diretores(as) da escola em relaccedilatildeo a membros da Secretaria de Educaccedilatildeo Assim como o

processo de humilhaccedilatildeo social eacute realizado por um grupo sobre outro sua forma de superaccedilatildeo

tambeacutem eacute coletiva e aqui se destaca o apoio de movimentos sociais cujas reivindicaccedilotildees

favorecem a conquista de poliacuteticas puacuteblicas para os(as) assentados(as) de maneira geral e para

este assentamento de maneira particular

2 Meacutetodo

152

21 Local de estudo

O assentamento Maceioacute localiza-se na planiacutecie litoracircnea oeste do Cearaacute em Itapipoca

a cerca de 60 quilocircmetros da sede central Sua populaccedilatildeo eacute estimada em mil famiacutelias Essas

comunidades trabalham com agricultura pecuaacuteria pesca e confecccedilatildeo de renda todos de base

familiar (Assentamento Maceioacute 2013) Este assentamento foi formado nos anos 80 quando a

terra foi registrada pelo Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (Incra)

Durante o periacuteodo em que se conviveu dentro do assentamento quando se conversava

com jovens e velhos(as) estes(as) falavam que moravam na terra haacute vaacuterias geraccedilotildees contaram

que se tornaram serviccedilais de uma famiacutelia que se dizia dona da terra por um processo de

grilagem devido agrave ingenuidade e agrave falta de acesso aos mecanismos da justiccedila Graccedilas agrave

mobilizaccedilatildeo engendrada de trabalhadores(as) locais com apoio das Comunidades Eclesiais de

Base (CEBs) conquistaram a posiccedilatildeo de assentados(as)

Atualmente os(as) moradores(as) da comunidade continuam ldquona lutardquo contra outros

grupos interessados em usufruir da terra por se tratar de uma comunidade litoracircnea haacute

interesses de grandes empreendedores(as) da agricultura voltada para monocultura como a

produccedilatildeo de camaratildeo e coco da induacutestria do turismo e da induacutestria eoacutelica Haacute divisatildeo entre

os(as) moradores(as) ldquoa favor da lutardquo para manter a terra para uso exclusivo de seus(suas)

moradores(as) locais e aqueles(as) que satildeo ldquocontra a lutardquo e defendem esses(as) grandes

empreendedores(as) pois consideram que trariam benefiacutecios por meio do desenvolvimento da

regiatildeo alguns(mas) inclusive jaacute trabalham para eles(as) em trabalhos subalternos Os(as)

moradores(as) ldquoa favor da lutardquo se mobilizam para impedir o avanccedilo desses(as) grandes

empreendedores(as) Nos anos 90 solicitaram auxiacutelio do MST o qual contribuiu para preservar

a aacuterea de praia para usufruto de seus(suas) moradores(as) atraveacutes da construccedilatildeo de um

acampamento As famiacutelias militantes se revezam para ocupar o acampamento Pela chegada do

MST ter sido tardia em relaccedilatildeo a sua longa histoacuteria de luta satildeo poucos(as) os(as) moradores(as)

que simpatizam ou militam no movimento diferentemente de outros assentamentos

conquistados atraveacutes da luta do proacuteprio MST Mesmo assim com a sua mobilizaccedilatildeo

conseguiram que fosse construiacuteda a escola de ensino meacutedio do campo com recursos federais

de maneira que a comunidade escolhesse o nome e o local em 2010 A escola manteacutem ateacute hoje

o apoio pedagoacutegico do MST

A partir de visitas iniciais a esse assentamento e observando a relaccedilatildeo dos(as) jovens

com os(as) mais velhos(as) a luta o contexto do turismo e do modo de vida rural campesino

e litoracircneo surgiram os seguintes questionamentos quais satildeo as histoacuterias de vida e os projetos

153

de futuro dos(as) jovens desse assentamento e de comunidades ao redor Qual eacute a sua relaccedilatildeo

com as instituiccedilotildees com destaque para a escola onde passam a maior parte do dia Como eacute a

ligaccedilatildeo dos(as) jovens com as lutas engendradas pela comunidade Para responder a essas

questotildees foi realizado um processo de observaccedilatildeo participante que seraacute descrito a seguir

22 Observaccedilatildeo participante

Schmidt (2008) considera o trabalho de campo ldquoum espaccedilo comum entre pesquisadores

e aqueles outros que se deseja conhecer espaccedilo em que uns e outros se tornam mutuamente

inteligiacuteveisrdquo (p 394)

Segundo Silva (2006) a partir dos anos 60 antropoacutelogos(as) passaram a questionar a

condiccedilatildeo de neutralidade do(a) pesquisador(a) e o contexto de pesquisa como a condiccedilatildeo de

classe gecircnero etnia e formas de inserccedilatildeo dos(as) antropoacutelogos(as) Esse movimento teve iniacutecio

quando os paiacuteses dos continentes mais estudados Aacutefrica e Aacutesia passaram a reivindicar

autonomia por meio de movimentos de independecircncia Para este estudo considera-se que essas

reflexotildees podem contribuir para inserccedilatildeo de psicoacutelogos(as) pesquisadores(as) em estudos com

inspiraccedilatildeo etnograacutefica

Realizou-se observaccedilatildeo participante de vivecircncias cotidianas comunitaacuterias e escolares

principalmente na Escola do Campo de Ensino Meacutedio local onde os(as) jovens passam a maior

parte do tempo Tambeacutem foram acompanhados alguns eventos da comunidade como reuniatildeo

no acampamento na cozinha coletiva evento de Paacutescoa Regata e farinhada A Regata eacute uma

corrida entre jangadas e a farinhada a feitura de feacutecula de mandioca chamada tambeacutem de

polvilho doce ou ldquogomardquo como eacute conhecida no Cearaacute Esse processo de observaccedilatildeo

participante durou cerca de quatro anos entre 2013 e 2016

No primeiro ano foram realizadas visitas esporaacutedicas cerca de cinco para escrever o

projeto que deu origem a esta pesquisa Nos dois anos seguintes foram realizadas visitas

semanais para conhecer a comunidade nas quais se passava dois dias por semana vivenciando

o cotidiano da escola e agrave noite convivendo com pessoas da comunidade Jaacute no uacuteltimo ano

foram realizadas outras visitas esporaacutedicas agraves escolas e se participou de alguns eventos

comunitaacuterios Foi mantido um diaacuterio de campo com relatos dessas essas vivecircncias e para

manter o sigilo sobre as falas usam-se aqui nomes fictiacutecios

23 Entrevistas

154

Foram realizadas entrevistas com jovens seis garotas e quatro garotos de diversas

comunidades do assentamento e ao redor da Escola de Ensino Meacutedio do campo Esses(as)

jovens eram estudantes ou funcionaacuterios(as) da escola com os quais se conviveu durante a

observaccedilatildeo participante Buscou-se atraveacutes dessas entrevistas conhecer a diversidade de

vivecircncias dentro do assentamento e em comunidades ao redor e aprofundar temas conversados

informalmente Seguiu-se um roteiro de entrevistas dividido em cinco etapas caracterizaccedilatildeo

dos entrevistados presente passado futuro e reflexotildees sobre melhorias para comunidade

Durante as entrevistas Schmidt (2008) considera fundamental o interesse e o ldquorespeito

genuiacutenos do pesquisador pelos sentidos e significados que seu interlocutor atribui aos

fenocircmenos estudados e da focalizaccedilatildeo do processo de pesquisa como produtor de

conhecimentordquo (p 394) Da convivecircncia entre o(a) entrevistado(a) e o(a) entrevistador(a) pode

surgir um sentimento de gratidatildeo do(a) ouvinte pelo que aprendeu e do(a) narrador(a) por ter

sua experiecircncia valorizada

As entrevistas duraram cerca de uma hora cada Quase todas as entrevistas foram

realizadas em salas na escola do campo exceto a de Hellen que foi realizada em Fortaleza

local onde morava no momento da entrevista

Segue abaixo um quadro (Quadro 1) com o perfil dos(as) jovens entrevistados(as)

Quadro 1 ndash Caracteriacutesticas dos jovens entrevistados

Nome Idade Sexo Ensino Meacutedio Religiatildeo Cor de pele

Beatriz 19 F Terminou Catoacutelica Negra

Francisco 20 M Terminou Catoacutelica Parda

Aldo 17 M Terceiro ano Catoacutelica Morena

Hellen 18 F Terceiro ano Catoacutelica Morena Clara

Loira 19 F Terceiro ano Catoacutelica Morena

Izabel 18 F Terceiro ano Evangeacutelica (Universal) Parda

BMJ 19 M Terminou Catoacutelica Negra

Davi 17 M Segundo ano Catoacutelica Morena

Tereza 16 F Segundo ano Testemunha de Jeovaacute Preta

Adriana 15 F Primeiro ano Catoacutelica Parda

Entre as caracteriacutesticas do Quadro 1 destacam-se Beatriz e BMJ ligado ao MST

uacutenicos(as) entrevistados(as) a se denominarem negros Beatriz corrigiu sua cor de pele na

155

segunda parte da entrevista o que justificou por ter participado de uma formaccedilatildeo na qual a

afirmaccedilatildeo da identidade negra era reforccedilada e as caracteriacutesticas ldquomorenardquo ou ldquopardardquo foram

criticadas

Beatriz Eu fui representar a escola do campo em um seminaacuterio de artes e cultura Aiacute uma mulher

que tava dando a oficina disse que eacute racismo chamar as pessoas de Morena porque a cor de pele

eacute negra natildeo existe uma cor morena A cor eacute negra Aiacute por isso eu sou negra (Trecho de entrevista

com Beatriz)

Esta mudanccedila de opiniatildeo demonstra a importacircncia de formaccedilotildees para construccedilatildeo e

fortalecimento da consciecircncia negra

Apesar de esta pesquisa ter passado por tracircmites burocraacuteticos relacionados ao Comitecirc

de Eacutetica em Pesquisa (Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade

de Satildeo Paulo ndash CAAE 36349614200005561) e terem sido apresentados termos de

assentimento e consentimento para jovens entrevistados(as) conversas informais se tornaram

mais interessantes tanto em termos de conteuacutedo para pesquisa como forma de deixar os(as)

colaboradores(as) mais agrave vontade para aleacutem de ldquoparticipar de uma pesquisardquo poderem se

expressar e se sentir acolhidos(as) em algum sofrimento o que faz problematizar os limites dos

instrumentos instituiacutedos pelos Comitecircs e questionar afinal o que eacute a Eacutetica em Pesquisa

3 Resultados e discussatildeo

Seratildeo apresentados a seguir os principais resultados desta pesquisa que podem

colaborar para a reflexatildeo sobre Psicologia e Poliacuteticas Puacuteblicas relacionadas agrave juventude aos

povos do campo e do litoral e particularmente aos(agraves) jovens assentados(as) A ecircnfase deste

capiacutetulo estaacute nas poliacuteticas relacionadas agrave educaccedilatildeo cultura e moradia que podem ser refletidas

a partir das vivecircncias dos(as) jovens na escola do campo mencionada

Essa escola do campo foi construiacuteda pelo governo estadual com recursos do governo

federal por reivindicaccedilatildeo da comunidade com apoio do MST em 2010 conforme mencionado

no meacutetodo deste capiacutetulo Os proacuteprios membros do assentamento escolheram seu nome Maria

Nazareacute de Souza em homenagem a uma militante da luta pela terra e por direitos sociais

Seus(suas) moradores(as) tiveram prioridade para nela trabalhar e ela se localiza dentro do

proacuteprio assentamento Maceioacute na comunidade Jacareacute distrito de Baleia O MST manteacutem a

coordenaccedilatildeo pedagoacutegica O faacutecil acesso agrave educaccedilatildeo formal eacute um diferencial em relaccedilatildeo a outros

assentamentos e eacute um fator de permanecircncia de jovens no campo Os(as) jovens assentados(as)

156

geralmente tecircm oportunidade apenas de cursar o fundamental pela dificuldade de acesso agraves

escolas de Ensino Meacutedio segundo Castro (2009)

A escola possui doze turmas sendo quatro de cada ano do ensino meacutedio Em 2018

contava com 476 estudantes 31 educadores(as) e 14 funcionaacuterios(as) Apresentava boa

estrutura fiacutesica sala de informaacutetica quadra coberta sala de viacutedeo de grecircmio com raacutedio

instrumentos musicais biblioteca laboratoacuterio de biologia e quiacutemica bem equipado com

microscoacutepios e outros materiais Haacute um espaccedilo de horta que denominaram de ldquomandalardquo em

volta de uma cisterna feita com aacutegua da chuva

A escola apresentava diferenciais em relaccedilatildeo agraves escolas tradicionais a abertura que tem

para discussotildees sobre problemas da atualidade disparadas por membros de Organizaccedilotildees Natildeo

Governamentais (ONGs) movimentos sociais e religiosos ou pelo proacuteprio corpo docente da

escola como por exemplo sobre a Copa do Mundo no Brasil e sobre a produccedilatildeo de energia

eoacutelica Aleacutem disso a escola do campo se diferencia da teacutecnica agriacutecola pela formaccedilatildeo dos(as)

educadores(as) engenheiros(as) agrocircnomos(as) que ministravam a disciplina de Organizaccedilatildeo

do Trabalho e Teacutecnicas Produtivas Nessa disciplina o ensino eacute biodinacircmico em que satildeo

ensinadas teacutecnicas de plantio sem o uso de agrotoacutexico com defensivos caseiros e naturais

atraveacutes do manejo da forma de plantar podar em harmonia com o periacuteodo da lua Durante as

entrevistas alguns(mas) jovens referiram ter levado para suas casas o conhecimento da escola

para seus familiares que trabalhavam na roccedila Havia jovens que eram considerados

ldquobagunceirosrdquo em todas as disciplinas exceto as de praacuteticas do campo quando eram

extremamente soliacutecitos Alguns(mas) estudantes relataram ser as aulas de que mais gostavam

Outro diferencial eacute o incentivo para que o(a) jovem conheccedila a histoacuteria da sua proacutepria

comunidade Foi mencionado nas entrevistas um trabalho solicitado pela escola aos(agraves) jovens

para que entrevistassem os(as) mais velhos(as) para conhecer o motivo do nome da comunidade

onde vivem

Aleacutem dessas singularidades que possibilitavam uma formaccedilatildeo criacutetica politizada e ligada

agrave agroecologia havia uma seacuterie de conflitos interpessoais aos quais se teve acesso durante o

processo de observaccedilatildeo participante

Os membros da escola gostariam que seu ensino fosse diferente daquele das escolas

tradicionais e de instituiccedilotildees capitalistas Havia por exemplo questionamento sobre a

instalaccedilatildeo de uma sirene para avisar sobre o horaacuterio pois remetia ao ritmo industrial alienante

Buscava-se um processo pedagoacutegico que promovesse a autonomia dos estudantes desejo

157

expresso por fotos e frases de Paulo Freire nas paredes da escola Foi possiacutevel o contato com

tensotildees entre autoridade e autoritarismo dentro das diversas instacircncias de poder principalmente

pela dificuldade em estabelecer processos democraacuteticos dentro da escola situaccedilatildeo que remetia

ao sistema capitalista no qual a escola estava inserida e demonstrava os limites da proacutepria

organizaccedilatildeo escolar

Os(as) funcionaacuterios(as) se ressentiam por terem sido membros da luta e atuarem em

funccedilotildees subalternas com menor poder de decisatildeo e menores salaacuterios refletindo a desigualdade

de classes da sociedade Havia em contraposiccedilatildeo uma valorizaccedilatildeo de quem tinha formaccedilatildeo

para ser educador(a) ou membro da coordenaccedilatildeo em sua maioria pessoas que natildeo eram da

comunidade Os(as) funcionaacuterios(as) dividiam-se entre mulheres que cozinhavam lavavam a

louccedila e organizavam o estoque de comida e homens que eram responsaacuteveis pela seguranccedila e

limpeza da escola Uma funcionaacuteria que atuava como porta-voz dos(as) funcionaacuterios(as) falou

que exerciam funccedilotildees subalternas por terem se dedicado mais agrave luta do que agrave proacutepria formaccedilatildeo

diferentemente de alguns membros da comunidade que puderam se tornar educadores(as)

Ouviu-se criacutetica de funcionaacuterios(as) e de educadores(as) quanto ao fato de os(as)

funcionaacuterios(as) soacute serem chamados(as) para debate para resolver problemas em relaccedilatildeo aos(agraves)

estudantes ou aos membros da comunidade Em um dia de observaccedilatildeo particularmente

conflituoso uma funcionaacuteria disse que uma das pesquisadoras autora deste estudo deveria apoacutes

a pesquisa permanecer na escola para reconstruiacute-la

Os(as) educadores(as) por outro lado reclamavam que o serviccedilo dos funcionaacuterios natildeo

era como o de outras escolas estes(as) natildeo serviam cafeacute para os(as) educadores(as) natildeo

limpavam sua sala natildeo cuidavam das hortas da escola

Os(as) funcionaacuterios(as) agem a partir de uma organizaccedilatildeo dos espaccedilos das atividades e

das possibilidades de participaccedilatildeo determinada por educadores(as) e direccedilatildeo Podem agir

taticamente no sentido de Certeau (19902013) como forma de recusa agrave subalternidade por

exemplo deixar de servir cafeacute e limpar as salas de educadores(as)

Membros da coordenaccedilatildeo por sua vez tinham dificuldade em exercer a lideranccedila sendo

chamados em alguns momentos de ldquoautoritaacuteriosrdquo ldquocom dificuldades de ouvirrdquo

Os(as) estudantes demonstravam insatisfaccedilatildeo de maneiras diversas atraveacutes de atos de

vandalismo ou de reivindicaccedilotildees verbais Alguns estudantes tinham o haacutebito de jogar restos de

alimentos ao longo dos bancos da quadra da escola aleacutem de deixar espalhados pratos canecas

e talheres o que exigia que os(as) funcionaacuterios(as) sempre limpassem o local

158

O(a) representante de classe foi descrito(a) por um dos estudantes entrevistados como

um vigiador de ldquobons comportamentosrdquo dentro de sala de aula e natildeo como um representante do

interesse dos estudantes Um ponto que chama a atenccedilatildeo eacute que os jovens considerados

ldquobagunceirosrdquo com quem se conversou tinham um discurso no qual se mostravam bastante

responsaacuteveis em relaccedilatildeo agrave famiacutelia aos projetos de futuro relacionados ao trabalho e uma visatildeo

politizada em relaccedilatildeo ao local e agrave comunidade onde moravam

Ocorreram dois fatos transgressores na escola os quais se destacam aqui O primeiro

aconteceu quando uma comissatildeo de estudantes foi entregar sua lista de demandas aos(agraves)

educadores(as) da escola

Nesse dia de reuniatildeo um educador apresentou uma pauta de reivindicaccedilotildees dos(as)

representantes dos(as) estudantes falando de maneira jocosa perguntavam por que natildeo podiam

acessar o Facebook e a internet e os(as) educadores(as) podiam fazer os dois por que natildeo

podiam ir de calccedila rasgada para escola qual a formaccedilatildeo de alguns educadores(as) citaram a de

Inglecircs que natildeo havia terminado a graduaccedilatildeo e o de Sociologia e Filosofia que era formado em

Geografia Reclamaram que alguns(mas) educadores(as) abordavam estudantes de forma

abusiva Por fim os estudantes reivindicavam participar da proacutexima reuniatildeo de educadores(as)

na semana seguinte (Trecho de diaacuterio de campo)

Nota-se nessas reivindicaccedilotildees o desejo dos(as) estudantes de terem os mesmos direitos

que os(as) educadores(as) por exemplo ao usar a internet e natildeo usar a chamada ldquofardardquo no

Cearaacute ou uniforme escolar em Satildeo Paulo Os(as) educadores(as) da escola tinham uma posiccedilatildeo

duacutebia em relaccedilatildeo a essas iniciativas ofereciam espaccedilo para esses questionamentos ao lerem

suas reivindicaccedilotildees ao mesmo tempo em que as reprimiam fazendo piadas e desvalorizando-

as talvez para natildeo se confrontar com o desconforto causado pelo questionamento de sua

autoridade e por terem de ouvir criacuteticas

O segundo fato transgressor observado foi o de trecircs jovens expulsos da escola por terem

explodido bombas dentro dela Para essa expulsatildeo houve uma reuniatildeo conjunta entre

funcionaacuterios(as) e educadores(as) Para um dos jovens particularmente a expulsatildeo da escola

foi uma decisatildeo difiacutecil para a direccedilatildeo por ter crescido ldquono meio da lutardquo entre assembleias

Descreve-se abaixo conversa com este jovem quando jaacute havia se mudado para a sede do

municiacutepio para dar continuidade aos estudos

Quando se lembrava da experiecircncia de ter explodido a bomba na escola seus olhos brilhavam

e um sorriso se abria em seus laacutebios dizia ser um sentimento de poder e prazer que tinha Mas

se mostrava arrependido pelo que havia acontecido principalmente pela consequecircncia que teve

em sua vida pois natildeo queria ter se afastado do assentamento tampouco ter saiacutedo da escola do

campo Passou a valorizar mais a vida no assentamento depois dessa experiecircncia achava a sede

do municiacutepio barulhenta e reclamava do grande fluxo de carros Considerava que na escola da

sede do municiacutepio faltava luta era voltada somente para o Enem Achava que a escola do campo

propiciava uma formaccedilatildeo que ia aleacutem do curriacuteculo O ato de soltar a bomba na escola dentro

dos banheiros tinha o objetivo de ldquobotar o terrorrdquo Natildeo imaginava que poderia ser expulso por

159

isso poreacutem acha que o lado bom foi ter se afastado dos outros estudantes que considerava

ldquobagunceirosrdquo com quem natildeo tinha mais contato Tinha planos de estudar Agronomia e voltar

agrave escola do campo como professor como tantas pessoas da comunidade almejavam que ele se

tornasse Continuava a frequentar o curso de Residecircncia Agraacuteria que havia iniciado pela escola

do campo cujas aulas ocorrem em vaacuterias escolas do campo do Cearaacute Depois tive oportunidade

de encontraacute-lo durante a Regata do assentamento Disse-me que morava novamente no

assentamento estava fazendo um curso de Agroecologia pela UFC com recursos do Incra

Poreacutem o Incra natildeo financiava mais o curso e estava quase fechando Planejava fazer faculdade

de Matemaacutetica (Trecho de diaacuterio de campo)

A leitura de Winnicott (19631983) pode ajudar a compreender o que aconteceu na

escola haacute uma comunicaccedilatildeo que apesar de barulhenta explosiva eacute silenciosa natildeo fala

diretamente e pode expressar a relaccedilatildeo entre estudantes e escola Assim como a bomba

explodida na escola a imagem metafoacuterica trazida pela funcionaacuteria como porta-voz - de a escola

destruiacuteda poder ser reconstruiacuteda por uma das autoras deste estudo considerada ldquoespecialistardquo -

eacute uma manifestaccedilatildeo que expressa insatisfaccedilotildees com a forma como se configuram as relaccedilotildees

dentro da escola pelas dificuldades para se efetivar como um espaccedilo democraacutetico refletindo a

violecircncia nas relaccedilotildees pelo silenciamento de alguns membros nos processos decisoacuterios

Apesar de o processo de eleiccedilatildeo na escola ser democraacutetico as relaccedilotildees entre membros

da coordenaccedilatildeo educadores(as) funcionaacuterios(as) e estudantes era hierarquizada e os papeacuteis

cristalizados e riacutegidos A desigualdade gerava conflitos pelo ressentimento em natildeo haver

horizontalidade nas relaccedilotildees e valorizaccedilatildeo das diversas opiniotildees A efetividade da construccedilatildeo

de espaccedilos democraacuteticos eacute difiacutecil onde cada um(a) possa ser ouvido(a) e respeitado(a) em

condiccedilotildees iguais de diaacutelogo resguardadas suas diferenccedilas A educaccedilatildeo como praacutetica

libertadora na qual haacute diaacutelogo entre educadores(as) e educandos(as) de maneira que ambos(as)

sejam ouvidos(as) e respeitados(as) em seus anseios e esperanccedilas eacute um desafio a ser superado

de uma tradiccedilatildeo opressora de educaccedilatildeo a qual Freire (1982) nomeou de ldquoeducaccedilatildeo bancaacuteriardquo

Enquanto na praacutetica ldquobancaacuteriardquo da educaccedilatildeo antidialoacutegica por essecircncia por isto natildeo

comunicativa o educador deposita no educando o conteuacutedo programaacutetico da educaccedilatildeo que ele

mesmo elabora ou elaboram para ele na praacutetica problematizadora dialoacutegica por excelecircncia ecircste

conteuacutedo que jamais eacute ldquodepositadordquo se organiza e se constitui na visatildeo do mundo dos

educandos em que se encontram seus ldquotemas geradoresrdquo (Freire 1982 p 120)

A dificuldade de construir espaccedilos democraacuteticos ocorre em outros grupos e instituiccedilotildees

da sociedade que buscam superar relaccedilotildees hieraacuterquicas e almejam a igualdade Eacute um horizonte

a ser buscado dentro de uma sociedade capitalista dividida em classes sociais Paul Singer

(2002) analisa grupos que realizam atividades de economia solidaacuteria o que soacute eacute possiacutevel

segundo o autor quando as relaccedilotildees natildeo satildeo competitivas O autor analisa as dificuldades

encontradas por esses grupos em se autogerirem e tomarem decisotildees coletivas de forma

cooperativa e democraacutetica por exemplo o esforccedilo adicional dos trabalhadores em se preocupar

160

com as proacuteprias tarefas e os problemas gerais da empresa envolver-se em conflitos participar

de reuniotildees cansativas o que pode levar os soacutecios a preferirem dar um voto de confianccedila agrave

direccedilatildeo para que decida em lugar deles Ainda segundo o autor essa dificuldade pode estar

associada agrave insuficiente formaccedilatildeo democraacutetica dos soacutecios desde a infacircncia e ele cita como

exemplos a famiacutelia patriarcal e a escola Por fim o mesmo autor considera que entre as

empresas solidaacuterias a autogestatildeo se pratica mais autenticamente quando seus(uas) soacutecios(as)

se envolvem em lutas emancipatoacuterias e satildeo militantes sindicais poliacuteticos(as) e religiosos(as)

Castro (2009) menciona a dificuldade de adultos valorizarem as opiniotildees dos(as) jovens

em espaccedilos de decisatildeo em outros assentamentos e eventos sobre juventudes rurais A autora

associa essa desvalorizaccedilatildeo das opiniotildees dos(as) jovens mesmo jovens lideranccedilas reconhecidas

nacionalmente agrave reproduccedilatildeo da hierarquia presente nas relaccedilotildees familiares dentro dos espaccedilos

de decisatildeo e agrave falta de confianccedila nos(as) jovens rurais por sua associaccedilatildeo ao desinteresse pelo

meio rural e agrave atraccedilatildeo pela cidade

Observou-se em momentos decisoacuterios nos quais havia jovens presentes como em

assembleias no acampamento da praia e durante a farinhada no silecircncio destes(as) Os(as)

jovens ficavam apenas observando como se ficarem calados(as) fosse sua forma de respeitar

os(as) adultos que falavam Foi uma diferenccedila apenas geracional observada natildeo relativa ao

gecircnero porque havia participaccedilatildeo tanto de homens como de mulheres lideranccedilas locais

diferente do que foi observado em outros assentamentos do Sertatildeo Cearense nos quais a

predominacircncia da participaccedilatildeo era masculina (Pereira Cavalcante amp Oliveira 2014)

Os(as) jovens deste estudo natildeo participam de formas mais tradicionais de luta das quais

os mais velhos participam e se ressentem da pouca participaccedilatildeo dos(as) jovens como as

assembleias realizadas no acampamento e em outros espaccedilos comunitaacuterios mas satildeo

mobilizados(as) e mobilizadores(as) pelo teatro construiacutedo juntamente com membros de uma

congregaccedilatildeo religiosa catoacutelica e pelos atos puacuteblicos como as audiecircncias nessas uacuteltimas

principalmente quando mobilizados(as) pela escola do campo Aleacutem disso outro espaccedilo de

mobilizaccedilatildeo que pode ter discussotildees poliacuteticas referentes a problemas comunitaacuterios eacute o grupo

de jovens das igrejas

Destacam-se na fala mencionada do jovem expulso da escola e na de outras e outros

jovens com quem se teve oportunidade de conversar os diferenciais mencionados desta escola

a oportunidade para um ensino refletido com ldquolutardquo e poliacutetica de forma que os(as) jovens e

seus(suas) funcionaacuterios(as) problematizem a sociedade e a proacutepria metodologia da escola

161

Contraposta a relaccedilotildees mercantilizadas encontram-se relaccedilotildees de amizade trocas

muacutetuas por generosidade e hospitalidade as quais satildeo necessaacuterias para sobrevivecircncia do grupo

Comumente moradores(as) do assentamento falavam que laacute era um local em que jamais faltaria

comida e hospedagem do que sentiam muito orgulho contrastado ao que observavam nas

grandes cidades em que essa camaradagem natildeo acontecia

O que eacute associado ao campo pode ser valorizado ou desvalorizado de acordo com os

encontros com pessoas que podem potencializar ou despotencializar esse reconhecimento

Em uma das visitas agrave escola estudantes e educadores(as) se preparavam para Mostra de Artes

em comemoraccedilatildeo ao aniversaacuterio de 25 anos do MST no Cearaacute para a qual vi a preparaccedilatildeo

dos(as) estudantes com acompanhamento dos(as) educadores(as) Observei as tentativas de

negociaccedilatildeo de educadores(as) em relaccedilatildeo a muacutesicas a serem danccediladas pelos(as) jovens uma

muacutesica de axeacute com apelo eroacutetico e outra muacutesica gospel ambas sem ligaccedilatildeo com o tema da

Mostra Alguns(mas) estudantes se dedicaram a danccedilar Luiz Gonzaga o que se aproximava

mais da regiatildeo embora natildeo fosse uma muacutesica do local e eu jaacute havia tido oportunidade de

observar apresentaccedilotildees de coco muacutesica enraizada por esse povo litoracircneo cujo ritmo parece

estar dentro de seus corpos danccedilantes desde crianccedilas Tambeacutem natildeo houve recitaccedilatildeo de cordeacuteis

que escrevem com tanta facilidade como quando vi durante apresentaccedilatildeo de seminaacuterio de

estudantes sobre temas que chamam de transversais no caso temas da atualidade relevantes

para a sociedade por exemplo gravidez natildeo-planejada prevenccedilatildeo agraves IST Copa do Mundo e

energia eoacutelica A educadora Clarice me chamou a atenccedilatildeo para umas pinturas realizadas por

estudantes as quais eram identificadas com seus nomes e seacuteries e tambeacutem para um conjunto de

camisetas com a mensagem ldquoMST 25 anosrdquo bordadas agrave renda com o rendado tiacutepico da regiatildeo

as quais natildeo estavam assinadas como se o bordado natildeo fosse elevado agrave arte digno de ser

reconhecidamente identificado como uma pintura (Trecho de diaacuterio de campo)

O que eacute manifestaccedilatildeo de arte local a muacutesica o cordel o bordado por ser tatildeo comum

para seu cotidiano e realizada com tanta naturalidade natildeo foi valorizada nesse momento

Atribui-se essa desvalorizaccedilatildeo agrave humilhaccedilatildeo social ao que eacute reproduzido e valorizado pela

miacutedia e aos valores eurocecircntricos associados aos grandes centros urbanos caracterizados por

uma elite branca Essa desvalorizaccedilatildeo de um aspecto cultural intriacutenseco da comunidade indica

que o sentimento de humilhaccedilatildeo social eacute vivenciado e reproduzido dentro da proacutepria

comunidade o que denota a importacircncia da escola do campo para problematizar essa questatildeo

Um jovem foi avisar para uma educadora que precisaria se ausentar por participar da farinhada

processo de produzir farinha de tapioca a partir da mandioca em um tom de voz inaudiacutevel tanto

para ela como para mim Esta educadora entatildeo me explicou que os jovens quando entram na

escola sentem-se envergonhados em participar da farinhada mas ela me garantia ao terceiro

ano jaacute se sentiam orgulhosos De fato alguns(mas) jovens com quem conversei do segundo e

terceiro ano realmente se sentiam orgulhosos(as) por fazerem parte do assentamento e

sonhavam em continuar laacute na terra onde nasceram (Trecho de diaacuterio de campo)

Foram observadas diferenccedilas entre os(as) jovens entrevistados(as) das comunidades que

pertencem ao assentamento e da comunidade fora do assentamento Os terrenos das

comunidades do assentamento foram adquiridos por meio da mobilizaccedilatildeo da comunidade jaacute

162

residente e trabalhadora no local motivada pelas Comunidades Eclesiais de Base conforme jaacute

mencionado Os terrenos fora do assentamento foram adquiridos atraveacutes de compra Os(as)

jovens da comunidade do assentamento relatam maior uniatildeo das pessoas da comunidade em

casos de necessidade Um contraste ilustrativo dessa mobilizaccedilatildeo estaacute nas descriccedilotildees sobre as

farinhadas e os mutirotildees de Francisco do assentamento e de Aldo de uma comunidade vizinha

com diferenccedilas entre mobilizaccedilotildees comunitaacuterias conjuntas por trocas de serviccedilos e por serviccedilo

prestado por dinheiro

Francisco Cada famiacutelia tem a sua [farinhada] mas existe o haacutebito de Chama ldquotroca de diardquo

Quando eacute a farinhada da minha famiacutelia aquelas pessoas vecircm trabalhar e quando eacute a farinhada

de uma pessoa que trabalha na minha farinhada aiacute a pessoa da minha famiacutelia vai ajudar entatildeo

sempre haacute essa troca Algumas outras atividades por exemplo trabalhos da comunidade

algum mutiratildeo que deve ser feito na comunidade Foi realizada uma barragem no riacho entatildeo

foi o assunto trabalhado tambeacutem por um grupo chamado Terccedilo dos Homens e pelo conselho

tambeacutem (Trecho de entrevista com Francisco)

Aldo Por exemplo eu tenho uma roccedila aiacute eu quero fazer a farinhada aiacute eu chamo as pessoas

que eu quero pra trabalhar pra mim Eu posso chamar quem eu quiser soacute que paga neacute (Trecho

de entrevista com Aldo)

Os(as) jovens do assentamento tambeacutem relataram maior mobilizaccedilatildeo contra a entrada

de grandes empresas de turismo e de outros empreendimentos quando natildeo haacute gestatildeo

comunitaacuteria como as induacutestrias eoacutelicas diferentemente de comunidades fora do assentamento

nas quais haacute a entrada das eoacutelicas e cujos terrenos tecircm sido vendidos para construccedilatildeo de casas

e hoteacuteis para turismo havendo grande fluxo de turistas durante as altas temporadas Aldo

jovem morador de uma comunidade vizinha que estaacute sofrendo o impacto de uma recente

implantaccedilatildeo da induacutestria eoacutelica considera que as consequecircncias dessa implantaccedilatildeo podem

ldquodestruirrdquo seu sonho de ser agricultor Segundo Bosi (2003) a separaccedilatildeo entre trabalho e

relaccedilotildees comunitaacuterias pode ser uma causa de desenraizamento ldquoEntre os mais fortes motivos

desenraizadores estaacute a separaccedilatildeo entre a formaccedilatildeo pessoal biograacutefica mesmo e a natureza da

tarefa entre a vida no trabalho e a vida familiar de vizinhanccedila e cidadaniardquo (Bosi 2003 p

181)

Candido (1975) observou essas formas de solidariedade manifestas atraveacutes do trabalho

coletivo como o mutiratildeo para atividades agriacutecolas as quais eram essenciais para se conseguir

realizar a colheita e caracterizava o modo de vida do paulista caipira permeado pelo aspecto

moral religioso pela satisfaccedilatildeo em ajudar ao proacuteximo acompanhado de refeiccedilotildees e finalizado

com uma festa para alegrar o cotidiano Esse autor concluiu que os pequenos lavradores embora

arrastados para o acircmbito da economia capitalista e para a esfera da influecircncia das cidades

procuram ajustar-se ao que o autor chama de ldquomiacutenimo inevitaacutevel de civilizaccedilatildeordquo (p 218) ldquoA

163

conservaccedilatildeo de traccedilos aparece pois como fator de defesa grupal e cultural representando o

aspecto de permanecircncia A incorporaccedilatildeo dos novos traccedilos representa a mudanccedilardquo (p 219) Aqui

nesta pesquisa se poderia pensar que esses traccedilos de permanecircncia de ruralidades podem

contribuir para o enraizamento e para o sentimento de pertencimento que os(as) jovens tecircm pela

comunidade Segundo Weil (19492001) o enraizamento eacute uma das necessidades mais

importantes do ser humano

O enraizamento eacute talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana

Um ser humano tem raiz por sua participaccedilatildeo real ativa e natural da existecircncia de uma

coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos de futuro

Participaccedilatildeo natural ou seja ocasionada automaticamente pelo lugar nascimento profissatildeo

meio (Weil 19492001 p 43)

Destaca-se a construccedilatildeo de um pensamento criacutetico atraveacutes de encontros na escola do

campo e eventos dos quais os(as) jovens participam Os(as) colaboradores(as) Aldo e Izabel

moram na mesma comunidade vizinha ao assentamento a qual natildeo tem uniatildeo comunitaacuteria

tendo sentimentos isolados familiares de raiva impotecircncia e revolta contra a implantaccedilatildeo da

induacutestria eoacutelica A segregaccedilatildeo comunitaacuteria ameaccedila os modos de vida tradicionais e no caso a

possibilidade de continuar a morar no local como fala Izabel Seus moradores tecircm buscado

superar o isolamento ao se inteirar sobre as respostas que outras comunidades tecircm tomado de

forma a atuar com apoio coletivo por exemplo atraveacutes de audiecircncias puacuteblicas e seminaacuterios

promovidos por uma ONG que atua na regiatildeo visando agrave conscientizaccedilatildeo sobre as ameaccedilas aos

povos do mar e buscando informaccedilotildees na escola do campo e de grupos religiosos

Nas vivecircncias dos(as) jovens da escola do campo a continuidade dos estudos apoacutes o

Ensino Meacutedio foi considerada importante possivelmente pelo incentivo da proacutepria escola Um

dificultador para continuidade dos estudos mencionado foi ter de morar em outra cidade

Ao ocupar um lugar instaacutevel de poder a partir do qual seja possiacutevel planejar e controlar

o futuro uma das colaboradoras Beatriz age taticamente pensando somente no presente sem

pensar no futuro conforme definiccedilatildeo de taacutetica de Certeau (19902013)

Mesmo quando pensam em se formar em outras cidades e atuar em aacutereas diferentes de

seus pais pensam no retorno e na possiacutevel contribuiccedilatildeo que poderatildeo trazer para sua

comunidade a qual consideram extensatildeo de sua casa no sentido que Gonccedilalves Filho (1998b)

traz

A casa humana recolhe uma coleccedilatildeo de objetos que nos ligam ao passado da famiacutelia satildeo

retratos panos livros algum adorno moacuteveis muitas vezes recebidos dos pais dos avoacutes objetos

que carregam histoacuterias e fazem com que o morador se enraize mais aleacutem da natureza tambeacutem

no mundo dos seus ancestrais ligando o homem a outros homens que o precederam e que o

164

abrigaram Estar em casa eacute estar nos outros eacute estar em si mesmo estando nos outros (Gonccedilalves

Filho 1998b p 3)

Segundo revisatildeo bibliograacutefica realizada por Castro (2016) pesquisas recentes tinham

evidenciado movimentos de permanecircncia e de migraccedilatildeo de retorno de jovens do campo

brasileiro o que foi associado agraves poliacuteticas puacuteblicas criadas a partir dos anos 2000 A migraccedilatildeo

pode ser compreendida como circulaccedilatildeo fenocircmeno complexo ancorado em diversos motivos

como dar continuidade aos estudos atuar em trabalhos temporaacuterios e aproveitar formas de lazer

Nesta pesquisa foi perguntado aos(agraves) jovens sobre o que imaginavam que poderia

melhorar dentro da comunidade Foi mencionada a estrutura dos pequenos negoacutecios locais de

forma a aumentar os ganhos financeiros e gerar mais empregos Por exemplo uma das jovens

colaboradoras Beatriz mencionou a necessidade de haver condiccedilotildees estruturais para que se

possa realizar a pesca artesanal e o plantio do caju em relaccedilatildeo direta com o consumidor

Consideraccedilotildees finais

A maioria dos(as) jovens com os quais se conviveu apresenta forte ligaccedilatildeo com o local

onde mora pela convivecircncia com seus familiares vizinhos(as) e a organizaccedilatildeo do cotidiano

permeada pela religiosidade Mantecircm haacutebitos ligados agraves ruralidades como plantaccedilotildees pesca e

a farinhada Os(as) jovens querem se manter no local onde estatildeo e quando se imaginam no

futuro almejam ter outros modos de vida trabalhar em profissotildees diferentes dos seus pais ter

mais estudos e maior renda

Essa ligaccedilatildeo com o local onde moram e com seus(suas) moradores(as) natildeo se realiza

sem contradiccedilotildees e tensionamentos entre geraccedilotildees principalmente pelas relaccedilotildees de poder

estabelecidas Na escola do campo particularmente essas relaccedilotildees eram demonstradas pelos

conflitos entre o corpo docente membros da direccedilatildeo funcionaacuterios(as) e estudantes os quais

expressavam as limitaccedilotildees da organizaccedilatildeo hieraacuterquica escolar Trata-se de relaccedilotildees complexas

ser morador(a) e militante da comunidade e exercer funccedilotildees subalternas dentro da escola

quando se lutou tanto para natildeo ser subalterno(a) Haacute dificuldades para que todos(as) tenham

direito agrave expressatildeo de forma igual de maneira democraacutetica em uma educaccedilatildeo libertadora na

qual cada um possa ser respeitado em sua singularidade dentro de uma sociedade de classes

na qual quem tem maior possibilidade de formaccedilatildeo eacute mais valorizado e os(as) jovens satildeo pouco

ouvidos(as) em seus anseios Observa-se que essa dificuldade para construccedilatildeo de espaccedilos

democraacuteticos tambeacutem foi analisada por Paul Singer (2002) em grupos que realizam atividades

165

de economia solidaacuteria Eacute um horizonte a ser buscado dentro de uma sociedade capitalista

dividida em classes sociais

Destaca-se que a existecircncia dessa escola dentro do assentamento eacute fruto de uma luta da

proacutepria comunidade juntamente com o MST o que favorece que seus jovens possam manter

os estudos ateacute o Ensino Meacutedio o que eacute um diferencial em relaccedilatildeo a outros assentamentos Sua

formaccedilatildeo possibilita a construccedilatildeo de um pensamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave sociedade atraveacutes de

problematizaccedilotildees de temas poliacuteticos atuais e a valorizaccedilatildeo de aspectos da sua proacutepria cultura

como conhecer o histoacuterico da comunidade realizar bordados e cordeacuteis Esses aspectos da

cultura costumam ser desvalorizados pelos(as) proacuteprios(as) jovens o que expressa a situaccedilatildeo

de humilhaccedilatildeo social de quem mora no campo e nas aacutereas marginalizadas em relaccedilatildeo aos

grandes centros localizados principalmente no eixo Rio-Satildeo Paulo Essa escola do campo

portanto tem possibilitado a construccedilatildeo de respostas coletivas agrave situaccedilatildeo de humilhaccedilatildeo social

sofrida pelos jovens ampliando seus horizontes para aleacutem dos padrotildees hegemocircnicos de uma

elite branca e urbana

Assim finaliza-se este capiacutetulo registrando-se a importacircncia de poliacuteticas puacuteblicas

voltadas para as pessoas do campo particularmente a juventude no caso especiacutefico deste

assentamento para enriquecer sua formaccedilatildeo profissional e poliacutetica essas poliacuteticas favoreceram

que jovens almejassem cursar o ensino superior de maneira a contribuir com seus

conhecimentos para o assentamento Aleacutem disso analisando-se as restriccedilotildees existentes

destaca-se a necessidade de que haja maior investimento puacuteblico para que os(as) jovens possam

ter garantidos direitos baacutesicos como sauacutede e um trabalho com dignidade

Esta pesquisa apresentou possibilidades de uma comunidade com uma organizaccedilatildeo

coletiva que diante dos conflitos e dificuldades enfrentados luta para superar a desigualdade e

as injusticcedilas inerentes ao capitalismo Essa comunidade resistiu agrave implantaccedilatildeo da induacutestria de

energia eoacutelica construiu a Escola de Ensino Meacutedio do campo Nazareacute Flor com recursos do

governo federal dentro do proacuteprio assentamento com profissionais preferencialmente da

proacutepria comunidade Essas conquistas satildeo inspiraccedilatildeo para todas e todos noacutes especialmente

neste momento poliacutetico difiacutecil para o paiacutes

Vejam bem caros ouvintes

Como termino a histoacuteria

Natildeo haacute conquista sem luta

Natildeo haacute luta sem vitoacuteria

Natildeo haacute guerra sem batalha

Agraves vezes a mente falha

Mas guarde isso na memoacuteria

Maria da Paz militante do Assentamento Maceioacute (Santos [sd])

166

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168

Capiacutetulo 9

O Programa Mais Educaccedilatildeo e a produccedilatildeo de uma subjetividade aprendiz

Patriacutecia Peixoto Zapletal

Adriana Marcondes Machado

Introduccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre psicologia e educaccedilatildeo tem tomado o cotidiano escolar como objeto de

anaacutelise e de praacutetica dos psicoacutelogos Os discursos das poliacuteticas puacuteblicas constitutivos desse

cotidiano tendem a efeitos de naturalizaccedilatildeo sobre os atores do mundo escolar quando

desconsideram as formas de governo presentes nos processos de subjetivaccedilatildeo

Este texto1 daacute relevo agraves concepccedilotildees presentes na formulaccedilatildeo do Programa Mais

Educaccedilatildeo (Brasil 2010) com vistas a interrogar o lugar de uma estrateacutegia recente de ampliaccedilatildeo

da jornada das escolas puacuteblicas brasileiras Partimos da premissa trazida por autores inscritos

no campo dos estudos foucaultianos em educaccedilatildeo de que haveria um espraiamento de

processos de pedagogizaccedilatildeo da vida na contemporaneidade (Aquino 2013 Ball 2013 Simons

amp Masschelein 2011) que se referem a uma forma de gestatildeo social apoiada no discurso de

defesa de uma aprendizagem ininterrupta que instiga um intenso autogoverno dos cidadatildeos

Tomando como alvo analiacutetico o Programa Mais Educaccedilatildeo ndash uma difundida estrateacutegia

indutora de ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos estudantes das escolas puacuteblicas brasileiras

seja nas escolas seja em atividades escolares promovida pelo Governo Federal de 2007 a 2016

ndash este trabalho problematiza discursos referentes a esse Programa A partir do aporte teoacuterico

de Foucault (2004 2008a 2008b) especialmente de um de seus operadores analiacuteticos ndash a

governamentalidade ndash compreende-se que governar se refere a um continuum que se estende

do governo poliacutetico ateacute as formas de autorregulaccedilatildeo Faz parte da estrateacutegia neoliberal de

governo o desenvolvimento de teacutecnicas indiretas para controlar os indiviacuteduos tornando-os

responsaacuteveis pelos riscos sociais Por meio da anaacutelise dos documentos oficiais que materializam

e regulamentam o Programa Mais Educaccedilatildeo e de entrevistas com equipes teacutecnicas responsaacuteveis

1 Essa discussatildeo estaacute presente na dissertaccedilatildeo de mestrado de Patriacutecia Peixoto Zapletal intitulada Ampliaccedilatildeo da

jornada escolar mais aprendizagem de quecirc defendida em fevereiro de 2017 na Faculdade de Educaccedilatildeo da

Universidade de Satildeo Paulo sob orientaccedilatildeo da profa Dra Adriana Marcondes Machado (professora do Instituto

de Psicologia da USP Departamento da Aprendizagem Desenvolvimento e Personalidade ndash PSA)

169

pela sua implantaccedilatildeo tanto no niacutevel do municiacutepio e do estado de Satildeo Paulo quanto no federal

este texto tem como objetivo investigar como tal forma de governo estaacute presente no Programa

Percebe-se que a noccedilatildeo de governamentalidade tomada neste trabalho como ferramenta

analiacutetica auxilia na compreensatildeo da racionalidade governamentalizadora operada por meio de

praacuteticas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar dos alunos da rede puacuteblica brasileira como o Programa

Mais Educaccedilatildeo campo de investigaccedilatildeo deste estudo

1 O cenaacuterio do alargamento das funccedilotildees da instituiccedilatildeo escolar na contemporaneidade

Amplas reformas educacionais foram realizadas pelo governo brasileiro a partir dos

anos 1990 Elas abrangeram distintas dimensotildees do sistema de ensino legislaccedilatildeo

planejamento gestatildeo educacional financiamento curriacuteculo e formaccedilatildeo de professores (Noma

2010) e foram influenciadas por agecircncias multilaterais como Banco Mundial (BM)

Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura (Unesco) Organizaccedilatildeo

para a Cooperaccedilatildeo e Desenvolvimento Econocircmico (OCDE) Programa das Naccedilotildees Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD) entre outras (Shiroma Campos amp Garcia 2005) Essas reformas

fariam parte de um movimento internacional que segundo Noma (2010) propotildee a diminuiccedilatildeo

das desigualdades sociais nacionais e internacionais pelas vias educacionais

Os inuacutemeros projetos elaborados pelas mais variadas instituiccedilotildees organizaccedilotildees natildeo

governamentais secretarias de governo e sociedade civil de que a escola puacuteblica brasileira tem

sido alvo na atualidade parecem destacar o fortalecimento dessa instituiccedilatildeo como um loacutecus

privilegiado para o gerenciamento do risco social (Klaus 2009)

Os estudos de Saraiva (2013) tambeacutem apontam nessa direccedilatildeo ao mostrar que a

Educaccedilatildeo Baacutesica no Brasil vem sendo convocada a participar dos novos modos de lidar com o

risco demandados pela racionalidade poliacutetica atual A autora afirma que as teacutecnicas de

gerenciamento de riscos das populaccedilotildees vecircm sendo deslocadas para o gerenciamento privado

de risco que traz o imperativo de que cada um cuide de si e a responsabilizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

por todo tipo de risco Nessa matriz de inteligibilidade as intervenccedilotildees deixariam de ser sobre

os indiviacuteduos ou sobre o meio onde a populaccedilatildeo vive mas sobre as subjetividades Dessa forma

os esforccedilos seriam concentrados ldquonatildeo em accedilotildees de proteccedilatildeo da populaccedilatildeo mas em accedilotildees

educacionais utilizando para isso principalmente a miacutedia e as escolasrdquo (Saraiva 2013 p 171

grifos nossos)

170

As escolas estariam sendo instadas a alargarem suas funccedilotildees no sentido de assumirem a

tarefa de desenvolver competecircncias para tornar os alunos gestores privados dos seus riscos e

eventualmente dos riscos de sua famiacutelia e comunidade Para a autora isso pode ser evidenciado

na ecircnfase que vem sendo dada ao papel da escola para trabalhar no curriacuteculo temaacuteticas como

ldquoeducaccedilatildeo sexual educaccedilatildeo alimentar educaccedilatildeo em sauacutede educaccedilatildeo para o

empreendedorismo educaccedilatildeo financeira educaccedilatildeo para o tracircnsitordquo (Saraiva 2013 p 171)

Os novos contornos que a instituiccedilatildeo escola vem assumindo tambeacutem podem ser

constatados a partir do acompanhamento nos uacuteltimos anos dos deslocamentos dos discursos

sobre poliacutetica educacional presentes em publicaccedilotildees de organismos nacionais e internacionais

Shiroma Campos e Garcia (2005) ressaltam que a literatura derivada de pesquisas comparativas

sobre poliacutetica educacional indica uma crescente hegemonia discursiva das poliacuteticas

educacionais em niacutevel mundial Os autores a partir do acompanhamento sistemaacutetico de

publicaccedilotildees nacionais e internacionais nos uacuteltimos anos evidenciaram que no iniacutecio dos anos

1990 predominavam nos discursos de poliacutetica educacional argumentos a favor da ldquoqualidade

competitividade produtividade eficiecircncia e eficaacuteciardquo (Shiroma et al 2005 p 428) Esses

argumentos teriam sido deslocados para uma face mais humanitaacuteria evidenciada numa

crescente ecircnfase sobre os conceitos de ldquojusticcedila equidade coesatildeo social inclusatildeo

empowerment oportunidade e seguranccedilardquo (Shiroma et al 2005 p 428)

Vocaacutebulos como monitorar gerenciar e avaliar tiacutepicos do mundo dos negoacutecios e cada

vez mais presentes nos documentos oficiais das reformas educacionais tambeacutem evidenciam

para os autores que paulatinamente os problemas educacionais passam a ser explicitados

como problemas de gestatildeo da educaccedilatildeo ou seja de maacute administraccedilatildeo (Shiroma et al 2005)

Essa forma de compreender os problemas educacionais como problemas de

gerenciamento tambeacutem parece contribuir para que a ampliaccedilatildeo da jornada escolar e das funccedilotildees

da escola ocorra Eacute frequente no cenaacuterio educacional brasileiro os governos enfatizarem a

necessidade de uma nova gestatildeo escolar ou seja uma gestatildeo compartilhada indicando a

importacircncia da participaccedilatildeo da comunidade Essa nova forma de gerenciamento compartilhado

da educaccedilatildeo a partir da participaccedilatildeo da sociedade civil faz emergir variados projetos que

teriam a escola como um local oacutetimo para pocirc-los em praacutetica decorrendo daiacute como tambeacutem

percebe Klaus (2009) um alargamento das funccedilotildees dessa instituiccedilatildeo

Na deacutecada de 1990 assistiu-se no Brasil conforme relembra Krawczyk (2014) agrave

pressatildeo de organismos internacionais e do Executivo nacional para que o empresariado

brasileiro assumisse poliacuteticas sociais a fim de se responsabilizar pelo bem-estar da populaccedilatildeo

171

entre essas poliacuteticas o Programa Comunidade Solidaacuteria presidido pela entatildeo primeira-dama

Ruth Cardoso funcionou como ponta de lanccedila Esse programa teve como objetivo otimizar o

gerenciamento de um conjunto de programas sociais por meio da participaccedilatildeo da sociedade

civil no combate agrave pobreza Assim conforme assinala Krawczyk (2014) figuras juriacutedicas da

sociedade civil na prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos comeccedilam a surgir e por meio de parcerias

complementam o orccedilamento puacuteblico

Variados programas e projetos educacionais atualmente elaborados pelos governos

municipal estadual e federal brasileiros tambeacutem tecircm sido operacionalizados por meio de

parcerias com organizaccedilotildees natildeo governamentais (ONGs) instituiccedilotildees da sociedade civil e

empresas evidenciando a desestatizaccedilatildeo da educaccedilatildeo e o deslocamento da ecircnfase de uma

dimensatildeo puacuteblica estatal para a dimensatildeo puacuteblica natildeo estatal

Nota-se juntamente com Popkewitz (2001) o quanto sedutora a noccedilatildeo de parceria tem

se tornado e que esta conforme explicita o autor seria um dos temas redentores da

contemporaneidade Essa noccedilatildeo aparece como uma forma de renovaccedilatildeo do bem-estar social por

meio de accedilotildees civis em que os que estariam diretamente envolvidos com problemas locais

poderiam agir efetivamente No entanto Popkewitz (2001) ressalta que a ideia de parceria e de

participaccedilatildeo da comunidade natildeo pode ser pensada como puro princiacutepio abstrato apartado das

praacuteticas sociais Os discursos presentes nas reformas educacionais atuais que clamam por

mudanccedilas na gestatildeo escolar e primam por uma nova democratizaccedilatildeo da escola estariam

articulados com praacuteticas que produzem sujeitos com habilidades particulares pragmaacuteticos

empreendedores reflexivos autocircnomos e aprendizes permanentes que buscam realizar a si

mesmos por meio de suas escolhas

A partir do exposto evidencia-se que as recentes reconfiguraccedilotildees pelas quais a escola

puacuteblica brasileira vem passando a partir de alguns fenocircmenos interligados tais como loacutegica da

empresa desestatizaccedilatildeo da educaccedilatildeo parcerias e privatizaccedilatildeo do risco social acontecem num

momento histoacuterico em que se opera nos termos de Foucault (2008a 2008b) o neoliberalismo

como racionalidade governamental Essa forma de liberalismo vem sendo ressignificada desde

a deacutecada de 1980 e apresenta mudanccedilas em relaccedilatildeo ao liberalismo concebido no seacuteculo XVIII

(Saraiva amp Veiga-Neto 2009)

Na esteira de Foucault Saraiva e Veiga-Neto (2009) assinalam um dos deslocamentos

marcantes e que interessa ressaltar para este estudo entre o liberalismo e o neoliberalismo

Segundo os autores no liberalismo a liberdade de mercado era entendida como algo natural

ou seja a regulaccedilatildeo do mercado e do proacuteprio Estado seria determinada pelo livre mercado Jaacute

172

na governamentalidade neoliberal cujo princiacutepio de inteligibilidade eacute a maximizaccedilatildeo da

competiccedilatildeo haacute intervenccedilatildeo do Estado para prover condiccedilotildees miacutenimas para que todos possam

entrar no jogo do mercado ou ainda para ldquoproduzir liberdade para que todos possam estar no

jogo econocircmicordquo (Saraiva amp Veiga-Neto 2009 p 189)

Para garantir que todos possam se manter no jogo neoliberal Lopes (2013) afirma que

seria necessaacuterio educar a populaccedilatildeo para que esta possa integrar essa nova forma de vida ldquoque

exige de cada indiviacuteduo dedicaccedilatildeo e constante busca de formaccedilatildeo para poder empreender-serdquo

(Lopes 2013 p 296) Na perspectiva de Lopes (2013) as muitas estrateacutegias de governamento

que satildeo vistas hoje em operaccedilatildeo sobre a populaccedilatildeo em especial sobre aqueles segmentos

considerados de risco seriam investimentos que nas palavras da autora primam ldquotanto pelas

accedilotildees de proteccedilatildeo social quanto pelas accedilotildees de autogovernogovernamentordquo (Lopes 2013 p

296)

Percebe-se portanto que eacute no contexto dessa maneira de investir sobre as condiccedilotildees de

vida da populaccedilatildeo que precisam ser compreendidas as variadas estrateacutegias utilizadas pelos

paiacuteses a fim de reordenar as poliacuteticas educacionais para atender as populaccedilotildees denominadas

em situaccedilatildeo de vulnerabilidade e risco social Entre essas estrateacutegias estariam o aumento da

escolarizaccedilatildeo obrigatoacuteria e a ampliaccedilatildeo da jornada escolar que conforme destaca Perrude

(2013) vecircm sendo no Brasil ldquorecomendadas pelos oacutergatildeos puacuteblicos normatizadas pela

legislaccedilatildeo discutidas nas produccedilotildees acadecircmicas e tambeacutem sugeridas e apontadas como praacuteticas

pedagoacutegicas lsquoinovadorasrsquordquo (Perrude 2013 p 29)

Os debates em torno das propostas de escolas puacuteblicas de tempo integral reanimam-se

no Brasil ao longo dos anos 20002 e elas satildeo apontadas como instrumento indispensaacutevel para a

qualidade educacional Ao percorrer a legislaccedilatildeo3 que ampara a ampliaccedilatildeo da jornada escolar

evidencia-se a intenccedilatildeo do governo de expansatildeo das escolas de tempo integral com atenccedilatildeo

especial agraves ldquocamadas sociais mais necessitadasrdquo (Brasil 2001)

Uma das propostas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar que ganhou espaccedilo nos uacuteltimos anos

nas escolas puacuteblicas brasileiras eacute o Programa Mais Educaccedilatildeo Esse Programa incidiu no acircmbito

do Ensino Fundamental como um modelo de extensatildeo da jornada escolar e das funccedilotildees

2 Ainda que a defesa da escola puacuteblica de tempo integral tenha sido feita por Aniacutesio Teixeira na deacutecada de 1930

a expansatildeo das propostas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar ocorreria apoacutes a promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e

Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) em 1996 3 Menezes (2009) e Coelho e Menezes (2007) apresentam detalhada anaacutelise sobre o que dizem os documentos

legais apoacutes a Constituiccedilatildeo de 1988 acerca do tempo na escola e dos avanccedilos normativos em relaccedilatildeo ao Ensino

Fundamental em tempo integral no ordenamento constitucional

173

escolares pelo Paiacutes Por meio dos nuacutemeros do Censo Escolar4 (2010 2011 2012 2013 2014

2015) eacute possiacutevel acompanhar o aumento de alunos no ensino de tempo integral e o impacto do

Programa na expansatildeo dessas experiecircncias5

2 Poliacuteticas de inclusatildeo nos governos FHC e Lula e o investimento em mais educaccedilatildeo

A emergecircncia do movimento de inclusatildeo escolar no Brasil eacute evidenciada por Lopes e

Rech (2013) na deacutecada de 1990 quando a palavra inclusatildeo passou a ser utilizada de maneira

sutil em materiais e programas elaborados pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) As propostas

de inclusatildeo empreendidas pelo Paiacutes que era entatildeo presidido por Fernando Henrique Cardoso

(FHC) viriam ao encontro das metas estabelecidas pela Conferecircncia Mundial sobre Educaccedilatildeo

para Todos realizada na Tailacircndia em 1990 e pela Conferecircncia Mundial em Educaccedilatildeo

Especial ocorrida em Salamanca na Espanha em 1994

Com a necessidade de educar a todos as estrateacutegias criadas no decorrer dos governos

de FHC a fim de promover a inclusatildeo escolar ganhariam diferentes espaccedilos ultrapassando o

acircmbito escolar Lopes e Rech (2013) apontam que foram criados variados programas sociais

assistenciais que vinculavam o envio e a manutenccedilatildeo das crianccedilas em idade escolar obrigatoacuteria

ao recebimento de bolsas Entre os mais difundidos no periacuteodo destaca-se o Programa Bolsa

Escola6 O governo FHC teria encontrado conforme afirmam as autoras um meio de modificar

consideravelmente os iacutendices de evasatildeo e repetecircncia escolar ao recompensar as famiacutelias que

mantivessem seus filhos na escola

A instituiccedilatildeo de outros programas de transferecircncia monetaacuteria ndash aleacutem do Programa Bolsa

Escola ndash tais como o Programa de Erradicaccedilatildeo do Trabalho Infantil (Peti) o Bolsa-

Alimentaccedilatildeo e o Auxiacutelio-Gaacutes e o uso da educaccedilatildeo puacuteblica para viabilizar a implantaccedilatildeo e

4 O Censo Escolar eacute um levantamento de dados estatiacutestico-educacionais de acircmbito nacional realizado todos os

anos e coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Aniacutesio Teixeira (Inep) Ele eacute feito

com a colaboraccedilatildeo das secretarias estaduais e municipais de Educaccedilatildeo e com a participaccedilatildeo de todas as escolas

puacuteblicas e privadas do Paiacutes Trata-se do principal instrumento de coleta de informaccedilotildees da Educaccedilatildeo Baacutesica

coletando dados sobre estabelecimentos matriacuteculas funccedilotildees docentes movimento e rendimento escolar Dados

recuperados de httpportalinepgovbrbasica-censo 5 No site do Inep encontra-se a informaccedilatildeo sobre os dados do censo de 2014 em notiacutecia de 11 de fevereiro de

2015 em que o presidente do Instituto evidencia que ldquoA expansatildeo da educaccedilatildeo integral eacute fruto do programa Mais

Educaccedilatildeo desenvolvido pelo MEC por meio do qual satildeo transferidos recursos agraves escolas para manter os alunos

em jornada estendidardquo Dados recuperados de httpportalinepgovbrvisualizar-asset_publisher6AhJcontent

matriculas-em-educacao-integral-apresentam-crescimento-de-41-2redirect=http3a2f2fportalinepgovbr

2f 6 Iniciado em 2001 eram consideradas elegiacuteveis famiacutelias com renda mensal per capita correspondente a meio

salaacuterio miacutenimo que tivessem entre seus membros crianccedilas em idade escolar (6 a 15 anos) Era feito o pagamento

da bolsa de R$ 1500 (valor da eacutepoca) por filho que frequentasse pelo menos 85 das aulas (limitado ao maacuteximo

de trecircs filhos) (Ferro 2007)

174

controle desses programas ocuparam o papel central na abordagem do combate agrave pobreza

adotada no governo Fernando Henrique Cardoso (Algebaile 2009) Esses programas sofreriam

modificaccedilotildees ao longo das duas gestotildees de FHC (19951998 e 19992002) e a partir de 2001

segundo Algebaile (2009) mostraram-se como o eixo da accedilatildeo do Governo Federal no campo

social

A dificuldade de listar com precisatildeo os programas e as accedilotildees daquilo que seria chamado

de reforma educacional praticada durante as gestotildees de Fernando Henrique Cardoso eacute tambeacutem

percebida por Algebaile (2009) ao esclarecer que ela resulta

em primeiro lugar da profusatildeo de ldquoaccedilotildeesrdquo de diferentes portes ldquolanccediladasrdquo sem suficientemente

explicaccedilotildees a respeito de seu efetivo alcance e importacircncia no interior da reforma Em

segundo lugar devido agrave absoluta (e intencional) confusatildeo que caracterizou o processo de

lanccedilamento e implantaccedilatildeo dessas accedilotildees devido agrave expediccedilatildeo de muitas e contraditoacuterias peccedilas

normativas agraves mudanccedilas de nomes dos programas e agrave inclusatildeo de uma mesma accedilatildeo em diversos

programas tornando difiacutecil identificar sua origem definir seus contornos e rastrear seus

desdobramentos (Algebaile 2009 p 271)

Dando continuidade agraves poliacuteticas de inclusatildeo iniciadas no governo FHC ndash que

associariam educaccedilatildeo e assistecircncia social ndash o governo de Luiacutes Inaacutecio ldquoLulardquo da Silva (2003-

2010) embora com concepccedilotildees de governo distintas manteve e ampliou as poliacuteticas e os

programas criados por seu antecessor Lopes e Rech (2013) destacam que os programas criados

no governo Lula aleacutem de terem mantido o caraacuteter assistencialista e neoliberal dos programas

do governo FHC teriam acentuado as accedilotildees de assistecircncia e voluntariado A busca pelo Estado

de investimentos da inciativa privada para as camadas mais pobres da populaccedilatildeo realccedilaria

ainda ldquouma articulaccedilatildeo simbioacutetica entre Estado e mercadordquo (Lopes amp Rech 2013 p 216)

A possiacutevel proximidade em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas de inclusatildeo dos governos FHC e Lula

pode ser explicada pela consonacircncia com certas poliacuteticas mundiais e tambeacutem conforme

sublinham Lopes e Rech (2013) pela constataccedilatildeo de que ambos os governos teriam trabalhado

para inscrever o Brasil entre aqueles paiacuteses em condiccedilotildees de se desenvolver Qualquer governo

que estivesse agrave frente do paiacutes com esse objetivo ldquoseria avaliado pela disposiccedilatildeo mundial de

fazer da educaccedilatildeo uma das maiores tecnologias para a governamentalidaderdquo (Lopes amp Rech

2013 p 216)

Portanto eacute no contexto dos investimentos governamentais no campo da educaccedilatildeo e da

assistecircncia social que o Programa federal Mais Educaccedilatildeo foi criado no iniacutecio da segunda gestatildeo

do governo Lula e continuou sendo desenvolvido no governo Dilma Rousseff (2011-2014) O

segundo governo Lula (2007-2010) foi marcado pela criaccedilatildeo de uma diversidade de programas

175

educacionais que teriam como bandeira a educaccedilatildeo de qualidade com o fim de permitir a

inserccedilatildeo do paiacutes na economia mundial

O lanccedilamento feito pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) do Plano de Desenvolvimento

da Educaccedilatildeo (PDE)7 (Brasil 2007) no ano de 2007 demonstra a ampliaccedilatildeo do nuacutemero de accedilotildees

educacionais Esse Plano foi criado com o intuito de enfrentar o problema da qualidade do

ensino ministrado nas escolas de Educaccedilatildeo Baacutesica do Paiacutes Na sua origem o PDE agregou 30

accedilotildees que cobrem a Educaccedilatildeo Baacutesica e Superior e as modalidades de ensino Educaccedilatildeo de

Jovens e Adultos Educaccedilatildeo Especial e Educaccedilatildeo Profissional e Tecnoloacutegica

Compreendido por Saviani (2009) como um ldquogrande guarda-chuvardquo (Saviani 2009 p

5) o Plano de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (PDE) (Brasil 2007) abriga quase todos os

programas em desenvolvimento pelo MEC O Plano surgiu na circunstacircncia do lanccedilamento do

Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC)8 desenvolvido pelo Governo Federal Cada

ministeacuterio foi solicitado a indicar accedilotildees que se enquadrariam no referido Programa O

Ministeacuterio da Educaccedilatildeo lanccedilou entatildeo o Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb)9

e a ele atrelou diversas accedilotildees que jaacute se encontravam na pauta do MEC (Saviani 2009)

Incluso no PDE (Brasil 2007) como um programa do eixo da Educaccedilatildeo Baacutesica o

Programa Mais Educaccedilatildeo10 foi regulamentado pelo Decreto nordm 7083 de 27 de janeiro de 2010

com a finalidade de ldquocontribuir para a melhoria da aprendizagem por meio da ampliaccedilatildeo do

tempo de permanecircncia de crianccedilas adolescentes e jovens matriculados em escola puacuteblica

mediante oferta de educaccedilatildeo baacutesica em tempo integralrdquo (Brasil 2010)

Embora o Programa tenha sido lanccedilado em 2007 a ampliaccedilatildeo da jornada escolar jaacute era

prevista no art 34 da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (Lei nordm 939496) (Brasil

1996) que determina a progressiva ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos alunos na escola

7 O dispositivo legal que potildee em vigecircncia o Plano eacute o Decreto nordm 6094 de 24 de abril de 2007 ndash promulgado na

proacutepria data do lanccedilamento do PDE ndash que institui o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educaccedilatildeo (Saviani

2009) 8 Criado em 2007 o Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) promoveu a retomada do planejamento e

execuccedilatildeo de grandes obras de infraestrutura social urbana logiacutestica e energeacutetica do paiacutes Informaccedilotildees recuperadas

de httpwwwpacgovbrsobre-o-pac 9 O Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) foi criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos

e Pesquisas Educacionais Aniacutesio Teixeira (Inep) Foi formulado para medir a qualidade do aprendizado nacional

e estabelecer metas para a melhoria do ensino O Ideb eacute uma combinaccedilatildeo de percentuais de aprovaccedilatildeo com

proficiecircncia em liacutengua portuguesa e matemaacutetica As meacutedias de desempenho utilizadas satildeo as da Prova Brasil para

escolas e municiacutepios e do Sistema de Avaliaccedilatildeo da Educaccedilatildeo Baacutesica (Saeb) para os estados e o Paiacutes realizados

a cada dois anos As metas estabelecidas pelo Ideb satildeo diferenciadas para cada escola e rede de ensino com o

objetivo uacutenico de alcanccedilar seis pontos ateacute 2022 meacutedia correspondente ao sistema educacional dos paiacuteses

desenvolvidos Informaccedilotildees recuperadas de httpportalmecgovbrindexphpItemid=336 10 O Programa Mais Educaccedilatildeo foi instituiacutedo por meio da Portaria Interministerial nordm 17 em 2007 envolvendo os

seguintes Ministeacuterios Educaccedilatildeo Cultura Esporte e Desenvolvimento Social e Combate agrave Fome

176

e no Plano Nacional de Educaccedilatildeo (PNE) 2001-2010 O novo Plano Nacional de Educaccedilatildeo 2014-

2024 reafirma a intenccedilatildeo do Estado de ampliaccedilatildeo da jornada escolar e apresenta ainda uma

meta especiacutefica que trata da oferta da educaccedilatildeo em tempo integral ldquoOferecer educaccedilatildeo em

tempo integral em no miacutenimo 50 (cinquenta por cento) das escolas puacuteblicas de forma a

atender pelo menos 25 (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educaccedilatildeo baacutesicardquo

(Brasil 2014)

Inicialmente o Programa Mais Educaccedilatildeo atuou nas capitais nas regiotildees metropolitanas

e em territoacuterios de vulnerabilidade social Em 2012 as escolas do campo foram incluiacutedas E a

partir de 2013 escolas localizadas em todos os municiacutepios do Paiacutes que tecircm um baixo Iacutendice de

Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) ndash aleacutem de outros criteacuterios estabelecidos a cada

ano11 ndash foram consideradas elegiacuteveis para participar do Programa12 O Programa se fez presente

em todos estados brasileiros e no Distrito Federal em 2014 e a evoluccedilatildeo do nuacutemero de escolas

participantes foi crescente de 2008 a 201413

Concebido com o intuito de promover uma ldquoaccedilatildeo intersetorial entre as poliacuteticas puacuteblicas

educacionais e sociaisrdquo (Brasil 2014 p 4) os documentos oficiais normativos do Programa

Mais Educaccedilatildeo evidenciam que para enfrentar a situaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade e risco a que

estatildeo submetidas parcelas consideraacuteveis de crianccedilas adolescentes e jovens e suas famiacuteliasrdquo

(Brasil 2007) a escola deve cumprir o desafio de proteger e educar e para isso ldquoa escola puacuteblica

passa a incorporar um conjunto de responsabilidades que natildeo eram vistas como tipicamente

escolares mas que se natildeo estiverem garantidas podem inviabilizar o trabalho pedagoacutegicordquo

(Brasil 2009a p 17)

Ampliando as funccedilotildees da escola o Programa reconhece que as tarefas dos educadores

seratildeo consequentemente alargadas e defende a necessidade de uma ldquoconsistente valorizaccedilatildeo

11 Os dados utilizados na pesquisa foram aqueles disponibilizados ateacute o ano de 2014 pois natildeo foi possiacutevel ter

acesso aos dados do Programa referentes aos anos de 2015 e 2016 12 Em 2014 para as escolas urbanas os criteacuterios de seleccedilatildeo foram 1) Escolas contempladas nos anos anteriores

2) Escolas estaduais municipais eou distrital que foram contempladas com o PDEEscola e que possuam o Ideb

abaixo ou igual a 35 nos anos iniciais eou finais Ideb anos iniciais lt 46 e Ideb anos finais lt 39 3) Escolas

localizadas em todos os municiacutepios do Paiacutes 4) Escolas com iacutendices igual ou superior a 50 de estudantes

participantes do Programa Bolsa Famiacutelia (Brasil 2014) 13 Solicitamos ao coordenador do Programa Mais Educaccedilatildeo no niacutevel federal em julho de 2016 os dados das

escolas participantes do Programa em 2015 mas natildeo obtivemos resposta Ao longo de 2015 o Programa sofreu

com os ajustes fiscais realizados pelo Governo Federal ainda na gestatildeo de Dilma Rousseff Muitas das escolas

que em 2015 se beneficiavam da iniciativa do Mais Educaccedilatildeo tiveram os repasses das verbas referentes a 2014

e 2015 atrasados inviabilizando a continuidade das atividades em diversas escolas pelo Brasil Em 2016 a

expansatildeo do Programa continuou bastante afetada Apoacutes o impeachment da presidente eleita e a entrada do novo

governo o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo encerrou apoacutes nove anos de funcionamento as atividades do Mais Educaccedilatildeo

apresentando entre outros argumentos o fato de que o Paiacutes natildeo alcanccedilou as metas delineadas pelo Iacutendice de

Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) para o Ensino Fundamental entre os anos de 2013 e 2015

177

profissional [dos trabalhadores em educaccedilatildeo] a ser garantida pelos gestores puacuteblicos de modo

a permitir a dedicaccedilatildeo exclusiva e qualificada agrave educaccedilatildeordquo (Brasil 2009a p 39) Entretanto o

Programa parece ter como principal aposta para lidar com esse novo contexto o fomento de

uma outra postura profissional dos educadores que poderia ser adquirida por meio de mais

formaccedilatildeo uma formaccedilatildeo permanente

aos educadores tambeacutem vecircm sendo conferidas tarefas que natildeo lhes competiam haacute algum tempo

atraacutes o que tensiona ainda mais a fraacutegil relaccedilatildeo que se estabelece entre esses profissionais e a

escola como a encontramos hoje Esse conjunto de elementos desafia a uma nova postura

profissional que deve ser construiacuteda por meio de processos formativos permanentes (Brasil

2009a p 17 grifo nossos)

A construccedilatildeo de processos formativos permanentes como forma de solucionar o

acuacutemulo de tarefas de que os educadores tecircm sido encarregados demonstra que o Estado tem

transformado discussotildees poliacuteticas e econocircmicas desafiadoras em problemas relacionados com

a necessidade de mais aprendizagem Ou ainda revelam a forccedila do dispositivo de

aprendizagem (Simons amp Masschelein 2008) no presente que induz a compreensatildeo de

problemas econocircmicos a partir de uma loacutegica educacional Em outras palavras problemas

econocircmicos resultariam de uma falta de investimento em processos de aprendizagem

Em 2014 foram ofertadas para as escolas urbanas por meio do Mais Educaccedilatildeo

atividades distribuiacutedas em sete campos de conhecimento 1) Acompanhamento Pedagoacutegico 2)

Comunicaccedilatildeo Uso de Miacutedias e Cultura Digital e Tecnoloacutegica 3) Cultura Artes e Educaccedilatildeo

Patrimonial 4) Educaccedilatildeo Ambiental Desenvolvimento Sustentaacutevel e Economia Solidaacuteria e

CriativaEducaccedilatildeo Econocircmica (Educaccedilatildeo Financeira e Fiscal) 5) Esporte e Lazer 6) Educaccedilatildeo

em Direitos Humanos 7) Promoccedilatildeo da Sauacutede O Programa sugere que as atividades sejam

realizadas por monitores voluntaacuterios (estudantes em processo de formaccedilatildeo docente estudantes

do Ensino Meacutedio e de Educaccedilatildeo de Jovens a Adultos e pessoas da comunidade local) e

coordenadas por um professor vinculado agrave escola denominado Professor Comunitaacuterio

Percebe-se que ao aderir agrave loacutegica do voluntariado na prestaccedilatildeo dos serviccedilos na escola

o Estado natildeo apenas se exime de arcar com as despesas financeiras desses serviccedilos mas tambeacutem

dispensa a necessidade de serviccedilos especializados A participaccedilatildeo de diferentes atores que

seriam corresponsaacuteveis pela efetivaccedilatildeo do Programa mostra o estiacutemulo a uma cidadania ativa

de que nos falam Simons e Masschelein (2008) Ser cidadatildeo nesse contexto significaria

assumir o compromisso de colaborar com a oferta e manutenccedilatildeo de accedilotildees na escola ndash e de

maneira mais ampla envolvendo-o na resoluccedilatildeo de problemas presentes em sua localidade e na

sociedade de modo a produzir uma cidadania responsaacutevel

178

Os estudos de governamentalidade conforme aponta Lemke (2001) mostram que as

formas neoliberais de governo natildeo levam simplesmente a uma reduccedilatildeo do Estado O Estado

no neoliberalismo assume outras tarefas aleacutem de desenvolver teacutecnicas indiretas para controlar

os indiviacuteduos A reduccedilatildeo nos serviccedilos do Estado estaria associada a um chamado crescente para

a responsabilidade pessoal e o cuidado de si Em outras palavras a responsabilidade ndash no caso

das escolas puacuteblicas pela manutenccedilatildeo das unidades de ensino ndash passa a ser de indiviacuteduos ativos

solucionadores de problemas de modo que nas aacutereas sociais ela se torna uma questatildeo de

provisatildeo pessoal

Por meio da noccedilatildeo de governamentalidade a retirada do Estado presente na agenda

neoliberal pode ser decifrada como uma teacutecnica de governo (Lemke 2001) Assim as reduccedilotildees

nas formas de intervenccedilatildeo do Estado estariam menos relacionadas com a perda por parte do

Estado do poder de regulaccedilatildeo e controle e mais com uma reorganizaccedilatildeo das teacutecnicas de

governo Trata-se de uma mudanccedila da competecircncia regulatoacuteria do Estado para indiviacuteduos

racionais e responsaacuteveis encorajando-os a darem agraves suas vidas uma forma empresarial

especiacutefica

3 A trilogia do Programa Mais Educaccedilatildeo

A perspectiva de educaccedilatildeo integral agrave qual o Mais Educaccedilatildeo se refere eacute especialmente

explicitada em trecircs cadernos produzidos pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo que compotildeem a Seacuterie

Mais Educaccedilatildeo Esses cadernos expotildeem a concepccedilatildeo teoacuterica do Programa e propotildeem-se agrave

ldquoconstruccedilatildeo de um paradigma contemporacircneo de Educaccedilatildeo Integralrdquo (Brasil 2009a p 7) Os

trecircs cadernos14 tecircm objetivos e processos de elaboraccedilatildeo diferentes Publicados no mesmo ano

(2009) natildeo formam uma sequecircncia mas um conjunto complementar que visa a ldquocontribuir para

a conceituaccedilatildeo a operacionalizaccedilatildeo e a implementaccedilatildeo do Programa Mais Educaccedilatildeordquo (Brasil

2009a p 6)

14 O primeiro caderno Educaccedilatildeo Integral (Brasil 2009a) ndash texto referecircncia para o debate nacional ndash foi produzido

por um grupo de trabalho convocado pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e eacute uma produccedilatildeo coletiva que envolveu a

participaccedilatildeo de 29 colaboradores de 17 instituiccedilotildees sociais entre gestores e educadores municipais estaduais e

federais representantes de vaacuterias organizaccedilotildees aleacutem de professores universitaacuterios de cinco universidades puacuteblicas

federais e organizaccedilotildees natildeo governamentais O segundo caderno intitula-se Gestatildeo Intersetorial no Territoacuterio

(Brasil 2009b) e foi elaborado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educaccedilatildeo e Accedilatildeo Comunitaacuteria (Cenpec)

uma organizaccedilatildeo da sociedade civil sem fins lucrativos com sede em Satildeo Paulo (capital) Jaacute a publicaccedilatildeo Rede de

Saberes Mais Educaccedilatildeo (Brasil 2009c) cujo subtiacutetulo eacute pressupostos para projetos pedagoacutegicos de educaccedilatildeo

integral foi elaborada por um uacutenico autor com a colaboraccedilatildeo da Casa das Artes uma organizaccedilatildeo da sociedade

civil sem fins lucrativos com sede no Rio de Janeiro (capital) e da Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Recife

179

Com o objetivo de compreender o funcionamento do Mais Educaccedilatildeo produziu-se um

material subsidiado na anaacutelise dos trecircs cadernos e em entrevistas feitas para pesquisa de

mestrado (Zepletal 2017) com quatro gestores do Programa um gestor municipal e outro

estadual de Satildeo Paulo e dois gestores federais Os entrevistados foram escolhidos em razatildeo do

conhecimento que tecircm do Programa e por sua imersatildeo no contexto de sua estruturaccedilatildeo e

implantaccedilatildeo As entrevistas foram realizadas em Satildeo Paulo (capital) e Brasiacutelia em janeiro e

fevereiro de 2015 Utilizou-se um roteiro semiestruturado em torno dos seguintes toacutepicos o

papel da ampliaccedilatildeo da jornada escolar de tempo integral o porquecirc do atual investimento do

Governo Federal na ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos alunos nas escolasatividades

escolares e os desafios encontrados na implantaccedilatildeo do Programa As entrevistas foram

transcritas e enviadas aos entrevistados assim como o texto escrito a partir delas Os

entrevistados tambeacutem assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido em que

concordaram em participar como voluntaacuterios da pesquisa15 O material transcrito tornou-se

documento de estudo em nosso trabalho Algumas precauccedilotildees em relaccedilatildeo ao modo de operar

com os discursos com os quais se entrou em contato durante a pesquisa foram tomadas

Partindo de um horizonte no qual as verdades satildeo produzidas pelos discursos e operando

a partir do referencial teoacuterico foucaultiano (Foucault 2005) teve-se como premissa o esforccedilo

para natildeo retratar os sujeitos entrevistados como homogecircneos e a-histoacutericos tampouco

consideraacute-los como fonte original de suas falas ndash uma vez que estas participam de uma rede

discursiva que lhes permite dizer o que dizem do modo como dizem Nesse sentido os modos

de pensar e agir presentes no campo de investigaccedilatildeo natildeo satildeo tratados como fenocircmenos que natildeo

deveriam acontecer A esse respeito Machado (2011) lembra que aquilo que comumente

nomeamos como uma forma equivocada de agir e pensar porta uma positividade pois afirma

uma maneira de ver o mundo sendo portanto efeito de um processo de produccedilatildeo carregando

um sentido engendrado em um campo em que se embatem muacuteltiplas forccedilas

Por meio da anaacutelise dos cadernos e das entrevistas pudemos depreender alguns

enunciados recorrentes que parecem legitimar o Programa Com o propoacutesito de identificar e

analisar tais enunciados foram destacadas trecircs categorias denominadas de (1) escola e vida

(2) diaacutelogo com a comunidade e (3) gestatildeo intersetorial

15 As entrevistas realizadas com os gestores foram feitas a partir da assinatura do termo de consentimento livre e

esclarecido mas natildeo passou pelo Comitecirc de Eacutetica pois a Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade de Satildeo Paulo

(USP) natildeo requer passar nesse comitecirc quando se trata de entrevistas

180

31 Escola e vida

Entre as principais orientaccedilotildees do Mais Educaccedilatildeo encontram-se os discursos que

enfatizam a necessidade de uma reaproximaccedilatildeo entre escola e vida embora natildeo seja explicitado

qual o entendimento sobre essa noccedilatildeo Infere-se que a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre escola e

vida seria aleacutem da ampliaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos de educaccedilatildeo a ideia de uma escola que

funcionasse como uma ldquocomunidade de aprendizagemrdquo (Brasil 2009a p 31) onde diferentes

atores constroem um projeto educativo e cultural e reconhecem que

todos os espaccedilos satildeo educadores ndash toda a comunidade e a cidade com seus museus igrejas

monumentos locais como ruas e praccedilas lojas e diferentes locaccedilotildees ndash cabendo agrave escola articular

projetos comuns para sua utilizaccedilatildeo e fruiccedilatildeo considerando espaccedilos tempos sujeitos e objetos

do conhecimento (Brasil 2009a p 35)

Nota-se aqui a articulaccedilatildeo dos discursos do Programa com a proposta internacional de

cidade educadora Conforme afirma o Programa a educaccedilatildeo ldquonatildeo se realiza somente na escola

mas em todo um territoacuterio e deve expressar um projeto comunitaacuterio A cidade eacute compreendida

como educadora como territoacuterio pleno de experiecircncias de vida e instigador de interpretaccedilatildeo e

transformaccedilatildeordquo (Brasil 2009c p 31)

O coordenador do Mais Educaccedilatildeo no niacutevel municipal de Satildeo Paulo corrobora essa ideia

ao apontar que a possibilidade do uso de outros espaccedilos educativos presentes na comunidade

local em que as escolas estatildeo inseridas propiciaria uma via para que as atividades diversificadas

ofertadas fugissem do ldquomais do mesmordquo

A presenccedila ndash tanto nos documentos analisados que normatizam o Programa Mais

Educaccedilatildeo como nas entrevistas com os gestores do Programa ndash da ideia notavelmente repetida

de que ldquotodos os espaccedilos satildeo educadoresrdquo chama atenccedilatildeo Essa ideia remete agrave constataccedilatildeo jaacute

apontada por alguns autores de que estariacuteamos vivendo numa sociedade que pretende assegurar

que todos os tempos e espaccedilos sejam pedagogizados uma sociedade ldquototalmente

pedagogizadardquo (Ball 2013) Tal sociedade instiga a compreender a vida como podendo ser

medida e racionalizada como resultado de escolhas feitas ou a serem feitas As praacuteticas

contemporacircneas de subjetivaccedilatildeo alerta Rose (2001) produzem um ser com um projeto de

identidade e de estilo de vida e que entende que a vida tem sentido se construiacuteda como resultado

de escolha pessoal

A ideia de que por meio do Mais Educaccedilatildeo e das diversas atividades ofertadas pelo

Programa aos alunos eles poderiam ter maior possibilidade de fazer escolhas e por

conseguinte teriam maior liberdade individual eacute bastante presente nos cadernos analisados e

181

nos discursos sobre os possiacuteveis efeitos do Programa Tal ideia remete a uma noccedilatildeo de liberdade

compreendida como soberania de uma vontade ou escolha pessoal

No entanto ao pensar a noccedilatildeo de liberdade nas coordenadas da governamentalidade

esta lembra Aquino (2013) natildeo pode ser confundida com uma liberdade intimizada como

empresariamento de si ou como autorregulatoacuteria pois o exerciacutecio da liberdade natildeo se opotildee ao

poder mas a liberdade joga ldquocom o poder na proacutepria superfiacutecie dos acontecimentos cotidianosrdquo

(Aquino 2013 p 207)

32 Diaacutelogo com a comunidade

A segunda categoria de anaacutelise que se destaca a partir da leitura dos documentos que

normatizam o Programa e das entrevistas realizadas eacute designada aqui de diaacutelogo com a

comunidade Satildeo recorrentes nos cadernos analisados discursos que afirmam a necessidade de

se enfrentar a distacircncia que caracterizaria as relaccedilotildees entre escola e comunidade na atualidade

a fim de ampliar a dimensatildeo das experiecircncias educadoras Para o Programa a fragilidade do

diaacutelogo entre escola e comunidade seria o elemento responsaacutevel por uma seacuterie de efeitos

perniciosos tais como ldquo(hellip) a rebeldia frente agraves normas escolares os altos iacutendices de fracasso

escolar pichaccedilotildees e depredaccedilotildees de preacutedios escolares atitudes desrespeitosas no conviacutevio

escolar e a apatia dos alunosrdquo (Brasil 2009a p 34)

O Programa advoga que as escolas que mais avanccedilaram no diaacutelogo com a comunidade

ldquoforam as que atingiram os resultados acadecircmicos mais positivosrdquo (Brasil 2009c p 16)

Observa-se portanto uma grande aposta do Programa nas possibilidades de troca e diaacutelogo

entre escolas e comunidade e na entrada nas escolas daquilo que o Mais Educaccedilatildeo chama de

ldquosaberes comunitaacuteriosrdquo como perspectiva de mudanccedila das experiecircncias educadoras ateacute entatildeo

oferecidas

Essa ideia eacute tambeacutem evidenciada na fala do coordenador federal do Programa que

ressalta que a possibilidade de trazer ldquoo campo dos saberes comunitaacuteriosrdquo para o interior das

escolas eacute algo bastante significativo O coordenador compreende que natildeo seraacute possiacutevel avanccedilar

com a promoccedilatildeo da educaccedilatildeo integral no Paiacutes sem o uso de monitores Ele explica sua posiccedilatildeo

dizendo

182

sem monitores acho que natildeo daacute natildeo acho que natildeo seria bom primeiro por uma questatildeo

porque acho que os meninos precisam mesmo de outros saberes e segundo porque tem uma

questatildeo financeira e tambeacutem com o nuacutemero de professores que se tecircm hoje natildeo daacute16

A responsabilizaccedilatildeo da comunidade pela eficiecircncia das escolas eacute destacada tanto na fala

dos gestores do Programa quanto nos cadernos analisados A insuficiecircncia de recursos puacuteblicos

(humanos e financeiros) para atender as demandas das escolascomunidade conforme apontado

pelo coordenador do Programa e a escolha da utilizaccedilatildeo de monitores voluntaacuterios para dar

conta de tal situaccedilatildeo denotam que caberia agraves escolascomunidade localmente inventar a

superaccedilatildeo de seus problemas

Para o Mais Educaccedilatildeo o desafio de construccedilatildeo daquilo que o Programa chama de uma

educaccedilatildeo integral aumenta

se pensarmos que cada escola e cada comunidade mesmo que com aportes de programas de

governo satildeo responsaacuteveis pela superaccedilatildeo de seus proacuteprios limites vividos porque satildeo elas que

os conhecem e que podem reinventaacute-los O desafio do programa portanto eacute estruturar-se sobre

uma base capaz de permitir que os diversos projetos de educaccedilatildeo integral sejam territorializados

e nasccedilam em resposta a cada realidade (Brasil 2009c p 89 grifos nossos)

A partir do exposto pode-se compreender melhor o porquecirc de o Programa enfatizar seu

caraacuteter de estrateacutegia indutora da ampliaccedilatildeo da jornada escolar nos estados e municiacutepios O

Estado portanto natildeo seria mais o agente principaluacutenico da accedilatildeo puacuteblica ldquomas espera-se que

cumpra sua missatildeo de intelligentsia do fazer puacuteblico e em consequecircncia exerccedila papel indutor

e articulador de esforccedilos governamentais e societaacuterios em torno de prioridades da poliacutetica

puacuteblicardquo (Brasil 2009a p 44)

Entende-se assim que os desafios relacionados agrave garantia da qualidade de

aprendizagem propiciada pelas escolas puacuteblicas estariam especialmente relacionados agrave gestatildeo

dos sistemas educativos Essa ideia remete ao terceiro e uacuteltimo enunciado que parece legitimar

o Programa Mais Educaccedilatildeo presente nas entrevistas realizadas e nos cadernos analisados

gestatildeo intersetorial

33 Gestatildeo intersetorial

O termo intersetorialidade eacute bastante utilizado pelo Programa e expresso como

ldquocaracteriacutestica de uma nova geraccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas que orientam a formulaccedilatildeo de uma

proposta de Educaccedilatildeo Integralrdquo (Brasil 2009a p 43) Esse novo tipo de poliacutetica puacuteblica

16 Entrevista realizada no dia 3 de fevereiro de 2015 em Brasiacutelia [material transcrito]

183

impotildee-se como necessidade e tarefa que se devem ao reconhecimento da desarticulaccedilatildeo

institucional e da pulverizaccedilatildeo na oferta das poliacuteticas sociais mas tambeacutem ao passo seguinte

desse reconhecimento para articular os componentes materiais e ideais que qualifiquem essas

poliacuteticas (Brasil 2009a p 43)

Dito de outro modo a intersetorialidade se materializa no cotidiano da gestatildeo agrave medida que

consegue criar consenso em torno de uma meta com a qual todos possam em alguma medida

comprometer-se (Brasil 2009b p 25)

A analista do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo que coordena o Mais Educaccedilatildeo em niacutevel federal

aponta que hoje existe uma intencionalidade expliacutecita da gestatildeo puacuteblica em parar de atribuir

inuacutemeras funccedilotildees agraves escolas Segundo a analista a noccedilatildeo de intersetorialidade ou de poliacuteticas

puacuteblicas intersetoriais que ldquorequer que diferentes setores se comuniquem para que as

demandas puacuteblicas sejam canalizadas de um modo mais racionalrdquo17 joga um importante papel

na diminuiccedilatildeo da atribuiccedilatildeo de funccedilotildees de diferentes naturezas agraves escolas

Para o Programa outro requisito considerado indispensaacutevel para a boa gestatildeo das

unidades escolares refere-se ao papel da democratizaccedilatildeo da gestatildeo Esta eacute considerada um

indicador de qualidade da educaccedilatildeo

enfatizando que em muitos estados e municiacutepios ou mesmo comunidades com menor

financiamento puacuteblico as escolas que adotaram a gestatildeo democraacutetica e mantecircm projetos

pedagoacutegicos bem elaborados tecircm se destacado nas avaliaccedilotildees institucionais e no IDEB como

prova de que a participaccedilatildeo social se constitui um oacutetimo meacutetodo de avaliaccedilatildeo e de fiscalizaccedilatildeo

do desempenho escolar e que a eficiecircncia gestora natildeo se limita agrave racionalidade e agrave

potencializaccedilatildeo dos recursos financeiros e administrativos Os sistemas de ensino poderatildeo

ampliar a praacutetica da gestatildeo democraacutetica ao promover a participaccedilatildeo social nos Conselhos de

Educaccedilatildeo (Estaduais e Municipais) bem como realizar eleiccedilatildeo para diretores de escola

observadas as prerrogativas de autonomia administrativa (Brasil 2009a p 41)

Nota-se por meio da leitura dos cadernos do Programa e das falas dos gestores

entrevistados o lugar de destaque ocupado pelo tema da gestatildeo da escola

Um dos aspectos considerados desafiadores para o bom funcionamento do Programa

assinalados pelo coordenador de educaccedilatildeo integral da Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do

Ministeacuterio da Educaccedilatildeo diz respeito agrave necessidade de maior formaccedilatildeo dos profissionais da

educaccedilatildeo em geral em especial dos gestores para que possam lidar com a complexidade atual

da gestatildeo das escolas Essa ideia eacute corroborada na entrevista com a coordenadora estadual de

Satildeo Paulo do Mais Educaccedilatildeo ao afirmar a necessidade de uma maior capacitaccedilatildeo dos gestores

escolares para aprimorar a relaccedilatildeo escola e comunidade e para que os gestores possam lidar

com o grande volume de contas que precisam administrar Com a entrada nas escolas de muitos

17 Entrevista realizada no dia 3 de fevereiro de 2015 em Brasiacutelia [material transcrito]

184

outros Programas interligados ao Mais Educaccedilatildeo cabe aos diretores escolares administrarem a

prestaccedilatildeo de um nuacutemero extenso de contas

A recorrecircncia nas falas sobre o Programa que assinalam a necessidade de processos

formativos permanentes da gestatildeo escolar indica que os desafios enfrentados pelas escolas

puacuteblicas estariam prioritariamente relacionados a aspectos de gestatildeo Essa forma de

compreender as dificuldades das escolas parece estar alinhada com um aumento da

responsabilizaccedilatildeo individual dos gestores pela eficiecircncia das escolas e ainda com uma reduccedilatildeo

de questotildees poliacuteticas e econocircmicas complexas que perpassam as escolas puacuteblicas na atualidade

tais como a insuficiecircncia de recursos puacuteblicos para atender as demandas das

escolascomunidades

Percebe-se portanto a necessidade de se examinar com cautela os discursos que

apontam a necessidade de tal formaccedilatildeo permanente dos gestores escolares uma vez que tendem

a ter como efeito a culpabilizaccedilatildeo dos gestores por situaccedilotildees que ultrapassam em grande medida

sua possibilidade de atuaccedilatildeo

Consideraccedilotildees finais

Em uacuteltima anaacutelise o que as leituras dos documentos que normatizam o Programa Mais

Educaccedilatildeo e as entrevistas com seus gestores permitem inferir eacute que a entrada de programas

como o Mais Educaccedilatildeo nas escolas puacuteblicas brasileiras para aleacutem da evidente ampliaccedilatildeo do

caraacuteter de proteccedilatildeo integral das crianccedilas parece indicar mudanccedilas de concepccedilotildees sobre o que

seriam a aprendizagem e o tempo escolar Observa-se a presenccedila de uma noccedilatildeo de

aprendizagem escolar que estaria muito mais relacionada com o aprender a ser algo ndash um

aprendiz ao longo da vida ndash do que com o estudar ou praticar algo e uma noccedilatildeo de tempo

escolar como tempo produtivo tempo ocupado tempo para aprender Essa noccedilatildeo de

aprendizagem remete agrave constataccedilatildeo de que o conceito de aprendizagem no presente seria uma

forccedila crucial de governo de noacutes mesmos

Nota-se por fim juntamente com Magnus Dahlstedt e Mekonnen Tesfahuney (2010)

que os discursos de uma aprendizagem ao longo da vida trazem um apelo universal que os torna

aparentemente apoliacuteticos parecendo natildeo pertencer a um tempo nem lugar especiacuteficos No

entanto escondem uma natureza altamente poliacutetica e efetiva para produzir modos de viver em

que o aprender eacute uma norma Tais discursos satildeo portanto centrais para entender as

185

racionalidades governamentais neoliberais em que o Estado se inscreve nas accedilotildees dos sujeitos

ao investir para que os sujeitos faccedilam suas proacuteprias escolhas

Esse artigo ao enfatizar alguns elementos presentes nos cadernos do Programa Mais

Educaccedilatildeo e nas falas de alguns de seus gestores deu relevo agrave necessidade de se considerar que

ideias e termos como escolha pessoal participaccedilatildeo da comunidade e gestatildeo democraacutetica

precisam ser analisados em suas relaccedilotildees com as formas de governar e os processos de

pedagogizaccedilatildeo da vida Do contraacuterio as questotildees da escolha e da participaccedilatildeo tornam-se

abstratas pois abstraiacutedas de suas condiccedilotildees de existecircncia O agenciamento singular em cada

unidade escolar com a implementaccedilatildeo do Programa Mais Educaccedilatildeo se daacute na complexidade do

cotidiano e dependeraacute das compreensotildees locais da forma como ocorrem os atravessamentos

dos discursos oficiais e das condiccedilotildees concretas de cada realidade Ao nos debruccedilarmos sobre

discursos presentes em materiais e falas oficiais operamos um recorte em nossa anaacutelise que

considera esses discursos como forccedilas intensas na construccedilatildeo cotidiana das praacuteticas referentes

ao Programa e portanto de suas condiccedilotildees de existecircncia

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189

Capiacutetulo 10

Poliacuteticas Puacuteblicas de Orientaccedilatildeo Profissional uma anaacutelise

socioconstrucionista sobre a construccedilatildeo do Projeto de Vida no Programa

Ensino Integral (PEI)

Omar Calazans Nogueira Pereira

Marcelo Afonso Ribeiro

Introduccedilatildeo

Na deacutecada de 1970 o ensino teacutecnico tornou-se compulsoacuterio para todos que

completavam o ciclo escolar e atividades de Orientaccedilatildeo Profissional (OP) estavam previstas na

legislaccedilatildeo e implementadas em alguns estados Houve entatildeo uma seacuterie de pesquisas sobre

estas poliacuteticas puacuteblicas de OP dentre as quais ressaltamos os trabalhos de Baptista (1984)

Carvalho (1985) e Lobo (2005) que investigaram o Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP)

no Estado de Satildeo Paulo

No entanto desde o encerramento destas poliacuteticas puacuteblicas nos anos 1980 ocorreram

somente pesquisas pontuais sobre poliacuteticas puacuteblicas em OP Temos como exemplo o trabalho

de Silva (2010) que investigou como as escolas puacuteblicas de Ensino Meacutedio auxiliam os alunos

na construccedilatildeo de projetos profissionais e discutiu caminhos para um programa de poliacutetica

puacuteblica em OP Tambeacutem haacute a pesquisa de Munhoz (2010) que sugere subsiacutedios para a

elaboraccedilatildeo de programas de OP no contexto educacional brasileiro

Em termos mundiais haacute vaacuterios modelos de programas de OP em escolas vinculados agraves

poliacuteticas puacuteblicas como a Ativaccedilatildeo do Desenvolvimento Vocacional e Pessoal (ADVP)

(Pelletier Noiseux amp Bujold 1982) e a proposta de Educaccedilatildeo para a Carreira (Hoyt 1987)

mas no sistema educacional brasileiro e na legislaccedilatildeo nunca houve nada sistematizado e

implementado semelhante agraves propostas citadas segundo Munhoz (2010) e Silva (2010)

Recentemente com a ampliaccedilatildeo do ensino integral puacuteblico e as reformas no sistema

educacional novas poliacuteticas puacuteblicas de educaccedilatildeo e trabalho estatildeo sendo implementadas

trazendo consigo a ecircnfase no aluno e na construccedilatildeo de seu projeto de vida Por exemplo no

Estado de Satildeo Paulo a partir de 2020 com base no modelo de ensino existente nas escolas do

190

Programa Ensino Integral (PEI) a disciplina Projeto de Vida estaraacute presente em todas as escolas

puacuteblicas estaduais de Ensino Meacutedio

O presente capiacutetulo eacute baseado em pesquisa de Mestrado desenvolvida no periacuteodo de

2017 a 2019 que visou compreender teoacuterico-metodoloacutegica e ideologicamente a proposta da

disciplina ldquoProjeto de Vidardquo nas escolas do PEI do Estado de Satildeo Paulo a partir do

construcionismo social e analisar se essa proposta seria uma poliacutetica puacuteblica de OP1 Com base

no construcionismo social principalmente a partir das contribuiccedilotildees de Blustein (2011) e

McNamee (2012) e por meio de uma metodologia qualitativa narrativa foi realizada uma

anaacutelise de conteuacutedo dos discursos sociais e narrativas pessoais produzidos em documentos

escolares e nos grupos focais com professores e alunos de duas escolas da Regiatildeo Metropolitana

de Satildeo Paulo

1 A orientaccedilatildeo profissional (OP) na legislaccedilatildeo educacional brasileira e em programas

educacionais paulistas

11 A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educaccedilatildeo de 1971 e o Programa de Informaccedilatildeo

Profissional (PIP)

Em meio ao golpe militar 1964 a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo de 1971 ndash LDB

nordm 569271 em substituiccedilatildeo agrave LDB nordm 402461 reformulou o 2ordm Grau tornando-o

profissionalizante (Brasil 1971) ou seja todos os alunos formados no Ensino Meacutedio saiacuteram

obrigatoriamente habilitados para o exerciacutecio de uma atividade profissional Havia uma pressatildeo

popular por mais vagas nas universidades e essa reformulaccedilatildeo do ensino teria sido uma forma

de conter essa demanda pois uma vez adquirida uma profissatildeo ao teacutermino da escola a pessoa

desistiria de ingressar no Ensino Superior (Romanelli 1986)

Esta nova LDB estabeleceu a orientaccedilatildeo vocacional tanto para o 1ordm Grau quanto para o

2ordm grau ldquoseraacute instituiacuteda obrigatoriamente a Orientaccedilatildeo Educacional incluindo aconselhamento

vocacional em cooperaccedilatildeo com os professores a famiacutelia e a comunidaderdquo (Brasil 1971 art

10) Na anaacutelise de Pimenta (1981) a praacutetica da OP na escola acabou reduzida agrave informaccedilatildeo

profissional devido a impossibilidade de testes psicoloacutegicos serem aplicados pelos orientadores

1 Pereira O C N (2019) A construccedilatildeo do projeto de vida no Programa Ensino Integral (PEI) uma anaacutelise na

perspectiva da Orientaccedilatildeo Profissional (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Instituto de Psicologia Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo Agecircncia de fomento Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES)

191

educacionais em funccedilatildeo da regulamentaccedilatildeo da profissatildeo de psicoacutelogo no Brasil pela Lei nordm

411962 (Brasil 1962) e a determinaccedilatildeo na mesma lei de que somente psicoacutelogos poderiam

usar testes psicoloacutegicos

Pouco tempo depois 1968 a profissatildeo do orientador educacional foi prevista pela Lei

nordm 556464 (Brasil 1968) e regulamentada pelo Decreto nordm 7284673 (Brasil 1973) Neste

decreto seriam atribuiccedilotildees privativas do orientador educacional coordenar a orientaccedilatildeo

vocacional do aluno assim como o processo de sondagem de interesses aptidotildees e habilidades

e o processo de informaccedilatildeo profissional Neste momento houve uma ruptura na qual os

pedagogos tornaram-se os detentores dos processos de OP nas escolas enquanto que os

psicoacutelogos afastados das escolas tornaram-se os detentores das ferramentas (Uvaldo amp Silva

2010)

Por conta de problemas na implementaccedilatildeo do ensino profissionalizante proposto pela

LDB 569271 houve em 1975 uma mudanccedila em seu formato tornando sua duraccedilatildeo mais breve

(Baptista 1984 Silva 2010) Dois anos depois o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) propocircs a

disciplina Orientaccedilatildeo Ocupacional no primeiro ano do Ensino Meacutedio Ministrada pelo

orientador educacional a disciplina visaria auxiliar os alunos na escolha entre as diferentes

ocupaccedilotildees dentro de determinada habilitaccedilatildeo (Brasil 1977) No Estado de Satildeo Paulo a

disciplina recebeu o nome de Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP)

O Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP) consistiu em uma disciplina oferecida aos

alunos do primeiro ano do 2ordm grau das escolas puacuteblicas O objetivo era dar informaccedilotildees e

subsiacutedios aos alunos para realizar a escolha por uma das trecircs opccedilotildees de habilitaccedilatildeo baacutesica O

primeiro ano era comum a todas habilitaccedilotildees sendo que nos dois anos seguintes os alunos

deveriam cursar disciplinas referentes agrave habilitaccedilatildeo escolhida (Silva 2010)

Em relaccedilatildeo ao documento ldquoProgramas de Informaccedilatildeo Profissionalrdquo publicado pela

Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagoacutegicas (CENP) estabelecendo os objetivos do PIP e

seu conteuacutedo programaacutetico Silva (2010) constata a concepccedilatildeo presente no documento de que

os alunos tecircm uma imagem errada das profissotildees que deveria ser corrigida pela disciplina por

meio de oferta de informaccedilatildeo profissional qualificada e Lobo (2005) destaca a ausecircncia de

conteuacutedos especiacuteficos sobre o conhecimento do aluno a respeito de si mesmo ou seja

autoconhecimento natildeo aparece como um tema especiacutefico

192

Para Baptista (1984) a contestaccedilatildeo da Lei 569271 (Brasil 1971) por parte da

comunidade escolar estendeu-se ao PIP contaminando a experiecircncia do programa Aleacutem disso

para Baptista (1984) outros fatores que contribuiacuteram para o fracasso do PIP foram

bull Falta de treinamento para professores que se mostraram despreparados

bull Falta de material didaacutetico e bibliograacutefico adequado para utilizaccedilatildeo

bull Desinteresse dos alunos que criticavam a maacute conduccedilatildeo das aulas e do desenvolvimento das

atividades

Baptista (1984) ainda traz outros dois motivos como a ausecircncia de discussatildeo sobre o

contexto socioeconocircmico e poliacutetico do trabalho e a imposiccedilatildeo do programa aos agentes

educativos que natildeo puderam debatecirc-lo Para Silva (2010 p 41) ldquoo contexto poliacutetico do periacuteodo

foi um dos principais motivos de fracasso da disciplinardquo

Somado a isso estavam ausentes no PIP dois pontos importantes na criaccedilatildeo de um

programa direcionado para o atendimento de um grande nuacutemero de pessoas apresentaccedilatildeo de

uma proposta teoacuterica clara como embasamento e consideraccedilatildeo de fatores regionais na sua

elaboraccedilatildeo (Silva 2010) Segundo o autor em programas de OP eacute importante adequar a

proposta agrave comunidade considerando os recursos disponiacuteveis na escola Igualmente uma

proposta tatildeo ampla deve possuir uma clara fundamentaccedilatildeo teoacuterica que propicie a formaccedilatildeo das

pessoas envolvidas e instrumentalize o trabalho No Estado de Satildeo Paulo a experiecircncia do PIP

esteve em vigecircncia ateacute 1982 (Baptista 1984 Carvalho 1985 Lobo 2005)

12 A Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional de 1996 e a Reforma do Ensino Meacutedio

ndash Lei no 134152017

A partir do final da deacutecada de 1970 o Brasil comeccedilou a passar por um processo de

abertura poliacutetica e nesse contexto o Governo Federal continuava lidando com o fracasso da

profissionalizaccedilatildeo compulsoacuteria (Palma Filho 2010) Em 1982 eacute promulgada a Lei nordm 704482

que alterou os dispositivos da Lei nordm 569271 retirando a profissionalizaccedilatildeo do ensino do 2ordm

grau (Brasil 1982) Assim voltam a ser opcionais as habilitaccedilotildees profissionais de niacutevel teacutecnico

Vale mencionar que mesmo com a Lei nordm 704482 natildeo foi alterado o Art 10ordm da LDB de 1971

que instituiacutea a obrigatoriedade da orientaccedilatildeo educacional e do aconselhamento vocacional

Praticamente sem alteraccedilotildees significativas a legislaccedilatildeo educacional se manteve ateacute

1996 ocasiatildeo da promulgaccedilatildeo da Lei nordm 939496 (Brasil 1996) Apesar de referecircncias sobre a

questatildeo do trabalho ao longo do texto eacute retirada a menccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo educacional assim

como qualquer menccedilatildeo direta agrave OPvocacional Entretanto a Lei nordm 939496 manteacutem a

193

possibilidade das escolas terem uma parte diversificada nos curriacuteculos de 1ordm e 2ordm graus aleacutem da

base nacional comum o que permitiu a inserccedilatildeo de disciplinas de OP ou semelhantes na grade

curricular em algumas escolas principalmente particulares

Mais recentemente a Medida Provisoacuteria no 7462016 (Brasil 2016b) posteriormente

convertida na Lei no 134152017 (Brasil 2017a) tambeacutem conhecida como Reforma do Ensino

Meacutedio propocircs uma seacuterie de alteraccedilotildees da legislaccedilatildeo anterior Segundo o MEC a Reforma do

Ensino Meacutedio teria por objetivo entre outros tornar o curriacuteculo mais atrativo tornando-o mais

flexiacutevel (Brasil 2016a) O Ensino Meacutedio possuiacutea ldquoum curriacuteculo extenso superficial e

fragmentado que natildeo dialoga com a juventude com o setor produtivo tampouco com as

demandas do seacuteculo XXIrdquo (Brasil 2016a)

Dentre algumas modificaccedilotildees da Lei no 134152017 (Brasil 2017a) somente o ensino

de portuguecircs e matemaacutetica se mantiveram como obrigatoacuterios nos trecircs anos do Ensino Meacutedio O

curriacuteculo deste niacutevel de ensino passa a ser composto por aleacutem da Base Nacional Comum

Curricular (BNCC) itineraacuterios formativos que deveratildeo ser organizados na oferta dos seguintes

arranjos linguagens e suas tecnologias matemaacutetica e suas tecnologias ciecircncias da natureza e

suas tecnologias ciecircncias humanas e sociais aplicadas formaccedilatildeo teacutecnica e profissional (Brasil

2017a)

Sfredo e Silva (2016) apontam que as reformas do Ensino Meacutedio nos uacuteltimos dez anos

anunciam uma aproximaccedilatildeo do processo de escolarizaccedilatildeo com os princiacutepios e leis do mercado

sendo o valor do conhecimento definido pelo potencial de empregabilidade que pode garantir

ao sujeito Segundo os autores o ldquoconhecimento natildeo pode ser esvaziado de seu potencial de

intervenccedilatildeo poliacutetica e socialrdquo (Sfredo amp Silva 2016 p 891) Nesse sentido seria necessaacuterio o

estabelecimento de uma criacutetica agraves reformas educacionais que vinculam ldquoa educaccedilatildeo a ganhos

econocircmicos e ao mesmo tempo responsabiliza o indiviacuteduo por seu sucesso ou fracassordquo

(Sfredo amp Silva 2016 p 893)

Ainda de acordo com a Lei no 134152017 ldquoos curriacuteculos do ensino meacutedio deveratildeo

considerar a formaccedilatildeo integral do aluno de maneira a adotar um trabalho voltado para a

construccedilatildeo de seu projeto de vida e para sua formaccedilatildeo nos aspectos fiacutesicos cognitivos e

socioemocionaisrdquo (Brasil 2017a art 35-A sect7) A escola por sua vez deve ldquoorientar os alunos

no processo de escolha das aacutereas de conhecimento ou de atuaccedilatildeo profissionalrdquo (Brasil 2017a

art 36 sect12) Especificamente sobre a escolha dos itineraacuterios formativos seraacute decidido pelos

sistemas estaduais de ensino quando o aluno faraacute essa escolha pois a parte diversificada do

194

curriacuteculo poderaacute iniciar por exemplo tanto no primeiro quanto no segundo ano do Ensino

Meacutedio (Brasil 2017b)

Atualmente a expressatildeo ldquoprojeto de vidardquo tem sido utilizada com frequecircncia e natildeo haacute

uma definiccedilatildeo clara sobre qual o significado dessa expressatildeo conforme aponta Bock (2018) O

autor assinala que haacute definiccedilotildees que trazem o projeto de vida como uma accedilatildeo individual

desconsiderando a realidade econocircmica social e poliacutetica na qual as pessoas vivem Nestas

definiccedilotildees a pessoa eacute a responsaacutevel pelo seu caminho e posiccedilatildeo na sociedade Ao mesmo

tempo existem concepccedilotildees mais criacuteticas de projeto de vida que colocam a meritocracia em

discussatildeo e que incluem projetos coletivos junto aos pessoais atraveacutes da compreensatildeo da

realidade social econocircmica e poliacutetica aleacutem da histoacuteria de vida e familiar da pessoa

O termo ldquoProjeto de Vidardquo tambeacutem estaacute presente na Base Nacional Comum Curricular

(BNCC) que define o conjunto orgacircnico e progressivo de aprendizagens essenciais que os

alunos devem desenvolver ao longo da Educaccedilatildeo Baacutesica (Brasil 2017c) Estas aprendizagens

asseguram ao estudante o desenvolvimento de dez competecircncias gerais No documento

competecircncia eacute definida como ldquoa mobilizaccedilatildeo de conhecimentos (conceitos e procedimentos)

habilidades (praacuteticas cognitivas e socioemocionais) atitudes e valores para resolver demandas

complexas da vida cotidiana do pleno exerciacutecio da cidadania e do mundo do trabalhordquo (Brasil

2017c p 8) Na BNCC dentre as dez competecircncias gerais temos como uma das competecircncias

gerais da Educaccedilatildeo Baacutesica

Valorizar a diversidade de saberes e vivecircncias culturais e apropriar-se de conhecimentos e

experiecircncias que lhe possibilitem entender as relaccedilotildees proacuteprias do mundo do trabalho e fazer

escolhas alinhadas ao exerciacutecio da cidadania e ao seu projeto de vida com liberdade autonomia

consciecircncia criacutetica e responsabilidade (Brasil 2017c p 9)

Para Ferreti e Silva (2017 p 398) a BNCC quando discute as finalidades do Ensino

Meacutedio possui uma inspiraccedilatildeo gramsciana mas ao mesmo tempo em caraacuteter hiacutebrido apresenta

proposiccedilotildees da ldquoperspectiva do desenvolvimento de competecircncias e do individualismordquo Para

Carvalho e Santos (2016 p 790) a loacutegica das competecircncias nos leva a validar ldquoa falsa ideia de

que as desigualdades sociais satildeo problemas individuais de sujeitos que natildeo foram

suficientemente competentes para se qualificarrdquo

13 O Programa Ensino Integral (PEI) e novos programas no Estado de Satildeo Paulo

No Estado de Satildeo Paulo o PEI foi implantado em 2012 atendendo inicialmente o Ensino

Meacutedio sendo posteriormente estendido para o Ensino Fundamental O PEI foi criado tendo

195

como base o modelo da Escola da Escolha desenvolvido e implementado em 2004 no Ginaacutesio

Pernambucano pelo Instituto de Corresponsabilidade pela Educaccedilatildeo (ICE) e posteriormente

implementado em 17 estados brasileiros

O modelo pedagoacutegico do PEI prevecirc a matriz curricular com uma parte diversificada

que inclui no Ensino Meacutedio as disciplinas Liacutengua Estrangeira Moderna Praacutetica de Ciecircncias

Orientaccedilatildeo de Estudos Projeto de Vida Mundo do Trabalho Preparaccedilatildeo Acadecircmica e

Disciplinas Eletivas (Satildeo Paulo 2014b) Todas as escolas integrantes do programa funcionam

em periacuteodo integral com uma jornada de oito horas diaacuterias e os professores trabalham em

Regime de Dedicaccedilatildeo Plena e Integral (RDPI) de 40 horas semanais (Satildeo Paulo 2012)

A construccedilatildeo do Projeto de Vida mais do que uma disciplina eacute principalmente o eixo

estruturante do PEI O Projeto de Vida ldquoeacute o foco para o qual devem convergir todas as accedilotildees

educativas sendo construiacutedo a partir do provimento da excelecircncia acadecircmica da formaccedilatildeo para

valores e da formaccedilatildeo para o mundo produtivordquo (Satildeo Paulo 2014a p 23) A realizaccedilatildeo do

Projeto de Vida pressupotildee interaccedilatildeo com o Protagonismo Juvenil enquanto princiacutepio premissa

e metodologia (Satildeo Paulo 2014a)

A partir de 2020 atraveacutes do Programa Inovaccedilatildeo Educaccedilatildeo foram anunciadas pelo

Governo do Estado de Satildeo Paulo mudanccedilas na matriz curricular das escolas puacuteblicas Por

exemplo haveraacute uma aula a mais por dia e seratildeo introduzidas novas disciplinas no curriacuteculo

Projeto de Vida Eletivas e Tecnologia Mais especificamente haveraacute por semana duas aulas de

Projeto de Vida duas aulas de Eletivas e uma de Tecnologia ao longo dos trecircs anos do Ensino

Meacutedio (Satildeo Paulo 2019)

A ideia deste novo programa eacute ampliar para a rede as experiecircncias ocorridas nas escolas

do PEI e assim como ocorre neste modelo professores de diferentes aacutereas poderatildeo ministrar

as novas disciplinas Aleacutem disso tambeacutem foi anunciado o ldquoPrograma Seguranccedila nas Escolasrdquo

no qual dentre outras medidas haveraacute a implantaccedilatildeo de equipes de psicoacutelogos e assistentes

sociais nas diretorias de ensino para realizar atividades como a formaccedilatildeo de profissionais e o

ldquodesenvolvimento de habilidades socioemocionais aliadas ao curriacuteculo escolarrdquo (Satildeo Paulo

2019 p 35)

Para a anaacutelise do PEI como uacuteltimo modelo proposto de poliacutetica puacuteblica que auxiliaria

nas questotildees de OP a ser estudado no presente capiacutetulo seraacute utilizada uma proposta

socioconstrucionista (Blustein 2011 McNamee 2012) apresentada a seguir

196

2 Uma proposta socioconstrucionista de anaacutelise para a orientaccedilatildeo profissional (OP)

A perspectiva socioconstrucionista eacute multifacetada e se constitui numa rede de propostas

de anaacutelise de fenocircmenos psicossociais ou seja que acontecem na relaccedilatildeo entre pessoas e

contextos e partem de alguns princiacutepios gerais

Visa compreender a realidade de forma dinacircmica sem partir de pressupostos

predeterminados por isso eacute baseada numa ontologia relacional pois postula que o

conhecimento e a realidade satildeo produzidos em relaccedilatildeo (Blustein 2011 McNamee 2012) Neste

sentido preconiza a existecircncia de muacuteltiplas visotildees de mundo (narrativas) que podem ser

intercambiadas e gerar padrotildees (discursos) sempre a partir da visatildeo da indissociabilidade entre

as dimensotildees subjetiva e social nomeada de psicossocial (Ribeiro 2017)

Assim a realidade seria sempre um discurso sobre a realidade produzido

intersubjetivamente e que visa cristalizar posicionamentos coletivos (macronarrativas) atraveacutes

da produccedilatildeo de significados As narrativas seriam produccedilotildees singulares (micronarrativas) que

visam interpelar e desconstruir os discursos atraveacutes da produccedilatildeo de sentidos As praacuteticas e

processos sociais como as poliacuteticas puacuteblicas por exemplo satildeo produccedilotildees discursivas

coconstruiacutedas na teia de relaccedilotildees psicossociais definindo transitoriamente quais seriam os

discursos e significados norteadores de dada praacutetica social em determinado contexto e em

determinado momento soacutecio-histoacuterico Esta loacutegica possibilita a anaacutelise dos discursos sociais

que fundamentam dada praacutetica social como eacute o caso do programa PEI aqui estudado

Especificamente no campo da OP a perspectiva construcionista auxilia a pensar a

construccedilatildeo das trajetoacuterias e projetos de vida de trabalho bem como analisar praacuteticas como a

disciplina de Projeto de Vida entendidos como discursos intersubjetivamente gerados na

relaccedilatildeo entre significados e sentidos produzidos pela accedilatildeo de muacuteltiplos atores sociais entre

eles gestores puacuteblicos legisladores professores e alunos (Ribeiro 2014)

3 Objetivo

Esta pesquisa teve por objetivo compreender teoacuterico-metodoloacutegica e ideologicamente a

proposta da disciplina Projeto de Vida nas escolas do Programa Ensino Integral (PEI) do Estado

de Satildeo Paulo a partir da perspectiva do construcionismo social

Enquanto objetivos especiacuteficos buscou-se

a) Compreender como ocorre a construccedilatildeo do projeto de vida na disciplina

197

b) Identificar qual eacute o papel do professor na construccedilatildeo do projeto de vida na disciplina

e qual eacute a preparaccedilatildeo ou a formaccedilatildeo que recebe para ministraacute-la

c) Depreender a relevacircncia do protagonismo juvenil na construccedilatildeo do projeto de vida

d) Verificar se a disciplina Projeto de Vida pode ser entendida como uma poliacutetica

puacuteblica de Orientaccedilatildeo Profissional (OP) na grade curricular

4 Metodologia

A pesquisa qualitativa pode ser definida como ldquoum conjunto de praacuteticas materiais e

interpretativas que datildeo visibilidade ao mundordquo (Denzin amp Lincoln 2006 p 17) Para Morrow

(2007) os meacutetodos qualitativos satildeo eficazes em examinar processos e apropriados em

responder perguntas sobre o ldquocomordquo e o ldquoporquecircrdquo os fenocircmenos psicossociais ocorrem Essas

metodologias podem ser usadas para explorar variaacuteveis que natildeo satildeo facilmente identificaacuteveis

ou que ainda natildeo foram identificadas assim como investigar temas pelos quais ainda natildeo

existem pesquisas ou existem poucas (Morrow 2007)

Nesta pesquisa foi utilizada uma metodologia qualitativa narrativa (Polkinghorne

1988) Um dos objetivos do processo de pesquisa eacute restaurar a agecircncia para o autor da narrativa

(Parker 2005 p 72) pois a agecircncia foi retirada das pessoas ao serem tratadas como objeto de

pesquisa Voltar a ser sujeito na narrativa implica uma relaccedilatildeo com um tempo e um contexto

social ou seja a histoacuteria deve ser contada dentro de um determinado quadro temporal (Parker

2005) Da mesma forma de acordo com Parker (2005) uma narrativa eacute sempre tambeacutem uma

narrativa cultural

41 Seleccedilatildeo das escolas para a realizaccedilatildeo do trabalho de campo (anaacutelise documental e grupos

focais)

Foram procuradas duas escolas que estivessem localizadas em regiotildees distintas na

Regiatildeo Metropolitana de Satildeo Paulo denominadas para esta pesquisa de Escola A e Escola B

com base em criteacuterios socioeconocircmicos ou seja uma escola que atendesse alunos de classe

meacutedia e outra escola que tivesse mais alunos de classe baixa

A Escola A estaacute localizada na cidade de Guarulhos em um bairro comercial A escola

possui cerca de 600 alunos divididos em 18 turmas Conta com cerca 36 professores sendo que

13 ministram a disciplina Projeto de Vida Segundo dados sociodemograacuteficos coletados pela

198

proacutepria escola cerca de 80 dos alunos satildeo de classe meacutedia e 25 moram no proacuteprio bairro

A escola havia entrado no PEI haacute quase trecircs anos na eacutepoca da realizaccedilatildeo da pesquisa

Por seu lado a Escola B estaacute localizada na cidade de Satildeo Paulo proacutexima agrave regiatildeo de

Guaianases no extremo leste do municiacutepio O bairro eacute considerado um ldquobairro dormitoacuteriordquo

Cerca de 80 dos alunos moram no proacuteprio bairro e a renda salarial de seus responsaacuteveis legais

varia entre um a trecircs salaacuterios miacutenimos portanto podendo ser considerados de classe baixa A

escola possui cerca de 110 alunos distribuiacutedos em sete turmas Possui 15 professores sendo que

trecircs destes ministram a disciplina Projeto de Vida A escola havia entrado no PEI haacute menos de

um ano do momento da realizaccedilatildeo da pesquisa

42 Contato com as escolas

O contato com a Escola A foi realizado em um primeiro momento atraveacutes de um

professor de Projeto de Vida da instituiccedilatildeo que havia procurado anteriormente o Serviccedilo de

Orientaccedilatildeo Profissional do Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (SOP-IPUSP)

Por sua vez o contato com a Escola B foi realizado por telefone cujo nuacutemero estaacute disponiacutevel

na internet A pesquisa foi realizada na Escola A no mecircs de abril de 2018 e na Escola B nos

meses de agosto e setembro de 2018

43 Cuidados eacuteticos e autorizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa

Como cuidados eacuteticos foram assinados pelos diretores das escolas um termo de

autorizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa assim como foi entregue para professores e pais um

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) Para alunos foi entregue um Termo de

Assentimento

44 Seleccedilatildeo dos documentos escolares para serem analisados

Foram analisadas as apostilas das disciplinas de Projeto de Vida Preparaccedilatildeo Acadecircmica

e Mundo do Trabalho que satildeo padronizadas para toda as escolas do PEI A princiacutepio foi

pensado em ser analisado tambeacutem o Projeto Poliacutetico-Pedagoacutegico de cada escola Entretanto

durante a pesquisa atraveacutes do contato com a direccedilatildeo da escola e dos grupos focais realizados

com professores foi constatado que esse documento natildeo orienta as praacuteticas da escola da mesma

forma que os documentos do PEI

199

45 Seleccedilatildeo dos participantes e realizaccedilatildeo dos grupos focais

Dois grupos de participantes foram recrutados para a presente pesquisa alunos do

terceiro ano Ensino Meacutedio de escolas do PEI e professores de escolas que estavam

desenvolvendo o PEI e que ministrassem a disciplina de Projeto de Vida ndash alvo da anaacutelise da

presente pesquisa Com base nas propostas de Carlini-Cotrim (1996) e Millward (2010) foram

realizados dois grupos focais especiacuteficos um com alunos e outro com professores

Para a realizaccedilatildeo dos grupos focais com alunos nas escolas selecionadas o pesquisador

entrou em cada turma de terceiro ano do Ensino Meacutedio para convidaacute-los a participar da

pesquisa Foi realizado um uacutenico grupo focal com alunos em cada escola contendo 11

participantes na Escola A e 9 na Escola B No total apresentaram uma idade meacutedia de 17 anos

sendo 70 do sexo feminino e 30 do masculino

Em relaccedilatildeo aos grupos com professores todos os professores de Projeto de Vida das

escolas selecionadas foram convidados pelo pesquisador sendo que todos aceitaram o convite

Foi realizado um uacutenico grupo focal com professores em cada escola contendo 13 participantes

na Escola A e trecircs na Escola B No total 81 dos professores eram do sexo feminino e 19

do sexo masculino apresentando uma idade meacutedia de 46 anos As formaccedilotildees universitaacuterias dos

professores eram nos cursos de Ciecircncias Bioloacutegicas Ciecircncias Sociais Educaccedilatildeo Artiacutestica

Educaccedilatildeo Fiacutesica Filosofia Histoacuteria Letras Matemaacutetica Pedagogia e Psicologia

46 Anaacutelise documental e anaacutelise dos grupos focais

Foi realizada uma anaacutelise de conteuacutedo dos discursos sociais e das narrativas pessoais

produzidos em documentos escolares e nos grupos focais com base em Bardin (1977)

Inspirada no socioconstrucionismo esta pesquisa tem como princiacutepio uma ontologia relacional

na qual a realidade eacute intersubjetivamente construiacuteda Narrativas e discursos produzidos e

articulados nas relaccedilotildees satildeo o foco da investigaccedilatildeo que tem a hermenecircutica diatoacutepica como

principal estrateacutegia para a interpretaccedilatildeo de significados sobre os fenocircmenos psicossociais e que

adota o diaacutelogo democraacutetico como sua perspectiva eacutetico-poliacutetica Na hermenecircutica diatoacutepica a

produccedilatildeo de sentidos se daacute na relaccedilatildeo entre todos (pesquisadores e participantes no presente

caso) e o conhecimento especiacutefico de cada um eacute levado em conta para a anaacutelise final (Ribeiro

2017) Foi realizada a leitura dos documentos escolares selecionados e das transcriccedilotildees dos

200

grupos focais Em seguida foram elaborados dois eixos de anaacutelise das produccedilotildees discursivas

teoacuterico-metodoloacutegico e ideoloacutegico

5 Anaacutelise dos resultados

51 Eixo Teoacuterico-Metodoloacutegico

Na perspectiva socioconstrucionista de OP as ideias de projeto de vida e plano de accedilatildeo

estatildeo presentes envolvendo processos contiacutenuos de escolhas (Ribeiro 2011) Projeto de vida

como narrativa abrange a compreensatildeo de eventos passados da vida das pessoas e o

planejamento de accedilotildees futuras Assim estaacute proacuteximo ao realizado na disciplina Projeto de Vida

na qual satildeo trabalhados o autoconhecimento a identidade e os valores pessoais

conhecer a si e conhecer os outros De onde vocecirc veio quem eacute vocecirc (Professor da Escola

B)

Por sua vez o plano de accedilatildeo no trabalho enquanto dimensatildeo operativa e instrumental

do projeto de vida de trabalho pode ser definido como um conjunto de accedilotildees para atingir um

fim (Ribeiro 2011) Vemos na disciplina Projeto de Vida o estabelecimento de um objetivo a

ser alcanccedilado e o planejamento para atingiacute-lo

Eacute tudo o que a gente quer alcanccedilar e como a gente vai fazer para alcanccedilar o objetivo (Aluna da

Escola B)

Neste sentido podemos afirmar que a disciplina Projeto de Vida tem todas as

caracteriacutesticas necessaacuterias para ser definida como accedilatildeo de OP apesar dos documentos oficiais

natildeo utilizarem esta nomeaccedilatildeo Inclusive o termo ldquoProjeto de vidardquo pode ser traduzido para a

liacutengua inglesa como ldquolife designrdquo que eacute uma das propostas contemporacircneas fundamentadas no

construcionismo social do campo da OP (Savickas et al 2009)

A disciplina Projeto de Vida pode ser entendida como accedilatildeo da OP primeiramente por

visar a construccedilatildeo de um projeto de vida principalmente focado no projeto de vida de trabalho

embora natildeo preconize este objetivo central em suas diretrizes

A disciplina Projeto de Vida visa no seu final o mercado de trabalho esta eacute a essecircncia da

disciplina natildeo satildeo apenas os seus sonhos diversos (Professor da Escola A)

E em segundo lugar por guardar semelhanccedilas com modelos tradicionais de OP como

o modelo da Ativaccedilatildeo do Desenvolvimento Vocacional e Pessoal (ADVP Pelletier Noiseux

amp Bujold 1982) ao se focar em situaccedilotildees de aprendizagem predefinidas e investir no

desenvolvimento sociocognitivo para planejamento do futuro bem como com a proposta de

201

Educaccedilatildeo para a Carreira (Hoyt 1987) Deve-se salientar que nenhuma dessas duas tradicionais

propostas do campo da OP satildeo citadas como referecircncia para a disciplina nem que ela seria uma

estrateacutegia de OP

Em comparaccedilatildeo ao Programa Informaccedilatildeo Profissional (PIP) antiga poliacutetica puacuteblica de

OP do Estado de Satildeo Paulo o PEI apresenta avanccedilos por trazer aleacutem da questatildeo da informaccedilatildeo

profissional o desenvolvimento do autoconhecimento e da construccedilatildeo do futuro via projetos

Ainda o PEI apresenta uma proposta de OP integrada ao projeto da escola que tem como eixo

estruturante a construccedilatildeo do projeto de vida do aluno Nesse aspecto tambeacutem estaacute aleacutem do

antigo PIP cuja disciplina estava desarticulada com o restante do projeto poliacutetico-pedagoacutegico

da escola

Tanto no PIP quanto no PEI o professor possui um papel central nas praacuteticas de OP que

satildeo desenvolvidas e historicamente sabe-se que um dos motivos do fracasso do PIP foi a falta

de treinamento especializado para os professores (Baptista 1984 Carvalho 1985 Silva 2010)

No PEI os professores relatam que recebem uma formaccedilatildeo precaacuteria para ministrar a disciplina

Projeto de Vida sendo realizada principalmente entre eles proacuteprios nas reuniotildees de

alinhamento e no dia a dia da sala de aula

no primeiro ano noacutes natildeo tivemos formaccedilatildeo absolutamente nenhuma (Professora da Escola A)

Nossa maior formaccedilatildeo eacute entre noacutes mesmos (Professor da Escola B)

Pessente (2016 p 61) traz o relato de professores do PEI afirmando que os processos

formativos mais uacuteteis foram aqueles oferecidos na proacutepria escola e na troca entre os colegas

configurando-se como um ldquoprocesso de formaccedilatildeo coletivordquo e realizado na praacutetica com base na

experiecircncia de cada um

Uma formaccedilatildeo de professores especiacutefica e sistemaacutetica se faz necessaacuteria aos professores

da disciplina Projeto de Vida Eacute um risco considerar que somente sua experiecircncia profissional

e pessoal seratildeo suficientes para desempenhar seu papel Essa formaccedilatildeo ou a precariedade desta

tambeacutem influencia em como os professores entendem as diretrizes da disciplina e como

adequam e criam as atividades para serem dadas em sala de aula

52 Eixo Ideoloacutegico

As produccedilotildees narrativas de alunos e professores reproduzem o discurso empresarial no

qual destacam-se deste leacutexico algumas palavras-chave como competiccedilatildeo metas pressatildeo

competecircncia

202

eu tenho que ser melhor que todo mundo nessa sala para eu conseguir alcanccedilar meu objetivo

(Aluna da Escola A)

Nos documentos do PEI o desenvolvimento de competecircncias surge com destaque nas

produccedilotildees discursivas Para Baptista (2015) enquanto haacute nos documentos norteadores do PEI

a sugestatildeo de uma educaccedilatildeo focada no ser humano um modelo empresarial eacute a base da gestatildeo

da escola atraveacutes da cobranccedila de metas e resultados fundamentados no que a loacutegica empresarial

preconiza como metas e resultados relevantes independentemente da realidade na qual a escola

estaacute inserida Para alcanccedilar esse resultado e reconhecimento os alunos devem concorrer com

os demais candidatos ateacute mesmo da proacutepria escola por vagas no Ensino Superior A base

ideoloacutegica desta competiccedilatildeo eacute a meritocracia neoliberal

vocecirc se vecirc forccedilado a entrar a passar para falar eu consegui eu sou bom o suficiente eles

potildeem vocecirc numa posiccedilatildeo de ou vocecirc eacute ou vocecirc eacute (Aluna da Escola A)

No acircmbito do trabalho o discurso neoliberal enfatiza a responsabilidade de cada pessoa

por seus resultados de carreira ao inveacutes de uma responsabilizaccedilatildeo da sociedade ou

organizacional (Roper Ganesh amp Inkson 2010) A desigualdade social eacute colocada como um

ldquoinfeliz resultado de um mundo globalizado tecnologicamente avanccedilado e competitivo que

pode ser superado pelas pessoas atraveacutes da determinaccedilatildeo pessoal da inovaccedilatildeo e do trabalho

durordquo (Irving 2010 p 59)

Exemplos desse discurso estatildeo presentes nas atividades do caderno do professor no qual

satildeo apresentadas histoacuterias de brasileiros que obtiveram sucesso na vida graccedilas ao seu esforccedilo

pessoal Por sua vez o protagonismo juvenil surge reforccedilando a responsabilizaccedilatildeo do aluno

pela concretizaccedilatildeo do seu projeto de vida Nos documentos do programa haacute uma naturalizaccedilatildeo

da atual estrutura sociolaboral O mundo de trabalho jaacute estaacute dado e o sucesso eacute pessoal e

individualizado baseado na loacutegica empresarial vigente do que eacute ter sucesso

Hoje eacute aquele negoacutecio ou vocecirc eacute patratildeo ou vocecirc eacute peatildeo (Aluna da Escola A)

Entretanto estes discursos hegemocircnicos satildeo parciais Haacute uma divergecircncia entre as

produccedilotildees discursivas sociais e as narrativas de professores e alunos Inclusive haacute diversidade

entre as proacuteprias narrativas de professores e alunos pois enquanto alguns reproduzem o

discurso meritocraacutetico neoliberal outros o questionam

ldquoEntatildeo estuda que vocecirc vai conseguirrdquo mas nem sempre vocecirc consegue A realidade eacute essa e

ela bate na porta (Aluna da Escola A)

Tem vaacuterias pessoas que satildeo felizes tecircm sucesso e que natildeo tecircm necessariamente uma faculdade

(Professora da Escola B)

203

Segundo Blustein (2011) McNamee (2012) e Ribeiro (2014 2017) com base no

construcionismo social esta divergecircncia caracteriza a construccedilatildeo ontoloacutegica relacional na qual

uma realidade natildeo eacute reproduzida mas coconstruiacuteda na relaccedilatildeo entre os atores narrativas e

discursos envolvidos No presente caso o discurso do PEI focado na loacutegica neoliberal e as

narrativas accedilotildees e reflexotildees dos professores e alunos baseada em suas realidades de vida

O discurso social predominante no PEI eacute a valorizaccedilatildeo do Ensino Superior a formaccedilatildeo

universitaacuteria como objetivo do Projeto de Vida Quando este objetivo se encontra

descontextualizado um modelo de sucesso pode se tornar um modelo de fracasso Estabelecer

como o uacutenico caminho para todos os alunos a formaccedilatildeo universitaacuteria considerando que natildeo haacute

vagas suficientes neste niacutevel de ensino tornaraacute esses alunos exemplos de fracasso e geraraacute mais

frustraccedilatildeo Contudo foi possiacutevel encontrar nas narrativas de professores e alunos divergecircncias

em relaccedilatildeo ao discurso social predominante no programa nas quais outros tipos de projetos

tambeacutem satildeo valorizados reforccedilando a ideia de que a realidade eacute coconstruiacuteda (Ribeiro 2014

Savickas et al 2009)

De forma alguma se trata por exemplo de deixar de estimular ou encorajar os alunos

O que se propotildee eacute estimular o aluno a ter maiores aspiraccedilotildees sem no entanto desvalorizar ou

menosprezar os projetos que natildeo passem pela escolha de uma universidade Os professores

devem ter o cuidado de levar em conta o contexto do aluno motivando-o sem ultrapassar o

limite de impor um modelo de sucesso que natildeo eacute dele Projetos como a escolha de um curso

teacutecnico ou a constituiccedilatildeo de uma famiacutelia ao final do Ensino Meacutedio devem ser respeitados e

legitimados

Um uacuteltimo aspecto a ser destacado refere-se agraves produccedilotildees discursivas em torno do

mundo do trabalho que eacute apresentado enquanto uma realidade natural Natildeo eacute realizada no PEI

uma discussatildeo sobre as representaccedilotildees sociais das carreiras sobre o contexto histoacuterico-poliacutetico

do trabalho ou sobre a interseccionalidade entre classe social gecircnero e raccedila no mundo do

trabalho

Criacuteticas semelhantes foram realizadas ao Programa Informaccedilatildeo Profissional (PIP) por

Baptista (1984) e ao modelo da Educaccedilatildeo para a Carreira por Irving (2010) Para Irving (2018)

as discussotildees sobre carreira deveriam dar suporte a muacuteltiplas maneiras de ser e participar no

mundo assim como possibilitar aos estudantes uma exploraccedilatildeo sobre caminhos coletivos nos

quais podem influenciar e impactar seu contexto poliacutetico econocircmico e social

204

Consideraccedilotildees finais

Teoacuterica e metodologicamente a disciplina de Projeto de vida se assemelha a modelos

tradicionais do campo da OP e pode ser considerada uma poliacutetica puacuteblica de OP apesar de natildeo

ser assim nomeada e de natildeo oferecer treinamento adequado aos professores responsaacuteveis pela

disciplina E ideologicamente a disciplina carrega o discurso neoliberal do esforccedilo individual

e da alta qualificaccedilatildeo como uacutenicos caminhos para o sucesso na vida de trabalho apesar de

narrativas singulares de professores e alunos problematizarem esta visatildeo

No Brasil natildeo haacute uma norma que regulamente a profissatildeo de orientador profissional

podendo ser encontrados neste campo de atuaccedilatildeo diferentes profissionais como psicoacutelogos

administradores pedagogos licenciados (professores) etc Assim como na deacutecada de 1970 na

qual os professores tiveram destaque atraveacutes de disciplinas de orientaccedilatildeo na grade curricular

com a atual Reforma do Ensino Meacutedio os professores voltam a ser os principais agentes da OP

No caso do Estado de Satildeo Paulo isso jaacute acontece no PEI e seraacute ampliado com o Programa Inova

Educaccedilatildeo

Considerando as reformas curriculares e a inserccedilatildeo da OP nestas poliacuteticas educacionais

atraveacutes de termos como Projeto de Vida faz-se relevante que a OP enquanto aacuterea deva se

preparar para os modelos pedagoacutegicos jaacute existentes e para as praacuteticas que seratildeo implementadas

Principalmente que seja oferecida formaccedilatildeo adequada para os professores e para os demais

educadores no desenvolvimento destes modelos de OP utilizados como poliacutetica puacuteblica de

educaccedilatildeo e trabalho

Para que esse diaacutelogo entre OP e educaccedilatildeo seja estabelecido haacute alguns caminhos que

podem ser apontados como a criaccedilatildeo ou o aprimoramento de espaccedilos de formaccedilatildeo em OP para

educadores seja em cursos de graduaccedilatildeo poacutes-graduaccedilatildeo ou eventos cientiacuteficos

No Estado de Satildeo Paulo a futura inserccedilatildeo de psicoacutelogos nas diretorias de ensino mesmo

que a princiacutepio seja para fazer parte de um programa voltado para a seguranccedila nas escolas abre

como possibilidade a atuaccedilatildeo direta nas poliacuteticas puacuteblicas educacionais As diretorias de ensino

enquanto intermediaacuterias entre a Secretaria da Educaccedilatildeo do Estado de Satildeo Paulo (SEESP) e a

direccedilatildeo de cada escola tecircm como algumas de suas atribuiccedilotildees implementar programas de

formaccedilatildeo continuada a docentes aleacutem de supervisionar e acompanhar o funcionamento das

escolas Neste aspecto faraacute sentido se o psicoacutelogo na Diretoria de Ensino trabalhar em conjunto

com a Equipe de Supervisatildeo de Ensino (ESE) e o Nuacutecleo Pedagoacutegico (NPE) mais

especificamente com os Professores Coordenadores do Nuacutecleo Pedagoacutegico (PCNPs)

205

Sobre a atuaccedilatildeo do psicoacutelogo-orientador profissional na formaccedilatildeo de educadores seja

nas diretorias de ensino ou em outros espaccedilos eacute possiacutevel antecipar como principal desafio a

preparaccedilatildeo enquanto educador e psicoacutelogo escolar Reafirmarmos o apontamento de Uvaldo

Garcia Munhoz e Teixeira (2012) sobre a necessidade de se incluir na formaccedilatildeo dos

orientadores profissionais conhecimentos sobre o funcionamento do sistema educacional

brasileiro dos processos de aprendizagem e das linhas pedagoacutegicas

O olhar da psicologia social nas poliacuteticas puacuteblicas como no caso de poliacuteticas

educacionais auxilia a pensar psicossocialmente os fenocircmenos e ampliar as possibilidades de

construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de programas gerais e de metodologias focadas na relaccedilatildeo pessoa e

contexto social Como principais limitaccedilotildees do estudo podemos citar a regionalizaccedilatildeo da

pesquisa concentrada na cidade de Satildeo Paulo uma anaacutelise que natildeo focou as questotildees da

interseccionalidade de gecircnero raccedilaetnia e classe e a falta de estudos sobre a mesma temaacutetica

ainda recente para uma melhor validaccedilatildeo intersubjetiva da pesquisa

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210

Capiacutetulo 11

A tessitura de redes de diaacutelogo e de participaccedilatildeo de crianccedilas no cuidado

hospitalar pediaacutetrico

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo

Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Adriana Marcondes Machado

Introduccedilatildeo

Este capiacutetulo tem como propoacutesito ensejar a construccedilatildeo de uma composiccedilatildeo que

estabeleccedila entrelaccedilamentos entre a infacircncia a psicologia e as poliacuteticas puacuteblicas destinadas agraves

crianccedilas Para tanto entrevistas com crianccedilas hospitalizadas na enfermaria pediaacutetrica de um

hospital puacuteblico do municiacutepio de CuiabaacuteMT produzidas no acircmbito de uma pesquisa de

mestrado (Assunccedilatildeo 2018) foram revisitadas com o intuito de mobilizar reflexotildees que

desvelassem os modos de inscriccedilatildeo e as redes de significaccedilotildees partilhados por 26 crianccedilas-

usuaacuterias frente agraves praacuteticas de cuidado em sauacutede a elas dirigidas

Na medida em que a investigaccedilatildeo apresentada assumiu o delineamento de uma

abordagem de pesquisa com crianccedilas enfatizou-se uma modalidade de escuta atenta ao

pertencimento e agrave inserccedilatildeo social de uma categoria geracional que dispotildee de estatuto social e

poliacutetico especiacuteficos e que mobiliza processos de inserccedilatildeo social fundados por esta condiccedilatildeo de

existecircncia Para tanto orientou-se pelos contornos da pesquisa do tipo etnograacutefica tal como

sintetiza Andreacute (2003) apoiada pelo emprego de entrevistas de observaccedilatildeo participante e de

anaacutelise documental A presente discussatildeo edificaraacute como recorte os conteuacutedos engendrados

particularmente pelas entrevistas com as crianccedilas hospitalizadas

Diante das conjecturas analiacuteticas empreendidas elucidou-se que as participantes ao

expressarem seus processos de elaboraccedilatildeo e partilha acerca de suas experiecircncias de

hospitalizaccedilatildeo anunciaram tambeacutem por intermeacutedio deste exerciacutecio de enunciaccedilatildeo os

atravessamentos suscitados pelos arranjos institucionais de organizaccedilatildeo e gestatildeo dos serviccedilos

de assistecircncia em sauacutede exprimindo as formas pelas quais interpretavam e imprimiam sentidos

agraves praacuteticas de cuidado ofertadas pelas equipes de sauacutede que compunham a instituiccedilatildeo enfocada

211

Os conteuacutedos explicitados pelas crianccedilas permitiram depreender que o agenciamento de

encontros intergeracionais menos hierarquizados em um contexto puacuteblico de sauacutede pediaacutetrica

pode adquirir o potencial de configurar-se enquanto fecundo dispositivo de participaccedilatildeo social

e de produccedilatildeo de visibilidade ciacutevica da infacircncia sinalizando possibilidades de inserccedilatildeo capazes

de oportunizar a elevaccedilatildeo do grau democraacutetico de tais instituiccedilotildees

Em atenccedilatildeo a isso pondera-se que o universo de relaccedilotildees sociais forjado no acircmbito dos

equipamentos puacuteblicos de sauacutede extrapola as fronteiras circunscritas agraves suas respectivas funccedilotildees

sociais de oferta de serviccedilos e estrateacutegias amalgamadas por percursos de atenccedilatildeo em sauacutede

assentados na prevenccedilatildeo promoccedilatildeo tratamento e reabilitaccedilatildeo traspondo-se a uma esfera que

considera a perspectiva do desenvolvimento dos sujeitos Neste sentido ao consolidar-se a

partir do marco constitucional do direito agrave sauacutede o acesso agraves instituiccedilotildees puacuteblicas se configura

enquanto componente da complexa rede de relaccedilotildees biopsicossociais que concorre para os

processos de constituiccedilatildeo dosas usuaacuteriosas notabilizando a dimensatildeo educativa poliacutetica e

cidadatilde que as encerram ao mobilizarem processos de participaccedilatildeo e inscriccedilatildeo no interior da

rede assistencial do Sistema Uacutenico de Sauacutede

Para a construccedilatildeo do itineraacuterio teoacuterico e analiacutetico ora proposto delineou-se a elaboraccedilatildeo

de subtemas que perpassaram a discussatildeo em torno do estatuto social da infacircncia em diaacutelogo

com a teoria histoacuterico-cultural o destaque das disposiccedilotildees sobre sauacutede da crianccedila a partir de

poliacuteticas e resoluccedilotildees especiacuteficas eleitas com o propoacutesito de explicitar os princiacutepios e diretrizes

que preconizam as crianccedilas-usuaacuterias como copartiacutecipes nos processos de gestatildeo produccedilatildeo

tratamento e avaliaccedilatildeo em sauacutede a contextualizaccedilatildeo da pesquisa de mestrado cujos dados foram

emprestados a anaacutelise das entrevistas com as crianccedilas hospitalizadas e as consideraccedilotildees finais

desta discussatildeo

1 O estatuto social das crianccedilas em diaacutelogo com a teoria histoacuterico-cultural e a sociologia

da infacircncia

Os conhecimentos partilhados sobre a infacircncia bem como acerca de seu potencial de

participaccedilatildeo social e poliacutetica satildeo engendrados por processos histoacutericos e sociais de construccedilatildeo

fundados por referecircncias e paradigmas distintos e coexistentes que disputam sua constituiccedilatildeo

Neste aspecto dedica-se agrave exploraccedilatildeo das formulaccedilotildees tencionadas pela teoria histoacuterico-

cultural de Vygotsky (2000a 2000b) e a sociologia da infacircncia (Sarmento 2007 Ferreira

212

2010) que colaborem para a compreensatildeo deste quadro conceitual e histoacuterico que participa da

constituiccedilatildeo do estatuto social da infacircncia

Em uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo de desenvolvimento segundo a qual a teoria

histoacuterico-cultural estabeleceu seus alicerces Vygotsky (2000a) enfatizou a necessidade de

combater as formulaccedilotildees que postulassem pela permanecircncia de um vestiacutegio oculto de

ldquopreformismordquo em torno das apreciaccedilotildees acerca do desenvolvimento infantil

O referido pressuposto ancora-se sob um paradigma vigente de maneira velada no

pensamento social e cientiacutefico que considera que a crianccedila se diferenciaria dosas adultosas

exclusivamente pelos contornos e proporccedilotildees fiacutesicas Esta imagem culturalmente eleita

adquiriu eficaacutecia e reverberaccedilatildeo social com o propoacutesito de tecer explicaccedilotildees aos fenocircmenos

pertinentes ao desenvolvimento infantil tendo sido a crianccedila usualmente simbolizada pela

designaccedilatildeo de adulto em miniatura (Vygotsky 2000a)

As teorias ldquopreformistasrdquo ampararam-se pela concepccedilatildeo de que o desenvolvimento se

estabelece sob condiccedilotildees simplesmente quantitativas cuja ldquosementerdquo do humano carrega

consigo todas as estruturas e particularidades de um organismo jaacute formado e maduro (Vygotsky

2000a)

As teorias psicoloacutegicas dedicadas agrave gecircnese do desenvolvimento infantil bem como a

proacutepria praacutetica psicoloacutegica empenham-se no esforccedilo de reiterar que tal fenocircmeno encerra

processos que superam a noccedilatildeo elementar de transformaccedilotildees quantitativas evidenciando que

os meacutetodos essencialmente comparativos entre adultosas e crianccedilas produzem saberes e teorias

que ocasionam a reduccedilatildeo da infacircncia aos aspectos contrastantes de sua situaccedilatildeo de

desenvolvimento em relaccedilatildeo agrave doa adultoa (Vygotsky 2000a) Neste campo desvelam-se

enfoques investigativos teoacutericos e praacuteticos que nada revelam acerca dos traccedilos da condiccedilatildeo

humana da infacircncia em estaacutegio singular de desenvolvimento e aprendizagem

Diante dessas consideraccedilotildees sublinha-se que tais discursos construiacutedos ao longo da

histoacuteria incorrem em impactos psicossociais que adquirem o potencial de produzir efeitos de

invisibilizaccedilatildeo da infacircncia concorrendo para a constituiccedilatildeo de seu estatuto social A

constituiccedilatildeo simboacutelica desta categoria geracional mediante as condiccedilotildees enfatizadas encontra-

se inscrita nas redes de significados socialmente elaboradas que a partir dos processos de

interpretaccedilatildeo da realidade orientam praacuteticas e discursos que circunscrevem a infacircncia e as

crianccedilas

213

As investigaccedilotildees desenvolvidas na seara da sociologia da infacircncia discorrem acerca do

processo de ocultamento da complexidade social da categoria geracional infacircncia gerando

impactos a respeito do que se sabe sobre as infacircncias e crianccedilas posto que ldquonuma ciecircncia que

tem sido predominantemente produzida a partir de uma perspectiva adultocentrada as

vivecircncias culturas e representaccedilotildees das crianccedilas escapam-se ao conhecimento que delas temosrdquo

(Sarmento 2007 p 26)

O campo das imagens sociais sobre a infacircncia se traduz por um expressivo significado

social que incorre na produccedilatildeo de seu estatuto social o qual se revela na esfera da justificaccedilatildeo

das praacuteticas dosas adultos em relaccedilatildeo agraves crianccedilas sobretudo objetivada pela prescriccedilatildeo e pela

invisibilidade de sua potecircncia social cultural poliacutetica e ciacutevica na medida em que eacute considerada

sob a eacutegide da marca da negatividade e da ausecircncia (Sarmento 2007)

Os argumentos expostos contribuem para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese de que tais

concepccedilotildees fortalecem os discursos mais estaacuteveis e tradicionais antagocircnicos ao paradigma

preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas pertinentes ao setor sauacutede acerca da infacircncia que

privilegiam as orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas que legitimam a condiccedilatildeo de cidadania destes

sujeitos

Contrapondo-se agrave concepccedilatildeo de que o desenvolvimento cultural seria uma continuaccedilatildeo

direta do desenvolvimento natural da crianccedila Vygotsky (2000b) propotildee que

[hellip] quando a crianccedila se insere na cultura natildeo apenas apreende algo natildeo apenas assimila e se

enriquece com o que estaacute fora dela [crianccedila] mas a proacutepria cultura reelabora profundamente a

composiccedilatildeo natural do comportamento da crianccedila e fornece uma orientaccedilatildeo completamente

nova a todo o curso de seu desenvolvimento (Vygotsky 2000b p 305 traduccedilatildeo nossa) 1

Assim notabiliza-se que aleacutem de enfatizar o caraacuteter dialeacutetico do desenvolvimento

cultural da crianccedila Vygotsky (2000b) anuncia que a mesma tambeacutem contribui para a

reelaboraccedilatildeo da composiccedilatildeo cultural ressaltando a participaccedilatildeo da crianccedila na cultura e na

histoacuteria

Acerca do exposto salienta-se que as crianccedilas enquanto dotadas de capacidade de

negociaccedilatildeo de gerir e reinterpretar a composiccedilatildeo social e cultural em seus proacuteprios termos a

partir das relaccedilotildees intra e intergeracionais negociam e produzem sentidos que se desvelam

ancorados em criteacuterios e referecircncias que se distinguem daquelas dosas adultosas mas que natildeo

por isso as destituem do exerciacutecio de seus respectivas papeis como atoresatrizes sociais

1 [] ldquocuando el nintildeo se adentra en la cultura no soacutelo toma algo de ella no soacutelo asimila y se enriquece con lo que

estaacute fuera de eacutel sino que la propria cultura reelabora en profundidad la composicioacuten natural de su conducta y da

una orientacioacuten completamente nueva a todo el curso de su desarrollordquo (Vygotsky 2000b p 305)

214

(Ferreira 2010) A presente contribuiccedilatildeo assume portanto como patente o exerciacutecio de

encontro com a alteridade objetivada pela crianccedila convocando para a criaccedilatildeo e o tensionamento

de estrateacutegias que reivindiquem a validade de seus modos de compor e se inscrever nos

diferentes contextos de existecircncia com vistas agrave superaccedilatildeo do estatuto social que as confere o

semblante de negatividade e de ausecircncia ao interpor obstaacuteculos para o reconhecimento de sua

condiccedilatildeo de cidadania e da legitimidade de sua participaccedilatildeo social nos diferentes cenaacuterios Um

dos desafios do mundo adulto passa a ser neste acircmbito acessar aquilo que as crianccedilas vivem e

pensam no cotidiano das praacuteticas sociais a elas endereccediladas

A partir das consideraccedilotildees enfocadas acerca das crianccedilas dedica-se agrave explanaccedilatildeo de

suas interlocuccedilotildees com as poliacuteticas puacuteblicas a fim de avanccedilar na composiccedilatildeo da presente

construccedilatildeo argumentativa

2 Notas sobre as poliacuteticas de atenccedilatildeo em sauacutede e a infacircncia

No final do seacuteculo XX sob pressotildees dos movimentos populares de redemocratizaccedilatildeo

do paiacutes assim como da Reforma Sanitaacuteria Brasileira2 foi promulgada em 1988 a Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica Federativa do Brasil que preconizou a sauacutede como um direito social fundamental

de todosas osas cidadatildeoscidadatildes e dever a ser garantido pelo Estado instituindo o Sistema

Uacutenico de Sauacutede (SUS) Para regulamentaacute-lo foi estabelecida uma legislaccedilatildeo especiacutefica que natildeo

se resumiu apenas aos limites do SUS mas a diversos aspectos da sauacutede da populaccedilatildeo de

maneira geral intitulada lei orgacircnica da sauacutede (Lei ndeg 8080 de 19 de setembro de 1990) Esta

foi complementada pela lei que dispotildee sobre a participaccedilatildeo e o controle social do SUS (Lei nordm

8142 de 28 de dezembro de 1990) (Paim 2009)

No que se refere agraves poliacuteticas de sauacutede direcionadas agrave infacircncia apoacutes a instituiccedilatildeo do SUS

pela Constituiccedilatildeo de 1988 foi sancionado o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Lei nordm 8069

de 13 de julho de 1990) que instituiu a proteccedilatildeo integral e resolveu questotildees que perpassavam

a atenccedilatildeo em sauacutede desta populaccedilatildeo como por exemplo os direitos do neonato as obrigaccedilotildees

hospitalares e dosas profissionais de sauacutede o direito agrave permanecircncia em tempo integral do pai

2 O movimento da Reforma Sanitaacuteria Brasileira tambeacutem conhecido como RSB originou-se na segunda metade

da deacutecada de 1970 com a finalidade de defender a democratizaccedilatildeo da sauacutede e o processo de reestruturaccedilatildeo de seu

sistema de serviccedilos Foi protagonizado por membros de vaacuterios segmentos sociais e populares como estudantes

sociedade civil pesquisadoresas profissionais de sauacutede bem como membros de entidades comunitaacuterias

profissionais e sindicais Um importante marco deste movimento foi a 8ordf Conferecircncia Nacional de Sauacutede em 1986

na qual foram debatidas as proposiccedilotildees sociais que fariam parte da RSB sendo o relatoacuterio final desta reuniatildeo

utilizado como base para a elaboraccedilatildeo da seccedilatildeo ldquoDa Sauacutederdquo da Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 (Paim 2009)

215

da matildee ou doa responsaacutevel legal em regime intensivo enfermarias e demais setores de atenccedilatildeo

pediaacutetrica e neonatal (Brasil 1990)

Posteriormente foi aprovada a Resoluccedilatildeo nordm 41 (de 13 de outubro de 1995) do Conselho

Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente (CONANDA) fundamentada no texto

formulado pela Sociedade Brasileira de Pediatria Neste documento instituiu-se dimensotildees natildeo

antes abarcadas pela lei anterior enfatizando a importacircncia de a perspectiva da crianccedila ser

levada em conta apontando a necessidade de ela ser escutada e instruiacuteda em seus processos de

adoecimento e tratamento em sauacutede (Brasil 2004)

Apesar da promulgaccedilatildeo da sauacutede como um direito e de sua regulamentaccedilatildeo enquanto

serviccedilo puacuteblico de atenccedilatildeo e de cuidado ainda assim persistiram problemaacuteticas relacionadas agrave

qualidade da gestatildeo e dos serviccedilos prestados ao sofrimento dosas trabalhadoresas e

usuaacuteriosas a ampliaccedilatildeo do acesso dentre outras Nesse sentido a emergecircncia do tema da

humanizaccedilatildeo foi anunciada na 11ordf Conferecircncia Nacional de Sauacutede no ano de 2000 sendo

reconhecida como um dos principais desafios que permeavam o SUS suscitando sua necessaacuteria

abordagem como parte da pauta e da agenda do setor sauacutede na qualidade de uma estrateacutegia para

o enfrentamento das questotildees salientadas (Pasche 2013)

Para sua instituiccedilatildeo seria preciso constituir o sentido de humanizaccedilatildeo a ser elencado a

direccedilatildeo eacutetico-poliacutetica a ser legitimada e tomada como base para a constituiccedilatildeo deste paradigma

de cuidado e de gestatildeo em sauacutede O valor de humanizaccedilatildeo tencionado pressupunha a inserccedilatildeo

das diferentes pessoas nos processos de gestatildeo e de cuidado colocando-as em diaacutelogo para o

exerciacutecio de relaccedilotildees mais democraacuteticas (Pasche 2013)

Diante dessas problemaacuteticas sob tensionamentos populares e sindicais o Ministeacuterio da

Sauacutede regulamentou o Programa Nacional de Humanizaccedilatildeo da Assistecircncia Hospitalar

(PNHAH) a partir de um projeto apresentado no ano de 2000 Este visava difundir accedilotildees e

propostas de humanizaccedilatildeo ao atendimento puacuteblico em sauacutede nos hospitais preconizando a

transformaccedilatildeo da cultura de atendimento existente de seus modos de cuidar e do modelo de

atenccedilatildeo principalmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre profissionais de sauacutede e

usuaacuteriosas entre osas proacutepriosas profissionais e entre o hospital e a comunidade (Brasil

2001)

Posteriormente compreendeu-se que para sua consolidaccedilatildeo nas instituiccedilotildees

hospitalares era necessaacuterio que este programa fosse pensado para toda a rede do sistema de

sauacutede Segundo Rios (2009) em 2003 o programa foi revisto e incorporado como um

216

aprimoramento ao SUS como um todo sendo lanccedilado como poliacutetica puacuteblica com a

denominaccedilatildeo de Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (PNH)

A PNH dos serviccedilos de sauacutede atribuiu destaque agraves relaccedilotildees estabelecidas entre os

sujeitos agraves atitudes e praacuteticas sociais que circunscrevem seus modos de cuidar e gerir em

direccedilatildeo ao reposicionamento destes diante dos modos de ldquofazerrdquo sauacutede Este modelo preconiza

como imprescindiacuteveis os processos de negociaccedilatildeo coletiva suscitando a corresponsabilidade

a autonomia e a participaccedilatildeo dosas diferentes atoresatrizes sociais para a reconstruccedilatildeo das

relaccedilotildees de saber de poder e de afeto a partir de orientaccedilotildees princiacutepios e meacutetodos eacutetico-

poliacuteticos que privilegiam o exerciacutecio da inclusatildeo e do diaacutelogo (Pasche 2013)

A PNH orienta-se segundo os princiacutepios da transversalidade da indissociabilidade entre

atenccedilatildeo e gestatildeo e do protagonismo corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos

O primeiro pressupotildee que a humanizaccedilatildeo deve estar presente e inserida em todos os programas

estrateacutegias e poliacuteticas que fazem parte do SUS atravessando as diversas accedilotildees instacircncias e

relaccedilotildees entre os diferentes sujeitos ampliando a comunicaccedilatildeo entre estes O segundo

estabelece que a atenccedilatildeo e a gestatildeo compotildeem uma unidade e por isso devem ser

compreendidas como interdependentes e complementares natildeo podendo ser tomadas

separadamente nos processos de produccedilatildeo de sauacutede O terceiro consolida que a atenccedilatildeo o

cuidado e a gestatildeo precisam ser compartilhados entre equipes de sauacutede usuaacuteriosas redes

sociofamiliares e comunidades reconhecendo a cidadania a legitimidade de participaccedilatildeo e a

contribuiccedilatildeo destes para a construccedilatildeo de modos coletivos de gerir e cuidar (Brasil 2013)

As diretrizes da PNH retomadas por Santos Filho (2013) foram a cogestatildeo a diretriz

de acolhimento ambiecircncia e cliacutenica ampliada a diretriz da defesa dos direitos dosas

usuaacuteriosas e a diretriz de valorizaccedilatildeo do trabalho e dosas trabalhadoresas da sauacutede

Em continuidade a este processo histoacuterico de promulgaccedilatildeo de poliacuteticas enfatiza-se a

instituiccedilatildeo da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Crianccedila (PNAISC)

implementada por intermeacutedio da Portaria nordm 1130 de 5 de agosto de 2015 do Ministeacuterio da

Sauacutede no acircmbito do Sistema Uacutenico de Sauacutede Esta poliacutetica encontra-se fundada por princiacutepios

diretrizes e eixos estrateacutegicos que se estruturam com o objetivo de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo da

sauacutede da crianccedila e do aleitamento materno da gestaccedilatildeo aos nove anos de idade por intermeacutedio

de uma rede de accedilotildees de cuidado integral que coadune para a atenccedilatildeo agrave primeira infacircncia e agraves

populaccedilotildees vulneraacuteveis Este delineamento aspira como propoacutesito alccedilar a reduccedilatildeo da

morbimortalidade bem como ensejar condiccedilotildees dignas ao desenvolvimento e agrave existecircncia

humanos (Brasil 2018)

217

Os princiacutepios que orientam a PNAISC alicerccedilam-se sob o direito agrave vida e agrave sauacutede agrave

prioridade absoluta da crianccedila ao acesso universal agrave sauacutede no interior da rede assistencial agrave

integralidade do cuidado agrave equidade em sauacutede a um ambiente facilitador agrave vida agrave humanizaccedilatildeo

da atenccedilatildeo e agrave gestatildeo participativa e ao controle social Em relaccedilatildeo agraves diretrizes cuja

observacircncia se estabelece como necessaacuteria para a elaboraccedilatildeo dos programas e accedilotildees em sauacutede

desta populaccedilatildeo estas especificam-se a partir dos indicadores de gestatildeo interfederativa das

accedilotildees de sauacutede da crianccedila de organizaccedilatildeo das accedilotildees e dos serviccedilos na rede de atenccedilatildeo na

promoccedilatildeo da sauacutede no fomento agrave autonomia do cuidado e da corresponsabilidade da famiacutelia

na qualificaccedilatildeo da forccedila de trabalho do SUS no planejamento e desenvolvimento das accedilotildees no

incentivo agrave pesquisa e agrave produccedilatildeo de conhecimento no monitoramento e avaliaccedilatildeo e na

intersetorialidade (Brasil 2018) Neste campo notabiliza-se que a PNAISC enquanto uma

poliacutetica puacuteblica pertinente ao setor sauacutede fundamenta-se segundo o marco constitucional do

SUS e por conseguinte sob os princiacutepios e diretrizes da PNH

As accedilotildees estrateacutegicas da PNAISC por sua vez organizam-se a partir de sete eixos a

saber atenccedilatildeo humanizada e qualificada agrave gestaccedilatildeo ao parto ao nascimento e ao receacutem-

nascido aleitamento materno e alimentaccedilatildeo complementar saudaacutevel promoccedilatildeo e

acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento integral atenccedilatildeo integral agraves crianccedilas

com agravos prevalentes na infacircncia e com doenccedilas crocircnicas atenccedilatildeo integral agrave crianccedila em

situaccedilatildeo de violecircncias prevenccedilatildeo de acidentes e promoccedilatildeo da cultura de paz atenccedilatildeo agrave sauacutede

de crianccedilas com deficiecircncia ou em situaccedilotildees especiacuteficas e de vulnerabilidade vigilacircncia e

prevenccedilatildeo do oacutebito infantil fetal e materno (Brasil 2018)

Em suma a presente discussatildeo permite compreender que as poliacuteticas puacuteblicas em sauacutede

desenvolvidas no Brasil no final do seacuteculo XX e iniacutecio do XXI foram impulsionadas

principalmente pelos movimentos sociais e poliacuteticos Em consonacircncia os direitos civis da

infacircncia e da adolescecircncia tambeacutem foram debatidos e sancionados mobilizando-se a elaboraccedilatildeo

de poliacuteticas resoluccedilotildees eou claacuteusulas destinadas agrave sauacutede desta populaccedilatildeo

Com a emergecircncia da PNH chama-se a atenccedilatildeo para o desenvolvimento de um

paradigma em sauacutede que recobra o proacuteprio marco constitucional preconizado pelo Sistema

Uacutenico de Sauacutede enfatizado diante das problemaacuteticas que persistiam neste setor e sustentado

pela urgecircncia no estabelecimento de relaccedilotildees mais democraacuteticas entre os diferentes sujeitos

implicados no processo de atenccedilatildeo e de cuidado Apesar de natildeo realizar menccedilotildees particulares agrave

infacircncia e adolescecircncia sob o uso da terminologia de usuaacuteriosas crianccedilas adolescentes

adultosas e idososas tecircm sido entendidosas no bojo da PNH como sujeitos e agentes dos

218

processos de atenccedilatildeo e gestatildeo em sauacutede segundo as orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas de inclusatildeo

diaacutelogo protagonismo autonomia e corresponsabilidade Na PNAISC por sua vez essas

concepccedilotildees foram reiteradas mais frequentemente atreladas agraves famiacutelias como por vezes

tambeacutem dirigidas agraves crianccedilas-usuaacuterias enfocadas por esta poliacutetica contudo sem pormenorizar

sua aplicabilidade e efeitos

Diante do exposto eacute importante salientar que como categorias geracionais especiacuteficas

a infacircncia e a adolescecircncia possuem especificidades sociais histoacutericas e culturais atribuindo-

lhes marcas sociais que as diferenciam dosas adultosas e que precisam ser pensadas a partir

da complexidade que as encerram

A eacutetica que permeia a proacutepria poliacutetica de humanizaccedilatildeo e o marco constitucional do SUS

permite que coletivamente sejam propostas e efetuadas transformaccedilotildees dos arranjos que

constituem as relaccedilotildees de saber poder e afeto Nesse sentido a inclusatildeo de meacutetodos

dispositivos e experiecircncias que preconizem a crianccedila como copartiacutecipe e protagonista nas

diversas facetas do setor sauacutede podem se consolidar como medidas que contribuam para que

estas poliacuteticas promovam e potencializem a participaccedilatildeo das crianccedilas e dosas adolescentes

hospitalizadosas nos processos de produccedilatildeo de sauacutede

Diante do exposto a articulaccedilatildeo entre infacircncia e poliacuteticas puacuteblicas ora proposta

organiza-se em torno da premissa de que os espaccedilos puacuteblicos adquirem o potencial de se

configurar enquanto fecundos dispositivos de participaccedilatildeo social e de cidadania Os processos

coletivos de trabalho e de gestatildeo podem neste sentido intensificar as forccedilas democraacuteticas em

tais instituiccedilotildees especialmente quando pautados por encontros menos hierarquizados cuja

negociaccedilatildeo intergeracional seja tomada como princiacutepio prioritaacuterio

Mediante esta formulaccedilatildeo revela-se a importacircncia de que as instituiccedilotildees puacuteblicas de

sauacutede e de educaccedilatildeo sejam constituiacutedas e designadas segundo diretrizes que engendrem

estruturas de oportunidade de desenvolvimento e aprendizagem que conformem com

orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas mais democraacuteticas e dialoacutegicas preconizando processos de

implicaccedilatildeo e pertenccedila que sustentem a expressatildeo de atoresatrizes sociais autocircnomosas e

participativosas

Nesta amplitude a instituiccedilatildeo de sauacutede mais do que um loacutecus de produccedilatildeo de saberes

sobre o corpo e de reestabelecimento da sauacutede anuncia-se enquanto um contexto permeado por

redes de significados que concorrem para o processo de constituiccedilatildeo dos sujeitos Esta

modulaccedilatildeo sinaliza a existecircncia de processos de desenvolvimento forjados pelas relaccedilotildees

219

intersubjetivas desveladas nos espaccedilos de sauacutede notabilizando-se sua dimensatildeo educativa

poliacutetica e cidadatilde

A inserccedilatildeo neste cenaacuterio abrangeria neste aspecto a organizaccedilatildeo de ferramentas e

estrateacutegias que encorajassem o exerciacutecio da condiccedilatildeo de cidadania de categorias geracionais

especiacuteficas mobilizando processos de participaccedilatildeo no interior da rede assistencial do SUS em

interlocuccedilatildeo com as praacuteticas discursos e saberes sociais historicamente forjados sobre a

infacircncia e sobre o potencial de participaccedilatildeo desta nos serviccedilos de sauacutede

Neste sentido os modos possiacuteveis de encontro entre a psicologia a educaccedilatildeo sauacutede e

poliacuteticas puacuteblicas encontram-se amparados sobre a premissa de que as instituiccedilotildees destinadas agrave

infacircncia se tornam capazes de ensejar possibilidades de apreensatildeo de conhecimentos por

intermeacutedio de aprendizagens sociais desenroladas em seu acircmago Estas por sua vez demandam

a inscriccedilatildeo de brechas institucionais que disputem o campo de uma organizaccedilatildeo hospitalar

predominantemente centrada na loacutegica adulta e biomeacutedica em direccedilatildeo agrave ampliaccedilatildeo dos direitos

da infacircncia e adolescecircncia hospitalizadas sobretudo ao preconizar meios para a sua participaccedilatildeo

e protagonismo nos processos de produccedilatildeo de sauacutede que se materializam na gestatildeo nas praacuteticas

de cuidado e nas poliacuteticas que regulamentam os serviccedilos

3 A contextualizaccedilatildeo da pesquisa

A pesquisa de mestrado cujos dados foram revisitados para a construccedilatildeo da presente

discussatildeo intitula-se ldquoRepresentaccedilotildees sociais sobre profissionais de sauacutede segundo crianccedilas

implicaccedilotildees identitaacuterias no contexto da hospitalizaccedilatildeo pediaacutetricardquo Esta investigaccedilatildeo foi

desenvolvida no acircmbito do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Universidade Federal

de Mato Grosso (PPGE UFMT) no acircmbito do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infacircncia

(GPPIN) sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Este estudo notabilizou como objeto de investigaccedilatildeo as representaccedilotildees sociais de

crianccedilas hospitalizadas sobre osas profissionais de sauacutede vinculados ao tratamento destas

explorando-se a partir do recorte proposto as implicaccedilotildees desta rede de significaccedilotildees aos

processos de representaccedilatildeo de si das participantes O aporte teoacuterico da pesquisa explicitada

compreendeu originalmente o diaacutelogo entre a teoria das representaccedilotildees sociais em uma

abordagem ontogeneacutetica e a teoria histoacuterico-cultural

O cenaacuterio em que a pesquisa foi construiacuteda circunscreveu a enfermaria pediaacutetrica de um

hospital puacuteblico pertencente agrave rede assistencial do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) do municiacutepio

220

de Cuiabaacute (MT) Esta trajetoacuteria se constituiu ao longo de trecircs meses e congregou em seu

conjunto a participaccedilatildeo de vinte e seis crianccedilas hospitalizadas com idades entre sete e doze

anos por intermeacutedio do assentimento destas e o consentimento escrito dosas respectivosas

acompanhantes apoacutes elucidados os procedimentos e objetivos investigativos

O itineraacuterio que sustentou o processo de produccedilatildeo de dados alicerccedilou-se sob os

contornos da abordagem do tipo etnograacutefica (Andreacute 2003) e considerou a adoccedilatildeo dos

procedimentos de entrevistas observaccedilatildeo participante e anaacutelise de documentos Como exposto

privilegiou-se para a construccedilatildeo deste capiacutetulo as informaccedilotildees produzidas a partir da realizaccedilatildeo

de entrevistas com as crianccedilas participantes

Ao dedicar-se agrave abordagem de pesquisa com crianccedilas procedeu-se com a elaboraccedilatildeo de

adequaccedilotildees metodoloacutegicas que permitissem o encontro com as crianccedilas participantes assumido

enquanto diaacutelogo intergeracional Esta construccedilatildeo foi norteada pela adaptaccedilatildeo e refinamento

dos procedimentos para que adquirissem o potencial de propiciar a escuta e o registro da

pluralidade de expressotildees das crianccedilas tomadas como interlocutoras legiacutetimas em

contraposiccedilatildeo agraves tendecircncias dos estudos que consideram exclusivamente os sentidos partilhados

pelosas respondentes adultosas ao interessarem-se pelas experiecircncias das crianccedilas sob a

responsabilidade daquelesas

Neste sentido especificamente no que tange agraves entrevistas ponderou-se como

pertinente a elaboraccedilatildeo de um roteiro luacutedico3 segundo a proposiccedilatildeo de rearranjos ao

procedimento de entrevista ao ser esboccedilado a partir do delineamento de uma brincadeira eou

jogo mediado pela pesquisadora na qual as crianccedilas foram convidadas agrave construccedilatildeo de desenhos

e narrativas apreciados como ferramentas compatiacuteveis com a expressividade e enunciaccedilatildeo das

significaccedilotildees que compartilham acerca das intervenccedilotildees de sauacutede objetivadas pelas praacuteticas

dosas profissionais implicadosas no tratamento destas

Os materiais elaborados a partir do roteiro luacutedico foram organizados em diferentes

etapas em decorrecircncia da multiplicidade da natureza de suas produccedilotildees a saber metaacuteforas e

metoniacutemias narrativas descriccedilotildees de experiecircncias e desenhos Neste sentido estabelece-se

como objeto da discussatildeo ora apresentada a explanaccedilatildeo proveniente da anaacutelise das respostas agrave

questatildeo 1 e das questotildees 4 a 104 do roteiro luacutedico processadas pelo programa computacional

IRAMUTEQ (Camargo amp Justo 2013 2014)

3 Este instrumento foi denominado ldquoQuem cuida de mim no hospitalrdquo 4 Demonstrativo de questotildees do roteiro luacutedico elencadas na presente ocasiatildeo Questatildeo 1 Quem vocecirc desenhou e

como essa pessoa cuida de vocecirc no hospital Questatildeo 4 Imagine que uma crianccedila que nunca ficou hospitalizada

221

Com o propoacutesito de explicitar a natureza da composiccedilatildeo das questotildees do roteiro luacutedico

salientadas discorre-se que na ocasiatildeo de seu empreendimento a crianccedila foi convidada a criar

a partir da realizaccedilatildeo de desenhos sua proacutepria equipe de sauacutede podendo incluir nesta as

distintas categorias profissionais e funccedilotildees conforme a perspectiva da participante Apoacutes o

desenho a crianccedila foi estimulada a identificar para a pesquisadora as pessoas desenhadas nos

cartotildees e explicar como cada uma delas realizava a funccedilatildeo de cuidado intra-hospitalar Neste

enquadramento as transcriccedilotildees agraves respostas agrave questatildeo 1 compuseram o corpus textual

processado pelo software de maneira que os desenhos propriamente ditos natildeo seratildeo enfocados

na presente discussatildeo mas somente as descriccedilotildees destes

O segundo momento ora enfocado para a anaacutelise exprime os conteuacutedos abarcados pelas

questotildees 4 e 5 do roteiro luacutedico cujas participantes foram apresentadas a uma situaccedilatildeo

imaginaacuteria para que como em uma brincadeira de faz-de-conta explicaria para uma crianccedila

hipoteticamente receacutem-chegada quais pessoas seriam responsaacuteveis pelas praacuteticas de cuidado e

como essa abordagem era empreendida Apoacutes esse momento eram incentivadas a atribuir um

tiacutetulo agrave narrativa elaborada

As questotildees 6 e 7 seguintes foram dedicadas a estimular que a crianccedila discorresse acerca

das fontes informacionais que as permitiram acessar os conhecimentos descritos pela narrativa

bem como explicitar os conteuacutedos que consideravam importantes dentre aqueles experienciados

no cenaacuterio hospitalar os quais sustentaram o desenvolvimento da narrativa anteriormente

construiacuteda com o propoacutesito de identificar a dimensatildeo expressiva destas vivecircncias segundo a

focalizaccedilatildeo das crianccedilas

No que concerne agraves questotildees de 8 a 10 estas foram configuradas segundo o propoacutesito

de explorar os processos identitaacuterios em termos psicossociais subjacentes agrave experiecircncia de

hospitalizaccedilatildeo atravessadas pelas praacuteticas em sauacutede empreendidas pela equipe desvelando as

implicaccedilotildees do outro aos processos de constituiccedilatildeo do sentimento de identidade e de pertenccedila

das participantes Mediante a transcriccedilatildeo destes conteuacutedos elaborados pelas crianccedilas e

mobilizados a partir das questotildees elucidadas procedeu-se com o procedimento de

processamento destas informaccedilotildees sob o apoio do programa computacional IRAMUTEQ que

estaacute chegando agora no hospital e natildeo conhece quem cuidaraacute dela [hellip] Como vocecirc que jaacute estaacute mais experiente

com o que acontece no hospital explicaria para essa crianccedila quem cuidaraacute dela no hospital e o que cada um faraacute

com ela Questatildeo 5 Que nome vocecirc daria para essa histoacuteria que vocecirc acabou de contar Questatildeo 6 Como vocecirc

ficou sabendo de tudo isso que acabou de contar Questatildeo 7 O que foi importante aqui no hospital que fez com

que vocecirc aprendesse tudo isso que acaba de contar Questatildeo 8 Como era vocecirc antes e depois de ter ficado no

hospital Questatildeo 9 O que vocecirc aprendeu sobre vocecirc a partir da experiecircncia de hospitalizaccedilatildeo Questatildeo 10

Agora uma uacuteltima pergunta como vocecirc chegou ao hospital e o que aconteceu que vocecirc teve que vir (Assunccedilatildeo

2018)

222

resultou na identificaccedilatildeo de cinco classes que se demonstraram estaacuteveis Diante do exposto

delimitou-se que as anaacutelises tecidas neste trabalho enfocariam particularmente os materiais

textuais classificados no interior da Classe 4 que representou 2325 da totalidade do corpus

original

4 As praacuteticas de cuidado em sauacutede pediaacutetrica segundo crianccedilas hospitalizadas

O conjunto de excertos produzidos pelas crianccedilas e congregados nesta classe

tangenciou mais especificamente o universo dos sentidos atribuiacutedos agraves relaccedilotildees de cuidado

tendo sido elencadas suas faces desejaacuteveis e natildeo desejaacuteveis de pessoalidade e impessoalidade

Neste sentido o narrar e o desenhar podem ser compreendidos como recursos que sintetizaram

os processos de classificaccedilatildeo e nomeaccedilatildeo das crianccedilas engendrando exerciacutecios de seleccedilatildeo de

conteuacutedos e afetos sobre os sujeitos focalizados e suas accedilotildees resgatados pela vivecircncia da

crianccedila diante deste universo de cuidado que permeia o quem desempenha e o como eacute percebido

Ah ela quando eu tava com dor ela foi ver eu como que tava meu coraccedilatildeozinho e ela foi laacute na

sala na hora que eu tava laacute mediu pressatildeo um monte de coisa Fez bastante coisa pra mim Ela

olhou meu coraccedilatildeo viu como tava a pressatildeo e viu se eu tava com febre A meacutedica Ela eacute daqui

de cima mesmo da pediatria (Flor5 10 anos)

A de pressatildeo Escreve a de pressatildeo Ela mede nossa pressatildeo se estaacute alta ou baixa Soacute Eu vou

desenhar vocecirc Porque sim vocecirc eacute legal Eu posso desenhar vocecirc Eu natildeo sei o que desenho

mais Eu jaacute desenhei a de agulha a de pressatildeo Eacute Como eacute esse assim que a gente coloca assim

e fica medindo assim Eacute Eacute de pressatildeo quase neacute Termocircmetro Mas eacute a mesma pessoa que

cuida da pressatildeo Acho que natildeo Mas taacute bom soacute esses desenhos (Raissa 9 anos)

Vem ver se eu tocirc com febre Ela coloca aquele negocinho no meu sovaco pra ver se eu tocirc com

febre Ela tem vez que troca o meu curativo Tava esquecendo Eacute que ela eacute a mulher que passa

e vem ver a minha pressatildeo ver se eu tocirc com febre e troca meu curativo (Rafael 12 anos)

Vou fazer o doutor cardiologista Primeiro o cabelo O olho grande ele Esse aqui saiu melhor

O cardiologista De vez em quando ele passa aqui para olhar como eacute que o braccedilo estaacute

melhorando (Gabriel 10 anos)

Agora soacute falta desenhar os meninos no hospital Eu vou desenhar ela arrumando o soro Sabe o

que que eacute isso Eacute um hospital Mas eacute tipo uma casa (Beatriz 7 anos)

Ela eacute da equipe do Superman Ela levanta minha camisa e coloca aquele negoacutecio de axila

Como que eacute o nome Eacute O trermocircmeto Aiacute quando ela natildeo acha no meu braccedilo ela coloca na

minha axila (Lilo 10 anos)

O instrumento de pesquisa possibilitou uma dinacircmica que encorajou processos

reflexivos acerca de elementos jaacute naturalizados pela crianccedila desencadeados pela produccedilatildeo de

certo estranhamento em relaccedilatildeo a tais conteuacutedos principalmente aqueles motivados pela

5 Os nomes informados ao longo deste relatoacuterio de pesquisa satildeo fictiacutecios e foram eleitos pelas proacuteprias crianccedilas

hospitalizadas participantes do estudo ao final da realizaccedilatildeo de cada entrevista

223

formulaccedilatildeo de uma questatildeo com resposta aparentemente oacutebvia no contexto de inserccedilatildeo dosas

participantes

Os excertos elucidaram que as crianccedilas percebem a existecircncia de pessoas que

desempenham o ofiacutecio do cuidado bem como as atividades que estas realizam para fazecirc-lo

poreacutem nessa classe os sujeitos da accedilatildeo dos segmentos de texto muitas vezes apresentaram-se

nomeados de maneira vaga eou geneacuterica apesar da existecircncia de detalhamento em relaccedilatildeo agraves

praacuteticas de sauacutede explorando inclusive seu aparato instrumental

As narrativas estatildeo imbricadas em uma dimensatildeo afetiva que demonstra as formas pelas

quais as experiecircncias relatadas foram vivenciadas pelas crianccedilas Esse fenocircmeno explicitou os

processos de atribuiccedilatildeo de sentido a um universo de accedilotildees desconhecidas declaradas a partir

de recursos e nomenclaturas familiares como em ldquoEla eacute da equipe do Supermanrdquo ldquoE um

hospital Mas eacute tipo uma casardquo que conferiram menores niacuteveis de estranhamento e

possibilitaram uma descriccedilatildeo ancorada agraves categorias que lhes eram comuns

Na medida em que elaboraram seus discursos por intermeacutedio de uma fala dirigida para

si mesmosas como em um exerciacutecio de autorregulaccedilatildeo que osas apoiaram na produccedilatildeo de um

saber as crianccedilas explicitaram a descriccedilatildeo de um modelo de cuidado marcado por uma

conotaccedilatildeo operacional dessa praacutetica revelando seus modos de accedilatildeo protocolares

Se uma crianccedila chegasse falaria que ela ia apertar neacute nossa matildeo pra saber se taacute com febre se

natildeo coloca um trermocircmeto de axila de baixo do suvaco [hellip] Eacute do mesmo jeito Eacute o mesmo

jeito de medir tambeacutem Eles mandam a mesma coisa neacute Fazer Pra ver apertar o braccedilo pra

saber se taacute com febre se natildeo colocar o trermocircmeto de axila [hellip] Natildeo eu natildeo fiquei sabendo

eu descobri que ela fazia assim comigo Ah eu tava de boa neacute achei que ningueacutem ia cuidar de

mim [Risos] Soacute vinha com trermocircmeto assim pra conferir colocar e ver se eu tava com febre

ou natildeo Aiacute eu tava aqui deitado de repente chega ela Aiacute ela foi e fez do mesmo jeito aiacute veio

essa outra aiacute que eu desenhei e fez do mesmo jeito Aiacute eu descobri aiacute eu jaacute sabia que vinha outra

e ia fazer Aiacute eu gostei dessa daqui (Lilo 10 anos)

Tem um monte de Eacute um monte de doutora que vem aqui aplicar Uma hora vem uma outra

hora vem outra No total que vem aplicar eacute umas trecircs Acho que eacute por causa do turno neacute Vou

desenhar o doutor O doutor laacute o cabelo dele eacute liso (Gabriel II 10 anos)

Aqui eacute aquela ldquoAnnyrdquo E daqui mesmo Agora lembrei o nome Ela cuida da mesma coisa da

ldquoLuisardquo ela vem para caacute para ver se eu estou com febre e ver minha pressatildeo (Rafael 12 anos)6

A accedilatildeo descritiva da crianccedila avanccedilou na compreensatildeo da dinacircmica de cuidado

ensejando a formulaccedilatildeo de hipoacuteteses que referendam a existecircncia de um script de praacuteticas em

sauacutede seguido pelosas profissionais Os discursos revelaram um modo de operar a promoccedilatildeo

do cuidado que implica a repeticcedilatildeo de um ldquomesmo jeitordquo ou a execuccedilatildeo de uma ldquomesma coisardquo

6 Os nomes dosas profissionais de sauacutede apresentados ao longo do relatoacuterio de pesquisa satildeo fictiacutecios e foram

escolhidos pela proacutepria pesquisadora

224

cuja realizaccedilatildeo eacute intercalada entre membros da equipe ldquouma hora vem uma outra hora vem

outrardquo que por conseguinte satildeo distribuiacutedosas sob o regime de ldquoturnosrdquo

Os participantes enunciaram ainda a existecircncia de uma instacircncia reguladora destas

atividades ao mencionar que ldquoEles mandam a mesma coisa neacute Fazerrdquo (Lilo 10 anos) bem

como apresentaram o senso de existecircncia de uma organizaccedilatildeo hieraacuterquica entre as categorias

profissionais existentes na cena hospitalar A assertiva demonstra proximidade entre as ideias

elaboradas pelas crianccedilas e as normativas que regulamentam de modo sistemaacutetico e

padronizado as accedilotildees teacutecnico-assistenciais em sauacutede frequentemente objetivadas pelos

protocolos operacionais padratildeo

O processo de discorrer sobre esse conhecimento social aparenta alicerccedilar-se sobretudo

pela exposiccedilatildeo de circunstacircncias marcadas pelos domiacutenios da percepccedilatildeo da concretude e a partir

da experiecircncia corporal que resultou das accedilotildees de cuidado empreendidas as quais a crianccedila foi

depositaacuteria delineando-se como um sujeito que recebeu a accedilatildeo do outro As vivecircncias

fornecidas pelas relaccedilotildees intersubjetivas foram utilizadas como suporte para a apreensatildeo de

conhecimentos sociais e para o desenvolvimento de importantes conceitos que tangenciaram a

hospitalizaccedilatildeo explorando noccedilotildees sobre a organizaccedilatildeo dos serviccedilos as praacuteticas de atenccedilatildeo em

sauacutede suas ferramentas e quem as realiza

Ela eacute enfermeira aqui Sabe sempre tem a melhor laacute que fica eu acho que ela eacute a enfermeira

Ah eu natildeo sei eacute a que fica responsaacutevel pelo plantatildeo sei laacute eu natildeo sei o nome (Moana 12

anos)

Vou desenhar ela carregando agulha Taacute estranho Eacute aquilo que coloca Eacute a seringa neacute Que

segura assim e a gente vai puxando pra passar tudo Seraacute que eu desenho um kit e outro Na

outra matildeo dela um kit Um kit assim de primeiros socorros (Raissa 9 anos)

Ficou estranho neacute O negoacutecio A que mede pressatildeo com aquele negoacutecio que aperta tudo Com

o negoacutecio que aperta o pulso assim [hellip] Esse daqui eacute aquilo que faz assim pra colocar no braccedilo

Aiacute coloca no braccedilo e essa daqui eacute a parte que zera Aiacute aqui coloca o braccedilo aiacute vai taacute uns

coraccedilatildeozinho assim Aiacute o papelzinho e aiacute esse eacute a pulseira (Raissa 9 anos)

Essa construccedilatildeo dialoacutegica resulta em aprendizagens sociais que possibilitam que as

crianccedilas se aproximem e muitas vezes passem a operar segundo o significado de certos

constructos aplicando com sentido terminologias teacutecnicas pertencentes agrave rede de conteuacutedos que

permeiam o acircmbito hospitalar Esses termos passam a ser tambeacutem partilhados entre e pelas

crianccedilas que os adotam como descritores da realidade ao empregaacute-los durante os processos

comunicacionais entre pares e com os adultos conferindo compreensatildeo e uso aos mesmos

Ao utilizar esse repertoacuterio de conceitos a crianccedila se dedica a um processo de

significaccedilatildeo do real a partir de suas proacuteprias produccedilotildees alavancando anaacutelises de suas

experiecircncias e dos produtos culturais que elabora sustentados pelos marcadores sociais que

225

acessa exprimindo pelos desenhos e narrativas as formas pelas quais interpreta e imprime

sentidos agraves particularidades da realidade social Nesse escopo descreve qualifica e se coloca

afetivamente implicada nos conteuacutedos que formula revelando as dimensotildees vivenciais e

reflexivas de suas construccedilotildees como nos segmentos que se seguem

Esqueci como eacute o cabelo dela Deve ser assim neacute Eu tocirc desenhando ela mais bonita porque

eu gosto mais eacute dela daqui do hospital A doutora a doutora natildeo a enfermeira Ela cuida assim

bem ela natildeo natildeo briga natildeo manda eu ir dormir toda hora quando taacute ficando tarde e ela eacute

boazinha A gente pediu pra ela deixar jogar no play aiacute ela falou que podia soacute que tava muito

tarde jaacute se tivesse pedido antes ela deixava mas era meia noite Aiacute ela eacute boazinha Eu gosto

dela (Moana 12 anos)

Essa doutora aqui de vez em quando ela vem aqui me perguntar se eu preciso de alguma coisa

Natildeo vem aqui de vez em quando natildeo Ela soacute veio aqui soacute fazer uma visita veio soacute ver se tava

precisando de alguma coisa Ela falou que se precisasse de alguma coisa ela tava ali na na

frente Falei nada natildeo a matildee que conversou com ela Falou taacute bom Ela veio aqui falar que se

precisar de alguma coisa eacute soacute falar com ela Acho que ela tava de feacuterias e ela chegou Disse que

se precisar de alguma coisa eacute soacute falar com ela Primeira vez que eu vejo ela Eacute bem prestativa

ela Chegou de feacuterias natildeo tinha nada pra fazer e veio aqui avisar que se precisasse de ajuda

alguma coisa assim ela tava disponiacutevel (Gabriel II 10 anos)

[hellip] nas horas que eu falava que eu tava com muita dor muito coccedilando ela me dava remeacutedio

na hora que eu precisava Ela ficava mais perto de mim Ficava olhando ela perguntava se eu

tinha dor aiacute eu falava agraves vezes que sim agraves vezes que natildeo mas ela cuidou muito bem de mim

Ah ela eacute meacutedica laacute de baixo Da sala amarela (Flor 10 anos)

Fui aprendendo com a meacutedica que ela falou um monte de coisas pra mim ldquoNatildeo precisa ter

medo Beatriz quando for furar vocecirc natildeo precisa ter medo natildeo precisa olharrdquo E quando o tio

falou ldquoVocecirc soacute vai taacute dormindo vocecirc natildeo vai sentir nadardquo E eu falei ldquoNem senti nadardquo Na

cirurgia (Beatriz 7 anos)

Os coraccedilotildees satildeo pra elas ficar feliz Tavam tristes Agora a que veio aqui ficou alegre neacute por

causa dos coraccedilotildees (Batman 12 anos)

Os recortes discursivos explicitam que a seleccedilatildeo e a organizaccedilatildeo dos conteuacutedos

expressos acerca dosas profissionais de sauacutede foram anunciadas segundo as implicaccedilotildees

afetivas engendradas nas interaccedilotildees que circunscrevem a hospitalizaccedilatildeo Os exemplos

ilustrados tangenciam diferentes modulaccedilotildees sobre esse campo elucidando perspectivas de

atenccedilatildeo em sauacutede que demonstram as accedilotildees que agradam as crianccedilas e que segundo elas satildeo

desejaacuteveis de se receber eou partilhar exprimidas principalmente pelo uso das colocaccedilotildees

gostar cuidar natildeo brigar natildeo mandar deixar falar poder pedir vir perguntar fazer

precisar estar ser dizer chegar avisar ajudar dar ficar olhar aprender De alguma

maneira as conotaccedilotildees que essas palavras traduzem se ramificam de uma faceta de cuidado

ancorada a uma eacutetica de proximidade diaacutelogo e disponibilidade para o outro

Tais processos de negociaccedilatildeo alicerccedilados pela relaccedilatildeo indissociaacutevel entre a concretude

e a forma com que satildeo vivenciadas pela crianccedila resultam tambeacutem na atribuiccedilatildeo de sentidos agraves

226

experiecircncias que desvelam um aspecto desagradaacutevel e natildeo desejaacutevel da dinacircmica de promoccedilatildeo

de sauacutede conferindo modulaccedilotildees agraves conotaccedilotildees de cuidado apresentadas anteriormente

Ela cuida mal porque era Minha veia tava doendo neacute daiacute era pra ela olhar e arrumar certinho

neacute aiacute ela foi e puxou tudo de uma vez assim e ficou doendo o meu braccedilo Porque uma outra

enfermeira ela conseguiu arrumar ela olhou e arrumou certinho a veia E ela puxou de uma

vez A outra arruma certinho na veia de volta [hellip] Acho importante que ela natildeo cuidou de mim

Ela podia ter machucado o meu braccedilo Eacute que ela puxou de uma vez o negoacutecio Ateacute a matildee falou

assim ldquoVai com cuidado soacute daacute uma olhada vecirc se taacute fora da veiardquo e ela foi puxando assim e eu

falei ldquoAi meus pelinhosrdquo Bem assim e ela puxou de uma vez assim e arrancou tudo Nesse

braccedilo aqui (Moana 12 anos)

Eacute chato levar injeccedilatildeo para tirar sangue Tirei duas vezes ontem Esse aqui foi hoje esse daqui

foi ontem Esse foi com borboletinha E esse aqui natildeo Prefiro sem borboleta Porque agulha

com borboleta demora pra pegar sangue E a sem vai puxando assim eacute rapidatildeo Quando foi a

da borboletinha eu soacute dei um grito Sem borboletinha natildeo precisou gritar (Raissa 9 anos)

A que tira sangue eacute maacute ela eacute muito maacute Soube porque eu vi elas fazendo em mim Ainda mais

essa daqui que tira sangue que eacute muito chata Machuca muito o braccedilo ontem eu tive que dormir

com o braccedilo assim oacute (Raissa 9 anos)

Esse aqui eu jaacute tomei doze Soacute nessa veia Eu tomei um grandatildeo daqueles grandatildeo Eu conto

Mas claro Pra ver se natildeo passou da hora Matildee vai ter que chamar a mulher Taacute pingando aqui

Aiacute depois vai ter que lavar Lavar doacutei eu que natildeo falava nada Doacutei Lava com aacutegua A veia

enche Manda essa mulher aiacute lavar matildee Eu natildeo vou falar que doacutei Ah aiacute vatildeo querer trocar de

veia Eu natildeo quero Ela troca de veia e eu natildeo quero (Batman 12 anos)

Ateacute gelou aqui agora ateacute gelou Acho que apertou tanto Sai ateacute o couro Esparadrapo puxa

cabelo (Batman 12 anos)

Os trechos salientados transmitem em seus conteuacutedos descritivos a compreensatildeo de que

as crianccedilas nomeiam a presenccedila de uma dimensatildeo do cuidado que eacute qualificada como adversa

e hostil que pode ser acentuada pela postura e a conduta adotadas pelosas profissionais quando

a accedilatildeo eacute desempenhada eou pela maneira com que eacute percebida pela crianccedila que a recebe

As accedilotildees desagradaacuteveis e repelidas recordam modalidades de intervenccedilotildees que satildeo

antagocircnicas agraves associadas ao que osas participantes classificam como desejaacuteveis e positivas

pormenorizando-as com o suporte de verbos como puxar machucar arrancar levar tirar

demorar pegar gritar fazer tomar lavar doer encher trocar apertar sair O emprego

dessas terminologias denota a percepccedilatildeo das accedilotildees de cuidado como incisivas abruptas

dolorosas e invasivas distintas daquelas caracteriacutesticas nomeadas pelas crianccedilas ao discorrer

sobre episoacutedios identificados pelos sentidos de proximidade diaacutelogo e disponibilidade

A conjuntura analiacutetica empreendida pelos segmentos de texto apresentados permite

formular a hipoacutetese da existecircncia de uma importante fonte de informaccedilatildeo que decorre

diretamente da experiecircncia corporal delineada pelas praacuteticas de sauacutede atitudes e prescriccedilotildees

que incidem sobre o corpo da crianccedila configurando as relaccedilotildees de instruccedilatildeo face a face eou

anocircnimas Essa ordem de saberes se constitui como fonte por protagonizar processos

227

comunicacionais que operam sob a eacutegide das relaccedilotildees mediatizadas pelo corpo ao fornecer o

escopo para a transmissatildeo de conhecimentos sociais sendo as accedilotildees que lhes satildeo dirigidas

significadas pela crianccedila a partir de diferentes conotaccedilotildees que oscilam desde as entendidas

como agradaacuteveis e desejaacuteveis ateacute aquelas nomeadas como hostis e adversas

Consideraccedilotildees finais

Diante do propoacutesito de revisitar o recorte dos conteuacutedos gerados no acircmbito da pesquisa

de mestrado anunciada buscou-se estabelecer entrelaccedilamentos entre infacircncia psicologia e

poliacuteticas puacuteblicas destinadas agraves crianccedilas mais especificamente as poliacuteticas e resoluccedilotildees

salientadas ao longo deste capiacutetulo

Os conteuacutedos elaborados pelas crianccedilas anunciaram os modos pelos quais elas

nomeavam e descreviam as praacuteticas de cuidado em sauacutede empreendidas pela equipe de sauacutede

desvelando suas ancoragens agraves normas rotinas institucionais e aos processos de gestatildeo e

organizaccedilatildeo dos serviccedilos que traduzem em seu conjunto os itineraacuterios de apropriaccedilatildeo e

implementaccedilatildeo dos princiacutepios diretrizes e eixos de atuaccedilatildeo recomendados pelas poliacuteticas

puacuteblicas pertinentes ao equipamento hospitalar pediaacutetrico e agrave populaccedilatildeo atendida

Neste sentido os processos de enunciaccedilatildeo engendrados situaram-se inscritos pelos

arranjos que constituiacuteram as relaccedilotildees de saber poder e afeto que permitiram acessar como osas

participantes perspectivaram as accedilotildees assistenciais em sauacutede a eleselas endereccediladosas

declarando as possibilidades que dispunham de participaccedilatildeo nos processos de cuidado em sauacutede

intra-hospitalares

Em correlaccedilatildeo aos pressupostos salientados pelas poliacuteticas e resoluccedilotildees tomadas para a

presente discussatildeo identifica-se que os equipamentos e dispositivos de sauacutede satildeo fundados por

princiacutepios e diretrizes que visam a elevaccedilatildeo do grau democraacutetico da rede assistencial do SUS

em que as crianccedilas sob a eacutegide da terminologia de usuaacuterias tambeacutem se encontram abarcadas

Apesar do exposto notabiliza-se que o estatuto social e poliacutetico da infacircncia ao situaacute-la a partir

dos marcadores da negatividade e da ausecircncia inscrevem-na a condiccedilatildeo de incapacidade de

exerciacutecio de sua condiccedilatildeo de participaccedilatildeo e de cidadania no interior da instituiccedilatildeo enfocada

privilegiadamente pautada pelas perspectivas adultas e biomeacutedicas de gestatildeo e produccedilatildeo de

sauacutede

Assim reafirma-se que frente agraves particularidades sociais histoacutericas e poliacuteticas que

permeiam a infacircncia desvela-se como patente a inclusatildeo e a partilha de meacutetodos dispositivos

228

e experiecircncias que inscrevam a crianccedila como protagonista e copartiacutecipe das accedilotildees de cuidado

em sauacutede com o propoacutesito de convocar a dimensatildeo educativa poliacutetica e cidadatilde que as

instituiccedilotildees de sauacutede puacuteblicas mobilizam e conduzir a tessitura de redes de diaacutelogo e

participaccedilatildeo no que tange agrave atuaccedilatildeo da infacircncia nestes contextos

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230

Capiacutetulo 12

Psicologia Social e Poliacuteticas Puacuteblicas em diaacutelogo com sauacutede e educaccedilatildeo

questotildees de gecircnero sauacutede mental justiccedila violecircncia e permanecircncia

estudantil

Mariana Fagundes de Almeida Rivera

Tatiana Alves Romatildeo

Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim

Fernanda Lyrio Heinzelmann

Kate Delfini Santos

Paula Rosana Cavalcante

Ianni Regia Scarcelli

Introduccedilatildeo

A partir de pesquisas desenvolvidas no LAPSO - Laboratoacuterio de Estudos em Psicanaacutelise

e Psicologia Social do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (IP-USP) que primam pela diversidade metodoloacutegica

busca-se neste capiacutetulo apresentar algumas pesquisas em desenvolvimento1 na linha de

pesquisa ldquoSauacutede direitos humanos e poliacuteticas na interface com a Psicologia Socialrdquo A seguir

procura-se discutir a partir delas possibilidades de interlocuccedilatildeo entre a psicologia social e

poliacuteticas puacuteblicas em setores como sauacutede e educaccedilatildeo e na interface com gecircnero sauacutede mental

justiccedila violecircncia e permanecircncia estudantil Os estudos do LAPSO fundamentam-se em

pressupostos que consideram dimensotildees intrapsiacutequicas intersubjetivas e trans-subjetivas na

especificidade dos processos psiacutequicos dos grupos e instituiccedilotildees e no contexto da poliacutetica A

referida linha de pesquisa objetiva investigar processos psicossociais que ocorrem em campos

de relevacircncia na vida social contemporacircnea como as poliacuteticas puacuteblicas de caraacuteter intersetorial2

Apoiando-se em autores do campo da psicologia social em particular Enrique Pichon-

Riviegravere busca-se de modo geral indagar sobre quais contribuiccedilotildees de saberes psi podem trazer

1 As pesquisas satildeo orientadas pela Professora Ianni Scarcelli 2 A polissemia do tema que envolve intersetorialidade tem sido bastante discutida Em uma perspectiva

operacional de acordo com Akerman de Saacute Moyses Rezende amp Rocha (2014) poderia ser definida como um

modo de gestatildeo que se desenvolve em processo sistemaacutetico de articulaccedilatildeo planejamento e cooperaccedilatildeo entre os

distintos setores da sociedade e entre as diversas poliacuteticas puacuteblicas de modo a atuar sobre determinantes sociais

231

agrave discussatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Tambeacutem se aborda como esses saberes podem ser ampliados

pela participaccedilatildeo nesse debate e quais ressonacircncias da e sobre a Psicologia Outra questatildeo

relaciona-se agrave intenccedilatildeo de compreender os efeitos das poliacuteticas puacuteblicas sobre vidas das pessoas

e tipos de lacunas que se estabelecem entre os acircmbitos poliacutetico-juriacutedico e teacutecnico-assistencial

quando estaacute em questatildeo a implementaccedilatildeo de novos programas e poliacuteticas (Scarcelli 2017)

As pesquisas que apresentamos se debruccedilam em questotildees de gecircnero sauacutede mental

violecircncia justiccedila permanecircncia estudantil relacionadas agraves poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede e

educaccedilatildeo no contexto brasileiro Aleacutem disso possuem diferentes caminhos metodoloacutegicos ndash

como observaccedilatildeo e registro em diaacuterios de campo narrativas entrevistas e sociodrama ndash e satildeo

pautadas por uma concepccedilatildeo de sujeito compreendido como ser histoacuterico e socialmente

determinado em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica entre mundos interno e externo (Pichon-Riviegravere 2005) de

tal modo que projetos poliacuteticos ressoam na constituiccedilatildeo psiacutequica dos sujeitos Refletem assim

sobre possibilidades de uma psicologia social imbricada na relaccedilatildeo dialeacutetica entre sociedade e

produccedilatildeo de saberes buscando pautar o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas comprometidas

com diferentes necessidades sociais

Eacute importante ressaltar que no contexto do vasto campo da psicologia social

caracterizado pela pluralidade e multiplicidade de abordagens teoacutericas a perspectiva

pichoniana concebe uma interciecircncia com metodologia interdisciplinar ou seja o lsquohomem-em-

situaccedilatildeorsquo como objeto das vaacuterias ciecircncias suscetiacutevel de uma abordagem pluridimensional

Segundo o proacuteprio Pichon-Riviegravere (2005) seu pensamento estaacute sistematizado num conjunto de

conceitos gerais e teoacutericos referidos a um setor do real e a um determinado universo do

discurso que permitem uma aproximaccedilatildeo instrumental a um objeto particular concreto Esses

conceitos segundo Quiroga (2009) buscam dar conta de uma realidade para guiar uma accedilatildeo

sobre ela

Tais referecircncias tecircm nos guiado e se mostrado relevantes no diaacutelogo com o campo das

poliacuteticas puacuteblicas com os setores das poliacuteticas sociais como a sauacutede e abordagens psicoloacutegicas

em meio a outros modos diversos e tambeacutem potentes de buscar aproximaccedilatildeo entre esses campos

(Scarcelli 2017)

1 As pesquisas

As pesquisas apresentadas sinteticamente a partir de seus objetivos e caminhos

seguidos e agrupadas neste texto segundo as questotildees que abordam situam-se no acircmbito de

232

Mestrado e Doutorado no Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social do IP-USP

11 Gecircnero

Duas pesquisas desenvolvidas uma em niacutevel de Doutorado e outra de Mestrado

partiram de uma concepccedilatildeo na qual gecircnero eacute relacional e poliacutetico como defende Joan Scott

(1995) Donna Haraway (2004) por sua vez afirma que gecircnero seria um conceito desenvolvido

para contestar a naturalizaccedilatildeo da diferenccedila sexual de modo que os feminismos buscam explicar

e transformar sistemas histoacutericos nos quais ldquohomensrdquo e ldquomulheresrdquo satildeo socialmente

constituiacutedos e posicionados em relaccedilotildees de hierarquia Nesta mesma perspectiva Judith Butler

(2008) propotildee repensar categorias de identidade no contexto de uma assimetria radical do

gecircnero A autora problematiza a proacutepria construccedilatildeo dos corpos como gendrados pautada numa

inteligibilidade cultural diretamente associada agrave matriz heterossexual e agrave praacutetica compulsoacuteria

da heterossexualidade que naturaliza corpos gecircneros e desejos Corpos inteligiacuteveis possuiriam

um sexo estaacutevel expresso por um gecircnero estaacutevel que eacute definido oposicional e

hierarquicamente por meio da praacutetica compulsoacuteria da heterossexualidade (Butler 2008 p

216)

A pesquisa de Doutorado Transmasculinidades no Sistema Puacuteblico de Sauacutede

experiecircncias dos usuaacuterios3 investiga experiecircncias de transiccedilatildeo de gecircnero em sistemas puacuteblicos

de sauacutede no Brasil e em Portugal Para tal a partir de entrevistas realizadas com de homens

trans4 que utilizaram o Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) no Brasil ou o Sistema Nacional de

Sauacutede (SNS) em Portugal Entrevistando interlocutores nos dois paiacuteses busca compreender

como suas experiecircncias podem contribuir agrave proposiccedilatildeo e reformulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

Foram realizadas quatro entrevistas de caraacuteter exploratoacuterio duas em Portugal e duas no

Brasil com homens trans atendidos no processo de transiccedilatildeo de gecircnero no sistema de sauacutede

puacuteblica no seu paiacutes Nestas entrevistas os toacutepicos abordados partiram da percepccedilatildeo dos proacuteprios

interlocutores sobre efeitos da transiccedilatildeo em curso em suas vidas aleacutem de investigar o acesso

destes e os caminhos que percorreram dentro do sistema de sauacutede bem como suas concepccedilotildees

de gecircnero

Aleacutem das entrevistas textos das poliacuteticas puacuteblicas brasileiras como o da Poliacutetica

3 Conduzida por Fernanda Lyrio Heinzelmann 4 Conforme a definiccedilatildeo de Jaqueline de Jesus (2013) pessoas trans satildeo aquelas que natildeo se identificam com o

gecircnero que lhes foi atribuiacutedo ao nascimento ou socialmente Para a pesquisa em questatildeo satildeo homens trans os que

natildeo se identificam com o gecircnero feminino que lhes foi atribuiacutedo ao nascimento ou socialmente

233

Nacional de Sauacutede Integral LGBT (Leacutesbicas Gays Bissexuais Travestis e Transexuais) de

2011 e o da Portaria nordm 2803 de 19 de novembro de 2013 do Ministeacuterio da Sauacutede que

redefine e amplia o Processo Transexualizador no SUS satildeo analisados nesta pesquisa visando

problematizar possiacuteveis discrepacircncias entre proposiccedilotildees teoacutericas por parte do Estado e o que na

praacutetica eacute vivenciado pelos usuaacuterios do sistema O texto da lei de identidade de gecircnero

portuguesa Lei nordm 382018 tambeacutem eacute estudado (Portugal 2018) A partir da discussatildeo dos

dados levantados almeja-se traccedilar um panorama do que existe em termos de cuidado para estes

homens e tambeacutem pensar sobre a relaccedilatildeo existente entre estes cuidados e suas demandas

A pesquisa de Mestrado intitulada ldquoDiscussotildees de gecircnero nas praacuteticas de sauacutede no

contexto da Atenccedilatildeo Baacutesica do SUSrdquo5 analisa como se manifestam questotildees de gecircnero na

Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS bem como suas implicaccedilotildees nas praacuteticas de sauacutede do ponto de vista

do cuidado das relaccedilotildees concepccedilotildees e poliacuteticas puacuteblicas Para tanto a poacutes-graduanda

permaneceu por cinco meses em uma unidade baacutesica de sauacutede de uma grande cidade da regiatildeo

sudeste brasileira Atendimentos grupos reuniotildees e discussotildees de casos foram observados e

registrados em caderno de campo

A Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS foi considerada como campo privilegiado por se tratar da

ldquoporta de entradardquo do sistema de sauacutede tanto responsaacutevel por cuidar de grande parte dos

problemas de sauacutede da populaccedilatildeo quanto capaz de organizar o fluxo de atendimento para os

niacuteveis mais complexos de atenccedilatildeo agrave sauacutede Dessa forma nas unidades baacutesicas profissionais

acolhem diariamente diferentes situaccedilotildees e demandas de sauacutede que estatildeo mutuamente

relacionadas ao contexto de vida das pessoas e agraves dimensotildees estruturais da sociedade como a

patriarcal Entende-se conforme Avtar Brah (2006) que as relaccedilotildees patriarcais satildeo como uma

ldquoforma especiacutefica de relaccedilatildeo de gecircnero em que as mulheres estatildeo numa posiccedilatildeo subordinadardquo

(Brah 2006 p 351)

A partir de concepccedilotildees feministas de gecircnero segundo as quais diferentes instituiccedilotildees e

praacuteticas sociais satildeo constituiacutedas pelos gecircneros e constituintes dos gecircneros (Louro 1997)

compreende-se que haacute uma iacutentima relaccedilatildeo entre gecircnero e praacuteticas de sauacutede que pode ser

analisada Por essa anaacutelise tem sido possiacutevel refletir sobre a cotidianidade dos serviccedilos de

sauacutede sobretudo a respeito das poliacuteticas puacuteblicas do campo visando desenvolvecirc-las em um

sentido mais comprometido com o combate agraves desigualdades de gecircnero

5 Conduzida por Mariana Fagundes de Almeida Rivera

234

12 Violecircncia

Tambeacutem posicionada no acircmbito da Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS encontra-se uma pesquisa

de Doutorado que aborda a Poliacutetica de Enfrentamento e Prevenccedilatildeo de Violecircncia na aacuterea da

Sauacutede do municiacutepio de Satildeo Paulo6 objetivando identificar e compreender quais as

possibilidades e desafios que os Nuacutecleos de Prevenccedilatildeo de Violecircncia (NPV) possuem para lidar

com as situaccedilotildees de violecircncia que se apresentam no dia a dia seja no niacutevel da prevenccedilatildeo ou da

intervenccedilatildeo nas Unidades Baacutesicas de Sauacutede (UBS)

Em 2002 a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) reconheceu a violecircncia como um

problema de sauacutede puacuteblica e divulgou o ldquoRelatoacuterio Mundial sobre Violecircncia e Sauacutederdquo (Krug

Dahlberg Mercy Zwi amp Lozano 2002) No Brasil apesar de desde a deacutecada de 1980 esses

eventos constituiacuterem a segunda causa de oacutebito no perfil da mortalidade geral somente em 2001

foi instituiacuteda por meio da Portaria nordm 737GM do Ministeacuterio da Sauacutede a ldquoPoliacutetica Nacional de

Reduccedilatildeo da Morbimortalidade por Acidentes e Violecircnciasrdquo (PNRMAV) em que foram

estabelecidas diretrizes e responsabilidades institucionais de cada ente da Federaccedilatildeo Na cidade

de Satildeo Paulo destaca-se a Portaria nordm 13002015SMSG que institui Nuacutecleos de Prevenccedilatildeo da

Violecircncia (NPV) nos estabelecimentos de sauacutede do municiacutepio ou seja equipes de referecircncia

das Unidades de Sauacutede responsaacuteveis pela ldquoorganizaccedilatildeo do cuidado e articulaccedilatildeo das accedilotildees a

serem desencadeadas para a superaccedilatildeo da violecircncia e promoccedilatildeo da cultura de pazrdquo (Prefeitura

de Satildeo Paulo 2015)

Minayo (2005) fala sobre a complexidade do tema e afirma que as causas devem ser

analisadas a partir de componentes soacutecio-histoacutericos econocircmicos culturais e subjetivos

Ressalta que no caso do Brasil questotildees estruturais que cronificam a fome a miseacuteria e as

desigualdades sociais de gecircnero de etnia e mantecircm o domiacutenio adultocecircntrico sobre crianccedilas e

adolescentes relacionam-se diretamente com os atos violentos que se revelam no dia-a-dia

Em sua obra ldquoSobre a Violecircnciardquo Marilena Chauiacute (2017) destaca a questatildeo do

autoritarismo da sociedade brasileira que naturalizou a violecircncia que se apresenta sobretudo

de maneira velada estruturada a partir de relaccedilotildees familiares de classes dominantes com

predomiacutenio do espaccedilo privado sobre o puacuteblico em que os benefiacutecios concedidos a uma minoria

satildeo percebidos como naturais

Para alcanccedilar o objetivo da pesquisa foram realizadas oito entrevistas abertas com

pessoas que trabalham nos NPVs e trecircs entrevistas com gestoras e gestores da aacuterea teacutecnica de

6 Conduzida por Kate Delfini Santos

235

Atenccedilatildeo Integral da Pessoa em Situaccedilatildeo de Violecircncia sendo uma no niacutevel da supervisatildeo de

sauacutede outra na coordenadoria aleacutem da responsaacutevel pela aacuterea na Secretaria Municipal de Sauacutede

Tambeacutem foi realizada uma anaacutelise da Poliacutetica Nacional de Reduccedilatildeo da Morbidade sobre

Violecircncia e Sauacutede e da Linha de Cuidado para Atenccedilatildeo Integral da Pessoa em Situaccedilatildeo de

Violecircncia

13 Sauacutede Mental e Justiccedila

Duas pesquisas em niacutevel de Doutorado abordam a Sauacutede Mental na interface com a

Justiccedila Uma delas intitulada ldquoSauacutede Mental e Defensoria Puacuteblica buscando caminhos para

praacuteticas de cuidado no Sistema de (in)Justiccedilardquo7 trata de demandas relacionadas ao campo da

Sauacutede Mental e como estas se apresentam e se cruzam com instituiccedilotildees juriacutedicas a partir da

perspectiva da Defensoria Puacuteblica do Estado de Satildeo Paulo Objetiva levantar e compartilhar

possibilidades para efetivaccedilatildeo de praacuteticas de cuidado e garantia de direitos das ldquopessoas com

transtornos mentaisrdquo8 e de suas famiacutelias as quais tecircm suas histoacuterias acompanhadas pelo Sistema

de Justiccedila Partindo de narrativas registradas no diaacuterio de campo da pesquisadora ndash que eacute

tambeacutem psicoacuteloga da Defensoria Puacuteblica e estaacute imersa cotidianamente em seu campo de

pesquisa ndash foram analisados alguns casos processos judiciais fluxos intra-institucionais e

intersetoriais intervenccedilotildees e projetos articulando as anaacutelises das praacuteticas com legislaccedilotildees

normativas dados e bibliografia que versa sobre o tema

Frequentemente nas Defensorias Puacuteblicas chegam pedidos de internaccedilatildeo

involuntaacuteriacompulsoacuteria para pessoas com transtorno mental eou que fazem uso problemaacutetico

de drogas geralmente a pedido de familiares Tambeacutem se observa a interface com a Sauacutede

Mental quando pessoas procuram a instituiccedilatildeo com discursos confusos ou ideias aparentemente

delirantespersecutoacuterias eou vivendo situaccedilotildees de violecircncianegligecircncia nas accedilotildees de

destituiccedilatildeo do poder familiar de mulheres pobres com transtorno mental eou que fazem uso

problemaacutetico de drogas por exemplo em casos em que medidas de seguranccedila determinam a

internaccedilatildeo de pessoas em Hospitais de Custoacutedia e Tratamento Psiquiaacutetrico (HCTP)

Demandas relacionadas ao campo da Sauacutede Mental satildeo encontradas no Sistema de

7 Conduzida por Paula Rosana Cavalcante 8 Os termos ldquotranstorno mentalrdquo e ldquopessoas com transtorno mentalrdquo foram designados pelos diagnoacutesticos meacutedicos

ou pelo modo estas pessoas ou situaccedilotildees foram historicamente denominadas na sociedade Aqui satildeo utilizadas para

circunscrever o fenocircmeno social mas natildeo sem fazer a criacutetica a estes roacutetulos e o significado destes Entende-se que

se trata de uma construccedilatildeo social que denominou certas caracteriacutesticas ou comportamentos como ldquodesviordquo

ldquodoenccedilardquo ou ldquoanormalidaderdquo portanto algo indesejado a ser corrigido ou controlado

236

Justiccedila haacute muito tempo Observa-se que historicamente estes casos em geral eram atendidos

de maneira segmentada e estigmatizante com praacuteticas de segregaccedilatildeo contenccedilatildeo e violecircncia

(Dotto Endo Sposito amp Endo 2012)

Neste contexto apesar da cultura ainda repressora e estigmatizante do campo do direito

identificam-se algumas praacuteticas alinhadas com os princiacutepios da Luta Antimanicomial

(Amarante 2008) tais como accedilotildees de qualificaccedilatildeo ao atendimento ndash na perspectiva do cuidado

ndash accedilotildees de articulaccedilatildeo com outras poliacuteticas puacuteblicas e equipamentos construccedilatildeo de termos de

cooperaccedilatildeo e accedilotildees civis puacuteblicas para implementaccedilatildeo e fortalecimento da Rede de Atenccedilatildeo

Psicossocial projetos de capacitaccedilatildeo e de educaccedilatildeo em direitos O papel de profissionais da

psicologia tem sido fundamental neste processo buscando novos e alternativos caminhos neste

campo preocupando-se com a escuta qualificada e a autonomia de usuaacuterias e usuaacuterios atuando

no fortalecimento dos laccedilos sociais e familiares bem como visando potencializar as conexotildees

entre as poliacuteticas puacuteblicas fomentando intervenccedilotildees para que a Defensoria Puacuteblica integre

tambeacutem esta Rede

Outra pesquisa de Doutorado em curso que compotildee o cenaacuterio de interface entre

poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede mental e o campo do Sistema de Justiccedila sobretudo o campo de

garantia de direitos eacute o estudo de uma poacutes-graduanda9 que tambeacutem eacute trabalhadora do

Ministeacuterio Puacuteblico de Satildeo Paulo (MPSP) o qual a exemplo da Defensoria Puacuteblica compotildee o

Sistema de Justiccedila brasileiro e que a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 tem como funccedilatildeo

ldquoa defesa da ordem juriacutedica do regime democraacutetico e dos interesses sociais e individuais

indisponiacuteveisrdquo (Brasil 1988 art 127) Na perspectiva institucional o MPSP inclui accedilotildees que

se direcionam para a efetivaccedilatildeo do projeto societaacuterio democraacutetico atuando tambeacutem no

monitoramento e na avaliaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas assim podendo contar com apoio de

equipes teacutecnicas proacuteprias (eg Goulart 2016) Neste contexto no estado de Satildeo Paulo foi

criado um Nuacutecleo de Assessoria Teacutecnica Psicossocial (NAT) em 2012 em cujo contexto o

trabalho da pesquisadora estaacute inserido

Entre 2012 e 2018 portanto a pesquisadora teve acesso por meio de visitas

institucionais a serviccedilos previstos na Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental Tambeacutem adentrou

outras unidades natildeo configuradas nesta poliacutetica como Instituiccedilotildees de Longa Permanecircncia para

Idosos (ILPI) previstas na poliacutetica de Assistecircncia Social Comunidades Terapecircuticas que

recebem casos sem conexatildeo com o perfil de uso de aacutelcool e outras drogas cliacutenicas particulares

9 Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim

237

serviccedilos sem oficializaccedilatildeo de funcionamento (entendidos como ilegais) deparando-se com

discursos e praacuteticas ainda de caraacuteter manicomial Neste sentido a pesquisa por meio de

narrativas da trabalhadora revela situaccedilotildees de persistentes internaccedilotildees em situaccedilotildees natildeo

parametrizadas que vatildeo no sentido oposto aos contextos da Luta Antimanicomial e de poliacuteticas

de Atenccedilatildeo em Sauacutede Mental que permitem refletir sobre o processo de Reforma Psiquiaacutetrica

frente a avanccedilos retrocessos e sentidos do termo manicomial como ldquometaacutefora de relaccedilotildees de

violecircncia e discriminaccedilatildeo geradoras de exclusatildeo socialrdquo (Scarcelli 1998 p 1)

14 Permanecircncia Estudantil

No campo das poliacuteticas puacuteblicas voltadas agrave educaccedilatildeo superior a pesquisa de Doutorado

ldquoEncontros e desencontros entre o saber popular e o conhecimento acadecircmicordquo10 procura

compreender o percurso das comunidades que adentram a universidade puacuteblica gratuita aleacutem

de analisar papeacuteis que os grupos sociais possuem na permanecircncia de estudantes cotistas Trata-

se de uma pesquisa-accedilatildeo de natureza qualitativa A anaacutelise documental (2000 a 2016) permite

compreender que um conjunto de poliacuteticas puacuteblicas construiu uma expansatildeo da rede de

universidades federais para aleacutem da ampliaccedilatildeo de vagas pautando o desenvolvimento de

territoacuterios (Programa de Aceleraccedilatildeo de Crescimento) e a inclusatildeo de maiorias e minorias sociais

(Brasil 2012)11

Na tese propotildee-se o termo ldquoUniversidades Suleadasrdquo12 para nomear algumas

universidades puacuteblicas federais que surgiram em um movimento de expansatildeo destas

universidades com um projeto poliacutetico-pedagoacutegico pautado num ideaacuterio contra hegemocircnico e

na praacutexis da emancipaccedilatildeo social

Ainda para o caso brasileiro cabe considerar a recente configuraccedilatildeo de novas universidades

puacuteblicas que buscam outro modelo de universidade contra a loacutegica hegemocircnica ainda que

dentro da oficialidade estatal Alguns desses exemplos satildeo a Universidade Federal da Integraccedilatildeo

Latino-Americana (Unila) a Universidade Federal da Integraccedilatildeo Internacional da Lusofonia

Afro-Brasileira (Unilab) a Universidade Federal do Sul da Bahia e a Universidade Federal da

Fronteira Sul (UFFS) esta que inclusive se autodefine como uma universidade popular em

seus documentos de fundaccedilatildeo Sobre essas universidades e o processo de expansatildeo do sistema

puacuteblico brasileiro temos trabalhos de produccedilatildeo recente baseados em pesquisas em andamento

10 Conduzida por Tatiana Alves Romatildeo 11 A Lei nordm 12711 de 29 de agosto de 2012 (Nova Lei de Cotas) conjuga criteacuterios de cotas raciais e de cotas

sociais que altera a questatildeo do acesso agrave educaccedilatildeo superior federal por um mecanismo que ao direcionar o bem

puacuteblico aos menos privilegiados efetivam uma forma de desenvolvimento social de uma maioria historicamente

excluiacuteda de acesso agrave educaccedilatildeo superior (Lei nordm 12711 2012) 12 O termo Universidade Suleada tem em Paulo Freire uma de suas inspiraccedilotildees Freire chama atenccedilatildeo para os

aspectos ideoloacutegicos do termo ldquonortearrdquo e usa a expressatildeo ldquosulearrdquo para referir-se agrave oacutetica do sul agrave construccedilatildeo de

paradigmas alternativos e agrave reinvenccedilatildeo da emancipaccedilatildeo social (Cf Dicionaacuterio Paulo Freire 2008)

238

no projeto Observatoacuterio da Universidade Popular no Brasil (Morris 2016 p 117)

Com base no cenaacuterio apresentado elege-se a Universidade Federal do Sul da Bahia

inaugurada em 2014 para a conduccedilatildeo da pesquisa Esta Universidade pratica uma poliacutetica de

cotas que privilegia indiacutegenas aldeadaos quilombolas e campesinaos do Movimento Sem

Terra

2 Caminhos da investigaccedilatildeo procedimentos e instrumentos utilizados nas pesquisas de

campo

Como jaacute referido haacute uma ampla diversidade metodoloacutegica no campo da Psicologia

Social Tendo meacutetodo como ldquocaminho do pensamentordquo (Minayo 2014) ilustra-se aqui o

desenvolvimento e a construccedilatildeo de possiacuteveis trajetos de investigaccedilatildeo que permitam

compreender efeitos das poliacuteticas puacuteblicas sobre as vidas das pessoas A definiccedilatildeo de desenho

metodoloacutegico bem como a escolha de procedimentos e instrumentos utilizados eacute pautada tanto

pelo campo da pesquisa quanto pelo referencial teoacuterico guiotildees estes que permitem um rigor

que valide os saberes gerados pelas investigaccedilotildees e o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas

comprometidas com diversas necessidades sociais

Diferentes instrumentos e procedimentos foram utilizados nas pesquisas apresentadas

entrevistas narrativas observaccedilatildeo diaacuterio de campo e sociodrama se constituiacuteram como

possibilidades viaacuteveis nas investigaccedilotildees e satildeo apresentados como forma de dar visibilidade a

essas propostas no campo da Psicologia Social

21 Observaccedilatildeo e diaacuterio de campo

As Ciecircncias Sociais haacute muito se utilizam da observaccedilatildeo participante e da etnografia para

a realizaccedilatildeo de pesquisas nas quais se busca conhecer uma realidade diversa daquela da pessoa

que a conduz Nestes trabalhos o uso de diaacuterio de campo ou caderno de campo se fez

fundamental uma vez que nele foram registradas caracteriacutesticas da cultura da realidade do

ldquocampordquo que se punham a conhecer A Psicologia Social pocircde ao longo do tempo se debruccedilar

sobre essas contribuiccedilotildees e tambeacutem se utilizar delas

Comprometidas com uma criacutetica agrave construccedilatildeo do conhecimento positivista e agrave

hegemonia do saber cientiacutefico as pesquisas que se utilizaram desses caminhos metodoloacutegicos

objetivaram ultrapassar a falsa dicotomia entre o pesquisador e o objeto da pesquisa A

ldquopesquisa de campordquo no contexto do grupo de pesquisa aqui mencionado no entanto se realiza

239

menos proacutexima agrave etnografia e mais proacutexima de um ldquose deixar levarrdquo Scarcelli (2012) em sua

pesquisa de Doutorado demonstrou como eacute possiacutevel se apoiar nas ideias pichonianas para

produzir uma investigaccedilatildeo de campo que permita encontros e conversas com o intuito de se

aproximar de uma realidade desconhecida ou conhecer algum aspecto dela em particular

A partir das ideias de Pichon-Riviegravere (2005) eacute possiacutevel acessar processos

intersubjetivos realizando tambeacutem uma constante anaacutelise do mundo interno por quem

investiga Como o autor propotildee deve-se atentar a duas dimensotildees de fenocircmenos presentes neste

processo o observaacutevel (expliacutecito) e as fantasias inconscientes (impliacutecito) As observaccedilotildees em

uma pesquisa de campo que adote esse modo de investigaccedilatildeo entatildeo servem para se questionar

o que se processa no sujeito e nos arranjos e rearranjos grupais Para Pichon

todo processo impliacutecito manifesta-se dentro do campo de observaccedilatildeo pelo surgimento de uma

qualidade nova nesse campo a qual seraacute denominada emergente O emergente destaca-se como

conceito por representar a articulaccedilatildeo possiacutevel entre os acircmbitos da intra e intersubjetividade

(Scarcelli 2002 p 102)

O conceito de emergente representa a articulaccedilatildeo possiacutevel entre os acircmbitos da intra e

intersubjetividade do mundo interno e mundo externo expressa-se por um conjunto de

fantasias inconscientes explicitadas atraveacutes do processo de atribuiccedilatildeo e assunccedilatildeo de papeacuteis

(Pichon-Riviegravere 2005) Trata-se de uma formulaccedilatildeo relacionada agravequele que pode ser

considerado um dos pilares da teoria pichoniana o conceito de porta-voz Porta-voz de um

grupo eacute aquele que em um determinado momento denuncia o acontecer grupal as fantasias

que o movem as ansiedades e necessidades do grupo Natildeo fala por si soacute mas por todo o grupo

pois eacute no porta-voz que se conjugam a verticalidade e horizontalidade grupais (Scarcelli 2012)

Nesse sentido o sujeito porta-voz eacute veiacuteculo de uma qualidade emergente que remete agrave

a dimensatildeo impliacutecita das relaccedilotildees estruturantes do grupo estabelecidas entre seus integrantes

O emergente representa uma nova situaccedilatildeo grupal sendo porta-voz quem explicita as fantasias

inconscientes do grupo (Pichon-Riviegravere 2005) A investigaccedilatildeo feita a partir do grupo indaga o

interjogo entre o intra e o intersubjetivo (mundo interno e mundo externo) considerando-se

entre outros aspectos uma observaccedilatildeo dos modos de interaccedilatildeo simultaneamente agrave formulaccedilatildeo

de hipoacuteteses provisoacuterias acerca dos processos envolvidos nesse interjogo

Na pesquisa que aborda gecircnero realizada na UBS adotou-se a ldquoobservaccedilatildeordquo das

atividades realizadas na e pela instituiccedilatildeo sendo o diaacuterio de campo instrumento primordial para

seu objetivo Neste diaacuterio registravam-se acontecimentos presenciados em campo encontros e

desencontros aquilo que se mostrava significativo para a pesquisa e ao mesmo tempo

sensaccedilotildees ideias vivecircncias internas da proacutepria pesquisadora em campo como frequentemente

240

se faz o observador de grupos operativos tal como teorizado por Pichon-Riviegravere (2005) Para

este autor o mundo interno representa um conjunto de relaccedilotildees sociais internalizadas que

passam do que estaacute fora (mundo externo) para o grupo interno (mundo interno) que se

encontram em permanente interaccedilatildeo Essas relaccedilotildees apresentam-se como objeto da Psicologia

Social da Praacutexis que tem como instrumentos privilegiado de investigaccedilatildeo o grupo que foi

denominado de operativo no qual se investiga o interjogo entre a dimensatildeo psicossocial e a

dimensatildeo sociodinacircmica (Scarcelli 2017) a ldquoobservaccedilatildeo das formas de interaccedilatildeo dos

mecanismos de adjudicaccedilatildeo e assunccedilatildeo de papeacuteisrdquo (Pichon-Riviegravere 2005 p 238) ou das

ldquoformas de interaccedilatildeo que nos conduzem a estabelecer hipoacuteteses acerca de seus determinantesrdquo

(Lema 2008 p 107) Nesse sentido

ter o grupo operativo como instrumento de investigaccedilatildeo natildeo significa constituir um grupo assim

formalizado ou investigar um grupo constituiacutedo a partir do que propotildee a teacutecnica Em outros

termos do grupo operativo decorre um conjunto de conceitos que orientam nosso olhar quando

examinamos situaccedilotildees de maneira geral (Scarcelli 2017 p 192)

Desse modo o diaacuterio de campo tudo incluiacutea informaccedilotildees sobre o local e as pessoas

datas e horaacuterios ocorridos contatos acordos e combinados bem como questotildees subjetivas

reflexotildees acerca do tema da pesquisa e diaacutelogos com leituras que a pesquisadora jaacute havia feito

Todo esse registro formou um diaacuterio de campo de uma experiecircncia vivida

corporalmente nas relaccedilotildees entre pessoas ndash e natildeo com o ldquoobjetordquo de pesquisa ndash assim como

de uma experiecircncia vivida na instituiccedilatildeo com sua (des)organizaccedilatildeo hierarquia cultura e

histoacuteria Portanto os escritos no diaacuterio de campo natildeo representam a realidade externa mas uma

construccedilatildeo na qual a proacutepria pesquisadora participa jaacute que o que eacute selecionado para registro

passa por sua atenccedilatildeo interpretaccedilatildeo vida interna que pode ser teorizada a partir de uma teoria

de grupos concebida no acircmbito da Psicologia Social da Praacutexis (Kazi 2006)

22 Entrevistas

A entrevista como recurso metodoloacutegico eacute entendida acima de tudo como conversa

entre duas ou vaacuterias pessoas interlocutoras tendo como finalidade fornecer informaccedilotildees

pertinentes sobre um objeto de pesquisa (Minayo 2014) Traz informaccedilotildees dos proacuteprios

sujeitos a partir de sua maneira individual de sentir e compreender sua realidade revela crenccedilas

valores condutas maneiras de atuar Bleger (1998) afirma que o campo da entrevista eacute

dinacircmico sendo necessaacuterio considerar (a) quem conduz a entrevista considerando aspectos de

identificaccedilatildeo e contratransferecircncia etc (b) quem eacute a pessoa entrevistada incluindo aqui os

aspectos transferenciais suas defesas e ansiedades etc (c) a relaccedilatildeo interpessoal onde

241

circulam as ansiedades o processo de comunicaccedilatildeo (projeccedilatildeo introjeccedilatildeo identificaccedilatildeo) etc

Isso quer dizer que ateacute pelas condiccedilotildees em que as entrevistas ocorrem devem ser considerados

tanto aspectos formais e objetivos quanto a subjetividade envolvida nesse encontro

Entrevistas foram realizadas nas pesquisas desenvolvidas por este grupo de autoras e

elas aconteciam frequentemente na perspectiva do ldquose deixar levarrdquo que pode se encaminhar agrave

modalidade de encontro previamente marcado e orientado por questotildees previamente definidas

A pesquisa que abordou questotildees de gecircnero em Portugal e no Brasil simultaneamente

encaminhou-se com entrevistas que almejaram obter relatos pessoais a partir de respostas dadas

pelos interlocutores Inicialmente foram propostas entrevistas abertas com toacutepicos sugeridos

e listados num roteiro natildeo riacutegido Ao longo do trabalho foram feitos ajustes para incluir

particularidades natildeo pensadas originalmente a exemplo da existecircncia de uma lei de identidade

de gecircnero no contexto portuguecircs Deste modo em Portugal foi necessaacuterio elaborar um roteiro

de perguntas que partiram de um questionaacuterio semiestruturado enquanto no Brasil as

entrevistas permaneceram abertas tendo como elemento disparador uma uacutenica pergunta Ainda

que no primeiro caso nem todos os toacutepicos listados no roteiro preacutevio tenham sido abordados

as ausecircncias destes tambeacutem puderam fornecer dados relacionadas a relevacircncia de tais questotildees

para cada interlocutor

23 Narrativas

Conforme exposto no toacutepico anterior algumas das pesquisas aqui descritas utilizam

narrativas a partir do resgate de registros em diaacuterio de campo das pesquisadoras que satildeo

tambeacutem trabalhadoras em seu campo de pesquisa Esta escolha se deu fundamentada no

entendimento de que poderaacute ser um modo coerente de acolher diversas formas de manifestaccedilatildeo

das questotildees de sauacutede mental e de como estas se apresentam nas instituiccedilotildees juriacutedicas ou ainda

em relaccedilatildeo a oacutergatildeos que representam direitos e portanto justiccedila Deste modo procura-se

retratar resgatar recolher visibilizar atraveacutes de narrativas os atendimentos visitas reuniotildees

diaacutelogos e demais procedimentos que compotildeem o cotidiano das pesquisadoras A pesquisa

narrativa eacute um instrumento criativo e inovador jaacute consagrado pela Organizaccedilatildeo Mundial de

Sauacutede (OMS)

Em 2003 o Escritoacuterio Regional para a Europa da Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede criou um

serviccedilo de informaccedilatildeo puacuteblica denominado HEN ndash Health Evidence Network Baseado em

ldquoevidecircncias sintetizadasrdquo propotildee ldquoopccedilotildees poliacuteticasrdquo para o desenvolvimento de futuras

recomendaccedilotildees na tomada de decisotildees em sauacutede Entre as sugestotildees figuraram uso de

novos tipos de evidecircncia pesquisa qualitativa e narrativa ampliaccedilatildeo de disciplinas acadecircmicas

242

relacionadas a contextos culturais (Nunes 2018 p 307 grifo nosso)

Este relatoacuterio com recomendaccedilotildees da OMS observa que abordagens altamente

estruturadas minimizam a importacircncia da leitura e da interaccedilatildeo dialoacutegica entre a literatura e a

pesquisadora a continuidade interpretativa e o questionamento a avaliaccedilatildeo criacutetica e a

criatividade o desenvolvimento da argumentaccedilatildeo e da escrita ndash atividades altamente

intelectuais e criativas que buscam originalidade ao inveacutes de replicabilidade Desse modo uma

narrativa seria um relato com um comeccedilo uma sequecircncia de eventos que se desenrolam e um

final A narrativa coloca personagens eventos accedilotildees e contexto juntos para dar sentido a eles

(Nunes 2018)

Segundo esta anaacutelise as histoacuterias satildeo subjetivas e intersubjetivas incorporadas em

praacuteticas institucionais e sociais e convencem natildeo pela sua verdade objetiva mas por sua

semelhanccedila com a vida real e o impacto sobre o leitor ou ouvinte O foco da pesquisa narrativa

estaria em produzir o que nomeia de ldquointerpretaccedilatildeo convincenterdquo destacando que

confiabilidade plausibilidade e criticidade ndash reflexividade questionamento e interpretaccedilotildees

alternativas ndash satildeo fundamentais (Nunes 2018)

O documento tambeacutem aponta que ldquopesquisas narrativas bem conduzidas e analisadas

podem complementar estudos randomizados estudos observacionais e dados coletados

rotineiramente de vaacuterios tiposrdquo (Nunes 2018 p 309) Satildeo recomendados como procedimentos

para garantir criteacuterios cientiacuteficos agrave pesquisa coletar vaacuterias histoacuterias sobre o mesmo assunto

relacionar a histoacuteria a outras fontes como dados biomeacutedicos e estar atenta aos deveres eacuteticos

de honestidade e confidencialidade Desta forma o conteuacutedo das narrativas pode ser o material

disparador para um encontro com o campo de interesse do estudo ilustrando dinacircmicas

(institucionais interpessoais interinstitucionais) relaccedilotildees discursos diaacutelogos accedilotildees

intervenccedilotildees dentre outras descriccedilotildees elementos que podem ser analisados em conjunto com

outras fontes de dados tais como legislaccedilatildeo normativas estatiacutesticas bibliografia e outras

pesquisas

Por fim se por um lado a narrativa eacute considerada como elemento inovador haacute que se

ponderar sobre a criticidade direcionada a esta concepccedilatildeo de fazer e compreender a ciecircncia

desde os trabalhos de Walter Benjamin (1985) e Hannah Arendt (2016) A funccedilatildeo poliacutetica de

narrar eacute resgatada na pesquisa ao se buscar o sentido desta accedilatildeo na composiccedilatildeo da mesma e a

partir dela deixar vir agrave cena aquilo que estava fora do discurso oficial de sucesso da histoacuteria

neste caso para compor o cenaacuterio dos avanccedilos da sauacutede mental no Brasil que como temos

visto vem sendo desconstruiacuteda atualmente sem representaccedilatildeo de resistecircncias que efetivem

243

barras no desmonte

Agraves pesquisas portanto interessam contar dos processos a fim de compor contextos de

estudos quantitativos e outros qualitativos e tambeacutem promover reflexatildeo sobre os restos que

ficam de fora do discurso apenas dos avanccedilos e conquistas para partilhar de experiecircncias no

campo de interface da justiccedila e sauacutede que recolham as contradiccedilotildees e incongruecircncias da

realidade (Critelli 2012) Ficaria a cargo do narrador a transmissatildeo natildeo oficial ou dominante

pois eacute dela que a tradiccedilatildeo natildeo recorda (Gagnebin 2006) e assim do lugar de trabalhadoras do

sistema de justiccedila buscamos narrar o que testemunhamos deste lugar

Assim dialoga-se com Pichon partindo de conceitos que foram trazidos e trabalhados

anteriormente Se quem eacute porta-voz denuncia o acontecer grupal entende-se que as narradoras

tambeacutem promovem esse dizer das realidades nos contextos da interface justiccedila e sauacutede como

accedilatildeo de denuacutencia de um acontecer grupal tendo as realidades narradas surgindo como

emergente de um movimento pela sauacutede mental ndash que compotildee o contexto do direito da poliacutetica

e dos aspectos sociais

24 Sociodrama

O sociodrama eacute um instrumento metodoloacutegico da socionomia que ao ser utilizado como

meacutetodo de pesquisa interventiva permite estabelecer uma relaccedilatildeo dialeacutetica e dialoacutegica com seus

participantes Nesta concepccedilatildeo metodoloacutegica para se manter a coerecircncia com o referencial

filosoacutefico e teoacuterico os sujeitos satildeo convidados a ocupar o papel de co-pesquisadoras ou co-

pesquisadores a respeito da temaacutetica investigada

Moreno13 (1975) introduz o sociodrama como meacutetodo de accedilatildeo na abordagem dos

problemas antropoloacutegicos e culturais

O Conceito subjacente nessa abordagem eacute o reconhecimento de que o homem eacute um inteacuterprete

de papeacuteis que todo e qualquer indiviacuteduo se caracteriza por um certo repertoacuterio de papeacuteis que

dominam o seu comportamento e que toda e qualquer cultura eacute caracterizada por um certo

conjunto de papeacuteis que ela impotildee Para o estudo das inter-relaccedilotildees culturais o procedimento

sociodramaacutetico eacute idealmente adequado especialmente quando duas culturas coexistem em

proximidade fiacutesica e seus membros se encontram respectivamente num processo contiacutenuo de

13 Eacute importante destacar que Jacob Levy Moreno (1892-1974) trouxe agrave teoria do papel no campo da Psicologia e

na criaccedilatildeo do psicodrama quando procurava descrever os processos psiacutequicos que ocorriam neste meacutetodo nascido

do Teatro do Improviso E se ele trouxe contribuiccedilotildees importantes para a Psicologia eacute George Mead quem vai

desenvolver a noccedilatildeo de papel no acircmbito da Psicologia Social e explicar muitos aspectos da vida social por meio

do estudo dos papeacuteis Para ele na mente de cada um de noacutes natildeo soacute assumimos nosso papel como fazemos isso

tambeacutem em relaccedilatildeo ao papel do outro assumindo o papel social de um grupo organizado E foi no estudo de Mead

que Pichon buscou subsiacutedios para a construccedilatildeo de sua Psicologia social histoacuterica e concreta (Scarcelli 2017)

244

interaccedilatildeo e permuta de valores (Moreno 1975 p 413)

Convidou-se agrave vivecircncia de um ato sociodramaacutetico membros dos grupos que constituem

a instituiccedilatildeo os quais vestidos de seus papeacuteis sociais e do papel de co-pesquisadoras e co-

pesquisadores satildeo conduzidos em dramatizaccedilotildees de cenas eleitas e criadas pelo proacuteprio grupo

No sociodrama o grupo eacute ao mesmo tempo autor e ator das histoacuterias representadas

3 Anaacutelise

As pesquisas que apresentamos trazem diferentes questotildees e colocam reflexotildees de

dimensotildees de ordens diversas A partir de uma perspectiva pichoniana quando se tem o grupo

operativo como instrumento de investigaccedilatildeo sempre satildeo analisadas trecircs dimensotildees que natildeo se

separam mas satildeo consideradas como recortes metodoloacutegicos a psicossocial que analisa a parte

do sujeito que se dirige aos diferentes membros que o rodeiam a sociodinacircmica que aborda

diversas tensotildees existentes entre todos os membros que configuram a estrutura do grupo e a

institucional que consiste na investigaccedilatildeo dos grandes grupos (estrutura origem composiccedilatildeo

histoacuteria economia poliacutetica ideologia etc) (Pichon-Riviegravere 2005) Elas representam trecircs

direccedilotildees de anaacutelise na investigaccedilatildeo social e perpassam a discussatildeo desenvolvida nas pesquisas

aqui apresentadas que dialogam com o esquema conceitual referencial e operativo (ECRO) da

formulaccedilatildeo teoacuterica de Pichon-Riviegravere (Scarcelli 2017) Contudo a discussatildeo acerca da

dimensatildeo institucional natildeo tem sido suficientemente desenvolvida em estudos que priorizam a

abordagem psicoloacutegica para se refletir sobre as poliacuteticas puacuteblicas e praacuteticas institucionais

Baseadas nesta hipoacutetese e com o intuito de examinar com mais cuidado tal dimensatildeo

nas pesquisas e no caraacuteter social que elas tecircm lanccedilamos matildeo de outro recorte metodoloacutegico

sugerido por Scarcelli (2017) a partir do diaacutelogo feito com a teoria pichoniana mas que natildeo se

restringe a ela Tal proposta possibilita a identificaccedilatildeo de camadas relacionais que interrogam

questotildees e agregam conhecimento agrave dimensatildeo institucional e sua relaccedilatildeo intriacutenseca com as

dimensotildees psicossocial e sociodinacircmica quando estamos por exemplo diante das poliacuteticas

puacuteblicas e as praacuteticas que delas decorrem14

De acordo com esse recorte compreendem-se quatro acircmbitos distintos O poliacutetico-

juriacutedico refere-se agraves leis normas diretrizes e programas governamentais decorrentes de

definiccedilotildees poliacuteticas o social-cultural aos grupos e sujeitos suas necessidades e demandas no

14 Considerando os limites deste texto natildeo seraacute apresentado com mais detalhes o modo de fazer tal anaacutelise

Discussatildeo mais detalhada encontra-se em Scarcelli (2017)

245

contexto da implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo das poliacuteticas o teoacuterico-conceitual aos fundamentos

teoacutericos e filosoacuteficos assim como as concepccedilotildees que sustentam as praacuteticas leis diretrizes

poliacuteticas e programas e por fim o teacutecnico-assistencial que se refere aos modos de criaccedilatildeo

implantaccedilatildeo implementaccedilatildeo e desenvolvimento de praacuteticas leis diretrizes poliacuteticas e

programas (Scarcelli 2017)

Os acircmbitos estatildeo sempre interligados apoiando a investigaccedilatildeo de problemas que se

encontram na esfera das poliacuteticas puacuteblicas (por exemplo) e podendo ser utilizados como lentes

para adentrar o campo de pesquisa e refletir experiecircncias que satildeo mobilizadas tambeacutem na pessoa

que conduz a pesquisa Neste sentido os acircmbitos pensados como recorte metodoloacutegico

auxiliam o enquadre15 e o desenvolvimento da pesquisa considerando que a experiecircncia de

quem pesquisa estaacute implicada no processo de pesquisar

Os trabalhos das pesquisadoras deste capiacutetulo por exemplo se referem aos setores da

sauacutede e educaccedilatildeo e podem assim indagar sobre diferentes situaccedilotildees que se relacionam aos

acircmbitos propostos no recorte apresentado no campo das poliacuteticas puacuteblicas levantando questotildees

diversas Quais as leis e diretrizes que sustentam os setores da educaccedilatildeo e sauacutede no paiacutes Quais

poliacuteticas governamentais subsidiam as praacuteticas encontradas nas diferentes instituiccedilotildees

estudadas

E como satildeo concretizadas as praacuteticas no cotidiano das instituiccedilotildees que estatildeo prescritas

nas leis e diretrizes que as sustentam Estatildeo alinhadas ou em desalinho com tais poliacuteticas

Como concretizar em praacuteticas o que estaacute sendo proposto legalmente

Quem satildeo os grupos de pessoas que produzem tais praacuteticas Quais seus modos de

expressatildeo seus contextos de vida Mas aleacutem disso quais sujeitos que constituiacuteram as leis e

diretrizes poliacuteticas estudadas Como se organizaram e como realizaram esse trabalho

Haacute concepccedilotildees e referenciais teoacutericos e filosoacuteficos que orientam as praacuteticas nessas

instituiccedilotildees entatildeo quais satildeo eles E quais princiacutepios baseiam a construccedilatildeo das leis diretrizes

e programas que se relacionam a essas praacuteticas Qual a visatildeo de mundo e interesses dos sujeitos

que participaram desse processo

Como proposta de compreensatildeo dos focos que cada acircmbito pode motivar as perguntas

acima referem-se respectivamente aos acircmbitos poliacutetico-juriacutedico teacutecnico-assistencial social-

15 Joseacute Bleger (1984) disciacutepulo de Pichon-Riviegravere propotildee a concepccedilatildeo de enquadre para se aproximar de um

fenocircmeno do qual se toma uma parte de suas relaccedilotildees delimitando o que estaacute presente implicitamente em todas

as indagaccedilotildees cientiacuteficas ou natildeo De acordo com o autor enquadre satildeo as constantes dentro das quais acontece o

processo operando como um organizador psiacutequico Se por um lado o enquadre eacute imprescindiacutevel tambeacutem eacute

essencial que se tenha a criticidade quanto agrave caracteriacutestica de mobilidade do campo)

246

cultural e teoacuterico-conceitual ndash lembrando que satildeo camadas imbricadas podendo ser utilizadas

como recortes metodoloacutegicos que auxiliem na apreensatildeo da realidade sem ignorar suas relaccedilotildees

Uma busca estaacute em indagar sobre as lacunas entre os acircmbitos poliacutetico-juriacutedico e teacutecnico-

assistencial (Scarcelli 2011 2017) O que estaacute proposto em diretrizes leis e programas eacute de

fato concretizado no cotidiano das praacuteticas nas instituiccedilotildees Em muitos aspectos e

circunstacircncias como aqueles captados pelas pesquisas aqui apresentadas pode-se afirmar que

natildeo Mas isso jaacute eacute sentido e conhecido pelos diferentes atores dessas instituiccedilotildees O que se

torna interessante eacute conhecer como isso se daacute e quais as consequecircncias dessa discrepacircncia

tarefa que se torna facilitada pelo uso do recorte metodoloacutegico

Conflitos contradiccedilotildees e ambiguidades que se expressam entre o que se propotildee e o que

se estabelece (Scarcelli 2017) podem assim ser conhecidos Isso se expressou nos objetivos

e no desenvolvimento dos trabalhos das poacutes-graduandas que aqui escrevem

Um exemplo foi a adaptaccedilatildeo do formato das entrevistas de uma das pesquisas bem

como a inclusatildeo de alguns temas inicialmente desconsiderados A necessidade de se discutir

discrepacircncias entre os contextos portuguecircs e brasileiro possibilitou um olhar sobre questotildees

estruturais pautadas no poacutes-colonialismo (Brah 2006) Neste ponto pesaram natildeo apenas as

diferenccedilas entre os dois paiacuteses mas tambeacutem o fato de a pesquisadora em questatildeo ser brasileira

e ter se mostrado preponderante ao realizar a investigaccedilatildeo em Portugal

Jaacute no acircmbito da justiccedila em interface com a execuccedilatildeo da poliacutetica de sauacutede as

contradiccedilotildees satildeo inerentes e revelam campos de disputas diversas inclusive ideoloacutegicas

permitindo que as praacuteticas visualizem diferentes interaccedilotildees possiacuteveis que fogem agraves

regulamentaccedilotildees pactuadas na estrutura legal democraacutetica ndash esta inclusive se consolida em

nuances tambeacutem mais ou menos democraacuteticas como temos presenciado na histoacuteria da aacuterdua

construccedilatildeo da democracia no Brasil ingrediente fundamental ao lanccedilar-se em pesquisas do

universo das poliacuteticas puacuteblicas Os proacuteprios oacutergatildeos de defesa e garantia de direitos acabam por

apresentar diferentes posturas e condutas apesar da lei escrita e pactuada como unidade de

direccedilatildeo pois os inter-jogos vivos no campo social impactam nos movimentos diaacuterios e

institucionais

Nos serviccedilos de sauacutede em contexto nas diversas pesquisas presentes neste capiacutetulo a

diversidade de acesso e atendimento bem como as resoluccedilotildees cotidianas para conflitos e

desafios que se apresentam narram sobre as particularidades que inundam os processos de

relaccedilotildees cotidianas que estatildeo em jogo na execuccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede que satildeo reveladas por

247

meio de diferentes meios de instrumentais metodoloacutegicos e compotildeem o cenaacuterio das pesquisas

Tal configuraccedilatildeo tambeacutem eacute percebida no campo da execuccedilatildeo da poliacutetica de educaccedilatildeo

Consideraccedilotildees finais

O conhecimento que adveacutem das indagaccedilotildees por meio da proposta de recorte

metodoloacutegico dos acircmbitos assim como da proposta em realizar uma criacutetica da vida cotidiana16

pode trazer reflexotildees sobre a construccedilatildeo e implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Desnaturalizar

discriminar analisar desconstruir estereoacutetipos pode ser potente para se questionar sobre quais

instituiccedilotildees e praacuteticas estatildeo sendo produzidas nesta sociedade desigual ndash afinal de que tratam

as poliacuteticas puacuteblicas no Brasil na constante tensatildeo entre a diminuiccedilatildeo da desigualdade social e

na manutenccedilatildeo de um estado de desigualdade harmocircnico

As contribuiccedilotildees da Psicologia Social nesse sentido se referem agrave possibilidade de natildeo

perder de vista a dimensatildeo do sujeito psiacutequico e social Eacute por meio por exemplo das sensaccedilotildees

de impotecircncia de anguacutestia e sofrimento dos sujeitos envolvidos nos processos investigados que

se pode indagar a respeito da dimensatildeo social e institucional que compotildee a formulaccedilatildeo e

implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Se a violecircncia a injusticcedila o manicocircmio o sexismo o

racismo a falta de pertencimento se desvelam nas relaccedilotildees constituiacutedas nos cotidianos da

execuccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas a Psicologia Social nos convida a adentrar este campo com a

ciecircncia do tamanho de sua complexidade bem como da ausecircncia da ineacutercia e da insuficiecircncia

dos pactos convocando a compreensatildeo destes inter-jogos campo-pesquisa poliacutetica puacuteblica-

execuccedilatildeo lei-praacutetica serviccedilo-profissional e pessoa-pessoa

Referecircncias

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16 A psicologia social formulada por Pichon estaacute inscrita em uma criacutetica da vida cotidiana porque aborda o sujeito

imerso em suas relaccedilotildees sociais nas condiccedilotildees concretas de existecircncia ou seja aos modos de produccedilatildeo e

reproduccedilatildeo da existecircncia material de inserccedilatildeo dos sujeitos no processo produtivo Mas na cotidianidade os fatos

satildeo aceitos de forma naturalizada autoevidente sem ao menos serem questionados ou verificados pois eles satildeo

significados como o real por excelecircncia O sistema de representaccedilotildees sociais (ideologias) encobre e distorce o

cotidiano enquanto oculta a essecircncia da vida cotidiana segundo interesses dos setores hegemocircnicos da sociedade

as ideologias tecircm caraacuteter de classe social Sendo assim a reflexatildeo psicoloacutegica deve incluir indagaccedilotildees frente agrave

complexidade das relaccedilotildees que determinam as tramas vinculares e constituiccedilatildeo subjetiva e satildeo por elas

determinadas pois a vida cotidiana reivindica uma criacutetica uma atitude analiacutetica que faccedila frente agrave consciecircncia

ingecircnua indagando as leis que regem a configuraccedilatildeo do sujeito (interjogo necessidadessatisfaccedilatildeo) e as

modalidades de resposta social em cada formaccedilatildeo social concretardquo (Scarcelli 2017 p 217)

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Capiacutetulo 13

Algumas contribuiccedilotildees da Psicologia para o campo da Sauacutede do

Trabalhador

Heloiacutesa Aparecida de Souza

Johanna Garrido Pinzoacuten

Marcia Hespanhol Bernardo

Mariana Pereira da Silva

Introduccedilatildeo

O movimento de reforma sanitaacuteria brasileira e os movimentos operaacuterios que tiveram

seu auge na deacutecada de 1980 ndash periacuteodo de abertura poliacutetica apoacutes 21 anos de ditadura militar ndash

foram essenciais para a elaboraccedilatildeo do capiacutetulo sobre Sauacutede na Constituiccedilatildeo Federal de 1988

que indicou a criaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) Inserido nesse contexto o campo da

Sauacutede do Trabalhador (ST) colaborou com o avanccedilo nas poliacuteticas puacuteblicas de proteccedilatildeo aos

direitos dos trabalhadores Trata-se de um campo composto por saberes teoacutericos e praacuteticos

interdisciplinares ndash incluindo o saber dos trabalhadores ndash que fundamentados nas formulaccedilotildees

da Sauacutede Coletiva e da Medicina Social Latino-americana buscaram superar os limites

epistemoloacutegicos da Medicina do Trabalho e da Sauacutede Ocupacional que eram exercidas nas

empresas (Lacaz 1996) Desse modo seu loacutecus de atuaccedilatildeo foi a sauacutede puacuteblica abrangendo natildeo

apenas o atendimento agravequeles que se acidentam ou adoecem no trabalho mas tambeacutem a

promoccedilatildeo da sauacutede e intervenccedilotildees nos locais de trabalho visando agrave prevenccedilatildeo de acidentes e de

adoecimento dos trabalhadores

Todavia manter e ampliar a atenccedilatildeo agrave sauacutede dos trabalhadores no SUS tem sido um

desafio permanente Se o proacuteprio SUS sempre foi objeto de disputa por empresas privadas de

sauacutede a atuaccedilatildeo da Sauacutede do Trabalhador enfrenta uma seacuterie de obstaacuteculos que impedem sua

plena execuccedilatildeo Como todas as poliacuteticas puacuteblicas a ST eacute proveniente de um conflituoso e

intenso emaranhado de relaccedilotildees sociais econocircmicas e poliacuteticas e de acordo com Di Giovanni

(2009) sua manutenccedilatildeo depende da garantia de direitos agrave dignidade e agrave cidadania e das

articulaccedilotildees organizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees populares

252

Os desafios satildeo ainda mais graves na atualidade brasileira com as aceleradas perdas dos

ainda incipientes direitos conquistados no campo do trabalho Nesse sentido diversos projetos

desfavoraacuteveis aos trabalhadores foram apresentados aos Poderes Executivo e Legislativo

alguns jaacute aprovados e outros em discussatildeo no momento da escrita deste capiacutetulo Entre eles

estaacute a polecircmica ldquoreforma da previdecircnciardquo a Lei 134672017 que alterou a Consolidaccedilatildeo das

Leis do Trabalho (Brasil 2017a) e leis como a 134292017 que possibilita a terceirizaccedilatildeo de

qualquer tipo de atividade (Brasil 2017b)

Lacaz (2019) discute os retrocessos desse conjunto de leis e suas consequecircncias para as

conquistas no acircmbito da sauacutede dos trabalhadores Segundo o autor aleacutem de contribuir com o

aumento do desemprego e do trabalho precaacuterio tais alteraccedilotildees legais provocam mais acidentes

e incapacidades geram maior desgaste da sauacutede fiacutesica e mental dos trabalhadores e

concomitantemente levam ao desmonte das poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede

As caracteriacutesticas do atual contexto brasileiro estabelecidas dentro das margens do

capitalismo global satildeo levadas em conta pela Psicologia Social do Trabalho (Coutinho

Bernardo amp Sato 2017) que assume uma postura criacutetica ao modelo social de trabalho vigente

na atualidade Os profissionais e pesquisadores circunscritos nesse enfoque ndash no qual se incluem

as autoras deste artigo ndash estudam e discutem as implicaccedilotildees poliacuteticas e sociais da relaccedilatildeo

indiviacuteduo-trabalho no contexto social bem como promovem accedilotildees partindo do pressuposto de

que as relaccedilotildees de trabalho satildeo permeadas por assimetrias de poder (Coutinho Bernardo amp

Sato 2017) Portanto sua atuaccedilatildeo ndash em intervenccedilotildees ou em pesquisas ndash inclui uma anaacutelise

abrangente das contradiccedilotildees do trabalho dentro das condiccedilotildees decorrentes de seus processos de

produccedilatildeo particulares Ela tambeacutem valoriza os aspectos subjetivos a partir da perspectiva dos

proacuteprios trabalhadores e assim diferencia-se da relaccedilatildeo que a tradicional Psicologia

Organizacional estabelece com o trabalho (Bernardo Oliveira Souza amp Sousa 2017)

Na sauacutede puacuteblica desse modo as praacuteticas e as pesquisas em Psicologia precisam

abranger prevenccedilatildeo promoccedilatildeo e intervenccedilatildeo na sauacutede integral dos trabalhadores mediante a

problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o adoecimento do trabalhador e sua atividade laboral assim

como a conscientizaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees de trabalho nas quais se encontram Suas

contribuiccedilotildees abrangem os mais diversos niacuteveis do sistema de sauacutede que vatildeo da participaccedilatildeo

em equipes responsaacuteveis pela proacutepria formulaccedilatildeo das poliacuteticas ao atendimento direto a

trabalhadores adoecidos pelo trabalho Deve-se ressaltar que ao longo da histoacuteria no Brasil a

Psicologia com o vieacutes criacutetico com atuaccedilotildees e investigaccedilotildees que valorizavam o diaacutelogo com os

movimentos sociais a classe trabalhadora e os diversos serviccedilos puacuteblicos forneceu importantes

253

contribuiccedilotildees para a constituiccedilatildeo e implementaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas em Sauacutede do

Trabalhador

Considerando os pressupostos dessa exposiccedilatildeo inicial o presente capiacutetulo tem o

objetivo de refletir sobre as contribuiccedilotildees e desafios da participaccedilatildeo da Psicologia nas poliacuteticas

puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador Para isso parte das discussotildees e pesquisas realizadas pelo

grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que desde o ano

de 2009 tem se dedicado agrave anaacutelise das situaccedilotildees de trabalho e sua relaccedilatildeo com a sauacutede dos

trabalhadores em especial a sauacutede mental

Para abordar esse tema comeccedilaremos apresentando algumas reflexotildees sobre as

caracteriacutesticas do trabalho no contexto atual e suas repercussotildees para os trabalhadores

especialmente no que se refere agrave sauacutede que entendemos ser fundamental para a discussatildeo das

poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador e das contribuiccedilotildees da Psicologia agrave temaacutetica

Depois dessas reflexotildees introdutoacuterias seratildeo apresentadas algumas pesquisas de poacutes-graduaccedilatildeo

em Psicologia que colaboram com a construccedilatildeo de conhecimento na aacuterea da sauacutede coletiva e

na atuaccedilatildeo profissional do psicoacutelogo em prol dos direitos dos trabalhadores

1 Reflexotildees sobre as caracteriacutesticas do trabalho no contexto atual e suas consequecircncias

para os trabalhadores

Iniciamos lembrando que o trabalho possui um significado maior do que o ato de exercer

uma atividade ou de vender a forccedila de trabalho por uma remuneraccedilatildeo Existe tambeacutem uma

representaccedilatildeo social do trabalho como fator de integraccedilatildeo reconhecimento e cooperaccedilatildeo

Segundo Antunes (1998) ldquoO ato de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana realiza-se pelo

trabalho E a partir do trabalho em sua cotidianidade que o homem torna-se ser social

distinguindo-se de todas as formas natildeo humanasrdquo (Antunes 1998 p 121) Todavia sob o

capitalismo em vez de favorecer a humanizaccedilatildeo e a socializaccedilatildeo com frequecircncia ele se torna

nocivo aos trabalhadores

A busca inerente ao capitalismo pela maior acumulaccedilatildeo do lucro leva agrave intensificaccedilatildeo

do trabalho e consequentemente agrave fragilizaccedilatildeo da sauacutede dos trabalhadores Aspectos relativos

agrave organizaccedilatildeo do trabalho tais como a carga e o ritmo do trabalho o conteuacutedo das tarefas a

duraccedilatildeo da jornada a hierarquizaccedilatildeo estabelecida o trabalho em turnos e o controle na

produccedilatildeo desencadeiam desgastes fiacutesicos e psiacutequicos dos trabalhadores o que favorece o

sofrimento e os processos de adoecimento

254

Nesse sentido Lacaz (2007) faz referecircncia ao ldquoprocesso de trabalhordquo no qual se

inscrevem as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo estabelecidas a fim de ressaltar a determinaccedilatildeo

social e histoacuterica na compreensatildeo das relaccedilotildees trabalho e sauacutede-doenccedila O autor afirma

Importa entatildeo desvendar a nocividade do processo de trabalho sob o capitalismo e suas

implicaccedilotildees alienaccedilatildeo sobrecarga eou subcarga pela interaccedilatildeo dinacircmica de ldquocargasrdquo sobre os

corpos que trabalham conformado um nexo biopsiacutequico que expressa o desgaste impeditivo da

fluiccedilatildeo das potencialidades e da criatividade (Lacaz 2007 p 759-760)

O capitalismo tem sua trajetoacuteria marcada por diversos periacuteodos de expansatildeo e retraccedilatildeo

aleacutem de transformaccedilotildees na organizaccedilatildeo do trabalho e consequentemente dos trabalhadores

Uma das caracteriacutesticas mais significativas na contemporaneidade diz respeito agrave instauraccedilatildeo de

um modo de produccedilatildeo conhecido como ldquoregime de acumulaccedilatildeo flexiacutevelrdquo (Harvey 2011) O

aumento da competiccedilatildeo internacional em um periacuteodo de mudanccedilas e incertezas obrigou os

Estados capitalistas a favorecerem o ambiente dos negoacutecios facilitando e motivando a

introduccedilatildeo de novas alternativas de produccedilatildeo caracterizadas por uma maior flexibilidade dos

mercados pela mobilidade geograacutefica e pelo estabelecimento de raacutepidas mudanccedilas nas praacuteticas

de consumo (Antunes 1998 Bauman 1999) Ante essas imposiccedilotildees o regime de acumulaccedilatildeo

flexiacutevel tambeacutem introduz alteraccedilotildees significativas nos modelos da organizaccedilatildeo do trabalho e

nas relaccedilotildees trabalhistas com a finalidade (e a necessidade) de conter a forccedila dos trabalhadores

Isso configurou um novo contexto nas relaccedilotildees de trabalho no qual prevaleceu uma

caracteriacutestica em particular que se pode denominar flexibilidade laboral (Antunes 2005

Harvey 2011)

Essas transformaccedilotildees implicaram expressiva reduccedilatildeo do nuacutemero de trabalhadores

formais em empresas em paralelo agrave crescente ampliaccedilatildeo da informalidade e do desemprego Do

mesmo modo conveacutem destacar que as transformaccedilotildees ocorridas incluem desregulamentaccedilatildeo

terceirizaccedilatildeo e precarizaccedilatildeo do trabalho Um exemplo recente eacute o crescimento vertiginoso de

formas de trabalho relacionadas ao uso de tecnologias que vecircm sendo denominadas de

ldquouberizaccedilatildeordquo (Abiacutelio 2017) as quais oferecem situaccedilatildeo desprotegida insegura e muitas vezes

degradante ao trabalhador

Tal contexto impotildee grandes desafios aos trabalhadores tais como o cumprimento das

diversas exigecircncias cotidianas o envolvimento com a concorrecircncia do mercado a

aprendizagem constante das novas tecnologias o saber agir diante de um contexto em frequente

transformaccedilatildeo e vivecircncia de incerteza com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo de trabalho Desse modo a sauacutede

mental dos trabalhadores tambeacutem sofre um processo de desgaste

255

Franco Druck e Seligmann-Silva (2010) mencionam a identificaccedilatildeo de um conjunto de

transtornos mentais associados a condiccedilotildees precaacuterias de trabalho entre os quais se encontram

estresse depressatildeo esgotamento profissional (Burnout) estresse poacutes-traumaacutetico (TEPT) e a

dependecircncia de bebidas alcooacutelicas e a outras substacircncias psicoativas O psiquiatra francecircs Louis

Le Guillant (2006) foi um dos pioneiros nos estudos sobre a influecircncia do trabalho no

adoecimento mental Seu estudo sobre as telefonistas realizado na deacutecada de 1950 evidenciou

os efeitos nocivos para a sauacutede da intensificaccedilatildeo do trabalho e do controle exercido pelo poder

hieraacuterquico O autor expotildee que a organizaccedilatildeo do trabalho eacute a responsaacutevel por constrangimentos

pressotildees ou imposiccedilotildees que desorganizam o equiliacutebrio psicofisioloacutegico e mental dos

trabalhadores (Le Guillant 2006) A esse respeito Sato e Bernardo (2005) acrescentam que os

problemas reconhecidos por Le Guillant natildeo soacute continuam se reproduzindo na atualidade como

tambeacutem se ampliam com a intensificaccedilatildeo do trabalho e a sofisticaccedilatildeo do controle possibilitada

pelos avanccedilos tecnoloacutegicos

Assim ao abordar as grandes transformaccedilotildees sofridas pelo trabalho observa-se que

aleacutem de acentuarem ainda mais as desigualdades e a injusticcedila social presentes em nossa

sociedade trazem outras formas de sofrimento e adoecimento mais complexas e sutis

sobretudo do ponto de vista da sauacutede mental relacionada ao trabalho Vale enfatizar ainda que

tal quadro natildeo afeta apenas os trabalhadores formais do setor privado Os efeitos atingem toda

a classe-que-vive-do-trabalho (Antunes 1998) que abarca inclusive aqueles que natildeo

conseguem trabalho Daiacute a importacircncia de poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede dos

trabalhadores e do compromisso da Psicologia com tais poliacuteticas

2 Poliacuteticas Puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador Breve apanhado histoacuterico e contribuiccedilotildees

da Psicologia

A Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Trabalhador e da Trabalhadora tem como principais

objetivos o fortalecimento da Vigilacircncia em Sauacutede do Trabalhador a promoccedilatildeo de ambientes e

processos de trabalhos saudaacuteveis a garantia de integralidade na atenccedilatildeo agrave sauacutede dos

trabalhadores a ampliaccedilatildeo do entendimento de que a sauacutede do trabalhador deve ser concebida

como uma accedilatildeo transversal a incorporaccedilatildeo da categoria trabalho como determinante do

processo sauacutede-doenccedila dos indiviacuteduos e da coletividade a garantia de que a identificaccedilatildeo da

situaccedilatildeo do trabalho dos usuaacuterios seja considerada nas accedilotildees e serviccedilos de sauacutede assegurando

desse modo maior qualidade da atenccedilatildeo agrave sauacutede dos trabalhadores usuaacuterios do SUS (Brasil

2012)

256

Apesar de amplas e promissoras tal poliacutetica permanece cercada de fragilidades e como

discutido anteriormente sofre intensas ameaccedilas na atualidade Ela eacute oriunda de um longo

processo de organizaccedilatildeo e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores que comeccedilou a ser debatida de

forma mais estruturada na deacutecada de 1980 com forte influecircncia da Medicina Social Latino-

americana e do Movimento Operaacuterio Italiano Configura-se assim como uma das importantes

conquistas sociais presentes na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 (Lacaz 2007)

As raiacutezes das poliacuteticas puacuteblicas em ST satildeo criacuteticas e engajadas com os interesses e

participaccedilatildeo da classe trabalhadora Costa Lacaz Jackson Filho e Vilela (2013) afirmam que

se trata de um campo interdisciplinar plurinstitucional integrado agrave Sauacutede Coletiva e voltado

para a promoccedilatildeo prevenccedilatildeo e a assistecircncia aos trabalhadores privilegiando o seu protagonismo

e compreendendo a sauacutede-doenccedila como processo dinacircmico histoacuterico coletivo e com possiacuteveis

relaccedilotildees com o trabalho

A efetiva implantaccedilatildeo da ST no acircmbito da sauacutede puacuteblica ganhou relevacircncia na deacutecada

de 1990 quando a Lei Orgacircnica da Sauacutede regulamentou o SUS destacando accedilotildees de vigilacircncia

e atenccedilatildeo agraves condiccedilotildees de trabalho e seus impactos na sauacutede dos trabalhadores (Brasil 1990)

Posteriormente foram instituiacutedos os Centros de Referecircncia em Sauacutede do Trabalhador

(CERESTs) Sato Lacaz e Bernardo (2006) afirmam que no processo da reforma sanitaacuteria

ocorrida no Brasil na deacutecada de 1980 a Psicologia contribuiu para a efetivaccedilatildeo da Sauacutede do

Trabalhador colaborando por exemplo com a elaboraccedilatildeo de diretrizes com o

desenvolvimento de novas propostas de atendimento psicossocial (Sato Arauacutejo Udihara

Franco Nicotera Daldon Settimi e Silvestre 1993) e de accedilotildees de vigilacircncia em sauacutede (Sato amp

Bernardo 1995)

Segundo o documento produzido pelo Centro de Referecircncia Teacutecnica em Psicologia e

Poliacuteticas Puacuteblicas (Conselho Federal de Psicologia 2008) os psicoacutelogos que atuam na Sauacutede

do Trabalhador satildeo convidados a contribuir com a reflexatildeo sobre as vivecircncias desencadeadas

pelos aspectos da organizaccedilatildeo dos processos e das situaccedilotildees de trabalho existentes na

atualidade e a compreender as possiacuteveis repercussotildees desses elementos sobre a sauacutede dos

trabalhadores O documento destaca a importacircncia do psicoacutelogo na defesa da sauacutede dos

trabalhadores ao afirmar que no ldquoacircmbito do SUS o campo da sauacutede mental e trabalho encontra

nos psicoacutelogos importante base teacutecnica de sustentaccedilatildeordquo (Conselho Federal de Psicologia 2008

p 23) e ressalta a contribuiccedilatildeo da Psicologia na compreensatildeo da subjetividade do trabalhador

das vivecircncias de sofrimento no trabalho e das patologias provocadas ou agravadas pelo trabalho

257

A diferenccedila do olhar do psicoacutelogo em relaccedilatildeo a outros profissionais da sauacutede em nossa

concepccedilatildeo eacute que esse profissional recebe uma formaccedilatildeo que indiferente da perspectiva teoacuterica

prioriza a atenccedilatildeo agrave subjetividade e esse enfoque eacute essencial quando o assunto eacute a sauacutede mental

A Psicologia pode contribuir tambeacutem para a compreensatildeo dos sentidos atribuiacutedos ao trabalho

na atualidade para a anaacutelise das dinacircmicas intersubjetivas que ocorrem nos ambientes do

trabalho para o entendimento das defesas psiacutequicas adotadas pelos trabalhadores entre outras

articulaccedilotildees possiacuteveis de se estabelecer entre a atividade e o sujeito trabalhador Contudo essa

atenccedilatildeo agrave subjetividade por parte do psicoacutelogo natildeo pode se dar de forma individualizante e

descontextualizada Apesar de haver um leque de possibilidades natildeo eacute possiacutevel indicar uma

receita preacute-estabelecida para os fazeres do psicoacutelogo do sistema puacuteblico de sauacutede na defesa da

sauacutede mental dos trabalhadores

O principal aspecto que pode ser destacado na pesquisa e na praacutetica psicoloacutegica em

Sauacutede do Trabalhador eacute o compromisso com os interesses da classe trabalhadora e o

cumprimento do coacutedigo de eacutetica da profissatildeo que sintetiza as accedilotildees dos profissionais de forma

a atender as demandas sociais e valorizar a dignidade humana Vale lembrar alguns dos

princiacutepios fundamentais do coacutedigo de conduta eacutetica

I O psicoacutelogo basearaacute o seu trabalho no respeito e na promoccedilatildeo da liberdade da dignidade da

igualdade e da integridade do ser humano apoiado nos valores que embasam a Declaraccedilatildeo

Universal dos Direitos Humanos

II O psicoacutelogo trabalharaacute visando promover a sauacutede e a qualidade de vida das pessoas e das

coletividades e contribuiraacute para a eliminaccedilatildeo de quaisquer formas de negligecircncia discriminaccedilatildeo

exploraccedilatildeo violecircncia crueldade e opressatildeo

III O psicoacutelogo atuaraacute com responsabilidade social analisando criacutetica e historicamente a

realidade poliacutetica econocircmica social e cultural (Conselho Federal de Psicologia 2005 p 07)

Natildeo eacute simples manter esse compromisso em um cenaacuterio de banalizaccedilatildeo das injusticcedilas

sociais e de ataques aos direitos dos indiviacuteduos Sem duacutevida as profundas mudanccedilas nas

relaccedilotildees de trabalho das uacuteltimas deacutecadas e o alarmante crescimento do desgaste mental dos

trabalhadores apresentam novos e maiores desafios aos psicoacutelogos em especial aos que estatildeo

inseridos na Sauacutede Puacuteblica Todavia como destaca Parker (2014) os inuacutemeros embates sociais

apresentados agrave Psicologia na atualidade natildeo podem ser considerados de forma negativa e sim

devem ser encarados como sinais de forccedila ao proporcionarem a possibilidade de accedilotildees que

promovam a transcendecircncia dos pensamentos cristalizados por meio de praacuteticas experiecircncias

e teacutecnicas que contribuam com o rompimento da alienaccedilatildeo da populaccedilatildeo almejando a

emancipaccedilatildeo do ser humano

Ao escrever sobre a atuaccedilatildeo da Psicologia na sociedade latino-americana em sua

claacutessica obra ldquoO papel do psicoacutelogordquo Martiacuten-Baroacute (1996) tambeacutem eacute enfaacutetico ao afirmar que o

258

objetivo da praacutetica desse profissional em qualquer aacuterea deve ser em primeiro lugar o de

colaborar com o processo de conscientizaccedilatildeo da populaccedilatildeo Em outro momento ao falar

especificamente do trabalho o autor destaca a importacircncia de os psicoacutelogos verem os

trabalhadores natildeo como ldquoobjetos mas como sujeitos sociaisrdquo (Martiacuten-Baroacute 2014 p 621) e

especificamente com relaccedilatildeo agrave sauacutede mental dos trabalhadores afirma que esse conceito deve

ser revisto ldquoagrave luz da totalidade poliacutetica e natildeo de uma consideraccedilatildeo puramente individualista e

tecnocraacuteticardquo (Martiacuten-Baroacute 2014 p 621) Desse modo o saber do psicoacutelogo deve estar

a serviccedilo da construccedilatildeo de uma sociedade em que o bem-estar dos menos natildeo se faccedila sobre o

mal estar dos mais em que a realizaccedilatildeo de alguns natildeo requeira a negaccedilatildeo dos outros em que o

interesse de poucos natildeo exija desumanizaccedilatildeo de todos (Martiacuten-Baroacute 1996 p 23)

Reiteramos que uma forma de se alcanccedilar essa atuaccedilatildeo comprometida eacute por meio do

investimento na formaccedilatildeo criacutetica incentivando a reflexatildeo sobre a realidade social desde a

graduaccedilatildeo dos novos profissionais mantendo-a na formaccedilatildeo permanente Aleacutem disso os

pressupostos do campo da Sauacutede do Trabalhador precisam ser amplamente divulgados entre os

profissionais de sauacutede incluindo os psicoacutelogos

Considerando essa realidade apresentamos a seguir pesquisas realizadas pelo grupo

ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que buscaram analisar

diferentes situaccedilotildees de trabalho e sua relaccedilatildeo com a sauacutede dos trabalhadores Entendemos que

essa apresentaccedilatildeo possibilita o compartilhamento de compreensotildees e atuaccedilotildees criacuteticas de

psicoacutelogos em interface com as Poliacuteticas Puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador

3 Pesquisas de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia ndash Grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual

Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo

Os estudos realizados no Grupo de Pesquisa aqui apresentado se centraram

principalmente na construccedilatildeo de conhecimento nas aacutereas da Psicologia Social e da Sauacutede do

Trabalhador e na investigaccedilatildeo da atuaccedilatildeo profissional do psicoacutelogo em prol dos direitos e da

sauacutede dos trabalhadores em diversos segmentos da sociedade Essas pesquisas partiram de uma

releitura teoacuterica e metodoloacutegica da praacutetica da busca pela ampliaccedilatildeo dos conhecimentos sobre

a relaccedilatildeo entre sauacutede e trabalho e da necessidade de privilegiar o olhar e a participaccedilatildeo dos

trabalhadores bem como o reconhecimento de sua subjetividade nos diversos contextos de

trabalho implicando portanto um olhar criacutetico sobre os aspectos micro e macrossociais que

configuram o mundo do trabalho Mesmo que muitas delas natildeo tenham focalizado

259

especificamente as poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador entendemos que o

conhecimento construiacutedo colabora para o desenvolvimento desse campo

Com meacutetodos qualitativos1 baseadas no enfoque da Psicologia Social do Trabalho

(Coutinho Bernardo amp Sato 2017) e na compreensatildeo do Desgaste Mental (Seligmann-Silva

2011) foram desenvolvidas 40 pesquisas2 entre pesquisas-docente doutorados mestrados e

iniciaccedilotildees cientiacuteficas que deram origem a diversos artigos trabalhos completos capiacutetulos de

livros e outras produccedilotildees Abaixo apresentamos um quadro com as pesquisas realizadas pelo

grupo

Quadro 1 ndash Trabalhos produzidos pelo Grupo de Pesquisa ao longo de seu desenvolvimento

Ord Tiacutetulo da pesquisa Ano Modalidade Pesquisador(a)

1 Possibilidades de enfrentamento do desgaste

mental relacionado ao trabalho no acircmbito

das poliacuteticas puacuteblicas

2016-

2019

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)3

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Joyce Cristina Rodrigues Samuel de Medeiros Barreto

Rocircmulo Lopes da Silva

2 Relaccedilatildeo entre sauacutede mental e trabalho uma

anaacutelise das concepccedilotildees de profissionais de

sauacutede puacuteblica e de sindicalistas

2014-

2016

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Natasha Contro de Souza Fernando Garcia Silva

Edna Regina Verri Thiago Girardi de Andrade Mariana Pereira da Silva

3 A relaccedilatildeo entre psicologia e trabalho no

contexto contemporacircneo 2012-

2015

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Ramon Arauacutejo Silva Paulo Canheti Bertoni

Pedro Henrique Bedin Affonso Marcela Spinardi Cintra

Faacutebio Frazatto Verde

4

O capitalismo organizacional em

universidades e hospitais puacuteblicos no

contexto brasileiro

2009-

2012

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Faacutebio Frazatto Verde Ana Carolina Florence Barros Pedro Henrique Bedin Affonso

1 As opccedilotildees metodoloacutegicas variaram de acordo com o contexto e o objetivo da pesquisa Assim realizou-se

etnografias entrevistas abertas pesquisas-intervenccedilatildeo anaacutelise de histoacuterias de vida entre outras 2 As pesquisas foram desenvolvidas no programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Psicologia da PUC-

Campinas ao longo dos anos de 2009 a 2018 e foram orientadas pela professora doutora Marcia Hespanhol

Bernardo 3 Cada uma das pesquisas-docente envolveu tambeacutem diversos trabalhos de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica totalizando 17

260

5 Sauacutede Mental Relacionada ao Trabalho na

rede puacuteblica de sauacutede brasileira concepccedilotildees

e atuaccedilotildees transformadoras 2017 Doutorado Heloisa Aparecida de Souza

6 Vivecircncias de trabalhadores da sauacutede frente agrave

loacutegica capitalista um estudo da atenccedilatildeo

baacutesica na Colocircmbia e no Brasil 2016 Doutorado Johanna Garrido Pinzoacuten

7 Quantas vidas vive um trabalhador

Trabalho e cultura popular 2016 Doutorado Sandra Bull

8 Sem-terra com terra contradiccedilotildees e

potencialidades na organizaccedilatildeo social e

produtiva de assentamentos rurais 2016 Doutorado Caroline Cristiane de Sousa

9 O sonho que se tornou pesadelo a vivecircncia

de um grupo de trabalhadores da induacutestria

automobiliacutestica 2018 Mestrado Mariana Pereira da Silva

10 Caiu no meu iacutentimo repercussotildees dos

acidentes de trabalho na vida dos

trabalhadores 2018 Mestrado Juliana Lopes da Silva

11 Campo abstrato para um destino concreto O

fazer do psicoacutelogo como perito na justiccedila do

trabalho 2018 Mestrado Natasha Contro de Souza

12 Possibilidades de interface entre a atuaccedilatildeo

do psicoacutelogo na Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS e a

Psicologia Social 2017 Mestrado Marcela Spinardi Cintra

13

Vivecircncias de imigrantes latino-americanos

na Regiatildeo Metropolitana de Campinas

estudo de casos pela perspectiva da

Psicologia Social

2017 Mestrado Maria Manuela C Manaia

14 O poder de agir de trabalhadoras da

Assistecircncia Social no contexto neoliberal 2015 Mestrado Fabiano Galbiatti

15 A sauacutede mental e a (re)organizaccedilatildeo do

trabalho docente trabalho coletivo e poder

de agir 2015 Mestrado Eduardo Alessandro Kawamura

16 Vida de caminhoneiro sofrimento e paixatildeo 2015 Mestrado Ramon Arauacutejo Silva

17 O processo de consciecircncia em um

movimento de trabalhadores na luta pela

sauacutede 2013 Mestrado Daniel Luca Dassan da Silva

18 Humilhaccedilatildeo social no trabalho o caso das

advogadas negras 2013 Mestrado Rosana Antoniaci Platero

19 Representaccedilotildees Sociais de Trabalhadores

Acidentados sobre o retorno ao trabalho 2012 Mestrado Luciana de Souza Garbin

20 Os Desafios do Trabalho na Vida Cotidiana

de Mulheres Transexuais 2012 Mestrado Heloisa Aparecida de Souza

21 Trabalho e Sofrimento as narrativas de

alguns psicanalistas 2011 Mestrado Francisco Capoulade Nogueira

22

Relaccedilotildees cotidianas contradiccedilotildees e

articulaccedilotildees entre movimentos sociais um

estudo sobre a Flaskocirc e a Vila Operaacuteria e

Popular

2011 Mestrado Caroline Cristiane de Sousa

261

23 Histoacuterias de trabalho e outras histoacuterias no

trecho 2010 Mestrado Sandra Bull

Tais pesquisas revelam que existem inuacutemeras possibilidades de atuaccedilatildeo da Psicologia

em interface com o tema da sauacutede do trabalhador Diante da atual ameaccedila de desmonte do

sistema puacuteblico de sauacutede e de intensificaccedilatildeo da precarizaccedilatildeo social e do trabalho esses estudos

evidenciam a necessidade de conhecer a realidade dos trabalhadores de compreender com

clareza a relaccedilatildeo entre trabalho e adoecimento e de incentivar praacuteticas que busquem a promoccedilatildeo

da sauacutede integral da populaccedilatildeo

De forma geral as pesquisas buscaram o acesso ao cotidiano de trabalho por meio do

olhar dos proacuteprios trabalhadores pois satildeo eles os que vivenciam diariamente o trabalho em seus

muacuteltiplos processos O entendimento dos trabalhadores enquanto protagonistas tem como

principal referecircncia o Movimento Operaacuterio Italiano (Oddone Marri Gloria Briante Chiatella

amp Re 1986) Nessa perspectiva compreende-se que satildeo os trabalhadores que vivenciam o

trabalho e portanto seu conhecimento deve ter tanto valor quanto o conhecimento teacutecnico dos

profissionais de sauacutede Os psicoacutelogos pesquisadores assim valorizam e acessam as histoacuterias

dos participantes por meio de seus relatos e compartilhamento de experiecircncias de suas

realidades

Tendo entatildeo como principal foco a vivecircncia dos trabalhadores e sua relaccedilatildeo com a

sauacutede as pesquisas citadas no Quadro 1 focalizaram diversas situaccedilotildees e contextos Buumlll (2010)

por exemplo analisou a vivecircncia de trabalho de pessoas em situaccedilatildeo de rua e Sousa (2016) a

de moradores de assentamentos populares Pessoas viacutetimas de preconceitos e exclusatildeo social

no acircmbito do trabalho tambeacutem foram foco de investigaccedilotildees como as mulheres transexuais

(Souza 2012) e as advogadas negras (Platero 2013) bem como foram analisadas as

perspectivas de importantes atores sociais no campo da Sauacutede do Trabalhador como operadores

de Direito (Souza 2018) e psicanalistas (Nogueira 2011) Houve ainda pesquisas sobre as

repercussotildees de acidentes de trabalho na vida dos trabalhadores (Silva 2018 Garbiacuten 2012)

condiccedilotildees de trabalho de motoristas caminhoneiros (Silva 2015) imigrantes (Manaia 2017)

educadores (Kawamura 2015) e relaccedilatildeo entre cultura popular e trabalho (Buumlll 2016) Esses

exemplos demonstram como pesquisas com o olhar da Psicologia Social do Trabalho podem

auxiliar na compreensatildeo das muacuteltiplas realidades laborais oferecendo subsiacutedios para o

desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador

262

Considerando os limites deste capiacutetulo apresentaremos aqui com mais profundidade

trecircs dessas pesquisas por considerar que oferecem contribuiccedilotildees mais especiacuteficas agraves poliacuteticas

puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador A primeira focaliza diferentes sistemas de sauacutede na Ameacuterica

Latina (Garrido-Pinzoacuten 2016) outra relata uma intervenccedilatildeo-pesquisa grupal com trabalhadores

de uma induacutestria automobiliacutestica que manifestavam adoecimento fiacutesico e mental (Silva 2018)

e a terceira visou agrave anaacutelise das concepccedilotildees e as accedilotildees de trabalhadores do Sistema Uacutenico de

Sauacutede (SUS) no enfrentamento dos agravos agrave sauacutede mental do trabalhador (Souza 2017)

Apesar de partirem dos mesmos pressupostos trata-se de pesquisas com estruturas

meacutetodos e objetivos bastante distintos que datildeo luz a diferentes nuances da relaccedilatildeo entre

trabalho e sauacutede Por isso natildeo buscamos apresentaacute-las de forma homogecircnea e sim nos

empenhamos para trazer os aspectos mais relevantes de cada uma respeitando sua proacutepria

estrutura de modo a mostrar a riqueza de possibilidades de pesquisa criacuteticas em Psicologia

Social do Trabalho no campo das poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador

31 Vivecircncias de trabalhadores da sauacutede frente agrave loacutegica capitalista um estudo da Atenccedilatildeo

Baacutesica na Colocircmbia e no Brasil (Garrido-Pinzoacuten 2016)

A primeira pesquisa a ser apresentada realizada no periacuteodo de 2012 a 2016 teve como

objetivo principal compreender as vivecircncias de trabalhadores da Atenccedilatildeo Baacutesica dos Sistemas

Puacuteblicos de Sauacutede da Colocircmbia e do Brasil frente agrave loacutegica capitalista mediante a estrateacutegia

metodoloacutegica de entrevistas reflexivas em profundidade Sendo a pesquisadora uma

colombiana radicada no Brasil ela teve interesse em estudar esses contextos de trabalho no

setor da sauacutede puacuteblica nos dois paiacuteses buscando identificar possiacuteveis similaridades eou

diferenccedilas entre os cenaacuterios antagocircnicos o sistema colombiano criado nas esferas

governamentais com uma marcada influecircncia privatista jaacute haacute trecircs deacutecadas e o sistema

brasileiro uma importante conquista dos movimentos sociais que vem sofrendo ataques

visando seu desmonte na esfera puacuteblica

Um dos pressupostos centrais foi que o conhecimento das vivecircncias dos servidores

puacuteblicos da sauacutede nos dois contextos poderia ajudar cada uma das partes a melhorar a

compreensatildeo de sua proacutepria realidade e provavelmente definir novas perspectivas para lidar

com os efeitos negativos da precarizaccedilatildeo e flexibilizaccedilatildeo laboral A experiecircncia do sistema de

sauacutede da Colocircmbia foi considerada uma referecircncia para a anaacutelise das repercussotildees da ideologia

neoliberal nos trabalhadores do SUS

263

Nesse sentido o estudo destacou que as caracteriacutesticas dos modelos de gerenciamento

flexiacutevel tecircm sido introduzidas no setor puacuteblico nas uacuteltimas deacutecadas em diversos paiacuteses

determinando os dispositivos de regulaccedilatildeo social das relaccedilotildees de trabalho em funccedilatildeo da loacutegica

da economia de mercado sem levar em consideraccedilatildeo a qualidade dos serviccedilos prestados e a

sauacutede dos trabalhadores Trata-se daquilo que Blanch-Ribas (2007) denomina ldquocapitalismo

organizacionalrdquo Nesse contexto os funcionaacuterios puacuteblicos passam a ser submetidos a uma nova

forma de organizaccedilatildeo do trabalho muito similar agrave do setor privado com aumento da carga e do

ritmo de trabalho o qual eacute medido pela quantidade de serviccedilos prestados Em meio a esse

quadro de intensificaccedilatildeo da produccedilatildeo e redirecionamento do sentido do trabalho aparecem

tensotildees psicossociais em niacutevel individual e institucional (Gaulejac 2007) Eacute preciso pontuar

que em sistemas de sauacutede embasados em diretrizes neoliberais como o da Colocircmbia a ecircnfase

na produtividade conduz necessariamente agrave adoccedilatildeo de novas formas de organizaccedilatildeo do

trabalho nas quais prevalece o individualismo a competiccedilatildeo o estabelecimento de metas de

produccedilatildeo e o excessivo controle do gasto que satildeo caracteriacutesticas de empresas privadas em

detrimento das necessidades da populaccedilatildeo atendida

A pesquisa tambeacutem revelou que em ambos os paiacuteses as principais vivecircncias dos

profissionais da sauacutede determinadas pela loacutegica neoliberal estatildeo relacionadas com as

transformaccedilotildees introduzidas nas condiccedilotildees relaccedilotildees e organizaccedilatildeo do trabalho No contexto

colombiano estudado a origem das problemaacuteticas centrais apresentadas pelos entrevistados foi

identificada no processo de transiccedilatildeo induzido pela reforma realizada em 1993 que constituiu

seu atual sistema de sauacutede Essas problemaacuteticas se traduzem essencialmente na deterioraccedilatildeo

das relaccedilotildees com os usuaacuterios bem como na configuraccedilatildeo das equipes de trabalho marcadas

pelo contraste entre pessoas com diferentes viacutenculos empregatiacutecios Esta uacuteltima condiccedilatildeo

empecilho para a coesatildeo dos grupos de trabalho tambeacutem eacute observada no contexto brasileiro

pesquisado como produto da terceirizaccedilatildeo que parece ter se tornado um efetivo mecanismo

para enfraquecer o SUS facilitar seu desmonte e colocaacute-lo no mesmo caminho atualmente

percorrido pelo sistema de sauacutede colombiano

Ainda foi encontrado que nos dois cenaacuterios estudados tal panorama de precariedade do

trabalho permeado pela instabilidade intensificaccedilatildeo e sobrecarga laboral pela reduccedilatildeo de

salaacuterios dentre outros fatores tem ocasionado graves consequecircncias para a vida e a sauacutede dos

trabalhadores que se refletem na falta de reconhecimento social na deterioraccedilatildeo da eacutetica e da

moral e nas restriccedilotildees para a construccedilatildeo de um projeto de vida e na degradaccedilatildeo de sua sauacutede

fiacutesica e mental Assim queixas de estresse esgotamento fiacutesico e mental depressatildeo fadiga e

264

irritabilidade decorrentes da precarizaccedilatildeo das condiccedilotildees de trabalho foram comuns entre os

entrevistados

As abruptas mudanccedilas vivenciadas pelos trabalhadores dos dois contextos

indiscutivelmente atingiram a sua subjetividade Assim seus efeitos negativos incidiram na

sua identidade como profissionais da sauacutede na relaccedilatildeo com seu trabalho nos espaccedilos fora do

trabalho nos acircmbitos pessoal e familiar bem como na sua sauacutede fiacutesica e mental Como visto

comumente a desregulamentaccedilatildeo e flexibilizaccedilatildeo laboral estatildeo intimamente atreladas agrave

precarizaccedilatildeo do trabalho Essas deficientes relaccedilotildees e condiccedilotildees de trabalho vividas constituem

um desencadeante do desgaste mental (Seligmann-Silva 2011) A inseguranccedila incerteza

instabilidade e fragilidade que vivencia grande parte dos trabalhadores geraram um sentimento

de desrespeito a sua dignidade em detrimento de sua identidade de trabalhadores da sauacutede

Assim foi possiacutevel identificar o impacto na subjetividade dos trabalhadores das complexas

caracteriacutesticas das formas de organizaccedilatildeo do trabalho que integram o setor da sauacutede nos

contextos pesquisados impacto este que pode deflagrar processos de sofrimento e adoecimento

mental marcantes

E importante destacar que esses aspectos mencionados se revelam como uma

manifestaccedilatildeo de que em um sistema de sauacutede privatizado eacute praticamente inviaacutevel desenvolver

uma poliacutetica de Sauacutede do Trabalhador tornando-se um verdadeiro desafio a proteccedilatildeo da

dignidade dos direitos e da sauacutede dos trabalhadores Desse modo essa pesquisa evidencia os

graves riscos para a ST no Brasil no contexto atual incluindo suas consequecircncias para os

trabalhadores responsaacuteveis pelo desenvolvimento das poliacuteticas de sauacutede puacuteblica

32 O sonho que se tornou pesadelo a vivecircncia de um grupo de trabalhadores da induacutestria

automobiliacutestica (Silva 2018)

O segundo estudo a ser focalizado eacute o de Silva (2018) que teve uma configuraccedilatildeo

bastante diferente daquela apresentada no item 31 Ele se constituiu como uma intervenccedilatildeo-

pesquisa com um grupo de trabalhadores da induacutestria automobiliacutestica que apresentavam queixas

de adoecimento fiacutesico e mental relacionado ao trabalho Tal estudo foi realizado no periacuteodo de

2017 a 2018 no Centro de Referecircncia em Sauacutede do Trabalhador (CEREST) de Campinas - SP

e desde o princiacutepio esteve imerso em algumas dificuldades como por exemplo relacionadas

agrave ausecircncia de um psicoacutelogo no serviccedilo em questatildeo De acordo com Keppler e Yamamoto (2016)

a presenccedila de um psicoacutelogo natildeo eacute obrigatoacuteria nos CERESTs muito embora seja extremamente

265

necessaacuteria jaacute que as demandas de sauacutede-adoecimento relacionadas ao trabalho aumentam a

cada dia e apontam para a importacircncia desse profissional na rede puacuteblica especificamente nos

centros de referecircncia voltados ao atendimento em sauacutede e trabalho

A pesquisa se iniciou a partir de uma demanda presente no CEREST a respeito de

trabalhadores com queixas de adoecimento fiacutesico (LERDORT) e mental (depressatildeo ansiedade

e processos de desgaste) que invadiram outras esferas da vida que natildeo soacute a do trabalho Frente

a isso teve como objetivo promover uma intervenccedilatildeo em um grupo de reflexatildeo sobre trabalho

e sauacutede e analisar o processo de adoecimento vivenciado pelos trabalhadores participantes A

estrateacutegia de intervenccedilatildeo grupal foi utilizada por Sato et al (1993) haacute mais de 20 anos e

conforme afirmam O grupo facilita a construccedilatildeo de estrateacutegias individuais e coletivas no

sentido de melhorar a qualidade de vida requerendo tais estrateacutegias a adoccedilatildeo de uma postura

ativa diante da situaccedilatildeo (Sato et al 1993 p 49) Esse tipo de intervenccedilatildeo portanto valorizaria

o enfrentamento coletivo e pode gerar uniatildeo e solidariedade entre os membros

O grupo contou com a participaccedilatildeo de 14 trabalhadores de uma induacutestria automobiliacutestica

da regiatildeo e foi acompanhado por membros da equipe multidisciplinar do CEREST e pela

psicoacuteloga pesquisadora Ao todo houve 11 encontros ao longo de seis meses cuja principal

estrateacutegia metodoloacutegica foi rodas de conversa para compartilhamento de experiecircncias

Utilizaram-se tambeacutem materialidades mediadoras que se configuraram como disparadoras de

discussatildeo como filmes charges imagens muacutesicas entre outras Os temas discutidos com os

participantes foram por exemplo o trabalho no capitalismo o discurso flexiacutevel a

culpabilizaccedilatildeo dos trabalhadores pelo adoecimento suas histoacuterias de vida novos projetos e

planos futuros a uniatildeo e solidariedade entre os trabalhadores entre outros

De forma geral as informaccedilotildees compartilhadas mostraram que inicialmente os

trabalhadores almejavam muito ingressar na empresa e ao conseguirem sentiam ter realizado

um sonho Ao longo do tempo poreacutem o sonho acabou tornando-se pesadelo jaacute que eles

passaram a vivenciar muacuteltiplas formas de violecircncia psicoloacutegica como asseacutedio moral e

organizacional aleacutem de cobranccedilas e pressotildees por produtividade e rapidez o que acabava

favorecendo o desenvolvimento de lesotildees fiacutesicas Consequentemente o sofrimento e

adoecimento mental foram se intensificando pois os lesionados eram tambeacutem excluiacutedos

humilhados e reinseridos ao trabalho em funccedilotildees incompatiacuteveis

Os resultados foram analisados com base em referecircncias da Psicologia Social do

Trabalho e em Paulo Freire e Martiacuten-Baroacute autores engajados com a transformaccedilatildeo social e

entendimento do ser humano como ser histoacuterico dialeacutetico e natildeo naturalizante Silva (2018)

266

evidenciou o caraacuteter eacutetico poliacutetico da Psicologia enquanto ciecircncia com potencial transformador

que por meio da sensibilizaccedilatildeo e conscientizaccedilatildeo dos oprimidos pode evidenciar contradiccedilotildees

e fazer com que os trabalhadores percebam suas condiccedilotildees e lutem por uma realidade mais justa

e igualitaacuteria Freire (2014) afirma que quando o homem se daacute conta de sua construccedilatildeo histoacuteria

ele percebe que muitas vezes seus problemas satildeo compartilhados e natildeo individuais Durante o

grupo foi possiacutevel discutir tais noccedilotildees e auxiliar os participantes a amenizar a culpa que

carregavam por terem adoecido devido ao trabalho impulsionando-os a tomar as reacutedeas de suas

vidas e de suas histoacuterias

Tal pesquisa assim colaborou para o desenvolvimento de meacutetodos de atenccedilatildeo a

trabalhadores adoecidos pelo trabalho que vatildeo aleacutem do atendimento cliacutenico tradicional

individualizante

33 Sauacutede Mental Relacionada ao Trabalho na rede puacuteblica de sauacutede brasileira concepccedilotildees

e atuaccedilotildees transformadoras (Souza 2017)

Tendo em vista a evidente relaccedilatildeo entre as situaccedilotildees de trabalho existente na atualidade

e o processo de adoecimento mental dos trabalhadores essa terceira pesquisa realizada no

periacuteodo de 2013 a 2017 teve como objetivo identificar e analisar praacutexis consideradas exitosas

realizadas por profissionais da aacuterea da sauacutede puacuteblica que compreendem a complexidade

presente no processo de sauacutede-adoecimento mental O estudo remeteu agrave importacircncia da praacutetica

interdisciplinar e em rede no SUS e revelou que os diversos profissionais de sauacutede podem ter

atuaccedilotildees que vatildeo do atendimento aos trabalhadores jaacute adoecidos a propostas de promoccedilatildeo de

sauacutede psiacutequica nos ambientes de trabalho sendo sensiacuteveis agrave relaccedilatildeo entre sauacutede mental e

trabalho e demonstrando comprometimento eacutetico e poliacutetico

Por meio de entrevistas abertas com nove trabalhadores do SUS de diferentes categorias

profissionais (Psicologia Terapia Ocupacional Fisioterapia Medicina Enfermagem) que

tinham uma histoacuteria de envolvimento com a sauacutede dos trabalhadores buscou-se compreender

suas praacuteticas na Atenccedilatildeo Baacutesica em Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e em CERESTs

de diversas cidades do Estado de Satildeo Paulo

Os resultados da pesquisa demonstraram que por possuiacuterem uma compreensatildeo criacutetica

da realidade os participantes distanciavam-se de posturas fatalistas individualizantes e que

naturalizam as condiccedilotildees de trabalho Buscavam realizar accedilotildees que estimulam a resistecircncia dos

trabalhadores percebendo-os como protagonistas no enfrentamento do adoecimento mental

267

relacionado ao trabalho Para isso assim como realizado por Silva (2018) promoviam grupos

psicossociais visando favorecer o fortalecimento dos trabalhadores Tambeacutem incentivavam a

formaccedilatildeo e participaccedilatildeo de associaccedilotildees para reivindicar direitos e estimulavam a organizaccedilatildeo

coletiva dos trabalhadores como a participaccedilatildeo em sindicatos e em modelos alternativos de

organizaccedilatildeo do trabalho tais como autogestatildeo e cooperativas Aleacutem dessas praacuteticas realizavam

Vigilacircncia em Sauacutede do Trabalhador que eacute um instrumento essencial para prevenir o

adoecimento e promover a sauacutede nos locais de trabalho (Brasil 2010) e Apoio matricial (Santos

amp Lacaz 2012) buscando irradiar na rede de sauacutede a conscientizaccedilatildeo sobre as possiacuteveis

relaccedilotildees do trabalho com o adoecimento mental

Tais posturas revelam que apesar das inuacutemeras contradiccedilotildees existentes na sauacutede puacuteblica

brasileira encontramos profissionais com diferentes formaccedilotildees que partem de uma ampla

compreensatildeo do contexto social e de trabalho para o entendimento do processo sauacutede-

adoecimento mental dos trabalhadores Vale destacar que embora a maioria natildeo tenha

apresentado referenciais teoacutericos que embasam suas praacuteticas fica evidente seu entendimento

da historicidade e da dialeacutetica que define as relaccedilotildees sociais (Freire 2014)

Diante dos atuais desafios especialmente no que se refere ao desenvolvimento de

praacuteticas natildeo hegemocircnicas em sauacutede eacute necessaacuterio compartilhar praacuteticas consideradas exitosas

que respeitem e promovam os direitos dos trabalhadores no acircmbito da sauacutede puacuteblica Os

diversos atores sociais inclusive a Psicologia enquanto ciecircncia e profissatildeo precisam assumir

uma postura que considere as caracteriacutesticas da atual realidade social econocircmica e poliacutetica da

sociedade brasileira agindo de forma comprometida com a populaccedilatildeo menos favorecida

defendendo e colaborando com o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que visem agrave sauacutede

integral dos trabalhadores

A compreensatildeo das praacuteticas contra-hegemocircnicas desses profissionais em um contexto

de constantes ataques agraves poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede tambeacutem evidencia que natildeo eacute exclusividade

da Psicologia o olhar para os processos de sofrimento e adoecimento mental sobretudo quando

estatildeo relacionados ao trabalho demonstrando a importacircncia da atuaccedilatildeo interdisciplinar que

busque compreender e prevenir o adoecimento mental relacionado ao trabalho Nesse sentido

as praacuteticas profissionais apresentadas na pesquisa podem colaborar para o desenvolvimento e

aprimoramento de diferentes formas de atuaccedilatildeo no acircmbito da Sauacutede do Trabalhador no SUS

que considerem o conhecimento dos trabalhadores e favoreccedilam seu protagonismo

268

Consideraccedilotildees finais

Neste capiacutetulo buscamos discutir possiacuteveis contribuiccedilotildees da perspectiva da Psicologia

Social do Trabalho no acircmbito das poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador a partir da

apresentaccedilatildeo de algumas pesquisas que tecircm em comum o olhar criacutetico para o contexto social

que envolve as relaccedilotildees de trabalho e buscam o fortalecimento da classendashque-vive-do-trabalho

(Antunes 1998)

Vale dizer que diante da realidade atual de ataque agraves poliacuteticas puacuteblicas e aos direitos

dos trabalhadores eacute necessaacuterio reinventar e fortalecer as organizaccedilotildees coletivas para resistecircncia

e enfrentamento de tal situaccedilatildeo Tendo em vista o compromisso eacutetico poliacutetico da Psicologia

enquanto ciecircncia e profissatildeo faz-se necessaacuterio atuar de forma contextualizada e engajada com

a realidade em seus muacuteltiplos acircmbitos como social poliacutetico e econocircmico defendendo as

poliacuteticas puacuteblicas que visem agrave sauacutede e dignidade dos trabalhadores em geral E essa eacute uma

caracteriacutestica das pesquisas apresentadas aqui

Finalizamos lembrando Martiacuten-Baroacute (1996) que afirma que natildeo eacute possiacutevel fazer

Psicologia de forma comprometida sem assumir uma responsabilidade histoacuterica que tenta

transformar as condiccedilotildees dos oprimidos para que eles estejam conscientes recuperem a

memoacuteria histoacuterica de suas condiccedilotildees e possam transformaacute-las O quefazer do psicoacutelogo

portanto eacute auxiliar as pessoas a superar a alienaccedilatildeo e mudar suas realidades em prol da

libertaccedilatildeo Entendemos que as pesquisas apresentadas neste capiacutetulo buscaram modestamente

contribuir com uma accedilatildeo contextualizada que a Psicologia pode ter com a Sauacutede do Trabalhador

e com a Sauacutede Puacuteblica trazendo reflexotildees criacuteticas para o enfrentamento e transformaccedilatildeo da

realidade

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273

Capiacutetulo 14

Mulheres e Mineraccedilatildeo contribuiccedilotildees da Psicologia Social no campo das

poliacuteticas puacuteblicas

Paula Sassaki Coelho

Introduccedilatildeo

A procura por mineacuterios tem apresentado um recente crescimento no mercado

internacional com velocidade e quantidades expressivas Segundo Bruno Milanez (2012) este

crescimento estaacute associado principalmente agrave alta demanda no mercado mundial agrave reduccedilatildeo das

melhores fontes de mineacuterios e agrave possibilidade de escassez a meacutedio prazo O aumento da

demanda global tanto se daacute pela necessidade dos paiacuteses mais industrializados quanto pelo

aumento da procura de paiacuteses emergentes Neste contexto a grande mineraccedilatildeo tem ganhado

proporccedilotildees significativas e importacircncia na economia nacional no uacuteltimo periacuteodo Mais

recentemente como documentado por Mansur e colaboradores (2016) de 2003 a 2013 ficou

marcado um periacuteodo chamado de boom da mineraccedilatildeo no qual o Brasil exerceu papel

representativo enquanto fornecedor de mineacuterios com crescimento de 630 nas exportaccedilotildees

para o mercado global (passando de U$38 bilhotildees para U$196 bilhotildees) Com destaque ao

mineacuterio de ferro nas exportaccedilotildees nacionais que em 2011 representou 70 das exportaccedilotildees

minerais Em 2013 o Brasil era responsaacutevel por 143 da exportaccedilatildeo de ferro no mundo (o

segundo lugar entre cinco principais paiacuteses fornecedores do mineacuterio) Eacute exatamente neste

periacuteodo de boom da mineraccedilatildeo que o empreendimento Minas-Rio se instalou em Conceiccedilatildeo do

Mato Dentro

Conceiccedilatildeo do Mato Dentro eacute hoje um municiacutepio com cerca de 18 mil habitantes

localizado na Serra do Espinhaccedilo a pouco mais de 160km de Belo Horizonte1 Com alto perfil

turiacutestico a ldquocapital mineira do ecoturismordquo comporta cachoeiras e vegetaccedilatildeo exuberantes

dentre elas o cartatildeo postal da regiatildeo que eacute a Cachoeira do Tabuleiro Aleacutem disso a regiatildeo

tambeacutem conta com siacutetios arqueoloacutegicos importantes Antes da chegada da grande mineraccedilatildeo a

cidade tinha como atividade econocircmica importante a agricultura familiar (caracteriacutestica da

1 Dados extraiacutedos do portal ldquoCidadesrdquo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) Recuperado de

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274

regiatildeo) e caminhava para a consolidaccedilatildeo do turismo enquanto uma de suas principais atividades

econocircmicas Em 2005 poucos anos antes da chegada do Minas-Rio apoacutes uma seacuterie de

articulaccedilotildees regionais a cidade foi declarada como integrante da Reserva da Biosfera da Serra

do Espinhaccedilo (RBSE) pela Unesco (Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura) considerada enquanto patrimocircnio da humanidade (Cidade e Alteridade 2015

Conceiccedilatildeo do Mato Dentro 2019)

O complexo Minas-Rio inicialmente concebido pelo empresaacuterio Eike Batista foi

comprado pela Anglo American (uma das maiores empresas mineradoras do mundo) em 2009

Dentre outras coisas o empreendimento compreende o maior mineroduto do mundo (com mais

de 500km de extensatildeo ligando Conceiccedilatildeo do Mato Dentro ao Porto do Accedilu no Rio de Janeiro

cruzando cerca de 32 cidades) sua lavra principal eacute uma das maiores do Brasil e impacta uma

aacuterea de 6125 hectares conta com duas barragens de rejeitos (uma que impactaraacute uma aacuterea de

875 hectares e capacidade de receber 370 milhotildees de m3 de rejeitos) uma linha de energia uma

adutora independente de aacutegua entre outras instalaccedilotildees A totalidade deste complexo minerador

expressa indubitavelmente as dimensotildees que a grande mineraccedilatildeo tem assumido nacionalmente

(SISEMA 2008 Ferreira Rocha 2015)

Essa recente e volumosa exportaccedilatildeo mineral alimenta uma relaccedilatildeo de dependecircncia

econocircmica do paiacutes e das regiotildees diretamente envolvidas em relaccedilatildeo ao setor E seu modelo de

atuaccedilatildeo explicita o lugar atual do Brasil no sistema capitalista O notaacutevel aumento da extraccedilatildeo

estaacute relacionado natildeo apenas ao aumento do volume e velocidade de extraccedilatildeo mas tambeacutem agrave

diversificaccedilatildeo de mineacuterios extraiacutedos nos uacuteltimos anos Algo que implica necessariamente um

aumento do nuacutemero e do tamanho das aacutereas de mineraccedilatildeo assim como do tamanho e volume

de suas barragens e dos recursos hiacutedricos energeacuteticos e fundiaacuterios Essa necessidade do

mercado de volumosa extraccedilatildeo em tempo acelerado para acompanhar as altas de preccedilos no

mercado internacional somada agrave financeirizaccedilatildeo do mesmo e ao enorme investimento de

capital fazem com que as mineradoras exerccedilam forte pressatildeo para aprovaccedilatildeo de seus processos

de licenciamento ambientais e licitaccedilotildees de implementaccedilatildeo e expansatildeo Isto dificulta os

processos de avaliaccedilatildeo e reduccedilatildeo do enorme desgaste ambiental e social Dentre os desgastes

podemos citar as cataacutestrofes de rompimentos de barragens com as quais a sociedade brasileira

tem tido que lidar nos uacuteltimos anos De acordo com Santos e Wanderley (2016) apenas no

estado de Minas Gerais no periacuteodo de 1986 a 2015 foram oito rompimentos de barragens de

mineraccedilatildeo em seis municiacutepios distintos (dois rompimentos em Itabirito dois em Miraiacute e um

episoacutedio em cada um dos municiacutepios de Nova Lima Congonhas Itabira e Mariana) A estes

275

episoacutedios eacute preciso somar ainda o rompimento ocorrido em Brumadinho de responsabilidade

da Vale SA em 25 de janeiro de 2019 que teve mais de 300 viacutetimas fatais e atingiu toda a

bacia do rio Paraopeba

Outro grande entrave para o fortalecimento do modelo primaacuterio-exportador ao qual a

mineraccedilatildeo se integra eacute a desindustrializaccedilatildeo e a dependecircncia da exportaccedilatildeo de produtos com

baixa tecnologia e baixo valor agregado tornando nossa economia mais suscetiacutevel agrave

volatilidade e agraves pressotildees do mercado externo de commodities A opccedilatildeo pela desindustrializaccedilatildeo

aumenta nossa dependecircncia em relaccedilatildeo ao capital internacional uma vez que os preccedilos satildeo

determinados por ele Desta forma a pressatildeo sobre as decisotildees locais torna-se direta e

extremamente intensa numa correlaccedilatildeo de forccedilas desigual que garante que as decisotildees locais

sejam altamente determinadas pelo mercado internacional de mineacuterios sem a consideraccedilatildeo dos

planos e necessidades das populaccedilotildees diretamente atingidas pela exploraccedilatildeo primaacuterio-

exportadora Esta dependecircncia por sua vez nos leva agrave flexibilizaccedilatildeo das exigecircncias sociais e

ambientais aprofundando os impactos negativos da mineraccedilatildeo Esta relaccedilatildeo pode ser chamada

de mineacuterio-dependecircncia (T Coelho 2014)

A partir das contradiccedilotildees embates que este modelo de mineraccedilatildeo vem alimentando no

paiacutes surgiu o Movimento pela Soberania Nacional na Mineraccedilatildeo (MAM) Trata-se de um

movimento social recente e de acircmbito nacional que nasceu a partir da necessidade de enfrentar

denunciar e transformar o modelo de exploraccedilatildeo mineral vigente no Brasil Um de seus

objetivos eacute popularizar as decisotildees tomadas neste campo em prol da soberania popular na

mineraccedilatildeo Em consonacircncia com outras organizaccedilotildees do campo da esquerda e outros

movimentos sociais o MAM se oficializou enquanto tal no ano de 2012 Atualmente ele

compotildee o Comitecirc Nacional de Defesa dos Territoacuterios Frente agrave Mineraccedilatildeo e faz parte das

organizaccedilotildees integrantes da Via Campesina da comissatildeo organizadora do Encontro Continental

contra a Mineraccedilatildeo e pela Soberania Popular assim como tem participado de encontros em

outros paiacuteses da Ameacuterica Latina e da Aacutefrica em torno do tema da mineraccedilatildeo (MAM 2015) Eacute

importante destacar que a aproximaccedilatildeo com Conceiccedilatildeo do Mato Dentro que possibilitou este

trabalho foi viabilizada a partir da parceria com representantes do MAM

O eixo central dos debates propostos pelo MAM estaacute voltado ao modelo de mineraccedilatildeo

Neste sentido este capiacutetulo tambeacutem se debruccedilaraacute sobre alguns pontos relacionados agraves poliacuteticas

puacuteblicas que regulam ou deveriam regular a atividade mineradora no paiacutes pensando em

possiacuteveis contribuiccedilotildees da Psicologia Social Vale destacar que parto de relatos feitos por

mulheres de comunidades diretamente atingidas para problematizar algumas dimensotildees dos

276

impactos gerados Abrir um debate sobre os modos de minerar quais os retornos para as

comunidades atingidas determinaccedilatildeo de lugares (a serem minerados e a natildeo serem) e ritmos

poliacuteticas compensatoacuterias caacutelculo e utilizaccedilatildeo da Compensaccedilatildeo Financeira pela Exploraccedilatildeo de

Recursos Minerais (CFEM) dentre outros Estes satildeo temas essenciais que precisam ser

decididos pelo conjunto da sociedade brasileira e natildeo apenas segundo as exigecircncias do mercado

internacional ou das empresas mineradoras

1 Enfoque de gecircnero

A escolha pelo enfoque de gecircnero fundamenta-se na crescente importacircncia do

Feminismo e das mobilizaccedilotildees de mulheres no Brasil e no mundo Tal questatildeo se mostrou

relevante desde as primeiras aproximaccedilotildees com Conceiccedilatildeo do Mato Dentro a partir do relato

do protagonismo das mulheres nos processos de resistecircncia e mobilizaccedilatildeo popular frente ao

modelo de exploraccedilatildeo e destruiccedilatildeo relacionado ao complexo Minas-Rio Vale destacar que a

mobilizaccedilatildeo popular caminha diretamente com a luta por direitos humanos e pela consolidaccedilatildeo

entre outras coisas de poliacuteticas puacuteblicas mais justas do ponto de vista social

Parto da perspectiva de Maria Ameacutelia Telles (1999) e de outras feministas do campo

marxista que entendem o Feminismo enquanto uma corrente filosoacutefica e principalmente um

movimento social e poliacutetico que estaacute voltado agraves relaccedilotildees de opressatildeo e exploraccedilatildeo vividas pelas

mulheres E como movimento social natildeo apenas analisa mas tambeacutem se esforccedila em alterar

estas relaccedilotildees Neste mesmo sentido gecircnero tambeacutem eacute entendido como conceito que nasce da

inquietaccedilatildeo dos movimentos feministas e que possui cunho poliacutetico para aleacutem de apenas um

sentido analiacutetico (Piscitelli 2001)

Donna Haraway (2004) afirma que a conceituaccedilatildeo de gecircnero (termo anglo-saxatildeo

originado no poacutes-segunda guerra pelos movimentos feministas) surge bastante apoiado nas

formulaccedilotildees de Simone de Beauvoir (19492016) como uma maneira de contraposiccedilatildeo a

leituras deterministas e biologizantes Beauvoir consagra as diferenccedilas entre homens e mulheres

enquanto circunstanciadas por fatores sociais e natildeo necessariamente bioloacutegicos (apesar de

existirem distinccedilotildees bioloacutegicas entre os sexos natildeo satildeo estas que justificam as hierarquias

sociais) Sendo assim busco um entendimento de gecircnero que visa superar possiacuteveis

naturalizaccedilotildees para analisar as relaccedilotildees de poder que satildeo fundantes de nossa sociedade

assumindo um posicionamento histoacuterico e poliacutetico aliado a transformaccedilatildeo social

277

A mineraccedilatildeo eacute historicamente associada a uma atividade de cunho masculino e a

invisibilizaccedilatildeo das mulheres neste campo eacute algo marcante O trabalho nas minas eacute associado a

caracteriacutesticas tidas como ldquomasculinasrdquo como um trabalho ldquobrutordquo que prescinde de forccedila e

resistecircncia fiacutesica sob duras condiccedilotildees agraves quais natildeo se adaptariam as mulheres Esta concepccedilatildeo

eacute contraditoacuteria ao que acontece na realidade uma vez que agraves mulheres satildeo destinados

historicamente os postos e atividades de trabalho mais precarizados sob condiccedilotildees muitas vezes

mais arriscadas insalubres e mal remuneradas As mulheres foram marcadamente

marginalizadas na mineraccedilatildeo por meio de trabalhos informais como por exemplo nas minas

de carvatildeo mineral como ldquoescolhedeirasrdquo ou em trabalhos essenciais agrave atividade mineradora

mas que natildeo satildeo reconhecidos tal como no caso das mulheres na Boliacutevia que carregam aacutegua

na mineraccedilatildeo do ouro ou ainda quando assumem a figura de matildees viuacutevas e esposas satildeo

fundamentais para a manutenccedilatildeo da vida e do trabalho reprodutivo tatildeo necessaacuterio agraves famiacutelias

que dependem da mineraccedilatildeo e fundamentais tambeacutem na organizaccedilatildeo e luta por melhores

condiccedilotildees de vida e trabalho como um todo

Ainda hoje nas empresas mineradoras apesar do crescimento de postos ocupados por

mulheres elas frequentemente assumem cargos que correspondem a um grau de formaccedilatildeo

profissional inferior ao delas em cargos fora de sua especializaccedilatildeo e de menor possibilidade de

crescimento profissional E de maneira geral elas foram e continuam sendo marginalizadas

tambeacutem por meios simboacutelicos por meio de histoacuterias crenccedilas e lendas em torno do feminino

em vaacuterios lugares do mundo o associando ao ldquomal agourordquo (Castilho amp Castro 2005 Quirino

2015)

Eacute portanto por conta desses elementos que a escolha de investigar impactos da grande

mineraccedilatildeo em uma regiatildeo de Minas Gerais se deu a partir dos relatos de mulheres e em especial

de mulheres apontadas enquanto lideranccedilas uma escolha contraacuteria ao silenciamento histoacuterico

e agrave falta de registros e sistematizaccedilotildees a respeito do lugar das mulheres na mineraccedilatildeo e ao

mesmo tempo de destacar a importacircncia e protagonismo delas nos processos de resistecircncia e

mobilizaccedilatildeo populares

2 Objetivos e delineamento metodoloacutegico

Neste capiacutetulo busco relacionar os impactos da mineraccedilatildeo aos debates acerca de

poliacuteticas puacuteblicas relacionadas e possiacuteveis contribuiccedilotildees da psicologia partindo de um territoacuterio

278

determinado sob a perspectiva de mulheres em torno dos efeitos deste modelo de exploraccedilatildeo

valorizando a mobilizaccedilatildeo e resistecircncia popular com apoio do MAM

Deste modo pretendo tambeacutem contribuir com a ampliaccedilatildeo e difusatildeo das discussotildees a

respeito da grande mineraccedilatildeo no Brasil e seu modelo de desenvolvimento dar enfoque a

processos de resistecircncia popular considerando a contribuiccedilatildeo do MAM elaborar reflexotildees

sobre os impactos da mineraccedilatildeo de difiacutecil mensuraccedilatildeo (como o aumento da preocupaccedilatildeo

ansiedade vivecircncia de inseguranccedila e medo gerados pela mineraccedilatildeo) possibilitar uma maior

visibilidade dos pontos de vista das mulheres em uma aacuterea marcadamente considerada

masculina

Os relatos que seratildeo trazidos neste trabalho satildeo recortes oriundos de uma pesquisa de

mestrado realizada na regiatildeo de Conceiccedilatildeo do Mato Dentro (P Coelho 2019) Durante a

pesquisa foram realizadas visitas agraves casas das mulheres apontadas enquanto figuras de

referecircncia e lideranccedilas locais em comunidades distintas Durante todas as idas agrave Conceiccedilatildeo e

em especial nas visitas domiciliares foram feitas conversas no sentido dado por Gonccedilalves

Filho (2003) enquanto histoacuterias que satildeo contadas diferentemente de caracterizaccedilatildeo ou acuacutemulo

de informaccedilotildees

Foram tambeacutem realizados encontros de debate e formaccedilatildeo sobre gecircnero e mineraccedilatildeo

uma primeira formaccedilatildeo de um dia um encontro de mulheres da regiatildeo de trecircs dias e uma

exposiccedilatildeo realizada no centro de Conceiccedilatildeo com os paineacuteis de Arpilleras confeccionados pelas

mulheres2 As mulheres se reuniram por comunidade e ao final da duraccedilatildeo da pesquisa foi

organizada uma exposiccedilatildeo dos mesmos em uma casa de cultura na regiatildeo urbana de Conceiccedilatildeo

do Mato Dentro como maneira de abrir o diaacutelogo a respeito da mineraccedilatildeo

Tudo o que era vivido e observado em Conceiccedilatildeo foi registrado em Diaacuterios de Campo

e foram gravadas apenas algumas conversas com as mulheres nas uacuteltimas idas de acordo com

a confianccedila e conforto delas em relaccedilatildeo a serem gravadas Foram ofertados e explicados Termos

de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a pesquisa e seus objetivos foram expostos

conversados e acordados em diversos momentos Ao final do trabalho foi decidido junto agraves

mulheres a criaccedilatildeo de nomes fictiacutecios para proteccedilatildeo de suas identidades

O delineamento metodoloacutegico seguiu pressupostos da pesquisa participante partindo do

princiacutepio de realidade social enquanto totalidade complexa e dialeacutetica A metodologia se alinha

tambeacutem agrave pesquisa participante por considerar uma posiccedilatildeo ativa das pessoas agraves quais a

2 Mais informaccedilotildees em Zaliasnik (2010)

279

pesquisa se volta levando em consideraccedilatildeo sua historicidade e se propondo a construiacute-la de

modo conjunto assim como de colocar a pesquisa tambeacutem a serviccedilo das pessoas envolvidas

Outro aspecto importante eacute o de explicitar os vieses teoacutericos utilizados posicionando-me eacutetica

e politicamente com interesse especialmente voltado aos processos de transformaccedilatildeo social

Parti do pressuposto de que a pesquisa eacute um processo que unifica investigaccedilatildeo accedilatildeo social e

educaccedilatildeo em um movimento uacutenico e constante (Brandatildeo amp Borges 2007 Freire 1985)

Como forma de anaacutelise dos resultados foi realizada triangulaccedilatildeo dos dados a fim de

garantir a sua validade interna Para tanto foi realizado estudo (leitura atenta e repetida) e

organizaccedilatildeo de todo o material produzido nas idas a Conceiccedilatildeo de modo interrogativo e

procurando ligaccedilatildeo entre eles e seguindo de relaccedilotildees com as teorias e a literatura cientiacutefica

levantada Este procedimento se pauta em uma trajetoacuteria de construccedilatildeo de conhecimento que

parte de um grupo especiacutefico mas que tem em vista tambeacutem seu conjunto social mais amplo e

o momento histoacuterico vivido E entende o ato de pesquisar e construir conhecimento enquanto

um ato humano e natildeo puramente tecnicista (Minayo 2010)

3 Efeitos da mineraccedilatildeo sob a perspectiva de mulheres atingidas

Inicialmente vale a pena destacar alguns dos elementos principais que surgiram a partir

dos relatos das mulheres em torno dos efeitos da mineraccedilatildeo e que podem ser de maior interesse

ao debate sobre as poliacuteticas puacuteblicas e possiacuteveis contribuiccedilotildees da Psicologia Social muito a

atenccedilatildeo Como a mineraccedilatildeo industrial faz uso extensivo de aacutegua na extraccedilatildeo dos mineacuterios e no

caso de Conceiccedilatildeo no transporte da popa de ferro por meio do mineroduto a escassez de aacutegua

em lugares que sempre tiveram suas fontes naturais garantidas era algo narrado de maneira

constante

Como as comunidades vivem da agricultura familiar como principal ou uma das

principais atividades econocircmicas a escassez de aacutegua das nascentes significa um impacto

profundo em seus modos de vida E a maior parte das comunidades tinham de enfrentar a falta

de aacutegua potaacutevel apoacutes a chegada da grande mineraccedilatildeo tendo que muitas vezes buscar aacutegua em

baldes e recipientes em lugares vizinhos Mesmo as comunidades que recebiam caminhotildees-

pipa da Prefeitura ou da empresa (de acordo com a avaliaccedilatildeo da responsabilidade ou natildeo da

mineradora sobre a escassez de aacutegua) o recebiam de maneira ineficiente apenas em alguns

dias da semana e com frequentes ausecircncias natildeo comunicadas de fornecimento (por motivo de

chuva e dificuldade de acesso dos caminhotildees nas estradas de terra entre outras)

280

A poluiccedilatildeo da aacutegua e do ar era tambeacutem relatada de maneira frequente e estava sempre

relacionada a uma queda na qualidade de vida de maneira geral e a efeitos deleteacuterios agrave sauacutede

Segundo autoras como Almeida (1999) a poluiccedilatildeo atmosfeacuterica gerada pela grande mineraccedilatildeo

pode gerar efeitos variados desde incocircmodos e irritaccedilatildeo ateacute a morte Um levantamento

realizado pela Diversus (2012) constatou aumento no nuacutemero de queixas de sauacutede relacionados

a poeira e poluiccedilatildeo do ar e da aacutegua nas aacutereas atingidas pela Empresa Anglo American na regiatildeo

de Conceiccedilatildeo do Mato Dentro

A questatildeo hiacutedrica e de poluiccedilatildeo interferem portanto na atividade produtiva das

famiacutelias aleacutem de acarretar prejuiacutezos agrave sauacutede e na queda da qualidade de vida de maneira ampla

e diversa A realocaccedilatildeo de comunidades causada pela mineraccedilatildeo traz consigo tambeacutem a

mudanccedila de haacutebitos e de sociabilidade Dissolvendo as comunidades e distanciando familiares

que acabam se mudando de maneira dispersa e sem respaldo teacutecnico para continuar sua

produccedilatildeo agriacutecola ou para desenvolver outra fonte de renda

Outra questatildeo bastante preponderante e que tem forte relaccedilatildeo com possiacuteveis

contribuiccedilotildees da Psicologia eacute a vivecircncia constante da sensaccedilatildeo de medo Medo de um possiacutevel

rompimento das barragens (real tendo em vista o modelo de produccedilatildeo mineral e dos

rompimentos proacuteximos e recentes em Mariana e Brumadinho) medo em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees

de vida futura (para elas e para as geraccedilotildees posteriores) medo diante das alteraccedilotildees do modo

de vida ndash como por exemplo maior circulaccedilatildeo de pessoas desconhecidas aumento dos casos

de violecircncia em geral mas tambeacutem contra as mulheres3 aumento da circulaccedilatildeo de carros e

caminhotildees nas estradas e maior risco de atropelamentos entre outros Eram constantes e

marcantes os relatos sobre a perda do sono da tranquilidade e dos planos futuros

A seguir destaco trechos das falas de algumas das mulheres em relaccedilatildeo ao sentimento

de medo e agrave perda dos planos futuros O primeiro relato eacute de Helenira que teve de sair de sua

comunidade para morar em uma casa de aluguel social pago pela mineradora na aacuterea urbana

devido agraves rachaduras em sua casa iniciadas apoacutes a instalaccedilatildeo do mineroduto

Helenira Para falar a verdade Paulinha eu perdi ateacute o amor que eu tinha ali na minha casa

Tem hora que daacute um sentimento ruim sabe

Paula uhum

Helenira Que a gente tinha tanto projeto tanta coisa E acabou tudo

Paula e foi uma coisa que interrompeu neacute

Helenira Interrompeu tudo

3 De acordo com Zouri et al (2014) houve aumento geral nos casos de violecircncia nuacutemero de crimes ocorridos por

ano de assaltos com porte de arma de venda e traacutefico de substacircncias iliacutecitas e de casos de violecircncia contra mulher

Apenas para elucidar de 2010 a 2013 o nuacutemero de denuacutencias de violecircncia contra mulher mais do que dobrou

281

Em outro momento sobre sua condiccedilatildeo provisoacuteria de aluguel social haacute mais de dois

anos no periacuteodo da entrevista uma vez que a famiacutelia ainda natildeo havia sido devidamente

ressarcida ou realocada

Helenira Tem meses que natildeo vejo assim eles [se referindo a representantes da Anglo American]

para conversar mesmo sobre o nosso caso Ixi para falar a verdade acho que jaacute tem um ano jaacute

isso Eles renovam o contrato laacute da casa E eu natildeo sei Eu sei que eles renovam de seis em seis

meses Tipo assim vence se renovaram em abril vence em outubro Quando vai chegando

outubro eu e Carlos jaacute ficamos loucos E agora Seraacute que jaacute renovou Seraacute que noacutes vamos ficar

Seraacute que vamos sair Seraacute que noacutes vamos voltar Entatildeo assim isso vai acabando com a gente

por dentro

Paula Porque eacute soacute incerteza neacute

Helenira Ansiedade E incerteza Aiacute vocecirc vai falar que eles estatildeo violando o nosso direito e

eles dizem que natildeo E isso natildeo eacute violaccedilatildeo de direito natildeo (pausa) Teve eacutepocas da gente ficar

assim doido Parece que fica doido da cabeccedila com essas coisas

No trecho acima fica evidente a maneira como algumas decisotildees foram tomadas por

parte da Anglo American e a posiccedilatildeo de incerteza diante da qual se encontra Helenira e sua

famiacutelia Ela destaca a dimensatildeo de violaccedilatildeo de direito no que diz respeito agrave questatildeo da

inseguranccedila e dificuldade de fazer planos para o futuro e relata como isto afeta sua sauacutede mental

de modo mais geral As rachaduras em sua casa que surgiram a partir dos tremores apoacutes a

implantaccedilatildeo do mineroduto natildeo foram reconhecidas pela empresa enquanto efeito do mesmo

e por isso a famiacutelia encontrava-se em situaccedilatildeo indefinida Natildeo retornaram agrave casa por medo de

acidente mas tambeacutem natildeo receberam indenizaccedilatildeo para poder ter condiccedilatildeo de se instalar em

outro local E permaneciam em aluguel social fora de sua comunidade sem seus meios de

subsistecircncia antigos e sem uma devolutiva definitiva com a possibilidade de recomeccedilar em

outro lugar No periacuteodo em que a pesquisa se encerrou Helenira e Carlos estavam

desempregados e impedidos de dar continuidade a suas ocupaccedilotildees anteriores

Mesmo em casos em que houve compra dos terrenos o processo de adaptaccedilatildeo tambeacutem

teve suas dificuldades Luiza conta sobre a realocaccedilatildeo da famiacutelia de um de seus irmatildeos

Luiza me diz que no mesmo mecircs em que a famiacutelia do irmatildeo mudou de casa e saiu da roccedila que

tinham o irmatildeo tomou veneno Quando pergunto ela diz que ele nunca havia tentado suiciacutedio

antes Nesta primeira ocasiatildeo anos atraacutes logo apoacutes a mudanccedila da famiacutelia da comunidade para

a cidade a dosagem de veneno natildeo tinha sido suficiente para tirar-lhe a vida Luiza conta que

este irmatildeo tambeacutem ldquocomeccedilou a beber depois que se mudourdquo se referindo a um uso abusivo de

aacutelcool E conta que ele assim como ela sentia falta da ldquoirmandaderdquo e que queria ldquoviver como

antesrdquo ldquoA gente era tudo unido sabe Era um na casa do outro semprerdquo As relaccedilotildees familiares

tambeacutem geravam relaccedilotildees de trabalho mesmo que temporaacuterios E quando o irmatildeo se mudou

para a cidade perdeu sua irmandade e tambeacutem seus locais e rede de trabalhos Luiza conta que

com o dinheiro que receberam para a realocaccedilatildeo compraram uma casa (que precisava de

reforma) na aacuterea urbana e o dinheiro restante foi muito pouco para que a famiacutelia pudesse se

reestabelecer E completa ldquonatildeo foi soacute esse irmatildeo natildeo todos os que foram para a cidade estatildeo

282

num desespero soacuterdquo Luiza conta com tristeza do suiciacutedio deste irmatildeo por enforcamento e do

choque de toda a famiacutelia com o ocorrido E completa com preocupaccedilatildeo ldquoe agora o meu sobrinho

diz que quer morrer no mesmo lugar que o pairdquo (Trecho de Diaacuterio de Campo)

Tanto os relatos de Helenira quanto de Luiza evidenciam as mudanccedilas abruptas no modo

de vida e a necessidade de acompanhamento e avaliaccedilatildeo multiprofissional nos casos de

realocamento de famiacutelias e comunidades como o acompanhamento de sauacutede social e teacutecnico

para manutenccedilatildeo ou alteraccedilatildeo da atividade de renda principal da famiacutelia de maneira que todos

esses elementos sejam considerados nas negociaccedilotildees com as mineradoras

A seguir outro trecho de Luiza moradora de uma das comunidades que estaacute a cerca de

um quilocircmetro apenas da barragem de rejeitos sobre a vivecircncia do medo de um possiacutevel

rompimento de barragem

ldquoComo eacute que a gente dorme agora em eacutepoca de chuva A gente natildeo dorme natildeordquo E eu pensava

em eacutepoca de chuva por quecirc Era de medo de romper a barragem Enquanto falaacutevamos sobre

isso durante a confecccedilatildeo dos paineacuteis percebo que todas ali presentes conviviam com essa

possibilidade Todas jaacute tinham imaginado como seria se a barragem rompesse se daria tempo

de se salvar o que fariam onde se abrigariam com suas famiacutelias (talvez a igreja natildeo fosse

atingida pela lama) Aleacutem da preocupaccedilatildeo com o restante da comunidade E sua tranquilidade e

noites de sono ocupadas do perigo real Tatildeo real quanto Bento Rodrigues (Trecho de Diaacuterio de

Campo)

Junto agrave exposiccedilatildeo dos paineacuteis de Arpilleras havia tambeacutem alguns textos produzidos

pelas mulheres no intuito de apresentar suas comunidades Destaco trechos de um deles que

dimensiona explicitamente o sentimento de inseguranccedila e incerteza em relaccedilatildeo ao futuro

Comunidade Aacutegua Quente

Um vilarejo pequenino mas com grandes histoacuterias Pessoas simples de boas memoacuterias

Um passado de lindas recordaccedilotildees Um futuro indeciso Onde vemos somente tristeza e dor

Uma bomba rio acima Prestes a detonar

E mais uma vez a comunidade se pergunta ateacute quando iremos viver e chorar

Queremos paz em outro lugar

Queremos dormir

E poder acordar

Sonhar e realizar

Ver nossos filhos crescerem

E com tranquilidade viver

Peccedilo a Deus pra nos iluminar

E ao lado em letras coloridas e destacadas ldquopedimos socorro queremos viverrdquo

Eacute um desafio dimensionar e de alguma maneira incluir as preocupaccedilotildees os medos a

ansiedade as alteraccedilotildees na tranquilidade e no sono das pessoas dentro do conjunto de impactos

gerados pela mineraccedilatildeo Assim como de pensar maneiras de compensar minimizar e proteger

283

as comunidades atingidas Mas esta eacute uma dimensatildeo importante sobre a qual a Psicologia pode

trazer significativas contribuiccedilotildees

Martiacuten-Baroacute (1984) por exemplo afirma que a deterioraccedilatildeo profunda das relaccedilotildees e

convivecircncias sociais jaacute eacute por si soacute um grave transtorno social E em relaccedilatildeo ao contexto de

guerra ao qual o autor se voltou ele afirma que este grande transtorno social eacute gerado na medida

em que as pessoas perdem a qualidade de amar de trabalhar juntas e perdem possibilidades de

afirmar sua identidade peculiaridades e de ter voz para contar e afirmar sua histoacuteria e de seu

povo Natildeo podemos fazer um paralelo direto entre guerra e situaccedilatildeo de mineraccedilatildeo mas satildeo

profundas e abruptas as alteraccedilotildees das relaccedilotildees sociais e suas configuraccedilotildees de trabalho

conjunto e de poderem afirmar sua identidade e sua histoacuteria Diversas praacuteticas de vida trabalho

e de conviacutevio social foram amplamente atingidas e algumas delas desfeitas e este grande efeito

social tem tambeacutem repercussotildees no niacutevel individual

Conceituar e investigar estes tipos de impactos juntamente ao debate mais geral sobre

modelos de mineraccedilatildeo pode trazer contribuiccedilotildees relacionadas agraves poliacuteticas puacuteblicas e do

reconhecimento de direitos Como uma forma de vislumbrar meios de proteccedilatildeo e compensaccedilatildeo

agraves pessoas diretamente atingidas e como um elemento de debate e reflexatildeo junto agrave sociedade

em relaccedilatildeo aos impactos da grande mineraccedilatildeo Ter uma imagem mais fidedigna e completa do

conjunto de impactos gerados pelo modelo de exploraccedilatildeo da grande mineraccedilatildeo eacute essencial para

problematizaacute-lo e para podermos propor outras formas de regular a atividade mineradora

Vale destacar contudo outro papel fundamental dessas mulheres para aleacutem de pessoas

que notam e sofrem uma ampla gama de impactos da mineraccedilatildeo Elas assumem tambeacutem papeacuteis

centrais enquanto referecircncias e lideranccedilas comunitaacuterias em todos os processos de mobilizaccedilatildeo

que passaram a se dar a partir da implantaccedilatildeo do empreendimento Minas-Rio como

protagonizando falas importantes em audiecircncias puacuteblicas variadas (com oacutergatildeos puacuteblicos

variados e com a empresa) em assembleias e reuniotildees das comunidades como representantes

das comunidades nos variados processos de negociaccedilatildeo recebendo as visitas de representantes

de oacutergatildeos governamentais como Ministeacuterio Puacuteblico IBAMA entre outros em entrevistas com

fins midiaacuteticos ou com fins de pesquisa acadecircmica em atividades organizadas junto ao MAM

entre outros

O fato delas serem impactadas em acircmbitos diversos e em grande proporccedilatildeo tambeacutem as

fazia ter dimensatildeo dos impactos e da necessidade de lutar por suas vidas e de suas famiacutelias e

comunidades A presenccedila do MAM tambeacutem foi muito importante no fortalecimento desse

284

protagonismo e na ampliaccedilatildeo do debate e resistecircncia acerca da mineraccedilatildeo e seus impactos

(Coelho 2019)

4 Poliacuteticas Puacuteblicas e contribuiccedilotildees da Psicologia

Por mais insuficientes e excludentes que muitas vezes os programas sociais e as

plataformas governamentais possam ser (sobretudo quando se trata do atendimento agraves parcelas

mais excluiacutedas e exploradas da sociedade) natildeo se pode ignorar a necessidade de conquistas e

vitoacuterias que sejam asseguradas materialmente como programas de sauacutede reforma agraacuteria

assistecircncia social educaccedilatildeo moradia melhoria do transporte puacuteblico direitos trabalhistas

entre outras Todos esses avanccedilos satildeo fruto da luta histoacuterica da classe trabalhadora e de suas

histoacuterias de conquistas e resistecircncias E todas passam pela luta por garantia de programas

governamentais que englobem um conjunto de poliacuteticas puacuteblicas que atendam com qualidade

as necessidades e reivindicaccedilotildees da classe No entanto parece vaacutelido questionar como algumas

destas poliacuteticas impactam as vidas da populaccedilatildeo de acordo com o modo como elas estatildeo

planejadas investidas e implementadas Pensando neste aspecto este eacute um campo que pode

tanto atender agraves camadas mais exploradas garantindo o acesso a direitos quanto pode

contribuir na manutenccedilatildeo da exploraccedilatildeo e da dependecircncia

O campo das poliacuteticas puacuteblicas eacute portanto uma aacuterea de interesse dinacircmica e em

constante disputa sob qual se debruccedilam e atuam diversas praacuteticas e saberes como o direito a

sociologia a economia e tambeacutem a psicologia Sinteticamente uma poliacutetica puacuteblica pode ser

definida enquanto um programa de accedilatildeo governamental em um setor da sociedade ou um espaccedilo

geograacutefico especiacutefico (Muller 2002) Segundo Lahera (2003) poliacuteticas puacuteblicas correspondem

a maneiras especiacuteficas de dar respostas a questotildees puacuteblicas e estaacute necessariamente conectada

ao campo mais geral da poliacutetica como um todo De acordo com Muller (2002) a anaacutelise das

poliacuteticas puacuteblicas pode ser considerada como uma disciplina cientiacutefica recente de natureza

necessariamente multidisciplinar e que carece de maior atenccedilatildeo e dedicaccedilatildeo de maneira geral

uma vez que as sociedades contemporacircneas satildeo altamente reguladas pelo Estado e o grande

aumento e complexificaccedilatildeo de intervenccedilotildees estatais eacute um dos principais fenocircmenos sociais do

seacuteculo XX

Cabe destacar que este trabalho natildeo pretende se estender no amplo debate sobre as

poliacuteticas puacuteblicas mas sim se voltar a alguns aspectos referentes agrave grande mineraccedilatildeo e agraves

contribuiccedilotildees da Psicologia Social Diante dos enormes impactos que a mineraccedilatildeo industrial

285

gera e dos altos riscos de cataacutestrofes como os rompimentos de barragens e dos casos de

contaminaccedilatildeo (por exemplo os vazamentos como os gerados pela Hydro no Paraacute e pela Anglo

American em Minas Gerais) todo o seu modelo de atuaccedilatildeo precisa ser debatido com o conjunto

da sociedade brasileira e natildeo apenas pelas empresas privadas e oacutergatildeos governamentais Os

desastres soacutecio-ambientais infelizmente tecircm sido frequentes e de grande magnitude no

panorama da mineraccedilatildeo no paiacutes e satildeo um risco real uma vez que estatildeo diretamente relacionados

ao modo de minerar

Eacute preciso salientar o vieacutes sobre os desastres enquanto acontecimentos criacuteticos que

evidenciam ou potencializam as injusticcedilas e discrepacircncias sociais vividas cotidianamente E

que explicitam as diferenccedilas de sobrevivecircncia e de recuperaccedilatildeo de boas condiccedilotildees de vida

trabalho sauacutede e moradia havendo diferenccedila de tratamento quando as pessoas atingidas satildeo

ricas e quando satildeo pobres Desta forma a vulnerabilidade estaacute mais ligada ao contexto social

do que a fatores de risco externos Mesmo o tratamento que se daacute aos desastres se faz distinto

de acordo com a origem de classe Natildeo sendo os desastres portanto meramente circunstanciais

e originaacuterios apenas de fatores externos ao contexto social (Valencio 2009 Marchezini 2009)

No caso da mineraccedilatildeo fica evidente o modelo destrutivo que seu modo produtivo vem

acarretando

Aleacutem dos desastres de rompimento de barragem casos de crimes sociais e ambientais

a mineraccedilatildeo usa extensivos recursos hiacutedricos e fundiaacuterios de maneira que se faz fundamental

que a sociedade brasileira comece a determinar como seraacute nossa mineraccedilatildeo em que aacutereas elas

aconteceratildeo ou natildeo (estabelecendo por exemplo aacutereas livres de mineraccedilatildeo) em que ritmo a

extraccedilatildeo se daraacute como seraacute calculada e destinada a CFEM e de que maneira ela pode ser

investido nas regiotildees diretamente atingidas que tipo de apoio (financeiro e teacutecnico) e por

quanto tempo devem receber esse apoio as famiacutelias que sejam realocadas em funccedilatildeo da

mineraccedilatildeo estabelecer comprometimento das empresas com um fundo ligado a um

planejamento social e econocircmico da regiatildeo para quando a atividade mineradora se encerrar

(uma vez que a extraccedilatildeo se daacute por tempo determinado e a mineacuterio-dependecircncia impede ou

enfraquece outras possiacuteveis atividades econocircmicas) necessitamos de investimento em oacutergatildeos

de monitoramento soacutecio-ambiental assim como pesquisas cientiacuteficas entre outras (MAM

2015 Mansur et al 2016 Milanez 2012)

A partir dos relatos e dados em relaccedilatildeo ao sofrimento e aumento dos casos de violecircncia

tambeacutem seria importante que poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede e de proteccedilatildeo social fossem

fortalecidas eou implementadas como medida compensatoacuteria das empresas Assim como

286

subsiacutedios ao Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) no que diz respeito ao tratamento e prevenccedilatildeo das

enfermidades relacionadas agrave mineraccedilatildeo causadas pela poluiccedilatildeo da aacutegua do ar entre outros

efeitos (Almeida 1999) Deveria haver um planejamento de medidas protetivas e

compensatoacuterias no que diz respeito aos principais agravos causados pelos impactos da grande

mineraccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave sauacutede poluiccedilatildeo e desgaste ambiental crescimento da violecircncia e

reestruturaccedilatildeo econocircmica da regiatildeo que levasse em consideraccedilatildeo as caracteriacutesticas de cada

territoacuterio e que fosse de responsabilidade das empresas repassar verbas e do poder puacuteblico

implementar sob o acompanhamento de espaccedilos de poder popular consultando moradores e

famiacutelias da regiatildeo

Outra dimensatildeo que merece medidas e cuidados especiacuteficos satildeo as poliacuteticas voltadas agrave

proteccedilatildeo das mulheres Os relatos colhidos assim como os dados apontados (Zouri etal 2005

Coelho 2019) demonstram a necessidade de poliacuteticas amplas de proteccedilatildeo agrave mulher tendo em

vista tambeacutem sua posiccedilatildeo de menor acesso aos postos de trabalho na mineraccedilatildeo e em piores

condiccedilotildees de ascensatildeo de carreira (Quirino 2015) Para as mulheres a garantia de poliacuteticas

puacuteblicas de educaccedilatildeo e sauacutede gerais as beneficiaria tambeacutem indiretamente devido a seu lugar

social de cuidadora da famiacutelia e de responsaacutevel pelo cuidado e educaccedilatildeo das crianccedilas E para

aleacutem disso programas voltados especificamente a elas no que diz respeito ao combate agrave

violecircncia contra a mulher sauacutede mental e programas de geraccedilatildeo de renda e formaccedilatildeo

profissional seriam de profunda importacircncia em contextos de aacutereas de mineraccedilatildeo

De modo geral seria fundamental o planejamento de programas de curto meacutedio e longo

prazo para fortalecimento das famiacutelias atingidas e para a cobertura das diversas dimensotildees

sociais ambientais e da sauacutede que satildeo afetadas pelos impactos da mineraccedilatildeo Aleacutem disso as

localidades que ainda natildeo estatildeo sob accedilatildeo da mineraccedilatildeo mas que satildeo aacutereas em potencial

tambeacutem precisariam estar cientes dos impactos concretos e subjetivos (como preocupaccedilotildees

sentimento de inseguranccedila e medo vivenciados pelas famiacutelias) em regiotildees onde a grande

mineraccedilatildeo jaacute estaacute instalada Eacute preciso que a ideia de progresso propagandeada pela grande

mineraccedilatildeo possa ser problematizada e esclarecida junto ao conjunto social mais amplo para

que seja possiacutevel um debate seacuterio com medidas protetivas e compensatoacuterias consistentes

Outra contribuiccedilatildeo da Psicologia aleacutem de destacar os elementos relacionados agrave sauacutede

mental e os sentimentos de medo e inseguranccedila seria reiterar a dimensatildeo de pertenccedila social e

de considerar modos de vida das comunidades atingidas Assim como frisar a importacircncia de

que as negociaccedilotildees com as comunidades sejam feitas de maneira coletiva Uma vez que

individualmente as famiacutelias tecircm menores chances de ter seus direitos garantidos assim como

287

correm maior risco de ter seus viacutenculos comunitaacuterios fragilizados e ateacute desfeitos (nos casos de

remoccedilatildeo de comunidades isto fica ainda mais evidente) como foi relatado pelas mulheres em

Conceiccedilatildeo do Mato Dentro Por isso eacute importante reforccedilar o caraacuteter de identidade das famiacutelias

e comunidades para aleacutem do valor econocircmico das terras ou das medidas pois haacute que se levar

em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo de pertenccedila das famiacutelias e evidenciar tambeacutem as alteraccedilotildees e sua

sociabilidade Assim como propor um acompanhamento social e teacutecnico (com programas que

abarquem as dimensotildees de sauacutede sociais e de suporte econocircmico) das famiacutelias durante e apoacutes

a chegada das mineradoras

Consideraccedilotildees finais

De maneira geral a grande mineraccedilatildeo pode ser considerada um retrato rico no que diz

respeito ao modo de operar explorar e acumular do capitalismo e de nossa posiccedilatildeo de

dependecircncia dentro dele Por isso seu estudo pode refletir questotildees que estatildeo na ordem do dia

Os mineacuterios satildeo finitos e os impactos de sua extraccedilatildeo nos tecircm custado caro Fica expliacutecita a

necessidade de debate da sociedade brasileira em torno do modelo de mineraccedilatildeo que queremos

Modelo este que se apoiaraacute em programas de poliacuteticas puacuteblicas que possam assegurar

delimitaccedilatildeo de aacutereas livres de mineraccedilatildeo assim como de ritmos de extraccedilatildeo condiccedilotildees de

realocamento de comunidades poliacuteticas regulatoacuterias medidas compensatoacuterias programas de

desenvolvimento alternativo com fundo de planejamento e investimentos em outras atividades

econocircmicas jaacute que a mineraccedilatildeo tem accedilatildeo datada melhor dimensionamento dos impactos sociais

e ambientais seguranccedila hiacutedrica de modo amplo entre outras Neste sentido a Psicologia Social

pode contribuir ajudando a pautar e reforccedilar de maneira multidisciplinar a necessidade de

negociaccedilatildeo e consideraccedilatildeo das comunidades de suas identidades e histoacuterias de seu direito agrave

qualidade de vida e a ter planos e perspectivas de futuro com mais seguranccedila e dignidade

Dentro de um processo que leve em consideraccedilatildeo aspectos que natildeo satildeo apenas econocircmicos

mas estatildeo relacionados tambeacutem agrave qualidade de vida sauacutede mental identidade formaccedilatildeo

comunitaacuteria entre outros

Aleacutem disto fica evidente a riqueza de destacar pontos de vistas usualmente silenciados

como de pessoas atingidas diretamente pela mineraccedilatildeo e mais especificamente mulheres Em

um campo visto como masculino onde as mulheres foram historicamente invizibilizadas notar

suas perspectivas e sua participaccedilatildeo social eacute um ato necessaacuterio e que merece desdobramentos e

maiores aprofundamentos Para que seja possiacutevel destacar sua importacircncia e atuaccedilatildeo mas

288

tambeacutem exigir programas e poliacuteticas especiacuteficas de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo sociais e de sauacutede para

este grupo social especiacutefico uma vez que atingido de maneiras profundas e tatildeo variadas

Fica evidente portanto a necessidade de ampliar o debate sobre os modos de minerar

e para isso esse debate natildeo pode se restringir aos oacutergatildeos governamentais ou agraves empresas pois

necessita abarcar a maior parcela da sociedade brasileira possiacutevel Contando com pesquisas

cientiacuteficas (e investimentos) melhores condiccedilotildees para a regulamentaccedilatildeo ambiental e social

pelos oacutergatildeos puacuteblicos responsaacuteveis contar com a participaccedilatildeo de movimentos sociais assim

como das comunidades diretamente atingidas e com o conjunto da sociedade brasileira como

um todo jaacute que eacute uma atividade de enormes repercussotildees Natildeo podemos mais assistir a

cataacutestrofes como as ocorridas em Mariana e Brumadinho (ambas envolvendo a privatizada Vale

SA) sem termos propostas de mineraccedilatildeo mais seguras que levem em consideraccedilatildeo o conjunto

de elementos ambientais sociais econocircmicos e subjetivos que estatildeo em questatildeo E que

considerem nossa soberania e o tipo de desenvolvimento que a sociedade brasileira almeja

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291

Sobre asos autorases

Adriana Marcondes Machado

Professora do Departamento da Aprendizagem do Desenvolvimento e da Personalidade do

Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia

pela USP Fez Mestrado e Doutorado em Psicologia Social na mesma Universidade Trabalhou

como psicoacuteloga no Serviccedilo de Psicologia Escolar do IPUSP

Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim

Doutoranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

(IPUSP) Graduada em Psicologia possui especializaccedilatildeo em ldquoPraacuteticas Psicoloacutegicas em

Instituiccedilotildeesrdquo e Licenciatura pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) Pesquisa sobre Sauacutede

Mental em interface com Direitos Humanos Atualmente eacute psicoacuteloga no Ministeacuterio Puacuteblico de

SP

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo

Doutoranda do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento

Humano da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Graduada em Psicologia pela Universidade

Federal de Mato Grosso (UFMT) Mestre em Educaccedilatildeo pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Educaccedilatildeo no acircmbito do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infacircncia (GPPIN UFMT)

Andrielly Darcanchy de Toledo

Mestranda em Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Psicoacuteloga formada pela mesma Universidade Atua em Serviccedilos de Acolhimento Institucional

para Crianccedilas e Adolescentes (SAICA) de administraccedilatildeo direta da Prefeitura Municipal de

Osasco no estado de Satildeo Paulo Colaborou com a implementaccedilatildeo e acompanhamento do

Programa Laccedilos e iniciou a implementaccedilatildeo de Serviccedilo de Acolhimento em Famiacutelias

Acolhedoras

Beatriz Saks Hahne

Mestre e Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade

de Satildeo Paulo (USP) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Satildeo Paulo (PUC-SP) Atua com juventude em contextos de violecircncia especificamente

adolescentes autores de ato infracional e em cumprimento de medidas socioeducativas

Camila Trindade

Doutoranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringaacute (UEM) Graduada em

Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) Mestra em Psicologia pela

292

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Pesquisadora integrante do Nuacutecleo de Estudos

do Trabalho e Constituiccedilatildeo do Sujeito (NETCOSUFSC)

Carolina Esmanhoto Bertol

Doutora em Psicologia Social pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Integrante do

Laboratoacuterio Psicanaacutelise Sociedade e Poliacutetica do Programa de Psicologia Cliacutenica do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) e do Nuacutecleo de Loacutegicas Institucionais e

Coletivas da PUC-SP Atua como supervisora cliacutenico-institucional e em processos de formaccedilatildeo

de equipes que atuam nos serviccedilos da Poliacutetica de Assistecircncia Social

Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Psicoacuteloga Doutora em Psicologia da Educaccedilatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo

Paulo (PUC-SP) Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo

em Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) onde coordena o Grupo de

Pesquisa em Psicologia da Infacircncia (GPPINUFMT) Pesquisadora do Centro Internacional de

Estudos em Representaccedilotildees Sociais e Subjetividade - Educaccedilatildeo (CIERS-Ed)

Denise Zakabi

Possui mestrado em Ciecircncias pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de

Medicina da Universidade de Satildeo Paulo (USP) e doutorado em Psicologia Escolar e do

Desenvolvimento Humano no Instituto de Psicologia da mesma Universidade Graduou-se em

Psicologia pela USP

Fernanda Lyrio Heinzelmann

Doutoranda no programa de poacutes-graduaccedilatildeo de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da

Universidade de Satildeo Paulo (USP) Tecnoacuteloga em Moda e Estilo pela Universidade de Caxias

do Sul (UCS) Especialista em Criaccedilatildeo de Imagem de Moda e Styling pelo SENAC-SP e Mestra

em Psicologia pela Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Pesquisa a temaacutetica

de gecircnero com enfoque em transgeneridade e poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede

Heloiacutesa Aparecida de Souza

Docente da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas (PUC-Campinas) e membro da

Associaccedilatildeo Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) Psicoacuteloga e Doutora em Psicologia

como Profissatildeo e Ciecircncia pela PUC-Campinas

Henrique Araujo Aragusuku

Doutorando e Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo

Paulo Especialista em Psicologia Poliacutetica pela Escola de Artes Ciecircncias e Humanidades da

293

USP Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso Eacute membro do

Nuacutecleo de Pesquisas em Psicologia Poliacutetica e Movimentos Sociais (NUPMOS) da Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

Ianni Regia Scarcelli

Professora Associada do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Orienta Doutorado e Mestrado em Psicologia

Social aleacutem de Mestrado Profissional no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Formaccedilatildeo

Interdisciplinar em Sauacutede Possui Livre Docecircncia Doutorado e Mestrado em Psicologia Social

pela USP Psicoacuteloga graduada pela mesma Universidade

Izabela Penha Silva

Mestranda em psicologia pela Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) Especialista em

Abordagem Sistecircmica no Atendimento a Casal e Famiacutelia pelo Centro Universitaacuterio de

Araraquara (UNIARA) Psicoacuteloga graduada pelo Instituto de Psicologia da UFU

Johanna Garrido Pinzoacuten

Docente da Fundaccedilatildeo Hermiacutenio Ometto Psicoacuteloga pela Universidade Pontifiacutecia Bolivariana e

Doutora em Psicologia como Profissatildeo e Ciecircncia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Campinas (PUC-Campinas)

Joseacute Fernando Andrade Costa

Professor da aacuterea de Psicologia no Departamento de Ciecircncias Humanas e Filosofia da

Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Mestre e doutorando em Psicologia Social

pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo Eacute membro do Grupo de Pesquisa

ldquoPsicologia e Teoria Criacuteticardquo (UEFS) e do Laboratoacuterio Interinstitucional de Estudos sobre

Intersubjetividade Criacutetica Social Direitos Humanos (INCIDIR)

Kate Delfini Santos

Doutoranda no programa de poacutes-graduaccedilatildeo de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da

Universidade de Satildeo Paulo (USP) Mestre em Psicologia Cliacutenica pela mesma Universidade

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie Atuou como pesquisadora

do Nuacutecleo de Estudos da Violecircncia da Universidade de Satildeo Paulo (NEVUSP) e atualmente eacute

psicoacuteloga cliacutenica em um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infanto-juvenil (CAPS-IJ)

Liandra Savanhago

Psicoacuteloga do Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) Pesquisadora integrante do

Nuacutecleo de Estudos do Trabalho e Constituiccedilatildeo do Sujeito (NETCOSUFSC) Possui graduaccedilatildeo

em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Mestra em Psicologia na

294

aacuterea de Psicologia Social e Cultura (UFSC) Especialista em Sauacutede Coletiva com ecircnfase na

temaacutetica sobre violecircncia de gecircnero (UFSC)

Marcelo Afonso Ribeiro

Professor Livre Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (PST-IPUSP)

Marcia Hespanhol Bernardo

Doutora em Psicologia Social pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) trabalhou como psicoacuteloga

na sauacutede mental e na sauacutede do trabalhador no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) e foi professora

do programa de poacutes-graduaccedilatildeo da Pontifiacutecia UC-Campinas durante 10 anos Atualmente estaacute

aposentada e colabora como professora e coorientadora no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em

Psicologia Social na USP

Maria Chalfin Coutinho

Professora Titular Aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Docente do

PPGPUFSC Possui graduaccedilatildeo em Psicologia e mestrado em Educaccedilatildeo pela UFRGS Doutora

em Ciecircncias Sociais pela UNICAMP Realizou estudos poacutes-doutorais junto ao Programa de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social da USP Coordena o Nuacutecleo de Estudos Trabalho e

Constituiccedilatildeo do Sujeito (NETCOS UFSC)

Maria Fernanda Aguilar Lara

Mestranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

Possui experiecircncia na Assistecircncia Social atraveacutes da atuaccedilatildeo como psicoacuteloga no SUAS de 2016

a 2018 Atualmente eacute membro do grupo de pesquisa ldquoA governanccedila multiniacutevel da poliacutetica de

assistecircncia socialrdquo vinculado ao Centro de Estudos da Metroacutepole (CEM-USP) e do

Laboratoacuterio de Estudos e Pesquisas em Trabalho Movimentos Sociais e Poliacuteticas Sociais

(TRAMPOS) do IPUSP

Maria Luisa Sandoval Schmidt

Professora Titular do departamento de Psicologia da Aprendizagem do Desenvolvimento e da

Personalidade da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia pela

mesma instituiccedilatildeo Mestre e Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano

pela USP Tambeacutem eacute livre-docente pela mesma instituiccedilatildeo

Mariana Belluzzi Ferreira

Mestre em Psicologia Social pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

Membro do Laboratoacuterio Psicanaacutelise Poliacutetica e Sociedade do Programa de Psicologia Cliacutenica

do Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Atua como supervisora cliacutenico-

295

institucional e em processos formativos junto agraves equipes dos serviccedilos referenciados agrave poliacutetica

puacuteblica de Assistecircncia Social

Mariana Fagundes de Almeida Rivera

Mestranda no programa de poacutes-graduaccedilatildeo de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da

Universidade de Satildeo Paulo (PST-IPUSP) pesquisando a temaacutetica de gecircnero e sauacutede Psicoacuteloga

formada pelo IPUSP Atende tambeacutem em consultoacuterio particular Jaacute foi psicoacuteloga em equipe

NASF (Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia) no SUS e em Serviccedilo de Medidas Socioeducativas

em Meio Aberto no SUAS

Mariana Pereira da Silva

Psicoacuteloga cliacutenica e Mestre em Psicologia como Profissatildeo e Ciecircncia pela Pontifiacutecia Universidade

Catoacutelica de Campinas (PUC-Campinas) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia pela mesma

Universidade

Mariana Prioli Cordeiro

Professora Doutora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Eacute Mestre e Doutora em Psicologia Social pela

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) e poacutes-doutora na mesma aacuterea pelo

Instituto de Psicologia da USP Desenvolve estudos sobre poliacuteticas sociais enfocando a

inserccedilatildeo da Psicologia no Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS)

Omar Calazans Nogueira Pereira

Psicoacutelogo escolar na Diretoria de Ensino da Regiatildeo de Suzano por meio da Fundaccedilatildeo Faculdade

de Medicina Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo

Paulo (IPUSP) Psicoacutelogo e licenciado em Psicologia pelo IPUSP com aperfeiccediloamento em

Orientaccedilatildeo Profissional e de Carreira pelo IPUSP

Patriacutecia Peixoto Zapletal

Pedagoga formada pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) e mestre em

Educaccedilatildeo pela Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Paula Rosana Cavalcante

Mestre e Doutoranda em Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo

Paulo (USP) Graduada em Psicologia pela mesma Universidade e especialista em Psicologia

Juriacutedica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) Psicoacuteloga da Defensoria Puacuteblica do Estado

de Satildeo Paulo desde 2010

296

Paula Sassaki Coelho

Mestre em Psicologia Social pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) com especializaccedilatildeo latu

sensu em Educaccedilatildeo do Campo e Agroecologia pela mesma Universidade Possui graduaccedilatildeo em

Psicologia pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Tem experiecircncia profissional

na aacuterea de Psicologia com ecircnfase em Sauacutede Mental na Atenccedilatildeo Baacutesica no Sistema Uacutenico de

Sauacutede (SUS)

Renata Fabiana Pegoraro

Poacutes-Doutoranda em Psicologia Social pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

(PUC-SP) Doutora e mestre em Psicologia pela Universidade de Satildeo Paulo ndash Campus Ribeiratildeo

Especialista em Sauacutede Coletiva pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCAR) Docente

do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Psicologia do Instituto de Psicologia da

Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU)

Rodolfo Luis Almeida Maia

Atualmente eacute mestrando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) e

estuda os espaccedilos institucionalizados de Controle Social do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) a

partir das experiecircncias com a Comissatildeo de Moradores do Jardim Brasiacutelia e Vitoacuteria-reacutegia

Psicoacutelogo e bacharel em Psicologia formado pela mesma Universidade Desenvolveu um

projeto de iniciaccedilatildeo cientiacutefica sobre a atuaccedilatildeo de psicoacutelogas(os) do Sistema Uacutenico de

Assistecircncia Social (SUAS) no tema das relaccedilotildees eacutetnico-raciais

Tatiana Alves Romatildeo

Psicoacuteloga Psicodramatista e Socionomista Mestre em Educaccedilatildeo e doutoranda no Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (IP-USP) Eacute membro de dois grupos de pesquisa no

Brasil o Grupo de Pesquisa ldquoPoliacuteticas de Educaccedilatildeo Superiorrdquo sediado no PPGE-Uninove e o

ldquoLaboratoacuterio de Psicanaacutelise e Psicologia Socialrdquo (LAPSO-USP)

Tielly Rosado Maders

Mestra e Doutoranda em Psicologia pela UFSC Graduada em Psicologia pela Universidade

Franciscana (UFN) Especialista em Poliacuteticas Puacuteblicas para igualdade na Ameacuterica Latina pelo

Conselho Latinoamericano de Ciecircncias Sociais (CLACSO-Argentina) Pesquisadora integrante

do Nuacutecleo de Estudos do Trabalho e Constituiccedilatildeo do Sujeito e do Nuacutecleo de Estudos e Pesquisa

em Serviccedilo Social e Organizaccedilatildeo Popular

297

Pareceristas

Agradecemos a todasos aquelases que contribuiacuteram para o aprimoramento dos capiacutetulos

desta coletacircnea emitindo pareceres

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo

Beatriz Besen de Oliveira

Beatriz Saks Hahne

Cintia Helena Bulgarelli Freitas

Daniel Augusto de Andrade Pinheiro

Denise Zakabi

Felipe Cazeiro

Fernanda Lyrio Heinzelmann

Flaacutevia de Mendonccedila Ribeiro

Gabriela Milareacute Camargo

Henrique Araujo Aragusuku

Joseacute Fernando Andrade Costa

Laura Vilela e Souza

Liandra Savanhago

Luciana Alonso

Maria Fernanda Aguilar Lara

Mariana Belluzzi Ferreira

Mariana Fagundes de Almeida Rivera

Mariana Prioli Cordeiro

Naiana Marinho Gonccedilalves

Omar Calazans Nogueira Pereira

Rociacuteo Bravo Shuntildea

Rodolfo Luis Almeida Maia

Ruzia Chaouchar dos Santos

Sirlene Lopes de Miranda

Thiago Sousa Felix

Page 2: P ú b l i c a s : P o l í t i c a s P s i c o l o g i a e

Pesquisas em Psicologia e

Poliacuteticas Puacuteblicas

Diaacutelogos na poacutes-graduaccedilatildeo

Volume 1

Mariana Prioli Cordeiro

Maria Fernanda Aguilar Lara

Henrique Araujo Aragusuku

Rodolfo Luis Almeida Maia

(Organizadores)

DOI 10116069788586736926

1

E permitida a reproduccedilatildeo parcial ou total desta obra desde que citada a fonte e autoria

proibido qualquer uso para fins comerciais

Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo

Biblioteca Dante Moreira Leite

Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

Pesquisas em psicologia e poliacuteticas puacuteblicas organizado por Mariana Prioli Cordeiro [et al] ‐ Satildeo Paulo IPUSP 2019 298 p (Diaacutelogos na Poacutes‐Graduaccedilatildeo v1) ISBN 978-85-86736-92-6 DOI 10116069788586736926 1 Psicologia social 2 Pesquisa cientiacutefica 3 Poliacuteticas puacuteblicas I Tiacutetulo HM 251

2

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

Reitor Vahan Agopyan

Vice reitor Antonio Carlos Hernandes

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Diretora Marilene Proenccedila Rebello de Souza

Vice diretor Andreacutes Eduardo Aguirre Antuacutenez

CONSELHO EDITORIAL

Profa Dra Adriana Marcondes Machado

Prof Dr Arley Andriollo

Prof Dr Danilo Silva Guimaratildees

Profa Dra Marina Ferreira da Rosa Ribeiro

Profa Dra Miriam Debieux Rosa

Prof Dr Nelson Ernesto Coelho Junior

Prof Dr Rogeacuterio Lerner

3

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 5

Maria Fernanda Aguilar Lara Henrique Araujo Aragusuku Rodolfo Luis Almeida

Maia e Mariana Prioli Cordeiro

1 Contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para anaacutelise da relaccedilatildeo entre atores estatais e

natildeo estatais na implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas 10

Joseacute Fernando Andrade Costa

2 A assistecircncia social no Brasil uma anaacutelise histoacuterica das relaccedilotildees entre OSC e Estado 30

Maria Fernanda Aguilar Lara e Mariana Prioli Cordeiro

3 Proteccedilatildeo Social e Fortalecimento de Viacutenculos contribuiccedilotildees da Poliacutetica de Assistecircncia

Social a mulheres idosas 50

Izabela Penha Silva e Renata Fabiana Pegoraro

4 A Psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social estudo de caso de um jovem em

cumprimento de medidas socioeducativas 66

Liandra Savanhago Camila Trindade Tielly Rosado Maders e Maria Chalfin

Coutinho

5 Medidas socioeducativas as narrativas de adolescentes e o uso da literatura como

disparadores de anaacutelise 86

Beatriz Saks Hahne e Adriana Marcondes Machado

6 A Implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo em SAICAs de Osasco

103

Andrielly Darcanchy de Toledo e Mariana Prioli Cordeiro

7 A concepccedilatildeo desenvolvimentista de adolescecircncia e seus impasses para a poliacutetica de

Assistecircncia Social 128

Mariana Belluzzi Ferreira e Carolina Esmanhoto Bertol

8 Jovens da escola Nazareacute Flor experiecircncias de vida no assentamento Maceioacute litoral do

Cearaacute 148

Denise Zakabi e Maria Luisa Sandoval Schmidt

9 O Programa Mais Educaccedilatildeo e a produccedilatildeo de uma subjetividade aprendiz 168

Patriacutecia Peixoto Zapletal e Adriana Marcondes Machado

4

10 Poliacuteticas Puacuteblicas de Orientaccedilatildeo Profissional uma anaacutelise socioconstrucionista sobre a

construccedilatildeo do Projeto de Vida no Programa Ensino Integral (PEI) 189

Omar Calazans Nogueira Pereira e Marcelo Afonso Ribeiro

11 A tessitura de redes de diaacutelogo e de participaccedilatildeo de crianccedilas no cuidado hospitalar

pediaacutetrico 210

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo Daniela Barros da Silva Freire Andrade e

Adriana Marcondes Machado

12 Psicologia Social e Poliacuteticas Puacuteblicas em diaacutelogo com sauacutede e educaccedilatildeo questotildees de

gecircnero sauacutede mental justiccedila violecircncia e permanecircncia estudantil 230

Mariana Fagundes de Almeida Rivera Tatiana Alves Romatildeo Ana Carolina

Martins de Souza Felippe Valentim Fernanda Lyrio Heinzelmann Kate Delfini

Santos Paula Rosana Cavalcante e Ianni Regia Scarcelli

13 Algumas contribuiccedilotildees da Psicologia para o campo da Sauacutede do Trabalhador 251

Heloiacutesa Aparecida de Souza Johanna Garrido Pinzoacuten Marcia Hespanhol

Bernardo e Mariana Pereira da Silva

14 Mulheres e Mineraccedilatildeo contribuiccedilotildees da Psicologia Social no campo das poliacuteticas

puacuteblicas 273

Paula Sassaki Coelho

Sobre asos autorases 291

Pareceristas 297

5

Apresentaccedilatildeo

Maria Fernanda Aguilar Lara

Henrique Araujo Aragusuku

Rodolfo Luis Almeida Maia

Mariana Prioli Cordeiro

No Brasil as relaccedilotildees entre a Psicologia e as poliacuteticas puacuteblicas satildeo complexas e

multifacetadas e natildeo existe um uacutenico modo de compreendermos essa questatildeo Ao realizarmos

uma breve busca nos bancos de dados acadecircmicos utilizando de forma combinada esses dois

descritores constatamos que haacute uma vasta literatura em Psicologia que trata sobre a temaacutetica

das poliacuteticas puacuteblicas em suas diversas aacutereas ndash como na sauacutede educaccedilatildeo assistecircncia social

seguranccedila puacuteblica direitos humanos entre outras Estes textos foram produzidos a partir de

distintas perspectivas analiacuteticas e mobilizam muacuteltiplos repertoacuterios teoacutericos conceituais e

metodoloacutegicos de pesquisa e intervenccedilatildeo Foram escritos principalmente por psicoacutelogosas

ainda que em algumas publicaccedilotildees constatamos a participaccedilatildeo de profissionais de outros

campos Psicoacutelogosas com diferentes tipos de formaccedilatildeo profissional atuando a partir de

distintas localidades e aacutereas em um paiacutes de tamanho continental marcado por uma grande

diversidade geograacutefica institucional e sociocultural

Poderiacuteamos dizer que para discutirmos as relaccedilotildees entre esses dois ldquocamposrdquo teriacuteamos

de nos perguntar o que eacute a Psicologia E o que satildeo poliacuteticas puacuteblicas Como se estabelecem

as conexotildees entre ambas No entanto essas perguntas que em princiacutepio parecem simples (e ateacute

ingecircnuas) natildeo satildeo nada faacuteceis de responder Afinal as palavras ldquoPsicologiardquo e ldquopoliacuteticas

puacuteblicasrdquo funcionam como termos guarda-chuvas que aglutinam uma seacuterie de conceitos e

sistemas de representaccedilatildeo (ontologias epistemologias e teorias) estando permeadas por

contradiccedilotildees conflitos e polissemias Isto eacute natildeo eacute possiacutevel estabelecer uma uacutenica verdade sobre

esses termos e seus sentidos Prova disso eacute que em muitos momentos vemos que os estudos

em Psicologia trabalham as poliacuteticas puacuteblicas a partir de linguagens diferentes que pouco

dialogam entre si

De forma geneacuterica a Psicologia pode ser compreendida como um campo disciplinar

institucional e profissional autocircnomo Poreacutem essa definiccedilatildeo natildeo daacute conta da complexidade de

6

sua natureza e funccedilatildeo enquanto campo do conhecimento Trata-se de uma aacuterea da sauacutede da

educaccedilatildeo das ciecircncias sociais das ciecircncias do comportamento Seu objeto eacute a mente a psique

o comportamento o social a cultura Por outro lado em termos gerais as poliacuteticas puacuteblicas

podem ser compreendidas como as accedilotildees promovidas pelo poder puacuteblico (Judiciaacuterio Executivo

e Legislativo) nas mais diversas aacutereas de atuaccedilatildeo No entanto o poder puacuteblico se manifesta

unicamente pela via estatal As poliacuteticas puacuteblicas satildeo apenas accedilotildees estruturadas e de longo

prazo ou seriam todas as accedilotildees (fragmentaacuterias de curto e meacutedio prazo) promovidas pelo poder

puacuteblico Como a esfera privada se relaciona com as poliacuteticas puacuteblicas

Neste sentido acreditamos que eacute de fundamental importacircncia a proposiccedilatildeo de diaacutelogos

e aproximaccedilotildees entre as vaacuterias abordagens que constituem esse campo ndash compreendendo que

existem diferentes formas de conceituaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas e de definiccedilatildeo dos ldquoobjetosrdquo e

ldquoobjetivosrdquo da Psicologia Cabe ressaltar que natildeo se trata de estabelecermos uma uacutenica verdade

sobre o que eacute um estudo em ldquoPsicologiardquo sobre ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo mas sim de pensarmos

como estes dois campos podem se relacionar a partir de diferentes olhares espaccedilos

temporalidades e perspectivas

A proposta de construccedilatildeo desta coletacircnea surgiu a partir dessas inquietaccedilotildees recorrentes

em diversos espaccedilos de diaacutelogo e reflexatildeo acadecircmica Inquietaccedilotildees que apontam para a

necessidade de discutirmos as diferentes abordagens teorias e metodologias utilizadas em

pesquisas sobre o tema Para alcanccedilar esse objetivo optamos por enfocar pesquisas receacutem

realizadas (ou em fase de conclusatildeo) no acircmbito dos programas de poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia

Esta escolha foi motivada fundamentalmente pela necessidade de dar visibilidade a pesquisas

de mestrado e doutorado que trataram a temaacutetica das poliacuteticas puacuteblicas a partir dos referenciais

da Psicologia estabelecendo tambeacutem pontes de diaacutelogo e aproximaccedilotildees entre distintos aportes

Notamos que a maioria das pesquisas desenvolvidas no acircmbito da poacutes-graduaccedilatildeo ficam

restritas aos formatos de teses e dissertaccedilotildees natildeo sendo publicadas em versotildees resumidas como

artigos capiacutetulos e ensaios que facilitam a circulaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo do conhecimento

acadecircmico Em conversas entre estudantes da poacutes-graduaccedilatildeo do IPUSP satildeo frequentes os

relatos sobre as dificuldades que perpassam a publicaccedilatildeo de artigos em perioacutedicos cientiacuteficos

tendo em vista a falta de estrutura profissional (em relaccedilatildeo agrave vida acadecircmica) para a elaboraccedilatildeo

e submissatildeo dos textos e o longo processo de avaliaccedilatildeo e editoraccedilatildeo dos perioacutedicos Por outro

lado osas estudantes tambeacutem relatam que sentem a necessidade de publicar suas pesquisas em

formato de artigo tanto para a melhoria de seus curriacuteculos quanto pela circulaccedilatildeo e

compartilhamento dos resultados produzidos ao longo de anos de estudo

7

Somado a isto natildeo podemos deixar de mencionar o momento poliacutetico que enfrentamos

no Brasil no que concerne agrave poacutes-graduaccedilatildeo Temos presenciado e sentido as medidas

sancionadas pela atual gestatildeo do Governo Federal que reduzem significativamente o nuacutemero

de bolsas destinadas a pesquisas de poacutes-graduaccedilatildeo Ateacute setembro de 2019 foram cortadas

aproximadamente doze mil bolsas da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior (Capes) Concomitantemente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e

Tecnoloacutegico (CNPq) informou que natildeo possui orccedilamento para pagar as mais de oitenta mil

bolsas de pesquisa ateacute o final do ano gerando uma imensa crise administrativa na pasta de

Ciecircncia e Tecnologia Essas medidas se natildeo revogadas prejudicam o desenvolvimento

imediato e futuro da pesquisa cientiacutefica no Brasil que somadas a outras accedilotildees do governo

resultaratildeo no desmonte e na privatizaccedilatildeo das universidades puacuteblicas Assim as duas maiores

agecircncias brasileiras de fomento agrave pesquisa cientiacutefica encontram-se ameaccediladas por um projeto

de governo que ataca a democratizaccedilatildeo da ensino superior no Brasil

Foi a partir deste contexto poliacutetico e institucional que tem afligido milhares de

pesquisadoresas que pensamos em dar visibilidade agraves pesquisas cientiacuteficas desenvolvidas por

estudantes de poacutes-graduaccedilatildeo Portanto a construccedilatildeo deste livro eacute para noacutes um ato de

resistecircncia uma forma de ilustrar quantos trabalhos importantes estatildeo sendo desenvolvidos por

meio do financiamento puacuteblico de pesquisa cientiacutefica ndash seja atraveacutes da estrutura que a

universidade puacuteblica oferece ou pelo fomento direto proporcionado pelas bolsas de mestrado

e doutorado do CNPq e da Capes Todo esse debate demonstra o quanto as poliacuteticas puacuteblicas

atravessam as pessoas e a vida social em seus mais diversos aspectos e que dificilmente

conseguimos nos esquivar dessa temaacutetica

Sobre o processo de construccedilatildeo deste livro inicialmente fizemos uma chamada aberta

a pesquisadoresas que desenvolveram estudos sobre poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito de

programas de poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Recebemos uma grande quantidade de propostas

de capiacutetulo com significativa relevacircncia social e acadecircmica o que acabou fazendo com que

fossem necessaacuterios dois volumes para a publicaccedilatildeo de todos os trabalhos selecionados O

processo de anaacutelise avaliaccedilatildeo e revisatildeo dos trabalhos tambeacutem foi feito de forma coletiva

Convidamos asos proacuteprios autoresas assim como outrosas pesquisadoresas para atuar como

pareceristas Assim cada texto foi avaliado por doisduas pareceristas que fizeram comentaacuterios

e contribuiccedilotildees que ajudaram no aperfeiccediloamento dos textos Entendemos que a avaliaccedilatildeo por

pares natildeo apenas tornou o processo de elaboraccedilatildeo do livro mais colaborativo mas tambeacutem

contribuiu para melhorar a explicitaccedilatildeo do meacutetodo a descriccedilatildeo das resultados e o

8

amadurecimento das proposiccedilotildees teoacutericas presentes nos capiacutetulos favorecendo um processo

reflexivo

O resultado desse processo coletivo resultou em uma coletacircnea composta por 14

capiacutetulos No primeiro deles Joseacute Fernando Andrade Costa recorre aos pressupostos da

Psicologia Social Criacutetica para discutir implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas enfocando a relaccedilatildeo

entre atores estatais e natildeo estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos O debate em torno da

relaccedilatildeo estado-sociedade civil segue sendo tema do capiacutetulo seguinte de autoria de Maria

Fernanda Aguilar Lara e Mariana Prioli Cordeiro Mas nele o foco recai sobre como essa

relaccedilatildeo foi se constituindo ao longo da histoacuteria da Assistecircncia Social no Brasil

Jaacute no capiacutetulo 3 de autoria de Izabela Penha Silva e Renata Fabiana Pegoraro eacute o

presente da poliacutetica de Assistecircncia Social que estaacute em debate Mais especificamente as autoras

apresentam os resultados de uma pesquisa que buscou investigar como um grupo de mulheres

idosas compreendem e avaliam as accedilotildees do Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social do qual

satildeo usuaacuterias No capiacutetulo seguinte Liandra Savanhago Camila Trindade Tielly Rosado

Maders e Maria Chalfin Coutinho articulam reflexotildees sobre as trajetoacuterias de vida de um jovem

em cumprimento de medida socioeducativa com a discussatildeo em torno das praacuteticas psi em

serviccedilos de assistecircncia social No capiacutetulo 5 de autoria de Beatriz Saks Hahne e Adriana

Marcondes Machado a discussatildeo dessa medida ganha outros contornos Nele o foco recai

sobre as memoacuterias e narrativas de adolescentes que cumprem ou cumpriram recentemente

medida socioeducativa

Ainda sobre a poliacutetica de assistecircncia social de autoria de Andrielly Darcanchy de

Toledo e Mariana Prioli Cordeiro o capiacutetulo 6 debate a implementaccedilatildeo do Programa de

Apadrinhamento Afetivo no municiacutepio de Osasco-SP atraveacutes do relato de experiecircncia de

trabalho com Serviccedilos de Acolhimento Institucional para Crianccedilas e Adolescentes (SAICA) E

no capiacutetulo 7 Mariana Belluzzi Ferreira e Carolina Esmanhoto Bertol levantam reflexotildees sobre

as poliacuteticas puacuteblicas destinadas agrave garantia de direitos de adolescentes no acircmbito da assistecircncia

social discutindo o discurso ldquomenoristardquo que perpassa a histoacuteria desta poliacutetica no Brasil

Nos capiacutetulos seguintes a discussatildeo sobre poliacuteticas puacuteblicas ganha outros rumos com

o enfoque na temaacutetica da educaccedilatildeo em diaacutelogo com outras poliacuteticas puacuteblicas No capiacutetulo 8

Denise Zakabi e Maria Luisa Sandoval Schmidt abordam as contribuiccedilatildeo da Psicologia para o

estudo das ruralidades e das poliacuteticas puacuteblicas relacionadas ao campo Para isto as autoras

analisam as experiecircncias de jovens que frequentam a escola Nazareacute Flor localizada em uma

assentamento rural na planiacutecie litoracircnea oeste do Cearaacute Jaacute no capiacutetulo 9 de autoria de Patriacutecia

9

Peixoto Zapletal e Adriana Marcondes Machado o Programa Mais Educaccedilatildeo ndash promovido pelo

Governo Federal de 2007 a 2016 ndash se torna o centro do debate Utilizando a noccedilatildeo de

governamentalidade oriunda dos escritos foucaultianos as autoras problematizam a

formulaccedilatildeo e a implementaccedilatildeo deste programa governamental

No capiacutetulo 10 Omar Calazans Nogueira Pereira e Marcelo Afonso Ribeiro discutem

como a Orientaccedilatildeo Profissional enquanto campo teoacuterico-metodoloacutegico da Psicologia se insere

nas poliacuteticas puacuteblicas de educaccedilatildeo a partir da anaacutelise do Programa de Escola Integral (PEI) do

Governo do Estado de Satildeo Paulo

Os dois proacuteximos capiacutetulos discutem a temaacutetica da Psicologia e poliacuteticas puacuteblicas em

diaacutelogo com a educaccedilatildeo e a sauacutede O capiacutetulo 11 ndash de autoria de Andreia Maria de Lima

Assunccedilatildeo Adriana Marcondes Machado e Daniela Barros da Silva Freire Andrade - apresenta

uma pesquisa realizada na ala pediaacutetrica de um hospital puacuteblico da cidade de Cuiabaacute

levantando questotildees sobre como considerar as vivecircncias das crianccedilas nas poliacuteticas de sauacutede Jaacute

no capiacutetulo 12 Mariana Fagundes de Almeida Rivera Tatiana Alves Romatildeo Ana Carolina

Martins de Souza Felippe Valentim Fernanda Lyrio Heinzelmann Kate Delfini Santos Paula

Rosana Cavalcante e Ianni Regia Scarcelli apresentam as pesquisas de mestrado e doutorado

desenvolvidas pelo Laboratoacuterio de Estudos em Psicanaacutelise e Psicologia Social (LAPSO) do

IPUSP

No capiacutetulo seguinte a poliacutetica de sauacutede eacute debatida em conjunto agrave temaacutetica do Trabalho

Heloiacutesa Aparecida de Souza Johanna Garrido Pinzoacuten Marcia Hespanhol Bernardo e Mariana

Pereira da Silva apresentam uma siacutentese dos resultados das discussotildees e pesquisas realizadas

pelo grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que desde

2009 tem se dedicado ao estudo dos fenocircmenos vinculados agrave sauacutede de trabalhador Por fim no

capiacutetulo 14 Paula Sassaki Coelho traz algumas reflexotildees sobre o papel do Estado diante da

induacutestria da mineraccedilatildeo a partir de uma experiecircncia de pesquisa em Conceiccedilatildeo do Mato Dentro

no estado de Minas Gerais

10

Capiacutetulo 1

Contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para anaacutelise da relaccedilatildeo entre

atores estatais e natildeo estatais na implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

Joseacute Fernando Andrade Costa

Introduccedilatildeo

Este capiacutetulo tem como objetivo apresentar e discutir algumas contribuiccedilotildees atuais da

Psicologia Social Criacutetica para a anaacutelise de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas tomando como

recorte a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos Trata-se

de realizar um aprofundamento analiacutetico de parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado

sobre a implementaccedilatildeo de serviccedilos socioassistenciais na cidade de Satildeo Paulo (Costa 2016) A

intenccedilatildeo aqui natildeo eacute repetir os argumentos jaacute apresentados na referida pesquisa mas

desenvolver melhor alguns pontos que laacute foram apenas esboccedilados sobretudo em termos de uma

fundamentaccedilatildeo teoacuterico-metodoloacutegica baseada na articulaccedilatildeo entre uma teoria criacutetica do

reconhecimento reciacuteproco (Honneth 2003) e a sociologia da accedilatildeo puacuteblica (Lascoumes amp Le

Galegraves 2012) para o estudo psicossocial das poliacuteticas puacuteblicas

Cabe frisar uma motivaccedilatildeo para o resgate da pesquisa empiacuterica e o esforccedilo de continuar

a refletir sobre seus achados quando do iniacutecio do processo do mestrado o projeto fora escrito

tendo em vista compreender o papel das poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social para o

fortalecimento da cidadania Contudo os desafios do trabalho de pesquisa e o curto tempo de

um mestrado acabaram provocando algumas transformaccedilotildees significativas na forma de abordar

esse objeto Nem sempre todas as transformaccedilotildees e aprendizados decorrentes de uma pesquisa

de poacutes-graduaccedilatildeo satildeo depurados no relatoacuterio final por isso vale a pena seguir desenvolvendo

as ideias em novos foacuteruns (Costa 2017)

Das transformaccedilotildees do projeto inicial a principal foi uma radical mudanccedila na

compreensatildeo sobre o que satildeo as poliacuteticas puacuteblicas e sobre como abordaacute-las numa perspectiva

psicossocial criacutetica Se inicialmente a ideia era pesquisar as ldquoPoliacuteticas Puacuteblicas de Assistecircncia

Socialrdquo no decorrer do processo de pesquisa passei a conhecer o ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah

2016) e em especial a perspectiva da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo A importacircncia analiacutetica atribuiacuteda a tal

11

deslocamento seraacute tratada neste capiacutetulo na medida em que se pretende discutir possiacuteveis

contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para a anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas

Houve tambeacutem a necessidade de problematizar o que se convencionou chamar de

Psicologia Social Criacutetica Toda Psicologia Social enseja de certa forma um esclarecimento

sobre de qual Psicologia Social se trata exatamente uma vez que este natildeo eacute um campo

homogecircneo (Silva Juacutenior amp Zangari 2017) Isso eacute verdadeiro tambeacutem para a Psicologia Social

Criacutetica Este qualificativo ndash ldquocriacuteticardquo ndash refere-se efetivamente a quecirc Agrave criacutetica de determinado

modelo teoacuterico-metodoloacutegico ldquotradicionalrdquo Agrave criacutetica de uma determinada atitude (passiva)

perante as contradiccedilotildees da realidade social Agrave proposiccedilatildeo de um determinado referencial

analiacutetico ldquocriacuteticordquo Ou ainda ele designa uma subaacuterea da Psicologia Social na qual se

encontram determinadas pessoas e ideias A Psicologia Social Criacutetica com a qual irei trabalhar

nesse texto eacute aquela que se vale reflexivamente das contribuiccedilotildees da filosofia moral e da teoria

social com o intuito de explicar processos e padrotildees de interaccedilatildeo interpessoais institucionais

e societaacuterios de forma articulada mas sem perder de vista os horizontes normativos de

libertaccedilatildeo e emancipaccedilatildeo humana

Nessa perspectiva as disciplinaridades tambeacutem merecem ser questionadas A

ultraespecializaccedilatildeo exigida pelo mercado simboacutelico do campo acadecircmico tem um alcance

limitado e limitador para produzir conversas instrutivas e alargar o espaccedilo formativo de seus

participantes Se por um lado a especializaccedilatildeo contiacutenua eacute um valor intriacutenseco ao

desenvolvimento do pensamento cientiacutefico e da capacitaccedilatildeo teacutecnica por outro eacute necessaacuterio

olhar para aleacutem das fronteiras para enxergar no horizonte os benefiacutecios da interdisciplinaridade

da transdisciplinaridade e inclusive de certa dose de indisciplinaridade

Assim espero contribuir para ampliar as perspectivas criacuteticas de anaacutelise das poliacuteticas

puacuteblicas pela Psicologia Social e para favorecer a busca de um diaacutelogo profiacutecuo entre esses dois

campos Afinal como diz Howard Becker (2015) a vida intelectual nada mais eacute do que um

diaacutelogo entre pessoas interessadas no mesmo assunto

O presente capiacutetulo estaacute estruturado da seguinte maneira num primeiro momento (1)

seraacute abordada a questatildeo da relaccedilatildeo entre Psicologia Social e Teoria Criacutetica com o intuito de

apresentar a teoria do reconhecimento reciacuteproco de Axel Honneth e o modo como ela pode ser

uacutetil para a anaacutelise de instituiccedilotildees em seguida (2) seraacute proposto o deslocamento da perspectiva

das poliacuteticas puacuteblicas em direccedilatildeo agrave compreensatildeo mais ampla da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo enfatizando o

potencial do campo psicossocial em contribuir com estudos sobre anaacutelise do processo de

implementaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos e por fim (3) as articulaccedilotildees entre as duas perspectivas

12

anteriores seratildeo desenvolvidas a partir de alguns dos resultados da pesquisa empiacuterica com foco

na relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais que atuam na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos de

assistecircncia social no municiacutepio de Satildeo Paulo Nas consideraccedilotildees finais satildeo apresentas algumas

reflexotildees sobre as potencialidades e os limites dessa proposta

1 Psicologia Social e Teoria Criacutetica

A Psicologia Social Criacutetica costuma ser genericamente identificada como resultado da

crise de referecircncia da disciplina na deacutecada de 1970 quando o modelo dominante da Psicologia

Social positivista passou a ser sistematicamente criticado por sua insuficiecircncia em dar respostas

efetivas aos diversos problemas sociais cada vez mais urgentes nos paiacuteses latino-americanos

Esse movimento fez surgir uma concepccedilatildeo alternativa de Psicologia Social orientada natildeo

apenas por pressupostos cientiacuteficos mas principalmente pela ideia de um compromisso social

e poliacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade

Diversos referenciais teoacuterico-metodoloacutegicos passaram a ser desenvolvidos desde entatildeo

pela Psicologia Social com destaque para a assimilaccedilatildeo de abordagens marxistas poacutes-

estruturalistas e construcionistas1 Como observa Fernaacutendez Christlieb (2019) em sua descriccedilatildeo

das transformaccedilotildees da disciplina nas uacuteltimas deacutecadas hoje a Psicologia Social encontra-se

enormemente enriquecida pela quantidade de leituras produccedilotildees e debates sobre os mais

variados temas que a tornaram ldquouma disciplina paradoxalmente soacutelida e consolidada mas sem

ser canocircnica nem dogmaacuteticardquo (p 17) O elemento da ldquocriacuteticardquo parece funcionar como pivocirc da

articulaccedilatildeo de diferentes perspectivas e modos de fazer Psicologia Social capazes natildeo apenas

de desvelar a realidade mas tambeacutem de buscar caminhos para transformaacute-la

Dentre os modelos que informam os trabalhos teoacutericos e empiacutericos da Psicologia Social

Criacutetica no Brasil destacam-se as contribuiccedilotildees da tradiccedilatildeo de pensamento conhecida como

ldquoTeoria Criacutetica da Sociedaderdquo ou ldquoEscola de Frankfurtrdquo (Crochiacutek 2013 Lima 2015) As

1Em relaccedilatildeo agraves Poliacuteticas Puacuteblicas a Psicologia Social tem buscado contribuir teoacuterico-metodologicamente a partir

de diferentes bases epistemoloacutegicas que vatildeo se fortalecendo em diversos foacuteruns profissionais e acadecircmicos Por

exemplo desde uma perspectiva marxista haacute trabalhos que discutem as contradiccedilotildees estruturais das poliacuteticas

sociais implementadas pelo Estado como resposta agrave questatildeo social no Modo de Produccedilatildeo Capitalista (Oliveira amp

Costa 2018) desde uma perspectiva poacutes-estruturalista ressalta-se o aspecto biopoliacutetico dos dispositivos puacuteblicos

enquanto tecnologias de governo das populaccedilotildees e de gerenciamento dos riscos sociais (Cavagoli amp Guareschi

2018) desde uma perspectiva (poacutes-)construcionista as poliacuteticas puacuteblicas satildeo entendidas como processos

heterogecircneos que constituem redes hiacutebridas fruto de muacuteltiplos processos de associaccedilatildeo nos quais participam uma

grande quantidade de elementos de forma complexa e por vezes complicada (Brigagatildeo Nascimento amp Spink

2011) Minha proposta neste capiacutetulo eacute contribuir com esse debate desde as perspectivas da Teoria Criacutetica

(Honneth 2003) e do ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah 2016)

13

principais caracteriacutesticas dessa tradiccedilatildeo de pensamento satildeo a busca pela formulaccedilatildeo de

diagnoacutesticos do tempo presente e a orientaccedilatildeo para a emancipaccedilatildeo Metodologicamente a

criacutetica da sociedade requer a reconexatildeo entre filosofia e ciecircncias sociais de modo a proceder agrave

investigaccedilatildeo sistemaacutetica das promessas de emancipaccedilatildeo contidas na realidade mas que satildeo

sistematicamente bloqueadas pela proacutepria organizaccedilatildeo social Em outras palavras a Teoria

Criacutetica natildeo visa criticar a realidade de fora como se houvesse um ponto externo do qual se pode

observar melhor a dinacircmica societaacuteria ou segundo um horizonte utoacutepico formulado idealmente

mas procura filosoficamente desvelar o possiacutevel no existente A reconexatildeo entre filosofia e

ciecircncias empiacutericas visa fundamentar uma criacutetica imanente da sociedade na qual por um lado

o pensamento natildeo seja refeacutem da empiria e por outro a teoria natildeo prescinda dos meacutetodos

cientiacuteficos

Autores como Theodor Adorno Herbert Marcuse Walter Benjamin e Juumlrgen Habermas

foram decisivos para a formaccedilatildeo de muitos psicoacutelogos(as) sociais brasileiros(as) e para o

desenvolvimento de pesquisas criacuteticas sobre diversos assuntos como preconceito violecircncia

identidade etc Eacute possiacutevel afirmar que a relevacircncia das duas primeiras geraccedilotildees da Teoria Criacutetica

para a Psicologia Social brasileira eacute bastante conhecida e consolidada jaacute a recepccedilatildeo das

geraccedilotildees mais recentes de teoacutericos criacuteticos eacute um processo atual e encontra-se ainda em

construccedilatildeo

O principal representante da chamada ldquoterceira geraccedilatildeordquo da Teoria Criacutetica eacute o filoacutesofo

e socioacutelogo alematildeo Axel Honneth autor de vasta obra nas uacuteltimas trecircs deacutecadas sobre filosofia

moral e teoria social A grande contribuiccedilatildeo de Honneth consiste em desenvolver uma filosofia

social de teor normativo ancorada no processo de construccedilatildeo da identidade (pessoal e coletiva)

como resultado de padrotildees de interaccedilatildeo social mediados pelo conflito social Mais

precisamente Honneth (2003) elabora seu projeto de teoria criacutetica sobre o paradigma da

intersubjetividade na forma de uma teoria do reconhecimento reciacuteproco Conveacutem analisar em

detalhes como esse projeto pode ser uma via promissora para a Psicologia Social Criacutetica

brasileira inclusive para a anaacutelise de processos de implementaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos

11 Axel Honneth e a renovaccedilatildeo da Teoria Criacutetica

Honneth eacute conhecido por sua pretensatildeo de renovar o projeto original da Teoria Criacutetica

a partir da criacutetica ao ldquodeacuteficit socioloacutegicordquo que ele identifica em seus antecessores Ele mostra

que em Horkheimer e Adorno a criacutetica funcionalista da razatildeo instrumental e do mundo

14

totalmente administrado leva a um impasse em relaccedilatildeo aos fundamentos para a criacutetica social

em termos normativos Em Habermas ele critica a concepccedilatildeo dual de sociedade que opotildee dois

conceitos concorrentes de organizaccedilatildeo social (sistema e mundo da vida) pois entende que natildeo

eacute possiacutevel supor a existecircncia de instituiccedilotildees (sistemas) desprovidas de normatividade e

tampouco eacute plausiacutevel conceber esferas de accedilatildeo comunicativa (mundo da vida) privadas de

relaccedilotildees de poder Honneth retoma os escritos de Hegel para fazer uma atualizaccedilatildeo da teoria

criacutetica pautada pelo paradigma das relaccedilotildees intersubjetivas no qual estatildeo inseridas as

instituiccedilotildees mas tomando o conflito como elemento constitutivo

Como observa Saavedra (2007) na obra de Honneth as concepccedilotildees teoreacuteticas de

continuidade histoacuterica estatildeo ancoradas materialmente em espaccedilos vitais devendo ser

fundamentadas objetivamente no acircmbito da accedilatildeo social no qual os acontecimentos histoacutericos

satildeo interpretativamente derivados Em outras palavras com essa concepccedilatildeo processual de

histoacuteria a proacutepria noccedilatildeo de sujeito histoacuterico passa a ser redefinida de modo que este ldquonatildeo eacute

mais considerado uma pura imposiccedilatildeo teoacuterica ou histoacuterica mas sim uma projeccedilatildeo normativa

na qual a possiacutevel integraccedilatildeo histoacuterica de todas as diferentes unidades sociais e regionais eacute

tematizada na humanidade consciente de si mesmardquo (Saavedra 2007 p 99)

Nesta perspectiva a histoacuteria natildeo deve ser vista como uma grande trama de relaccedilotildees sem

sujeitos e nem deve ser assimilada como acircmbito de acontecimentos caoacuteticos que soacute podem ser

apreendidos em construccedilotildees narrativas situadas na representaccedilatildeo imediata que os sujeitos fazem

de si e dos outros O esforccedilo teoacuterico de Honneth situa-se na intersecccedilatildeo entre filosofia moral e

teoria social procurando desenvolver a criacutetica da sociedade fundada na identificaccedilatildeo dos

princiacutepios normativos constitutivos dos conflitos sociais A categoria-chave para esse projeto eacute

a luta por reconhecimento reciacuteproco (Honneth 2003)

12 Uma teoria criacutetica do reconhecimento

Em sua principal obra Honneth (2003) busca atualizar a concepccedilatildeo hegeliana sobre a

formaccedilatildeo intersubjetiva das relaccedilotildees pessoais e institucionais segundo as exigecircncias poacutes-

metafiacutesicas das teorias sociais de base empiacuterica Ele encontra na psicologia social de G H

Mead os fundamentos para essa atualizaccedilatildeo O intuito eacute elaborar uma teoria social de teor

normativo isto eacute uma teoria criacutetica das patologias sociais que bloqueiam os processos de

autorrealizaccedilatildeo praacutetica necessaacuterios agrave formaccedilatildeo de uma vida eacutetica ou ldquoeticidaderdquo (Sittlichkeit)

Para tanto deve-se partir da reconstruccedilatildeo das regras e valores morais estruturantes das relaccedilotildees

15

sociais especialmente daquelas experiecircncias de desrespeito natildeo simbolizadas nas relaccedilotildees

intersubjetivas

Esquematicamente Honneth (2003) mostra que para Hegel a formaccedilatildeo do indiviacuteduo

se daacute a partir de embates intersubjetivos que ocorrem nos acircmbitos da famiacutelia do direito e da

formaccedilatildeo da vontade puacuteblica isto eacute da solidariedade Em Mead o reconhecimento social

aparece na forma de relaccedilotildees primaacuterias (guiadas pelo amor) juriacutedicas (pautadas por leis) e na

esfera do trabalho (na qual os indiviacuteduos poderiam mostrar-se valiosos para a coletividade) A

partir dos insights desses dois autores Honneth refina as categorias de relaccedilotildees de

reconhecimento social extraindo delas trecircs princiacutepios integradores as ligaccedilotildees emotivas fortes

a adjudicaccedilatildeo de direitos e a orientaccedilatildeo por valores

Para tornar esses princiacutepios base de uma filosofia social criacutetica Honneth (2003) adota o

procedimento metodoloacutegico negativo isto eacute ele parte dos sentimentos de injusticcedila dos atores

sociais para elaborar uma teoria da base moral das concepccedilotildees de justiccedila e suas violaccedilotildees O

interesse inicial de Honneth era analisar as formas de resistecircncia agrave dominaccedilatildeo no acircmbito dos

chamados ldquoestudos culturaisrdquo em que haacute primazia da perspectiva dos participantes sobre as

narrativas das grandes revoluccedilotildees Isso o leva a investigar sistematicamente as formas mais

sutis ou menos expliacutecitas de resistecircncia em suma as violaccedilotildees de certas expectativas de

reciprocidade que satildeo processadas pelos indiviacuteduos como sentimentos de injusticcedila e por isso

podem ser a base da formaccedilatildeo tanto de coletivos e movimentos sociais organizados quanto de

reaccedilotildees natildeo articuladas Honneth identifica que a anaacutelise dessas violaccedilotildees de expectativas

representa uma lacuna psicoloacutegica na filosofia social pois as reaccedilotildees emocionais negativas tais

como vergonha raiva ofensa ou desprezo devem ser interpretadas dentro do quadro teoacuterico da

experiecircncia social de desrespeito em relaccedilatildeo agraves demandas de reconhecimento

Com isso a centralidade da teoria criacutetica de Honneth repousa sobre o conflito social

cuja gramaacutetica moral satildeo as lutas por reconhecimento reciacuteproco A partir da leitura de Hegel e

Mead Honneth apresenta trecircs esferas do reconhecimento social amor direito e estima social

A cada uma delas correspondem respectivamente uma forma de autorrelaccedilatildeo praacutetica dos

indiviacuteduos e uma forma de desrespeito

Na esfera do amor as demandas por reconhecimento se expressam nas relaccedilotildees afetivas

primaacuterias pois satildeo as mais fundamentais para a estruturaccedilatildeo da personalidade Sejam as

relaccedilotildees de filiaccedilatildeo de amizade ou entre parceiros sexuais a autocompreensatildeo de si como

indiviacuteduo autocircnomo depende do reconhecimento do outro Retomando a psicanaacutelise de Donald

Winnicott Honneth aponta para os conflitos existentes na relaccedilatildeo matildee-bebecirc na primeira

16

infacircncia cuja resoluccedilatildeo da tensatildeo dependecircncia x autonomia seraacute a base para a formaccedilatildeo do

sentimento de autoconfianccedila Tal sentimento seraacute fundamental para a participaccedilatildeo segura na

esfera puacuteblica O desrespeito correspondente a essa esfera do reconhecimento satildeo os maus-

tratos e a violaccedilatildeo

As relaccedilotildees de direito ou de cidadania por sua vez pautam-se pelos princiacutepios morais

universalistas que um sistema juriacutedico garante aos membros de uma determinada comunidade

poliacutetica Honneth observa que a institucionalidade dos direitos eacute resultado de conflitos sociais

histoacutericos Mais do que apenas normas juriacutedicas o conceito de direito indica toda uma gama de

relaccedilotildees modernas pautadas por demandas de liberdade individual e que conseguem estabelecer

uma consistecircncia e legitimidade moral assentida pelos participantes da comunidade Isso

significa que da perspectiva da igualdade pelo direito todos podem se reconhecer como seres

humanos capazes de participaccedilatildeo social A autorrelaccedilatildeo praacutetica decorrente dessas relaccedilotildees

juriacutedicas seraacute o autorrespeito e a ela corresponde o tipo de desrespeito associado agrave privaccedilatildeo de

direitos e agrave exclusatildeo

A terceira dimensatildeo do reconhecimento refere-se ao domiacutenio das relaccedilotildees de

solidariedade ou mais precisamente de estima social No interior de uma comunidade de

valores os indiviacuteduos podem encontrar a valorizaccedilatildeo de suas habilidades particulares a partir

do reconhecimento puacuteblico de seus feitos e realizaccedilotildees em prol da coletividade Dessa forma

a autorrelaccedilatildeo praacutetica associada seraacute a autoestima isto eacute um sentimento de orgulho do grupo

ou de honra coletiva O desrespeito nesse caso seraacute a vexaccedilatildeo a degradaccedilatildeo puacuteblica os tipos

de ofensa o preconceito e a humilhaccedilatildeo

Honneth reivindica a heranccedila da Teoria Criacutetica na medida em que sob as bases de uma

concepccedilatildeo naturalista e pragmaacutetica das ciecircncias sociais procede agrave reconstruccedilatildeo dos conflitos

intersubjetivos (sua gramaacutetica eacute a luta por reconhecimento) do ldquoespiacuterito objetivordquo para usar os

termos hegelianos e aponta para uma eticidade formal (Sittlichkeit) isto eacute para uma concepccedilatildeo

de vida boa que visa natildeo apenas a realizaccedilatildeo da autonomia moral dos indiviacuteduos mas tambeacutem

as condiccedilotildees eacuteticas de sua autorrealizaccedilatildeo como um todo societaacuterio

As formas de reconhecimento do amor do direito e da solidariedade formam dispositivos de

proteccedilatildeo intersubjetivos que asseguram as condiccedilotildees da liberdade externa e interna das quais

depende o processo de uma articulaccedilatildeo e de uma realizaccedilatildeo espontacircnea de metas individuais de

vida Com esse potencial interno de desenvolvimento migra para as condiccedilotildees normativas

de autorrealizaccedilatildeo um iacutendice histoacuterico que deve limitar as pretensotildees de nossa concepccedilatildeo formal

de eticidade o que pode ser considerado condiccedilatildeo intersubjetiva de uma vida bem-sucedida

torna-se uma grandeza historicamente variaacutevel determinada pelo niacutevel atual de

desenvolvimento dos padrotildees de reconhecimento (Honneth 2003 p 274)

17

Nesses termos um sistema filosoacutefico derivado da teoria do reconhecimento seraacute capaz

de explicar a gecircnese moral dos conflitos histoacutericos como as lutas de classe ndash no sentido de uma

luta pelo reconhecimento da classe trabalhadora como produtora da riqueza socialmente

produzida ndash mas tambeacutem das diferentes reivindicaccedilotildees de reconhecimento das identidades

como por exemplo as lutas antirracistas feministas de diversidade sexual e de gecircnero etc De

fato o modelo honnethiano repercutiu na filosofia social como uma contribuiccedilatildeo maior para a

nossa autocompreensatildeo do tempo presente em seus desejos e lutas

13 Reconhecimento e instituiccedilotildees

Das criacuteticas feitas a essa teoria criacutetica do reconhecimento destacam-se a objeccedilatildeo de

Nancy Fraser (2006) quanto agrave capacidade de um conceito de reconhecimento cultural abarcar

demandas de redistribuiccedilatildeo econocircmica e a discussatildeo de Rahel Jaeggi (2013) sobre certas

relaccedilotildees de reconhecimento fracassarem ou serem deficitaacuterias enquanto relaccedilotildees de

reconhecimento pois mesmo certas adscriccedilotildees positivas podem ser limitantes e injuriosas Haacute

tambeacutem um conjunto de debates sobre o vieacutes individualista da teoria de Honneth ao priorizar

as relaccedilotildees pessoais em detrimento da criacutetica das instituiccedilotildees Dentre essas uacuteltimas eacute

particularmente importante para a discussatildeo deste capiacutetulo as consideraccedilotildees de Emmanuel

Renault (2011) sobre o papel atribuiacutedo agraves instituiccedilotildees na teoria do reconhecimento

Renault (2011) questiona se Honneth foi capaz de explicar adequadamente a relaccedilatildeo

entre expectativas intersubjetivas de reconhecimento reciacuteproco e a formaccedilatildeo de instituiccedilotildees que

encarnam certos princiacutepios normativos como uma ldquosegunda naturezardquo seja na forma de modos

relativamente mais simples de coordenaccedilatildeo das accedilotildees (escolas prisotildees etc) seja em sistemas

mais complexos de organizaccedilatildeo da vida social (famiacutelia estado mercado) O problema central

para Renault consiste em estabelecer a ordem de prioridade entre as demandas de

reconhecimento e as exigecircncias institucionais Por um lado numa concepccedilatildeo ldquoexpressivistardquo

de reconhecimento as instituiccedilotildees expressam relaccedilotildees de reconhecimento isto eacute as relaccedilotildees

intersubjetivas precedem as instituiccedilotildees operando num niacutevel ldquopreacute-institucionalrdquo Assim as

instituiccedilotildees seriam apenas um resultado em diferentes niacuteveis de lutas por reconhecimentos que

sedimentaram determinadas praacuteticas sociais Ocorre que as relaccedilotildees de reconhecimento nunca

acontecem de forma pura mas sempre condicionadas por regras sociais e expectativas

normativas das quais as instituiccedilotildees participam ativamente Desse modo por outro lado

argumenta Renault as instituiccedilotildees tambeacutem produzem relaccedilotildees de reconhecimento Numa

18

perspectiva histoacuterica diferentes settings institucionais satildeo capazes de coordenar accedilotildees

individuais e de sustentaacute-las em conformidade com certas promessas normativas

Ao provocar a reflexatildeo sobre a necessidade de explicitar os elos entre reconhecimento

e instituiccedilotildees Renault (2011) entende estar contribuindo para dar agrave filosofia de Honneth um

ldquocomplemento socioloacutegicordquo (p231) Isso significa que as demandas por reconhecimento

operam tanto no niacutevel mais elementar das relaccedilotildees intersubjetivas (como expectativas

normativas) quanto no niacutevel dos fatos sociais (como efeitos do reconhecimento) mas o link

entre esses dois niacuteveis natildeo eacute de todo evidente A criacutetica de Renault seraacute que a resoluccedilatildeo desse

problema afeta a ambiccedilatildeo do projeto de uma teoria do reconhecimento como criacutetica social

Em minha opiniatildeo explicitar isso implica em uma concepccedilatildeo diferente de reconhecimento na

medida em que nos obriga a renunciar agrave ideia de pressupostos normativos da vida social bem

como a desenvolver uma teoria do reconhecimento como teoria da justiccedila As expectativas

baacutesicas de reconhecimento satildeo demasiado indeterminadas para definir princiacutepios de justiccedila e

para serem entendidas como pressupostos da vida social2 (Renault 2011 p 231 traduccedilatildeo livre)

Honneth (2011) responde a Renault argumentando por uma consideraccedilatildeo ldquomais

dialeacuteticardquo da relaccedilatildeo entre instituiccedilotildees e reconhecimento a partir do que ele chama de ldquoordens

de reconhecimentordquo Isso significa que as instituiccedilotildees natildeo satildeo apenas instacircncias que refletem

ou expressam o reconhecimento intersubjetivo uma vez que os indiviacuteduos recorrem a normas

institucionalizadas em suas demandas de reconhecimento e eacute apenas agrave luz dessas instituiccedilotildees

que concedem uns aos outros determinado status normativo Para Honneth (2011) ldquoessas

lsquoordens de reconhecimentorsquo consistem em estruturas normativas institucionalizadas que

historicamente se desenvolveram em torno das exigecircncias de reproduccedilatildeo social ao mesmo

tempo em que tornaram tais exigecircncias dependentes do preenchimento de certas obrigaccedilotildees e

papeacuteis pelos atores sociaisrdquo (p 403 traduccedilatildeo livre)

A efetivaccedilatildeo da autonomia individual soacute poderaacute ser possiacutevel se vir acompanhada de

complexos institucionais que garantam a realizaccedilatildeo da liberdade social (Honneth 2015) Isso

significa que para cada ordem de reconhecimento correspondem sistemas de accedilatildeo

normativamente institucionalizados agraves relaccedilotildees pessoais correspondem instituiccedilotildees como a

amizade a intimidade e a famiacutelia agraves relaccedilotildees econocircmicas correspondem as instituiccedilotildees

produtivas de consumo e de mercado e agraves relaccedilotildees poliacuteticas correspondem a vida puacuteblica

democraacutetica a cultura poliacutetica e o Estado democraacutetico de direito (Honneth 2015)

2 Em resposta a essas e outras criacuteticas Honneth desenvolve em O direito da liberdade uma teoria da justiccedila como

criacutetica social Esta obra marca um giro teoacuterico em direccedilatildeo agraves instituiccedilotildees na qual o objetivo central eacute a reconstruccedilatildeo

normativa da ideia moderna de liberdade (Honneth 2015)

19

Em suma Emmanuel Renault apresenta uma questatildeo extremamente importante mas sua busca

por uma resposta leva-o na direccedilatildeo errada Uma anaacutelise abrangente da sociedade natildeo deve se

contentar apenas em reconstruir normativamente aquelas formas de reconhecimento inerentes

ao cerne da reproduccedilatildeo social Para compreender o padratildeo de acordo com o qual os sujeitos satildeo

integrados agrave sociedade tambeacutem precisamos de uma anaacutelise das formas de reconhecimento

praticadas em organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas Seria fatal simplesmente assumir que somente

encontraremos formas de reconhecimento sob o niacutevel normativo das formas gerais de interaccedilatildeo

A questatildeo sobre quais padrotildees de interaccedilatildeo devem ser implementados em cada organizaccedilatildeo eacute

sempre decidida em processos conflitivos de negociaccedilatildeo social Os resultados natildeo podem ser

previstos teoricamente mas soacute podem ser explorados com o auxiacutelio de investigaccedilotildees empiacutericas

(Honneth 2011 pp 404-405 traduccedilatildeo livre)

A questatildeo agora natildeo consiste em estabelecer a prioridade das instituiccedilotildees sobre o

reconhecimento ou do reconhecimento sobre as instituiccedilotildees mas de proceder agrave investigaccedilatildeo

dos processos conflitivos de negociaccedilatildeo cotidiana que dialeticamente conformam determinadas

ordens de reconhecimento institucionalizadas seja na esfera das relaccedilotildees pessoais econocircmicas

ou da vida puacuteblico-poliacutetica Tendo em vista essa uacuteltima proponho considerar a seguir o

processo de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas como uma possibilidade para tal investigaccedilatildeo

tomando como exemplo um padratildeo de interaccedilatildeo especiacutefico a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo

estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos

2 Das ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo agrave ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo

Passemos agora a considerar de que modo a filosofia social de Axel Honneth pode

contribuir para as ciecircncias sociais especialmente para a anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas De fato

a teoria do reconhecimento pode ser categorizada como filosofia social na medida em que parte

da filosofia moral e poliacutetica para determinar as bases normativas da interaccedilatildeo social mas

tambeacutem se configura como teoria social criacutetica pois reconstroacutei os sistemas de accedilatildeo coletiva

observando a formaccedilatildeo dos sentimentos de injusticcedila e as patologias sociais enquanto resultado

de demandas e lutas por reconhecimento reciacuteproco assim como tambeacutem o satildeo as noccedilotildees de

progresso moral e emancipaccedilatildeo social Da breve explanaccedilatildeo feita no toacutepico anterior resulta que

a teoria do reconhecimento de Axel Honneth oferece bons fundamentos para a construccedilatildeo de

uma Psicologia Social Criacutetica atualizada em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da criacutetica social

contemporacircnea No entanto a questatildeo agora eacute saber como essa teorizaccedilatildeo se reconecta com as

exigecircncias metodoloacutegicas das ciecircncias empiacutericas Essa eacute uma discussatildeo da maior importacircncia

e que jaacute vem sendo feita haacute algum tempo (OrsquoNeill amp Smith 2012)

Todo programa de pesquisa cientiacutefica fundamenta-se em pressupostos teoacutericos e utiliza

de hipoacuteteses auxiliares e de meacutetodos rigorosos para o desenvolvimento sistemaacutetico de novos

conhecimentos sobre a realidade As ciecircncias sociais diferente das ciecircncias formais se

20

desenvolvem a partir da pesquisa empiacuterica Assim para que a Psicologia Social Criacutetica

fundamentada em uma teoria criacutetica do reconhecimento possa oferecer alguma contribuiccedilatildeo

para o estudo das Poliacuteticas Puacuteblicas eacute necessaacuterio partir dos problemas da realidade social em

busca de respostas que visem consequecircncias praacuteticas Eacute neste sentido que a relaccedilatildeo entre

Psicologia e o campo das Poliacuteticas Puacuteblicas emerge como uma questatildeo da maior relevacircncia na

atualidade3 Antes de discutir os achados da pesquisa de mestrado que norteia a discussatildeo

proposta neste capiacutetulo vamos dar mais um passo na direccedilatildeo da construccedilatildeo de elementos

teoacutericos que subsidiam a anaacutelise psicossocial criacutetica das poliacuteticas puacuteblicas fundamentada na

teoria do reconhecimento Como mencionado na introduccedilatildeo no decorrer do processo de

pesquisa foi essencial uma aproximaccedilatildeo ao ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah 2016) e em especial

agrave sociologia da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2012)

21 A sociologia da accedilatildeo puacuteblica

A relaccedilatildeo entre Psicologia e Poliacuteticas Puacuteblicas eacute marcada por uma histoacuteria de conexotildees

e desconexotildees com a promessa recente de uma reconexatildeo mais duraacutevel As produccedilotildees mais

recentes indicam maior possibilidade de diaacutelogo entre esses dois campos ainda que ambos

sejam marcados por uma multiplicidade de enfoques teoacutericos e linguagens de accedilatildeo (Spink

2013) Se por um lado as poliacuteticas puacuteblicas satildeo frequentemente encaradas como um artefato

isto eacute como um sistema de accedilatildeo institucional voltado a obtenccedilatildeo de resultados com alto grau

de eficiecircncia eficaacutecia e efetividade por outro lado elas tambeacutem satildeo encaradas como processos

fluiacutedos e dinacircmicos em busca de coerecircncia diante da ambiguidade contiacutenua dos processos

organizativos poliacuteticos e sociais que a conformam Como sintetiza Spink (2013 p 172) mais

do que um conceito ldquopoliacutetica puacuteblica eacute tambeacutem algo que as pessoas fazemrdquo

Tambeacutem o estudo das poliacuteticas puacuteblicas eacute uma praacutetica construiacuteda socialmente Eacute o que

argumentam Pierre Lascoumes e Patrick Le Galegraves (2010) Para esses autores o modelo claacutessico

de anaacutelise das poliacuteticas centradas no protagonismo da administraccedilatildeo estatal como se esta fosse

o uacutenico ator responsaacutevel pela materializaccedilatildeo das poliacuteticas ldquoestaacute completamente ultrapassadordquo

de modo que ldquoa expressatildeo poliacutetica puacuteblica tem sido abandonada em benefiacutecio da noccedilatildeo de accedilatildeo

puacuteblicardquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 pp 32-33) Isso natildeo significa evidentemente

3 Em geral a Psicologia tem abordado o universo das poliacuteticas puacuteblicas desde o enfoque das praacuteticas profissionais

setorializadas em funccedilatildeo do nuacutemero crescente de postos de trabalho em diferentes serviccedilos puacuteblicos Podemos

dizer que a Psicologia foi a reboque da demanda social e institucional Reflexo dessa situaccedilatildeo eacute a criaccedilatildeo do

CREPOP (Centro de Referecircncia Teacutecnica em Psicologia e Poliacutetica Puacuteblica) pelo Conselho Federal de Psicologia

em 2006 e o crescente nuacutemero de teses e dissertaccedilotildees sobre poliacuteticas puacuteblicas (Spink 2013)

21

abandonar a criacutetica do Estado e de sua responsabilidade na gestatildeo dos interesses dos cidadatildeos

e cidadatildes Trata-se de ampliar o escopo de anaacutelise para aleacutem do Estado tomando-o como um

(importante) ator no jogo de relaccedilotildees que determinam a realidade das poliacuteticas mas natildeo como

o uacutenico O problema das poliacuteticas puacuteblicas nessa perspectiva passa a considerar um intrincado

jogo de relaccedilotildees disputas e orientaccedilotildees coletivas que envolvem atores puacuteblicos e privados em

diferentes niacuteveis ampliando a noccedilatildeo de governanccedila (Bichir 2018) Dessa forma ldquoo

emaranhado de niacuteveis de formas de regulaccedilatildeo e de redes de atores forccedilou uma revisatildeo das

concepccedilotildees estatistas de intervenccedilotildees puacuteblicas em benefiacutecio de sistemas de anaacutelise muito mais

abertosrdquo (p 33)

A anaacutelise das poliacuteticas puacuteblicas na medida em que natildeo se ateacutem exclusivamente agrave

burocracia estatal contribui para a compreensatildeo da dinacircmica das sociedades A sociologia da

accedilatildeo puacuteblica situa-se no domiacutenio das ciecircncias sociais mas natildeo reivindica uma epistemologia

especiacutefica Ela enfatiza ldquoas accedilotildees dos atores suas interaccedilotildees e o sentido que eles lhes atribui

mas tambeacutem as instituiccedilotildees as normas as representaccedilotildees coletivas e os procedimentos que

disciplinam o conjunto de tais interaccedilotildeesrdquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 p 40) Os autores

defendem um modelo de anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica denominado ldquopentaacutegono das poliacuteticas

puacuteblicasrdquo que compreende cinco elementos articulados entre si atores representaccedilotildees

instituiccedilotildees processos e resultados

Os atores podem ser individuais ou coletivos eles satildeo dotados de recursos possuem certa

autonomia estrateacutegias e capacidade de fazer escolhas Satildeo mais ou menos guiados por interesses

materiais eou simboacutelicos As representaccedilotildees satildeo os espaccedilos cognitivos e normativos que datildeo

sentido agraves suas accedilotildees as condicionam e as refletem As instituiccedilotildees satildeo normas regras rotinas

procedimentos que governam as interaccedilotildees Os processos satildeo as formas de interaccedilatildeo e sua

recomposiccedilatildeo no tempo Eles justificam as muacuteltiplas atividades de mobilizaccedilatildeo dos atores

individuais e coletivos Os resultados (outputs) satildeo as consequecircncias os efeitos da accedilatildeo puacuteblica

(Lascoumes amp Le Galegraves 2010 pp 45-46)

A perspectiva da accedilatildeo puacuteblica eacute uma abordagem centrada mais nas interaccedilotildees do que

nos efeitos das poliacuteticas puacuteblicas De forma simplificada pode-se dizer que a perspectiva das

ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo eacute tradicionalmente a da ciecircncia poliacutetica interessada no alcance e nos efeitos

das poliacuteticas produzidas nos niacuteveis mais centrais da administraccedilatildeo estatal (modelo top-down)

enquanto a perspectiva da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo eacute a da sociologia e dirige-se prioritariamente para a

compreensatildeo das interaccedilotildees entre os muacuteltiplos atores que compotildeem a poliacutetica (modelo bottom-

up) Com isso natildeo quero dizer que a sociologia da accedilatildeo puacuteblica natildeo atribui a devida importacircncia

para os processos poliacuteticos A mudanccedila eacute mais de ecircnfase pois tambeacutem na Ciecircncia Poliacutetica tem

sido dada cada vez mais a devida atenccedilatildeo agraves interaccedilotildees no seio das instituiccedilotildees (Marques

2013) Em suma a ldquopostura fecundardquo como argumentam os autores ldquoconsiste em trabalhar as

22

articulaccedilotildees entre regulaccedilatildeo social e regulaccedilatildeo poliacutetica entre o que eacute ou natildeo governado pelas

poliacuteticas puacuteblicasrdquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 p 52) Um acircmbito privilegiado de anaacutelise

empiacuterica satildeo os processos de implementaccedilatildeo de poliacuteticas

22 Implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas e ordens de reconhecimento

O ciclo de poliacuteticas puacuteblicas ndash elemento analiacutetico baacutesico no ldquocampo de puacuteblicasrdquo ndash

parece ser pouco conhecido ou de certa forma negligenciado pela Psicologia Eacute no estaacutegio de

implementaccedilatildeo que as poliacuteticas seratildeo ldquoentreguesrdquo aos cidadatildeos e cidadatildes E nesse estaacutegio do

ciclo que a execuccedilatildeo do serviccedilo no cotidiano materializa as intenccedilotildees dos formuladores e

decisores E eacute nesse momento que a funccedilatildeo dos agentes implementadores ndash os chamados

ldquoburocratas do niacutevel da ruardquo (Lipsky 2019) ndash ganha centralidade para a perspectiva da

sociologia da accedilatildeo puacuteblica Afinal o que acontece ldquona pontardquo dos serviccedilos natildeo reflete apenas

desenhos institucionais e modos de gestatildeo mas da objetivaccedilatildeo cotidiana dos cinco elementos

do ldquopentaacutegono da accedilatildeo puacuteblicardquo E isso supotildee processos conflitivos de negociaccedilatildeo que

dialeticamente conformam determinadas ordens de reconhecimento

Esses burocratas do niacutevel da rua satildeo todos aqueles funcionaacuterios que cotidianamente

entregam as poliacuteticas para os usuaacuterios independente se contratados diretamente pelo Estado ou

de forma indireta Satildeo eles professores policiais assistentes sociais agentes de sauacutede etc Entre

eles encontram-se todas as psicoacutelogas e psicoacutelogos que atuam em serviccedilos puacuteblicos O estudo

seminal de Lipsky (2019) revela como esses atores natildeo satildeo passivos diante dos niacuteveis mais

ldquoelevadosrdquo da poliacutetica de certa forma esses burocratas tambeacutem ldquofazemrdquo a poliacutetica

cotidianamente ao fazerem escolhas e tomarem decisotildees com relativa margem de liberdade no

interior dos procedimentos e legislaccedilotildees estabelecidas pelo ordenamento juriacutedico das poliacuteticas

Natildeo se trata de uma subversatildeo mas de reconhecer a existecircncia de um espaccedilo de atuaccedilatildeo

relativamente livre para o exerciacutecio de certo poder discricionaacuterio

Nessa perspectiva a discricionariedade natildeo eacute uma anomalia do desenho de uma poliacutetica

puacuteblica mas um resultado inevitaacutevel que emerge nas interaccedilotildees cotidianas dos burocratas entre

si e com os usuaacuterios A accedilatildeo desses burocratas eacute permeada por valores e referecircncias individuais

que para a populaccedilatildeo pode se mesclar com os valores das instituiccedilotildees Para compreender a

implementaccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender natildeo apenas os fatores organizacionais e institucionais

do trabalho desses burocratas mas tambeacutem fatores individuais e relacionais que podem ser

igualmente importantes para determinar a natureza a qualidade e quantidade dos benefiacutecios

23

aleacutem de sanccedilotildees e direcionamentos Desse modo o debate sobre a discricionariedade dos

burocratas do niacutevel da rua costuma girar em torno da legitimidade ou natildeo das escolhas e

decisotildees por eles tomadas pois se por um lado podem adaptar as poliacuteticas para melhor alcanccedilar

os objetivos previstos por outro lado eles natildeo possuem legitimidade democraacutetica para tomar

decisotildees que afetem negativamente a vida dos cidadatildeos4

Nesse ponto uma contribuiccedilatildeo importante para os estudos sobre implementaccedilatildeo pode

ser encontrada na teoria do reconhecimento a partir do conceito de ldquoordens de

reconhecimentordquo Vimos que essas ordens correspondem a padrotildees de interaccedilatildeo mais ou menos

institucionalizados cujo fundamento satildeo as expectativas e demandas por reconhecimento Se

retomarmos as trecircs esferas do reconhecimento ndash amor direito e estima social ndash veremos que a

sociologia da accedilatildeo puacuteblica concentra-se nas duas uacuteltimas Natildeo obstante a ecircnfase dada aos

processos e interaccedilotildees cotidianas ainda falta ao campo de anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas como

um todo um suporte propriamente psicoloacutegico ou mais precisamente psicossocial Penso que

esse suporte pode ser dado pela Psicologia Social Criacutetica orientada pela teoria do

reconhecimento Ao tomar as ordens institucionalizadas do reconhecimento como pano de

fundo para a pesquisa social dos processos de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas creio que eacute

possiacutevel ir aleacutem de alguns limites encontrados em ambos os lados pela Psicologia que nesse

assunto padece de seu relativo insulamento e pelo ldquocampo de puacuteblicasrdquo que parece reticente

quanto a retomar perspectivas psicoloacutegicas

Considero que uma indicaccedilatildeo importante para construir esse diaacutelogo foi dada por Peter

Spink (2013) ao distinguir a linguagem dos direitos da linguagem das poliacuteticas puacuteblicas Para

ele enquanto a linguagem dos direitos evocada pelos coletivos e movimentos sociais eacute

imperativa ndash pois fundada na segunda esfera do reconhecimento ndash a linguagem das poliacuteticas

puacuteblicas eacute uma linguagem de possibilidades de orientaccedilatildeo de processos poliacuteticos e de

orientaccedilatildeo ndash pertence portanto agrave terceira esfera das relaccedilotildees de reconhecimento Em meio agraves

diferentes linguagens de accedilatildeo e ontologias poliacuteticas vislumbradas pelo autor surge como

estrateacutegia metodoloacutegica e analiacutetica que ldquooptar pela cacofonia performaacutetica poderia ser mais

adequado do que aceitar a hegemonia automaacutetica e articuladora da poliacutetica puacuteblicardquo (Spink

2013 p 179) E sobre o espaccedilo da Psicologia Social nesse debate acrescenta

Talvez uma maneira de ampliar o foco fosse relocalizar a temaacutetica da poliacutetica puacuteblica para a

discussatildeo da accedilatildeo puacuteblica em geral Se entendermos accedilatildeo puacuteblica natildeo somente em relaccedilatildeo

agraves atividades do setor puacuteblico mas incluindo os diversos arranjos entre governo e sociedade

presentes na formulaccedilatildeo e gestatildeo do agir puacuteblico e a pressatildeo de novas instacircncias da sociedade

4 Sobre os estudos de burocracia de niacutevel da rua no Brasil ver o prefaacutecio de Gabriela Lotta em Lipsky (2019)

24

civil e a provisatildeo de serviccedilos proacuteprios pelas comunidades segue que eacute aqui que precisaremos

aprofundar nossas investigaccedilotildees (Spink 2013 p 180 grifos meus)

Seguindo essa pista mas sem abrir matildeo de uma teoria social criacutetica de longo alcance

como a que encontramos na obra de Axel Honneth proponho agora utilizar essas elaboraccedilotildees

para a anaacutelise de um caso concreto decorrente da etapa empiacuterica da pesquisa de mestrado

referida no iniacutecio deste capiacutetulo (Costa 2016)

3 Um exemplo empiacuterico a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais na accedilatildeo puacuteblica de

assistecircncia social

Partindo desses referenciais a pesquisa de mestrado visou compreender as accedilotildees dos

serviccedilos socioassistenciais para efetivaccedilatildeo da proteccedilatildeo social como um direito de cidadania

Para tanto foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa compreensiva de cunho

teoacuterico e empiacuterico utilizando os seguintes meacutetodos revisatildeo bibliograacutefica (sobre ldquocidadaniardquo

ldquoreconhecimentordquo e ldquoproteccedilatildeo socialrdquo) e pesquisa de campo (observaccedilatildeo participante em um

serviccedilo estatal e um natildeo estatal aleacutem de nove entrevistas semi-dirigidas sendo seis com

trabalhadoras e trecircs com usuaacuterias dos serviccedilos socioassistenciais) Como mencionado acima a

mudanccedila de ecircnfase das ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo para a ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo decorreu da proacutepria

especificidade do objeto a rede socioassistencial do municiacutepio de Satildeo Paulo caracteriza-se pela

articulaccedilatildeo de atores estatais (Poder Puacuteblico) e natildeo estatais (Organizaccedilotildees da Sociedade Civil)

na provisatildeo dos serviccedilos puacuteblicos agrave populaccedilatildeo Assim para compreender as accedilotildees desses

serviccedilos foi necessaacuterio observar as particularidades da relaccedilatildeo entre esses diferentes atores

Por se tratar de uma pesquisa que tomou como recorte um territoacuterio especiacutefico natildeo

houve a pretensatildeo de estender os achados para a rede como um todo pois isso demandaria um

estudo detalhado da diversidade de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil (OSCs) que atuam em

diferentes territoacuterios Trata-se portanto de uma discussatildeo situada no espaccedilo e no tempo pois

reflete as caracteriacutesticas que foram observadas em um momento especiacutefico No entanto a partir

desse recorte algumas consideraccedilotildees podem ser bastante uacuteteis para entender melhor a relaccedilatildeo

entre atores estatais (no caso um Centro de Referecircncia da Assistecircncia Social) e atores natildeo

estatais (no caso um Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos gerenciado por uma

OSC) na provisatildeo da accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia social

A primeira consideraccedilatildeo a ser feita diz respeito agrave configuraccedilatildeo da rede socioassistencial

em Satildeo Paulo como exemplo para anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica jaacute que a provisatildeo dos serviccedilos eacute

executada quase em sua totalidade pelas OSCs por meio de contratos estabelecidos com a

25

administraccedilatildeo municipal (Costa 2016 p 76) Essa caracteriacutestica confere certa

excepcionalidade na operacionalizaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) na

metroacutepole paulista5 Isso natildeo significa que os serviccedilos sejam ldquoterceirizadosrdquo como se costuma

argumentar na literatura Uma anaacutelise mais detalhada dos processos e interaccedilotildees entre esses

diferentes atores como a realizada por Brettas (2016 citada por Costa 2016 pp 77-78) revela

a existecircncia de uma ldquorede socioassistencial do SUAS uacutenica de finalidade puacuteblica independente

da natureza da organizaccedilatildeo ofertante do serviccedilordquo Haacute diversos exemplos que ilustram essa

situaccedilatildeo de maneira mais adequada do que a simples ideia de ldquoterceirizaccedilatildeordquo (que pressupotildee a

centralidade do Estado na realizaccedilatildeo da poliacutetica e ignora a diversidade de OSCs de tensotildees e

processos que materializam a accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia) Para resumir basta ressaltar que

as OSC satildeo muito diversas Geralmente satildeo associaccedilotildees ciacutevicas ligadas a grupos com declarada

vocaccedilatildeo para a accedilatildeo social como setores comunitaacuterios da Igreja Catoacutelica associaccedilotildees de

moradores ou grupos beneficentes e humanitaacuterios Tambeacutem podem ser associaccedilotildees poliacuteticas

como movimentos sociais tradicionais com maior ou menor enraizamento no territoacuterio onde

atuam Desse modo o estudo da accedilatildeo puacuteblica no niacutevel local deve considerar a accedilatildeo de ambos

atores estatais e natildeo estatais em relaccedilatildeo agrave dinacircmica socioterritorial na qual estatildeo inseridos

(Costa 2016 p 78)

Como afirma Bichir (2018 p 54) tambeacutem a ldquoregulamentaccedilatildeo das organizaccedilotildees eacute

definida na interaccedilatildeo entre burocratas da Secretaria Municipal de Assistecircncia e atores ligados

agraves OSCs e ocorre tanto em espaccedilos formais como o conselho e o foacuterum da aacuterea quanto em

arenas informaisrdquo Outro exemplo nesse sentido satildeo as conferecircncias autocircnomas tambeacutem

denominadas ldquoConferecircncias Livresrdquo ldquoCiacutevicasrdquo ou ldquoDemocraacuteticasrdquo que satildeo realizadas por um

conjunto de atores das OSCs ligados agrave poliacutetica de assistecircncia para discutir caminhos da accedilatildeo

puacuteblica Isso significa que a relaccedilatildeo entre atores estatais eacute muito mais complexa do que supotildee

uma simples ldquoterceirizaccedilatildeordquo pois a dinacircmica da accedilatildeo puacuteblica inclui tensotildees disputas e

capacidades institucionais de ambos os atores envolvidos

Ao observarmos essas situaccedilotildees de conflito veremos que elas satildeo marcadas por lutas

por reconhecimento Um exemplo observado durante a pesquisa empiacuterica foi a disputa

linguiacutestica sobre como definir a relaccedilatildeo entre esses atores enquanto as burocratas da

administraccedilatildeo direta apregoavam o caraacuteter de ldquoconvecircniordquo as representantes da OSC insistiam

na ideia de ldquoparceriardquo O primeiro termo diferencia as posiccedilotildees e ressalta o trabalho burocraacutetico

da administraccedilatildeo puacuteblica enquanto o segundo termo por sua vez ldquosupotildee que obrigaccedilotildees dos

dois lados para aleacutem do decretordquo (Costa 2016 p 124) Em ambos os casos haacute para aleacutem das

5 Essa caracteriacutestica do caso paulistano eacute analisada entre outras por Bichir (2018)

26

tensotildees e disputas a reivindicaccedilatildeo de que sejam reconhecidas as contribuiccedilotildees e realizaccedilotildees

(terceira esfera do reconhecimento) de cada ator para a efetivaccedilatildeo da poliacutetica socioassistencial6

Aleacutem da natureza da relaccedilatildeo entre os atores envolvidos na accedilatildeo puacuteblica outros termos

satildeo ressignificados nas lutas por reconhecimento dos atores que realizam a accedilatildeo puacuteblica no

cotidiano tais como a noccedilatildeo de ldquoporta de entradardquo e de ldquocidadaniardquo (Costa 2016)

Tambeacutem as capacidades institucionais e a discricionariedade desses atores devem ser

observadas enquanto ordens de reconhecimento institucionalizadas Ficou patente na pesquisa

empiacuterica que determinadas OSCs possuem motivaccedilotildees morais para o desenvolvimento do

trabalho assistencial (uma vocaccedilatildeo religiosa por exemplo) e podem mobilizar determinados

recursos (financeiros e humanos como doaccedilotildees e voluntariado) para aleacutem daquilo que recebem

da parceria com o poder puacuteblico Dessa forma natildeo eacute descabido levantar a seguinte hipoacutetese os

baixos repasses financeiros feitos pela administraccedilatildeo puacuteblica para as OSCs acabam forccedilando

essas uacuteltimas a complementarem os recursos necessaacuterios para garantir a accedilatildeo puacuteblica

assistencial enquanto totalidade (para aleacutem dos termos estritos dos contratos estabelecidos)

assim o montante de recursos mobilizados pela accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia acaba sendo maior

do que aquele destinado pelos orccedilamentos puacuteblicos de modo que as decisotildees e orientaccedilotildees

sobre quais caminhos devem ser seguidos pela poliacutetica de assistecircncia social acabam sendo

motivo de intensas lutas por reconhecimento entre diferentes atores

Por fim uma uacuteltima consideraccedilatildeo possiacutevel de ser feita a partir da pesquisa empiacuterica

consiste em observar as demandas de reconhecimento natildeo apenas das trabalhadoras das

poliacuteticas7 mas tambeacutem da populaccedilatildeo usuaacuteria Nesse caso podemos ir aleacutem das duas esferas

puacuteblicas do reconhecimento (direito e estima social) e acrescentar tambeacutem a relevacircncia de

observar as lutas por reconhecimento na esfera das relaccedilotildees pessoais (amor) Afinal como

argumenta Honneth (2003 p 177) ldquoa experiecircncia intersubjetiva do amor constitui o

pressuposto psiacutequico do desenvolvimento de todas as outras formas de autorrespeitordquo

constituindo portanto a base indispensaacutevel para a participaccedilatildeo autocircnoma na vida puacuteblica

Para uma pessoa que busca os serviccedilos da assistecircncia social o simples fato de ser bem recebida

respeitada e acolhida pelas teacutecnicas possui consequecircncias profundas em relaccedilatildeo agrave validaccedilatildeo de

suas pretensotildees normativas Receber o devido reconhecimento como diz Charles Taylor

natildeo eacute apenas uma cortesia mas uma necessidade humana vital Assim podemos questionar as

accedilotildees dos serviccedilos socioassistenciais natildeo apenas quanto aos impactos produzidos nas famiacutelias e

6 Para mais detalhes sobre esse exemplo ver o capiacutetulo 7 (toacutepico 73) em Costa (2016) 7 Para mais detalhes sobre essas demandas conferir o capiacutetulo 7 (toacutepico 71 subtoacutepico ldquoenfrentando as dificuldades

do trabalho precarizadordquo) em Costa (2016) E importante notar que a pesquisa revelou naquele momento aspectos

de precarizaccedilatildeo do trabalho relativamente maiores no acircmbito da administraccedilatildeo direta do que no acircmbito da OSC

contrariamente ao que de modo geral tem sido observado na literatura

27

nos territoacuterios mas tambeacutem com relaccedilatildeo ao que pode e deve ser feito nos momentos de

atendimento individual onde deveria predominar a ldquoseguranccedila de acolhidardquo entendida natildeo

como um mero instrumento ldquoteacutecnicordquo mas como uma verdadeira abertura para o

reconhecimento do outro em suas necessidades e capabilidades Penso que este eacute um caminho

que vale a pena a ser seguido por quaisquer profissionais que atuam nos serviccedilos puacuteblicos da

assistecircncia social uma formaccedilatildeo criacutetica da sociedade comeccedila pela compreensatildeo do potencial

contido nos encontros intersubjetivos e por aiacute que devemos caminhar (Costa 2016 p 154)

Consideraccedilotildees finais

Os argumentos apresentados neste capiacutetulo pretendem servir como um convite para a

reflexatildeo sobre o potencial da articulaccedilatildeo entre uma teoria criacutetica do reconhecimento

intersubjetivo e o campo de anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica Esse exerciacutecio do pensamento visto sob a

perspectiva da Psicologia Social Criacutetica poderaacute ser uma via bastante promissora para explicar

a dinacircmica das poliacuteticas puacuteblicas

Diferente de outras propostas que tomam a poliacutetica puacuteblica como um fato (uma

consequecircncia do Modo de Produccedilatildeo Capitalista) ou como processos mais ou menos

fragmentados (seja como dispositivos de controle dos corpos ou como construccedilatildeo social) com

base no referencial teoacuterico apresentado advogo por uma via alternativa isto eacute uma postura

pragmaacutetica e criacutetico-normativa diante da realidade dos processos de accedilatildeo puacuteblica e do

fundamento intersubjetivo das relaccedilotildees sociais que podem ser adequadamente entendidas como

lutas por reconhecimento reciacuteproco

Isso natildeo significa tomar uma via uacutenica em detrimento das outras linguagens que tecircm

procurado dizer algo sobre as poliacuteticas puacuteblicas desde a Psicologia Antes o que parece estar

em jogo agora eacute o alargamento dos recursos disponiacuteveis para a compreensatildeo da accedilatildeo puacuteblica

de forma mais ampla Considerando a complexidade do objeto o estudo psicossocial criacutetico

deveria se pautar natildeo apenas pela criacutetica das determinaccedilotildees sociais e intersubjetivas que

conformam as poliacuteticas do ldquoEstado em accedilatildeordquo mas tambeacutem deveria aprofundar a anaacutelise dos

processos de interaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais que constituem a accedilatildeo puacuteblica

Evidentemente a discussatildeo sobre todas as mediaccedilotildees e nuances dessa proposta natildeo se

encerra neste texto Na realidade se a Psicologia Social Criacutetica almeja dar alguma contribuiccedilatildeo

efetiva para a anaacutelise das poliacuteticas puacuteblicas entatildeo eacute fundamental buscar o diaacutelogo

comprometido e interessado com outras disciplinas Essa tarefa natildeo eacute faacutecil pois implica em

correr uma seacuterie de riscos como por exemplo a articulaccedilatildeo de linguagens que aparentemente

natildeo conversam tatildeo facilmente Mas eacute preciso ousar sem perder a modeacutestia em relaccedilatildeo ao alcance

do nosso saber afinal como escreveu Leandro Konder (2011 p 36) ldquoa realidade eacute sempre

28

mais rica do que o conhecimento que temos dela Haacute sempre algo que escapa agraves nossas siacutenteses

isso poreacutem natildeo nos dispensa do esforccedilo de elaborar siacutenteses se quisermos entender melhor a

nossa realidaderdquo

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30

Capiacutetulo 2

A assistecircncia social no Brasil uma anaacutelise histoacuterica das relaccedilotildees entre OSC

e Estado

Maria Fernanda Aguilar Lara

Mariana Prioli Cordeiro

Introduccedilatildeo

As parcerias entre organizaccedilotildees da sociedade civil (OSC) e o Estado na implementaccedilatildeo

de poliacuteticas puacuteblicas satildeo atualmente uma realidade na administraccedilatildeo puacuteblica brasileira Assim

temos presenciado o crescimento e a relevacircncia do papel que as OSC ocupam na implementaccedilatildeo

de serviccedilos em vaacuterias esferas de poliacuteticas puacuteblicas Concomitantemente na literatura de

diversos campos acadecircmicos (como na Ciecircncia Poliacutetica na Administraccedilatildeo Puacuteblica na

Sociologia no Direito na Psicologia Social no Serviccedilo Social etc) este tem sido um assunto

recorrente e latente tendo em vista como se estabelece este tipo de relaccedilatildeo puacuteblico-privada (ou

estatalnatildeo estatal) e quais os efeitos produzidos natildeo apenas no acircmbito das poliacuteticas puacuteblicas

mas tambeacutem na proacutepria configuraccedilatildeo de distintas dimensotildees da esfera puacuteblica e da esfera

privada

No acircmbito da poliacutetica puacuteblica de assistencial social a relaccedilatildeo entre organizaccedilotildees da

sociedade civil1 e Estado na execuccedilatildeo de accedilotildees assistenciais eacute antiga e se constitui enquanto um

eixo estruturante da poliacutetica Se recorrermos a uma anaacutelise histoacuterica sobre as praacuteticas

assistenciais no Brasil constataremos o papel central que as organizaccedilotildees da sociedade civil ndash

entidades filantroacutepicas organizaccedilotildees religiosas (sobretudo vinculadas ao catolicismo)

organizaccedilotildees natildeo-governamentais ndash ocuparam na promoccedilatildeo de serviccedilos e accedilotildees voltadas agraves

populaccedilotildees em situaccedilatildeo de vulnerabilidade e extrema pobreza Por outro lado historicamente

o Estado assumiu um papel residual e subsidiaacuterio atuando de forma perifeacuterica atraveacutes da

1 Haacute uma grande variedade de termos utilizados para se referir agraves ldquoinstituiccedilotildees privadas sem fins lucrativosrdquo que

satildeo conveniadas ao Estado para a implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas como organizaccedilotildees natildeo governamentais

(ONG) organizaccedilotildees sociais de interesse puacuteblico (OSCIP) entidades de assistecircncia social organizaccedilotildees da

sociedade civil (OSC) organizaccedilotildees sociais (OS) organizaccedilotildees do Terceiro Setor entre outros Contudo nos

documentos oficiais de caraacuteter teacutecnico-administrativo e regulatoacuterio os termos que aparecem com maior frequecircncia

satildeo ldquoentidades de assistecircncia socialrdquo e mais recentemente ldquoorganizaccedilotildees da sociedade civilrdquo Neste trabalho

optamos por utilizar o termo OSC para fazer menccedilatildeo agraves organizaccedilotildees conveniadas que ofertam serviccedilos

socioassistenciais

31

concessatildeo de subsiacutedios e subvenccedilotildees para as organizaccedilotildees Foi apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 e com a promulgaccedilatildeo da Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) em 1993 que a

assistecircncia social passou a ser concebida enquanto uma poliacutetica puacuteblica e um dever do Estado

se tornando um direito inalienaacutevel de toda(o) cidadatilde(o) (Amacircncio 2008 Marin 2012

Mestriner 2008)

Este cenaacuterio de ampla participaccedilatildeo das OSC na poliacutetica de assistecircncia social nos traz

algumas inquietaccedilotildees que tecircm se tornado inclusive tema de pesquisa de diferentes aacutereas Aqui

lanccedilaremos matildeo de algumas perguntas que se constituem como importantes eixos

mobilizadores deste trabalho2 como ocorreu a participaccedilatildeo das OSC na histoacuteria da assistecircncia

social Qual o papel que as OSC ocupam atualmente na assistecircncia Como eacute tratada a relaccedilatildeo

entre as OSC e o Estado nas principais normativas que regem esta poliacutetica puacuteblica

Desse modo o objetivo deste capiacutetulo eacute discutir o processo de constituiccedilatildeo da poliacutetica

puacuteblica de assistecircncia social no Brasil de modo a analisar como ocorreu a participaccedilatildeo do

Estado e das organizaccedilotildees da sociedade civil (OSC) na construccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica3 De

forma mais especiacutefica buscamos discorrer sobre (I) a participaccedilatildeo das organizaccedilotildees da

sociedade civil na assistecircncia social (II) o processo de consolidaccedilatildeo e regulamentaccedilatildeo da

assistecircncia enquanto uma poliacutetica puacuteblica Em termos metodoloacutegicos utilizamos duas

estrateacutegias principais para a construccedilatildeo desta narrativa (a) revisatildeo da literatura que discute a

poliacutetica de assistecircncia social no Brasil (b) levantamento e anaacutelise documental de normativas

que regulamentam a aacuterea da assistecircncia social principalmente daquelas que versam sobre os

convecircnios firmados com as OSC

Tendo em vista o escopo deste livro podemos lanccedilar matildeo de mais duas perguntas com

as quais tambeacutem pretendemos dialogar qual a importacircncia do estudo da poliacutetica puacuteblica de

assistecircncia social a partir da Psicologia Social Qual seria a contribuiccedilatildeo deste campo

acadecircmico para o estudo desta poliacutetica puacuteblica De forma breve podemos apresentar algumas

consideraccedilotildees que julgamos relevantes Em primeiro lugar compreendemos que houve um

2 Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla de mestrado que estudou o discurso de profissionais do

Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) sobre as estabelecidas entre OSC e Estado na poliacutetica de assistecircncia

social no municiacutepio de Satildeo Paulo A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Psicologia Social do Instituto de

Psicologia da USP sob orientaccedilatildeo da Profa Dra Mariana Prioli Cordeiro 3 Neste trabalho partirmos da perspectiva de poliacutetica puacuteblica como um ldquocampo de conhecimento que busca ao

mesmo tempo ldquocolocar o governo em accedilatildeordquo eou analisar essa accedilatildeo (variaacutevel independente) e quando necessaacuterio

propor mudanccedilas no rumo ou curso dessas accedilotildees (variaacutevel dependente)rdquo (Souza 2006 p 26) Neste sentido o

estudo das poliacuteticas puacuteblicas vai desde a formulaccedilatildeo implementaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo agrave anaacutelise dos processos

relacionais dos atores envolvidos e dos desenhos institucionais que perpassam a construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

como um fenocircmeno amplo e complexo (Farah 2016 Marques 2013)

32

aumento significativo no nuacutemero de psicoacutelogos(as) que atuam na assistecircncia social Este

nuacutemero acompanhou o proacuteprio crescimento da aacuterea aumentando consideravelmente a partir da

publicaccedilatildeo da Norma Operacional Baacutesica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RHSUAS)

ndash que prevecirc a contrataccedilatildeo de psicoacutelogos(as) nas equipes de referecircncias de diversos serviccedilos do

SUAS De acordo com Mariana Cordeiro Bernardo Svartman e Laura Souza (2018) em 2017

eram cerca de 22 mil profissionais de psicologia atuantes na assistecircncia social ou seja cerca

de 8 dos(as) psicoacutelogos(as) em atividade no Brasil Concomitantemente presenciamos

tambeacutem um aumento no nuacutemero de pesquisas em Psicologia que tratam sobre a assistecircncia

social (Cordeiro Svartman amp Souza 2018)

Destarte grande parte dos artigos e trabalhos acadecircmicos que versam sobre a Psicologia

na assistecircncia social tem tido como foco a atuaccedilatildeo profissional nos diversos serviccedilos do SUAS

Certamente este eacute um assusto bastante relevante e fundamental para a aacuterea tendo em vista a

importacircncia da praacutetica profissional da Psicologia para o funcionamento desta poliacutetica puacuteblica

Poreacutem acreditamos ser fundamental que as pesquisa em Psicologia expandam os objetos de

estudos vinculados agrave assistecircncia tratando de assuntos como construccedilatildeo de normativas do

SUAS espaccedilos de controle social anaacutelise de normativas e regulamentaccedilotildees gestatildeo e

operacionalizaccedilatildeo da poliacutetica anaacutelise institucional da estruturaccedilatildeo da aacuterea relaccedilatildeo puacuteblico-

privada na assistecircncia entre outros Todos estes aspectos interferem na configuraccedilatildeo da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica e por conseguinte afetam a atuaccedilatildeo dos(as)

psicoacutelogos(as) nos serviccedilos

Neste sentido acreditamos que satildeo aspectos relevantes que podem se tornar temas de

pesquisa da Psicologia Afinal em todos eles haacute a presenccedila de pessoas ndash gestores(as)

trabalhadores(as) poliacuteticos usuaacuterios(as) ndash que interagem em processos constantes de

negociaccedilotildees disputas e pactuaccedilotildees de acordos necessaacuterios para a operacionalizaccedilatildeo da poliacutetica

nos mais diferentes niacuteveis e instacircncias Em acordo com Peter Spink (2018) ldquoconsiderando que

governos e equipes de agecircncias puacuteblicas satildeo compostos por pessoas podemos presumir que as

accedilotildees foram acompanhadas e fundadas em conversas ndash muitas conversas Decisotildees foram

tomadas escolhas feitas novas materialidades e socialidades produzidasrdquo (P Spink 2018 p

19) estabelecendo a institucionalidade que rege as poliacuteticas puacuteblicas Portanto na nossa

concepccedilatildeo o estudo das institucionalidades eacute tambeacutem um objeto de estudo da Psicologia

Desta forma neste capiacutetulo propomos o estudo da histoacuteria institucional da assistecircncia

social como poliacutetica puacuteblica a partir das contribuiccedilotildees da Psicologia Social Quando vamos

falar especificamente sobre o histoacuterico da poliacutetica de assistecircncia social podemos constatar que

33

haacute uma vasta literatura acadecircmica que se debruccedilou sobre esta temaacutetica (Amacircncio 2008

Chiachio 2006 Cordeiro 2018 Cruz amp Guareschi 2009 Jacooud Bichir amp Mesquita 2017

Brettas 2016 Marin 2012 Sposati Bonetti Yazbek amp Falcatildeo 1987) que narra de diversas

maneiras e a partir de diferentes enfoques os acontecimentos que configuram a estruturaccedilatildeo da

assistecircncia social como uma poliacutetica puacuteblica

Na nossa concepccedilatildeo existem muitas formas de narrar uma histoacuteria dando maior ou

menor destaque a eventos e fatos a partir dos nossos objetivos da nossa visatildeo de mundo do

desenho da pesquisa e de outros fatores que constrangem e influenciam a forma em como uma

narrativa seraacute apresentada Neste trabalho buscamos construir uma narrativa tendo como lente

a Psicologia Social de perspectiva construcionista (Ibantildeez 2001 2003 Intildeiguez 2003 M J

Spink 2010 P Spink 2018) Nesta perspectiva sujeitos e objetos satildeo resultantes de

convenccedilotildees e praacuteticas sociais portanto social e historicamente produzidos (Intildeiguez 2001

2003) Parte-se do princiacutepio de que a ldquorealidaderdquo eacute mediada por processos que estatildeo

condicionados pelas interaccedilotildees linguiacutesticas e socioculturais impossibilitando a apreensatildeo de

uma ldquoessecircncia naturalrdquo das ldquocoisasrdquo que conformam o mundo (Ibantildeez 2003 M J Spink

2010)

Nesta forma de compreender o mundo as proacuteprias poliacuteticas puacuteblicas satildeo um produto

social que foi historicamente construiacutedo por meio das interaccedilotildees linguiacutesticas Nas palavras de

Peter Spink (2018) poliacutetica puacuteblica ldquoeacute uma ferramenta discursiva ou um conceito que

utilizamos para conversar sobre o que governos fazem dizem que querem mudar ou priorizar

e pela mesma loacutegica ndash porque a falta de accedilatildeo eacute tambeacutem accedilatildeo ndash aquilo que governos natildeo querem

fazer ou que natildeo querem mudar ou priorizarrdquo (Spink 2018 pp 13-14) Neste sentido a partir

da perspectiva construcionista damos ecircnfase ao estudo do uso das diferentes linguagens que

conformam o funcionamento das poliacuteticas puacuteblicas tendo em vista a compreensatildeo da ldquoformardquo

como satildeo produzidas e dos ldquoefeitosrdquo que produzem nos sujeitos envolvidos

Neste estudo em especiacutefico daremos ecircnfase no estudo da ldquolinguagem normativardquo que

estrutura a assistecircncia social ou seja na anaacutelise das normas leis diretrizes que regem esta

poliacutetica puacuteblica De forma complementar utilizamos como base a literatura acadecircmica que

tratou do mesmo objeto Assim a histoacuteria que seraacute narrada expotildee fatos acontecimentos trechos

discursivos que apresentam uma certa linha argumentativa com foco na participaccedilatildeo das OSC

no processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica Desse modo escolhemos tratar a assistecircncia social sob

a oacutetica da institucionalidade puacuteblica ou seja daquilo que foi ou natildeo incorporado nas accedilotildees do

Estado Nesta perspectiva o Estado ndash que eacute composto por muacuteltiplos atores abrangendo

34

teacutecnicos(as) gestores(as) governos burocracias instituiccedilotildees normativas e legislaccedilotildees etc ndash

assume uma centralidade na narrativa sendo colocado como agente principal ou sujeito ldquoda

accedilatildeordquo por ser protagonista dos eventos que seratildeo narrados Entretanto a despeito da escolha

narrativa se centrar na oacutetica da institucionalidade ndash afinal marcos institucionais satildeo importantes

para compreender a dinacircmica atual da poliacutetica ndash buscamos tambeacutem discutir outras

possibilidades de pensar a consolidaccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica tentando expor diferentes

perceptivas e olhares sobre a relaccedilatildeo entre OSC e Estado na implementaccedilatildeo da poliacutetica de

assistecircncia social Cabe destacar que os documentos utilizados para a construccedilatildeo desta narrativa

foram analisados como ldquodocumentos de domiacutenio puacuteblicordquo

Os documentos de domiacutenio puacuteblico satildeo produtos sociais tornados puacuteblicos Eticamente estatildeo

abertos para anaacutelise por pertencerem ao espaccedilo puacuteblico por terem sido tornados puacuteblicos de

uma forma que permite a responsabilizaccedilatildeo Podem refletir as transformaccedilotildees lentas em

posiccedilotildees e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simboacutelicos que permeiam o dia a

dia ou no acircmbito das redes sociais pelos agrupamentos e coletivos que datildeo forma ao informal

refletindo o ir e vir de versotildees circulantes assumidas ou advogadas (P Spink 2013 p 112)

A histoacuteria que seraacute apresentada tem por objetivo lanccedilar luz a uma perspectiva diferente

de se compreender a participaccedilatildeo das OSC no processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica Em alguns

trabalhos que tratam sobre a mesma temaacutetica o processo de participaccedilatildeo das OSC eacute visto como

uma ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal ou um processo de ldquoterceirizaccedilatildeordquo (Perez 2005 Souza

2016 Souza 2017 T Cordeiro 2017 Pereira 2015 Reis 2013 Souza 2017) Em outros

momentos a atuaccedilatildeo das OSC eacute associada manutenccedilatildeo de resquiacutecios de caridade e filantropia

(Nunes 2010 Souza 2017) Aqui pretendemos apresentar mais uma possibilidade de

compreender a participaccedilatildeo das OSC Como seraacute exposto a seguir constataremos que as OSC

atuam na assistecircncia muito antes desta aacuterea se tornar uma poliacutetica puacuteblica e algumas aturam no

processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica sendo atores importantes na luta em prol da assistecircncia

social

Assim iremos argumentar que a participaccedilatildeo das OSC na assistecircncia social natildeo se

constitui em essecircncia enquanto um processo de ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal A

desresponsabilizaccedilatildeo por parte do Estado com a poliacutetica de assistecircncia social no Brasil ocorreu

em muitos momentos da histoacuteria e ainda ocorre nos tempos atuais Poreacutem na nossa

compreensatildeo a desresponsabilizaccedilatildeo estaacute vincula agrave falta de centralidade que a assistecircncia ocupa

nas agendas governamentais e natildeo necessariamente agrave existecircncia de uma rede socioassistencial

mista composta por instituiccedilotildees estatais e natildeo estatais

Por fim no que concerne a estrutura deste capiacutetulo dividiremos o trabalho em trecircs

partes aleacutem da presente introduccedilatildeo Na primeira parte nos remetemos agraves primeiras accedilotildees

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socioassistenciais iniciadas no periacuteodo colonial perpassando o processo de institucionalizaccedilatildeo

da assistecircncia ao longo do seacuteculo XX Na segunda parte apresentamos a consolidaccedilatildeo da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica no final dos anos 1980 junto agrave efetivaccedilatildeo do SUAS

nos anos 2000 E na terceira parte apresentaremos a linha argumentativa que o texto propotildee

1 Histoacuterico das relaccedilotildees entre organizaccedilotildees da sociedade e Estado do Brasil Colonial agrave

Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS)

Ao remontarmos agraves primeiras praacuteticas socioassistenciais no Brasil durante a eacutepoca

Colonial vemos que as accedilotildees ndash como dar alimento abrigo e atendimento meacutedico aos pobres ndash

eram executadas fundamentalmente por instituiccedilotildees vinculadas agrave Igreja Catoacutelica pautadas

pelos preceitos da caridade e benevolecircncia (Cruz amp Guareschi 2009) Como exemplo temos a

criaccedilatildeo da primeira ldquoRoda dos Expostosrdquo4 no seacuteculo XVIII em Salvador como uma demanda

das autoridades brasileiras diante do crescente nuacutemero de bebecircs abandonados nas ruas

A Santa Casa de Misericoacuterdia vinculada agrave Igreja ficou responsaacutevel pela realizaccedilatildeo dos

trabalhos da ldquoRodardquo recebendo subsiacutedios da Coroa para o seu funcionamento Vemos nesta

iniciativa como destacado por Lilian Cruz e Neuza Guareschi (2009) um marco histoacuterico para

pensarmos nas relaccedilotildees entre sociedade civil e Estado ao longo do processo de constituiccedilatildeo das

primeiras accedilotildees socioassistenciais em que a sociedade civil guiada pelo princiacutepio da caridade

tomava a iniciativa e o Governo entrava com o financiamento das accedilotildees Dessa forma

ldquoconstatamos que as alianccedilasparcerias entre Estado e sociedade civil satildeo antigas e atravessam

a histoacuteria nas quais a Igreja Catoacutelica marca significativa presenccedilardquo (Cruz amp Guareschi 2009

p 20)

Ao avanccedilarmos na histoacuteria vemos que esta relaccedilatildeo entre Estado e Igreja continuou a

perpassar as accedilotildees assistenciais pois compreendia-se que o auxiacutelio aos pobres e a ldquocaridaderdquo

natildeo era uma funccedilatildeo a priori do poder puacuteblico Contudo a partir do final do seacuteculo XIX o

Brasil passou por importantes transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas ndash como por

exemplo o fim da escravidatildeo o aumento da matildeo de obra assalariada a chegada de imigrantes

de diversos paiacuteses o ecircxodo rural e o crescimento desordenado das cidades Tais transformaccedilotildees

provocaram graves problemas sociais vinculados ao alto iacutendice de desemprego e ao

4 A ldquoRoda dos Expostosrdquo era um dispositivo utilizado para o abandono de bebecircs sendo uma espeacutecie de tabuleiro

em forma ciliacutendrica fixado na janela das Casas de Misericoacuterdia Este dispositivo funcionava a partir de um

mecanismo giratoacuterio de forma a preservar a identidade das matildees que tocavam uma sineta avisando que um bebecirc

havia sido deixado na casa (Cordeiro 2018)

36

crescimento da miseacuteria urbana Neste cenaacuterio o Estado ndash que ateacute entatildeo intervinha sobre a

pobreza majoritariamente a partir de seus aparelhos repressivos ndash comeccedilou a assumir o papel

de organismo ldquocivilizadorrdquo promotor e organizador de accedilotildees poliacuteticas que garantiam um

miacutenimo de coesatildeo social e ordem puacuteblica (Cordeiro 2018 Cruz amp Guareschi 2009 Sposati et

al 1987)

Seguindo tais transformaccedilotildees institucionais em 1942 temos a criaccedilatildeo da primeira

grande instituiccedilatildeo filantroacutepica de assistecircncia social no paiacutes a Legiatildeo Brasileira de Assistecircncia

(LBA) tendo em sua presidecircncia a primeira-dama Darcy Vargas A LBA foi inicialmente criada

para prestar assistecircncia agraves famiacutelias dos soldados que lutavam na Segunda Guerra e com o fim

da guerra a instituiccedilatildeo voltou-se para as populaccedilotildees em situaccedilatildeo de pobreza (Cruz amp Guareschi

2009 Sposati et al 1987) Como apresentado por Mariana P Cordeiro (2018) podemos

destacar duas caracteriacutesticas centrais da LBA (1) tratava-se de uma organizaccedilatildeo da sociedade

civil sem finalidade econocircmica que compreendia a assistecircncia social como uma accedilatildeo de ldquoboa

vontaderdquo e natildeo um direito agrave cidadania e (2) assegurava estatutariamente sua presidecircncia agrave

primeira-dama da Repuacuteblica instituindo assim o chamado ldquoprimeiro-damismordquo (Cordeiro

2018) Neste sentido percebe-se que o Estado mais uma vez delegou agraves organizaccedilotildees da

sociedade civil a responsabilidade pela execuccedilatildeo de accedilotildees de assistecircncia social pautando-se

agora na ldquoboa vontaderdquo das mulheres da alta sociedade e da esposa do governante

Continuando nosso relato histoacuterico podemos afirmar que o primeiro-damismo bem

como a filantropia e o assistencialismo marcaram as praacuteticas socioassistenciais nas deacutecadas

que se seguiram Ateacute final dos anos 1980 a assistecircncia social natildeo foi concebida enquanto uma

poliacutetica estruturada mas era entendida como ldquoum mix de accedilotildees dispersas e descontiacutenuas de

oacutergatildeos governamentais e instituiccedilotildees privadas nas quais o Estado figurou desde sempre um

papel subsidiaacuteriordquo (Amacircncio 2008 p 31) Eacute apenas no final dos anos 70 e iniacutecio dos anos 80

com o avanccedilo dos movimentos da sociedade civil pela redemocratizaccedilatildeo do paiacutes ndash apoacutes quase

vinte anos de autoritarismo e Ditadura Militar ndash que presenciamos transformaccedilotildees mais

significativas no debate puacuteblico em torno da assistecircncia social com a entrada de uma agenda

cidadatilde que ampararia as discussotildees para a formalizaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 (Cordeiro

2018 Ximenes Paula amp Barros 2009)

Podemos considerar a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 como um marco para a

consolidaccedilatildeo do papel do poder puacuteblico enquanto promotor de poliacuteticas sociais Um dos grandes

avanccedilos trazidos pela nova Constituiccedilatildeo foi a instituiccedilatildeo do chamado ldquotripeacute da Seguridade

Socialrdquo ndash a partir disso a promoccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de Sauacutede Previdecircncia Social e

37

Assistecircncia Social se tornam um dever do Estado Por conseguinte a assistecircncia social (ao

menos no plano juriacutedico e discursivo) deixou de se pautar pelas noccedilotildees de caridade

benevolecircncia e filantropia dando lugar agraves noccedilotildees de cidadania direito e poliacutetica puacuteblica

(Cordeiro amp Sato 2017 Macedo et al 2011) Para Thais Marin (2012) a Constituiccedilatildeo de 1988

inaugurou uma nova fase no sistema de proteccedilatildeo social brasileiro que apesar de natildeo ter

significado o fim do legado do assistencialismo e das praacuteticas caritativasfilantroacutepicas se

apresentou como um importante marco simboacutelico e juriacutedico que iria ldquodisputarrdquo as concepccedilotildees

sobre assistecircncia social a partir dos princiacutepios da cidadania e dos direitos humanos

Outra contribuiccedilatildeo importante foi a instituiccedilatildeo da descentralizaccedilatildeo das poliacuteticas sociais

outorgando maior autonomia aos municiacutepios para a implementaccedilatildeo e adequaccedilatildeo das diretrizes

nacionais A partir da utilizaccedilatildeo de modelos federalistas com corresponsabilizaccedilotildees e

atribuiccedilotildees especiacuteficas dos trecircs niacuteveis de governos (uniatildeo estados e municiacutepios) as poliacuteticas

sociais passam a ser implementadas a partir de sistemas uacutenicos ndash com diretrizes nacionais

unitaacuterias que norteiam o processo de implementaccedilatildeo que deve se dar a partir da realidade dos

municiacutepios (Jaccoud Bichir amp Mesquita 2017)

Em confluecircncia com esta mudanccedila constitucional tivemos em 1993 a promulgaccedilatildeo da

Lei nordm 874293 intitulada de Lei Orgacircnica da Assistecircncia Social (LOAS) que estabeleceu

normas e criteacuterios para organizaccedilatildeo da assistecircncia social reafirmando a proteccedilatildeo social

enquanto um direito inalienaacutevel e um dever do Estado Em seu artigo 5ordm a LOAS define trecircs

diretrizes gerais que devem nortear o processo de construccedilatildeo da poliacutetica (1) descentralizaccedilatildeo

poliacutetico-administrativa para os Estados o Distrito Federal e os Municiacutepios e comando uacutenico

das accedilotildees em cada esfera de governo (2) participaccedilatildeo da populaccedilatildeo por meio de organizaccedilotildees

representativas na formulaccedilatildeo das poliacuteticas e no controle das accedilotildees em todos os niacuteveis (3)

primazia da responsabilidade do Estado na conduccedilatildeo da poliacutetica de assistecircncia social em cada

esfera de governo (Brasil 1993 2009)

Portanto o Estado deve conduzir e protagonizar o processo de construccedilatildeo e

implementaccedilatildeo da poliacutetica a partir de um ldquojogordquo coordenado pelos trecircs niacuteveis de governos

com ampla participaccedilatildeo popular em todo o processo Neste documento normativo o poder

puacuteblico reafirma o papel complementar das OSC na assistecircncia social reconhecendo-as

juridicamente como ldquoentidades e organizaccedilotildees de assistecircncia socialrdquo Assim afirma-se a

importacircncia das organizaccedilotildees para a construccedilatildeo e consolidaccedilatildeo da poliacutetica desde que se

adequem e passem a ser regidas por esta normativa conforme Art 6 ordm

38

As accedilotildees na aacuterea de assistecircncia social satildeo organizadas em sistema descentralizado e

participativo constituiacutedo pelas entidades e organizaccedilotildees de assistecircncia social abrangidas por

esta lei que articule meios esforccedilos e recursos e por um conjunto de instacircncias deliberativas

compostas pelos diversos setores envolvidos na aacuterea (Brasil 1993)

Outro avanccedilo importante da LOAS foi instituir o Conselho Nacional de Assistecircncia

Social (CNAS) como oacutergatildeo superior de deliberaccedilatildeo colegiada da poliacutetica de assistecircncia social

de composiccedilatildeo paritaacuteria entre sociedade civil e governo Este oacutergatildeo eacute uma importante instacircncia

de pactuaccedilatildeo controle e deliberaccedilatildeo da assistecircncia social a niacutevel federal

Se paramos a nossa anaacutelise neste momento de consolidaccedilatildeo normativa da poliacutetica

percebemos que a trajetoacuteria histoacuterica da assistecircncia social no Brasil deixou muitas ldquomarcasrdquo e

ldquolegadosrdquo que certamente influenciaram a forma como o Estado compreendeu implementou e

consolidou o que naquele momento passou a ser uma poliacutetica puacuteblica Temos como exemplo

a ideia da assistecircncia social como qualquer accedilatildeo voltada a populaccedilotildees vulneraacuteveis (Mestriner

2008) as concepccedilotildees da assistecircncia social como caridade benevolecircncia clientelismo vinculada

a figura da primeira dama (Amacircncio 2008 Marin 2012) a falta de prioridade desta poliacutetica

nas agendas governamentais (T Cordeiro 2017) entre outros

O reconhecimento da assistecircncia social como uma poliacutetica de ampliaccedilatildeo da cidadania ndash

circunscrita na Constituiccedilatildeo de 1988 e na LOAS ndash foi um importante meio de disputa discursiva

na concepccedilatildeo da assistecircncia social jaacute que a partir deste momento as organizaccedilotildees que

desejassem firmar convecircnios e parcerias com a administraccedilatildeo puacuteblica deveriam fazecirc-lo a partir

das disposiccedilotildees contidas em lei se pautando pelos princiacutepios dispostos em ambas as

normativas Portanto tendo como premissa central a noccedilatildeo de cidadania Certamente o processo

de mudanccedila de paradigma da assistecircncia da caridadefilantropia agrave cidadaniapoliacutetica puacuteblica

natildeo seria realizado de forma abrupta e imediata mas como todo processo de transformaccedilatildeo

seria gradual processual e dialoacutegico incorporado pelos indiviacuteduos a partir de diferentes formas

e significaccedilotildees

2 O periacuteodo poacutes-LOAS e o desafio da construccedilatildeo o Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social

A partir da promulgaccedilatildeo da LOAS em 1993 passou a ser de competecircncia dos governos

(nos trecircs niacuteveis) implementar e consolidar as normativas e diretrizes contidas em lei Esperava-

se assim o compromisso real e contiacutenuo por parte do poder puacuteblico na construccedilatildeo da poliacutetica

de assistecircncia social ou seja a priorizaccedilatildeo desta agenda nos planos de governo e

consequentemente na disposiccedilatildeo orccedilamentaacuteria necessaacuteria para a sua implementaccedilatildeo (Amacircncio

2008) Contudo a deacutecada que sucedeu a LOAS natildeo foi um periacuteodo de grandes avanccedilos na

39

consolidaccedilatildeo da poliacutetica de assistecircncia social (Chiachio 2006 Marin 2012 Mestriner 2008)

Pelo contraacuterio pouco sistemaacuteticas foram as iniciativas em prol da construccedilatildeo e consolidaccedilatildeo

desta poliacutetica

Juacutelia Amacircncio (2008) afirmou que apoacutes a Constituiccedilatildeo de 88 o Governo Federal passou

a dar ecircnfase a construccedilatildeo de programas de transferecircncia de renda como forma de enfrentamento

agrave pobreza Isto ficou evidente com a criaccedilatildeo de uma seacuterie de programas como o Fundo de

Combate agrave Pobreza o Bolsa Alimentaccedilatildeo o Agente Jovem o Auxiacutelio gaacutes o Bolsa Escola entre

outros Damos destaque para a criaccedilatildeo em 2003 do Programa Bolsa Famiacutelia que se constituiu

como um dos principais programas de transferecircncia de renda no paiacutes Na mesma perspectiva

Luciana Jaccoud Renata Bichir e Ana Mesquita (2017) salientaram que nos anos 1990

tivemos alguns avanccedilos normativos ndash como a implementaccedilatildeo do primeiro benefiacutecio assistencial

de acircmbito nacional o benefiacutecio de prestaccedilatildeo continuada (BPC) em 1996 e a mobilizaccedilatildeo da

sociedade em torno da construccedilatildeo da Conferecircncia Nacional de Assistecircncia Social em 1995

Entretanto poucos foram os avanccedilos observados ldquono que se refere agrave afirmaccedilatildeo da gestatildeo

puacuteblica e compartilhada em niacutevel federativo e tampouco no campo dos serviccedilos entatildeo

majoritariamente operados por entidades privadas sem fins lucrativosrdquo (Jaccoud Bichir amp

Mesquita 2017 p 41)

No entanto a implementaccedilatildeo das poliacuteticas de Assistecircncia Social preconizadas pela

LOAS ocorreu em um momento de avanccedilo do projeto neoliberal no cenaacuterio internacional

(Coutinho 2011) preconizando a ldquodiminuiccedilatildeordquo do Estado e restringindo a sua capacidade de

intervenccedilatildeo sobre a economia e a sociedade Dessa forma os governos que se seguiram nos

anos de 1990 natildeo incluiacuteam em sua agenda prioritaacuteria a construccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica de

assistecircncia social que consolidasse as prerrogativas da LOAS Certamente o cenaacuterio econocircmico

e poliacutetico de instabilidades influenciou este processo de poucos avanccedilos

Foi apenas na deacutecada seguinte nos anos 2000 que presenciamos a efetivaccedilatildeo das

diretrizes estabelecidas pela LOAS com a publicaccedilatildeo da Poliacutetica Nacional de Assistecircncia

Social (PNAS) em 2004 ndash formulada a partir do acuacutemulo de amplas discussotildees com a sociedade

civil organizada em torno da IV Conferecircncia Nacional de Assistecircncia Social realizada em 2003

(Brasil 2005)

Por meio da PNAS tivemos a retomada das diretrizes da LOAS e em 2005 iniciou-se

o processo de construccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) ndash que tem como

objetivo a integraccedilatildeo e articulaccedilatildeo da rede socioassistencial em seus diferentes niacuteveis

40

(municipal estadual e federal) regulamentando tambeacutem a participaccedilatildeo da sociedade civil para

a efetivaccedilatildeo do controle social5

No texto da PNAS foi afirmado que a proteccedilatildeo social deve garantir as seguranccedilas de

sobrevivecircncia (de rendimento e de autonomia) de acolhida e de conviacutevio ou vivecircncia familiar

Para materializar estas prerrogativas a seguranccedila de renda deve ser provida pela concessatildeo de

benefiacutecios e as outras seguranccedilas devem ser garantidas atraveacutes da oferta de serviccedilos programas

e projetos organizada a partir de dois niacuteveis de complexidade a Proteccedilatildeo Social Baacutesica (PSB)

e a Proteccedilatildeo Social Especial (PSE) A gestatildeo e implementaccedilatildeo destes programas ficariam ldquosob

encargo de equipamentos puacuteblicos diferenciados os Centros de Referecircncia de Assistecircncia

Social (CRAS) e os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) aleacutem

da rede puacuteblica e privada voltada a puacuteblicos e atendimentos especiacuteficosrdquo (Jacooud Bichir amp

Mesquita 2017 p 42)

Este documento tambeacutem versa sobre as relaccedilotildees estabelecidas entre Estado e sociedade

civil e afirma que diante dos problemas sociais que caracterizam a sociedade brasileira eacute

necessaacuterio que o Estado assuma a ldquoprimazia da responsabilidade em cada esfera de governo na

conduccedilatildeo da poliacutetica Por outro lado a sociedade civil participa como parceira de forma

complementar na oferta de serviccedilos programas projetos e benefiacutecios de Assistecircncia Social

Possui ainda o papel de exercer o controle social sobre a mesmardquo (Brasil 2005 p 47) Em

outro trecho importante consta que ldquosomente o Estado dispotildee de mecanismos fortemente

estruturados para coordenar accedilotildees capazes de catalisar atores em torno de propostas

abrangentes que natildeo percam de vista a universalizaccedilatildeo das poliacuteticas combinada com a garantia

de equidaderdquo (Brasil 2005 p 47) Neste sentido entendemos que as organizaccedilotildees da sociedade

civil vinculadas agrave assistecircncia social continuam sendo reconhecidas como agentes importantes

no processo de consolidaccedilatildeo da poliacutetica Contudo eacute ressaltado o seu papel complementar

cabendo ao Estado o papel protagonista e condutor na estruturaccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica

Nos anos que se seguiram presenciamos o aumento crescente na implementaccedilatildeo de

CRAS e CREAS Em algumas localidades este aumento da oferta de serviccedilos ocorreu por meio

de convecircnios com OSC Este cenaacuterio de aumento da provisatildeo indireta exigiu do poder puacuteblico

o aperfeiccediloamento dos instrumentais juriacutedicos que regulamentam a participaccedilatildeo das OSC na

rede socioassistencial (Amacircncio 2008 Bretas 2016 Jacooud Bichir e Mesquita 2017 Marin

2012) Desse modo em 2009 foi promulgada a Lei nordm 121012009 que desvinculou a

5 A organizaccedilatildeo do SUAS tambeacutem estaacute regulamentada pela Norma Operacional Baacutesica do SUAS (NOB-SUAS) e

pela Norma Operacional Baacutesica de Recursos do SUAS (NOB-RHSUAS) (Brasil 2005 2011)

41

concessatildeo do Certificado de Entidades Beneficentes de Assistecircncia Social (CEBAS)6 do

Conselho Nacional de Assistecircncia Social (CNAS) e atribui esta responsabilidade agrave cada

ministeacuterio setorial ou seja no caso na assistecircncia social passou a ser competecircncia do Ministeacuterio

de Desenvolvimento Social (MDS) a concessatildeo da certificaccedilatildeo Este movimento possibilitou

que o CNAS que acabava atuando numa loacutegica cartorial concedendo ou negando certificaccedilotildees

pudesse assumir de fato a sua atribuiccedilatildeo de oacutergatildeo superior de deliberaccedilatildeo controle social e

coordenaccedilatildeo da poliacutetica de Assistecircncia Social

Naquele mesmo ano tivemos a aprovaccedilatildeo da Tipificaccedilatildeo Nacional de Serviccedilos

Socioassistenciais (Brasil 2009) que estabeleceu padrotildees de organizaccedilatildeo e execuccedilatildeo dos

serviccedilos dividindo-os por niacuteveis de complexidade (PSB e PSE de meacutedia e alta complexidade)

Nesse documento constam paracircmetros miacutenimos de desenvolvimento e execuccedilatildeo dos serviccedilos

puacuteblicos de assistecircncia social que devem ser seguidos por todas as instituiccedilotildees que os executem

ndash sejam estatais ou natildeo estatais Ao estabelecer ldquoparacircmetros miacutenimosrdquo para a execuccedilatildeo dos

serviccedilos avanccedilou-se na consolidaccedilatildeo de uma rede uacutenica de assistecircncia social na qual todas as

instituiccedilotildees (estatais e natildeo-estatais) satildeo regidas pelas mesmas normativas que norteiam a

construccedilatildeo do SUAS

Seguindo a mesma perspectiva tivemos em 2012 a revisatildeo e atualizaccedilatildeo da LOAS que

em sua nova redaccedilatildeo institui o ldquoviacutenculo SUASrdquo e o Cadastro Nacional de Entidades de

Assistecircncia Social ldquoambos visando integrar a rede privada agraves normativas e agrave fiscalizaccedilatildeo

puacuteblicardquo (Jaccoud Bichir e Mesquita 2017 p 42) Desde entatildeo temos observado o aumento

da rede socioassistencial em niacutevel nacional seja por meio apenas da provisatildeo direta ou atraveacutes

da integraccedilatildeo de serviccedilos estatais e natildeo estatais Entretanto apesar de termos presenciado

avanccedilos na consolidaccedilatildeo de programas accedilotildees e serviccedilos na assistecircncia social a rede atualmente

implementada natildeo eacute suficiente para tratar as demandas sociais que caracterizam a realidade

brasileira

3 Analisando a participaccedilatildeo das OSC na poliacutetica de assistecircncia social

Em linhas gerais tentamos apresentar o histoacuterico do desenvolvimento da assistecircncia

social enquanto uma poliacutetica puacuteblica Certamente natildeo eacute consenso nem na literatura acadecircmica

6 O CEBAS eacute definido como um ldquoinstrumento que possibilita a organizaccedilatildeo usufruir da isenccedilatildeo das contribuiccedilotildees

sociais tais como a parte patronal da contribuiccedilatildeo previdenciaacuteria sobre a folha de pagamento e permite ainda a

priorizaccedilatildeo na celebraccedilatildeo de contratualizaccedilatildeoconvecircnios com o poder puacuteblico entre outros benefiacuteciosrdquo

Informaccedilatildeo retirada do site oficial do Ministeacuterio da cidadania ndash disponiacutevel em httpmdsgovbr acesso em

10022019

42

nem na arena poliacutetica o papel da assistecircncia social no sistema de proteccedilatildeo social brasileiro Ao

longo das deacutecadas a assistecircncia social ganhou diferentes posiccedilotildees e contornos em relaccedilatildeo agrave

priorizaccedilatildeo nas agendas dos governos e agrave proacutepria concepccedilatildeo do que seria esta aacuterea Ainda hoje

vemos que mesmo apoacutes 26 anos da promulgaccedilatildeo da LOAS e 31 anos da Constituiccedilatildeo de 88 a

ldquoidentidaderdquo da assistecircncia social eacute alvo de constantes disputas e ataques sendo necessaacuterio a

atuaccedilatildeo exaustiva de ativistas e militantes em prol da defesa da assistecircncia a partir das

prerrogativas destas normativas

Isto fica ainda mais evidente nas uacuteltimas gestotildees no Governo Federal principalmente

na gestatildeo de Michel Temer (2016-2018) que cortou significativamente os repasses direcionados

a assistecircncia social bem como suas accedilotildees se restringiram a fomentar o Programa Crianccedila Feliz

amplamente questionado por especialistas trabalhadores da assistecircncia por estar desvinculados

dos princiacutepios normativos do SUAS Outra importante medida sancionada por este governo

que afeta as poliacuteticas puacuteblicas como um todo foi a aprovaccedilatildeo da Emenda Constitucional 95 ndash

intitulada de PEC do teto de gastos durante sua tramitaccedilatildeo no Congresso Nacional Esta

emenda vincula os investimentos puacuteblicos ao crescimento do PIB por vinte anos ou seja

restringe o investimento em aacutereas sociais a despeito da atual condiccedilatildeo de subfinanciamento No

atual governo apesar de natildeo termos presenciado significativas mudanccedilas na assistecircncia social

ateacute este momento a proposta de reforma da previdecircncia se aprovada nos termos propostos iraacute

reconfigurar o sistema da proteccedilatildeo social restringindo ainda mais o alcance da poliacutetica de

assistecircncia social

No que diz respeito a oferta de serviccedilos socioassistenciais por meio de parcerias com

OSC haacute muitas controveacutersias (nos espaccedilos acadecircmicos e poliacuteticos) sobre o papel e a

centralidade destas organizaccedilotildees Gabriela Brettas (2016) que tambeacutem estudou a relaccedilatildeo entre

OSC e Estado na implementaccedilatildeo da Assistecircncia Social afirmou que existem trecircs momentos

sobre o entendimento do papel das OSC na poliacutetica de Assistecircncia Social Em um primeiro

momento na fase inicial de implementaccedilatildeo do SUAS havia uma visatildeo estatista da execuccedilatildeo

desta poliacutetica puacuteblica Entendia-se que implementaccedilatildeo da rede socioassistencial deveria ser

realizada unicamente atraveacutes de serviccedilos administrados de forma direta pelo poder puacuteblico As

organizaccedilotildees por outro lado eram associadas de forma generalizante a praacuteticas conservadoras

assistencialistas e filantroacutepicas Portanto vincular os serviccedilos agrave oferta pelas OSC seria atrelar

assistecircncia social a estas praacuteticas

Em um segundo momento em que o SUAS comeccedilou a ganhar contornos mais

estruturados a administraccedilatildeo puacuteblica passou a entender que haacute uma rede socioassistencial

43

privada do SUAS ou seja que a despeito da implementaccedilatildeo direta (realizada primordialmente

atraveacutes dos CRAS e CREAS) as organizaccedilotildees continuaram ofertando serviccedilos especiacuteficos a

populaccedilotildees em situaccedilatildeo de vulnerabilidade Neste sentido as OSC passam a ser vistas como

instituiccedilotildees que tem expertise e capilaridade Concomitantemente algumas OSC

(principalmente as grandes) participaram de espaccedilos nacionais de construccedilatildeo da poliacutetica

reivindicando o seu lugar no sistema Por fim no terceiro momento a partir de 2011 entendeu-

se que as organizaccedilotildees satildeo importantes ficando evidente o discurso em prol de uma rede

socioassistencial do SUAS uacutenica Iniciou-se entatildeo um processo de aprimoramento das

regulamentaccedilotildees que tratam da relaccedilatildeo entre OSC e Estado (Brettas 2016)

A autora destacou que estas concepccedilotildees ainda hoje permeiam as discussotildees na

assistecircncia social Evidentemente isto natildeo eacute ldquoum processo no qual essas ideias se substituem

no tempo de modo linear ao contraacuterio envolve dinacircmicas complexas e tensotildees entre as distintas

concepccedilotildees poliacuteticas a respeito do papel do Estado e das OSCrdquo (Brettas 2016 p 151) Em

complementariedade a autora apresentou que

Questotildees como o ldquotamanhordquo do Estado as implicaccedilotildees nos espaccedilos de autonomia e papeis das

OSC (de controle social de prestadoras de serviccedilo de articulaccedilatildeo intersetorial etc) ou sobre a

loacutegica de vinculaccedilatildeo e participaccedilatildeo das OSC ao SUAS (seu lugar institucional no sistema) por

exemplo natildeo satildeo consensuais e continuam em disputa nos espaccedilos de reflexatildeo e construccedilatildeo da

poliacutetica ndash na academia entre as equipes da SNASMDS no CNAS entre as OSC nos conselhos

e oacutergatildeos gestores locais de assistecircncia ou ainda nas instacircncias de discussatildeo e deliberaccedilatildeo sobre

as relaccedilotildees entre Estado e OSC em sentido mais abrangente (como a SGPR ou a Plataforma do

Marco Regulatoacuterio e tambeacutem nos foacuteruns em acircmbito local) (Brettas 2016 p 152)

Seguindo esta linha de pensamento Julia Amacircncio (2008) destacou que se por um lado

a participaccedilatildeo das OSC na implementaccedilatildeo de serviccedilos socioassistenciais aumenta por outro a

relaccedilatildeo que o Estado estabelece com estas organizaccedilotildees natildeo se daacute nos mesmos moldes daquelas

historicamente construiacutedas antes da promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 Como descrito

anteriormente a oferta de serviccedilos era feita de forma fragmentada sendo considerada como

qualquer accedilatildeo a populaccedilotildees vulneraacuteveis baseadas em diferentes princiacutepios (da cidadania

filantropia assistencialismo primeiro-damismo)

Apoacutes a promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 e da LOAS a luta pela consolidaccedilatildeo da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica caminhou num sentido contraacuterio Buscou-se a

construccedilatildeo de um sistema uacutenico com diretrizes princiacutepios e paracircmetros universais pautados

nos preceitos da cidadania e do direito social Disputou-se assim a ldquoidentidaderdquo da assistecircncia

social tentando imprimir o caraacuteter de poliacutetica puacuteblica de direito de todo cidadatildeo e dever do

Estado Esta ldquodisputa identitaacuteriardquo natildeo apenas chegou nas OSC que ofertavam os serviccedilos mas

tambeacutem foi construiacuteda de forma ativa por muitas organizaccedilotildees que participaram dos espaccedilos

44

de construccedilatildeo da poliacutetica Neste sentido vemos que a relaccedilatildeo entre Estado e sociedade civil natildeo

se constroacutei a partir de relaccedilotildees unilaterais de passividade e atividade mas sim em um processo

dialoacutegico de muacutetua constituiccedilatildeo

Por outro lado isto natildeo quer dizer que acreditamos que natildeo houve

ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo por parte do poder puacuteblico como abordado por parte da literatura

(Souza 2016 Souza 2017 Perez 2005) Na nossa leitura isto aconteceu em muitos momentos

afinal a histoacuteria natildeo eacute linear e a construccedilatildeo natildeo foi puramente progressiva Tivemos governos

nos quais a assistecircncia social ganhou destaque na agenda poliacutetica com a maior disponibilidade

de recursos e governos que foram marcados por um momento de retraccedilatildeo e pouco investimento

Contudo nos parece que em alguns momentos a utilizaccedilatildeo do termo

ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estaacute associada apenas a realizaccedilatildeo de convecircnios e parcerias

Certamente a construccedilatildeo de parcerias com as OSC foi algo ldquorentaacutevelrdquo e ldquoconvenienterdquo para o

poder puacuteblico pois o governo comumente investe um montante de recuso financeiro

insuficiente para a execuccedilatildeo efetiva dos serviccedilos Contudo esta precarizaccedilatildeo ocorre tambeacutem

em serviccedilos da administraccedilatildeo direta em que haacute a contraccedilatildeo de uma equipe muito reduzida com

baixas remuneraccedilotildees para a execuccedilatildeo de um volume muito grande de trabalho Nesse sentido

compreendemos que a desresponsabilizaccedilatildeo estaacute associada agrave centralidade que a assistecircncia

social ocupa (ou no caso natildeo ocupa) na agenda governamental ndash e natildeo apenas do desenho

institucional de uma rede socioassistencial mista

Para Amacircncio (2008) o fato de a assistecircncia social passar a ser considerada como

poliacutetica puacuteblica de dever do Estado natildeo condiciona sua execuccedilatildeo exclusivamente pela accedilatildeo

direta do poder puacuteblico Portanto puacuteblico natildeo quer dizer exclusivamente estatal A autora

desenvolveu uma linha de pensamento a partir de alguns trechos escritos por Raquel Raichelis

(1998) e por Maria Luiza Mestriner (2005) ndash que compreendemos ser bastante pertinente para

a discussatildeo desta questatildeo Assim neste diaacutelogo

Esta compreensatildeo [do puacuteblico natildeo apenas como estatal] natildeo restringe o universo da assistecircncia

social a uma intervenccedilatildeo exclusiva dos governos uma vez que supotildee a participaccedilatildeo em

diferentes niacuteveis dos segmentos organizados da sociedade civil em sua formulaccedilatildeo

implementaccedilatildeo e gestatildeo (RAICHELIS 1998 129)

No entanto

Conceber a assistecircncia social nesta perspectiva natildeo implica diluir a responsabilidade estatal por

sua conduccedilatildeo Ao contraacuterio situaacute-la no campo dos direitos remete agrave ativa intervenccedilatildeo do Estado

para garantir sua efetivaccedilatildeo dentro dos paracircmetros legais que a definem (RAICHELIS 1998

37)

A soluccedilatildeo para esse impasse depende

45

A possibilidade de uma parceria com o Estado na elaboraccedilatildeo implementaccedilatildeo e controle de uma

poliacutetica puacuteblica de assistecircncia social com clara definiccedilatildeo das responsabilidades deste Estado

enquanto normatizador coordenador e financiador da poliacutetica que integra agrave sua accedilatildeo as

iniciativas privadas num sistema articulado e agrave sua accedilatildeo as iniciativas privadas num sistema

articulado e coerente de accedilotildees (Mestriner 2005 p 47 citado por Amacircncio 2008 p 173)

Numa apreciaccedilatildeo similar Peter Spink e Ana Marcia Ramos (2016) sustentam que ldquoser

o condutor das poliacuteticas sociais natildeo impede que os governos tenham parceiros tanto para a

execuccedilatildeo dos serviccedilos que adveacutem dessas poliacuteticas quanto para a construccedilatildeo conjunta de

projetos societaacuterios que venham ao encontro de maior justiccedila e equidade socialrdquo (p288) Dessa

forma no que diz respeito agrave assistecircncia social entende-se que o caraacuteter puacuteblico das poliacuteticas

natildeo adveacutem exclusivamente da oferta direta do Estado mas do enquadramento normativo

construiacutedo nas instacircncias de pactuaccedilatildeo e negociaccedilatildeo socioestatais em que a sociedade civil

tambeacutem estaacute presente Ou seja o caraacuteter puacuteblico dos serviccedilos depende da vinculaccedilatildeo das accedilotildees

desenvolvidas agraves diretrizes e princiacutepios nacionais dispostos em lei (como na LOAS na PNAS

e no SUAS)

Consideraccedilotildees finais

O argumento central do presente artigo foi sustentar a ideia de que as parcerias puacuteblico-

privadas com organizaccedilotildees da sociedade civil natildeo necessariamente marcam um processo de

ldquoterceirizaccedilatildeordquo ou ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal conforme defendido por parte da literatura

acadecircmica ndash ou que a participaccedilatildeo das OSC necessariamente faccedila menccedilatildeo a resquiacutecios de

caridade e filantropia Acreditamos que certamente existem OSC que atuam a partir destas

perspectivas assim como deve haver profissionais concursados(a)s e gestores(as) que pautam

sua atuaccedilatildeo nos mesmos preceitos Como apresentado anteriormente foram muitos anos da

assistecircncia social baseados nos paradigmas da caridade benevolecircncia filantropia A histoacuteria da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica ndash ou seja de direito de toda(o) cidadatilde(o) e de dever do

Estado ndash eacute recente em termos histoacutericos

Desse modo como todo processo de transformaccedilatildeo macroestrutural a mudanccedila de

paradigma eacute gradual processual e dialoacutegica incorporada de diferentes formas pelos sujeitos

ressignificada a partir das experiecircncias particulares e do cotidiano Assim vemos que

atualmente haacute diferentes concepccedilotildees sobre a assistecircncia social tanto por parte da sociedade

civil quanto dos governos que perpassam um processo de constantes disputas e negociaccedilotildees

sobre os rumos desta poliacutetica puacuteblica Neste sentido a Psicologia Social de perspectiva

construcionista pela ecircnfase no estudo das interaccedilotildees discursivas e dos processos dialoacutegicos se

46

constitui enquanto uma importante ferramenta teoacuterica e metodoloacutegica para o estudo das

poliacuteticas puacuteblicas

Por fim argumentamos que a Constituiccedilatildeo de 1988 a LOAS a PNAS e todos as outras

normativas que regem a assistecircncia social foram importantes meios de disputa discursiva na

concepccedilatildeo desta poliacutetica influindo sobre a sua operacionalizaccedilatildeo Posto que com base nestas

legislaccedilotildees as organizaccedilotildees conveniadas devem prestar serviccedilos baseados nos princiacutepios

expostos nestes documentos ndash portanto tendo como premissa central a noccedilatildeo de direito e

cidadania Dessa forma acreditamos que o intento em resgatar os marcos histoacutericos e as

normativas relevantes para a constituiccedilatildeo das parcerias puacuteblico-privadas (ou estataisnatildeo-

estatais) pode nos servir com um importante recurso analiacutetico para a compreensatildeo dos efeitos

deste legado histoacuterico no desenvolvimento institucional e na dinacircmica organizacional na

poliacutetica de assistecircncia social nos dias atuais

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Capiacutetulo 3

Proteccedilatildeo Social e Fortalecimento de Viacutenculos contribuiccedilotildees da Poliacutetica de

Assistecircncia Social a mulheres idosas

Izabela Penha Silva

Renata Fabiana Pegoraro

Introduccedilatildeo

A Psicologia vem tendo participaccedilatildeo importante nas poliacuteticas sociais desde o final da

deacutecada de 1970 por meio da criaccedilatildeo de sindicatos e efetiva ocupaccedilatildeo dos mesmos pela classe

profissional bem como do chamado ldquosistema conselhosrdquo Na deacutecada de 1980 os psicoacutelogos

brasileiros se envolveram em importante movimento no campo social o que auxiliou na

definiccedilatildeo de algumas condiccedilotildees para uma inserccedilatildeo mais extensiva da Psicologia no campo das

poliacuteticas puacuteblicas (Yamamoto 2007)

A temaacutetica das poliacuteticas sociais tem sido alvo de investigaccedilotildees e debates no acircmbito

acadecircmico da Psicologia tanto no que diz respeito agrave compreensatildeo das accedilotildees e serviccedilos

vinculados agraves poliacuteticas puacuteblicas quanto agrave sua articulaccedilatildeo com o trabalho dos(as) psicoacutelogos(as)

buscando compreender como tem se dado atualmente a participaccedilatildeo da categoria no campo

social Neste contexto este capiacutetulo versa sobre uma pesquisa de mestrado realizada em um

Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) do interior de Minas Gerais com 13

usuaacuterias pertencentes ao ldquoGrupo de Mulheresrdquo ofertado pelo Serviccedilo de Convivecircncia e

Fortalecimento de Viacutenculos (SCFV) da instituiccedilatildeo com objetivo de investigar como tais

usuaacuterias compreendem as accedilotildees do CRAS Abordaremos em seccedilatildeo seguinte a poliacutetica de

assistecircncia social e o CRAS enquanto um dispositivo dessa aacuterea

1 A Poliacutetica de Assistecircncia Social e a Proteccedilatildeo Social Baacutesica

A Assistecircncia Social no Brasil configurou-se enquanto poliacutetica puacuteblica a partir da

Constituiccedilatildeo Federal de 1988 quando passou a constituir um dos pilares da Seguridade Social

junto agrave Sauacutede e agrave Previdecircncia Seus serviccedilos accedilotildees projetos e programas satildeo geridos pelo

Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) que eacute organizado a partir de uma loacutegica estrutural

51

de proteccedilatildeo em dois niacuteveis a Proteccedilatildeo Social Baacutesica (PSB) e a Proteccedilatildeo Social Especial (PSE)

A PSB eacute considerada a porta de entrada da Assistecircncia Social e desenvolve accedilotildees de caraacuteter

preventivo isto eacute atua para que a violaccedilatildeo de direitos constitucionais seja prevenida tendo suas

accedilotildees referenciadas nos Centros de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) Jaacute a PSE tem

caraacuteter protetivo uma vez que se destina a sujeitos e famiacutelias que se encontram em situaccedilatildeo de

risco pessoal ou social isto eacute aqueles que jaacute tiveram seus direitos violados As accedilotildees deste niacutevel

de proteccedilatildeo estatildeo referenciadas nos Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social

(CREAS) (Pereira amp Guareschi 2018 Cruz amp Guareschi 2013 Couto 2013) Neste texto

abordaremos a PSB por se tratar do contexto em que foi realizada a pesquisa aqui relatada

Como mencionado anteriormente as accedilotildees da PSB estatildeo referenciadas no CRAS Esta

unidade da Poliacutetica de Assistecircncia Social atua em municiacutepios e no Distrito Federal e tem como

foco aqueles que em seu territoacuterio de abrangecircncia encontram-se em situaccedilatildeo de

vulnerabilidade e risco social decorrente de pobreza privaccedilatildeo eou fragilidade de viacutenculos

afetivos familiares comunitaacuterios e de pertencimento Sua proposta eacute prevenir a violaccedilatildeo de

direitos por meio do desenvolvimento de potencialidades aquisiccedilotildees fortalecimento de

viacutenculos familiares e comunitaacuterios e acesso a benefiacutecios eventuais e de transferecircncia de renda

(tais como cesta baacutesica cobertor auxiacutelio natalidade auxiacutelio funeral Bolsa Famiacutelia e Benefiacutecio

de Prestaccedilatildeo Continuada) Para isso faz-se importante o conhecimento do territoacuterio de atuaccedilatildeo

do CRAS e das famiacutelias que nele vivem suas necessidades vulnerabilidades situaccedilotildees de risco

bem como suas potencialidades e as ofertas jaacute existentes no territoacuterio em questatildeo Este trabalho

eacute denominado busca ativa e possibilita compreender melhor a realidade para nela atuar O

CRAS tambeacutem tem como funccedilatildeo promover a articulaccedilatildeo intersetorial do territoacuterio buscando

dialogar com as demais poliacuteticas e setores (educaccedilatildeo sauacutede previdecircncia cultura esporte

lazer) viabilizando o acesso das famiacutelias aos serviccedilos setoriais para que tenham um

atendimento integral (Brasil 2009)

No Brasil de acordo com o Censo SUAS realizado no ano de 2018 haacute um total de 8360

unidades de CRAS os quais atendem 28823500 famiacutelias sendo 1173 destas unidades

alocadas no Estado de Minas Gerais Em todo o Brasil os CRAS empregam 103625

profissionais dos quais 10529 satildeo psicoacutelogos(as) Em Minas Gerais atuam 1660 profissionais

da Psicologia isto eacute haacute a presenccedila de ao menos um psicoacutelogo em todos os CRAS do Estado

(Brasil 2019)

Dentre as accedilotildees que se encontram na alccedilada do CRAS temos (a) Serviccedilo de Proteccedilatildeo

e Atendimento Integral agrave Famiacutelia (PAIF) (b) Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de

52

Viacutenculos (SCFV) e (c) Serviccedilo de Proteccedilatildeo Social Baacutesica no domiciacutelio para pessoas com

deficiecircncia e idosas (Ministeacuterio do Desenvolvimento Social 2016) Seraacute abordado mais

especificamente neste capiacutetulo o Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos uma

vez que o ldquoGrupo de Mulheresrdquo eacute uma accedilatildeo que pertence ao SCFV do CRAS pesquisado

11 O Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos (SCFV) e a contextualizaccedilatildeo da

pesquisa

Como o proacuteprio nome sugere o Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos

(SCFV) tem como principal objetivo a promoccedilatildeo da convivecircncia coletiva e o fortalecimento de

viacutenculos afetivos familiares comunitaacuterios e de pertencimento Devido a isso suas accedilotildees satildeo

organizadas no formato de grupos e satildeo propostas atividades que promovam trocas culturais e

de vivecircncias entre os usuaacuterios bem como contribuam com o desenvolvimento do sentimento

de pertenccedila e de identidade Para isto eacute importante que a formaccedilatildeo dos grupos leve em

consideraccedilatildeo as especificidades do ciclo de vida dos usuaacuterios podendo ser organizados grupos

de crianccedilas adolescentes jovens adultos pessoas idosas entre outros As atividades do SCFV

satildeo ofertadas na proacutepria instituiccedilatildeo [CRAS] ou em instituiccedilotildees parceiras (Brasil 2016)

O ldquoGrupo de Mulheresrdquo do qual as participantes da pesquisa aqui apresentada satildeo

frequentadoras integra o SCFV de um CRAS do interior de Minas Gerais Este grupo eacute

composto por mulheres em sua maioria idosas aposentadaspensionistas e viuacutevas que estatildeo no

serviccedilo haacute pelo menos oito anos O grupo eacute ofertado semanalmente na instituiccedilatildeo tem duraccedilatildeo

aproximada de 60 minutos e eacute coordenado por uma psicoacuteloga da equipe de referecircncia do CRAS

Nele satildeo abordadas diversas temaacuteticas relacionadas aos interesses das participantes por vezes

contempladas por palestrantes convidados Satildeo realizadas atividades que promovem a sauacutede

mental e fiacutesica (ex memoacuteria concentraccedilatildeo coordenaccedilatildeo motora) e o fortalecimento de

viacutenculos aleacutem de espaccedilo para compartilhamento de experiecircncias diversas por meio de rodas de

conversa acerca de conteuacutedos relacionados ao cotidiano e agraves relaccedilotildees sociais e comunitaacuterias das

usuaacuterias

Esta pesquisa buscou investigar como as usuaacuterias deste grupo compreendem as accedilotildees

ofertadas pelo CRAS O ldquoGrupo de Mulheresrdquo foi eleito para fase de campo da pesquisa por

agregar as usuaacuterias mais antigas do serviccedilo e que apresentam elevada taxa de frequecircncia no

grupo Para a construccedilatildeo de dados foram aplicados questionaacuterios para caracterizaccedilatildeo das

usuaacuterias e realizados trecircs encontros para entrevistas em grupo no formato de Grupos Focais

53

os quais contaram com materiais de apoio como disparadores de discussotildees acerca do tema

proposto Os dados foram analisados por meio de Anaacutelise de Conteuacutedo Temaacutetica proposta por

Bardin (1977) Abordaremos em seccedilatildeo seguinte o uso de Grupo Focal como teacutecnica de

construccedilatildeo de dados na pesquisa no campo das poliacuteticas puacuteblicas

2 O uso de Grupos Focais em pesquisas no campo das poliacuteticas puacuteblicas organizaccedilatildeo

conduccedilatildeo vantagens e desvantagens

A teacutecnica de Grupos Focais (GF) foi eleita para fase de construccedilatildeo de dados por ser um

procedimento raacutepido praacutetico e que permite acessar com facilidade as contribuiccedilotildees que a

populaccedilatildeo investigada tem a oferecer sendo comumente utilizado nos campos das Ciecircncias

Sociais Antropologia e Sauacutede Essa teacutecnica tem como objetivo investigar por meio de

entrevistas em grupo um tema comum aos participantes proporcionando espaccedilo interacional

que possibilita a expressatildeo de sentimentos crenccedilas valores experiecircncias representaccedilotildees e

percepccedilotildees dos participantes sobre o fenocircmeno investigado Para isto eacute importante que os

participantes sejam escolhidos de forma intencional isto eacute tenham relaccedilatildeo com os objetivos da

pesquisa Aleacutem disso eacute recomendado que o grupo seja composto por uma meacutedia entre quatro e

quinze participantes e que tenha uma duraccedilatildeo meacutedia de 60 a 120 minutos atentando-se para

que encontros muito longos sejam evitados uma vez que podem causar cansaccedilo e desgaste

mental (Busanello Lunardi-Filho Kerber amp Santos 2013 Backes Colomeacute Erdman amp

Lunardi 2011) A literatura tambeacutem aponta que o nuacutemero de encontros necessaacuterios para

investigaccedilatildeo de um tema varia de acordo com a complexidade do mesmo sendo recomendado

o uso do criteacuterio de saturaccedilatildeo como estrateacutegia para delimitaccedilatildeo do nuacutemero de encontros

necessaacuterios pois considera a repeticcedilatildeo a previsibilidade dos testemunhos e a ausecircncia do

surgimento de novas ideias identificando que o esgotamento do tema foi alcanccedilado (Trad

2009)

Para desenvolvimento dos grupos focais eacute necessaacuteria a presenccedila de um moderador que

tem como funccedilatildeo coordenar o grupo esclarecer sobre o objetivo da pesquisa e a dinacircmica dos

encontros bem como criar um clima agradaacutevel entre os participantes e fomentar as discussotildees

O moderador pode contar com o auxiacutelio de um observador para controle do tempo

monitoramento dos equipamentos de gravaccedilatildeo e registro da dinacircmica grupal expressotildees dos

participantes e demais aspectos que julgar importantes O espaccedilo para realizaccedilatildeo dos encontros

deve ser localizado preferencialmente em territoacuterio neutro protegido de ruiacutedos ou demais

interrupccedilotildees confortaacutevel e que assegure a privacidade dos participantes (Busanello et al 2013

54

Backes et al 2011 Trad 2009) O desenvolvimento e a observaccedilatildeo do GF podem ser

facilitadas pela organizaccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico com as cadeiras dispostas em ciacuterculo (Gaskell

2002)

Compreendemos que o uso da teacutecnica de GF pode ser vantajosa no campo das poliacuteticas

puacuteblicas em especial por ofertar um espaccedilo confortaacutevel para a livre expressatildeo de ideias e

opiniotildees sobre determinado assunto o que permite aos pesquisadores explorarem perguntas natildeo

antevistas e incentivar a participaccedilatildeo dos integrantes possibilitando o entendimento das

questotildees de forma mais ampla Aleacutem disso a flexibilidade em seu formato o qual permite o

uso de imagens metaacuteforas ou estiacutemulos projetivos tambeacutem eacute vantajoso para uma construccedilatildeo de

dados de maior qualidade e mais rica em detalhes (Gaskell 2002 Trad 2009)

A literatura aponta alguns limites do procedimento de GF que versam sobre o risco de

interferecircncia dos juiacutezos de valores do moderador bem como a dificuldade de generalizaccedilatildeo dos

dados construiacutedos visto que a seleccedilatildeo de participantes eacute feita de forma intencional e por

conveniecircncia Quanto agrave generalizaccedilatildeo em pesquisas qualitativas vale pontuar que natildeo se

objetiva encontrar uma unidade entre as representaccedilotildees sobre determinado objeto de estudo

Pelo contraacuterio busca-se a compreensatildeo dos diferentes e muitas vezes divergentes pontos de

vista sobre o tema em foco Em alguns casos no entanto a discussatildeo em grupo pode impedir a

expressatildeo de opiniotildees que sejam divergentes das dos demais participantes e alguns integrantes

do grupo podem dominar a discussatildeo ou desviar o assunto proposto enviesando a construccedilatildeo

de dados A dificuldade de garantir o total anonimato dos participantes por se tratar de uma

entrevista grupal tambeacutem eacute apontada como uma desvantagem da teacutecnica (Trad 2009 Backes

et al 2011)

Na pesquisa com o ldquoGrupo de Mulheresrdquo foram realizados trecircs encontros de GF com

duraccedilatildeo aproximada de 90 minutos Cada encontro contou com materiais de apoio como

dispositivos disparadores de ideias reflexotildees e sentimentos acerca do tema a ser investigado

naquele encontro No primeiro encontro foi utilizado como material disparador de discussatildeo a

foto da fachada do CRAS investigado procurando compreender os sentidos atribuiacutedos agrave

instituiccedilatildeo por suas usuaacuterias Em um segundo momento deste encontro foram apresentadas agraves

participantes imagens de diferentes serviccedilos puacuteblicos de aacutereas diversas como Sauacutede Educaccedilatildeo

Previdecircncia Assistecircncia Social Cultura Esporte e Lazer com o intuito de investigar o

conhecimento que as idosas tinham a respeito da Poliacutetica de Assistecircncia Social e do CRAS

enquanto pertencente a essa aacuterea No segundo encontro objetivou-se investigar o conhecimento

que as participantes tinham sobre as atividades e accedilotildees realizadas pela instituiccedilatildeo sendo

55

convidadas a comporem uma lista com todas aquelas que se lembrassem Em seguida foram

apresentadas imagens dos benefiacutecios eventuais e de transferecircncia de renda da Proteccedilatildeo Social

Baacutesica para investigaccedilatildeo minuciosa do conhecimento que as mesmas apresentavam sobre cada

um deles bem como de sua relaccedilatildeo com o CRAS No terceiro e uacuteltimo encontro as idosas

foram convidadas a circular pelos espaccedilos da instituiccedilatildeo observando sua estrutura

organizaccedilatildeo dinacircmica corpo de funcionaacuterios para em seguida fazerem uma avaliaccedilatildeo do

CRAS pontuando o que estava funcionando bem e o que precisava ser melhorado Nesse

mesmo encontro tambeacutem foi investigado o lugar que o CRAS ocupa na vida das usuaacuterias

contando com a apresentaccedilatildeo de um viacutedeo produzido pela equipe com seus momentos na

instituiccedilatildeo como material disparador de reflexotildees

O nuacutemero de participantes em cada encontro variou entre 8 e 12 A partir do uso dessa

teacutecnica de construccedilatildeo de dados (GF) e da Anaacutelise de Conteuacutedo Temaacutetica proposta por Bardin

(1977) foi possiacutevel elencar alguns eixos de anaacutelise construiacutedos ao longo da pesquisa os quais

seratildeo discutidos em seccedilatildeo seguinte A pesquisa foi aprovada pelo Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa

com seres humanos da Universidade Federal de Uberlacircndia (Parecer 2735403) e cada

participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias uma

ficou com a participante e a outra foi entregue agrave pesquisadora Os encontros ocorreram em uma

sala reservada no proacuteprio CRAS

3 Contribuiccedilotildees da Poliacutetica de Assistecircncia Social a mulheres usuaacuterias do CRAS

As 12 mulheres que participaram da pesquisa tinham entre 53 e 92 anos sendo a grande

maioria idosas (n=10) viuacutevas (n=8) aposentadas ou pensionistas Destas 11 acessaram o

CRAS por demanda espontacircnea (convidadas por familiares ou conhecidos jaacute vinculados ao

serviccedilo) e apenas uma por busca ativa A maior parte (n=8) eacute usuaacuteria do CRAS haacute pelo menos

oito anos

De acordo com os resultados da pesquisa a participaccedilatildeo de mulheres idosas nas poliacuteticas

sociais e neste caso no serviccedilo de Proteccedilatildeo Social Baacutesica tem feito com que elas identifiquem

nesses espaccedilos um lugar que lhes pertence Ao longo do processo de construccedilatildeo de dados da

pesquisa um dos aspectos investigados pelas pesquisadoras dizia respeito ao puacuteblico-alvo da

instituiccedilatildeo isto eacute foi investigado junto agraves usuaacuterias para quem os serviccedilos ofertados na

instituiccedilatildeo [CRAS] satildeo destinados As participantes mencionaram que aquele serviccedilo se

destinava agraves pessoas em situaccedilatildeo de vulnerabilidade enfatizando o puacuteblico da terceira idade

56

As demais faixas etaacuterias segundo as participantes tambeacutem satildeo contempladas nas accedilotildees do

CRAS entretanto em segundo plano como ilustrado pelo trecho ldquo- O adolescente eacute puacuteblico

alvo do CRASrdquo (Pesquisadora GF1) ldquo- O CRAS Soacute se for [adolescente] deficiente Isso aqui

eacute mais para noacutes [idosas mulheres]rdquo (Neide1 GF1)

Nesse sentido mesmo sendo um serviccedilo destinado ao puacuteblico em situaccedilatildeo de

vulnerabilidade independente de sua faixa etaacuteria o CRAS tem sido reconhecido por essas

mulheres como um lugar que tem como foco acolher as questotildees da terceira idade Alguns

autores (Stuart-Hamilton 2002 citado por Morais 2009) apontam situaccedilotildees que contribuem

para a elucidaccedilatildeo de conflitos nesse momento de vida como (1) surgimento de algumas

doenccedilas muitas vezes crocircnicas que afetam a qualidade de vida dos idosos (2) mudanccedilas

corporais e orgacircnicas que podem influenciar a autoimagem do idoso (3) viuvez eou morte de

amigos e parentes (4) perda de algumas funccedilotildees sociais que podem ocasionar uma sensaccedilatildeo de

invalidezinutilidade ao idoso (5) dificuldades financeiras muitas vezes ocasionadas pela

diminuiccedilatildeo da renda apoacutes saiacuteda do mercado de trabalho eou aposentadoria Estas questotildees

podem afetar a autoestima e a identidade do idoso gerar crises e conflitos fazendo com que ele

recorra a recursos tanto internos quanto externos para enfrentamento das consequecircncias

ocasionadas pelas mudanccedilas que vivencia (Morais 2009)

Segundo a Poliacutetica Nacional de Sauacutede da Pessoa Idosa (Brasil 2006) a proporccedilatildeo de

usuaacuterios idosos nos serviccedilos puacuteblicos em todos os setores tende a ser cada vez maior tanto pelo

maior acesso a informaccedilotildees que as pessoas da terceira idade vecircm tendo quanto pelo aumento

relativo e absoluto da populaccedilatildeo pertencente a essa faixa etaacuteria no paiacutes A presenccedila da mulher

idosa nos serviccedilos puacuteblicos tambeacutem eacute marcante visto que 55 da populaccedilatildeo idosa brasileira eacute

composta por mulheres e 35 da populaccedilatildeo feminina do paiacutes pertence a esta faixa etaacuteria Nesta

pesquisa 10 participantes eram mulheres idosas A forte presenccedila da mulher nas poliacuteticas

puacuteblicas tambeacutem estaacute relacionada com a busca por atendimento natildeo apenas para suas demandas

pessoais mas sobretudo para filhos netos outros familiares pessoas idosas com deficiecircncia e

ateacute mesmo vizinhos e amigos por ser a mulher a pessoa identificada como principal e agraves vezes

uacutenica cuidadora (Brasil 2011)

Esse excesso de funccedilotildees desempenhadas pelo gecircnero feminino (matildee avoacute educadora

cuidadora e em geral principal provedora) pode muitas vezes ocasionar sobrecarga fiacutesica e

emocional agrave mulher desencadeando adoecimento psiacutequico (Batista Reinaldo Martins

1 Todas as participantes foram identificadas por meio de nome fictiacutecio visando preservar sua identidade

57

Paschoal amp Santos 2015) Tal aspecto alerta para a necessidade de que as poliacuteticas puacuteblicas

levem em consideraccedilatildeo a perspectiva de gecircnero para o planejamento de suas accedilotildees Segundo

Madureira Peliser Beltrame e Stamm (2008) incluir o debate sobre gecircnero na construccedilatildeo de

accedilotildees de promoccedilatildeo de sauacutede e ndash incluiacutemos de proteccedilatildeo social ndash contribui para uma melhor

assistecircncia das mulheres de forma integral visto que deixa de considerar o envelhecer como

um processo universal vivenciado da mesma forma por homens e mulheres possibilitando

assim atender de forma efetiva as especificidades do puacuteblico feminino

A participaccedilatildeo em grupos ofertados por serviccedilos puacuteblicos voltados agrave terceira idade tem

se mostrado um recurso externo interessante utilizado por idosas no enfrentamento das

intercorrecircncias relacionadas ao envelhecer As participantes do ldquoGrupo de Mulheresrdquo por

exemplo relataram ter encontrado no CRAS um lugar de acolhimento e apoio em especial

emocional pois contribuiu em momentos difiacuteceis como luto e depressatildeo ldquoquando eu perdi meu

filho amigas me convidaram e eu vim para caacute Estava em depressatildeo fiquei em depressatildeo trecircs anos

tomando remeacutedio Eu vim para caacute e graccedilas a Deus foi uma belezardquo (Ceacutelia GF1)

E outra usuaacuteria complementa ldquoO CRAS nos tira do fundo do poccedilo Eu tambeacutem perdi

minha menina e foi aqui que eu natildeo que eu aguentei Se eu ficasse em casa eu natildeo

aguentariardquo (Neide GF1) As idosas relataram com carinho e apreccedilo sobre o viacutenculo que

construiacuteram por meio do Grupo de Mulheres ofertado pela instituiccedilatildeo considerando ainda

terem ganhado uma nova famiacutelia ldquoA uniatildeo nossa eacute muito bonita aquirdquo (Neide GF3) e Marcela

complementa ldquoEu falo que aqui a gente tem uma famiacuteliardquo Carmona Couto e Scorsolini-Comin

(2014) pontuam que as relaccedilotildees de amizade entre idosos podem oferecer consequecircncias

positivas uma vez que amplia a rede de apoio social e funciona como um recurso de proteccedilatildeo

contra a solidatildeo ao proporcionar o contato com outras pessoas significativas que experimentam

vivecircncias semelhantes agraves deles

Souza (2016) relatou experiecircncia semelhante ao realizar estudo sobre um grupo de

convivecircncia composto por idosos usuaacuterios de um CRAS da cidade de Serra Negra do NorteRN

buscando identificar as contribuiccedilotildees que a participaccedilatildeo nesse grupo oferecia agrave vida dos

mesmos Segundo a autora fazer parte de tal grupo auxiliou na melhoria da qualidade de vida

dos idosos visto que naquele espaccedilo eles tinham oportunidade de socializaccedilatildeo e consequente

construccedilatildeo de viacutenculos afetivos entre si participavam de atividades diversas incluindo

passeios se sentiam acolhidos pela equipe sendo tratados com carinho e atenccedilatildeo o que os

auxiliava na lida com as dificuldades cotidianas

58

Neri (2001) tambeacutem apontou como uma das alternativas atuais de enfrentamento das

intercorrecircncias relacionadas agrave velhice a participaccedilatildeo em grupos voltados ao puacuteblico da terceira

idade por serem interessantes espaccedilos de construccedilatildeo de novas possibilidades e perspectivas de

vida agravequeles que muitas vezes se deparam com uma realidade marcada pelo sentimento de

solidatildeo inutilidade invalidez e mesmice

as pessoas de mais idade dentro de um grupo sociocultural podem afirmar a sua proacutepria

identidade expandir as fronteiras de seu valor reconhecerem-se como participantes da vida

atual do grupo por meio da memoacuteria compartilhada porque a identidade individual eacute uma

instacircncia que depende do outro (Neri 2001 p 144)

Aleacutem de um espaccedilo de acolhimento e apoio estes grupos podem ser proporcionadores

de aprendizados As participantes do ldquoGrupo de Mulheresrdquo relataram encontrar no CRAS um

espaccedilo importante para veiculaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre sauacutede nutriccedilatildeo poliacuteticas puacuteblicas

entre outros assuntos importantes por meio de atividades realizadas nos grupos de convivecircncia

e de palestras que satildeo ofertadas na instituiccedilatildeo

a gente aprende muita coisa aqui Atraveacutes dessas palestras que [trabalhadores do CRAS] fizeram

aiacute eu aprendi tanta coisa necessaacuteria importante doenccedila que eu nem sabia que existia acabei

descobrindo que meu neto estaacute com essa doenccedila Entatildeo a gente vai aprendendo muita coisa

eu acho muito importante a gente que tem famiacutelia saber as coisas melhor sobre a sauacutede de cada

um (Marcela GF1)

Aleacutem disso ao longo de suas trajetoacuterias na instituiccedilatildeo as idosas tambeacutem evidenciaram

nos encontros de GF terem aprendido sobre a Poliacutetica de Assistecircncia Social As mesmas

demonstraram ter bom conhecimento dos serviccedilos e accedilotildees ofertados pela Proteccedilatildeo Social

Baacutesica como os benefiacutecios de transferecircncia de renda (Bolsa Famiacutelia e Benefiacutecio de Prestaccedilatildeo

Continuada) os benefiacutecios eventuais (cesta baacutesica cobertor auxiacutelio natalidade) bem como as

atividades realizadas na instituiccedilatildeo e pela equipe de referecircncia (visitas domiciliares acolhidas

encaminhamentos mediaccedilatildeo de grupos do SCFV atividades culturais de danccedila e atividades

infantis) Isto mostra que a instituiccedilatildeo tem conseguido contar por meio de sua praacutetica cotidiana

ldquoa que veiordquo e ldquoa quem veiordquo e que seus usuaacuterios natildeo satildeo meros participantes mas ativos atores

na efetivaccedilatildeo do serviccedilo

Leandro-Franccedila e Murta (2014) tambeacutem apontam a experiecircncia de grupo como

importante estrateacutegia de promoccedilatildeo de sauacutede mental entre idosos Segundo as autoras a

participaccedilatildeo em grupos que tenham como objetivo a promoccedilatildeo da valorizaccedilatildeo do envelhecer e

de discussotildees sobre as questotildees que afetam a vida na terceira idade pode ser interessante

caminho de empoderamento dos idosos no lidar com as adversidades deste periacuteodo

beneficiando a sua sauacutede mental De acordo com as autoras a prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da sauacutede

mental podem contribuir tambeacutem com (1) melhoria na sauacutede em geral (2) promoccedilatildeo de

59

cidadania (3) planejamento e adaptaccedilatildeo agrave saiacuteda do mercado de trabalhoaposentadoria (4)

reduccedilatildeo de sintomas de depressatildeo e ansiedade (5) prevenccedilatildeo do suiciacutedio Leandro-Franccedila e

Murta (2014) pontuam ainda que as estrateacutegias mais eficazes para este puacuteblico satildeo aquelas

que apresentam abordagens abrangentes isto eacute que englobam intervenccedilotildees que levam em

consideraccedilatildeo natildeo apenas os determinantes individuais de sauacutede (comportamentos haacutebitos

conhecimentos) mas tambeacutem determinantes sociais como a rede de apoio ao idoso a

comunidade em que vive as instituiccedilotildees e as poliacuteticas puacuteblicas

Rabelo e Neri (2013) orientam que intervenccedilotildees grupais com idosos podem funcionar

como catalisadores para maximizar ldquoas potencialidades compensar perdas reorganizar a vida

e ajustar-se agraves situaccedilotildeesrdquo (Rabelo amp Neri 2013 p 61) Para tanto eacute necessaacuterio que os

profissionais responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo e conduccedilatildeo desses grupos respeitem os valores a

escolaridade e a cultura de seus participantes estimulem a livre expressatildeo de memoacuterias e

sentimentos num clima de confianccedila e acolhimento mediante um contrato de convivecircncia

efetuado previamente que garanta o sigilo o compromisso com o grupo e seguranccedila para

expressar diferentes opiniotildees

Carmona Couto e Scorsolini-Comin (2014) defendem que a terceira idade precisa ser

olhada natildeo mais como um periacuteodo de perdas crises e limitaccedilotildees mas sim como uma

experiecircncia que possibilita transformaccedilotildees aquisiccedilotildees significados e novas possibilidades

Sobre isto Zimmerman (2000 citado por Morais 2009) pontua que pessoas mais saudaacuteveis e

otimistas estatildeo mais propensas a ver a velhice como um tempo de acuacutemulo de experiecircncias

maturidade liberaccedilatildeo de certas responsabilidades e liberdade para assumir novas ocupaccedilotildees

4 A Psicologia frente agrave poliacutetica de Assistecircncia Social

As questotildees abordadas neste texto dialogam de maneira importante com a formaccedilatildeo em

Psicologia e demais aacutereas que se debruccedilam nos estudos sobre o desenvolvimento humano uma

vez que apesar de mudanccedilas importantes ao longo dos uacuteltimos anos ainda estatildeo marcados por

olhares que enfocam a incapacidade funcional e limitaccedilotildees fiacutesicas cognitivas e sensoriais dos

idosos bem como o controle e a prevenccedilatildeo de agravos de doenccedilas Precisamos nos lembrar

diariamente que a sauacutede do idoso se caracteriza como a ldquointeraccedilatildeo multidimensional entre sauacutede

fiacutesica sauacutede mental independecircncia na vida diaacuteria integraccedilatildeo social suporte familiar e

independecircncia econocircmica (Ramos 2003 p 794)

60

Os(as) psicoacutelogos(as) por se tratar de uma classe profissional fortemente presente nas

poliacuteticas puacuteblicas de atenccedilatildeo aos idosos podem contribuir com a mudanccedila desta perspectiva

para um olhar mais positivo voltado ao envelhecimento em suas praacuteticas Eacute importante destacar

que a presenccedila de uma psicoacuteloga na coordenaccedilatildeo e mediaccedilatildeo do ldquoGrupo de Mulheresrdquo pode

ofertar experiecircncias interessantes agraves usuaacuterias Apesar de natildeo terem um formato terapecircutico

visto que a praacutetica psicoteraacutepica se consolida como responsabilidade da poliacutetica de Sauacutede o

grupo do SCFV coordenado por uma psicoacuteloga pode trazer benefiacutecios que acabam sendo

terapecircuticos para seus participantes O(a) psicoacutelogo(a) quando no papel de facilitador do

processo grupal auxilia na socializaccedilatildeo e compartilhamento de experiecircncias em comum e na

construccedilatildeo de uma rede de suporte psicossocial entre os participantes promovendo sauacutede

mental e fortalecimento de viacutenculos Nesse sentido o formato de grupos tem se mostrado uma

alternativa interessante e viaacutevel para a promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo da sauacutede biopsicossocial dos

idosos no serviccedilo puacuteblico (Reis Giuglliani amp Pasini 2012)

A participaccedilatildeo da Psicologia na Poliacutetica de Assistecircncia Social natildeo eacute um evento novo

Inicialmente o trabalho da Psicologia neste campo se configurava de forma mais pontual

atuando apenas em praacuteticas focalizadas em grupos considerados de risco ficando fora de seu

acircmbito de atuaccedilatildeo as demais parcelas da populaccedilatildeo Aos poucos com a divulgaccedilatildeo dos

resultados de suas experiecircncias relacionadas a intervenccedilotildees em situaccedilotildees de vulnerabilidade

social bem como do apontamento de recursos subjetivos como mediadores da minimizaccedilatildeo de

tais vulnerabilidades houve uma ampliaccedilatildeo da concepccedilatildeo social e governamental das

contribuiccedilotildees que a Psicologia oferecia agraves poliacuteticas puacuteblicas o que implicou em sua inserccedilatildeo

na Proteccedilatildeo Social Baacutesica a partir da estruturaccedilatildeo do SUAS em 2005 (Reis Giuglliani amp Pasini

2012 Conselho Federal de Psicologia 2005)

Mas afinal o que faz um(a) psicoacutelogo(a) no cotidiano da Proteccedilatildeo Social Baacutesica Esta

pergunta eacute importante uma vez que ainda haacute um desconhecimento sobre a atuaccedilatildeo do psicoacutelogo

em contextos que sejam diferentes do setting cliacutenico-terapecircutico Este dado se revela como um

reflexo da predominacircncia das cliacutenicas tradicionais como referenciais norteadores das praacuteticas

do psicoacutelogo desde sua formaccedilatildeo em detrimento das atuaccedilotildees que envolvem o cenaacuterio das

poliacuteticas puacuteblicas Por esta razatildeo intervenccedilotildees ligadas agrave psicoterapia ainda satildeo percebidas em

alguns serviccedilos de Proteccedilatildeo Social Baacutesica como a praacutetica do psicoacutelogo por excelecircncia o que

reforccedila sua manutenccedilatildeo neste contexto (Flor amp Goto 2015 Reis Giuglliani amp Pasini 2012)

Na Assistecircncia Social o(a) psicoacutelogo(a) tem como funccedilatildeo baacutesica atuar junto agrave equipe

para o fortalecimento das poliacuteticas puacuteblicas e de seus usuaacuterios enquanto sujeitos de direitos

61

tendo sempre como foco as necessidades e potencialidades de seu puacuteblico alvo Ao considerar

e atuar sobre a subjetividade a Psicologia pode favorecer o desenvolvimento da autonomia e

cidadania dos usuaacuterios do serviccedilo Para isto eacute importante que o psicoacutelogo tenha uma postura

de trabalho que seja contra qualquer accedilatildeo que categorize patologize ou objetifique as pessoas

atendidas Ao contraacuterio disso eacute imprescindiacutevel que o profissional busque compreender os

aspectos histoacuterico-culturais envolvidos no contexto de vulnerabilidade bem como os processos

e recursos psicossociais de que dispotildeem os sujeitos que ali vivem (Conselho Federal de

Psicologia 2007)

Sobre isso Cruz e Guareschi (2012) alertam que de acordo com resgate histoacuterico sobre

as praacuteticas da Psicologia na Assistecircncia Social muitas accedilotildees tecircm sido pautadas em dicotomias

como ldquonormalpatoloacutegicordquo ldquofamiacutelia estruturadadesestruturadardquo orientadas agrave manutenccedilatildeo da

norma categorizaccedilatildeo de vulnerabilidades sociais culpabilizaccedilatildeo das famiacutelias por sua condiccedilatildeo

socioeconocircmica eou daquilo que natildeo transcorre dentro do esperado e psicologizaccedilatildeo das

questotildees que atravessam o social Com isto o saber cientiacutefico neste campo vem produzindo

subjetividades desqualificadas ao considerar o conhecimento dos especialistas como verdade

uacutenica sobre o sujeito Nesse contexto as autoras apontam a necessidade de promover

diariamente o exerciacutecio reflexivo sobre a proacutepria praacutetica e fazem interessante questionamento

ldquoateacute que ponto nossas accedilotildees natildeo tecircm se configurado como dispositivo de controle sobre as

famiacutelias e sujeitosrdquo (Cruz amp Guareschi 2012 p 31)

Para evitar tais condutas indesejadas o(a) psicoacutelogo(a) deve tomar como princiacutepios em

sua praacutetica na Proteccedilatildeo Social Baacutesica (1) conhecer previamente o territoacuterio de abrangecircncia no

qual atuaraacute para entatildeo planejar accedilotildees e intervenccedilotildees condizentes com os objetivos da PSB (2)

identificar valorizar e auxiliar no desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos e da

comunidade por meio de intervenccedilotildees individuais familiares grupais e coletivas (3) trabalhar

sempre buscando o diaacutelogo entre o saber popular e o saber cientiacutefico da Psicologia natildeo

deixando de valorizar as mais diversas experiecircncias expectativas e conhecimentos em sua

atuaccedilatildeo (4) contribuir com o exerciacutecio ativo da cidadania com o empoderamento e autonomia

dos sujeitos bem como com o controle social por meio da oferta de espaccedilos de participaccedilatildeo da

comunidade mobilizaccedilatildeo social e organizaccedilatildeo comunitaacuteria evitando que as vulnerabilidades

se cronifiquem (Conselho Federal de Psicologia 2007)

Diante disto os(as) psicoacutelogos(as) atuantes na Proteccedilatildeo Social Baacutesica tecircm como desafio

pensar em um sujeito para aleacutem daquele que precisa ser normalizado adequado a padrotildees Eacute

preciso olhar para o sujeito para aleacutem das ldquovulnerabilidades sociaisrdquo ou da ldquopobrezardquo que o

62

acometem isto eacute reconhecer nele um sujeito ativo vivo que tem contradiccedilotildees saberes

potencialidades e que tem o que dizer Isso implica na necessidade de que diferentes olhares

possam ser construiacutedos e que natildeo apontem apenas para o que ldquofaltardquo mas tambeacutem para a

potecircncia de resistir desses sujeitos que escancaram todos os dias que a pobreza e a carecircncia natildeo

se configuram enquanto impossibilidade de vida (Lasta Guareschi amp Cruz 2012)

Consideraccedilotildees finais

A participaccedilatildeo de mulheres idosas em grupo focal sobre o alcance das accedilotildees de um

CRAS apontou a valorizaccedilatildeo do espaccedilo grupal por elas frequentado e coordenado por um

profissional de Psicologia como facilitador da formaccedilatildeo de viacutenculos e de promoccedilatildeo de sauacutede

mental contribuindo para o bem-estar das participantes A idade avanccedilada de algumas

participantes a condiccedilatildeo de viuacuteva a experiecircncia de perda de pessoas importantes e a vivecircncia

do luto datildeo um contorno de proteccedilatildeo agrave sauacutede ao Grupo Convivecircncia e Fortalecimento de

Viacutenculos o qual dialoga natildeo apenas com as poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social mas tambeacutem

com poliacutetica de sauacutede do idoso e poliacutetica integral de sauacutede da mulher

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66

Capiacutetulo 4

A Psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social estudo de caso de

um jovem em cumprimento de medidas socioeducativas

Liandra Savanhago

Camila Trindade

Tielly Rosado Maders

Maria Chalfin Coutinho

Introduccedilatildeo

A atuaccedilatildeo da Psicologia nas Equipes de Referecircncia da poliacutetica puacuteblica de assistecircncia

social tem se intensificado nos uacuteltimos anos Sobretudo a partir de 2005 com a concretizaccedilatildeo

do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) E mais especificamente a partir do ano de

2011 com a implementaccedilatildeo da Norma Operacional Baacutesica de Recursos Humanos do SUAS

(NOB-RHSUAS) a qual dispotildee sobre a obrigatoriedade da presenccedila de psicoacutelogosas nos

respectivos serviccedilos (Brasil 2011) Mesmo sendo uma profissatildeo essencial para o SUAS apenas

apoacutes um longo tempo de concretizaccedilatildeo oa psicoacutelogoa passou obrigatoriamente a integrar a

equipe de referecircncia dos serviccedilos de Proteccedilatildeo Social Baacutesica e Proteccedilatildeo Social Especial de

Meacutedia e de Alta Complexidade os quais constituem os trecircs niacuteveis de complexidade do SUAS

Ao longo deste trabalho elucidamos algumas atividades que se inserem na Proteccedilatildeo

Social Especial de Meacutedia Complexidade a qual oferece atendimentos para pessoas em situaccedilatildeo

de violaccedilatildeo de direitos tal como o serviccedilo de medidas socioeducativas (MSE) em meio aberto

(Brasil 2005) em um municiacutepio localizado no litoral norte do estado de Santa Catarina cuja

populaccedilatildeo foi estimada segundo o Censo demograacutefico de 2010 em 45797 habitantes (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2010)

As MSE elementos centrais dessa discussatildeo satildeo serviccedilos preconizados pelo Estatuto

da Crianccedila e do Adolescente (ECA) instituiacutedo pela Lei Federal nordm 8069 de 1990 (Brasil 1990)

Tal legislaccedilatildeo tem como base os pressupostos da Doutrina da Proteccedilatildeo Integral dos direitos das

Crianccedilas e dos Adolescentes a qual teve marco no artigo ndeg 227 da Constituiccedilatildeo Federal da

Repuacuteblica Federativa do Brasil do ano de 1988 Esses serviccedilos satildeo realizados quando haacute a

praacutetica de atos infracionais por jovens que estejam na faixa etaacuteria dos 12 ateacute os 18 anos As

67

medidas podem ser privativas de liberdade (Internaccedilatildeo e Semiliberdade) e natildeo privativas de

liberdade (Liberdade Assistida Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade Obrigaccedilatildeo de Reparaccedilatildeo

de Danos e Advertecircncia) (Brasil 1990)

Em relaccedilatildeo agraves medidas de Liberdade Assistida (LA) e Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave

Comunidade (PSC) o ECA estabelece que a LA tem o propoacutesito de acompanhar auxiliar e

orientar o jovem durante o tempo miacutenimo de seis meses com o objetivo de fornecer auxiacutelio em

projetos de profissionalizaccedilatildeo e de inserccedilatildeo no mercado de trabalho (Brasil 1990) A PSC tem

a funccedilatildeo de realizar ldquotarefas gratuitas de interesse geral por periacuteodo natildeo excedente a seis meses

junto a entidades assistenciais hospitais escolas e outros estabelecimentos congecircneres bem

como em programas comunitaacuterios ou governamentaisrdquo (Brasil 1990) ou seja por meio desta

medida eacute exigido que o jovem realize trabalho comunitaacuterio

A partir destas breves consideraccedilotildees este trabalho objetivou discutir algumas relaccedilotildees

entre as trajetoacuterias de vida de um jovem em cumprimento de medidas socioeducativas e as

praacuteticas psis em serviccedilo da poliacutetica de assistecircncia social Para isso realizamos um estudo de

caso de um jovem em cumprimento de MSE em meio aberto em que problematizamos suas

trajetoacuterias juvenis com as poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social de forma a enfatizar como

as praacuteticas psis podem se revelar no cenaacuterio da assistecircncia

Para essas reflexotildees tomamos como base a questatildeo social entendida por Iamamoto e

Carvalho (2001) como siacutentese explicativa do processo de pauperizaccedilatildeo massiva da classe

trabalhadora expressa por meio de muacuteltiplas determinaccedilotildees tais como desemprego

subemprego violecircncia criminalizaccedilatildeo e patologizaccedilatildeo da pobreza entre outras

1 Trajetoacuteria dos jovens inseridos nas medidas socioeducativas

Para discutir a atuaccedilatildeo da psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social optamos

por dar visibilidade agrave trajetoacuteria de um jovem inserido no serviccedilo de meacutedia complexidade da

Proteccedilatildeo Social Especial Poreacutem antes de nos atentar a um fenocircmeno especiacutefico julgamos

necessaacuterio evidenciar algumas determinaccedilotildees histoacutericas e sociais que constituem a presente

discussatildeo Com isso objetivamos natildeo recair em meacutetodos e compreensotildees que individualizam

as questotildees sociais que constituem a nossa sociedade

Rizzini (1997) ao realizar uma anaacutelise histoacuterica da construccedilatildeo social do jovem

criminalizado a partir do advento da Repuacuteblica brasileira afirma que tal contexto foi permeado

por diversas alteraccedilotildees sociais as quais tinham como finalidade tornar o Brasil uma ldquonaccedilatildeo

68

culta e civilizadardquo (Rizzini 1997 p 27) Para a autora a concepccedilatildeo de alteraccedilatildeo posta nesse

momento histoacuterico era baseada no entendimento da necessidade de educar instruir e vigiar a

grande massa da populaccedilatildeo brasileira considerada como ldquoignoranterdquo E o iniacutecio dessa

empreitada seria com os sujeitos que eram considerados ldquoo futuro do paiacutesrdquo isto eacute as crianccedilas

e jovens brasileiros

Tal discurso salvacionista acabava por mascarar as contradiccedilotildees e posicionamentos

higienistas para com a infacircncia pobre e criminalizada e ao mesmo tempo era pautado pela

loacutegica da era industrial capitalista a qual tinha como preocupaccedilatildeo conter a ldquodelinquecircnciardquo e a

ldquovadiagemrdquo em razatildeo da natildeo absorccedilatildeo da matildeo-de-obra (Cabral amp Sousa 2004) Este controle

da populaccedilatildeo juvenil tornou-se politicamente viaacutevel pois assumiu uma funccedilatildeo regulatoacuteria

desde a infacircncia quando por exemplo a pedagogia do trabalho era considerada como a

principal estrateacutegia para a ldquoregeneraccedilatildeordquo daqueles que natildeo estavam inseridos no regime

produtivo vigente (Santos 2013)

Ainda com o advento da Repuacuteblica Brasileira Rizzini (1997) destaca a origem de ldquoum

complexo aparato meacutedico-juriacutedico-assistencial cujas metas eram definidas pelas funccedilotildees de

prevenccedilatildeo educaccedilatildeo recuperaccedilatildeo e repressatildeordquo (pp 29-30) Tal aparato possuiacutea a funccedilatildeo de

prestar assistecircncia e vigilacircncia agrave populaccedilatildeo pobre com a intenccedilatildeo de efetivar uma formaccedilatildeo

moral e de ldquocivilizaccedilatildeordquo Nesse sentido a necessidade de controle da infacircncia e juventude era

efetivada desde uma educaccedilatildeo direcionada para a absorccedilatildeo de matildeo-de-obra ateacute um sistema de

classificaccedilatildeo para aqueles sujeitos que ora eram classificados como ldquoperigososrdquo e por isso

precisavam de puniccedilatildeo ora eram considerados em ldquoperigordquo e precisavam de proteccedilatildeo

Assim observamos que as preocupaccedilotildees relacionadas ao gerenciamento das condutas

das crianccedilas e dos jovens das camadas populares possuem raiacutezes antigas relacionadas com a

histoacuteria do Brasil Algumas dimensotildees do controle de crianccedilas e jovens foram observadas

pontualmente no sistema educativo Para Mayer e Nuacutentildeez (2017) a massificaccedilatildeo e a

universalizaccedilatildeo dos sistemas escolares se traduziram em processos de discriminaccedilatildeo e

estigmatizaccedilatildeo na experiecircncia de crianccedilas e jovens de camadas populares em toda Ameacuterica

Latina Baseada em valores e comportamentos hegemocircnicos da classe meacutedia e diante de

infacircncias e juventudes atravessadas pela pobreza isto eacute pela necessidade de trabalho precoce

muitas vezes ilegal e consequente evasatildeo escolar o sistema educacional maquiado pelo

discurso da meritocracia produziu desigualdades legitimando hierarquias e novas

diferenciaccedilotildees sociais em sua maioria individualizantes e excludentes

69

Associado a isso historicamente a juventude tem sido compreendida de forma

naturalizada e individualizante ou seja ldquocomo um periacuteodo muito difiacutecil para os que nele se

encontram cheio de conflitos instaacutevel com mudanccedilas de comportamento muito grandesrdquo (Leal

amp Facci 2014 p 17) Com isso observamos o desenvolvimento histoacuterico de associaccedilotildees entre

concepccedilotildees que naturalizam a juventude com concepccedilotildees de prevenccedilatildeo e a repressatildeo presentes

no discurso social e juriacutedico na passagem do seacuteculo XIX ao XX (Rizzini 1997) Entendemos

que o desdobramento disso se revela na construccedilatildeo de praacuteticas profissionais e concepccedilotildees que

reiteram a individualizaccedilatildeo de contradiccedilotildees de cunho estrutural de nossa sociedade na mesma

medida em que a pobreza e os jovens pobres passam a ser entendidos como sujeitos que carecem

de civilizaccedilatildeo de cultura enfim da proacutepria vida

Eacute tambeacutem nesse contexto e com base nessas concepccedilotildees que temos o desenvolvimento

da ciecircncia psicoloacutegica no Brasil Patto (1990) aponta que diante de noccedilotildees baseadas na

necessidade de ldquoculturalizarrdquo os brasileiros tal ciecircncia assumiu um papel ideoloacutegico de

avaliaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo dos aspectos subjetivos que constituem os sujeitos pobres

Para Patto (1990) o foco era comparar esses sujeitos com os da classe dominante

considerados superiores cultural e intelectualmente Com isso tem-se o impulso dos testes

psicoloacutegicos enquanto instrumentos utilizados por psicoacutelogosas que vinham para legitimar a

condiccedilatildeo inferior do pobre e da pobreza na medida em que analisavam por exemplo variaacuteveis

comportamentais ou cognitivas de forma descontextualizada fragmentada e baseada na

avaliaccedilatildeo de elementos que ldquofaltavamrdquo no sujeito (Patto 1990)

Bock (2009) nos recorda para atentarmos agraves questotildees ideoloacutegicas voltadas aos

interesses burgueses que constituiacuteram a histoacuteria da ciecircncia psicoloacutegica Por isso entendemos

que mesmo sendo superadas determinadas praacuteticas e concepccedilotildees desenvolvidas napela aacuterea

ainda na atualidade nos deparamos com uma ciecircncia psicoloacutegica mais preocupada em ajustar

os indiviacuteduos agrave sociedade do que possibilitar o desenvolvimento de mediaccedilotildees que lhe

impulsionem a emancipaccedilatildeo ao inveacutes do ajustamento A discussatildeo acerca da emancipaccedilatildeo

humana passa por uma reformulaccedilatildeo de toda estruturaccedilatildeo da sociedade e pela superaccedilatildeo do

modo de produccedilatildeo capitalista uma vez que a atuaccedilatildeo profissional da psicologia deva ser

pautada na eacutetica e direcionada ao desenvolvimento humano em seus aspectos totais fiacutesicos

subjetivos e relacionais Praacuteticas de formataccedilatildeo de sujeitos para adaptaccedilatildeo do mercado de

trabalho extrapolam natildeo soacute as dimensotildees eacuteticas da atuaccedilatildeo profissional das aacutereas psis mas

acabam por reproduzir e reiterar loacutegicas excludentes e adoecedoras que desconsideram os

sujeitos de direito e a proacutepria sauacutede mental

70

Mesmo diante desse cenaacuterio contraditoacuterio observamos o histoacuterico esforccedilo para o

desenvolvimento de novas formas e praacuteticas psis voltadas para a compreensatildeo dos sujeitos em

suas muacuteltiplas relaccedilotildees e contextos Oliveira e Costa (2018) discorrem que eacute a partir da inserccedilatildeo

dos profissionais da psicologia no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) e no SUAS que ocorre

tambeacutem um movimento de ldquoexpansatildeo e diversificaccedilatildeo das atividades e praacuteticas psicoloacutegicasrdquo

(p 36) Com isso satildeo impulsionados ldquonovos debates em torno dos direcionamentos eacutetico-

poliacuteticos do trabalho dos[as] psicoacutelogos[as]rdquo (Oliveira amp Costa 2018 p 36)

Em relaccedilatildeo ao SUAS as autoras enfatizam que esse foi o primeiro momento da histoacuteria

da profissatildeo no qual efetivamente o trabalho dosas psicoacutelogosas teve como base a questatildeo

da ldquocondiccedilatildeo de pobrezardquo (Oliveira amp Costa 2018 p 38) Contudo muitas vezes a mesma foi

tomada como ldquoimpeditivo ou como empecilho a um trabalho efetivo e de qualidaderdquo (Oliveira

amp Costa 2018 p 39)

Retomamos tambeacutem a discussatildeo sobre a importacircncia da implementaccedilatildeo do ECA para

enfatizar que se mostrou como uma legislaccedilatildeo importante para as mudanccedilas em relaccedilatildeo agraves

compreensotildees das condiccedilotildees de vidas das crianccedilas e jovens brasileiros sobretudo quando esses

passam a ser entendidos como sujeitos de direitos Entretanto eacute nesta e em outras legislaccedilotildees

como o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)1 (Brasil 2012) que se

revelam outras contradiccedilotildees que colocam em xeque essas possibilidades de mudanccedila quando

dispotildeem sobre concepccedilotildees baseadas em ressocializaccedilatildeo e reeducaccedilatildeo Aleacutem do imaginaacuterio

social o qual (ainda) permanece adotando a antiga ideologia do menorismo enquanto um

sistema discriminatoacuterio das crianccedilas pobres e natildeo brancas

Batista (2013) faz uma criacutetica a essas perspectivas das possibilidades ldquorerdquo

(ressocializaccedilatildeo reeducaccedilatildeo reintegraccedilatildeo) as quais na verdade mantecircm praacuteticas punitivas e

excludentes que objetivam normalizar modos de comportamento Da mesma forma Calado e

Souza (2014) apontam que os fundamentos pedagoacutegicos das medidas socioeducativas satildeo

baseados em concepccedilotildees educativas que tecircm como foco os indiviacuteduos e suas capacidades de

ajustamento e regulaccedilatildeo diante das contradiccedilotildees sociais

Eacute importante frisar que a socioeducaccedilatildeo eacute vista como uma poliacutetica puacuteblica direcionada

para o resgate de uma diacutevida histoacuterica da sociedade brasileira com uma parte especiacutefica da

populaccedilatildeo jovem Poreacutem a histoacuteria tem mostrado muitas contradiccedilotildees entre as legislaccedilotildees

1 O Sinase eacute uma legislaccedilatildeo que regulamenta as medidas socioeducativas Instituiacutedo em 2012 seu objetivo eacute

demarcar princiacutepios regras e programas especiacuteficos a niacutevel municipal estadual e nacional de atendimento aos

jovens (Brasil 2012)

71

brasileiras e a execuccedilatildeo do que preconizam por meio das poliacuteticas puacuteblicas Tanto que no que

tange agrave legislaccedilatildeo brasileira atual mesmo com a implantaccedilatildeo do ECA e seus princiacutepios de

proteccedilatildeo integral diversas denuacutencias de violaccedilotildees de direitos humanos satildeo relatadas em espaccedilos

puacuteblicos na miacutedia e em ambientes acadecircmicos Calado e Souza (2014) alertam para as diversas

dimensotildees que assumem essas violecircncias de Estado enfatizando o quanto muitas vezes elas satildeo

aceitas socialmente enquanto uma forma de ldquocorreccedilatildeordquo eou ldquopuniccedilatildeordquo para os jovens Nesse

cenaacuterio mais uma vez temos a reproduccedilatildeo de uma loacutegica desigual excludente que visa o

funcionamento do mercado e natildeo o desenvolvimento humano

Passetti (2013) considera questionaacutevel que a mentalidade juriacutedica no Brasil permaneccedila

penalizadora e cada vez mais distante do ECA Entretanto ao analisarmos tal estatuto

percebemos que apesar de seus avanccedilos normativos o mesmo ainda se mostra distante de sanar

a referida diacutevida histoacuterica a que se propotildee Nessa perspectiva Cabral e Sousa (2004) apontam

que ldquoainda existe certa distacircncia entre aquilo que dispotildee a lei e a realidaderdquo (p 85) Entendemos

que mesmo passados quinze anos de tal constataccedilatildeo a mesma ainda se sustenta Pois apesar

dos avanccedilos no acircmbito dos Direitos Humanos que dispotildee a lei do Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo (Sinase) (Brasil 2012) as MSE ainda abarcam as tensotildees e as

(con)tradiccedilotildees do contexto social brasileiro em que o estigma social continua refletindo nos

nuacutemeros dos jovens apreendidos pela justiccedila2

Eacute nesse cenaacuterio que o trabalho dao psicoacutelogao eacute desenvolvido isto eacute em meio a uma

seacuterie de contradiccedilotildees estruturantes de um modelo social excludente Eidelwein (2007) destaca

que mesmo diante de determinaccedilotildees limitadoras que constituem o trabalho dao psicoacutelogao no

contexto capitalista ainda assim podem e devem ser construiacutedas possibilidades de superaccedilatildeo

dessas formas de relaccedilotildees Quanto as praacuteticas psi em termos imediatos um passo importante

que envolve o trabalho dao psicoacutelogao eacute a delimitaccedilatildeo das opccedilotildees eacuteticos-poliacuteticas teoacuterico-

metodoloacutegicas e teacutecnico-operativas (Eidelwein 2007) visto que satildeo essas que orientam

possibilidades de construccedilatildeo de novas formas de compreensatildeo atuaccedilatildeo e intervenccedilatildeo psi para

aleacutem das hegemocircnicas e excludentes apresentadas anteriormente em relaccedilatildeo aos jovens

brasileiros

2 Exemplo disso nos sistemas socioeducativos atuais bem como no sistema prisional observamos ldquoum padratildeo de

intervenccedilatildeo racialmente seletivo e higienista que se configura como forma de anulaccedilatildeo e eliminaccedilatildeo das pessoas

que compotildeem a categoria forjada dos ditos lsquoperigososrsquo e lsquodelinquentesrsquordquo (Instituto de Pesquisa Econocircmica e

Aplicada 2016 p 71) Isto eacute tais espaccedilos satildeo ocupados majoritariamente por jovens negros do gecircnero

masculino com baixa escolarizaccedilatildeo e renda

72

A mesma autora destaca que mesmo em meio ao modelo social excludente apresentado

ainda assim eacute possiacutevel construir possibilidades de emancipaccedilatildeo e superaccedilatildeo de condicionantes

da realidade social (Eidelwein 2007) Um exemplo a ser evidenciado eacute a adoccedilatildeo dos

pressupostos apresentados pela autora a partir da perspectiva da classe trabalhadora posto que

satildeo esses que orientam possibilidades de construccedilatildeo de novas formas de compreensatildeo atuaccedilatildeo

e intervenccedilatildeo psi para aleacutem das hegemocircnicas e excludentes apresentadas anteriormente em

relaccedilatildeo aos jovens brasileiros Ou seja o entendimento de pertencimento a classe trabalhadora

que natildeo abarca apenas os jovens mas tambeacutem os profissionais da psicologia deve ser pensado

enquanto entendimento basilar que estrutura nossas accedilotildees profissionais nossa categoria e que

estrutura a sociedade do capital

2 Meacutetodo

Este estudo de caso eacute um recorte de uma pesquisa mais ampla realizada pela primeira

autora no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia da Universidade Federal de Santa

Catarina finalizada em fevereiro de 2019 Na pesquisa de mestrado a autora investigou os

sentidos sobre o trabalho para quatro jovens utilizando a perspectiva teoacuterica e metodoloacutegica da

Psicologia Histoacuterico-Cultural preconizada por Lev Semyonovich Vigotski Alexis Leontiev e

Alexander Luria

Partindo de uma compreensatildeo Histoacuterico-Cultural esta pesquisa se trata de uma anaacutelise

qualitativa em que realizamos um estudo de caso com um jovem em cumprimento de medidas

socioeducativas em meio aberto Aleacutem do Diaacuterio de Campo utilizamos a entrevista

semiestruturada como ferramenta de pesquisa A entrevista foi composta pela identificaccedilatildeo

dados sociodemograacuteficos e por questotildees abertas sobre temas como trajetoacuterias de estudo e de

trabalho cotidiano de trabalho e interfaces entre trabalho medidas socioeducativas e atos

infracionais As entrevistas foram gravadas e transcritas

Em consonacircncia com a perspectiva teoacuterica e metodoloacutegica adotada as anaacutelises foram

realizadas por meio dos Nuacutecleos de Significaccedilatildeo inspirados em Aguiar Soares e Machado

(2015) Na dissertaccedilatildeo de mestrado as anaacutelises foram realizadas por meio de quatro etapas de

siacutenteses e aglutinaccedilotildees temaacuteticas Preacute-indicadores indicadores separados por jovem

indicadores entrelaccedilados e Nuacutecleos de Significaccedilatildeo Neste estudo de caso pela ausecircncia dos

outros jovens participantes as anaacutelises foram realizadas por meio de trecircs etapas sucessivas de

aglutinaccedilotildees e siacutenteses temaacuteticas Preacute-indicadores indicadores e Nuacutecleos de Significaccedilatildeo

73

Para a dissertaccedilatildeo foram formados trecircs nuacutecleos de significaccedilatildeo nomeados como

ldquoTrajetoacuterias de educaccedilatildeo e de trabalhordquo ldquoCotidiano e trabalhordquo ldquoInterfaces entre trabalho e

medidas socioeducativasrdquo A fim de dialogar com o objetivo deste trabalho construiacutemos dois

nuacutecleos de significaccedilatildeo o primeiro chamado ldquoTrajetoacuterias de Pedro uma vida marcada pelo

trabalhordquo e o segundo tal como a pesquisa de mestrado ldquoInterfaces entre trabalho e medidas

socioeducativasrdquo

O primeiro Nuacutecleo teraacute visibilidade nesta pesquisa de forma a contextualizar a vida do

jovem entrevistado e dar suporte para as discussotildees presentes do segundo nuacutecleo Nesse sentido

o uacuteltimo nuacutecleo que possui uma interface com as poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social e

instituiccedilotildees proacuteximas teraacute um papel central na discussatildeo do trabalho

Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos o projeto da investigaccedilatildeo foi

submetido e aprovado pelo Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSHUFSC)

e contamos com a autorizaccedilatildeo por escrito do jovem participante

3 Trajetoacuterias de Pedro uma vida marcada pelo trabalho

Pedro eacute um jovem extrovertido que tem muitas histoacuterias a serem contadas sobre a sua

vida histoacuterias estas que iniciaram tatildeo rapidamente desde o iniacutecio do contato com a pesquisadora

que muitas natildeo puderam ser registradas no gravador Pedro se declarou como pardo tem 18

anos de idade e no momento da entrevista estudava no segundo ano do ensino meacutedio do EJA

- Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos O jovem tem uma extensa trajetoacuteria nos serviccedilos de Proteccedilatildeo

Social Especial de Meacutedia e Alta Complexidade Em sua adolescecircncia frequentou o Serviccedilo de

Proteccedilatildeo e Atendimento Especializado a Famiacutelias e Indiviacuteduos (PAEFI) em seguida transitou

entre medidas socioeducativas em meio fechado e meio aberto em diversos municiacutepios e

estados No momento em que a pesquisa foi realizada cumpria medida de LA e PSC no

municiacutepio em que residia

O municiacutepio em questatildeo estaacute localizado no litoral catarinense Sobre seu bairro de

residecircncia Pedro diz que mora em um ldquobecordquo caracterizado por ele como o menor bairro da

cidade por essa razatildeo relata natildeo frequentar muitos locais da regiatildeo O jovem mora com sua

avoacute um irmatildeo de 17 anos e uma irmatilde de 14 anos Aleacutem de seus dois irmatildeos diz ter uma irmatilde

por parte de pai trecircs irmatildes que foram segundo o jovem ldquoadotadas por consideraccedilatildeordquo e um

irmatildeo que faleceu antes do nascimento Sua matildee reside em outro municiacutepio de Santa Catarina

74

e seu pai encontra-se encarcerado em um presiacutedio de seguranccedila maacutexima tambeacutem em Santa

Catarina motivo este que relata ter ingressado no PAEFI

Sobre as ocupaccedilotildees familiares a avoacute com quem reside trabalha haacute muito tempo em uma

padaria da regiatildeo Aleacutem de trabalhar como doceira trabalha com revendas de cosmeacuteticos

nacionais A irmatilde caccedilula por sua vez trabalha informalmente nas temporadas de veratildeo com os

tios vendendo milho churros e aacutegua Em relaccedilatildeo ao irmatildeo Pedro diz que o jovem ldquoeacute

malandratildeordquo pois as vezes aparece com dinheiro cuja origem eacute desconhecida

Em relaccedilatildeo ao contexto de trabalho Pedro traz muitas histoacuterias e diz que sempre teve

muito incentivo de sua famiacutelia para trabalhar Na infacircncia havia um engenho de farinha em que

todos os familiares trabalhavam inclusive Pedro Poreacutem o engenho entrou em processo de

falecircncia Em seguida Pedro trabalhou em diferentes praias vendendo castanhas-de-caju e

fazendo bijuterias artesanais segundo o jovem ldquoeu mesmo fazia e eu mesmo vendiardquo Por certo

tempo de sua vida o jovem diz que ganhou bastante dinheiro realizando atividades ligadas ao

narcotraacutefico e atividades afins

Atualmente Pedro e seu tio trabalham na aacuterea de construccedilatildeo civil realizando o serviccedilo

de calfinagem isto eacute o acabamento de paredes internas de casas e apartamentos com cal fina

Em concomitacircncia com esse trabalho o jovem e sua tia realizaram um curso de importaccedilatildeo pela

internet e hoje importam produtos de outro paiacutes para vender no Brasil

Como vimos Pedro iniciou sua trajetoacuteria de trabalho de forma precoce Aos sete anos

de idade jaacute desenvolvia trabalhos na aacuterea alimentiacutecia em conjunto com sua famiacutelia Calil (2003)

aponta que ldquohistoricamente o trabalho eacute uma presenccedila constante na vida de crianccedilas e

adolescentes das camadas popularesrdquo (p 151) A condiccedilatildeo de pobreza e de trabalho infantil

acabam marcando a experiecircncia em relaccedilatildeo ao trabalho e a proacutepria vida em geral para esses

sujeitos Tendo em vista que os jovens passam a significar e a construir sentidos tomando

contato com outras realidades a realidade em que o trabalho era a uacutenica forma de garantir o

sustento familiar (Pereira 2003) eacute constitutiva na vida de Pedro

Para que conseguisse um trabalho com retorno financeiro satisfatoacuterio Pedro contou que

teve que trabalhar bastante durante sua vida Todos os seus trabalhos ateacute o momento da

entrevista foram considerados pelo jovem como ldquoautocircnomosrdquo ndash ldquoeu mesmo fazia e eu mesmo

vendiardquo ndash embora sempre atrelados aos trabalhos familiares e lugares puacuteblicos

Trabalhei muito em diversos lugares Trabalhei na praia igual a minha irmatilde Fazia tipo

aqueles negoacutecios de bijuteria artesanal O meu tio fazia no quadro eu fazia aqueles negoacutecios

75

de prosperidade incenso noacutes fazia tambeacutem coisas pra colocar tabaco vendia castanha na praia

Trabalhei muito sempre em lugares que tinha bastante pessoas (Pedro)

A condiccedilatildeo de pobreza persistente conforme Calil (2003) leva os adultos a utilizarem

o trabalho infantil como estrateacutegia de sobrevivecircncia do grupo familiar Nesse sentido embora

Pedro afirme que toda sua trajetoacuteria laboral foi como ldquoautocircnomordquo o suporte familiar

possibilitou sua autonomia no trabalho na medida em que necessitava auxiliar na sobrevivecircncia

proacutepria e da famiacutelia (Calil 2003) Eacute interessante perceber como tais relaccedilotildees entre trabalho e

famiacutelia se mostram paradoxais pois o trabalho infantil foi utilizado como subsiacutedio para a

complementaccedilatildeo da renda familiar atrelando-se assim a uma forma de sobrevivecircncia familiar

ao mesmo tempo em que as experiecircncias de trabalho para a sobrevivecircncia de si e de sua famiacutelia

lhe permitiram atribuir sentidos de autonomia e emancipaccedilatildeo precoce

O jovem relatou que desde sua juventude trabalhou no traacutefico de drogas e em atividades

afins

Natildeo era soacute traacutefico neacute Eu com 15 anos era patratildeo tinha duas trecircs biqueiras3 jaacute Jaacute tinha 15

anos e jaacute cuidava neacute E comprava coisas com caras que tavam dentro do sistema neacute Comprava

creacutedito pra eles dava telefone pra eles pra falar com eles Jaacute tava bem mais avanccedilado tambeacutem

entendeu (Pedro)

Consideramos tal como Feffermann (2006) o traacutefico de drogas como um fenocircmeno que

transpassa a ordem policial e criminal pois estaacute inserido na sociedade como parte integrante do

sistema social poliacutetico e econocircmico vigente Este sistema ldquoalicerccedilado na acumulaccedilatildeo do

capital cria e reproduz uma reserva de forccedila de trabalho desempregada ou parcialmente

desempregada e uma grande parcela desta populaccedilatildeo passa a desenvolver estrateacutegias de

sobrevivecircncia sendo que alguns transpassam o limite da legalidaderdquo (Feffermann 2006 p

209)

O trabalho no traacutefico de drogas eacute portanto uma atividade que surge para o jovem como

resposta a uma marginalidade econocircmica (Feffermann 2006) e que possui caracteriacutesticas de

um trabalho duplamente informal pois aleacutem de ser um trabalho sem regulamentaccedilatildeo formal

ldquoeacute um mercado de circulaccedilatildeo de mercadorias iliacutecitas cuja atividade eacute em si mesmo

criminalizadardquo (Misse 1999 p 293)

Em seu trabalho atual o jovem afirma conciliar duas formas de trabalho os serviccedilos de

calfinagem e de revenda de produtos importados O trabalho com cal fina por ser um serviccedilo

informal natildeo gera um salaacuterio fixo mas sim uma remuneraccedilatildeo por dia de trabalho conforme o

metro de revestimento realizado por exemplo ldquovamos fazer as contas faz uns 15 20 metros

3 Terminologia coloquial que significa o lugar onde se vendem substacircncias psicoativas

76

por dia daiacute agraves vezes 18 aiacute daacute uns 400 300 [reais] por diardquo A flexibilidade desse tipo de

trabalho eacute considerada pelo jovem como um aspecto positivo tendo em vista que natildeo precisa

estar subordinado a ningueacutem ldquose eu trabalhei hoje eu ganho se eu natildeo trabalhar eu natildeo ganho

eu natildeo preciso ficar dependendo de ningueacutem escutando coisa dos outrosrdquo

Por residir em um municiacutepio onde a construccedilatildeo civil eacute um dos principais ldquomotoresrdquo da

economia regional o jovem diz que ldquosempre tem bastante serviccedilo mas tem bastante

concorrecircncia tambeacutem mas daiacute eu melhoro o preccedilo e melhoro a qualidade aiacute sempre vai neacuterdquo

O jovem trabalha durante o dia e estuda no periacuteodo noturno

Segundo Mattos e Chaves (2010) para conciliar o tempo de estudo e de trabalho que

ocorrem em turnos diferentes do dia os jovens precisam (re)organizar a rotina diaacuteria para

acomodar a atividade laboral Os mesmos autores dizem que o tempo gasto no deslocamento

entre o trabalho e a escola foi apontado em sua pesquisa empiacuterica com jovens trabalhadores

como uma dificuldade a ser superada Tais constataccedilotildees tambeacutem foram encontradas no discurso

de Pedro o jovem diz que precisa sair mais cedo do trabalho deixando de ganhar mais dinheiro

no dia pois a localizaccedilatildeo da escola eacute afastada dos locais onde normalmente trabalha

A conciliaccedilatildeo de estudo e trabalho faz com que o cotidiano de Pedro seja exaustivo isso

se deve agrave carga horaacuteria de trabalho agrave distacircncia da escola e ao fato de ser um trabalho pesado

ldquoEacute braccedilal pra caramba toda hora eu tenho peso na matildeordquo ldquoEacute corrido pra mim tambeacutem eu

chego cansado porque o cal fino cansardquo ldquoeacute calo na matildeo pra carambardquo

Antunes (2011) ao descrever os diversos modos de ser da informalidade cita os que se

inserem em setores de prestaccedilatildeo de serviccedilos sem garantias e direitos sociais Caso fiquem

doentes pelo excesso de trabalho braccedilal por exemplo correm o risco de perder sua renda Outra

caracteriacutestica sobre os modos de ser na informalidade diz respeito agrave carga horaacuteria de trabalho

segundo Antunes (2011 sp) ldquonatildeo haacute horaacuterio fixo de trabalho e as jornadas de trabalho levam

frequentemente ao uso das horas vagas para aumentar a renda oriunda da atividaderdquo Tal

realidade pode ser ilustrada pela fala de Pedro ao dizer que ldquo[em] dois dias eu tive que

trabalhar cheio Ateacute 8 9 horas da noite no saacutebado por exemplo fiquei ateacute 9 horas da noite

trabalhando porque a gente faz pra terminarrdquo

Dialogando sobre aspectos gerais sobre a categoria trabalho Pedro definiu a mesma

enquanto uma forma de rotina que garante sua sobrevivecircncia Tal definiccedilatildeo acaba por

evidenciar sua origem social

Trabalho pra mim eacute uma coisa que a pessoa precisa da nossa comunidade da minha

comunidade mesmo eu natildeo sei da tua neacute mas na minha comunidade eu nasci na pobreza

77

neacute Eu preciso de um trabalho pra crescer neacute pra adquirir Trabalho eacute o que a pessoa precisa na

minha comunidade por exemplo que todo mundo precisa e natildeo tem taacute em falta neacute E hoje em

dia tem bastante pessoa que natildeo consegue trabalho Taacute em crise (Pedro)

A condiccedilatildeo de pobreza situada por Pedro eacute considerada uma das expressotildees da questatildeo

social a qual se manifesta dentre muitos outros determinantes pelas desigualdades de renda

entre os grupos sociais

Para os grupos sociais empobrecidos que vivem em condiccedilotildees precaacuterias de trabalho

basta uma situaccedilatildeo conjuntural de crise de subsistecircncia para que esta populaccedilatildeo seja suscetiacutevel

de ser desestabilizada tanto pela queda de produccedilatildeo de atividades quanto pelo desemprego

conforme afirma Castel (2008) Tal caracteriacutestica eacute visualizada no trecho em que Pedro relata

sobre a crise econocircmica que se faz presente no atual contexto brasileiro a qual afetou e vem

afetando pessoas que residem em sua comunidade (e que compartilham de sua situaccedilatildeo de

pobreza) agravando a condiccedilatildeo de trabalhadores subempregados e desempregados

Em referecircncia a seu meio social e a seu trabalho com a cal fina o jovem diz que realiza

um trabalho o qual tem condiccedilotildees de executar de modo a obter um retorno financeiro ldquoeu tenho

condiccedilotildees que eu tenho como trabalhar eacute um jeito que eu acho de guardar mais dinheirordquo

Atrelado a isso o trabalho de importaccedilotildees que realiza com sua tia eacute um ldquotrabalho que me ajudou

muito porque pra mim ter condiccedilotildees de taacute vendendo isso taacute importando passei por bastante

coisa e foi difiacutecil natildeo eacute faacutecilrdquo ldquoeu tenho o maior orgulho de venderrdquo Mesmo diante das

inuacutemeras contradiccedilotildees que perpassam o cotidiano de trabalho de Pedro o jovem se refere com

sentimentos positivos em relaccedilatildeo agraves atividades que vem desenvolvendo

Eu fico bastante orgulhoso de mim porque eu tenho aprendido essa profissatildeo e o significado

dela eacute que me motiva a cada dia Eacute o dinheiro neacute pra eu ter o meu sustendo e eu sofri bastante

pra poder fazer o que eu faccedilo E eu me orgulho muito e tem um significado de gratidatildeo De

aprender mesmo a fazer esse negoacutecio (Pedro)

Isto eacute mesmo desenvolvendo trabalhos informais e conciliando uma rotina exaustiva

Pedro expressa orgulho em revender produtos importados e executar serviccedilos de calfinagem

uma vez que esses trabalhos lhe trouxeram autonomia financeira em sua vida Por fim podemos

considerar que a histoacuteria de Pedro eacute marcada desde sua infacircncia pela necessidade de muito

trabalho

4 Manifestaccedilotildees da questatildeo social Interfaces entre trabalho Psicologia e MSE

A histoacuteria de Pedro nos revela que aleacutem de uma vida marcada por muito trabalho o

jovem vivenciou uma longa experiecircncia com alguns equipamentos de assistecircncia social Por

78

exemplo antes de cumprir a medida socioeducativa ele relata que frequentou o CREAS no

serviccedilo de Proteccedilatildeo e Atendimento Especializado a Famiacutelias e Indiviacuteduos (PAEFI) desde os

14 anos de idade junto a seu irmatildeo Ao relatar tais experiecircncias Pedro destaca que

mas daiacute ela era psicoacuteloga tambeacutem Mas natildeo era referente ao ato infracional Mas era tipo na

minha famiacutelia tinha pessoa que tava fazendo ato infracional e ela sabia tinha denuacutencia E eu

tinha que vir aqui pra ela ver meu psicoloacutegico pra eu natildeo cair na vida daiacute tinha que vir (Pedro)

Cruz Hillesheim e Guareschi (2005) alertam para a existecircncia de praacuteticas psis

hegemocircnicas em serviccedilos de prevenccedilatildeo e vigilacircncia direcionada aos jovens ldquopotencialmente

perigososrdquo que acabam por se desdobrar em uma concepccedilatildeo dicotomizada de infacircncia dita

normal ideal e desejaacutevel em oposiccedilatildeo a uma infacircncia de risco Nesse sentido eacute interessante

observar a referecircncia que Pedro faz ao trabalho da psicoacuteloga que lhe prestou atendimento

Enquanto profissional que ao desenvolver seu trabalho tem como horizonte manter a

estabilidade das possibilidades de desenvolvimento dele conforme um padratildeo do que eacute

considerado normal e natildeo a partir das contradiccedilotildees que envolvem a sua vida concreta

Entendemos que o trabalho doa psicoacutelogoa na aacuterea da assistecircncia social eacute psicossocial

ou seja eacute um serviccedilo realizado junto a profissionais do serviccedilo social e logo supera as praacuteticas

tradicionais da psicologia tais como atendimento individual e cliacutenico Em relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo

profissional nos serviccedilos do PAEFI as atividades satildeo realizadas conforme as demandas das

pessoas atendidas por isso as atuaccedilotildees profissionais satildeo diversas como orientaccedilotildees sobre seus

direitos sociais encaminhamentos para outros equipamentos da rede atendimento

especializado ateacute oficinas com famiacutelias (Brasil 2012) nesse sentido constitui-se uma gama de

possibilidades para o desenvolvimento do trabalho doa psicoacutelogoa no respectivo serviccedilo

Pedro nos relata ter passado por grande parte das MSEs que estatildeo tipificadas no ECA

tais como medida socioeducativa de internaccedilatildeo de liberdade assistida e de prestaccedilatildeo de

serviccedilos agrave comunidade aleacutem de jaacute ter pago cestas baacutesicas ldquoJaacute paguei cesta baacutesica jaacute paguei

um monte de coisardquo As trajetoacuterias de Pedro nos respectivos serviccedilos o PAEFI como forma de

ldquoproteccedilatildeo e prevenccedilatildeordquo e a medida socioeducativa como forma de ldquorecuperaccedilatildeo e reeducaccedilatildeordquo

se desdobram na relaccedilatildeo experienciada pelas crianccedilas e adolescentes pobres que ora satildeo

consideradas perigosas necessitando de medidas de ldquocorreccedilatildeordquo ora estatildeo em perigo de ser e

precisam de ldquoproteccedilatildeordquo e ldquoprevenccedilatildeordquo (Rizzini 1997) E interessante pontuar que tal

representaccedilatildeo ambivalente foi construiacuteda no advento da urbanizaccedilatildeo e da industrializaccedilatildeo

brasileira estando associada a determinados grupos sociais do jovem pobre negro morador

de periferia na medida em que eacute transformado em ldquomenor infratorrdquo (Meneghetti 2018) pela

periculosidade invariavelmente atrelada agraves classes populares (Rizzini 1997)

79

Durante seu percurso de internaccedilotildees o jovem diz que ldquovivia dopadordquo pois enquanto

permanecia no centro de internaccedilatildeo recebia psicotroacutepicos com receita meacutedica A

medicalizaccedilatildeo4 de jovens em ambientes socioeducativos de internaccedilatildeo eacute um fato que ocorre

frequentemente e eacute um tema presente na literatura brasileira (Anjos 2018 Vicentin Gramkow

amp Rosa 2010) portanto eacute tambeacutem um tema de sauacutede puacuteblica

Historicamente as praacuteticas psis estiveram atreladas ao modelo hegemocircnico pautado na

medicina e psiquiatria em que as praacuteticas cliacutenicas estatildeo direcionadas agrave adaptaccedilatildeo das pessoas

na busca por padrotildees de normalidade A partir disso problematizamos a responsabilidade eacutetico-

poliacutetica que constitui o trabalho dosas psicoacutelogosas quando natildeo satildeo questionados os processos

de medicalizaccedilatildeo patologizaccedilatildeo e institucionalizaccedilatildeo em ambientes socioeducativos Mesmo

que a categoria de psicoacutelogosas natildeo possa receitar medicamentos a atuaccedilatildeo nestes serviccedilos

conta com uma equipe teacutecnica multidisciplinar o que coloca todosas os profissionais

envolvidos num lugar de responsabilidade e postura eacutetica com suas praacuteticas Assim reiteramos

a necessidade de superaccedilatildeo dessa loacutegica uma vez que fenocircmenos sociais devem ser tratados

em sua totalidade e singularidade e natildeo como doenccedilas ou como comportamentos a serem

medidos e ldquoajustadosrdquo de forma individual

Diante disso entendemos a necessidade do desenvolvimento de um trabalho

efetivamente multidisciplinar no acircmbito da assistecircncia social envolvendo desde meacutedicosas

psicoacutelogosas assistentes sociais advogados educadores sociais entre outros Em certa

medida a legislaccedilatildeo da poliacutetica jaacute prevecirc essa disposiccedilatildeo contudo o que se observa eacute que apesar

da existecircncia dessa prerrogativa muitas vezes os profissionais acabam atuando de forma

fragmentada

No que diz respeito agrave interface entre medidas socioeducativas ato infracional e trabalho

na vida de Pedro o jovem relata suas experiecircncias de trabalho dentro e fora do campo da

legalidade Nesse sentido o traacutefico de drogas para o jovem eacute significado como uma atividade

importante pois remete a sua adolescecircncia e sua forma de sobrevivecircncia naquele momento

Segundo o jovem

antes eu soacute traficava natildeo trabalhava soacute vivia das coisas erradas Era soacute coisa errada realmente

era soacute coisa errada Eu quando tinha uma cabeccedila mais era mais menor tinha uma cabeccedila

diferente de pensar eu achava isso uma maneira de ganhar dinheiro hoje em dia eu jaacute natildeo acho

mais (Pedro)

4 Salientamos a necessidade de compreender as muacuteltiplas determinaccedilotildees que envolvem tal temaacutetica tais como a

patologizaccedilatildeo da infacircncia os mecanismos de controle social da populaccedilatildeo juvenil a sauacutede mental em instituiccedilotildees

socioeducativas a ideia de periculosidade atrelada aos transtornos mentais entre outras

80

Feffermann (2006) destaca que o mercado ilegal surge como uma das respostas agrave

marginalidade econocircmica para jovens pertencentes agraves classes populares viacutetimas do crescimento

econocircmico desigual Sabendo da complexidade do trabalho e do traacutefico de drogas enquanto

importante dimensatildeo da constituiccedilatildeo subjetiva e natildeo querendo esgotar tais dimensotildees

afirmamos a partir dos relatos de Pedro que o traacutefico de drogas esteve presente em sua vida

como uma estrateacutegia de sobrevivecircncia e um meio de ganhar dinheiro

Entendemos que o trabalho doa psicoacutelogoa nas poliacuteticas puacuteblicas com questotildees

relacionadas a atos infracionais natildeo deve ser pautado em concepccedilotildees moralizantes que

contribuem para a criminalizaccedilatildeo da juventude envolvida nessas relaccedilotildees Mas sim uma

atuaccedilatildeo voltada para compreender o lugar que tais relaccedilotildees assumem na vida desses jovens e

para a construccedilatildeo de soluccedilotildees coletivas que visam superar esse contexto de produccedilatildeo de

criminalidade no qual se constituem as vidas de tantos jovens

Segundo Oliveira e Costa (2018) o desafio da psicologia consiste em compreender que

eacute a proacutepria pobreza que condiciona produz e reverbera os mais variados problemas

apresentados no cotidiano da profissatildeo Natildeo se trata apenas de uma formaccedilatildeo precaacuteria que natildeo

prepara seus profissionais para atuar em contextos de pobreza enquanto uma postura eacutetica

social e de classe comprometida com nossa realidade mas tambeacutem a proacutepria estrutura da

economia e da poliacutetica que satildeo permeadas por interesses da classe dominante (Oliveira amp Costa

2018) Por exemplo uma atuaccedilatildeo voltada a inserccedilatildeo de jovens no mercado de trabalho parece

desconsiderar a realidade dezenas de milhotildees desempregados na atualidade isto eacute o

desemprego estrutural

Em relaccedilatildeo ao cotidiano de trabalhadores do traacutefico outro aspecto a ser visibilizado diz

respeito ao cotidiano de sucessivas violecircncias atreladas agrave atividade Pedro revela ter

interrompido as atividades de traacutefico de drogas pois estava em busca de sua liberdade

Tambeacutem pelo amor que sente por sua famiacutelia e pelo medo de morrer ou de perder algum

membro de sua famiacutelia para a violecircncia por isso diz ter se distanciado das atividades ilegais e

passou a desenvolver atividades na construccedilatildeo civil conforme jaacute mencionamos

Poreacutem esse tempo de permanecircncia em atividades natildeo legalizadas fizeram com que o

jovem ficasse ldquorotuladordquo pela poliacutecia militar e sofresse diversas violaccedilotildees de direitos Segundo

o jovem tais violaccedilotildees acontecem com frequecircncia

foi de noite Eu tava na rua da minha casa eles me pegaram laacute eu tava vendendo droga eles

sabiam neacute tinha muita denuacutencia jaacute sabiam e eu tava marcado jaacute avisaram Eu natildeo tava

escutando eles eles podiam falar eu natildeo tava nem aiacute Daiacute foi o que aconteceu eles me pegaram

perto da 130 1h me levaram e me bateram (Pedro)

81

De acordo com Wacquant (2001) o uso constante da violecircncia pela poliacutecia militar

contra pessoas de camadas populares banalizou a brutalidade no seio do Estado Aleacutem disso o

uso da violecircncia policial estaacute ancorado em concepccedilotildees hieraacuterquicas e paternalistas que atingem

trabalhadores e pessoas ldquoem conflito com a leirdquo de forma que a manutenccedilatildeo da ordem de classe

e da ordem puacuteblica se confundem

Na histoacuteria de Pedro a violecircncia policial natildeo se restringe ao momento imediato da

abordagem policial mas sim se constitui em ameaccedilas constantes napara vida do jovem ldquoEles

[policiais militares] avisaram na frente do advogado falaram ldquoah se noacutes te pegar de novo

na rua vocecirc jaacute sabe a gente vai te matar [me] ameaccedilou ameaccedilou assim com o advogado

vendo eu natildeo meti um processo neles porque eu natildeo quero morrerrdquo A fala de Pedro eacute

reveladora de um contexto no qual natildeo raramente as ameaccedilas de morte se materializam em

assassinatos de jovens pobres e negros por parte da poliacutecia entrando para as estatiacutesticas de

genociacutedio dessa populaccedilatildeo

Eacute importante ressaltar que mesmo cumprindo as medidas socioeducativas e afirmando

que encerrou as atividades ligadas ao narcotraacutefico as abordagens policiais e violaccedilotildees de

direitos continuam na vida de Pedro Desse modo Pedro poderia ser situado como provaacutevel

alvo daquilo que Meneghetti (2018) considera como ldquocisma policialrdquo a qual eacute constituiacuteda a

partir da imagem construiacuteda em relaccedilatildeo aos jovens desde sua primeira ocorrecircncia sobretudo

caso ele apresente atributos baacutesicos de suspeiccedilatildeo em termos de gecircnero raccedila e classe somados

agrave aparecircncia No caso de Pedro observamos a seguinte situaccedilatildeo

Aqui acontece direto Me pegaram em quatro agora e me pegaram 100 reais Faz duas ou trecircs

semanas tava com 500 reais no bolso e eles [policiais militares] falaram ldquode quem eacute esse

dinheiro aquirdquo E eu falei ldquoacabei de receber tava voltando do serviccedilordquo Me pegaram eu tava

com roupa e o sapatatildeo de tecircnis e tudo Me pegaram eles me conhecem neacute Se eles pegassem

os 500 reais que eu tivesse recebido no dia aiacute meu deus eu ia levar na corregedoria e eles iam

se incomodar neacute Soacute que por 100 reais eu natildeo ia me incomodar Depois ele vai querer me matar

ainda neacute (Pedro)

Em busca de desfazer o estereoacutetipo ldquomenor suspeitordquo Pedro recorre ao trabalho O

uniforme de trabalho ldquoroupa e o sapatatildeordquo adquire um sentido para aleacutem de subsistecircncia mas

sim envolve uma possibilidade de condiccedilatildeo de seguranccedila relacionada a um status de natildeo

delinquecircncia Ao mesmo tempo em que Pedro enfatiza o orgulho e a autonomia que o seu

trabalho proporciona tambeacutem retrata que a realidade de desemprego estaacute presente para muitas

pessoas que residem ao seu redor Isto eacute a contradiccedilatildeo sobressalente nos sentidos sobre o

trabalho diz respeito ao sistema social e econocircmico que precariza as condiccedilotildees mais baacutesicas de

82

existecircncia tirando das pessoas o direito ao trabalho que se tratando de uma classe que necessita

trabalhar para (sobre)viver trata-se de uma ameaccedila agrave proacutepria vida humana

Consideraccedilotildees finais

Este trabalho teve como objetivo compreender as trajetoacuterias de vida de um jovem em

cumprimento de medidas socioeducativas e algumas reflexotildees acerca das praacuteticas psis em

serviccedilo da poliacutetica de assistecircncia social Ao longo do desenvolvimento da pesquisa que deu

origem agrave presente reflexatildeo diversos questionamentos sobre essas relaccedilotildees principalmente

acerca do trabalho doa psicoacutelogoa no ambiente socioeducativo foram se constituindo no

diaacuterio de campo Como acolher as histoacuterias dos jovens que estatildeo por vir Como abordar as

temaacuteticas de cunho institucional sem que gere desconforto ou que criminalize ainda mais os

jovens Qual eacute a melhor forma ou instrumentos de trabalho para que eles se sintam acolhidos

numa instituiccedilatildeo direcionada a temaacuteticas que transversalizam questotildees sobre criminalidade

Como a psicologia pode ajudar na superaccedilatildeo de condiccedilotildees de vidas precaacuterias

Os desafios postos na construccedilatildeo de praacuteticas psi que indiquem possibilidades de romper

com preconceitos e concepccedilotildees que naturalizam a condiccedilatildeo de pobreza em relaccedilatildeo aos jovens

satildeo muitos Tais desafios apontam tanto para a revisatildeo das concepccedilotildees teoacutericas que sustentam

as praacuteticas como para as proacuteprias praacuteticas dosas psicoacutelogosas Oliveira e Costa (2018) nos datildeo

uma pista para que possamos compreender e superar tais condiccedilotildees qual seja pressupor que o

cerne das contradiccedilotildees postas na atualidade estaacute situado nas relaccedilotildees capital-trabalho E por

isso por mais acessiacutevel inclusiva ou democraacutetica que sejam as poliacuteticas puacuteblicas elas ainda

em maior ou menor grau satildeo engendradas nesse contexto de contradiccedilotildees

Entendemos que essa compreensatildeo retoma a funccedilatildeo histoacuterica social e poliacutetica do

trabalho doa psicoacutelogoa E neste caso pensar e concretizar possibilidades de superaccedilatildeo do

que estaacute posto em relaccedilatildeo a ele desdobra-se em uma responsabilidade eacutetico-poliacutetica com a

classe trabalhadora brasileira isto eacute com a proacutepria de vida de jovens como Pedro Destacamos

na histoacuteria de Pedro a persistecircncia de desigualdades de classe constituiacuteda por relaccedilotildees

complexas de uma estrutura social precaacuteria e perversa que coloca a vida humana nas margens

Portanto eacute importante resgatar a urgecircncia de uma praacutetica profissional baseada na eacutetica na

permanente reflexatildeo e autocriacutetica e ainda comprometida com a realidade e com os jovens

brasileiros As diversas trajetoacuterias de trabalho de Pedro evidenciam o quanto na vida deste

jovem trabalhador a ocupaccedilatildeo em serviccedilos informais e ilegais se colocou como uacutenica

83

possibilidade assim como para outros jovens inclusive de sua proacutepria famiacutelia E tambeacutem o

quanto tais condiccedilotildees o colocaram em relaccedilotildees contraditoacuterias e sucessivas com as poliacuteticas de

assistecircncia social

Por fim reiteramos como ressaltam Mayer e Nuacutentildeez (2017) a importacircncia de

considerarmos processos de longo prazo e natildeo apenas conjunturas especiacuteficas pois ao conhecer

a constituiccedilatildeo histoacuterica do Estado brasileiro e a trajetoacuteria de Pedro comum a tantos jovens de

camadas populares cabe a Psicologia contribuir para identificar e natildeo permitir a reproduccedilatildeo de

padrotildees e loacutegicas excludentes de praacuteticas psicologizantes correcionistas e culpabilizadoras de

questotildees que satildeo de ordem social

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86

Capiacutetulo 5

Medidas socioeducativas as narrativas de adolescentes e o uso da literatura

como disparadores de anaacutelise

Beatriz Saks Hahne

Adriana Marcondes Machado

Introduccedilatildeo

Seratildeo apresentadas a partir de pesquisa de doutorado em andamento1 experiecircncias

construiacutedas em parceria com adolescentes e jovens que cumprem ou cumpriram recentemente

medida socioeducativa Satildeo meninos e meninas que ao praticarem ato infracional tecircm suas

trajetoacuterias carregadas de vivecircncias em unidades de internaccedilatildeo e se percebem transitando na

comunidade em que habitam tomados como autores de ato infracional isso estaacute presente na

famiacutelia na escola nos olhos dos vizinhos e na relaccedilatildeo com a poliacutecia

Situada no departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do

Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo a incursatildeo acadecircmica no campo das

medidas socioeducativas se alia agrave afirmaccedilatildeo da Psicologia como lugar do debate a favor da

garantia de direitos Para tanto um primeiro tensionamento parece necessaacuterio falamos em

Psicologias no plural compreendendo seu saber inserido em uma disputa (Coimbra amp

Nascimento 2008) de mundos representada por aquilo que eacute solicitado de sua praacutetica

Profissionais do campo ldquopsirdquo satildeo frequentemente convocados a agir por meio de verbos como

nomear definir e significar demandados a corrigir caminhos ou de outra forma no que diz

respeito agrave discussatildeo deste artigo a ressocializar o adolescente que ldquodesviardquo (Batista 2003)

Com a perspectiva de ampliar a discussatildeo sobre o trabalho com os adolescentes

atendidos por essa poliacutetica puacuteblica a pesquisa de doutorado que alimenta estas linhas realiza a

construccedilatildeo de narrativas com jovens que hoje cumprem medidas socioeducativas de meio

aberto ndash Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade e Liberdade Assistida ndash ou que possuem trajetoacuteria

anterior de cumprimento de alguma das seis sanccedilotildees descritas na Lei 8069 (Brasil 1990)

Importa escutar histoacuterias para alongar o olhar em relaccedilatildeo a um horizonte que diz respeito a

vidas ameaccediladas ndash de sua dignidade e do corpo fiacutesico Na intenccedilatildeo de conhecer o que esses

1 O trabalho de campo da presente pesquisa foi iniciado em dezembro de 2018

87

adolescentes contariam sobre suas trajetoacuterias em meio ao tempo de cumprimento das medidas

socioeducativas tomamos o ato infracional vinculado ao contexto histoacuterico que tambeacutem o

constitui

Certos modos de pensar e de operacionalizar os atendimentos teacutecnicos e os

encaminhamentos aos serviccedilos e atores do Sistema de Garantia de Direitos2 aleacutem da elaboraccedilatildeo

do Plano Individual de Atendimento3 e dos relatoacuterios enviados ao poder judiciaacuterio fazem colar

nos adolescentes discursos de uma identidade totalizada Falamos dos procedimentos que se

repetem ao natildeo considerarem aquilo que singularmente suas trajetoacuterias solicitam Ao

contribuir para um certo enrijecimento identitaacuterio (Rolnik 2006) afirmando determinadas

formas de vida em detrimento de outras ndash avaliaccedilatildeo sempre do campo da moral e da

arbitrariedade ndash potencializam as chances de que todos fiquem assimilados como adolescentes-

infratores4

Esse modo de operar cria elo com a natildeo variaccedilatildeo da vida pois atribuindo agrave medida

socioeducativa o objetivo de ressocializar arriscamos ver no jovem algueacutem desinteressado ou

destoante que natildeo consegue alcanccedilar a ideia socialmente constituiacuteda do que seria uma vida boa

e correta Essa posiccedilatildeo tambeacutem produz efeitos nos profissionais cujas praacuteticas ficam menos

criativas e mais pressionadas a responder a demandas judiciais que em geral natildeo se articulam

aos desafios dos enfrentamentos cotidianos Opor-se a esse modo de pensar a juventude implica

uma atuaccedilatildeo que conquiste discussotildees elaboraccedilotildees e conversas para que a cada passo as

estrateacutegias de atendimento considerem as especificidades daqueles para quem e com quem

trabalhamos

A produccedilatildeo da realidade passa necessariamente pelas trocas que se datildeo no mundo de

forma que a duacutevida pode ser alimento para a accedilatildeo ao natildeo restringir a vida a ser aquilo que se

supotildee que deveria ser Nessa reduccedilatildeo fica de fora o singular cuja importacircncia eacute permitir ver o

2 Resoluccedilatildeo 113 Conanda (2006) ldquoArt 1ordm O Sistema de Garantia dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente

constitui-se na articulaccedilatildeo e integraccedilatildeo das instacircncias puacuteblicas governamentais e da sociedade civil na aplicaccedilatildeo

de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoccedilatildeo defesa e controle para a efetivaccedilatildeo

dos direitos humanos da crianccedila e do adolescente nos niacuteveis Federal Estadual Distrital e Municipalrdquo Disponiacutevel

em httpwwwcrpsporgbrportalcomunicacaodiversosmini_cdpdfsRes_113_CONANDApdf Acesso em

23 jul 2019 3 Lei 1259412 Art 1 sect 2ordm ldquoEntendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art 112 da Lei nordm 8069

de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Crianccedila e do Adolescente) as quais tecircm por objetivos I - a responsabilizaccedilatildeo

do adolescente quanto agraves consequecircncias lesivas do ato infracional sempre que possiacutevel incentivando a sua

reparaccedilatildeo II - a integraccedilatildeo social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais por meio do

cumprimento de seu plano individual de atendimento e III - a desaprovaccedilatildeo da conduta infracional efetivando as

disposiccedilotildees da sentenccedila como paracircmetro maacuteximo de privaccedilatildeo de liberdade ou restriccedilatildeo de direitos observados os

limites previstos em leirdquo 4 A historiadora Vera Malaguti Batista (2003) traz esta questatildeo ao estudar relatoacuterios produzidos por psicoacutelogas nas

unidades da Febem da cidade do Rio de Janeiro ao longo de 20 anos (1960-1980)

88

que faz uma existecircncia persistir O que faz uma vida vingar Agamben (2007) em diaacutelogo com

Foucault ressalta as vidas que satildeo caladas e colocadas agrave margem ao serem acessiacuteveis por meio

de escritas feitas sobre elas que registram a marca da infacircmia daqueles sobre quem se escreve

Convocar esses adolescentes a produzirem narrativas a partir de saberes sobre a proacutepria

trajetoacuteria eacute uma estrateacutegia entre outras contra o apagamento de uma autoria de vida

Para acessar e discutir com nossos colaboradores suas memoacuterias ndash aquilo que constitui

sua existecircncia ndash utilizamos a construccedilatildeo de narrativas como ferramenta Ouvir os relatos

escrevecirc-los ler conjuntamente e reescrevecirc-los eacute processo animado pelo uso da literatura

Romances letras de muacutesicas e poemas satildeo tomados como recursos para dignificar a vida

coletivizar as existecircncias e criar alianccedilas em um contexto em que a marca juriacutedica coloca esses

jovens como se fossem maacutes exceccedilotildees Os textos emprestam uma experiecircncia ao leitor fazendo

de suas linhas moradas do afeto pois ao compartilhar sentimentos duacutevidas e amores neles

presentes o leitor emprestando essas experiecircncias torna-se algueacutem menos isolado

Para continuaccedilatildeo da discussatildeo apresentaremos a poliacutetica puacuteblica das medidas

socioeducativas e o procedimento que temos utilizado a partir de uma certa Psicologia junto

aos adolescentes que vivem essas medidas

1Medidas socioeducativas entre a poliacutetica puacuteblica e o sujeito-adolescente

Data de 1923 a poliacutetica de proteccedilatildeo social brasileira voltada agravequeles entatildeo nomeados

como ldquomenores abandonados e delinquentesrdquo5 Dela a criaccedilatildeo do Juizado de Menores e o

reforccedilo ao termo que mora em tempo contiacutenuo no saber social como marca do jovem que

diverge ou que delinque ou que eacute pobre e em geral negro Menor palavra que com o Coacutedigo

de Menores eacute associada ldquodefinitivamente a crianccedilas pobres a serem tuteladas pelo Estado para

a preservaccedilatildeo da ordem e asseguramento da modernizaccedilatildeo capitalista em cursordquo (Batista 2003

p 69) Processo de capitalizaccedilatildeo de um Brasil recentemente saiacutedo dos tempos de escravatura e

que natildeo teve de seu seio retiradas as marcas da escravizaccedilatildeo dos negros roubados agrave sua terra

(Gomes amp Schwarcz 2018) Ao contraacuterio tais feridas persistem e constroem incessantemente

dados estatiacutesticos acerca das desigualdades sociais no Brasil6

5 Decreto nordm 16272 de 20 de dezembro de 1923 ndash Artigo 24 sect 2ordm ldquoSe o menor focircr abandonado pervertido ou

estiver em perigo de o ser a autoridade competente promoveraacute a sua collocaccedilatildeo em asylo casa de educaccedilatildeo escola

de preservaccedilatildeo ou o confiaraacute a pessoa idonea por todo o tempo necessario aacute sua educaccedilatildeo comtanto que natildeo

ultrapasse a idade de 21 annosrdquo (Passetti 2013 p 354) 6 Atlas da Violecircncia 2019 Disponiacutevel em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=

articleampid=34784ampItemid=432 Acesso em 23 jul 2019

89

O primeiro Coacutedigo de Menores de 1927 reafirmava o papel do Estado de assistir e

cuidar dos ldquoabandonadosrdquo e o fazia por meio da institucionalizaccedilatildeo A lei colocou fim agrave

condiccedilatildeo de anonimato da praacutetica de renuacutencia a crianccedilas atraveacutes do uso da Roda dos Expostos

O Estado assumia legalmente a responsabilidade pelo atendimento de uma camada da infacircncia

e juventude brasileiras por meio de estrateacutegias que como efeito ampliavam sua segregaccedilatildeo

(Hahne 2017)

Todas as crianccedilas e jovens tidos como em perigo ou perigosos (por exemplo abandonado

carente infrator apresentando conduta dita antissocial deficiente ou doente ocioso

perambulante) eram passiacuteveis em um momento ou outro de serem enviados agraves instituiccedilotildees de

recolhimento Na praacutetica isto significava que o Estado podia atraveacutes do Juiz de Menor destituir

determinados pais do paacutetrio poder atraveacutes da decretaccedilatildeo da sentenccedila de ldquosituaccedilatildeo irregular do

menorrdquo Sendo a ldquocarecircnciardquo uma das hipoacuteteses de ldquosituaccedilatildeo irregularrdquo podemos ter uma ideia

do que isto podia representar em um paiacutes onde jaacute se estimou em 36 milhotildees o nuacutemero de crianccedilas

pobres (Arantes 2004 p 163)

Em 1979 o Coacutedigo de Menores eacute reformulado e sem mudanccedilas estruturais naquilo que

conferia a crianccedilas e adolescentes a condiccedilatildeo de inclusatildeo marginal ndash pois com a pecha de

destoantes ndash funda a Doutrina da Situaccedilatildeo Irregular Satildeo irregulares os pobres abandonados

ou natildeo filhos da escravidatildeo Essa concepccedilatildeo foi enfrentada na letra da lei apenas 63 depois

com a implementaccedilatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Brasil 1990) que institui a

Doutrina da Proteccedilatildeo Integral e assume os direitos fundamentais e as poliacuteticas que devem

asseguraacute-los A ordem eacute menos controle e mais proteccedilatildeo

Medida socioeducativa eacute a poliacutetica puacuteblica apresentada pelo Estatuto da Crianccedila e do

Adolescente (Brasil 1990) que determina e aplica sanccedilatildeo legal aos brasileiros e brasileiras em

idade entre 12 e 18 anos7 Posterior agrave primeira legislaccedilatildeo destinada exclusivamente a crianccedilas

e adolescentes ndash o Coacutedigo de Menores ndash o Estatuto carrega histoacuterias de luta pela afirmaccedilatildeo de

direitos em meio agrave entatildeo recente redemocratizaccedilatildeo do Brasil A todas as crianccedilas e adolescentes

inclusive agravequeles apreendidos por ato infracional satildeo aplicaacuteveis sob avaliaccedilatildeo judicial

medidas de proteccedilatildeo8 de forma que a transgressatildeo natildeo apaga ndash e ao contraacuterio em muitas

7 Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) ndash Art 112 ldquoVerificada a praacutetica de ato infracional a autoridade

competente poderaacute aplicar ao adolescente as seguintes medidas I - advertecircncia II - obrigaccedilatildeo de reparar o dano

III - prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade IV - liberdade assistida V - inserccedilatildeo em regime de semiliberdade VI -

internaccedilatildeo em estabelecimento educacionalrdquo 8 Art 101 do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente define as medidas protetivas ldquoI - Encaminhamento aos pais

ou responsaacutevel mediante termo de responsabilidade II - Orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III -

matriacutecula e frequecircncia obrigatoacuterias em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV - inclusatildeo em serviccedilos

e programas oficiais ou comunitaacuterios de proteccedilatildeo apoio e promoccedilatildeo da famiacutelia da crianccedila e do adolescente V -

requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI - inclusatildeo

em programa oficial ou comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII -

acolhimento institucional VIII - inclusatildeo em programa de acolhimento familiar IX - colocaccedilatildeo em famiacutelia

substitutardquo

90

histoacuterias de vida faz ver ndash necessidades de ordem socioeconocircmica que marcam jovens

trajetoacuterias

Mais recentemente outra lei voltada agrave juventude ndash especiacutefica aos adolescentes objeto

das medidas socioeducativas ndash foi criada para regular orientar e normatizar a execuccedilatildeo desta

poliacutetica puacuteblica A Lei 12594 (Brasil 2012) foi bastante reduzida no momento de sua

promulgaccedilatildeo especialmente no que diz respeito aos aspectos pedagoacutegicos das medidas

socioeducativas que receberam menor ecircnfase se comparados agrave defesa da responsabilizaccedilatildeo que

a Lei ressalta (Barone Botarelli Frassetto amp Guaraacute 2012)

O Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Brasil 1990) ao posicionar seu puacuteblico-alvo

como sujeitos de direitos sociais cujas vozes devem compor a construccedilatildeo do mundo9 convoca

os profissionais no que diz respeito agrave execuccedilatildeo das medidas a trazerem para si o adolescente

e fazerem com ele a composiccedilatildeo dos processos educativos de reflexatildeo e de debate sobre sua

trajetoacuteria singular A Lei 12594 (Brasil 2012) ressalta a construccedilatildeo do Plano Individual de

Atendimento (PIA) como ferramenta estrateacutegica para essa composiccedilatildeo coletiva

A centralidade nos sujeitos-adolescentes se faz importante porque procura respeitar o indiviacuteduo

em sua singularidade ressaltando sua efetiva participaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo do Plano Individual de

Atendimento que sugerimos deve ser posicionado no projeto de vida dos adolescentes e em

sua histoacuteria e no projeto pedagoacutegico das instituiccedilotildees que executam as medidas socioeducativas

(Barone et al 2012 p 68)

A legislaccedilatildeo brasileira portanto defende a participaccedilatildeo do adolescente na construccedilatildeo

das ponderaccedilotildees e das accedilotildees que permitiratildeo a constituiccedilatildeo de trajetoacuterias distanciadas do

universo infracional tornando sociedade e Estado coautores de suas histoacuterias e natildeo apenas

cobradores de mudanccedilas ndash da chamada ressocializaccedilatildeo termo complexo quando satildeo tomadas

as condiccedilotildees para uma primeira socializaccedilatildeo daqueles cujas cidadanias tecircm sido historicamente

impedidas ou nas palavras do geoacutegrafo Milton Santos mutiladas (Santos 19961997)

Sob essa loacutegica os adolescentes fazem parte dos momentos que servem agrave construccedilatildeo do

trabalho socioeducativo tomando os processos tatildeo ou mais importantes que o produto final

Ocorre que suas ferramentas podem ser capturadas e burocratizadas fechando os olhos agravequilo

que a vida de cada adolescente apresenta e solicita O sujeito quando ausente daquilo que

9 Art 53 ldquoA crianccedila e o adolescente tecircm direito agrave educaccedilatildeo visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa

preparo para o exerciacutecio da cidadania e qualificaccedilatildeo para o trabalho assegurando-se-lhes I - igualdade de

condiccedilotildees para o acesso e permanecircncia na escola II - direito de ser respeitado por seus educadores III - direito de

contestar criteacuterios avaliativos podendo recorrer agraves instacircncias escolares superiores IV - direito de organizaccedilatildeo e

participaccedilatildeo em entidades estudantis V - acesso agrave escola puacuteblica e gratuita proacutexima de sua residecircncia garantindo-

se vagas no mesmo estabelecimento a irmatildeos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educaccedilatildeo

baacutesica (Redaccedilatildeo dada pela Lei nordm 13845 de 2019) Paraacutegrafo uacutenico Eacute direito dos pais ou responsaacuteveis ter ciecircncia

do processo pedagoacutegico bem como participar da definiccedilatildeo das propostas educacionaisrdquo

91

constitui discursos sobre si eacute tornado objeto do saber de um outro que se supotildee mais saacutebio

sobre o que ele pode Na posiccedilatildeo de representaccedilatildeo ndash adolescente-infrator ndash fica destituiacutedo de

seus conhecimentos

Naquilo que tem constituiacutedo a realidade do adolescente que cumpre medida

socioeducativa hoje exemplificamos a explicaccedilatildeo com duas notiacutecias recentes A primeira delas

eacute o pedido de revisatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente a favor da ampliaccedilatildeo do poder

punitivo contra os adolescentes10 No mesmo periacuteodo em que era veiculada a notiacutecia ocorria o

lanccedilamento de pesquisa sobre a aplicaccedilatildeo e a execuccedilatildeo das medidas socioeducativas em meio

aberto nas cidades do Rio de Janeiro e Satildeo Paulo11 que aponta para a prevalecircncia do caraacuteter

punitivo em relaccedilatildeo aos adolescentes a quem satildeo atribuiacutedas medidas socioeducativas de meio

aberto em ambas as cidades A persistecircncia da chamada progressatildeo de medida12 afirma o olhar

sancionatoacuterio

Com esse pano de fundo a Psicologia sempre sob o risco de ser fisgada por modos de

agir burocratizados e homogeneizadores a partir de crenccedilas socialmente aprendidas (Machado

2008) eacute convocada a questionar suas praacuteticas A construccedilatildeo coletiva dos processos educativos

e participativos eacute tatildeo complexa quanto a defesa da vida dos adolescentes que vivem a medida

socioeducativa13 atravessada que eacute por discursos que o tomam como sujeito violento e

antissocial (Violante 1984 Trassi 2006) Sob essa identidade esses adolescentes satildeo

colocados em posiccedilotildees que natildeo tecircm variado ao menos na maior parte das experiecircncias

localizadas e debatidas na cidade de Satildeo Paulo quando estatildeo perante a um juiz que pouco

conhece suas condiccedilotildees de vida e em seguida a adultos convocados a produzir registros sobre

suas tatildeo erradas vidas (Miraglia 2005 Malvasi 2012)

10 STF marca para agosto julgamento de accedilatildeo contra ECA Disponiacutevel em httpsogloboglobocomsociedade

stf-marca-para-agosto-julgamento-de-acao-contra-eca-23594873 Acesso em 19 abr 2019 11 A pesquisa intitulada Juventude e cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto entre a garantia

de direitos e a judicializaccedilatildeo foi apresentada no evento Execuccedilatildeo das medidas socioeducativas para adolescentes

haacute mais o que saber sobre o ldquomeio abertordquo realizada pelo Nuacutecleo de estudos poacutes-graduados em Serviccedilo Social

ndash Nuacutecleo de estudos em seguridade e assistecircncia social (NEPSAS) da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo

Paulo em 15042019 12 Aplicaccedilatildeo de uma ou ambas as medidas em meio aberto ndash Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade e Liberdade

Assistida ndash apoacutes o cumprimento de internaccedilatildeo eou semiliberdade alongando em meses ou anos o

acompanhamento do adolescente pelo poder judiciaacuterio 13 IPEA (2015) Nota Teacutecnica ndash O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Reduccedilatildeo da Maioridade

Penal esclarecimentos necessaacuterios Brasiacutelia Sobre o perfil do adolescente em conflito com a lei no Brasil mais

de 60 dos adolescentes privados de liberdade eram negros 51 natildeo frequentavam a escola 49 natildeo

trabalhavam quando cometeram o delito e 66 viviam em famiacutelias consideradas extremamente pobres Disponiacutevel

em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=articleampid=25621ampItemid =9 Acesso

em 26 jun 2019

92

Eacute nesse contexto que se inscreve a pesquisa em andamento em meio agrave produccedilatildeo

massificada de vidas-adolescentes construir narrativas singulares com aqueles cujas

existecircncias satildeo marcadas pelo cometimento de ato infracional e pelas formas com as quais o

Brasil tem escolhido agir a partir dele o encarceramento natildeo precisa ser consequecircncia uacutenica ou

primeira agrave infraccedilatildeo A retomada de solicitaccedilotildees pela reduccedilatildeo da maioridade penal e pela

ampliaccedilatildeo do tempo de privaccedilatildeo da liberdade torna urgente a discussatildeo

Consideramos que assumir esses adolescentes como narradores do vivido eacute brigar pela

dignificaccedilatildeo e duraccedilatildeo de suas vidas Apostando na importacircncia da literatura para afirmar a

singularidade das existecircncias algo que lhes teria sido furtado (Petit 2009) ela se torna suporte

para o registro de suas palavras Satildeo utilizados contos letras de muacutesicas poemas e histoacuterias

presentes na literatura como recursos estrateacutegicos para dignificar a vida dessas pessoas

produzindo saberes sobre si

2 Experiecircncia e variaccedilatildeo da vida na literatura

A histoacuteria pregressa e atual de parcela consideraacutevel da juventude brasileira ndash aquela que

eacute objeto das sanccedilotildees legais14 ndash daacute a ver os desafios agrave Psicologia para que considere a

singularidade das vidas que encontra em seu fazer Adolescentes autores de atos infracionais

com frequecircncia satildeo tomados como sujeitos-supostos submetidos a histoacuterias que antecedem

sua vinda ao mundo e com muitas experiecircncias cotidianas de indignidade que desafiam a

construccedilatildeo de trajetoacuterias que sejam pensadas por eles mesmos O desafio eacute o de ldquouma

singularizaccedilatildeo existencial que coincida com um desejo com um gosto de viver com uma

vontade de construir o mundo no qual nos encontramosrdquo (Guattari amp Rolnik 2013 p 22)

A construccedilatildeo de narrativas atua como dispositivo para provocar a pensar as formas como

os adolescentes parceiros dessa pesquisa sobrevivem em contextos tatildeo indignos Memoacuterias e

experiecircncias permitem ver como o Sistema Socioeducativo e em seu interior o atendimento

teacutecnico satildeo percebidos por eles e os efeitos que neles produzem A escrita das narrativas e as

reflexotildees nascidas no processo de elaboraccedilatildeo permitem afirmarmos que os adolescentes se

constituem a partir dos discursos que os atravessam de forma que o falado e o escrito sobre

eles compotildeem a existecircncia e a maneira de cumprir a medida socioeducativa ldquoa singularidade

carrega uma experiecircncia coletiva em que haacute um elemento impessoal um comum o que

14 Brasiacutelia Distrito Federal (2016) Caderno de Orientaccedilotildees Teacutecnicas Serviccedilo de Medidas Socioeducativas em

Meio Aberto Secretaria Nacional de Assistecircncia Social Disponiacutevel em httpswwwmdsgovbrwebarquivospu

blicacaoassistencia_socialCadernoscaderno_MSE_0712pdf Acesso em 28 jul 2019

93

significa que aquilo que eacute narrado eacute agregado singular de mil outros casosrdquo (Alaion 2017 p

104) Identificaccedilotildees e nomeaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves situaccedilotildees que esses jovens vivem satildeo

construiacutedas a partir das compreensotildees de mundo de quem de uma forma ou outra com eles

convive

O processo educativo da sanccedilatildeo disciplinar eacute disputado por visotildees de mundo e

idealizaccedilotildees socialmente construiacutedas sobre esses adolescentes e sobre suas vidas Teacutecnicos que

realizam seu atendimento com frequecircncia referem-se a solicitaccedilotildees do poder judiciaacuterio para

encaminhamentos que devem ser realizados aos adolescentes como afirmaccedilatildeo corrente meio

para a criaccedilatildeo de alternativas ao ato infracional Se a desigualdade socioeconocircmica eacute ponto

crucial para o problema aqui discutido ao ser considerada uacutenica motivaccedilatildeo esconde o sujeito

por traacutes de quem o pratica ou seja os sentidos pensados e construiacutedos em relaccedilatildeo ao vivido

Essa constataccedilatildeo eacute um convite ao psicoacutelogo para agir tal como um cartoacutegrafo como um

investigador curioso sobre as coisas do mundo e os repertoacuterios de vida de quem acompanha em

seu trabalho

A praacutetica de um cartoacutegrafo diz respeito fundamentalmente agraves estrateacutegias das formaccedilotildees do

desejo no campo social natildeo tem o menor racismo de frequecircncia linguagem ou estilo Tudo

o que der liacutengua para os movimentos do desejo tudo o que servir para cunhar mateacuteria de

expressatildeo e criar sentido para ele eacute bem-vindo Todas as entradas satildeo boas desde que as saiacutedas

sejam muacuteltiplas (Rolnik 2006 p 65 destaques do original)

Ao cartoacutegrafo natildeo cabe a valoraccedilatildeo dos modos de agir no mundo mas a sustentaccedilatildeo da

expansatildeo da vida natildeo a revelaccedilatildeo do sentido das existecircncias mas a criaccedilatildeo de sentido com

elas Eacute sempre no campo relacional e por meio das alianccedilas que nos constituiacutemos essa

composiccedilatildeo eacute mais conectada agrave variaccedilatildeo da vida quando haacute lugar para a construccedilatildeo de

experiecircncias que rompam mesmo que por poucos momentos com a impossibilidade de

elaboraccedilatildeo da proacutepria existecircncia construccedilatildeo que se daacute por meio de uma certa qualidade das

relaccedilotildees estabelecidas que permita a transformaccedilatildeo dos lugares operaacuteveis natildeo apenas nos

adolescentes mas naqueles que os acompanham

Entre aquilo que eacute roubado a esses adolescentes ndash a moradia a escola o alimento o

lazer a seguranccedila os amigos ndash estaacute a cultura Os livros natildeo chegam15 e sem eles as paacuteginas

que tornariam a vida menos solitaacuteria ao ver-se na narrativa do outro Afirmar a vida eacute accedilatildeo que

tambeacutem compete agrave Psicologia A dor o amor a tristeza e a sobrevivecircncia narradas por um outro

a quem se lecirc permitem que o vivido seja apreendido como experiecircncia do um e tambeacutem de

15 Rede Nossa Satildeo Paulo Mapa da desigualdade 2017 Disponiacutevel em httpsnossasaopauloorgbrportalmapa_

2017_completopdf Acesso em 27 jun 2019

94

todos se o outro sofrendo existe pode-se construir a hipoacutetese de uma dimensatildeo puacuteblica da

vida em seu sofrimento e sua persistecircncia

A leitura dos textos literaacuterios opera como instrumento de confirmaccedilatildeo de suas

biografias ao ressaltarem que satildeo ldquosoacute mais umrdquo ndash sensaccedilatildeo mencionada por vaacuterios de nossos

colaboradores ndash natildeo com pouca frequecircncia os adolescentes-parceiros mostram-se

surpreendidos com aquilo que leem ao descobrirem na dor e na beleza narrada por um outro o

valor da proacutepria existecircncia conferindo sentido agrave persistecircncia dos dias

Alagar a vida ajudar a tornar mais real uma existecircncia e dar a ela destaque particular

que legitima sua forma de ser comprova sua autenticidade e o direito de existir A existecircncia eacute

sempre efeito de gestos de movimentos contiacutenuos e nunca finitos ndash ldquonatildeo haacute mais seres soacute haacute

processos ou melhor as uacutenicas entidades a partir de agora satildeo atos mudanccedilas transformaccedilotildees

metamorfoses que afetam esses seres e os fazem existir de outra maneirardquo (Lapoujade 2017 p

61 destaque do original) Instaurar atraveacutes do gesto eacute fazer valer o direito de ser e de nos

tornarmos reais

3 O percurso dos encontros

O lugar de iniacutecio da pesquisa aqui compartilhada eacute um Serviccedilo de Medidas

Socioeducativas de Meio Aberto (SMSE-MA) da cidade de Satildeo Paulo responsaacutevel por

acompanhar adolescentes que em sua comunidade semanalmente se encontram com a equipe

teacutecnica que os acompanha no caminho ateacute a extinccedilatildeo da sanccedilatildeo

As relaccedilotildees em que as primeiras conversas foram provocadas foram possibilitadas por

experiecircncias de uma das autoras desse trabalho realizadas nos uacuteltimos anos junto agrave juventude

atendida pelas medidas socioeducativas e a profissionais que atuam com este puacuteblico O SMSE-

MA em questatildeo eacute antigo parceiro de trabalho profissional que aceitou facilitar o acesso a

adolescentes que pudessem ser convidados a compor com esse trabalho As narrativas satildeo

constituiacutedas em encontros atravessados em muitos momentos pelas experiecircncias na infacircncia

na famiacutelia na medida socioeducativa e na rua

A construccedilatildeo do espaccedilo narrativo eacute apoiada na histoacuteria oral que tem sido o meio para

conhecer as vivecircncias singulares tomadas em um campo plural que carrega consigo Histoacuteria e

Sociedade (Portelli 2016) Na metodologia alguns elementos pedem atenccedilatildeo accedilatildeo entre

aquele que escuta e quem fala tempo em que a fala eacute realizada e tempo que criou a memoacuteria

o fato de que a histoacuteria ocorre em meio agrave Histoacuteria aleacutem da oralidade e da escrita produzidas

95

As narrativas com os adolescentes satildeo construiacutedas em pelo menos trecircs tempos (1)

constituiccedilatildeo do relato (2) escrita posterior pela pesquisadora e (3) encontros para releitura com

os colaboradores sempre com a abertura para correccedilotildees e mudanccedilas de rotas Esses tempos satildeo

constituiacutedos em muitos encontros quantos forem necessaacuterios para o estabelecimento de

confianccedila que torne possiacutevel o relato das cenas vividas O tempo eacute distinto em cada relaccedilatildeo e

precisa ser considerado para que evitemos atravessamentos que por vontade nossa

desrespeitassem a vida vivida pelo jovem Nesse sentido o tempo da pesquisa motiva mas natildeo

determina o trabalho

O primeiro encontro com a maioria dos adolescentes ocorreu no SMSE-MA com a

intermediaccedilatildeo da equipe teacutecnica Aproveitamos eventos festivos e reuniotildees buscando

momentos em que os adolescentes estando em coletivo talvez ficassem mais agrave vontade para

iniciar uma conversa para a qual seriam convidados a continuar em outro momento Alguns

encontros passaram a ocorrer inesperadamente quando em serviccedilo da rede socioassistencial a

partir do cuidado atento da pesquisadora provocamos conversas com jovens que natildeo

frequentavam mais o SMSE-MA mas que ao estarem naquele territoacuterio e terem passado por

medida socioeducativa puderam ser convidados para compor com a pesquisa Entre os seis

adolescentes entrevistados ateacute o momento uma era menina que aceitou uma conversa breve

nos avisando que naquele momento natildeo havia espaccedilo para continuar os encontros

Haacute sempre um primeiro pedido de licenccedila da pesquisadora seguido da apresentaccedilatildeo do

que a motiva a iniciar a conversa a hipoacutetese formada por meio de vivecircncias em outros trabalhos

que fazem pensar que os adolescentes satildeo os menos escutados no processo socioeducativo Os

tempos de cada adolescente satildeo tatildeo distintos quanto eles o satildeo mais ou menos tiacutemidos falantes

curiosos ou desconfiados

Construir narrativas sobre histoacuterias de vida-adolescente-sancionada carrega o desejo de

que sobrevivam e possam viver outras variaccedilotildees de suas trajetoacuterias Para alguns adolescentes

narrar as proacuteprias memoacuterias eacute aposta de proteccedilatildeo em relaccedilatildeo a outros que como eles poderiam

vir a ser apreendidos e encaminhados agraves unidades de privaccedilatildeo da liberdade disse um de nossos

parceiros ldquoquero falar natildeo por mim que jaacute lsquotocircrsquo velho mas pelos outros menores Eu jaacute tenho

dezessete anos e natildeo vou mais ser preso [em unidade de internaccedilatildeo para adolescentes] mas tem

os outros que eu natildeo quero que passem pelo o que eu passeirdquo Compartilhar experiecircncias e

estrateacutegias de cuidado com o proacuteprio corpo eacute uma maneira de cuidar inclusive de algueacutem que

natildeo conhecem Para outros ainda contar as proacuteprias experiecircncias eacute dar a elas visibilidade

dando importacircncia agrave vida aprendemos com um dos jovens que uma cena vivida por uma pessoa

96

pode retratar um campo muito vasto ldquoeacute como beber aacutegua ou comer ou escrever A gente pode

falar do mundo pelas coisas que uma pessoa fazrdquo Mora aiacute a vontade de que saibamos de um

algueacutem que existe

Os encontros com cada adolescente pedem uma primeira organizaccedilatildeo de horaacuterio data e

local que melhor contemplem cada entrevistado de forma que as conversas satildeo realizadas em

serviccedilos da rede socioassistencial praccedilas em seu local de trabalho ou em equipamentos de

cultura nos quais trabalham ou cumprem medida socioeducativa Nos primeiros encontros satildeo

retomadas as ideias que alimentam a vontade de escuta e escrita das experiecircncias que contam

testemunhar suas existecircncias (Lapoujade 2017) e contribuir para o debate sobre o que vem

concorrendo com suas vidas

Palavras como oacutedio relatos sobre violecircncia fiacutesica sofridas pelas matildeos das instituiccedilotildees

estatais e da famiacutelia e um mundo vivido como inflexiacutevel satildeo tomados como produccedilotildees que a

pesquisa opera Os relatos trazem o ato infracional praticado e as violecircncias vividas ainda na

infacircncia Haacute uma convocaccedilatildeo da pesquisadora agrave posiccedilatildeo de testemunha do corpo que sofre e

duvida solicitando a criaccedilatildeo de estrateacutegias para que o silenciamento natildeo domine A literatura

e a palavra escrita (como letras de muacutesica) criam um comum nesse encontro em que a posiccedilatildeo

social da pesquisadora implica um natildeo compartilhamento de muitas das experiecircncias que

marcam a juventude dos entrevistados os textos e os autores emprestam vivecircncias que agem

no isolamento da dor apostando no fortalecimento do adolescente para a criaccedilatildeo de estrateacutegias

de vida

Nesse momento satildeo contadas histoacuterias de diferentes fontes literaacuterias16 e lidos poemas

inspirados nas palavras dos entrevistados Com as biografias que permitem a variaccedilatildeo do olhar

sobre o vivido o mundo vai ficando maior permitindo uma elaboraccedilatildeo mais autoral dos

discursos sobre si Juntos lemos textos e entrelaccedilamos palavras agravequelas que haviam sido antes

pronunciadas pelos entrevistados Um dos apoios convocados tem sido o poeta Manuel de

Barros (2015)

Eu queria fazer parte das aacutervores como os paacutessaros fazem Eu queria fazer parte do orvalho

como as pedras fazem Eu soacute natildeo queria significar Porque significar limita a imaginaccedilatildeo E com

pouca imaginaccedilatildeo eu natildeo poderia fazer parte de uma aacutervore Como os paacutessaros fazem Entatildeo a

razatildeo me falou o homem natildeo pode fazer parte do orvalho como as pedras fazem Porque o

homem natildeo se transfigura senatildeo pelas palavras E era isso mesmo (Barros 2015 p 97)

16 Lemos juntos aleacutem de poemas de Manuel de Barros tambeacutem os de Eduardo Galeano (O livro dos abraccedilos)

comentamos sobre as histoacuterias narradas na obra A guerra natildeo tem rosto de mulher falamos sobre a ativista

americana Acircngela Davis discutimos letras de muacutesica do cantor Tim Maia indicamos uns aos outros filmes como

Cortina de fumaccedila e 400 contra 1

97

Com alguns adolescentes satildeo realizados muitos encontros com outros apenas dois

seratildeo possiacuteveis tornando-os ainda mais preciosos Aceitamos seu tempo As entrevistas tecircm

priorizado o relato oral sem o uso de gravador buscando menos o caraacuteter de entrevista e mais

a conversa fluida um encontro-entrevista Sabe-se de partida que os registros seratildeo revisitados

e poderatildeo ser recompostos a construccedilatildeo de sentido eacute incessante A cada novo encontro vamos

repensando os termos escolhendo palavras ndash quais satildeo eleitas e por quecirc Tomadas como

substacircncia que constituem a existecircncia interessa o processo de construccedilatildeo das linhas escritas

que disputa com a ilusoacuteria suposiccedilatildeo de existir uma verdade fundamental

E isto a partir da convicccedilatildeo de que as palavras produzem sentido criam realidades e agraves vezes

funcionam como potentes mecanismos de subjetivaccedilatildeo Eu creio no poder das palavras na forccedila

das palavras creio que fazemos coisas com as palavras e tambeacutem que as palavras fazem coisas

conosco As palavras determinam nosso pensamento porque natildeo pensamos com pensamentos

mas com palavras natildeo pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligecircncia mas a

partir de nossas palavras E pensar natildeo eacute somente ldquoraciocinarrdquo ou ldquocalcularrdquo ou ldquoargumentarrdquo

como nos tem sido ensinado algumas vezes mas eacute sobretudo dar sentido ao que somos e ao que

nos acontece (Larrosa 2002 p 21)

Tendo em matildeos uma escrita construiacuteda com a direccedilatildeo eacutetica de potencializar a existecircncia

convidamos o jovem a um novo encontro em que lhe eacute apresentada a narrativa escrita a partir

da conversa inicial Juntos pesquisadora e adolescente leem as narrativas que se tornam nova

palavra a ser escutada uma espeacutecie de outra voz em que se compotildee um corpo formado em

coautoria Revisam frase por frase questionam-se quanto agrave escolha das palavras repensam

aquelas que parecem deslocadas enfatizam as que satildeo importantes reconstroem outras a

produccedilatildeo de sentidos eacute alimentada pela escolha das palavras e pelo trabalho da memoacuteria As

frases satildeo construiacutedas como uma associaccedilatildeo entre a memoacuteria do narrador e a escuta da

pesquisadora satildeo elaboradas em terceira pessoa buscando alcanccedilar as lembranccedilas em uma

posiccedilatildeo afirmativa quanto agraves vidas sobre as quais falam Nesse momento as reaccedilotildees variam

adolescentes veem-se no relato e lendo a proacutepria vida muitos se espantam com a largueza

percebida Surpreendem-se alguns como se suas vidas se tornassem elas mesmas poesia Em

uma seacuterie de encontros em que dois adolescentes eram entrevistados juntos chegamos agrave

seguinte construccedilatildeo

O menino que fala raacutepido e bastante gruda uma histoacuteria atraacutes da outra Quer compartilhar

vivecircncias de seu dia a dia e contar sobre como elas entram em seu corpo o afetam e fazem

pensar Ao seu lado estaacute L que observador daacute espaccedilo agrave voz do amigo em meio agrave narrativa

corrida vai cavando momentos para falar sobre si Compotildeem uma dupla disposta a lembrar de

fatos que poderiam endurecer o coraccedilatildeo mas que neles movimenta o sangue que corre atraacutes

de novas ideias As muitas violecircncias satildeo localizadas em cenas que exemplificam dilemas de

todos os dias

98

O material colhido pela oralidade implica performance e processo natildeo estanque Haacute uma

certa presenccedila de quem narra sua histoacuteria e do modo como o faz que se mostra por meio da

construccedilatildeo das frases A passagem do narrado para a escrita elaborada pela pesquisadora precisa

respeitar que aquilo que eacute falado pelos adolescentes seraacute efeito de uma multiplicidade de

elementos entre eles as formas de compreender que a pesquisadora tem da vida e das situaccedilotildees

Respeitar nesse sentido implica (i) criar narrativas que permitam abertura de questotildees e natildeo

adjetivaccedilotildees e julgamentos (ii) desenvolver um procedimento de trabalho em que os jovens

possam avaliar e se posicionar em relaccedilatildeo aos efeitos que a leitura da narrativa escrita lhes

produz (iii) considerar que haacute elementos da singularidade do narrador natildeo captaacuteveis pela

pesquisadora ndash talvez nem mesmo pelo contador ndash e isso eacute condiccedilatildeo da pesquisa ldquoa tonalidade

e as ecircnfases do discurso oral carregam a histoacuteria e a identidade dos falantes e transmitem

significados que vatildeo bem aleacutem da intenccedilatildeo consciente destesrdquo (Portelli 2016 p 21)

Na pesquisa a escrita age pelo estabelecimento de alianccedilas com o pensamento por meio

do fazer a quatro matildeos Convidamos os adolescentes agrave posiccedilatildeo de coautores a partir da reflexatildeo

de suas memoacuterias Essa metodologia vai operando como

um espaccedilo onde encontrar um lugar viver tempos que sejam um pouco tranquilos poeacuteticos

criativos e natildeo apenas ser o objeto de avaliaccedilotildees em um universo produtivista Conjugar os

diferentes universos culturais de que cada um participa Tomar o seu lugar no devir

compartilhado e entrar em relaccedilatildeo com outros de modo menos violento menos desencontrado

paciacutefico (Petit 2010 p 289)

Apanhar ser humilhado e silenciado satildeo experiecircncias que produzem oacutedio Ao sofrer e vendo-

se tatildeo sozinho com esse sentimento a vida lhes eacute de certo modo furtada Muitos jaacute foram

tombados como Gomes (2017) afirma ao narrar os enfrentamentos de Dom Quixote Pixaim

Eu natildeo queria mais cultivar o oacutedio mas eles nos obrigam a vencer desde que o inventaram o

poacutedio Uhuru a liberdade ainda eacute sonho Um triste soneto o medo de cair destroccedilos Nessa

terra em que jaacute tombaram tantos dos nossos Mas enquanto constroem pelourinhos eu sigo

erguendo mocambos enfrentando moinhos e todos os traumas de ser assim Dom Quixote

Pixaim (Gomes 2017 p 45)

Amor oacutedio duacutevida e violecircncia existem singularmente no corpo de um e coletivamente

no corpo social Na histoacuteria narrada oralmente o vivido eacute percebido como algo do particular e

do plural que diz de cada adolescente e de muitos outros Os adolescentes apresentam suas

referecircncias no compartilhamento dos textos em geral de filmes e muacutesica e nas conversas

sugerem palavras que permitam o exerciacutecio de compreender o que se passou com eles A

pesquisa toma o alargamento do imaginaacutevel como ensaio de um lugar natildeo-determinado e aposta

que a discussatildeo a partir das relaccedilotildees construiacutedas das narrativas escritas e do material literaacuterio

partilhado contribui para um trabalho que vise agrave garantia de direitos desses adolescentes

99

4 Fazer advir aquilo que natildeo deve existir

Animada pela vontade de conhecer e registrar percursos de experiecircncias de adolescentes

que em um terreno no qual pressupor o outro tantas vezes o adianta em relaccedilatildeo a quem eacute ou

agravequilo que poderia realizar de sua existecircncia a pesquisa faz alianccedila com o campo

socioeducativo Contar sobre a constituiccedilatildeo de uma metodologia de acesso aos nossos

interlocutores e de construccedilatildeo de narrativas com eles a partir de suas vivecircncias tem como

desafio acessar as infacircncias as abordagens policiais os entraves que percebem no percurso e

as vinculaccedilotildees com os profissionais que os atendem na execuccedilatildeo da medida socioeducativa A

preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave sua sobrevivecircncia eacute dimensatildeo que para muitos adolescentes

fortalece a presenccedila nos atendimentos realizados pelas equipes socioeducativas e a vontade de

conversar A conversa com um dos jovens constroacutei a seguinte narrativa

faz diferenccedila o teacutecnico que mostra o relatoacuterio antes que siga ao juiz e pergunta a opiniatildeo do

adolescente Com eles [a equipe que o atendia no SMSE-MA] nunca foi preciso pedir mudanccedila

na escrita sempre fiel agravequilo que ocorria naquela eacutepoca da vida Eacute bom quando o teacutecnico daacute

conselhos e natildeo julga deixando a L o direito de decidir As boas conversas fazem quando de

volta agrave comunidade pensar e fortalecer a vontade de mudar de vida era verdade que com o

dinheiro do traacutefico fica difiacutecil ter uma reserva Vem faacutecil vai faacutecil e aleacutem disso a famiacutelia natildeo

aceita o dinheiro sujo em casa

Suas histoacuterias variam e inspiram modos de fazer alianccedilas Essa eacute uma dimensatildeo que

desafia conquistar uma qualidade de relaccedilatildeo a partir da qual a palavra e o pensamento

produzam possiacuteveis Aacuterdua tarefa pois satildeo muitos os atravessamentos que concorrem com

essas interaccedilotildees necessidade de tempo grandes distacircncias fiacutesicas falta de dinheiro precaacuterias

condiccedilotildees de trabalho violecircncia territorial e descontinuidade das poliacuteticas puacuteblicas

O convite aos adolescentes para narrarem suas trajetoacuterias foi possibilitado pelas relaccedilotildees

estabelecidas a partir da atuaccedilatildeo profissional no campo da psicologia junto a um SMSE-MA de

determinado territoacuterio da cidade de Satildeo Paulo No processo uma das condiccedilotildees reconhecidas

como necessaacuterias para esses encontros tem sido o tempo tempo para as distacircncias em que os

encontros se datildeo tempo para a espera tempo para sustentar um intervalo entre os encontros

sem se saber direito por que o adolescente desmarca o agendado outros compromissos surgem

e a disponibilidade muda

A persistecircncia em promover a continuidade dos encontros tem permitido a construccedilatildeo

de alianccedilas e a possibilidade de o jovem interlocutor ver-se coautor das linhas que registram

suas experiecircncias As condiccedilotildees que nossos colaboradores apresentam exigem consenso

100

Na construccedilatildeo dos registros uma questatildeo eacute colocada agrave pesquisa como responder aos

relatos de violecircncias sofridas desde a infacircncia O racismo e as situaccedilotildees violentas ao longo da

vida solicitam respostas e a afirmaccedilatildeo de que natildeo deveriam ter ocorrido Na narrativa abaixo

o jovem pede alianccedila parceria e compreensatildeo e segundo ele talvez isso fosse possiacutevel se na

cena algum policial fosse negro

Agrave noite na praccedila em que muitos traficam mas natildeo ele vem um carro de poliacutecia e de dentro

dele algueacutem manda que levante a camiseta para provar o que o menino sabe natildeo levava em seu

corpo arma alguma Na ausecircncia do objeto que mata algueacutem grita ldquosai fora natildeo vou nem descer

do carro lsquoprarsquo natildeo sujar a matildeo com vocecirc seu macaco preto Sai forardquo De fora do carro pocircde

ver que dentro dele havia apenas brancos Seus olhos buscavam algueacutem que fosse da mesma

cor de sua pele para nele encontrar a conivecircncia com a cena que o humilhava Satildeo sempre

brancos os que fazem isso fosse negro poderia ir embora sem essa

O fato de o adolescente compartilhar sobre seu corpo que sofre pede um deslocamento

em relaccedilatildeo a uma suposta neutralidade da pesquisa ou agrave ideia de que natildeo haacute nada que possa ser

feito Falar sobre a medida socioeducativa quando toda uma vida eacute invocada implica vermo-

nos testemunhas da dor alheia ndash e natildeo haacute silenciamento possiacutevel frente a tais horrores Haacute

movimentos necessaacuterios de desterritorializaccedilatildeo de todos narrador e escutador Reconhecer o

horror de uma cena de violecircncia e advogar por uma existecircncia eacute testemunhar o valor da vida e

aquilo que a impede Os efeitos da escuta de tantas violecircncias passam pelo corpo da

pesquisadora fica-se quente ao ouvir a violecircncia enquanto se pensa no que dizer em uma

situaccedilatildeo em que um direito natildeo foi garantido pois os relatos vivos exigem a emergecircncia de uma

resposta A narrativa escrita eacute uma escrita-ato que toma a funccedilatildeo de natildeo deixar calar

Fazer existir implica brigar contra o apagamento e contra a sombra Lapoujade (2017)

afirma a posiccedilatildeo de advogar em defesa das existecircncias que satildeo impedidas como uma questatildeo

poliacutetica pois jaacute natildeo se trata de (apenas) existir mas de ter o direito de natildeo existir conforme

modelos predeterminados

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Capiacutetulo 6

A Implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo em

SAICAs de Osasco

Andrielly Darcanchy de Toledo

Mariana Prioli Cordeiro

Introduccedilatildeo

A aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 trouxe importantes transformaccedilotildees para

o campo das poliacuteticas sociais brasileiras Entre outras coisas determinou que o sistema de

seguridade social do paiacutes passasse a ser composto pelo tripeacute assistecircncia social sauacutede e

previdecircncia social (Brasil 1988) Seguindo as diretrizes propostas pela nova Constituiccedilatildeo em

1993 eacute aprovada a Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) que estabelece as diretrizes da

poliacutetica de assistecircncia social ao defini-la como direito do cidadatildeo e dever do Estado (Brasil

1993) A fim de transformar em accedilotildees diretas os pressupostos da LOAS e da Constituiccedilatildeo de

1988 em 2004 eacute aprovada a Poliacutetica Nacional de Assistecircncia Social (PNAS) que prevecirc o

reordenamento da poliacutetica em dois niacuteveis de proteccedilatildeo social baacutesica e especial sendo a proteccedilatildeo

especial subdividida em dois graus de complexidade meacutedia e alta A partir da PNAS em 2005

tem iniacutecio a implementaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) (Alberto Freire

Leite amp Gouveia 2014)

Uma das funccedilotildees da proteccedilatildeo social especial eacute garantir a seguranccedila de acolhida de

usuaacuterios e famiacutelias em situaccedilatildeo de risco pessoal e social Tal seguranccedila eacute oferecida em casos

em que haacute situaccedilatildeo de abandono e isolamento quando haacute necessidade de separaccedilatildeo da famiacutelia

ou da parentela (motivada por situaccedilotildees de violecircncia familiar ou social drogadiccedilatildeo alcoolismo

criminalidade entre outras) ou em situaccedilotildees de acidentes e desastres naturais Seu objetivo

central consiste em restaurar a autonomia a capacidade de conviacutevio e o protagonismo das(os)

usuaacuterias(os) por meio da oferta de condiccedilotildees materiais de abrigo repouso alimentaccedilatildeo

higienizaccedilatildeo vestuaacuterio e aquisiccedilotildees pessoais (Brasil 2005)

A seguranccedila de acolhida eacute ofertada em diferentes tipos de instituiccedilatildeo (para crianccedilas

jovens adultos idosos pessoas com deficiecircncia etc) todos considerados parte da rede de

proteccedilatildeo social especial de alta complexidade Neste capiacutetulo enfocaremos o acolhimento

104

institucional de crianccedilas e adolescentes Mais especificamente apresentaremos e discutiremos

a experiecircncia de implementaccedilatildeo do Programa de Apadrinhamento Afetivo no municiacutepio de

Osasco enfocando seus resultados dificuldades e avanccedilos Com isso o presente trabalho

pretende contribuir com a circulaccedilatildeo de relatos e reflexotildees entre os municiacutepios que possuem

programa semelhante Aleacutem disso tambeacutem busca suprir uma lacuna na literatura acadecircmica

uma vez que em pesquisas realizadas em maio de 2019 em trecircs bases de dados (Scientific

Electronic Library Online - SciELO Applied Social Sciences Index amp Abstracts - ASSIA e

Banco de Teses da Capes) encontramos apenas seis trabalhos que abordam diretamente o

programa de apadrinhamento afetivo no Brasil Em buscas no Google Acadecircmico foram

encontrados mais textos contudo nenhum abordava a implementaccedilatildeo da mesma maneira

proposta neste artigo a partir de um relato de experiecircncia1 Mas antes de apresentarmos ndash e

discutirmos ndash a experiecircncia propriamente dita consideramos importante apresentar ainda que

de forma breve algumas caracteriacutesticas importantes do acolhimento institucional no acircmbito do

SUAS bem como a ideia central que embasa o programa de apadrinhamento afetivo

1 Acolhimento Institucional e Apadrinhamento Afetivo

De acordo com a Tipificaccedilatildeo Nacional dos Serviccedilos Socioassistenciais (Brasil 2014)

existem duas modalidades de Serviccedilos de Acolhimento Institucional para Crianccedilas e

Adolescentes (SAICA) 1) abrigo institucional que acolhe ateacute 20 crianccedilas e adolescentes tendo

profissionais que se revezam em plantotildees e 2) casa-lar que atende ateacute 10 acolhidos com uma

pessoa ou casal como educadorcuidador residente Jaacute o apadrinhamento afetivo natildeo eacute

propriamente um serviccedilo de acolhimento nem estaacute tipificado nas normativas do SUAS Mas eacute

uma iniciativa que vem ocorrendo em cada vez mais municiacutepios com o objetivo de lidar com

alguns dos resultados do acolhimento institucional prolongado

No entanto a despeito de natildeo ser oficialmente um serviccedilo do SUAS podemos dizer que

esse programa constitui uma poliacutetica puacuteblica uma vez que envolve escolhas essenciais feitas

pelo poder puacuteblico que produzem materialidades e socialidades (Spink 2018) Aleacutem disso

assim como toda poliacutetica puacuteblica eacute uma accedilatildeo intencional implica implementaccedilatildeo execuccedilatildeo e

avaliaccedilatildeo possui objetivos determinados e apesar de produzir impactos no curto prazo visa

resultados continuados e no longo prazo (Brigagatildeo Nascimento amp Spink 2011) Um dos

1 Vale destacar que o Instituto Fazendo Histoacuteria tem uma publicaccedilatildeo proacutepria que inspirou essa experiecircncia mas

que conteacutem muitas diferenccedilas pois eacute focada em propor etapas e atividades para possiacuteveis implementaccedilotildees mas

natildeo narra uma experiecircncia com seus diversos resultados Essa publicaccedilatildeo eacute citada mais abaixo

105

principais resultados almejados eacute a diminuiccedilatildeo das sequelas de longos periacuteodos de acolhimento

institucional

Apesar de o acolhimento institucional prolongado ser uma realidade em muitos

municiacutepios do paiacutes de acordo com as diretrizes do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA)

(Brasil 1990) essa medida protetiva deveria ser excepcional e provisoacuteria Afinal o ECA

compreende que toda crianccedila e adolescente estaacute em uma condiccedilatildeo peculiar por encontrar-se

ainda em desenvolvimento sendo seu direito ldquoser criado e educado no seio de sua famiacutelia e

excepcionalmente em famiacutelia substituta assegurada a convivecircncia familiar e comunitaacuteria em

ambiente que garanta seu desenvolvimento integralrdquo (Art19) Seguindo essas diretrizes

recentemente o prazo maacuteximo de acolhimento institucional de crianccedilas e adolescentes foi

reduzido de dois anos (Lei 120102009) para 18 meses (Lei 135092017) Assim quando uma

crianccedila ou adolescente eacute acolhido eacute necessaacuteria uma reavaliaccedilatildeo constante de sua situaccedilatildeo a

fim de garantir que a institucionalizaccedilatildeo seja de fato excepcional e provisoacuteria

Rachel Baptista e Maria Helena Zamora (2016) afirmam que a medida protetiva de

acolhimento institucional atinge quase exclusivamente as classes pobres o que para as autoras

daria margem agrave associaccedilatildeo enganosa da pobreza com uma possiacutevel incompetecircncia em fornecer

proteccedilatildeo e cuidados adequados agraves crianccedilas Irene Rizzini Irma Rizzini Luciene Naiff e Rachel

Baptista (2007) entendem que atualmente ldquoressaltam-se as competecircncias da famiacutelia mas na

praacutetica com frequecircncia cobra-se dos pais que deem conta de criar seus filhos mesmo que

faltem poliacuteticas puacuteblicas que assegurem as condiccedilotildees miacutenimas de vida dignardquo (p 18) Na

mesma direccedilatildeo Maria Liacutevia Nascimento (2012) sustenta que haacute situaccedilotildees em que o acolhimento

realmente ocorre como medida provisoacuteria enquanto a famiacutelia se reorganiza contudo a

ldquoproblematizaccedilatildeo se faz em torno do abrigamento como salvaccedilatildeo quando se destinam

recursos apenas para o abrigamento e natildeo para outras possibilidadesrdquo (p 43)

Apoacutes o acolhimento eacute intensificado o trabalho com suas famiacutelias de origem e extensas

(tios avoacutes etc) visando o desacolhimento o mais breve possiacutevel Somente depois de encerradas

as possibilidades de retorno a essas famiacutelias eacute que se considera a destituiccedilatildeo do poder familiar

para futura colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta inscrita no Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e

Acolhimento (SNA)2 (ECA Art101 sect1ordm)

Contudo devido a diversos fatores os SAICAs atendem muitas crianccedilas e adolescentes

2 O antigo e mais conhecido Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo que esteve ativo desde 2008 foi substituiacutedo pelo

Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e Acolhimento (SNA) em 2018 com o objetivo de aperfeiccediloar a busca por

pretendentes agrave adoccedilatildeo Mais informaccedilotildees disponiacuteveis em httpswwwcnjjusbrprogramas-e-acoescadastro-

nacional-de-adocao-cna

106

que legalmente poderiam ser adotados mas permanecem acolhidos ateacute a maioridade Um dos

fatores principais eacute a diferenccedila jaacute conhecida entre o perfil daqueles que podem ser adotados e o

procurado pelos adotantes3

Em pesquisa realizada no antigo Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo (CNA) em julho de

2018 no paiacutes todo havia quase 9 mil crianccedilasadolescentes aptos agrave adoccedilatildeo e mais de 44 mil

pretendentes Entretanto aproximadamente 95 deles desejava crianccedilas de ateacute sete anos e

somente 36 dos acolhidos estava nessa faixa etaacuteria A isso se somam outros fatores como o

fato de aproximadamente 60 dos acolhidos terem irmatildeos e mais de 20 apresentarem

doenccedilas eou deficiecircncias Dessa forma eacute expressivo o nuacutemero de crianccedilas e principalmente

adolescentes que estatildeo acolhidos haacute vaacuterios anos e hoje tecircm pouquiacutessimas chances de adoccedilatildeo

tendo como previsatildeo o desacolhimento por maioridade

Em nova pesquisa realizada no Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e Acolhimento (SNA) em

julho de 2019 foi possiacutevel acessar os dados da Vara da Infacircncia e Juventude (VIJ) ndash Foro

Central Ciacutevel da capital de Satildeo Paulo Nessa VIJ constavam 193 crianccedilas e adolescentes

acolhidos sendo que naquele momento 4 estavam aptas agrave adoccedilatildeo e todas tinham entre 9 e 18

anos Na mesma VIJ ao mesmo tempo havia 203 pretendentes habilitados aguardando para

se tornarem pais haacute ateacute 36 meses contudo nenhum aceitava crianccedilas maiores de 10 anos

O acolhimento institucional prolongado gera consequecircncias bastante estudadas pela

Psicologia Aline Siqueira e Deacutebora DellAglio (2006) fizeram uma revisatildeo bibliograacutefica sobre

os impactos da institucionalizaccedilatildeo que mostrou convergecircncia de muitos estudos ao apontarem

dificuldades funcionais dos serviccedilos de acolhimento (profissionais pouco capacitados e em

nuacutemero insuficiente aleacutem de precariedades de diversas ordens) que resultavam em pouca

efetividade da atuaccedilatildeo da rede de garantia de direitos das crianccedilas e adolescentes As autoras

afirmam ainda que o tempo de permanecircncia em instituiccedilotildees pode ultrapassar dez anos o que

interfere na sociabilidade e na manutenccedilatildeo de viacutenculos na vida adulta

Como uma medida excepcional o acolhimento institucional carrega paradoxos que tecircm

chamado cada vez mais atenccedilatildeo de profissionais e pesquisadores O Plano Nacional de

Promoccedilatildeo Proteccedilatildeo e Defesa dos Direitos de Crianccedilas e Adolescentes agrave Convivecircncia Familiar

e Comunitaacuteria (PNCFC) foi criado em 2006 justamente para ressaltar a necessidade de

combater algumas das dificuldades dessa medida Maria Moreira (2014) afirma que a ldquomedida

de acolhimento institucional traz agrave tona as contradiccedilotildees entre o direito agrave convivecircncia familiar e

3 Esses nuacutemeros satildeo puacuteblicos e podem ser consultados no site do Conselho Nacional de Justiccedila

(httpwwwcnjjusbr)

107

a supressatildeo dessa convivecircncia como condiccedilatildeo para restaurar esse mesmo direito agrave

convivecircnciardquo Ou seja observa-se que o proacuteprio acolhimento promove a tatildeo nociva ruptura de

viacutenculos e limita o direito agrave convivecircncia familiar de quem eacute acolhido em uma instituiccedilatildeo

Diante dessa contradiccedilatildeo o atual modelo de apadrinhamento afetivo surgiu com o

objetivo maior de restaurar o direito agrave convivecircncia familiar e comunitaacuteria dos acolhidos em

instituiccedilotildees Isso vem ocorrendo atraveacutes da modificaccedilatildeo de antigas praacuteticas assistencialistas

criando maior comprometimento dos voluntaacuterios que desejem se aproximar dos SAICAs por

meio de relaccedilotildees individualizadas

Cada programa de apadrinhamento afetivo estabelece suas proacuteprias regras e haacute cidades

que tecircm portarias municipais com as especificaccedilotildees do apadrinhamento naquela localidade ndash

um exemplo disso eacute Satildeo CarlosSP com a Lei nordm 180322016 Mesmo com essa diversidade

pelo paiacutes tal ideia ganhou tanta notoriedade que os poderes judiciaacuterio e legislativo

concentraram esforccedilos para regulamentaacute-la e ampliar sua implementaccedilatildeo

Em 2014 a Corregedoria Geral da Justiccedila do Estado de Satildeo Paulo publicou o

Provimento nordm 362014 regulamentando o apadrinhamento afetivo no estado (Jusbrasil 2016)

O Provimento tinha o objetivo de ldquocriar e estimular a manutenccedilatildeo de viacutenculos afetivos

ampliando assim as oportunidades de convivecircncia familiar e comunitaacuteriardquo (Art 2ordm) No acircmbito

nacional em 2017 a Lei Federal no 13509 incluiu no ECA o seguinte artigo

Art 19-B A crianccedila e o adolescente em programa de acolhimento institucional ou familiar

poderatildeo participar de programa de apadrinhamento

sect 1o O apadrinhamento consiste em estabelecer e proporcionar agrave crianccedila e ao adolescente

viacutenculos externos agrave instituiccedilatildeo para fins de convivecircncia familiar e comunitaacuteria e colaboraccedilatildeo

com o seu desenvolvimento nos aspectos social moral fiacutesico cognitivo educacional e

financeiro

sect 4o O perfil da crianccedila ou do adolescente a ser apadrinhado seraacute definido no acircmbito de cada

programa de apadrinhamento com prioridade para crianccedilas ou adolescentes com remota

possibilidade de reinserccedilatildeo familiar ou colocaccedilatildeo em famiacutelia adotiva (Brasil 2017)

A partir do texto da lei (Brasil 2017) e da literatura consultada (Dantas 2011 Oliveira

2011 Leal 2015 Nascimento amp Malveira 2017 Instituto Fazendo Histoacuteria 2017) eacute possiacutevel

observar que existem ao menos dois tipos de apadrinhamento o afetivo focado em estabelecer

relaccedilotildees de convivecircncia e o financeiro em que pessoas fiacutesicas ou juriacutedicas suprem diferentes

necessidades materiais dos acolhidos

Percebe-se que a lei natildeo define a maneira exata como deve ser executado cada programa

de apadrinhamento nem quais criteacuterios devem ser levados em conta para avaliar a qualidade

da relaccedilatildeo estabelecida ela apenas determina que os acolhidos poderatildeo participar de tais

programas Sendo assim na maior parte das vezes esse trabalho (de seleccedilatildeo capacitaccedilatildeo e

108

acompanhamento das relaccedilotildees) eacute realizado pelas proacuteprias equipes teacutecnicas dos serviccedilos de

acolhimento ndash as quais satildeo compostas necessariamente por uma(um) assistente social e

uma(um) psicoacuteloga(o) (Brasil 2006)

Recentemente foram publicados os resultados de pesquisas que investigaram alguns

programas de apadrinhamento com diferentes enfoques meacutetodos referenciais teoacutericos e

conclusotildees Deacutebora Nascimento e Jamille Malveira (2017) por exemplo realizaram entrevistas

com atores do judiciaacuterio e concluiacuteram que um dos efeitos duradouros do programa seria ldquoa

inserccedilatildeo das crianccedilas na sociedaderdquo (Nascimento amp Malveira 2017 p 50) Juliana Goulart e

Simone Paludo (2014) analisaram a evoluccedilatildeo de cinco ediccedilotildees de um programa de

apadrinhamento Para isso entrevistam 25 afilhados e aplicaram questionaacuterios em seus

respectivos padrinhos com o intuito de identificar o significado da relaccedilatildeo para os envolvidos

As pesquisadoras observaram que os afilhados relataram o apadrinhamento como possibilidade

de afeto e cuidado fora do espaccedilo institucional enquanto que os padrinhos o enxergavam de

maneira assistencialista como forma de ajudar outras pessoas

Jaacute Livia Leal (2015) afirma a importacircncia de tais programas no sentido de proporcionar

visibilidade social para essas crianccedilas e adolescentes o que estimularia o pleno exerciacutecio da

solidariedade e da cidadania Ela sugere que o apadrinhamento pode ter um resultado ainda

mais extremo na garantia da convivecircncia familiar ao defender a utilizaccedilatildeo do mesmo como

instrumento facilitador da adoccedilatildeo homoafetiva Segundo a autora ainda haacute resistecircncia de alguns

magistrados em reconhecer a adoccedilatildeo por casais do mesmo sexo assim a existecircncia de uma

relaccedilatildeo afetiva preacutevia atraveacutes do apadrinhamento poderia ser usada como argumento para

justificar a adoccedilatildeo por esses casais como maior interesse da crianccedilaadolescente

Aline Zerbinatti e Verocircnica Kemmelmeier (2014) por sua vez argumentam que o

apadrinhamento afetivo eacute permeado por ambiguidades e contradiccedilotildees As autoras entrevistaram

padrinhos que demonstraram entendimento sobre as possibilidades e limites de seus viacutenculos

quando perguntados sobre seus desejos de adotar os afilhados todos disseram natildeo ter essa

intenccedilatildeo por diversos fatores circunscrevendo sua motivaccedilatildeo em apadrinhar dentro das

categorias assistecircncia realizaccedilatildeo e condiccedilatildeo No mesmo sentido Karollyne de Sousa e Joatildeo

Paravidini (2011) analisaram quatro entrevistas com madrinhas e o caso cliacutenico de uma crianccedila

apadrinhada Os autores observaram haver em relaccedilatildeo ao apadrinhamento ldquoexaltaccedilatildeo da

solidariedade correlacionada a sentimentos como a bondade e o amor ao proacuteximo narcisismo

exacerbado como tentativa de recuperar a onipotecircncia perdida nos primoacuterdios da existecircncia a

seduccedilatildeo que perpassa a relaccedilatildeo padrinho-crianccedila institucionalizada a ambivalecircncia de

109

sentimentosrdquo (Sousa amp Paravidini 2011 p 537)

Neste artigo seguimos um caminho diferente As reflexotildees que aqui apresentaremos

natildeo estatildeo embasadas em questionaacuterios ou entrevistas mas na experiecircncia de uma das autoras

como membro da comissatildeo responsaacutevel pela implementaccedilatildeo do programa de apadrinhamento

em Osasco o Laccedilos Consideraremos como implementaccedilatildeo um periacuteodo que comeccedilou com a

formaccedilatildeo da Comissatildeo de Implementaccedilatildeo do Programa incluiu o lanccedilamento oficial do Laccedilos

as reuniotildees de rede a preparaccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes os encontros de capacitaccedilatildeo e

seleccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos e os primeiros seis meses de monitoramento e

acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas

2 A Primeira Ediccedilatildeo do Programa Laccedilos

Osasco tem aproximadamente 700 mil habitantes um dos maiores Produtos Internos

Brutos (PIB) do Estado de Satildeo Paulo (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2018) e

tem sua aacuterea urbana conurbada com a cidade de Satildeo PauloSP mantendo caracteriacutesticas de uma

cidade de grande importacircncia econocircmica e social No ano de 2017 contava com cinco abrigos

institucionais de administraccedilatildeo direta e trecircs conveniados agrave Prefeitura

A Secretaria de Assistecircncia Social de Osasco comeccedilou a realizar apadrinhamentos

afetivos em 2016 com algumas crianccedilas e adolescentes acolhidas em SAICAs de administraccedilatildeo

direta de maneira pontual e sempre acordada entre as teacutecnicas dos SAICAs e da VIJ Entatildeo a

partir dos resultados dessas primeiras experiecircncias em 2017 o municiacutepio decidiu implementar

o referido programa de apadrinhamento afetivo A implementaccedilatildeo de um programa municipal

tinha o objetivo de garantir um processo de seleccedilatildeo capacitaccedilatildeo e acompanhamento de maior

qualidade e padronizaccedilatildeo entre os padrinhos de todos os SAICAs

21 A Comissatildeo de Implementaccedilatildeo

Por ser a primeira ediccedilatildeo do Programa houve um processo licitatoacuterio que resultou na

contrataccedilatildeo de uma consultoria Aleacutem das consultoras a comissatildeo responsaacutevel pela

implementaccedilatildeo do programa contou tambeacutem com uma equipe de profissionais do municiacutepio4

A Comissatildeo batizou o projeto como Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo e estabeleceu

4 Danielle Silva Bueno Diretora do Departamento de Proteccedilatildeo Social Especial da Secretaria de Assistecircncia Social

da Prefeitura Municipal de Osasco (DPSE-SAS-PMO) Maacutercia Marciana Favorim Supervisora do DPSE-SAS-

PMO e as Teacutecnicas de SAICA Valquiacuteria De Conto (assistente social) e Andrielly Darcanchy (psicoacuteloga)

110

os criteacuterios para os candidatos a padrinhos

22 Os Criteacuterios para Apadrinhar

Apoacutes consultar algumas experiecircncias existentes (Goulart amp Paludo 2014 Souza amp

Paravidini 2011) optamos por realizar apadrinhamentos exclusivamente de pessoas fiacutesicas e

com o uacutenico intuito de formarem viacutenculos afetivos Era necessaacuterio residir em Osasco ou

comprovar faacutecil acesso agrave cidade Os candidatos natildeo poderiam estar inscritos no entatildeo ativo

CNA e obviamente era imprescindiacutevel ter disponibilidade afetiva e de tempo mantendo ao

menos encontros quinzenais com os afilhados5

23 Lanccedilamento do Programa

Em novembro de 2017 houve a apresentaccedilatildeo oficial do Programa contando com o

prefeito conselheiros tutelares funcionaacuterios dos SAICAs organizaccedilotildees parceiras e

representantes do poder legislativo Do poder judiciaacuterio foi convidada a equipe da Vara de

Infacircncia e Juventude

Foram apresentados dados gerais dos acolhimentos no municiacutepio Naquele momento

havia quatro SAICAs de administraccedilatildeo direta da Prefeitura e trecircs conveniados No total havia

aproximadamente 120 acolhidos sendo a maioria adolescentes

Tambeacutem foi exibido um viacutedeo feito para a divulgaccedilatildeo do Programa com o objetivo de

ilustrar as ideias que os acolhidos tinham sobre ele O viacutedeo continha desenhos e falas das

crianccedilas e adolescentes respondendo a questotildees sobre a importacircncia da relaccedilatildeo com um adulto

e suas expectativas em relaccedilatildeo ao apadrinhamento Nesse viacutedeo os acolhidos relatavam que

precisavam de um adulto para cuidados cotidianos e lazer mas tambeacutem para trocas afetivas

para se sentirem valorizados e para ldquonatildeo ser tratado como um objeto que pode ser trocadordquo nas

palavras de um adolescente Eles relatavam ainda que considerariam os padrinhos como ldquouma

segunda famiacuteliardquo (sic) uma famiacutelia substituta com a qual poderiam contar independentemente

das dificuldades que passassem

Apoacutes a cerimocircnia de lanccedilamento do programa iniciamos as primeiras formaccedilotildees Elas

foram realizadas entre dezembro de 2017 e marccedilo de 2018 e incluiacuteram seis reuniotildees de rede

(com teacutecnicos dos SAICAs dos CREAS e da VIJ) a preparaccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes e

5 Os criteacuterios para apadrinhar e ser apadrinhado estatildeo melhor detalhados no anexo 1

111

seis encontros com os candidatos a madrinhas e padrinhos sendo um deles de caraacuteter luacutedico

Eacute importante ressaltar que todas essas atividades aconteceram simultaneamente durante

o mesmo intervalo de meses Contudo faremos uma divisatildeo didaacutetica dentro dos eixos em que

as atividades se concentraram com os profissionais da rede com os acolhidos e com os

candidatos a madrinhas e padrinhos Dessa forma algumas atividades seratildeo mencionadas mais

de uma vez enfocando o trabalho proposto dentro de cada eixo

24 Reuniotildees de Rede e Preparaccedilatildeo das Crianccedilas e Adolescentes

Na primeira reuniatildeo com diversos atores da rede de proteccedilatildeo apresentamos os marcos

legais e os resultados esperados a criaccedilatildeo de referecircncias afetivas fora de instituiccedilotildees a melhora

na qualidade das relaccedilotildees interpessoais dos afilhados o enriquecimento dos referenciais sociais

e culturais e o suporte emocional oferecido na saiacuteda do acolhimento por maioridade (Goulart

amp Paludo 2014) Seguiram-se a essa outras cinco reuniotildees de rede nas quais decidimos

coletivamente os detalhes da implementaccedilatildeo conforme relatado a seguir (anexo 2)

Na segunda reuniatildeo acordamos os criteacuterios para as crianccedilas e adolescentes

participarem do Programa (1) ter mais de sete anos (2) o apadrinhamento afetivo ser parte do

Plano Individual de Atendimento (PIA) (3) estar acolhido haacute mais de oito meses ndash tempo

acordado como miacutenimo necessaacuterio para a equipe teacutecnica elaborar e avaliar o desenvolvimento

do PIA (4) previsatildeo de longa permanecircncia no SAICA (5) manter poucas referecircncias afetivas

eou todas as referecircncias serem institucionalizadas (6) estar disposto a estabelecer novas

relaccedilotildees

Como naquele momento havia um SAICA que recebia somente crianccedilas de zero a trecircs

anos sem irmatildeos ndash ou seja que natildeo atendiam aos criteacuterios que acabaacutevamos de estabelecer ndash

decidimos que esse equipamento natildeo participaria do Programa Assim foram incluiacutedos apenas

seis SAICAs sendo trecircs de administraccedilatildeo direta e trecircs conveniados

Nessa reuniatildeo tambeacutem solicitamos que as equipes teacutecnicas dos SAICAs fizessem

organogramas com as referecircncias afetivas dos acolhidos qualificando a relaccedilatildeo e a forccedila do

viacutenculo estabelecido Esses organogramas continham o acolhido no centro e todas as pessoas

eou instituiccedilotildees com as quais ele se relacionava sendo que o traccedilo indicativo da relaccedilatildeo poderia

ter caracteriacutesticas (ser uma linha reforccedilada simples ou um tracejado) e cores diferentes para

indicar a intensidade da relaccedilatildeo se ela era conflituosa entre outros adjetivos que a equipe

achasse necessaacuterio ressaltar Esse exerciacutecio foi utilizado principalmente para observar se as

112

relaccedilotildees estabelecidas por cada crianccedilaadolescente eram prioritariamente vinculadas a uma

instituiccedilatildeo principal criteacuterio utilizado para estabelecer quais crianccedilasadolescentes

participariam dessa primeira ediccedilatildeo tendo em vista natildeo haver candidatos a padrinhos para todos

os que se enquadravam aos outros criteacuterios

Na terceira reuniatildeo de rede discutimos coletivamente os casos levantados como

prioritaacuterios e assim criamos uma lista daqueles que participariam dessa e da proacutexima ediccedilatildeo

do programa de acordo com o nuacutemero de candidatos a padrinhos Pelas caracteriacutesticas dos

acolhidos naquele momento essa lista continha somente maiores de 11 anos que jaacute estavam em

acolhimento institucional havia mais de 6 anos chegando a um caso que estava acolhido havia

14 anos

Na quarta reuniatildeo de rede orientamos as equipes teacutecnicas a fazerem duas atividades

de preparaccedilatildeo de todos os acolhidos Primeiramente os teacutecnicos de cada SAICA conduziriam

no seu Serviccedilo uma roda de conversa com todos os integrantes (acolhidos e funcionaacuterios) para

explicar o Programa os criteacuterios estabelecidos quais crianccedilasadolescentes participariam

daquela ediccedilatildeo e por quecirc (anexo 3) As equipes relataram esse momento como uma

oportunidade para observarem a solidariedade entre os acolhidos pois eles foram

gradativamente entendendo os criteacuterios e passaram a compreender e concordar com nossa

escolha de quem deveria participar daquela ediccedilatildeo em detrimento de seus proacuteprios interesses

em ter padrinhos afetivos rapidamente

Em seguida as equipes teacutecnicas de cada SAICA realizaram atendimentos individuais

com os participantes daquela ediccedilatildeo para tirar duacutevidas e confirmar seu interesse ressaltando

que o apadrinhamento envolvia um compromisso com responsabilidades reciacuteprocas Nesse

momento tambeacutem foi solicitado que refletissem sobre como queriam se apresentar aos

padrinhos Essa proposta surgiu da observaccedilatildeo de que as histoacuterias dos acolhidos satildeo muitas

vezes expostas em demasia fazendo com que nunca estejam em uma relaccedilatildeo de maneira

igualitaacuteria podendo escolher o que contar e o que guardar pra si Afinal tal como afirma Maria

Moreira (2014) apesar de repetirmos que a crianccedila e o adolescente satildeo sujeitos de direitos ldquoeles

ainda satildeo pouco escutados sobre a compreensatildeo que tecircm de suas proacuteprias trajetoacuterias sobre as

suas escolhas e sobre as alternativas que propotildeem para seus problemas e dificuldadesrdquo (Moreira

2014 p 36) Thalita Poker (2017) completa ao afirmar que a ldquocrianccedila institucionalizada por

longos periacuteodos eacute um dos sintomas de uma sociedade colonizada cujas poliacuteticas de identidade

infantojuvenis pressupotildeem que as crianccedilas e os adolescentes deveratildeo ter representantes isso

significa que na maioria das situaccedilotildees elas natildeo podem se representarrdquo (Poker 2017 p 8)

113

Com esse cuidado em mente ainda nessa quarta reuniatildeo decidimos fazer um encontro

luacutedico entre todos os candidatos a padrinhos e os acolhidos que poderiam ser apadrinhados

Afinal esse momento descontraiacutedo eacute importante para facilitar a primeira experiecircncia entre os

participantes (Instituto Fazendo Histoacuteria 2017) O encontro luacutedico consistiu em uma gincana

incluindo diversos jogos e brincadeiras aleacutem de um piquenique Ele ocorreu em um parque

sem que houvesse predeterminaccedilatildeo dos apadrinhamentos pois aquele era um momento para

que todos pudessem se conhecer ndash essa informaccedilatildeo foi transmitida e reiterada aos acolhidos e

aos pretendentes por diversas vezes pois eles estavam ansiosos com a formaccedilatildeo das duplas

afilhados-padrinhos

A quinta reuniatildeo ocorreu em seguida e nela discutimos as impressotildees que as crianccedilas

e os adolescentes expressaram agraves equipes Aleacutem disso tambeacutem acordamos os detalhes dos

proacuteximos passos que incluiacuteam uma visita domiciliar aos candidatos a padrinhos para avaliar

a receptividade da famiacutelia expandida ao apadrinhamento a confirmaccedilatildeo do interesse daquela

crianccedilaadolescente em ter aquela pessoa como padrinhomadrinha um atendimento individual

aos candidatos a padrinhos apresentando de maneira breve o possiacutevel afilhado (apenas

caracteriacutesticas e preferecircncias gerais respeitando o acordo de deixar que a crianccedilaadolescente

se apresentasse e escolhesse se iria quando e como contar sua histoacuteria) e por fim os primeiros

passeios individuais dos candidatos a padrinhos com as crianccedilas e adolescentes que desejavam

apadrinhar

Na sexta e uacuteltima reuniatildeo de rede as equipes informaram como foram as visitas

domiciliares os atendimentos aos padrinhos e os primeiros passeios para os acolhidos

25 Capacitaccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos6

Do primeiro encontro participaram 12 nuacutecleos familiares com diferentes composiccedilotildees

ndash casais heterossexuais com e sem filhos casais homossexuais sem filhos famiacutelias

monoparentais e pessoas solteiras Desses nuacutecleos sete estavam dispostos a conhecer qualquer

crianccedilaadolescente Trecircs famiacutelias haviam conhecido previamente alguma crianccedilaadolescente

e participavam do encontro com o interesse de iniciar um apadrinhamento especiacutefico com essa

pessoa jaacute conhecida Outros dois nuacutecleos jaacute apadrinhavam e participaram para qualificar eou

oficializar essa relaccedilatildeo

Realizamos uma rodada de apresentaccedilatildeo em que cada um dizia resumidamente seu

6 O anexo 4 apresenta uma siacutentese das atividades de capacitaccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos

114

interesse em participar do Programa Apareceram motivos variados algumas famiacutelias jaacute tinham

filhos de vaacuterias idades e outras natildeo desejavam tecirc-los mas todas compartilhavam o interesse em

contribuir socialmente e estabelecer uma nova relaccedilatildeo de cuidados e proteccedilatildeo ndash cabe apontar

que tais motivos estatildeo em consonacircncia com os resultados de pesquisas anteriores sobre

programas semelhantes (Sousa amp Paravidini 2011 Goulart amp Paludo 2014 Zerbinatti amp

Kemmelmeier 2014)

No segundo encontro abordamos as principais caracteriacutesticas dos antigos orfanatos e

dos atuais serviccedilos de acolhimento promovendo a discussatildeo sobre conceitos ainda presentes

socialmente como por exemplo o questionamento sobre os acolhidos terem ou natildeo famiacutelia ou

a duacutevida sobre as crianccedilas poderem sair do serviccedilo de acolhimento pois a instituiccedilatildeo algumas

vezes eacute confundida com uma medida de restriccedilatildeo de liberdade para adolescentes em conflito

com a lei As famiacutelias expuseram muitas de suas duacutevidas e preconceitos que puderam ser

trabalhados durante a formaccedilatildeo

Por fim lemos uma paraacutebola de Walter Benjamin (1995) que conta a histoacuteria de um rei

e seu desejo por comer uma omelete de amoras exatamente igual a uma que comera na infacircncia

sendo que ao longo do texto eacute explicado se tratar na verdade do desejo de reviver uma

experiecircncia com grande valor emocional Essa paraacutebola foi usada para ilustrar como as

memoacuterias afetivas satildeo constitutivas das histoacuterias de vida e das identidades

Assim o terceiro encontro foi dedicado agraves referecircncias e memoacuterias afetivas de cada

participante Notamos que todos se referiram exclusivamente a familiares com os quais

mantinham laccedilos consanguiacuteneos por isso aprofundamos a discussatildeo sobre a possibilidade de

estabelecer viacutenculos tatildeo relevantes quanto aqueles com pessoas sem parentesco

O quarto encontro foi o luacutedico Eacute importante ressaltar que ao longo dos encontros o

nuacutemero de candidatos foi diminuindo por motivos que seratildeo explicados a seguir mas ateacute aquele

momento havia seis famiacutelias participando ativamente Todas tinham confirmado presenccedila no

encontro luacutedico por isso levamos ao parque tambeacutem as seis primeiras crianccedilasadolescentes

determinadas nas reuniotildees de rede relatadas Entretanto um dos candidatos faltou e natildeo

conseguimos mais contato com ele Portanto compareceram ao encontro cinco nuacutecleos

familiares e seis acolhidos aleacutem de uma das pessoas que jaacute apadrinhava com a respectiva

afilhada O encontro durou cerca de 4h e ao longo das atividades foi possiacutevel observar quatro

duplas (de padrinhos e afilhados) se aproximando enquanto dois adolescentes apresentaram

dificuldades para se relacionar com os candidatos

115

Apoacutes o encontro luacutedico realizamos a reuniatildeo de rede jaacute relatada na qual os teacutecnicos dos

SAICAs informaram os desejos das crianccedilas e dos adolescentes Com esses dados da reuniatildeo

de rede no quinto encontro com os candidatos a madrinhas e padrinhos ouvimos suas

impressotildees as quais no geral combinavam com as apontadas pelos acolhidos dessa forma

estabelecemos as cinco duplas possiacuteveis

Lembrando que houve uma adolescente que natildeo pocircde ser apadrinhada por causa de uma

desistecircncia repentina trecircs famiacutelias se ofereceram para realizar encontros esporaacutedicos com ela

e assim ampliar seu ciacuterculo de convivecircncia comunitaacuteria

A partir de entatildeo as equipes teacutecnicas dos SAICAs deveriam realizar as visitas

domiciliares e iniciar o apadrinhamento em si com frequecircncia quinzenal Para garantir que jaacute

tivesse ocorrido ao menos um encontro individual com os afilhados realizamos o uacuteltimo

encontro pouco mais de um mecircs depois

Nesse intervalo entre os encontros com os candidatos uma das duplas se desfez Ela era

formada por um adolescente que apresentara dificuldades em se relacionar durante o encontro

luacutedico e logo no primeiro passeio com o candidato a padrinho a comunicaccedilatildeo entre eles foi

difiacutecil O candidato tambeacutem afirmou ter percebido somente naquele momento que desejava

adotar outro perfil de crianccedilaadolescente natildeo apadrinhar por isso pediu para encerrar sua

participaccedilatildeo no Programa Conforme exposto acima jaacute haviacuteamos acordado entre todos os

participantes (candidatos a padrinhos e afilhados) que as possiacuteveis desistecircncias deveriam incluir

uma uacuteltima conversa de encerramento para poderem ser rompimentos cuidados e natildeo

repentinos Contudo naquele momento avaliamos que realizar outro encontro para despedida

seria uma situaccedilatildeo danosa para o adolescente por se tratar apenas de um primeiro passeio que

durou menos de meia hora e por especificidades daquelas pessoas ndash o candidato a padrinho

demonstrou muita dificuldade em lidar com a situaccedilatildeo parecia sentir-se amedrontado por estar

sozinho com o adolescente e o adolescente voltou do encontro dizendo que a relaccedilatildeo natildeo teria

continuidade e que preferia assim Entatildeo realizamos atendimentos individuais com os dois e

compreendemos que seria melhor encerrar o apadrinhamento somente com o adolescente

Por uacuteltimo o sexto encontro encerrou o ciclo de capacitaccedilatildeo do Programa Laccedilos

contando com quatro apadrinhamentos iniciados e dois continuados Esse momento foi

dedicado agrave discussatildeo das impressotildees dos padrinhos em relaccedilatildeo aos primeiros encontros com os

afilhados Em comum todas as famiacutelias relataram entusiasmo com o iniacutecio da relaccedilatildeo

116

26 Acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas

Conforme mencionado consideramos os primeiros seis meses de convivecircncia como

parte do processo de implementaccedilatildeo pois estaacutevamos realizando acompanhamentos constantes

a fim de verificar a efetividade das accedilotildees realizadas ateacute entatildeo Os acompanhamentos envolviam

trabalhos com os afilhados e com os padrinhos divididos entre as equipes teacutecnicas dos SAICAs

e a Comissatildeo sendo necessaacuteria comunicaccedilatildeo constante e organizada

As equipes teacutecnicas dos SAICAs realizavam atendimentos individuais com os afilhados

e em separado com os padrinhos sendo os resultados informados periodicamente agrave Comissatildeo

(anexo 5) Esses atendimentos tinham o objetivo de monitorar periodicamente como a relaccedilatildeo

estava se desenvolvendo no cotidiano

Jaacute agrave Comissatildeo cabiam encontros com periodicidade bimestral com todos os padrinhos

A proposta desses encontros era fornecer um momento para os padrinhos partilharem como

estava sendo a experiecircncia de apadrinhar uma crianccedilaadolescente que residia havia muitos anos

em um SAICA Portanto nesses encontros eles podiam compartilhar de maneira mais geral

como estavam sendo os contatos e dividir os sentimentos que esses encontros provocavam

Dentre os quatro apadrinhamentos iniciados dois resultaram em desistecircncias durante

esses primeiros seis meses de convivecircncia Uma das desistecircncias envolveu uma adolescente

proacutexima do seu desacolhimento por maioridade A relaccedilatildeo comeccedilou a apresentar dificuldades

nos primeiros meses de convivecircncia a ponto de os padrinhos solicitarem o encerramento Esse

apadrinhamento foi estabelecido com uma adolescente de 16 anos pertencente a um grande

grupo de irmatildeos com acolhimentos anteriores e uma histoacuteria transgeracional de extrema

vulnerabilidade social

Antes do encontro luacutedico a adolescente havia sido selecionada para trabalhar como

Jovem Aprendiz em um programa organizado pelo casal na empresa em que trabalhavam entatildeo

ela comeccedilou a trabalhar chefiada pela madrinha no mesmo periacuteodo em que iniciou a relaccedilatildeo

Poucas semanas apoacutes o iniacutecio do trabalho a madrinha disse que a jovem natildeo estava se

comportando adequadamente (usava vestes inadequadas e chegou a dormir em algumas

atividades no horaacuterio de trabalho) e o apadrinhamento estava afetando o programa Jovem

Aprendiz na empresa como um todo pois os outros jovens entendiam que ela estava tendo um

tratamento privilegiado O casal de padrinhos expressou ainda que o acompanhamento teacutecnico

teria sido insuficiente para lidar com essas questotildees Por isso eles decidiram encerrar a relaccedilatildeo

sozinhos recusando nossas indicaccedilotildees de realizar o encerramento na presenccedila da equipe teacutecnica

117

do SAICA ou da Comissatildeo Ademais logo apoacutes o fim do apadrinhamento eles tambeacutem

desligaram a adolescente do trabalho

A outra desistecircncia envolveu uma adolescente acolhida desde crianccedila e com um

transtorno mental em tratamento Depois de alguns encontros os padrinhos que tinham dois

filhos pequenos pediram para encerrar o apadrinhamento por falta de tempo questotildees de sauacutede

na famiacutelia e ciuacutemes por parte dos filhos Da mesma forma solicitamos que o encerramento

fosse mediado pela Comissatildeo e nos oferecemos para atendecirc-los a qualquer dia e horaacuterio

(inclusive fora dos nossos horaacuterios de trabalho agrave noite ou em algum final de semana) mas eles

afirmaram total indisponibilidade Por fim eles tiveram uma uacuteltima conversa raacutepida com a

adolescente por telefone e a psicoacuteloga que a tratava ficou responsaacutevel por retomar os

significados daquele encerramento com a adolescente

3 Discussatildeo sobre os resultados da primeira ediccedilatildeo do Programa Laccedilos

Essa primeira experiecircncia produziu natildeo somente novas relaccedilotildees novos viacutenculos novos

afetos Mas produziu tambeacutem desistecircncias e frustraccedilotildees aleacutem da percepccedilatildeo de que era possiacutevel

(e necessaacuterio) aperfeiccediloar o Programa

Conforme mencionado no toacutepico anterior no primeiro encontro havia 12 famiacutelias

(Quadro 1) sete dispostas a conhecer qualquer crianccedilaadolescente trecircs desejavam iniciar uma

relaccedilatildeo especiacutefica e duas jaacute apadrinhavam As duas famiacutelias que participaram do Programa para

qualificar e oficializar seus apadrinhamentos concluiacuteram os encontros e mantiveram as

relaccedilotildees

As trecircs famiacutelias que desejavam iniciar uma relaccedilatildeo de apadrinhamento especiacutefica natildeo

concluiacuteram o programa Uma delas relatou logo no primeiro encontro que desejava adotar as

adolescentes mencionadas e foi orientada a procurar a VIJ A segunda famiacutelia era composta

pela professora da crianccedila desejada o casal tinha dois filhos menores de quatro anos e estava

muito sensibilizado com a situaccedilatildeo da crianccedila acolhida mas ao longo das formaccedilotildees eles

perceberam que naquele momento natildeo conseguiriam assumir mais esse compromisso A

terceira famiacutelia desistiu apoacutes o encontro em que discutimos preconceitos pois percebeu que

tinha muitos receios quanto agraves dificuldades que poderia vivenciar nesse tipo de relaccedilatildeo

Das outras sete famiacutelias uma delas engravidou durante o ciclo de encontros Outra

conforme relatado desistiu no dia do encontro luacutedico sem nos informar os motivos nem

retornar nossas diversas tentativas de contato Uma terceira desistiu apoacutes o primeiro passeio

118

sozinho com o adolescente quando percebeu que queria adotar em vez de apadrinhar Por fim

quatro apadrinhamentos foram iniciados

Dentre esses quatro dois foram encerrados por solicitaccedilatildeo dos padrinhos conforme

descrito acima Entatildeo ao final do periacuteodo que denominamos implementaccedilatildeo somente duas

relaccedilotildees foram iniciadas pelo Programa e outras duas relaccedilotildees anteriores permaneceram

Quadro 1 ndash Resultados da implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos

Famiacutelia Interesse inicial Desfecho Momento Motivo

1 Qualificar e oficializar

apadrinhamento

Relaccedilatildeo

mantida

______ ______

2 Qualificar e oficializar

apadrinhamento

Relaccedilatildeo

mantida

______ ______

3 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo

______ ______

4 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo

______ ______

5 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo e

Desistecircncia

No iniacutecio da

convivecircncia

Dificuldades na relaccedilatildeo

6 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo e

Desistecircncia

No iniacutecio da

convivecircncia

Falta de tempo questotildees de

sauacutede e ciuacutemes

7 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Dificuldades na relaccedilatildeo e

desejo por adoccedilatildeo

8 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Gravidez

9 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Natildeo justificado

10 Apadrinhamento

especiacutefico

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Desejava adotar

11 Apadrinhamento

especiacutefico

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Sem condiccedilotildees no

momento familiar

12 Apadrinhamento

especiacutefico

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Tinha receios

Portanto percebemos que das doze famiacutelias iniciais mais de 65 (oito) desistiu por

motivos diversos durante as formaccedilotildees ou no iniacutecio da convivecircncia O que mais chama a

atenccedilatildeo eacute o fato de 25 do grupo inicial (trecircs famiacutelias dentre as doze iniciais) ter desistido por

motivos que indicavam natildeo terem seus projetos familiares concluiacutedos - como o iniacutecio de uma

gravidez ou a decisatildeo por adotar Esse dado se destaca porque pode indicar como nossa

sociedade enxerga essas crianccedilas e adolescentes acolhidos e como se relaciona com eles como

aqueles com quem se pode assumir um compromisso e abandonaacute-lo sem grandes preocupaccedilotildees

119

O fato de algumas dessas famiacutelias desejarem adotar levanta a duacutevida sobre os motivos

que as levaram a procurar o apadrinhamento afetivo Apoiadas na dissertaccedilatildeo de mestrado de

Karollyne de Sousa (2011) que reflete sobre o processo de apadrinhamento observando que ele

envolve um ldquonarcisismo exacerbado como tentativa de recuperar a onipotecircncia perdida nos

primoacuterdios da existecircnciardquo (Sousa 2011 p 7) eacute possiacutevel questionar se esse interesse estaria

relacionado agrave intenccedilatildeo de utilizar o apadrinhamento como um teste drive uma experiecircncia de

convivecircncia com uma crianccedila ou adolescente acolhido sem o compromisso de filiaccedilatildeo sabendo

que assim que quisessem adotar teriam plenas condiccedilotildees legais para isso Se fosse esse o caso

seraacute que soacute desistiram do apadrinhamento pela nossa insistecircncia em explicitar o

comprometimento necessaacuterio para iniciar aquela relaccedilatildeo

Provavelmente nem os candidatos saberiam responder essas questotildees pois eacute comum a

situaccedilatildeo do acolhimento levantar sentimentos ambiacuteguos nos primeiros contatos Sendo assim

eacute importante que a capacitaccedilatildeo mobilize repetidas reflexotildees sobre as dimensotildees afetivas

envolvidas no apadrinhamento a fim de que os candidatos estejam seguros quanto ao desejo de

iniciar a relaccedilatildeo Portanto eacute fundamental contribuir na elucidaccedilatildeo do interesse dessas famiacutelias

em participar do Programa e eacute esperado que haja um nuacutemero de desistecircncias

Quanto agraves desistecircncias que chegaram a envolver alguns contatos com os adolescentes

(seja na aproximaccedilatildeo ou no iniacutecio da convivecircncia) eacute importante refletir sobre alguns pontos

Nina Costa e Maria Rossetti-Ferreira (2009) afirmam que ldquoa ameaccedila ou existecircncia de rupturas

afetivas anteriores parece criar enredamentos ou tramas que as pessoas em interaccedilatildeo reeditam

nas suas praacuteticas dialoacutegicas e discursivas coconstruindo no momento atual os problemas ou

uma visatildeo de desenvolvimento inadequado para essas crianccedilasrdquo (Costa amp Rossetti-Ferreira

2009 p 116) Na mesma direccedilatildeo Bruna Wendt Luana Dullius e Deacutebora DellAglio (2017)

realizaram uma pesquisa quantitativa sobre as imagens sociais atribuiacutedas aos jovens em

acolhimento institucional Atraveacutes da aplicaccedilatildeo de questionaacuterio fechado em 224 pessoas de 18

a 71 anos que tinham ou natildeo contato com acolhidos as autoras observaram que as

caracteriacutesticas negativas foram mais associadas aos jovens em acolhimento institucional

(Wendt Dellius amp DellrsquoAglio 2017 p 529) em comparaccedilatildeo com os jovens cuidados por suas

famiacutelias Essas informaccedilotildees demonstram obstaacuteculos que permeiam o processo de

apadrinhamento afetivo de adolescentes com perspectiva de longa permanecircncia na instituiccedilatildeo

como era o caso dos que participaram dessa ediccedilatildeo do Programa

Outro fator que pode ter contribuiacutedo para o alto nuacutemero de desistecircncias eacute o fato de haver

ldquosemelhanccedilas do processo de apadrinhamento com o processo de adoccedilatildeo no que diz respeito agrave

120

busca do filho ideal que se estende agrave procura do padrinho ideal e do afilhado idealrdquo (Sousa amp

Paravidini 2011 p537) Ou seja haacute afilhados que apresentam comportamentos que aos olhos

dos padrinhos satildeo vistos como inadequados (comportamentos agressivos ou desafiadores)

mas tambeacutem eacute possiacutevel observar idealizaccedilotildees e baixa toleracircncia por parte de alguns padrinhos

A partir dessa primeira experiecircncia uma liccedilatildeo importante que levamos para a segunda

ediccedilatildeo do Programa foi a realizaccedilatildeo de encontros luacutedicos com menos acolhidos que candidatos

a padrinhos preferindo formar uma lista de espera dos adultos e natildeo das crianccedilas e adolescentes

Outra modificaccedilatildeo baseada nessa experiecircncia relatada foi a realizaccedilatildeo de dois encontros

luacutedicos na segunda ediccedilatildeo que foi iniciada em 2018 Na segunda ediccedilatildeo fizemos o primeiro

encontro luacutedico totalmente livre como em 2017 mas entatildeo a partir das afinidades nele

observadas aliadas aos perfis dos acolhidos e dos candidatos realizamos um segundo encontro

luacutedico em que indicamos aos adultos que se aproximassem mais de duas crianccedilasadolescentes

que avaliaacutevamos como combinaccedilotildees possiacuteveis Eacute importante indicar que essa segunda ediccedilatildeo

contou com a consultoria do Instituto Fazendo Histoacuteria sendo que muitas das alteraccedilotildees foram

resultantes da nossa experiecircncia combinada com as propostas daquela equipe

Tambeacutem ampliamos o acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas nessa e na segunda

ediccedilatildeo Incluiacutemos encontros coletivos entre os afilhados aleacutem de manter os atendimentos

individuais e os encontros dos padrinhos com a Comissatildeo passaram a ter frequecircncia mensal

Como resultados imediatos observamos uma diminuiccedilatildeo do percentual de desistecircncias de

candidatos durante a capacitaccedilatildeo e eles relataram seguranccedila e satisfaccedilatildeo com o processo de

formaccedilatildeo das duplas de padrinhos-afilhados por terem tido dois encontros luacutedicos As

mudanccedilas no acompanhamento apoacutes iniacutecio da convivecircncia ainda estatildeo sendo avaliadas mas a

maior parte dos padrinhos tem frequentado os encontros e aproveitado esse espaccedilo de trocas de

experiecircncias Por fim planejamos continuar realizando ediccedilotildees anuais do Programa no

municiacutepio com o intuito de ter padrinhos para todos os acolhidos que possam se beneficiar

dessa relaccedilatildeo

Consideraccedilotildees finais

Notamos que apesar de haver alguns estudos relativos agraves motivaccedilotildees que levam pessoas

a apadrinhar e reflexotildees quanto aos sentimentos envolvidos nesse ato os estudos sobre efeitos

do apadrinhamento afetivo ainda estatildeo em passo inicial principalmente quanto agrave contribuiccedilatildeo

especiacutefica da Psicologia nesses processos Da mesma forma a efetividade dessa iniciativa na

121

garantia de convivecircncia familiar e na diminuiccedilatildeo dos impactos da institucionalizaccedilatildeo estaacute em

construccedilatildeo necessitando de mais estudos sobre seus resultados

Contudo se faltam estudos que discutam as contribuiccedilotildees da Psicologia para esse

programa especiacutefico haacute uma ampla literatura que discorre sobre suas contribuiccedilotildees para as

poliacuteticas puacuteblicas em geral ou mais especificamente para a poliacutetica de Assistecircncia Social Para

isso partem de diferentes abordagens e posicionamentos poliacuteticos bem como apresentam

argumentos distintos Apesar dessas diferenccedilas muitas(os) autoras(es) parecem concordar com

a afirmaccedilatildeo de que a entrada maciccedila da Psicologia no campo das poliacuteticas puacuteblicas trouxe agrave

tona a necessidade de repensar suas praacuteticas hegemocircnicas (Brigagatildeo Nascimento amp Spink

2011 Cordeiro 2018 Yamamoto 2007) Afinal nesse campo natildeo haacute a presenccedila do setting

tradicional as demandas satildeo outras as possibilidades de intervenccedilatildeo satildeo distintas No caso

especiacutefico da Assistecircncia Social a cliacutenica tradicional tatildeo enfatizada pelos cursos de graduaccedilatildeo

eacute inclusive proibida - documentos normativos do SUAS e referecircncias teacutecnicas do conselho de

classe afirmam claramente que usuaacuterias(os) que necessitam de atendimento cliacutenico devem ser

encaminhadas(os) para serviccedilos de sauacutede (Conselho Federal de Psicologia 2012 2013) Mas o

que fazem entatildeo as psicoacutelogas e psicoacutelogos que atuam nessa poliacutetica puacuteblica Ou melhor

como a Psicologia pode contribuir para sua implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo

Diversas(os) autoras(es) sustentam que nossa contribuiccedilatildeo reside sobretudo na nossa

capacidade de intervir em questotildees subjetivas eou intersubjetivas (Cordeiro 2019) Aleacutem

disso ressaltam a importacircncia da interface entre os fatores psicoloacutegicos e sociais nas situaccedilotildees

de risco e vulnerabilidade e destacam a necessidade de pensar a subjetividade sempre de forma

contextualizada (Cordeiro 2019 pp 170-171) Maria Luacutecia Afonso e colaboradoras(es)

(2012) chamam a nossa atenccedilatildeo para o fato de que fazer isso implica

criar condiccedilotildees sociais para o exerciacutecio da cidadania (promoccedilatildeo dos direitos socioassistenciais)

bem como favorecer as condiccedilotildees subjetivas para o seu exerciacutecio (circular informaccedilatildeo

fortalecer participaccedilatildeo desenvolver potencialidades facilitar processos decisoacuterios dentre

outros) Transformaccedilotildees sociais tecircm impacto sobre identidades sociais relaccedilotildees e valores

(Afonso et al 2012 p 197)

Nesse sentido garantir o exerciacutecio da cidadania de crianccedilas e adolescentes acolhidos

natildeo significa simplesmente oferecer um teto embaixo do qual eles podem dormir Mas criar

condiccedilotildees para que possam se desenvolver aprender ressignificar suas histoacuterias construir

novos viacutenculos afetar e ser afetado E eacute justamente nesse ponto que os programas de

apadrinhamento afetivo buscam intervir

No entanto cabe ressaltar que tal intervenccedilatildeo natildeo acontece sem contradiccedilotildees

122

Conforme exposto o apadrinhamento visa garantir o direito agrave convivecircncia familiar e

comunitaacuteria modificando o formato de relaccedilotildees que jaacute se formavam entre acolhidos e adultos

que natildeo trabalham na instituiccedilatildeo Entatildeo notamos que apesar de ser um direito e como tal deve

ser garantido pelo Estado o apadrinhamento afetivo depende da disponibilidade de voluntaacuterios

os quais geralmente satildeo motivados primeiramente por uma ideia de caridade

Eacute importante salientar que esse tipo de viacutenculo soacute pode se formar com pessoas que natildeo

tecircm sua relaccedilatildeo mediada por uma questatildeo trabalhista O padrinho natildeo poderia ser um

profissional contratado para estabelecer uma relaccedilatildeo diferenciada com o acolhido pois o

viacutenculo mais importante de um funcionaacuterio eacute com o trabalho natildeo com a crianccedilaadolescente

(Mariotto 2009) Assim vale lembrar que nossa Constituiccedilatildeo Federal se destaca por propor a

participaccedilatildeo social e convocar a populaccedilatildeo a tambeacutem se comprometer com a garantia de seus

direitos contribuindo ativamente para as poliacuteticas puacuteblicas Sendo assim o apadrinhamento

efetiva a participaccedilatildeo da sociedade na garantia de seus direitos de maneira solidaacuteria

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Anexos

Anexo 1 Caracteriacutesticas gerais do Programa Laccedilos

Tipo de Apadrinhamento exclusivo com pessoas fiacutesicas com o objetivo de formar viacutenculos

afetivos entre padrinhos e afilhados

Criteacuterios para apadrinhar

Residir em Osasco ou comprovar faacutecil acesso agrave cidade

Natildeo estar inscritos no Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo

Ter disponibilidade afetiva e de tempo

Manter encontros presenciais com o afilhado ao menos duas vezes por mecircs

Criteacuterios para ser apadrinhado

Ter mais de sete anos

O apadrinhamento afetivo deve ser parte do Plano Individual de Atendimento (PIA)

Estar acolhido haacute mais de oito meses ndash tempo acordado como miacutenimo necessaacuterio para a equipe

teacutecnica elaborar e avaliar o desenvolvimento do PIA

Ter previsatildeo de longa permanecircncia no SAICA

Manter poucas referecircncias afetivas ou todas serem institucionalizadas

Estar disposto a estabelecer novas relaccedilotildees

Anexo 2 Reuniotildees de Rede ndash com teacutecnicos dos SAICAs dos CREAS e da VIJ

Objetivos Resultados

1ordf Apresentar os marcos legais e os

resultados esperados do Programa

Maior conhecimento e disponibilidade para

participaccedilatildeo dos profissionais envolvidos

com o acolhimento em diferentes dimensotildees

2ordf Estabelecer os criteacuterios para os

acolhidos participarem do Programa

Criaccedilatildeo de consenso entre os profissionais

sobre as especificidades do programa

3ordf Decidir quais crianccedilas e adolescentes

participaratildeo daquela ediccedilatildeo

Anaacutelise da rede de relaccedilotildees de cada acolhido

e estabelecimento de prioridade de casos para

a participaccedilatildeo

4ordf Orientaccedilatildeo das equipes teacutecnicas dos

SAICAs sobre a preparaccedilatildeo de todos os

acolhidos para o programa e dos

participantes daquela ediccedilatildeo para o

encontro luacutedico

Estabelecimento de um roteiro com temas a

serem abordados em uma roda de conversa

com todos os acolhidos e um atendimento

individual com os participantes daquela

ediccedilatildeo

5ordf Elencar as impressotildees das crianccedilas e

adolescentes quanto aos candidatos a

Apresentaccedilatildeo dos relatos dos acolhidos sobre

o encontro luacutedico e seus candidatos

126

padrinhos a fim de combinaacute-las com as

impressotildees dos adultos e acertar os

proacuteximos passos da aproximaccedilatildeo com

as equipes teacutecnicas dos SAICAs

preferidos aleacutem do acordo de que as equipes

de cada SAICA realizariam visita domiciliar

confirmaccedilatildeo do interesse do acolhido

atendimentos individuais e os primeiros

encontros das duplas

6ordf Acompanhar o desenvolvimento da

aproximaccedilatildeo acordada na reuniatildeo

anterior

Apresentaccedilatildeo das visitas domiciliares dos

atendimentos aos padrinhos e das primeiras

saiacutedas com os acolhidos

Anexo 3 Preparaccedilatildeo das Crianccedilas e Adolescentes ndash realizadas em cada SAICA

Presentes Objetivos Resultados

Rodas de

Conversa

Todos os

acolhidos e

funcionaacuterios

de cada abrigo

Explicar etapas e

criteacuterios do Programa e

quais acolhidos

participariam daquela

ediccedilatildeo

Observaccedilatildeo da

compreensatildeo e

solidariedade entre os

acolhidos e capacitaccedilatildeo dos

demais funcionaacuterios do

SAICA

Atendimentos

individuais antes

do encontro

luacutedico

Apenas os

acolhidos

participantes

da ediccedilatildeo

Confirmar interesse na

criaccedilatildeo de uma nova

relaccedilatildeo

Promoccedilatildeo da implicaccedilatildeo

dos acolhidos em

participar pois passaram a

entender seu protagonismo

Encontro luacutedico Apenas os

acolhidos

participantes

da ediccedilatildeo

Promover a

aproximaccedilatildeo entre

candidatos e acolhidos

Alguns acolhidos

participaram das atividades

e outros natildeo

Atendimentos

individuais apoacutes

o encontro luacutedico

Apenas os

acolhidos

participantes

da ediccedilatildeo

Levantar como estava a

interaccedilatildeo com os

candidatos e a

aproximaccedilatildeo

Levantamento de dados

importantes para avaliar a

continuidade das

aproximaccedilotildees

Anexo 4 Encontros com candidatos a madrinhas e padrinhos

Objetivos Resultados

1ordm Apresentaccedilatildeo dos candidatos e de

seus interesses em participar

Iniacutecio da formaccedilatildeo do grupo

2ordm Diferenciar orfanatos de SAICAs e

refletir sobre conceitos associados

aos acolhidos

Promoccedilatildeo de reflexotildees sobre a realidade dos

acolhimentos com os quais teriam contato

3ordm Refletir sobre as referecircncias e

memoacuterias afetivas dos candidatos

Todos se referiram a familiares por isso discutimos

a possibilidade de estabelecer viacutenculos relevantes

com pessoas sem parentesco

4ordm Encontro luacutedico Todos os candidatos a padrinhos estavam bastante

participativos

5ordm Ouvir suas impressotildees sobre o

encontro luacutedico

Levantamento de informaccedilotildees para realizar a

combinaccedilatildeo das duplas de padrinhos e afilhados

6ordm Acompanhar os primeiros

encontros sozinhos com os

afilhados e as expectativas

Encerramento da capacitaccedilatildeo e observaccedilatildeo de que

todos estavam animados com o iniacutecio da

convivecircncia

127

Anexo 5 Acompanhamento

Com afilhados Atendimentos individuais com as equipes de cada SAICA e encontros

coletivos dos afilhados

Com padrinhos Contatos semanais dos teacutecnicos dos SAICAs com os padrinhos e encontros

bimestrais dos padrinhos com a Comissatildeo do Programa

128

Capiacutetulo 7

A concepccedilatildeo desenvolvimentista de adolescecircncia e seus impasses para a

poliacutetica de Assistecircncia Social

Mariana Belluzzi Ferreira

Carolina Esmanhoto Bertol

Introduccedilatildeo

As poliacuteticas do campo da Assistecircncia Social foram instituiacutedas pela Constituiccedilatildeo Federal

(Brasil 1988) trazendo importantes mudanccedilas ao tomar como responsabilidade puacuteblica

necessidades ateacute entatildeo consideradas de acircmbito pessoal ou individual (Brasil 2013 Sposati

2009) Como poliacutetica puacuteblica a Assistecircncia Social ancora-se na prevalecircncia do interesse

puacuteblico possuindo caraacuteter contiacutenuo regular universal e obrigatoacuterio Regulamentada em 1993

por meio da Lei 8742 (Brasil 1993) ela passa a compreender as situaccedilotildees de desproteccedilatildeo

social como expressatildeo de uma questatildeo social ou seja produzida por determinantes histoacutericos

poliacuteticos e sociais que natildeo podem ser atribuiacutedos a um sujeito ou agraves particularidades de uma

determinada famiacutelia ou grupo Ao entender que uma poliacutetica puacuteblica trata de necessidades

sociais e coletivas ainda que essas se manifestem concretamente em situaccedilotildees e pessoas eacute

preciso que a gestatildeo ganhe competecircncia e conhecimento na atenccedilatildeo superaccedilatildeo e ateacute mesmo

prevenccedilatildeo dessas necessidades (Brasil 2013)

Destaca-se assim o fato de o Estado tambeacutem estar implicado em situaccedilotildees de

desproteccedilatildeo situando o sofrimento do sujeito e de sua famiacutelia nos contextos histoacuterico e poliacutetico-

social nos quais estatildeo inseridos e natildeo mais em si mesmos Assume-se que o Estado eacute

responsaacutevel pela proteccedilatildeo da famiacutelia e de seus membros pois dada a estruturaccedilatildeo social e

econocircmica do paiacutes em uma histoacuteria de escravidatildeo ele tambeacutem foi e eacute produtor de desigualdades

sociais e desproteccedilatildeo de muitas famiacutelias

Apesar das mudanccedilas descritas observamos contudo que a concepccedilatildeo da Assistecircncia

Social como poliacutetica puacuteblica centrada no princiacutepio do direito ainda eacute um modelo a ser

implantado um norte muito mais do que uma realidade jaacute efetuada (Sposati 2009) Estamos

diante do processo de institucionalizaccedilatildeo desta poliacutetica de seus princiacutepios e concepccedilotildees

129

fundantes e de suas seguranccedilas socioassistenciais1 resultante da tensatildeo entre dois discursos

antagocircnicos presentes neste campo (Ferreira 2015) Sposati (2009) acrescenta que avanccedilar na

institucionalizaccedilatildeo da Assistecircncia Social como poliacutetica puacuteblica consiste em efetuar um tracircnsito

do acircmbito individual para o social consistindo esse tracircnsito na ldquoraiz fundante da poliacutetica

puacuteblicardquo e exigindo o seu deslocamento do acircmbito assistencialista para o da compreensatildeo da

proteccedilatildeo e do direito

No caso de crianccedilas e adolescentes podemos compreender que o discurso que se

encontra instituiacutedo consiste no discurso assistencialista menorista que atribui agrave crianccedila e ao

adolescente os lugares de carecircncia anormalidade e perigo e agrave sua famiacutelia o lugar de ldquoincapazrdquo

Jaacute o discurso instituinte refere-se agrave compreensatildeo da proteccedilatildeo e do direito como necessidades

coletivas responsabilidades puacuteblicas e potecircncias relacionais No que diz respeito

especificamente ao campo dos direitos da infacircncia e juventude o Estatuto da Crianccedila do

Adolescente (ECA) (Brasil 1990) efetivou um tracircnsito do acircmbito individual para o social ao

prever o direito universal de Proteccedilatildeo Integral aplicado portanto a todas as crianccedilas e

adolescentes deixando assim de ser restrito como seraacute visto a seguir aos filhos das famiacutelias

pobres identificados anteriormente pelo Coacutedigo de Menores agrave categoria menor (Brasil 1979)

A contiacutenua institucionalizaccedilatildeo da poliacutetica de Assistecircncia Social exige o seu

deslocamento do discurso instituiacutedo para o discurso instituinte consistindo assim em desafio

presente no cotidiano de trabalho dos diversos serviccedilos e nas muacuteltiplas relaccedilotildees estabelecidas

entre trabalhadores crianccedilas adolescentes e familiares Essas relaccedilotildees satildeo construiacutedas de

acordo com os lugares atribuiacutedos no discurso institucional e no discurso social mais amplo agraves

famiacutelias e agraves crianccedilas e aos adolescentes

Assim nesse artigo procuramos problematizar como a execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

destinadas a garantir os direitos dos adolescentes eacute ainda um grande desafio no acircmbito da

Assistecircncia Social A despeito dos avanccedilos legais e poliacuteticos em nossa atuaccedilatildeo profissional e

de pesquisa fica evidente que as principais poliacuteticas para essa populaccedilatildeo ainda atribuem ao

adolescente os lugares de carente desviante ou perigoso como o antigo Coacutedigo de Menores o

fazia

Neste trabalho problematizaremos entatildeo como o discurso menorista insiste e

reatualiza-se muitas vezes na noccedilatildeo de proteccedilatildeo e de desenvolvimento que estaacute na base das

atuais poliacuteticas puacuteblicas dirigidas a essa populaccedilatildeo atravessando o cotidiano dos serviccedilos

1 A poliacutetica puacuteblica de Assistecircncia Social deve afianccedilar trecircs seguranccedilas sociais especiacuteficas de sobrevivecircncia (ou

de rendimento e autonomia) de acolhida e de convivecircncia (familiar e comunitaacuteria) (Brasil 2004)

130

socioassistenciais e ratificando praacuteticas de exclusatildeo Partiremos da discussatildeo de dois casos

institucionais ndash o desacolhimento institucional de adolescentes por maioridade e as medidas

socioeducativas em meio aberto ndash para apresentar os efeitos desse discurso e como dispositivos

coletivos de discussatildeo de caso podem operar novos efeitos As discussotildees apresentadas

baseiam-se em parte nas pesquisas de mestrado e doutorado realizados pelas autoras sob o

aporte da Psicanaacutelise Implicada (Rosa 2012) no Programa de Estudos Poacutes-Graduados em

Psicologia Social da PUC-SP

1 O lugar da crianccedila e do adolescente na Doutrina de Situaccedilatildeo Irregular

O seacuteculo XX foi caracterizado como um periacuteodo de grande presenccedila do Estado na

implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de atendimento agrave categoria dos entatildeo chamados

ldquomenoresrdquo Ele inicia-se com a instituiccedilatildeo do Coacutedigo de Menores de 1927 o qual sofreu

algumas alteraccedilotildees culminando no novo Coacutedigo de Menores de 1979 Esse periacuteodo que ficou

amplamente conhecido como tutelar buscava identificar crianccedilas que estivessem em risco

devido agrave falta de condiccedilotildees morais e materiais de suas famiacutelias e colocaacute-las sob a tutela do

Estado Os processos de reeducaccedilatildeo eram a diretriz das instituiccedilotildees que se ocupavam destas

crianccedilas nas quais investia-se na compreensatildeo dos comportamentos da infacircncia e suas causas

e da construccedilatildeo de teacutecnicas e intervenccedilotildees mais eficazes na prevenccedilatildeo e na mudanccedila de

comportamentos indesejaacuteveis (Donzelot 1980)

Como passaram a ser vistos com caracteriacutesticas e necessidades especiacuteficas agraves suas fases

da vida aqueles que apresentavam condutas antissociais foram diagnosticados como carentes

e desajustados em funccedilatildeo da ldquoausecircncia moral da falta de formaccedilatildeo de valores haacutebitos e atitudes

desejaacuteveis dentro do considerado padratildeo liberal bem como resultado da falta de afeto e amor

da famiacuteliardquo (Silva 2011 p 86) Juntamente com esta nova concepccedilatildeo se produziu a ideia de

que as famiacutelias pobres natildeo estavam aptas a educar e dar condiccedilotildees adequadas ao

desenvolvimento de seus filhos

Entretanto nesse periacuteodo natildeo se buscava levantar as condiccedilotildees sociais das famiacutelias para

avaliar suas necessidades e contribuir para sua promoccedilatildeo social mas apenas para julgaacute-las e

apontar falhas nas suas formas de vida Nesse sentido elas acabavam sendo culpabilizadas pela

sua situaccedilatildeo de precariedade social pela sua inadequaccedilatildeo a uma norma moral dominante Por

outro lado o Estado se desresponsabilizava pela produccedilatildeo das condiccedilotildees de pobreza na qual

essas famiacutelias viviam e assumia o controle de seus filhos atraveacutes da sua institucionalizaccedilatildeo

Como eram considerados incapazes as vontades e os interesses das crianccedilas e dos adolescentes

131

natildeo eram considerados Quem falava por eles eram os educadores e os trabalhadores sociais os

quais por serem especialistas conheciam mais dos adolescentes e de sua dinacircmica familiar do

que eles mesmos (Guirado 1986 Gadelha 1998)

Produzia-se uma relaccedilatildeo na qual as crianccedilas os adolescentes e suas famiacutelias ocupavam

o lugar de objetos de cuidados de higiene de exame de avaliaccedilatildeo e de diagnoacutesticos como

objeto a ser cuidado e controlado Ao analisar este periacuteodo autores como Silva (2011) Mendez

(2013) e Sposato (2011) ressaltam como ele contribuiu para uma judicializaccedilatildeo dos problemas

sociais e para a criminalizaccedilatildeo de crianccedilas e jovens pobres que tinham seus direitos violados

em nome da sua proteccedilatildeo As famiacutelias eram punidas duas vezes pois aleacutem de viverem em

situaccedilotildees sociais e materiais precaacuterias ainda eram criminalizadas e tinham suas crianccedilas

retiradas de seu conviacutevio Nesse periacuteodo milhares de crianccedilas foram institucionalizadas

arbitrariamente separadas de suas famiacutelias ou voluntariamente entregues por elas com o

objetivo de serem educadas e cuidadas em regime de internaccedilatildeo

2 O lugar da crianccedila e do adolescente na Doutrina de Proteccedilatildeo Integral

O processo de redemocratizaccedilatildeo do paiacutes no final do seacuteculo XX permitiu a discussatildeo

sobre a garantia de direitos incluindo os direitos das crianccedilas e dos adolescentes em

consonacircncia com o debate internacional sobre o tema O campo da proteccedilatildeo agrave infacircncia e agrave

adolescecircncia foi marcado particularmente nesse periacuteodo pelo questionamento das praacuteticas e

concepccedilotildees assistencialistas e institucionalizantes tendo como principal efeito a

descentralizaccedilatildeo de suas poliacuteticas e praacuteticas Foram herdeiros da redemocratizaccedilatildeo do paiacutes e de

forte mobilizaccedilatildeo social e poliacutetica a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o Estatuto da Crianccedila e do

Adolescente (ECA) em 1990 e a Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) em 1993

Entre as mudanccedilas que ocorreram nesse momento destacamos o reconhecimento de

crianccedilas e adolescentes como sujeito de direitos2 Segundo Rosemberg e Mariano (2010) nesse

2 Esses direitos estatildeo descritos nos artigos nordm 15 nordm 16 e nordm 17 do ECA (Brasil 1990) Art nordm 15 ndash A crianccedila e o

adolescente tecircm direito agrave liberdade ao respeito e agrave dignidade como pessoas humanas em processo de

desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis humanos e sociais garantidos na Constituiccedilatildeo e nas leis Art nordm

16 ndash O direito agrave liberdade compreende os seguintes aspectos I ndash ir vir e estar nos logradouros puacuteblicos e espaccedilos

comunitaacuterios ressalvadas as restriccedilotildees legais II ndash opiniatildeo e expressatildeo III ndash crenccedila e culto religioso IV ndash brincar

praticar esportes e divertir-se V ndash participar da vida familiar e comunitaacuteria sem discriminaccedilatildeo VI ndash participar da

vida poliacutetica na forma da lei VII ndash buscar refuacutegio auxiacutelio e orientaccedilatildeo Art nordm 17 ndash O direito ao respeito consiste

na inviolabilidade da integridade fiacutesica psiacutequica e moral da crianccedila e do adolescente abrangendo a preservaccedilatildeo

da imagem da identidade da autonomia dos valores ideias e crenccedilas dos espaccedilos e objetos pessoais (Brasil

1990)

132

processo eles passam a usufruir dos direitos garantidos pela Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos

Humanos entre eles o direito a participaccedilatildeo expressatildeo e liberdade ndash sendo dever da famiacutelia da

sociedade civil e do Estado assegurar com absoluta prioridade esses direitos uma vez que

crianccedilas e adolescentes natildeo possuem plena autonomia sendo considerados sujeitos em

desenvolvimento Em um cenaacuterio no qual eles eram punidos arbitrariamente com a privaccedilatildeo de

sua liberdade em nome de sua proteccedilatildeo essa mudanccedila foi fundamental para regular as

intervenccedilotildees do Estado junto a crianccedilas e adolescentes que deixam de ser objeto de tutela

controle e vigilacircncia do adulto para serem sujeitos com direitos a serem garantidos entre eles

a liberdade e a participaccedilatildeo social e poliacutetica

Nesse sentido as mudanccedilas natildeo satildeo somente teacutecnicas implicam em uma mudanccedila na

forma de o Estado perceber e se relacionar com as crianccedilas e os adolescentes (Mendez 2008

2013) Apesar da centralidade do cuidado e da educaccedilatildeo ser da famiacutelia se reconhece o dever

do Estado de dar condiccedilotildees para que esta cumpra sua funccedilatildeo de proteccedilatildeo por meio de suas

poliacuteticas sociais promovendo a diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais e priorizando crianccedilas e

adolescentes

Estas mudanccedilas trouxeram novos impasses para as relaccedilotildees de poder intergeracionais

pois ao mesmo tempo que o paradigma da Proteccedilatildeo Integral implica o direito agrave liberdade e agrave

participaccedilatildeo eles natildeo possuem autonomia plena devendo receber proteccedilatildeo especial Nesse

sentido Rosemberg e Mariano (2010) discutem as tensotildees que emergiram entre duas

perspectivas no campo dos direitos das crianccedilas e adolescentes as que priorizam os direitos

individuais ndash entre eles o direito agrave liberdade e agrave participaccedilatildeo ndash conhecidas como correntes

liberacionista e as que priorizam a proteccedilatildeo especial conhecidas como protecionistas

Enquanto na primeira perspectiva haacute um princiacutepio de igualdade que sustenta as relaccedilotildees entre

os sujeitos na segunda sustenta-se a ideia de que as crianccedilas satildeo dependentes daqueles que tecircm

o poder sobre suas vidas Trata-se de uma dialeacutetica entre o direito agrave liberdade e os direitos de

proteccedilatildeo inerentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito em um pacto social democraacutetico A doutrina da

Proteccedilatildeo Integral coloca entatildeo novos impasses para o trabalho junto a crianccedilas e adolescentes

uma vez que se trata de respeitar seu direito de liberdade e de participaccedilatildeo e ao mesmo tempo

garantir sua proteccedilatildeo o que em muitas situaccedilotildees pode levar a direccedilotildees de trabalho antagocircnicas

3 O discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia

Compreendemos que muitas questotildees estatildeo envolvidas na dinacircmica

133

participaccedilatildeoproteccedilatildeo mas ressaltamos que entre elas encontra-se o fato de o discurso juriacutedico

sobre a infacircncia e adolescecircncia particularmente no Brasil estar articulado agrave noccedilatildeo de

desenvolvimento3 a partir da qual entende-se que ao longo da vida haacute uma aquisiccedilatildeo linear de

caracteriacutesticas e habilidades marcadas cronologicamente que culminam na maturidade moral

cognitiva e na autonomia Poreacutem estudos de autores como Ariegraves (1981) e Del Priore (2010)

ressaltam que a concepccedilatildeo da infacircncia e da adolescecircncia como etapas da vida consiste em uma

construccedilatildeo histoacuterica e social que no ocidente contemporacircneo ao hierarquizar as idades atribui-

se determinados lugares agrave crianccedila ao adolescente e ao adulto sendo esse uacuteltimo considerado o

aacutepice de um processo de desenvolvimento Trata-se natildeo somente da atribuiccedilatildeo de lugares

diversos a depender das diferentes caracteriacutesticas atribuiacutedas a cada etapa da vida mas de como

essas diferenccedilas satildeo tomadas para justificar uma desigualdade e atribuir uma suposta

inferioridade agrave crianccedila e ao adolescente em relaccedilatildeo ao adulto Nesse sentido os adultos satildeo

compreendidos como indiviacuteduos completos enquanto crianccedilas e adolescentes satildeo

compreendidos e tratados a partir das suas faltas e natildeo a partir das suas capacidades e

potencialidades

Observamos que ao atuar a partir de etapas do desenvolvimento predeterminadas o

discurso juriacutedico trabalha com o dever ser com a norma (Foucault 1988) parte de categorias

ideais sobre o dever ser crianccedila e adolescente consistindo em um discurso normativo e

operacionalizando-se a partir de um saber preacutevio sobre o sujeito adolescente compreendendo

como desviante aquele que escapa a essa norma ideal socialmente construiacuteda (Cerruti e Rosa

2008)

Segundo Jobim e Souza (2010) a perspectiva desenvolvimentista concebe a crianccedila e o

adolescente marcados predominantemente por uma matriz bioloacutegica-evolucionista A ideia de

um aprimoramento linear e contiacutenuo que culmina na maturidade adulta implica em conceber

a passagem da infacircncia agrave vida adulta como um processo padronizado e gradual de socializaccedilatildeo

vindo a transformar o discurso sobre o desenvolvimento na proacutepria natureza da crianccedila e do

adolescente

De acordo com a autora a perspectiva desenvolvimentista pretende-se assim universal

3 A condiccedilatildeo peculiar de desenvolvimento da crianccedila e do adolescente estaacute descrita nos artigos n 3 e n 6 do ECA

(Brasil 1990) Art No 3 - A crianccedila e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes agrave pessoa

humana assegurando-se-lhes por lei ou por outros meios todas as oportunidades e facilidades a fim de lhes

facultar o desenvolvimento fiacutesico mental moral espiritual e social em condiccedilotildees de liberdade e de dignidade

Art No 6 - Na interpretaccedilatildeo desta Lei levar-se-atildeo em conta os fins sociais e a que ela se dirige as exigecircncias do

bem comum os direitos e deveres individuais e coletivos e a condiccedilatildeo peculiar da crianccedila e do adolescente como

pessoas em desenvolvimento

134

desconsiderando os fatores culturais histoacutericos e sociopoliacuteticos que permitem em determinada

eacutepoca uma caracterizaccedilatildeo particular das diferentes fases da vida Esse discurso afirma a

homogeneidade negando a multiplicidade e a diferenccedila afirma uma adolescecircncia uacutenica e ideal

baseada em um modelo eurocecircntrico (Burman 2008) refutando a diversidade de experiecircncias

dos sujeitos as vaacuterias adolescecircncias possiacuteveis e por eles vivenciadas

Nessa leitura o adolescente eacute concebido em fase de desenvolvimento em busca de sua

independecircncia e de construccedilatildeo de uma identidade fixa Os ldquoproblemasrdquo ldquoinsucessosrdquo e

ldquodesviosrdquo enfrentados durante o processo de desenvolvimento satildeo compreendidos como

dificuldades vivenciadas pelo adolescente em sua constituiccedilatildeo ou ainda na sua capacidade no

estabelecimento de laccedilos com os outros sobretudo com os adultos e as instituiccedilotildees que esses

representam Nessa articulaccedilatildeo entre direito e desenvolvimento as crianccedilas e os adolescentes

que natildeo correspondem agraves normas e aos ideais previamente e universalmente determinados satildeo

entendidos como desviantes num processo de patologizaccedilatildeo eou criminalizaccedilatildeo de seus

comportamentos

Partilhamos com Ceciacutelia Coimbra e colaboradoras (2005) que o uso generalizado e

indiscriminado da concepccedilatildeo de adolescecircncia como uma fase universal e a-histoacuterica do

desenvolvimento humano incide sobretudo em discursos e praacuteticas oficiais Desta forma essa

concepccedilatildeo incide principalmente junto a adolescentes submetidos agraves instituiccedilotildees de proteccedilatildeo e

socioeducativas sendo necessaacuteria sua problematizaccedilatildeo sobretudo no contexto do sistema de

Justiccedila e das poliacuteticas puacuteblicas incluindo a de Assistecircncia Social

O discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia ao aliar-se a discursos meacutedico-psiquiaacutetricos

apresenta-se com uma roupagem de cientificidade conferindo-lhe assim maior difusatildeo no

campo social (Cerruti amp Rosa 2008) Essa ampla difusatildeo faz com que essa concepccedilatildeo

desenvolvimentista tambeacutem atravesse o sistema de proteccedilatildeo e os serviccedilos referenciados agraves

poliacuteticas puacuteblicas

Ressaltamos que a concepccedilatildeo desenvolvimentista ao individualizar os ldquoproblemasrdquo e

ldquodesviosrdquo vivenciados pelos adolescentes produz a contenccedilatildeo e o velamento dos conflitos

institucionais e poliacutetico-sociais que subjazem e forjam essas ldquodificuldadesrdquo Notamos assim que

essa concepccedilatildeo se baseia na dicotomia indiviacuteduo-sociedade vindo a produzir a falsa ilusatildeo de

autonomia (Rosa amp Vicentin 2012) Essa noccedilatildeo de autonomia em sua acepccedilatildeo individual e

liberal concebe o sujeito adolescente como independente dos laccedilos com seus semelhantes e o

campo social em que se inscreve opondo-se agrave concepccedilatildeo de autonomia prevista pela poliacutetica

135

de Assistecircncia Social4

Em nossa atuaccedilatildeo propomos entatildeo uma compreensatildeo de sujeito que manteacutem o lugar das

questotildees soacutecio-poliacuteticas no cerne dos processos de subjetivaccedilatildeo contrapondo-se a leituras que

individualizam o sofrimento e responsabilizam exclusivamente o sujeito por ele Assim sob o

aporte da psicanaacutelise salientamos que a constituiccedilatildeo subjetiva longe de ser fruto de um

processo intrapsiacutequico ou predeterminado biologicamente se daacute necessariamente na relaccedilatildeo do

sujeito com seus semelhantes e com o campo social em que se inscreve (Rosa 2012)

Nesta abordagem e em consonacircncia com as diretrizes da poliacutetica puacuteblica de Assistecircncia

Social o sujeito natildeo eacute concebido como unidade isolada e independente mas sim constituiacutedo na

relaccedilatildeo com seus semelhantes e o campo social Este seraacute representado ao longo da vida do

sujeito por diferentes atores No contexto dos serviccedilos socioassistenciais em particular tais

representantes seratildeo os familiares professores profissionais dos serviccedilos socioassistenciais e

intersetoriais operadores do Direito conselheiros tutelares dentre outros Esses representantes

do campo social estatildeo incluiacutedos em uma rede discursiva e libidinal enunciando diversas

narrativas e mensagens que atribuem ao sujeito lugares e posiccedilotildees sociais diferentes (Rosa

2004)

Vejamos entatildeo os efeitos que o trabalho a partir de concepccedilotildees desenvolvimentistas

podem produzir no laccedilo com os adolescentes e como a desconstruccedilatildeo e problematizaccedilatildeo destas

produz efeitos nas praacuteticas profissionais no sentido de contribuir para a consolidaccedilatildeo dos

direitos dos adolescentes Partiremos da discussatildeo de dois casos institucionais os adolescentes

em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto e aqueles em vias de

desacolhimento institucional por maioridade

4 A Pesquisa-intervenccedilatildeo e a construccedilatildeo de um saber coletivo

Frente ao processo de individualizaccedilatildeo e despolitizaccedilatildeo das desproteccedilotildees e violaccedilotildees de

direitos agraves quais os adolescentes estatildeo submetidos seja por fragilidade e ruptura de laccedilos

familiares e comunitaacuterios ou como efeitos de segregaccedilatildeo e isolamento que a atuaccedilatildeo baseada

em concepccedilotildees desenvolvimentistas e individualizantes produzem no cotidiano dos serviccedilos

socioassistenciais propomos em nossas pesquisas a discussatildeo coletiva de casos como forma

4 A poliacutetica socioassistencial introduz uma concepccedilatildeo de autonomia oriunda da Sauacutede Coletiva que consiste em

uma coconstruccedilatildeo (Torres amp Gouveia 2013) Esta concepccedilatildeo inclui um conjunto de fatores como o sujeito sua

histoacuteria e sua rede de relaccedilotildees articulando assim esse conceito aos contextos institucional e poliacutetico-social nos

quais o sujeito estaacute inserido e que o constituem

136

de construir um endereccedilamento das questotildees e dificuldades manifestadas pelo adolescente para

o grupo de profissionais que atuam na proteccedilatildeo de seus direitos

Tratam-se de pesquisas que natildeo se caracterizam entatildeo por uma pesquisa psicanaliacutetica

cliacutenica stricto sensu mas por uma metodologia que se insere no que Rosa (2012) nomeia

psicanaacutelise implicada e que se propotildee estudar o sujeito enredado nos fenocircmenos sociais e

poliacuteticos dando visibilidade natildeo soacute ao adolescente mas tambeacutem aos discursos e natildeo ditos que

se articulam a seus atos e comportamentos concebidos frequentemente como problemas

desvios patologia e violecircncia

Trabalhamos assim com a noccedilatildeo de implicaccedilatildeo (Lourau 1993) que permite pocircr em

anaacutelise o lugar ocupado pelos diversos profissionais no campo sociopoliacutetico bem como aquele

ocupado pelo pesquisador A anaacutelise das implicaccedilotildees pressupotildee assim conceber que as praacuteticas

profissionais incluindo o proacuteprio processo de pesquisa natildeo possui caraacuteter objetivo baseada

numa suposta neutralidade do profissional (ou do pesquisador) mas inclui sua subjetividade

seu desejo O meacutetodo psicanaliacutetico de pesquisa supera assim a dicotomia pesquisador-

pesquisado compreendendo-os como construccedilotildees histoacutericas e natildeo como categorias

transcendentais refutando assim a noccedilatildeo de neutralidade cientiacutefica Observamos tambeacutem que

o meacutetodo de pesquisa psicanaliacutetico supera a dicotomia teoria-praacutetica uma vez que ldquovai do

fenocircmeno ao conceito e constroacutei uma metapsicologia natildeo isolada mas fruto da escuta

psicanaliacutetica que natildeo enfatiza ou prioriza a interpretaccedilatildeo a teoria por si soacute mas integra teoria

praacutetica e pesquisardquo (Rosa 2004 p 341) Ao desfazer essas dicotomias o meacutetodo psicanaliacutetico

revela seu caraacuteter de pesquisa-intervenccedilatildeo

Foi a partir destes pressupostos que nas pesquisas realizamos discussotildees coletivas de

caso Uma das pesquisas foi realizada com profissionais que atuam nos serviccedilos de medidas

socioeducativas em meio aberto e a outra com profissionais dos serviccedilos socioassistenciais e

intersetoriais que compotildeem a rede de um territoacuterio do municiacutepio de Satildeo Paulo

Ao discorrer sobre a construccedilatildeo de casos Viganoacute (2010) ressalta que a construccedilatildeo de

caso visa produzir um saber sobre o discurso e natildeo sobre o sujeito consistindo em construccedilatildeo

que se interroga sobre a posiccedilatildeo do sujeito no laccedilo social Nesse sentido o autor aponta que na

construccedilatildeo do caso existe um questionamento sobre qual a posiccedilatildeo do sujeito no laccedilo com o

Outro possibilitando uma interrogaccedilatildeo dos profissionais sobre o lugar e funccedilatildeo que ocupam

para o sujeito pois promove um corte no saber uma interrogaccedilatildeo das certezas e permite um

questionamento do lugar que eles ocupam no discurso no qual o sujeito estaacute enlaccedilado Eacute

possiacutevel pensar como o sujeito se posiciona no discurso que discurso eacute esse e como atuar de

137

forma a realizar uma rachadura um questionamento deste discurso permitindo ao sujeito a

formulaccedilatildeo de questotildees sobre sua posiccedilatildeo nesse laccedilo

Assim a discussatildeo coletiva de caso permite incidir nos discursos dos profissionais sobre

os adolescentes possibilitando trabalhar os afetos e as fantasias daqueles sobre estes incluindo

os determinantes institucionais e poliacutetico-sociais que subjazem os atos e comportamentos dos

adolescentes Esse dispositivo contribui assim para a problematizaccedilatildeo das relaccedilotildees construiacutedas

entre profissionais e adolescentes e entre estes e os serviccedilos socioassistenciais e os efeitos

subjetivos produzidos nestas relaccedilotildees procurando produzir mudanccedilas de posiccedilatildeo dos

profissionais e por conseguinte dos adolescentes

A construccedilatildeo de espaccedilos coletivos de discussatildeo de caso somente eacute possiacutevel em funccedilatildeo

do posicionamento eacutetico-poliacutetico dos profissionais participantes comprometidos com a oferta

de um outro lugar aos adolescentes que natildeo o de desvio patologia ou violecircncia

Comprometidos tambeacutem com a construccedilatildeo de estrateacutegias efetivas de intervenccedilatildeo junto a eles e

com a sustentaccedilatildeo de espaccedilos democraacuteticos de discussatildeo A sustentaccedilatildeo desse dispositivo natildeo

se daacute sem impasses e dificuldades implicando em uma estrutura complexa lugar de trocas de

relaccedilotildees e de discussotildees muitas vezes marcadas por divergecircncias e contradiccedilotildees Na medida

em que o grupo sustenta contudo as tensotildees suscitadas pelas discussotildees ele se mostra potente

na construccedilatildeo coletiva de um saber singular sobre o adolescente

5 Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto

As medidas socioeducativas satildeo poliacuteticas puacuteblicas destinadas a atender todos aqueles

adolescentes que cometeram um ato infracional ou seja um ato considerado antijuriacutedico e que

apoacutes terem passado por um processo legal com direito a defesa foram sentenciados com uma

das cinco medidas previstas pelo ECA obrigaccedilatildeo de reparar danos prestaccedilatildeo de serviccedilos a

comunidades liberdade assistida semiliberdade e internaccedilatildeo Estas medidas tecircm tanto uma

dimensatildeo punitiva como forma de exercer um controle social atraveacutes da sanccedilatildeo e que visa

responsabilizar o adolescente pela sua accedilatildeo e consequecircncias desta quanto uma dimensatildeo

pedagoacutegica e social uma vez que busca promover a integraccedilatildeo social dos adolescentes atraveacutes

da garantia de seus direitos (Brasil 1990)

Os profissionais que atuam na medida socioeducativa embasam seu trabalho tanto no

ECA (Brasil 1990) quanto no SINASE lei n 12594 (Brasil 2012) que orienta e estabelece

princiacutepios e paracircmetros nacionais para as medidas socioeducativas bem como as

138

responsabilidades dos profissionais e instituiccedilotildees envolvidas na sua execuccedilatildeo Com a

promulgaccedilatildeo desta uacuteltima lei a execuccedilatildeo das medidas socioeducativas em meio aberto passa a

ser efetivamente executadas pelos municiacutepios e fica vinculada tanto ao Sistema Nacional

Socioeducativo (SINASE) quanto ao Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS)

Os teacutecnicos socioeducativos que atuam nos serviccedilos tecircm como funccedilatildeo contribuir para o

acesso do adolescente aos seus direitos para o desenvolvimento de suas potencialidades e para

a introjeccedilatildeo ou a ressignificaccedilatildeo de valores que contribuam para sua integraccedilatildeo social criando

condiccedilotildees para a ruptura da praacutetica do ato infracional observando-se sempre a sua

responsabilizaccedilatildeo Para a realizaccedilatildeo desse trabalho destacam a importacircncia de duas aacutereas

fundamentais a educaccedilatildeo formal e a educaccedilatildeo para o trabalho sendo entatildeo uma poliacutetica que

necessita de articulaccedilatildeo com outras poliacuteticas puacuteblicas como as de sauacutede e de educaccedilatildeo para

efetivar o atendimento ao adolescente (Brasil 2012 2016 Prefeitura de Satildeo Paulo 2016)

O eixo de toda medida socioeducativa eacute o Plano Individual de Atendimento no qual

devem ser descritas todas as atividades a serem realizadas com e pelo adolescente durante a sua

medida bem como os objetivos das mesmas O adolescente deve participar ativamente da

elaboraccedilatildeo e da execuccedilatildeo das atividades a serem realizadas e portanto seus interesses desejos

e opiniotildees devem ser considerados no planejamento das accedilotildees a serem desenvolvidas por ele e

com ele durante a medida Assim direitos como a liberdade a participaccedilatildeo e o protagonismo

aparecem como diretrizes do trabalho socioeducativo (Brasil 2012 2016) Os teacutecnicos sociais

natildeo mais decidem o destino dos adolescentes mas o acompanham e produzem reflexotildees criacuteticas

sobre seus atos sobre seus direitos e portanto tambeacutem sobre sua posiccedilatildeo enquanto sujeito no

laccedilo social

Eacute na medida que conseguem experenciar o lugar de sujeito na relaccedilatildeo com os teacutecnicos

que os adolescentes podem reproduzir essa posiccedilatildeo em suas outras relaccedilotildees consolidando seu

lugar de sujeito e elaborando e enfrentando os conflitos que emergem com esse deslocamento

de posiccedilatildeo de objeto para a posiccedilatildeo de sujeito (Bertol 2019)

Eacute importante ressaltar que na praacutetica a execuccedilatildeo deste Plano Individual de Atendimento

natildeo eacute um processo tatildeo simples pois o adolescente deve conseguir conciliar as escolhas

baseadas em seus interesses aquelas que se mostram como exigecircncias do juiz para sancionar o

cumprimento de sua medida (como as medidas de proteccedilatildeo de escolarizaccedilatildeo e

profissionalizaccedilatildeo) bem como as oportunidades que lhes satildeo possiacuteveis dentro de sua trajetoacuteria

de vida e condiccedilotildees sociais

139

Assim ao nos aproximarmos do cotidiano dos serviccedilos de medidas socioeducativas em

meio aberto encontramos uma realidade de trabalho na qual os profissionais se deparavam com

diferentes impasses na construccedilatildeo e execuccedilatildeo deste Plano Era recorrente a queixa dos teacutecnicos

sobre uma natildeo adesatildeo dos adolescentes agrave medida ou seja de que estes natildeo cumpriam as metas

determinadas em seu Plano Individual de Atendimento (PIA) pois eles natildeo viam perspectiva

no estudo ou entatildeo porque eram ldquopreguiccedilososrdquo natildeo queriam estudar e nem trabalhar Os

profissionais tambeacutem apontavam que muitas vezes o juiz que aplicava a medida

socioeducativa jaacute determinava metas preacutevias que o adolescente deveria cumprir mas que na

visatildeo deles muitas vezes natildeo fazia sentido para a vida dos adolescentes e para operar uma

transformaccedilatildeo na mesma Os PIAs se transformavam entatildeo em um instrumento burocraacutetico no

qual nem a participaccedilatildeo e nem os interesses dos adolescentes eram contemplados E o natildeo

cumprimento destas demandas e de outras normas institucionais era compreendido como natildeo

aderecircncia agrave medida falta de responsabilidade do adolescente e portanto como um fracasso no

seu processo socioeducativo

Quando iniciamos o trabalho de pesquisa junto aos teacutecnicos sociais de um serviccedilo de

medidas socioeducativas em meio aberto da cidade de Satildeo Paulo eles optaram por discutir o

caso de um adolescente que segundo o seu teacutecnico de referecircncia tinha muito potencial mas natildeo

aderia a nenhum encaminhamento realizado pelos profissionais Jaacute estava sendo atendido haacute

dois anos e eles natildeo percebiam nenhuma mudanccedila Quando iniciamos as discussotildees os

teacutecnicos quase natildeo tinham o que dizer sobre o adolescente afirmando que todas as informaccedilotildees

necessaacuterias estavam em sua pasta Eles entendiam que todos os encaminhamentos realizados

tinham fracassado porque o adolescente era desinteressado e apresentava problemas que

excediam as capacidades de atuaccedilatildeo dos profissionais dentro do campo das medidas

socioeducativas O adolescente natildeo se vinculava aos teacutecnicos comparecendo agrave medida de forma

intermitente natildeo aderia ao Plano proposto mas tambeacutem natildeo descumpria o que era solicitado

Ao longo dos encontros para discussatildeo de seu caso a equipe foi se dando conta da

fragmentaccedilatildeo do trabalho realizado junto ao adolescente e de como sentiam-se hiper-

responsabilizados pelo que ocorria com ele Aleacutem disso havia uma percepccedilatildeo homogeneizada

dos adolescentes atendidos pois eles ldquoeram todos iguais com os mesmos problemasrdquo Na

percepccedilatildeo dos teacutecnicos os atos infracionais eram decorrentes das condiccedilotildees materiais e sociais

precaacuterias da falta de estrutura familiar e da apatia dos adolescentes Entretanto eles natildeo

reconheciam em seu trabalho a possibilidade de operar mudanccedilas nestas condiccedilotildees reduzindo

seu trabalho a incorporaccedilatildeo de limites pelo adolescente

140

Havia um saber sobre os comportamentos e as motivaccedilotildees para seus atos infracionais

que se antecipava ao adolescente que assim muitas vezes natildeo era escutado Assim

encaminhavam o adolescente para escola e oportunidades de trabalho poreacutem sem articular com

as singularidades da histoacuteria do adolescente pois natildeo conseguiam escutaacute-las

Esse cenaacuterio foi sendo modificado na medida em que com as discussotildees de caso os

profissionais puderam entrar mais em contato com a histoacuteria do adolescente no serviccedilo e

passaram a questionar o laccedilo que estabeleciam com ele sua dificuldade de escutaacute-lo pela

anguacutestia que o sofrimento contido em sua histoacuteria lhes causava e como isso afastava o

adolescente produzindo uma manutenccedilatildeo de sua desproteccedilatildeo e portanto uma natildeo garantia de

seus direitos

Em um dos encontros nos propusemos a pensar sobre o PIA do adolescente como ele

tinha sido elaborado e as possibilidades de execuccedilatildeo do mesmo Ao realizar uma apropriaccedilatildeo

coletiva das praacuteticas e um questionamento sobre seus processos de trabalho os teacutecnicos

puderam perceber como a ldquovozrdquo do adolescente natildeo aparecia nos registros e como tambeacutem ldquoa

vozrdquo deles muitas vezes natildeo era ouvida natildeo ldquointeressavardquo ao juiz Eles puderam sustentar a

partir de um trabalho de busca e construccedilatildeo de conhecimento compartilhado um

questionamento das accedilotildees realizadas pelos diversos teacutecnicos junto ao adolescente e tambeacutem

produzir interrogaccedilotildees sobre sua histoacuteria no serviccedilo Aos poucos novas informaccedilotildees foram

surgindo bem como recordaccedilotildees sobre aspectos singulares do adolescente que contribuiacuteram

para pensar novos encaminhamentos e accedilotildees em seu processo socioeducativo Com esta

discussatildeo de caso os profissionais repensaram seus processos de trabalho junto ao adolescente

o qual passou a estar mais presente na instituiccedilatildeo conseguiu retornar agrave escola e foi inserido em

um curso de cabeleireiro

6 O desacolhimento institucional por maioridade

Concebido frequentemente como uma sentenccedila juriacutedica ou como simples medida

administrativa ndash referente agrave oferta de vagas no serviccedilo de acolhimento ndash o desacolhimento por

maioridade tende a ser realizado abruptamente e de modo desarticulado dos recursos e

necessidades dos adolescentes natildeo consistindo portanto em um processo Neste cenaacuterio esse

desacolhimento produz como principais efeitos a perda de direitos baacutesicos dos adolescentes na

medida em que natildeo raras vezes permanecem impedidos de acessar as instituiccedilotildees que os

viabilizaram socialmente Os adolescentes permanecem assim frequentemente expostos a

141

situaccedilotildees de desproteccedilatildeo e violecircncia e em alguns casos inclusive de risco de vida Alguns

deles reingressam agraves vezes pouco tempo depois na Proteccedilatildeo Social Especial em funccedilatildeo de

situaccedilotildees de grave desproteccedilatildeo Observamos assim que neste contexto a violecircncia reincide de

modo silencioso contudo natildeo menos mortificante e desta vez perpetrada pelo Estado

(Ferreira 2017)

Apesar dos discursos hegemocircnicos sobre a importacircncia do direito agrave convivecircncia familiar

e comunitaacuteria e sobre a excepcionalidade e a provisoriedade da medida de acolhimento

institucional5 o desacolhimento por maioridade apresenta-se como destino para 338 dos

acolhidos (Assis amp Farias 2013) sendo a terceira causa mais comum de desligamento

Diante da insuficiecircncia de diretrizes concepccedilotildees e estrateacutegias da poliacutetica

socioassistencial que possam nortear os profissionais e tomados por sentimentos de forte

anguacutestia e impotecircncia estes tendem a silenciar os desafios presentes no desacolhimento por

maioridade e seus efeitos destacando-se a (re)produccedilatildeo de situaccedilotildees de desproteccedilatildeo e violecircncia

durante esse processo (Ferreira 2017)

Ali onde encontramos frequentemente silecircncio e anguacutestia procuramos ofertar aos

profissionais envolvidos um espaccedilo para a palavra a partir da constituiccedilatildeo de grupo de caraacuteter

intersetorial composto por profissionais da rede de um territoacuterio do municiacutepio de Satildeo Paulo6

Nos encontros inicias do grupo parte dos profissionais compartilharam certo

estranhamento com o proacuteprio dispositivo coletivo e o objetivo proposto Com exceccedilatildeo dos

profissionais dos SAICAs do poder judiciaacuterio e das Repuacuteblicas Jovens os demais mostravam-

se distantes da temaacutetica do desacolhimento por maioridade tendo dificuldade inclusive de

compreenderem os motivos que justificavam a discussatildeo desse tema em rede Parte dos

5 Art 92 - As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional deveratildeo adotar os

seguintes princiacutepios I- preservaccedilatildeo dos viacutenculos familiares e promoccedilatildeo da reintegraccedilatildeo familiar II- integraccedilatildeo

em famiacutelia substituta quando esgotados os recursos de manutenccedilatildeo na famiacutelia natural ou extensa III- atendimento

personalizado e em pequenos grupos IV- desenvolvimento de atividades em regime de coeducaccedilatildeo V- natildeo

desmembramento de grupos de irmatildeos VI- evitar sempre que possiacutevel a transferecircncia para outras entidades de

crianccedilas e adolescentes abrigados VII- participaccedilatildeo na vida da comunidade local VIII- preparaccedilatildeo gradativa para

o desligamento IX- participaccedilatildeo de pessoas da comunidade no processo educativo (Brasil 1990)

Art 101 - Verificada qualquer das hipoacuteteses previstas no art 98 a autoridade competente poderaacute determinar

dentre outras as seguintes medidas I- encaminhamento aos pais ou responsaacutevel mediante termo de

responsabilidade II- orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III- matriacutecula e frequecircncia obrigatoacuterias

em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV- inclusatildeo em serviccedilos e programas oficiais ou comunitaacuterios

de proteccedilatildeo apoio e promoccedilatildeo da famiacutelia da crianccedila e do adolescente V- requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico

psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI- inclusatildeo em programa oficial ou

comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII- acolhimento institucional VIII-

inclusatildeo em programa de acolhimento familiar IX- colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta (Brasil 1990) 6 Participou da coordenaccedilatildeo do grupo o pesquisador Gabriel Bartolomeu cujo mestrado defendido em 2017 no

Programa de Psicologia Cliacutenica da USP debruccedilou-se sobre o papel do psicanalista na poliacutetica puacuteblica de

Assistecircncia Social

142

profissionais dizia entatildeo que os adolescentes ao completarem a maioridade ldquoseguem sua vidardquo

ldquoacabam resolvendo a vida deles sozinhosrdquo (SAICA 10o Encontro)

As dificuldades presentes no desacolhimento por maioridade eram reduzidas a

caracteriacutesticas individuais dos adolescentes e mais particularmente a supostas falhas deacuteficits e

desvios deles Como apontam as noccedilotildees que circularam no grupo que compreendiam o

adolescente como ldquoimaturordquo ldquoacomodadordquo ldquofracassadordquo ldquofraacutegil psiacutequica ou subjetivamenterdquo

ldquonatildeo- resilienterdquo ldquopouco autocircnomordquo

Os desafios restringiam-se agrave possibilidade do adolescente ldquoaprender a fazer as coisas

sozinhordquo ldquoa manter-se sozinhordquo O grupo parecia considerar o adolescente a partir de um ideal

(ou suposto ideal) distanciando-se de sua singularidade O adolescente deveria assim ldquoestar

pronto aos 18 anosrdquo e o alcance da maioridade representava momento de suposta aquisiccedilatildeo da

ldquomaturidade adultardquo e da condiccedilatildeo de ldquoindiviacuteduordquo daquele que prescinde dos laccedilos com seus

semelhantes e o campo social Nesse momento inicial mostrava-se hegemocircnica a concepccedilatildeo

de adolescecircncia baseada na dicotomia indiviacuteduo e sociedade produzindo a crenccedila de que eacute

possiacutevel ao adolescente autoengendrar-se e criando a ilusatildeo de que ele pode prescindir do

investimento de seus semelhantes e do campo social no qual estaacute inserido

Foi entatildeo escolhido para discussatildeo em grupo e pelo proacuteprio grupo o caso Paulo7

adolescente que parecia pelo menos em um primeiro momento aproximar-se desse ideal de

adolescecircncia Ele completou a maioridade em dezembro de 2015 e foi desacolhido em marccedilo

de 2016 durante a realizaccedilatildeo do grupo Paulo permaneceu institucionalizado por 11 anos

Quando da escolha de seu caso para discussatildeo em grupo Paulo havia completado o

Ensino Meacutedio e diversos cursos profissionalizantes bem como participado de Programa Jovem

Aprendiz e efetivado na empresa A respeito do seu processo de desacolhimento e sobretudo a

partir de uma perspectiva material-financeira os profissionais diretamente envolvidos pareciam

acreditar que o seu desacolhimento ldquodaria muito certordquo Paulo contudo natildeo se reconhecia

nesse ideal de adolescecircncia que forja a maacutexima de que ele deve ldquoestar pronto aos 18 anosrdquo e

solicitava explicitamente acompanhamento das equipes profissionais

Pra me ajudar natildeo sei No maacuteximo me dando apoio no maacuteximo mesmo Como se tivesse

um ombro amigo vamos se dizer assim Esse eacute um apoio que eu vou precisar pra conseguir

colocar minha vida laacute fora pra tirar a minha vida que estaacute aqui no abrigo e conseguir colocar

ela laacute fora Esse seria o apoio que eu ia precisar

O adolescente parecia assim compreender que o desacolhimento requer a continuidade

7 Nome fictiacutecio de modo a preservar a identidade do adolescente participante

143

de um trabalho no territoacuterio na comunidade natildeo coincidindo com sua saiacuteda da instituiccedilatildeo e

natildeo se restringindo a um trabalho intramuros (do SAICA) Paulo parecia contudo solicitar algo

que natildeo consistia pelo menos formalmente em atribuiccedilatildeo dos serviccedilos representados no grupo

de modo que a discussatildeo sobre a continuidade de um trabalho no territoacuterio que implicava o

exerciacutecio de um trabalho articulado e em rede demandou significativas discussotildees em grupo e

representou em alguns momentos divergecircncias e conflitos entre os diversos serviccedilos E a

respeito deste processo de desacolhimento os profissionais mencionaram

O SAICA sempre ajuda esses adolescentes mas essa natildeo eacute responsabilidade do abrigo pois o

processo eacute arquivado na Vara da Infacircncia e Juventude Esses adolescentes acabam resolvendo

a vida deles sozinhos (SAICA Encontro 10)

Por exemplo se hoje tem o desacolhimento de uma adolescente fechadinho redondinho foi

desacolhido por maioridade e tudo e se de repente natildeo deu certo fugiu do roteiro natildeo eacute por

isso que soacute agora eu vou referenciar esse caso no NPJ Porque antes que tudo tava redondinho

natildeo precisava referenciar Existem casos assim tambeacutem (NPJ Entrevista)

Os serviccedilos pareceriam mostrar-se assim fechados em si mesmos fechados em sua

expertise naquilo que jaacute sabiam ou reconheciam saber fazer E o grupo viu-se diante de um

impasse ou os serviccedilos seguem fechados em sua expertise concebendo o desacolhimento por

maioridade como uma sentenccedila juriacutedica ou simples medida administrativa e a despeito das

desproteccedilotildees produzidas ou ao escutar e acolher o sofrimento de Paulo constroem um Projeto

para o adolescente que leve em consideraccedilatildeo a complexidade de sua condiccedilatildeo singular e em

detrimento do ideal de adolescecircncia almejado

A partir da escuta do adolescente e do reconhecimento de seu sofrimento o grupo

passou a ser considerando um dispositivo puacutebico e coletivo do territoacuterio e comprometido com

a construccedilatildeo de um Projeto de desacolhimento para Paulo Esse posicionamento permitiu ao

grupo tomar novos rumos ampliando e adensando as discussotildees coletivas Se notaacutevamos antes

a prevalecircncia do discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia as discussotildees em grupo contribuiacuteram

para que este avanccedilasse na compreensatildeo do desacolhimento por maioridade como demanda

referente a um determinado seguimento da populaccedilatildeo de adolescentes em detrimento de

compreendecirc-lo como expressatildeo do fracasso de casos individuais Esse processo de

desacolhimento passou a ser compreendido como demanda coletiva do territoacuterio (mas natildeo

restrita a esse) e portanto como responsabilidade do Estado e objeto de discussatildeo e intervenccedilatildeo

da poliacutetica puacuteblica

Como resultados da pesquisa-intervenccedilatildeo destacamos a realizaccedilatildeo de um trabalho

articulado e em rede a construccedilatildeo de discurso institucional que permitiu incluir esses

adolescentes na poliacutetica socioassistencial e a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de trabalho pactuadas

144

entre os serviccedilos socioassistenciais que permitiram operar o desacolhimento por maioridade de

modo articulado agrave condiccedilatildeo singular do adolescente

Consideraccedilotildees finais

Observamos em nossas praacuteticas profissionais e de pesquisa que a concepccedilatildeo

desenvolvimentista de adolescecircncia permanece largamente naturalizada nos discursos e praacuteticas

dos serviccedilos socioassistenciais em razatildeo sobretudo de sua ampla difusatildeo no campo social Esse

fenocircmeno natildeo eacute casual na medida em que permite circunscrever os conflitos e tensotildees

institucionais e sociopoliacuteticos ao sujeito adolescente individualizando-os (Matheus 2010) Em

detrimento do reconhecimento dessas tensotildees e conflitos estabelece-se uma relaccedilatildeo causal que

os justifica pelas transformaccedilotildees bioloacutegicas sofridas pelo adolescente esvaziando o debate

sobre os contextos institucionais histoacutericos e sociais que os produziram

Ao natildeo reconhecer estas tensotildees e conflitos sociais construiacutedos historicamente e

individualizar os problemas vividos pelos adolescentes os profissionais contribuem para a

desproteccedilatildeo e por vezes para a violaccedilatildeo dos direitos dos adolescentes na medida em que natildeo

basta o encaminhamento do adolescente a um serviccedilo pois antes eacute preciso construir a noccedilatildeo de

pertencimento para que ele possa se sentir no direito de usufruir dos direitos e bens que satildeo

produzidos socialmente e que possa se perceber tambeacutem contribuindo para essa produccedilatildeo

Dada a tradiccedilatildeo autoritaacuteria e tutelar do Paiacutes no campo da proteccedilatildeo da infacircncia e

juventude percebemos que muitas vezes eles satildeo subjugados como objetos de proteccedilatildeo e de

intervenccedilatildeo produzindo uma desqualificaccedilatildeo de sua fala e uma identificaccedilatildeo ao lugar de objeto

na relaccedilatildeo com o outro Portanto a garantia de direitos implica tambeacutem um trabalho junto aos

serviccedilos que asseguram direitos como educaccedilatildeo e sauacutede desconstruindo discursos que

objetificam patologizam e criminalizam os adolescentes

Como efeito essa concepccedilatildeo constitui-se como instrumento poliacutetico que permite aos

atores sociais a perpetuaccedilatildeo de uma sobreimplicaccedilatildeo definida em oposiccedilatildeo agrave anaacutelise de suas

implicaccedilotildees bem como a destituiccedilatildeo do discurso adolescente de sentido e valor restringindo

seus efeitos no campo social em que se inscreve Quando impossibilitados de realizarem a

anaacutelise de suas implicaccedilotildees os diversos atores da rede territorial tendem a tomar em anaacutelise um

uacutenico elemento um uacutenico objeto a saber o proacuteprio adolescente seus comportamentos e atos

frequentemente concebidos a partir da noccedilatildeo de indiviacuteduo que forja o discurso

desenvolvimentista sobre a adolescecircncia Outros elementos natildeo satildeo considerados de modo que

145

os saberes e as praacuteticas dos serviccedilos natildeo satildeo colocados em anaacutelise

Quando os atos e comportamentos dos adolescentes satildeo compreendidas

individualmente e portanto como responsabilidade exclusiva de cada adolescente produz-se

como efeito a cisatildeo e a fragmentaccedilatildeo da compreensatildeo sobre o trabalho realizado junto a ele e

sua famiacutelia Diante da impossibilidade de construir um saber sobre o adolescente considerando

sua singularidade em alguns casos atocircnitos os profissionais seguem testemunhas da

desarticulaccedilatildeo de seu proacuteprio trabalho junto a ele trabalho este realizado arduamente e agraves

vezes durante um longo periacuteodo

Diante da fragmentaccedilatildeo do trabalho das equipes profissionais propomos por meio de

nossas pesquisas-intervenccedilatildeo restituir a dimensatildeo de processualidade que permeia o trabalho

dos profissionais procurando pocircr em anaacutelise suas muacuteltiplas dimensotildees Para tanto faz-se

necessaacuteria a desconstruccedilatildeo dos discursos instituiacutedos sobre a adolescecircncia e sobre os

adolescentes procurando nos manter atentas agrave potecircncia instituinte e agraves forccedilas que impedem sua

emergecircncia Compreendemos que eacute neste embate entre os movimentos instituiacutedo e instituinte

que a construccedilatildeo do conhecimento em sua dimensatildeo coletiva se faz

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148

Capiacutetulo 8

Jovens da escola Nazareacute Flor experiecircncias de vida no assentamento

Maceioacute litoral do Cearaacute1

Denise Zakabi

Maria Luisa Sandoval Schmidt

Introduccedilatildeo

A Psicologia tem se debruccedilado nos uacuteltimos anos ao estudo das ruralidades no que se

denomina Psicologia Rural Diferentemente de outras aacutereas de conhecimento dentro das

Humanidades a Psicologia tem se dedicado mais fortemente agraves questotildees urbanas Apesar de

ser uma questatildeo pensada desde 1925 com a publicaccedilatildeo de James Williams nos Estados Unidos

de Our rural heritage The social psychology of rural development e em 1973 com a

publicaccedilatildeo de Erich Fromm e Michael Macooby no Meacutexico de Socioanaacutelisis del campesino

mexicano segundo Landini (2015) apenas nos anos 2000 essa questatildeo comeccedilou a ser mais

debatida em congressos e conjuntos de publicaccedilotildees Optou-se por utilizar neste trabalho o

termo Psicologia Rural por ser um termo comumente utilizado na Ameacuterica Latina Espera-se

que este trabalho possa contribuir para a construccedilatildeo deste campo de conhecimento

Segundo Weil (19492001) desde o seacuteculo XIV os camponeses sofrem mais que os

operaacuterios pois estes quando passavam feacuterias nos vilarejos contavam vantagens sobre a

superioridade de se viver na cidade

No seacuteculo XIV os camponeses eram de muito longe os mais desgraccedilados Mas mesmo quando

satildeo materialmente mais felizes - e quando eacute o caso eles natildeo se datildeo muito conta disso porque

os operaacuterios que vecircm passar no vilarejo alguns dias de feacuterias sucumbem agrave tentaccedilatildeo da

fanfarronice - estatildeo sempre atormentados pelo sentimento de que tudo acontece nas cidades e

que eles estatildeo out of it

Evidentemente esse estado de espiacuterito eacute agravado pela instalaccedilatildeo nos vilarejos de TSF

[Telefonia sem fio raacutedio - N T] de cinemas e pela circulaccedilatildeo de jornais como Confidences e

Marie Claire perto dos quais a cocaiacutena eacute um produto sem perigo

Sendo essa a situaccedilatildeo eacute preciso primeiro inventar e aplicar alguma coisa que decirc doravante aos

camponeses o sentimento de que estatildeo in it (Weil 19492001 p 75)

1 Este capiacutetulo eacute baseado na tese de doutorado intitulada ldquoJovens assentados histoacuterias de vida e projetos de futuro

em um assentamento no litoral do Cearaacuterdquo apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

na aacuterea Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano de autoria de Denise Zakabi orientada pela Profordf Drordf

Maria Luisa Sandoval Schmidt

149

Candido (1975) considerava que a urbanizaccedilatildeo do campo se processaria como um

ldquovasto traumatismo cultural e social em que a fome e a anomia continuaratildeo a rondar o seu

velho conhecidordquo (p 225) caso natildeo houvesse um planejamento racional como a reforma

agraacuteria de forma que possibilitasse ao caipira ter condiccedilotildees de se ajustar a novas instituiccedilotildees

que impotildeem valores teacutecnicas e padrotildees culturais urbanos Assim essa obra apesar de ter sido

publicada no ano de 1975 levanta uma questatildeo brasileira ainda atual e natildeo resolvida que tem

sido discutida e enfrentada pelos movimentos sociais principalmente pelo Movimento Sem-

Terra (MST) e que tem tido avanccedilos e recuos a depender das gestotildees governamentais mais ou

menos abertas ao diaacutelogo

Esta pesquisa visou contribuir com os conhecimentos sobre a Psicologia relacionada agraves

ruralidades a partir das experiecircncias de juventudes em um assentamento que seraacute detalhado

adiante na parte de meacutetodo deste capiacutetulo Buscou ainda fornecer subsiacutedios para se refletir

sobre poliacuteticas puacuteblicas para jovens do campo

A partir dos anos 2000 propulsionadas pela maior presenccedila de jovens dentro de

organizaccedilotildees poliacuteticas e culturais foram criadas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para juventude

principalmente entre 2005 e 2015 eacutepoca dos Governos Lula e Dilma segundo Castro (2016)

Essa mudanccedila de paradigma de poliacuteticas puacuteblicas possibilita a concepccedilatildeo de jovens agentes no

processo de construccedilatildeo participativa de poliacuteticas puacuteblicas e natildeo apenas passivos de um Estado

provedor Ao analisar os dez anos dos governos Lula e Dilma Castro (2016) destaca que o

marco legal foi o maior avanccedilo no entanto a institucionalidade e as accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas

natildeo se consolidaram como poliacuteticas de Estado A autora observa que pode haver uma

fragilizaccedilatildeo dessas iniciativas para a juventude pelo ldquogolpe parlamentar que interrompeu o

Governo Dilmardquo (Castro 2016 p 195) E aqui eacute possiacutevel acrescentar que os governos

seguintes Temer e Bolsonaro satildeo marcados por accedilotildees governamentais fascistas que ameaccedilam

criminalizar os movimentos sociais derrubar a democracia e impedir o exerciacutecio dos direitos

humanos

1 Relaccedilotildees de poder

Moradores e moradoras da comunidade estudada podem ser discriminados(as) pela

desvalorizaccedilatildeo que haacute na sociedade sobre quem tem um modo de vida ligado agraves ruralidades

Tambeacutem podem ser discriminados(as) por terem baixa renda pela cor de sua pele negra e por

150

natildeo se enquadrarem nos papeacuteis associados agraves relaccedilotildees de gecircnero Satildeo situaccedilotildees que remetem

ao processo de humilhaccedilatildeo social

O latim ensina que a palavra humilhar (humiliare) eacute formada pelo radical huacutemus e que quer

dizer terra solo humilhar eacute pocircr em terra pocircr para baixo Humilhado eacute quem estaacute no chatildeo

abaixo Soberbo superbus eacute quem estaacute acima brotou por cima fora da terra e por cima dos

outros (Gonccedilalves Filho 2005 p 32)

A humilhaccedilatildeo social eacute fenocircmeno que se caracteriza por sentimentos de anguacutestia que satildeo

sentidos subjetivamente desencadeados pelas relaccedilotildees intersubjetivas e por condiccedilotildees sociais

Relaciona-se com aspectos poliacuteticos sociais e relaccedilotildees de poder desiguais como raccedila etnia

condiccedilotildees sociais gecircnero orientaccedilatildeo sexual e o que eacute especialmente importante para este

estudo relaciona-se com a condiccedilatildeo deter um modo de vida rural ou urbano

Em psicanaacutelise o nome para afetos inominaacuteveis eacute sempre o mesmo anguacutestia o mais

desqualificado dos afetos moeda dos afetos traumaacuteticos O mais abstrato e o mais humano dos

afetos a anguacutestia ndash tal como Laplanche (1987) natildeo cansa de demonstrar ndash representa sempre a

ressonacircncia em noacutes mecaniacutesmica de um enigma intersubjetivo (Gonccedilalves Filho 1998a p 48)

A humilhaccedilatildeo social eacute um fenocircmeno sofrido por um grupo silenciado dentro dos

processos decisoacuterios coletivos impedido de sua accedilatildeo poliacutetica

Como maneira de lidar com situaccedilotildees cotidianas de humilhaccedilatildeo e a anguacutestia advinda

delas as pessoas podem se valer de formas taacuteticas Segundo Certeau (19902013) a taacutetica difere

da estrateacutegia a estrateacutegia eacute a accedilatildeo de quem tem domiacutenio social relaciona-se com as elites ou

usando o termo de Freire (1982) com o opressor representados natildeo por indiviacuteduos e sim por

grupos poliacuteticos e instituiccedilotildees

Chamo de estrateacutegia o caacutelculo (ou a manipulaccedilatildeo) das relaccedilotildees de forccedilas que se torna possiacutevel

a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa um exeacutercito uma

cidade uma instituiccedilatildeo cientiacutefica) pode ser isolado A estrateacutegia postula um lugar suscetiacutevel de

ser circunscrito como algo proacuteprio e ser a base de onde se podem gerir as relaccedilotildees com uma

exterioridade de alvos ou ameaccedilas (os clientes ou os concorrentes os inimigos o campo em

torno da cidade os objetivos e objetos da pesquisa etc) (Certeau 19902013 p 93 itaacutelicos do

original)

A taacutetica se relacionaria ao fraco ou usando novamente termo de Freire (1982) ao

oprimido

a accedilatildeo calculada que eacute determinada pela ausecircncia de um proacuteprio Entatildeo nenhuma delimitaccedilatildeo

de fora lhe fornece a condiccedilatildeo de autonomia A taacutetica natildeo tem por lugar senatildeo o do outro E por

isso deve jogar com o terreno que lhe eacute imposto tal como o organiza a lei de uma forccedila estranha

Aproveita as ldquoocasiotildeesrdquo e delas depende sem base para estocar benefiacutecios aumentar a

propriedade e prever saiacutedas O que ela ganha natildeo se conserva Em suma a taacutetica eacute a arte do

fraco (Certeau 19902013 pp 94-95)

Certeau (19902013) elaborou esses conceitos a partir do pressuposto de que as pessoas

natildeo recebem passivamente informaccedilotildees e experiecircncias sem apropriar-se delas de alguma

151

maneira possiacutevel para sua sobrevivecircncia e usufruto Sua equipe realizou estudos a partir dessa

compreensatildeo por exemplo com pessoas da cultura popular em Pernambuco as quais se

apropriaram da religiosidade trazida pelo branco europeu e veneravam Frei Damiatildeo um santo

a favor das pessoas locais e dos mais pobres Esse autor faz o mesmo questionamento sobre a

suposta passividade dos meios de comunicaccedilatildeo atuais por exemplo como os telespectadores

recebem os conteuacutedos passados pela televisatildeo

Apesar da anaacutelise de Certeau (19902013) remeter agrave relaccedilatildeo entre opressor e oprimido

analisada por Freire (1982) este uacuteltimo ampliando sua esfera considera que esta situaccedilatildeo

somente pode ser superada atraveacutes da libertaccedilatildeo do oprimido por meio de uma transformaccedilatildeo

social a qual passa por um processo de conscientizaccedilatildeo e se concretiza atraveacutes de uma accedilatildeo

Daiacute a necessidade que se impotildee de superar a situaccedilatildeo opressora Isto implica no reconhecimento

criacutetico na ldquorazatildeordquo desta situaccedilatildeo para que atraveacutes de uma accedilatildeo transformadora que incida socircbre

ela se instaure uma outra que possibilite aquela busca do ser mais (Freire 1982 p 35)

Pessoas que moram em contextos rurais podem agir taticamente diante do pouco

investimento de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para os(as) pequenos(as) produtores(as) e a

agricultura familiar em busca de frestas nas quais possam se beneficiar dentro de condiccedilotildees

que lhes sejam desfavoraacuteveis No caso particular do assentamento aqui estudado seus(suas)

moradores(as) podem agir taticamente diante de situaccedilotildees sobre as quais tecircm pouco ou nenhum

poder de decisatildeo e planejamento por exemplo as lutas travadas em torno da implantaccedilatildeo da

induacutestria eoacutelica a grilagem de terras a valorizaccedilatildeo da produccedilatildeo em massa o pouco

investimento de governos em relaccedilatildeo agrave infraestrutura local Da mesma maneira em conflitos

internos entre as proacuteprias pessoas do assentamento nos quais haja desigualdade de poder

grupos com menor poder podem agir taticamente e grupos com maior poder estrategicamente

a depender de como a relaccedilatildeo de poder se compotildee por exemplo mulheres em relaccedilatildeo a homens

jovens em relaccedilatildeo a adultos(as) funcionaacuterios(as) em relaccedilatildeo a diretores(as) da escola

diretores(as) da escola em relaccedilatildeo a membros da Secretaria de Educaccedilatildeo Assim como o

processo de humilhaccedilatildeo social eacute realizado por um grupo sobre outro sua forma de superaccedilatildeo

tambeacutem eacute coletiva e aqui se destaca o apoio de movimentos sociais cujas reivindicaccedilotildees

favorecem a conquista de poliacuteticas puacuteblicas para os(as) assentados(as) de maneira geral e para

este assentamento de maneira particular

2 Meacutetodo

152

21 Local de estudo

O assentamento Maceioacute localiza-se na planiacutecie litoracircnea oeste do Cearaacute em Itapipoca

a cerca de 60 quilocircmetros da sede central Sua populaccedilatildeo eacute estimada em mil famiacutelias Essas

comunidades trabalham com agricultura pecuaacuteria pesca e confecccedilatildeo de renda todos de base

familiar (Assentamento Maceioacute 2013) Este assentamento foi formado nos anos 80 quando a

terra foi registrada pelo Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (Incra)

Durante o periacuteodo em que se conviveu dentro do assentamento quando se conversava

com jovens e velhos(as) estes(as) falavam que moravam na terra haacute vaacuterias geraccedilotildees contaram

que se tornaram serviccedilais de uma famiacutelia que se dizia dona da terra por um processo de

grilagem devido agrave ingenuidade e agrave falta de acesso aos mecanismos da justiccedila Graccedilas agrave

mobilizaccedilatildeo engendrada de trabalhadores(as) locais com apoio das Comunidades Eclesiais de

Base (CEBs) conquistaram a posiccedilatildeo de assentados(as)

Atualmente os(as) moradores(as) da comunidade continuam ldquona lutardquo contra outros

grupos interessados em usufruir da terra por se tratar de uma comunidade litoracircnea haacute

interesses de grandes empreendedores(as) da agricultura voltada para monocultura como a

produccedilatildeo de camaratildeo e coco da induacutestria do turismo e da induacutestria eoacutelica Haacute divisatildeo entre

os(as) moradores(as) ldquoa favor da lutardquo para manter a terra para uso exclusivo de seus(suas)

moradores(as) locais e aqueles(as) que satildeo ldquocontra a lutardquo e defendem esses(as) grandes

empreendedores(as) pois consideram que trariam benefiacutecios por meio do desenvolvimento da

regiatildeo alguns(mas) inclusive jaacute trabalham para eles(as) em trabalhos subalternos Os(as)

moradores(as) ldquoa favor da lutardquo se mobilizam para impedir o avanccedilo desses(as) grandes

empreendedores(as) Nos anos 90 solicitaram auxiacutelio do MST o qual contribuiu para preservar

a aacuterea de praia para usufruto de seus(suas) moradores(as) atraveacutes da construccedilatildeo de um

acampamento As famiacutelias militantes se revezam para ocupar o acampamento Pela chegada do

MST ter sido tardia em relaccedilatildeo a sua longa histoacuteria de luta satildeo poucos(as) os(as) moradores(as)

que simpatizam ou militam no movimento diferentemente de outros assentamentos

conquistados atraveacutes da luta do proacuteprio MST Mesmo assim com a sua mobilizaccedilatildeo

conseguiram que fosse construiacuteda a escola de ensino meacutedio do campo com recursos federais

de maneira que a comunidade escolhesse o nome e o local em 2010 A escola manteacutem ateacute hoje

o apoio pedagoacutegico do MST

A partir de visitas iniciais a esse assentamento e observando a relaccedilatildeo dos(as) jovens

com os(as) mais velhos(as) a luta o contexto do turismo e do modo de vida rural campesino

e litoracircneo surgiram os seguintes questionamentos quais satildeo as histoacuterias de vida e os projetos

153

de futuro dos(as) jovens desse assentamento e de comunidades ao redor Qual eacute a sua relaccedilatildeo

com as instituiccedilotildees com destaque para a escola onde passam a maior parte do dia Como eacute a

ligaccedilatildeo dos(as) jovens com as lutas engendradas pela comunidade Para responder a essas

questotildees foi realizado um processo de observaccedilatildeo participante que seraacute descrito a seguir

22 Observaccedilatildeo participante

Schmidt (2008) considera o trabalho de campo ldquoum espaccedilo comum entre pesquisadores

e aqueles outros que se deseja conhecer espaccedilo em que uns e outros se tornam mutuamente

inteligiacuteveisrdquo (p 394)

Segundo Silva (2006) a partir dos anos 60 antropoacutelogos(as) passaram a questionar a

condiccedilatildeo de neutralidade do(a) pesquisador(a) e o contexto de pesquisa como a condiccedilatildeo de

classe gecircnero etnia e formas de inserccedilatildeo dos(as) antropoacutelogos(as) Esse movimento teve iniacutecio

quando os paiacuteses dos continentes mais estudados Aacutefrica e Aacutesia passaram a reivindicar

autonomia por meio de movimentos de independecircncia Para este estudo considera-se que essas

reflexotildees podem contribuir para inserccedilatildeo de psicoacutelogos(as) pesquisadores(as) em estudos com

inspiraccedilatildeo etnograacutefica

Realizou-se observaccedilatildeo participante de vivecircncias cotidianas comunitaacuterias e escolares

principalmente na Escola do Campo de Ensino Meacutedio local onde os(as) jovens passam a maior

parte do tempo Tambeacutem foram acompanhados alguns eventos da comunidade como reuniatildeo

no acampamento na cozinha coletiva evento de Paacutescoa Regata e farinhada A Regata eacute uma

corrida entre jangadas e a farinhada a feitura de feacutecula de mandioca chamada tambeacutem de

polvilho doce ou ldquogomardquo como eacute conhecida no Cearaacute Esse processo de observaccedilatildeo

participante durou cerca de quatro anos entre 2013 e 2016

No primeiro ano foram realizadas visitas esporaacutedicas cerca de cinco para escrever o

projeto que deu origem a esta pesquisa Nos dois anos seguintes foram realizadas visitas

semanais para conhecer a comunidade nas quais se passava dois dias por semana vivenciando

o cotidiano da escola e agrave noite convivendo com pessoas da comunidade Jaacute no uacuteltimo ano

foram realizadas outras visitas esporaacutedicas agraves escolas e se participou de alguns eventos

comunitaacuterios Foi mantido um diaacuterio de campo com relatos dessas essas vivecircncias e para

manter o sigilo sobre as falas usam-se aqui nomes fictiacutecios

23 Entrevistas

154

Foram realizadas entrevistas com jovens seis garotas e quatro garotos de diversas

comunidades do assentamento e ao redor da Escola de Ensino Meacutedio do campo Esses(as)

jovens eram estudantes ou funcionaacuterios(as) da escola com os quais se conviveu durante a

observaccedilatildeo participante Buscou-se atraveacutes dessas entrevistas conhecer a diversidade de

vivecircncias dentro do assentamento e em comunidades ao redor e aprofundar temas conversados

informalmente Seguiu-se um roteiro de entrevistas dividido em cinco etapas caracterizaccedilatildeo

dos entrevistados presente passado futuro e reflexotildees sobre melhorias para comunidade

Durante as entrevistas Schmidt (2008) considera fundamental o interesse e o ldquorespeito

genuiacutenos do pesquisador pelos sentidos e significados que seu interlocutor atribui aos

fenocircmenos estudados e da focalizaccedilatildeo do processo de pesquisa como produtor de

conhecimentordquo (p 394) Da convivecircncia entre o(a) entrevistado(a) e o(a) entrevistador(a) pode

surgir um sentimento de gratidatildeo do(a) ouvinte pelo que aprendeu e do(a) narrador(a) por ter

sua experiecircncia valorizada

As entrevistas duraram cerca de uma hora cada Quase todas as entrevistas foram

realizadas em salas na escola do campo exceto a de Hellen que foi realizada em Fortaleza

local onde morava no momento da entrevista

Segue abaixo um quadro (Quadro 1) com o perfil dos(as) jovens entrevistados(as)

Quadro 1 ndash Caracteriacutesticas dos jovens entrevistados

Nome Idade Sexo Ensino Meacutedio Religiatildeo Cor de pele

Beatriz 19 F Terminou Catoacutelica Negra

Francisco 20 M Terminou Catoacutelica Parda

Aldo 17 M Terceiro ano Catoacutelica Morena

Hellen 18 F Terceiro ano Catoacutelica Morena Clara

Loira 19 F Terceiro ano Catoacutelica Morena

Izabel 18 F Terceiro ano Evangeacutelica (Universal) Parda

BMJ 19 M Terminou Catoacutelica Negra

Davi 17 M Segundo ano Catoacutelica Morena

Tereza 16 F Segundo ano Testemunha de Jeovaacute Preta

Adriana 15 F Primeiro ano Catoacutelica Parda

Entre as caracteriacutesticas do Quadro 1 destacam-se Beatriz e BMJ ligado ao MST

uacutenicos(as) entrevistados(as) a se denominarem negros Beatriz corrigiu sua cor de pele na

155

segunda parte da entrevista o que justificou por ter participado de uma formaccedilatildeo na qual a

afirmaccedilatildeo da identidade negra era reforccedilada e as caracteriacutesticas ldquomorenardquo ou ldquopardardquo foram

criticadas

Beatriz Eu fui representar a escola do campo em um seminaacuterio de artes e cultura Aiacute uma mulher

que tava dando a oficina disse que eacute racismo chamar as pessoas de Morena porque a cor de pele

eacute negra natildeo existe uma cor morena A cor eacute negra Aiacute por isso eu sou negra (Trecho de entrevista

com Beatriz)

Esta mudanccedila de opiniatildeo demonstra a importacircncia de formaccedilotildees para construccedilatildeo e

fortalecimento da consciecircncia negra

Apesar de esta pesquisa ter passado por tracircmites burocraacuteticos relacionados ao Comitecirc

de Eacutetica em Pesquisa (Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade

de Satildeo Paulo ndash CAAE 36349614200005561) e terem sido apresentados termos de

assentimento e consentimento para jovens entrevistados(as) conversas informais se tornaram

mais interessantes tanto em termos de conteuacutedo para pesquisa como forma de deixar os(as)

colaboradores(as) mais agrave vontade para aleacutem de ldquoparticipar de uma pesquisardquo poderem se

expressar e se sentir acolhidos(as) em algum sofrimento o que faz problematizar os limites dos

instrumentos instituiacutedos pelos Comitecircs e questionar afinal o que eacute a Eacutetica em Pesquisa

3 Resultados e discussatildeo

Seratildeo apresentados a seguir os principais resultados desta pesquisa que podem

colaborar para a reflexatildeo sobre Psicologia e Poliacuteticas Puacuteblicas relacionadas agrave juventude aos

povos do campo e do litoral e particularmente aos(agraves) jovens assentados(as) A ecircnfase deste

capiacutetulo estaacute nas poliacuteticas relacionadas agrave educaccedilatildeo cultura e moradia que podem ser refletidas

a partir das vivecircncias dos(as) jovens na escola do campo mencionada

Essa escola do campo foi construiacuteda pelo governo estadual com recursos do governo

federal por reivindicaccedilatildeo da comunidade com apoio do MST em 2010 conforme mencionado

no meacutetodo deste capiacutetulo Os proacuteprios membros do assentamento escolheram seu nome Maria

Nazareacute de Souza em homenagem a uma militante da luta pela terra e por direitos sociais

Seus(suas) moradores(as) tiveram prioridade para nela trabalhar e ela se localiza dentro do

proacuteprio assentamento Maceioacute na comunidade Jacareacute distrito de Baleia O MST manteacutem a

coordenaccedilatildeo pedagoacutegica O faacutecil acesso agrave educaccedilatildeo formal eacute um diferencial em relaccedilatildeo a outros

assentamentos e eacute um fator de permanecircncia de jovens no campo Os(as) jovens assentados(as)

156

geralmente tecircm oportunidade apenas de cursar o fundamental pela dificuldade de acesso agraves

escolas de Ensino Meacutedio segundo Castro (2009)

A escola possui doze turmas sendo quatro de cada ano do ensino meacutedio Em 2018

contava com 476 estudantes 31 educadores(as) e 14 funcionaacuterios(as) Apresentava boa

estrutura fiacutesica sala de informaacutetica quadra coberta sala de viacutedeo de grecircmio com raacutedio

instrumentos musicais biblioteca laboratoacuterio de biologia e quiacutemica bem equipado com

microscoacutepios e outros materiais Haacute um espaccedilo de horta que denominaram de ldquomandalardquo em

volta de uma cisterna feita com aacutegua da chuva

A escola apresentava diferenciais em relaccedilatildeo agraves escolas tradicionais a abertura que tem

para discussotildees sobre problemas da atualidade disparadas por membros de Organizaccedilotildees Natildeo

Governamentais (ONGs) movimentos sociais e religiosos ou pelo proacuteprio corpo docente da

escola como por exemplo sobre a Copa do Mundo no Brasil e sobre a produccedilatildeo de energia

eoacutelica Aleacutem disso a escola do campo se diferencia da teacutecnica agriacutecola pela formaccedilatildeo dos(as)

educadores(as) engenheiros(as) agrocircnomos(as) que ministravam a disciplina de Organizaccedilatildeo

do Trabalho e Teacutecnicas Produtivas Nessa disciplina o ensino eacute biodinacircmico em que satildeo

ensinadas teacutecnicas de plantio sem o uso de agrotoacutexico com defensivos caseiros e naturais

atraveacutes do manejo da forma de plantar podar em harmonia com o periacuteodo da lua Durante as

entrevistas alguns(mas) jovens referiram ter levado para suas casas o conhecimento da escola

para seus familiares que trabalhavam na roccedila Havia jovens que eram considerados

ldquobagunceirosrdquo em todas as disciplinas exceto as de praacuteticas do campo quando eram

extremamente soliacutecitos Alguns(mas) estudantes relataram ser as aulas de que mais gostavam

Outro diferencial eacute o incentivo para que o(a) jovem conheccedila a histoacuteria da sua proacutepria

comunidade Foi mencionado nas entrevistas um trabalho solicitado pela escola aos(agraves) jovens

para que entrevistassem os(as) mais velhos(as) para conhecer o motivo do nome da comunidade

onde vivem

Aleacutem dessas singularidades que possibilitavam uma formaccedilatildeo criacutetica politizada e ligada

agrave agroecologia havia uma seacuterie de conflitos interpessoais aos quais se teve acesso durante o

processo de observaccedilatildeo participante

Os membros da escola gostariam que seu ensino fosse diferente daquele das escolas

tradicionais e de instituiccedilotildees capitalistas Havia por exemplo questionamento sobre a

instalaccedilatildeo de uma sirene para avisar sobre o horaacuterio pois remetia ao ritmo industrial alienante

Buscava-se um processo pedagoacutegico que promovesse a autonomia dos estudantes desejo

157

expresso por fotos e frases de Paulo Freire nas paredes da escola Foi possiacutevel o contato com

tensotildees entre autoridade e autoritarismo dentro das diversas instacircncias de poder principalmente

pela dificuldade em estabelecer processos democraacuteticos dentro da escola situaccedilatildeo que remetia

ao sistema capitalista no qual a escola estava inserida e demonstrava os limites da proacutepria

organizaccedilatildeo escolar

Os(as) funcionaacuterios(as) se ressentiam por terem sido membros da luta e atuarem em

funccedilotildees subalternas com menor poder de decisatildeo e menores salaacuterios refletindo a desigualdade

de classes da sociedade Havia em contraposiccedilatildeo uma valorizaccedilatildeo de quem tinha formaccedilatildeo

para ser educador(a) ou membro da coordenaccedilatildeo em sua maioria pessoas que natildeo eram da

comunidade Os(as) funcionaacuterios(as) dividiam-se entre mulheres que cozinhavam lavavam a

louccedila e organizavam o estoque de comida e homens que eram responsaacuteveis pela seguranccedila e

limpeza da escola Uma funcionaacuteria que atuava como porta-voz dos(as) funcionaacuterios(as) falou

que exerciam funccedilotildees subalternas por terem se dedicado mais agrave luta do que agrave proacutepria formaccedilatildeo

diferentemente de alguns membros da comunidade que puderam se tornar educadores(as)

Ouviu-se criacutetica de funcionaacuterios(as) e de educadores(as) quanto ao fato de os(as)

funcionaacuterios(as) soacute serem chamados(as) para debate para resolver problemas em relaccedilatildeo aos(agraves)

estudantes ou aos membros da comunidade Em um dia de observaccedilatildeo particularmente

conflituoso uma funcionaacuteria disse que uma das pesquisadoras autora deste estudo deveria apoacutes

a pesquisa permanecer na escola para reconstruiacute-la

Os(as) educadores(as) por outro lado reclamavam que o serviccedilo dos funcionaacuterios natildeo

era como o de outras escolas estes(as) natildeo serviam cafeacute para os(as) educadores(as) natildeo

limpavam sua sala natildeo cuidavam das hortas da escola

Os(as) funcionaacuterios(as) agem a partir de uma organizaccedilatildeo dos espaccedilos das atividades e

das possibilidades de participaccedilatildeo determinada por educadores(as) e direccedilatildeo Podem agir

taticamente no sentido de Certeau (19902013) como forma de recusa agrave subalternidade por

exemplo deixar de servir cafeacute e limpar as salas de educadores(as)

Membros da coordenaccedilatildeo por sua vez tinham dificuldade em exercer a lideranccedila sendo

chamados em alguns momentos de ldquoautoritaacuteriosrdquo ldquocom dificuldades de ouvirrdquo

Os(as) estudantes demonstravam insatisfaccedilatildeo de maneiras diversas atraveacutes de atos de

vandalismo ou de reivindicaccedilotildees verbais Alguns estudantes tinham o haacutebito de jogar restos de

alimentos ao longo dos bancos da quadra da escola aleacutem de deixar espalhados pratos canecas

e talheres o que exigia que os(as) funcionaacuterios(as) sempre limpassem o local

158

O(a) representante de classe foi descrito(a) por um dos estudantes entrevistados como

um vigiador de ldquobons comportamentosrdquo dentro de sala de aula e natildeo como um representante do

interesse dos estudantes Um ponto que chama a atenccedilatildeo eacute que os jovens considerados

ldquobagunceirosrdquo com quem se conversou tinham um discurso no qual se mostravam bastante

responsaacuteveis em relaccedilatildeo agrave famiacutelia aos projetos de futuro relacionados ao trabalho e uma visatildeo

politizada em relaccedilatildeo ao local e agrave comunidade onde moravam

Ocorreram dois fatos transgressores na escola os quais se destacam aqui O primeiro

aconteceu quando uma comissatildeo de estudantes foi entregar sua lista de demandas aos(agraves)

educadores(as) da escola

Nesse dia de reuniatildeo um educador apresentou uma pauta de reivindicaccedilotildees dos(as)

representantes dos(as) estudantes falando de maneira jocosa perguntavam por que natildeo podiam

acessar o Facebook e a internet e os(as) educadores(as) podiam fazer os dois por que natildeo

podiam ir de calccedila rasgada para escola qual a formaccedilatildeo de alguns educadores(as) citaram a de

Inglecircs que natildeo havia terminado a graduaccedilatildeo e o de Sociologia e Filosofia que era formado em

Geografia Reclamaram que alguns(mas) educadores(as) abordavam estudantes de forma

abusiva Por fim os estudantes reivindicavam participar da proacutexima reuniatildeo de educadores(as)

na semana seguinte (Trecho de diaacuterio de campo)

Nota-se nessas reivindicaccedilotildees o desejo dos(as) estudantes de terem os mesmos direitos

que os(as) educadores(as) por exemplo ao usar a internet e natildeo usar a chamada ldquofardardquo no

Cearaacute ou uniforme escolar em Satildeo Paulo Os(as) educadores(as) da escola tinham uma posiccedilatildeo

duacutebia em relaccedilatildeo a essas iniciativas ofereciam espaccedilo para esses questionamentos ao lerem

suas reivindicaccedilotildees ao mesmo tempo em que as reprimiam fazendo piadas e desvalorizando-

as talvez para natildeo se confrontar com o desconforto causado pelo questionamento de sua

autoridade e por terem de ouvir criacuteticas

O segundo fato transgressor observado foi o de trecircs jovens expulsos da escola por terem

explodido bombas dentro dela Para essa expulsatildeo houve uma reuniatildeo conjunta entre

funcionaacuterios(as) e educadores(as) Para um dos jovens particularmente a expulsatildeo da escola

foi uma decisatildeo difiacutecil para a direccedilatildeo por ter crescido ldquono meio da lutardquo entre assembleias

Descreve-se abaixo conversa com este jovem quando jaacute havia se mudado para a sede do

municiacutepio para dar continuidade aos estudos

Quando se lembrava da experiecircncia de ter explodido a bomba na escola seus olhos brilhavam

e um sorriso se abria em seus laacutebios dizia ser um sentimento de poder e prazer que tinha Mas

se mostrava arrependido pelo que havia acontecido principalmente pela consequecircncia que teve

em sua vida pois natildeo queria ter se afastado do assentamento tampouco ter saiacutedo da escola do

campo Passou a valorizar mais a vida no assentamento depois dessa experiecircncia achava a sede

do municiacutepio barulhenta e reclamava do grande fluxo de carros Considerava que na escola da

sede do municiacutepio faltava luta era voltada somente para o Enem Achava que a escola do campo

propiciava uma formaccedilatildeo que ia aleacutem do curriacuteculo O ato de soltar a bomba na escola dentro

dos banheiros tinha o objetivo de ldquobotar o terrorrdquo Natildeo imaginava que poderia ser expulso por

159

isso poreacutem acha que o lado bom foi ter se afastado dos outros estudantes que considerava

ldquobagunceirosrdquo com quem natildeo tinha mais contato Tinha planos de estudar Agronomia e voltar

agrave escola do campo como professor como tantas pessoas da comunidade almejavam que ele se

tornasse Continuava a frequentar o curso de Residecircncia Agraacuteria que havia iniciado pela escola

do campo cujas aulas ocorrem em vaacuterias escolas do campo do Cearaacute Depois tive oportunidade

de encontraacute-lo durante a Regata do assentamento Disse-me que morava novamente no

assentamento estava fazendo um curso de Agroecologia pela UFC com recursos do Incra

Poreacutem o Incra natildeo financiava mais o curso e estava quase fechando Planejava fazer faculdade

de Matemaacutetica (Trecho de diaacuterio de campo)

A leitura de Winnicott (19631983) pode ajudar a compreender o que aconteceu na

escola haacute uma comunicaccedilatildeo que apesar de barulhenta explosiva eacute silenciosa natildeo fala

diretamente e pode expressar a relaccedilatildeo entre estudantes e escola Assim como a bomba

explodida na escola a imagem metafoacuterica trazida pela funcionaacuteria como porta-voz - de a escola

destruiacuteda poder ser reconstruiacuteda por uma das autoras deste estudo considerada ldquoespecialistardquo -

eacute uma manifestaccedilatildeo que expressa insatisfaccedilotildees com a forma como se configuram as relaccedilotildees

dentro da escola pelas dificuldades para se efetivar como um espaccedilo democraacutetico refletindo a

violecircncia nas relaccedilotildees pelo silenciamento de alguns membros nos processos decisoacuterios

Apesar de o processo de eleiccedilatildeo na escola ser democraacutetico as relaccedilotildees entre membros

da coordenaccedilatildeo educadores(as) funcionaacuterios(as) e estudantes era hierarquizada e os papeacuteis

cristalizados e riacutegidos A desigualdade gerava conflitos pelo ressentimento em natildeo haver

horizontalidade nas relaccedilotildees e valorizaccedilatildeo das diversas opiniotildees A efetividade da construccedilatildeo

de espaccedilos democraacuteticos eacute difiacutecil onde cada um(a) possa ser ouvido(a) e respeitado(a) em

condiccedilotildees iguais de diaacutelogo resguardadas suas diferenccedilas A educaccedilatildeo como praacutetica

libertadora na qual haacute diaacutelogo entre educadores(as) e educandos(as) de maneira que ambos(as)

sejam ouvidos(as) e respeitados(as) em seus anseios e esperanccedilas eacute um desafio a ser superado

de uma tradiccedilatildeo opressora de educaccedilatildeo a qual Freire (1982) nomeou de ldquoeducaccedilatildeo bancaacuteriardquo

Enquanto na praacutetica ldquobancaacuteriardquo da educaccedilatildeo antidialoacutegica por essecircncia por isto natildeo

comunicativa o educador deposita no educando o conteuacutedo programaacutetico da educaccedilatildeo que ele

mesmo elabora ou elaboram para ele na praacutetica problematizadora dialoacutegica por excelecircncia ecircste

conteuacutedo que jamais eacute ldquodepositadordquo se organiza e se constitui na visatildeo do mundo dos

educandos em que se encontram seus ldquotemas geradoresrdquo (Freire 1982 p 120)

A dificuldade de construir espaccedilos democraacuteticos ocorre em outros grupos e instituiccedilotildees

da sociedade que buscam superar relaccedilotildees hieraacuterquicas e almejam a igualdade Eacute um horizonte

a ser buscado dentro de uma sociedade capitalista dividida em classes sociais Paul Singer

(2002) analisa grupos que realizam atividades de economia solidaacuteria o que soacute eacute possiacutevel

segundo o autor quando as relaccedilotildees natildeo satildeo competitivas O autor analisa as dificuldades

encontradas por esses grupos em se autogerirem e tomarem decisotildees coletivas de forma

cooperativa e democraacutetica por exemplo o esforccedilo adicional dos trabalhadores em se preocupar

160

com as proacuteprias tarefas e os problemas gerais da empresa envolver-se em conflitos participar

de reuniotildees cansativas o que pode levar os soacutecios a preferirem dar um voto de confianccedila agrave

direccedilatildeo para que decida em lugar deles Ainda segundo o autor essa dificuldade pode estar

associada agrave insuficiente formaccedilatildeo democraacutetica dos soacutecios desde a infacircncia e ele cita como

exemplos a famiacutelia patriarcal e a escola Por fim o mesmo autor considera que entre as

empresas solidaacuterias a autogestatildeo se pratica mais autenticamente quando seus(uas) soacutecios(as)

se envolvem em lutas emancipatoacuterias e satildeo militantes sindicais poliacuteticos(as) e religiosos(as)

Castro (2009) menciona a dificuldade de adultos valorizarem as opiniotildees dos(as) jovens

em espaccedilos de decisatildeo em outros assentamentos e eventos sobre juventudes rurais A autora

associa essa desvalorizaccedilatildeo das opiniotildees dos(as) jovens mesmo jovens lideranccedilas reconhecidas

nacionalmente agrave reproduccedilatildeo da hierarquia presente nas relaccedilotildees familiares dentro dos espaccedilos

de decisatildeo e agrave falta de confianccedila nos(as) jovens rurais por sua associaccedilatildeo ao desinteresse pelo

meio rural e agrave atraccedilatildeo pela cidade

Observou-se em momentos decisoacuterios nos quais havia jovens presentes como em

assembleias no acampamento da praia e durante a farinhada no silecircncio destes(as) Os(as)

jovens ficavam apenas observando como se ficarem calados(as) fosse sua forma de respeitar

os(as) adultos que falavam Foi uma diferenccedila apenas geracional observada natildeo relativa ao

gecircnero porque havia participaccedilatildeo tanto de homens como de mulheres lideranccedilas locais

diferente do que foi observado em outros assentamentos do Sertatildeo Cearense nos quais a

predominacircncia da participaccedilatildeo era masculina (Pereira Cavalcante amp Oliveira 2014)

Os(as) jovens deste estudo natildeo participam de formas mais tradicionais de luta das quais

os mais velhos participam e se ressentem da pouca participaccedilatildeo dos(as) jovens como as

assembleias realizadas no acampamento e em outros espaccedilos comunitaacuterios mas satildeo

mobilizados(as) e mobilizadores(as) pelo teatro construiacutedo juntamente com membros de uma

congregaccedilatildeo religiosa catoacutelica e pelos atos puacuteblicos como as audiecircncias nessas uacuteltimas

principalmente quando mobilizados(as) pela escola do campo Aleacutem disso outro espaccedilo de

mobilizaccedilatildeo que pode ter discussotildees poliacuteticas referentes a problemas comunitaacuterios eacute o grupo

de jovens das igrejas

Destacam-se na fala mencionada do jovem expulso da escola e na de outras e outros

jovens com quem se teve oportunidade de conversar os diferenciais mencionados desta escola

a oportunidade para um ensino refletido com ldquolutardquo e poliacutetica de forma que os(as) jovens e

seus(suas) funcionaacuterios(as) problematizem a sociedade e a proacutepria metodologia da escola

161

Contraposta a relaccedilotildees mercantilizadas encontram-se relaccedilotildees de amizade trocas

muacutetuas por generosidade e hospitalidade as quais satildeo necessaacuterias para sobrevivecircncia do grupo

Comumente moradores(as) do assentamento falavam que laacute era um local em que jamais faltaria

comida e hospedagem do que sentiam muito orgulho contrastado ao que observavam nas

grandes cidades em que essa camaradagem natildeo acontecia

O que eacute associado ao campo pode ser valorizado ou desvalorizado de acordo com os

encontros com pessoas que podem potencializar ou despotencializar esse reconhecimento

Em uma das visitas agrave escola estudantes e educadores(as) se preparavam para Mostra de Artes

em comemoraccedilatildeo ao aniversaacuterio de 25 anos do MST no Cearaacute para a qual vi a preparaccedilatildeo

dos(as) estudantes com acompanhamento dos(as) educadores(as) Observei as tentativas de

negociaccedilatildeo de educadores(as) em relaccedilatildeo a muacutesicas a serem danccediladas pelos(as) jovens uma

muacutesica de axeacute com apelo eroacutetico e outra muacutesica gospel ambas sem ligaccedilatildeo com o tema da

Mostra Alguns(mas) estudantes se dedicaram a danccedilar Luiz Gonzaga o que se aproximava

mais da regiatildeo embora natildeo fosse uma muacutesica do local e eu jaacute havia tido oportunidade de

observar apresentaccedilotildees de coco muacutesica enraizada por esse povo litoracircneo cujo ritmo parece

estar dentro de seus corpos danccedilantes desde crianccedilas Tambeacutem natildeo houve recitaccedilatildeo de cordeacuteis

que escrevem com tanta facilidade como quando vi durante apresentaccedilatildeo de seminaacuterio de

estudantes sobre temas que chamam de transversais no caso temas da atualidade relevantes

para a sociedade por exemplo gravidez natildeo-planejada prevenccedilatildeo agraves IST Copa do Mundo e

energia eoacutelica A educadora Clarice me chamou a atenccedilatildeo para umas pinturas realizadas por

estudantes as quais eram identificadas com seus nomes e seacuteries e tambeacutem para um conjunto de

camisetas com a mensagem ldquoMST 25 anosrdquo bordadas agrave renda com o rendado tiacutepico da regiatildeo

as quais natildeo estavam assinadas como se o bordado natildeo fosse elevado agrave arte digno de ser

reconhecidamente identificado como uma pintura (Trecho de diaacuterio de campo)

O que eacute manifestaccedilatildeo de arte local a muacutesica o cordel o bordado por ser tatildeo comum

para seu cotidiano e realizada com tanta naturalidade natildeo foi valorizada nesse momento

Atribui-se essa desvalorizaccedilatildeo agrave humilhaccedilatildeo social ao que eacute reproduzido e valorizado pela

miacutedia e aos valores eurocecircntricos associados aos grandes centros urbanos caracterizados por

uma elite branca Essa desvalorizaccedilatildeo de um aspecto cultural intriacutenseco da comunidade indica

que o sentimento de humilhaccedilatildeo social eacute vivenciado e reproduzido dentro da proacutepria

comunidade o que denota a importacircncia da escola do campo para problematizar essa questatildeo

Um jovem foi avisar para uma educadora que precisaria se ausentar por participar da farinhada

processo de produzir farinha de tapioca a partir da mandioca em um tom de voz inaudiacutevel tanto

para ela como para mim Esta educadora entatildeo me explicou que os jovens quando entram na

escola sentem-se envergonhados em participar da farinhada mas ela me garantia ao terceiro

ano jaacute se sentiam orgulhosos De fato alguns(mas) jovens com quem conversei do segundo e

terceiro ano realmente se sentiam orgulhosos(as) por fazerem parte do assentamento e

sonhavam em continuar laacute na terra onde nasceram (Trecho de diaacuterio de campo)

Foram observadas diferenccedilas entre os(as) jovens entrevistados(as) das comunidades que

pertencem ao assentamento e da comunidade fora do assentamento Os terrenos das

comunidades do assentamento foram adquiridos por meio da mobilizaccedilatildeo da comunidade jaacute

162

residente e trabalhadora no local motivada pelas Comunidades Eclesiais de Base conforme jaacute

mencionado Os terrenos fora do assentamento foram adquiridos atraveacutes de compra Os(as)

jovens da comunidade do assentamento relatam maior uniatildeo das pessoas da comunidade em

casos de necessidade Um contraste ilustrativo dessa mobilizaccedilatildeo estaacute nas descriccedilotildees sobre as

farinhadas e os mutirotildees de Francisco do assentamento e de Aldo de uma comunidade vizinha

com diferenccedilas entre mobilizaccedilotildees comunitaacuterias conjuntas por trocas de serviccedilos e por serviccedilo

prestado por dinheiro

Francisco Cada famiacutelia tem a sua [farinhada] mas existe o haacutebito de Chama ldquotroca de diardquo

Quando eacute a farinhada da minha famiacutelia aquelas pessoas vecircm trabalhar e quando eacute a farinhada

de uma pessoa que trabalha na minha farinhada aiacute a pessoa da minha famiacutelia vai ajudar entatildeo

sempre haacute essa troca Algumas outras atividades por exemplo trabalhos da comunidade

algum mutiratildeo que deve ser feito na comunidade Foi realizada uma barragem no riacho entatildeo

foi o assunto trabalhado tambeacutem por um grupo chamado Terccedilo dos Homens e pelo conselho

tambeacutem (Trecho de entrevista com Francisco)

Aldo Por exemplo eu tenho uma roccedila aiacute eu quero fazer a farinhada aiacute eu chamo as pessoas

que eu quero pra trabalhar pra mim Eu posso chamar quem eu quiser soacute que paga neacute (Trecho

de entrevista com Aldo)

Os(as) jovens do assentamento tambeacutem relataram maior mobilizaccedilatildeo contra a entrada

de grandes empresas de turismo e de outros empreendimentos quando natildeo haacute gestatildeo

comunitaacuteria como as induacutestrias eoacutelicas diferentemente de comunidades fora do assentamento

nas quais haacute a entrada das eoacutelicas e cujos terrenos tecircm sido vendidos para construccedilatildeo de casas

e hoteacuteis para turismo havendo grande fluxo de turistas durante as altas temporadas Aldo

jovem morador de uma comunidade vizinha que estaacute sofrendo o impacto de uma recente

implantaccedilatildeo da induacutestria eoacutelica considera que as consequecircncias dessa implantaccedilatildeo podem

ldquodestruirrdquo seu sonho de ser agricultor Segundo Bosi (2003) a separaccedilatildeo entre trabalho e

relaccedilotildees comunitaacuterias pode ser uma causa de desenraizamento ldquoEntre os mais fortes motivos

desenraizadores estaacute a separaccedilatildeo entre a formaccedilatildeo pessoal biograacutefica mesmo e a natureza da

tarefa entre a vida no trabalho e a vida familiar de vizinhanccedila e cidadaniardquo (Bosi 2003 p

181)

Candido (1975) observou essas formas de solidariedade manifestas atraveacutes do trabalho

coletivo como o mutiratildeo para atividades agriacutecolas as quais eram essenciais para se conseguir

realizar a colheita e caracterizava o modo de vida do paulista caipira permeado pelo aspecto

moral religioso pela satisfaccedilatildeo em ajudar ao proacuteximo acompanhado de refeiccedilotildees e finalizado

com uma festa para alegrar o cotidiano Esse autor concluiu que os pequenos lavradores embora

arrastados para o acircmbito da economia capitalista e para a esfera da influecircncia das cidades

procuram ajustar-se ao que o autor chama de ldquomiacutenimo inevitaacutevel de civilizaccedilatildeordquo (p 218) ldquoA

163

conservaccedilatildeo de traccedilos aparece pois como fator de defesa grupal e cultural representando o

aspecto de permanecircncia A incorporaccedilatildeo dos novos traccedilos representa a mudanccedilardquo (p 219) Aqui

nesta pesquisa se poderia pensar que esses traccedilos de permanecircncia de ruralidades podem

contribuir para o enraizamento e para o sentimento de pertencimento que os(as) jovens tecircm pela

comunidade Segundo Weil (19492001) o enraizamento eacute uma das necessidades mais

importantes do ser humano

O enraizamento eacute talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana

Um ser humano tem raiz por sua participaccedilatildeo real ativa e natural da existecircncia de uma

coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos de futuro

Participaccedilatildeo natural ou seja ocasionada automaticamente pelo lugar nascimento profissatildeo

meio (Weil 19492001 p 43)

Destaca-se a construccedilatildeo de um pensamento criacutetico atraveacutes de encontros na escola do

campo e eventos dos quais os(as) jovens participam Os(as) colaboradores(as) Aldo e Izabel

moram na mesma comunidade vizinha ao assentamento a qual natildeo tem uniatildeo comunitaacuteria

tendo sentimentos isolados familiares de raiva impotecircncia e revolta contra a implantaccedilatildeo da

induacutestria eoacutelica A segregaccedilatildeo comunitaacuteria ameaccedila os modos de vida tradicionais e no caso a

possibilidade de continuar a morar no local como fala Izabel Seus moradores tecircm buscado

superar o isolamento ao se inteirar sobre as respostas que outras comunidades tecircm tomado de

forma a atuar com apoio coletivo por exemplo atraveacutes de audiecircncias puacuteblicas e seminaacuterios

promovidos por uma ONG que atua na regiatildeo visando agrave conscientizaccedilatildeo sobre as ameaccedilas aos

povos do mar e buscando informaccedilotildees na escola do campo e de grupos religiosos

Nas vivecircncias dos(as) jovens da escola do campo a continuidade dos estudos apoacutes o

Ensino Meacutedio foi considerada importante possivelmente pelo incentivo da proacutepria escola Um

dificultador para continuidade dos estudos mencionado foi ter de morar em outra cidade

Ao ocupar um lugar instaacutevel de poder a partir do qual seja possiacutevel planejar e controlar

o futuro uma das colaboradoras Beatriz age taticamente pensando somente no presente sem

pensar no futuro conforme definiccedilatildeo de taacutetica de Certeau (19902013)

Mesmo quando pensam em se formar em outras cidades e atuar em aacutereas diferentes de

seus pais pensam no retorno e na possiacutevel contribuiccedilatildeo que poderatildeo trazer para sua

comunidade a qual consideram extensatildeo de sua casa no sentido que Gonccedilalves Filho (1998b)

traz

A casa humana recolhe uma coleccedilatildeo de objetos que nos ligam ao passado da famiacutelia satildeo

retratos panos livros algum adorno moacuteveis muitas vezes recebidos dos pais dos avoacutes objetos

que carregam histoacuterias e fazem com que o morador se enraize mais aleacutem da natureza tambeacutem

no mundo dos seus ancestrais ligando o homem a outros homens que o precederam e que o

164

abrigaram Estar em casa eacute estar nos outros eacute estar em si mesmo estando nos outros (Gonccedilalves

Filho 1998b p 3)

Segundo revisatildeo bibliograacutefica realizada por Castro (2016) pesquisas recentes tinham

evidenciado movimentos de permanecircncia e de migraccedilatildeo de retorno de jovens do campo

brasileiro o que foi associado agraves poliacuteticas puacuteblicas criadas a partir dos anos 2000 A migraccedilatildeo

pode ser compreendida como circulaccedilatildeo fenocircmeno complexo ancorado em diversos motivos

como dar continuidade aos estudos atuar em trabalhos temporaacuterios e aproveitar formas de lazer

Nesta pesquisa foi perguntado aos(agraves) jovens sobre o que imaginavam que poderia

melhorar dentro da comunidade Foi mencionada a estrutura dos pequenos negoacutecios locais de

forma a aumentar os ganhos financeiros e gerar mais empregos Por exemplo uma das jovens

colaboradoras Beatriz mencionou a necessidade de haver condiccedilotildees estruturais para que se

possa realizar a pesca artesanal e o plantio do caju em relaccedilatildeo direta com o consumidor

Consideraccedilotildees finais

A maioria dos(as) jovens com os quais se conviveu apresenta forte ligaccedilatildeo com o local

onde mora pela convivecircncia com seus familiares vizinhos(as) e a organizaccedilatildeo do cotidiano

permeada pela religiosidade Mantecircm haacutebitos ligados agraves ruralidades como plantaccedilotildees pesca e

a farinhada Os(as) jovens querem se manter no local onde estatildeo e quando se imaginam no

futuro almejam ter outros modos de vida trabalhar em profissotildees diferentes dos seus pais ter

mais estudos e maior renda

Essa ligaccedilatildeo com o local onde moram e com seus(suas) moradores(as) natildeo se realiza

sem contradiccedilotildees e tensionamentos entre geraccedilotildees principalmente pelas relaccedilotildees de poder

estabelecidas Na escola do campo particularmente essas relaccedilotildees eram demonstradas pelos

conflitos entre o corpo docente membros da direccedilatildeo funcionaacuterios(as) e estudantes os quais

expressavam as limitaccedilotildees da organizaccedilatildeo hieraacuterquica escolar Trata-se de relaccedilotildees complexas

ser morador(a) e militante da comunidade e exercer funccedilotildees subalternas dentro da escola

quando se lutou tanto para natildeo ser subalterno(a) Haacute dificuldades para que todos(as) tenham

direito agrave expressatildeo de forma igual de maneira democraacutetica em uma educaccedilatildeo libertadora na

qual cada um possa ser respeitado em sua singularidade dentro de uma sociedade de classes

na qual quem tem maior possibilidade de formaccedilatildeo eacute mais valorizado e os(as) jovens satildeo pouco

ouvidos(as) em seus anseios Observa-se que essa dificuldade para construccedilatildeo de espaccedilos

democraacuteticos tambeacutem foi analisada por Paul Singer (2002) em grupos que realizam atividades

165

de economia solidaacuteria Eacute um horizonte a ser buscado dentro de uma sociedade capitalista

dividida em classes sociais

Destaca-se que a existecircncia dessa escola dentro do assentamento eacute fruto de uma luta da

proacutepria comunidade juntamente com o MST o que favorece que seus jovens possam manter

os estudos ateacute o Ensino Meacutedio o que eacute um diferencial em relaccedilatildeo a outros assentamentos Sua

formaccedilatildeo possibilita a construccedilatildeo de um pensamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave sociedade atraveacutes de

problematizaccedilotildees de temas poliacuteticos atuais e a valorizaccedilatildeo de aspectos da sua proacutepria cultura

como conhecer o histoacuterico da comunidade realizar bordados e cordeacuteis Esses aspectos da

cultura costumam ser desvalorizados pelos(as) proacuteprios(as) jovens o que expressa a situaccedilatildeo

de humilhaccedilatildeo social de quem mora no campo e nas aacutereas marginalizadas em relaccedilatildeo aos

grandes centros localizados principalmente no eixo Rio-Satildeo Paulo Essa escola do campo

portanto tem possibilitado a construccedilatildeo de respostas coletivas agrave situaccedilatildeo de humilhaccedilatildeo social

sofrida pelos jovens ampliando seus horizontes para aleacutem dos padrotildees hegemocircnicos de uma

elite branca e urbana

Assim finaliza-se este capiacutetulo registrando-se a importacircncia de poliacuteticas puacuteblicas

voltadas para as pessoas do campo particularmente a juventude no caso especiacutefico deste

assentamento para enriquecer sua formaccedilatildeo profissional e poliacutetica essas poliacuteticas favoreceram

que jovens almejassem cursar o ensino superior de maneira a contribuir com seus

conhecimentos para o assentamento Aleacutem disso analisando-se as restriccedilotildees existentes

destaca-se a necessidade de que haja maior investimento puacuteblico para que os(as) jovens possam

ter garantidos direitos baacutesicos como sauacutede e um trabalho com dignidade

Esta pesquisa apresentou possibilidades de uma comunidade com uma organizaccedilatildeo

coletiva que diante dos conflitos e dificuldades enfrentados luta para superar a desigualdade e

as injusticcedilas inerentes ao capitalismo Essa comunidade resistiu agrave implantaccedilatildeo da induacutestria de

energia eoacutelica construiu a Escola de Ensino Meacutedio do campo Nazareacute Flor com recursos do

governo federal dentro do proacuteprio assentamento com profissionais preferencialmente da

proacutepria comunidade Essas conquistas satildeo inspiraccedilatildeo para todas e todos noacutes especialmente

neste momento poliacutetico difiacutecil para o paiacutes

Vejam bem caros ouvintes

Como termino a histoacuteria

Natildeo haacute conquista sem luta

Natildeo haacute luta sem vitoacuteria

Natildeo haacute guerra sem batalha

Agraves vezes a mente falha

Mas guarde isso na memoacuteria

Maria da Paz militante do Assentamento Maceioacute (Santos [sd])

166

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168

Capiacutetulo 9

O Programa Mais Educaccedilatildeo e a produccedilatildeo de uma subjetividade aprendiz

Patriacutecia Peixoto Zapletal

Adriana Marcondes Machado

Introduccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre psicologia e educaccedilatildeo tem tomado o cotidiano escolar como objeto de

anaacutelise e de praacutetica dos psicoacutelogos Os discursos das poliacuteticas puacuteblicas constitutivos desse

cotidiano tendem a efeitos de naturalizaccedilatildeo sobre os atores do mundo escolar quando

desconsideram as formas de governo presentes nos processos de subjetivaccedilatildeo

Este texto1 daacute relevo agraves concepccedilotildees presentes na formulaccedilatildeo do Programa Mais

Educaccedilatildeo (Brasil 2010) com vistas a interrogar o lugar de uma estrateacutegia recente de ampliaccedilatildeo

da jornada das escolas puacuteblicas brasileiras Partimos da premissa trazida por autores inscritos

no campo dos estudos foucaultianos em educaccedilatildeo de que haveria um espraiamento de

processos de pedagogizaccedilatildeo da vida na contemporaneidade (Aquino 2013 Ball 2013 Simons

amp Masschelein 2011) que se referem a uma forma de gestatildeo social apoiada no discurso de

defesa de uma aprendizagem ininterrupta que instiga um intenso autogoverno dos cidadatildeos

Tomando como alvo analiacutetico o Programa Mais Educaccedilatildeo ndash uma difundida estrateacutegia

indutora de ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos estudantes das escolas puacuteblicas brasileiras

seja nas escolas seja em atividades escolares promovida pelo Governo Federal de 2007 a 2016

ndash este trabalho problematiza discursos referentes a esse Programa A partir do aporte teoacuterico

de Foucault (2004 2008a 2008b) especialmente de um de seus operadores analiacuteticos ndash a

governamentalidade ndash compreende-se que governar se refere a um continuum que se estende

do governo poliacutetico ateacute as formas de autorregulaccedilatildeo Faz parte da estrateacutegia neoliberal de

governo o desenvolvimento de teacutecnicas indiretas para controlar os indiviacuteduos tornando-os

responsaacuteveis pelos riscos sociais Por meio da anaacutelise dos documentos oficiais que materializam

e regulamentam o Programa Mais Educaccedilatildeo e de entrevistas com equipes teacutecnicas responsaacuteveis

1 Essa discussatildeo estaacute presente na dissertaccedilatildeo de mestrado de Patriacutecia Peixoto Zapletal intitulada Ampliaccedilatildeo da

jornada escolar mais aprendizagem de quecirc defendida em fevereiro de 2017 na Faculdade de Educaccedilatildeo da

Universidade de Satildeo Paulo sob orientaccedilatildeo da profa Dra Adriana Marcondes Machado (professora do Instituto

de Psicologia da USP Departamento da Aprendizagem Desenvolvimento e Personalidade ndash PSA)

169

pela sua implantaccedilatildeo tanto no niacutevel do municiacutepio e do estado de Satildeo Paulo quanto no federal

este texto tem como objetivo investigar como tal forma de governo estaacute presente no Programa

Percebe-se que a noccedilatildeo de governamentalidade tomada neste trabalho como ferramenta

analiacutetica auxilia na compreensatildeo da racionalidade governamentalizadora operada por meio de

praacuteticas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar dos alunos da rede puacuteblica brasileira como o Programa

Mais Educaccedilatildeo campo de investigaccedilatildeo deste estudo

1 O cenaacuterio do alargamento das funccedilotildees da instituiccedilatildeo escolar na contemporaneidade

Amplas reformas educacionais foram realizadas pelo governo brasileiro a partir dos

anos 1990 Elas abrangeram distintas dimensotildees do sistema de ensino legislaccedilatildeo

planejamento gestatildeo educacional financiamento curriacuteculo e formaccedilatildeo de professores (Noma

2010) e foram influenciadas por agecircncias multilaterais como Banco Mundial (BM)

Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura (Unesco) Organizaccedilatildeo

para a Cooperaccedilatildeo e Desenvolvimento Econocircmico (OCDE) Programa das Naccedilotildees Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD) entre outras (Shiroma Campos amp Garcia 2005) Essas reformas

fariam parte de um movimento internacional que segundo Noma (2010) propotildee a diminuiccedilatildeo

das desigualdades sociais nacionais e internacionais pelas vias educacionais

Os inuacutemeros projetos elaborados pelas mais variadas instituiccedilotildees organizaccedilotildees natildeo

governamentais secretarias de governo e sociedade civil de que a escola puacuteblica brasileira tem

sido alvo na atualidade parecem destacar o fortalecimento dessa instituiccedilatildeo como um loacutecus

privilegiado para o gerenciamento do risco social (Klaus 2009)

Os estudos de Saraiva (2013) tambeacutem apontam nessa direccedilatildeo ao mostrar que a

Educaccedilatildeo Baacutesica no Brasil vem sendo convocada a participar dos novos modos de lidar com o

risco demandados pela racionalidade poliacutetica atual A autora afirma que as teacutecnicas de

gerenciamento de riscos das populaccedilotildees vecircm sendo deslocadas para o gerenciamento privado

de risco que traz o imperativo de que cada um cuide de si e a responsabilizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

por todo tipo de risco Nessa matriz de inteligibilidade as intervenccedilotildees deixariam de ser sobre

os indiviacuteduos ou sobre o meio onde a populaccedilatildeo vive mas sobre as subjetividades Dessa forma

os esforccedilos seriam concentrados ldquonatildeo em accedilotildees de proteccedilatildeo da populaccedilatildeo mas em accedilotildees

educacionais utilizando para isso principalmente a miacutedia e as escolasrdquo (Saraiva 2013 p 171

grifos nossos)

170

As escolas estariam sendo instadas a alargarem suas funccedilotildees no sentido de assumirem a

tarefa de desenvolver competecircncias para tornar os alunos gestores privados dos seus riscos e

eventualmente dos riscos de sua famiacutelia e comunidade Para a autora isso pode ser evidenciado

na ecircnfase que vem sendo dada ao papel da escola para trabalhar no curriacuteculo temaacuteticas como

ldquoeducaccedilatildeo sexual educaccedilatildeo alimentar educaccedilatildeo em sauacutede educaccedilatildeo para o

empreendedorismo educaccedilatildeo financeira educaccedilatildeo para o tracircnsitordquo (Saraiva 2013 p 171)

Os novos contornos que a instituiccedilatildeo escola vem assumindo tambeacutem podem ser

constatados a partir do acompanhamento nos uacuteltimos anos dos deslocamentos dos discursos

sobre poliacutetica educacional presentes em publicaccedilotildees de organismos nacionais e internacionais

Shiroma Campos e Garcia (2005) ressaltam que a literatura derivada de pesquisas comparativas

sobre poliacutetica educacional indica uma crescente hegemonia discursiva das poliacuteticas

educacionais em niacutevel mundial Os autores a partir do acompanhamento sistemaacutetico de

publicaccedilotildees nacionais e internacionais nos uacuteltimos anos evidenciaram que no iniacutecio dos anos

1990 predominavam nos discursos de poliacutetica educacional argumentos a favor da ldquoqualidade

competitividade produtividade eficiecircncia e eficaacuteciardquo (Shiroma et al 2005 p 428) Esses

argumentos teriam sido deslocados para uma face mais humanitaacuteria evidenciada numa

crescente ecircnfase sobre os conceitos de ldquojusticcedila equidade coesatildeo social inclusatildeo

empowerment oportunidade e seguranccedilardquo (Shiroma et al 2005 p 428)

Vocaacutebulos como monitorar gerenciar e avaliar tiacutepicos do mundo dos negoacutecios e cada

vez mais presentes nos documentos oficiais das reformas educacionais tambeacutem evidenciam

para os autores que paulatinamente os problemas educacionais passam a ser explicitados

como problemas de gestatildeo da educaccedilatildeo ou seja de maacute administraccedilatildeo (Shiroma et al 2005)

Essa forma de compreender os problemas educacionais como problemas de

gerenciamento tambeacutem parece contribuir para que a ampliaccedilatildeo da jornada escolar e das funccedilotildees

da escola ocorra Eacute frequente no cenaacuterio educacional brasileiro os governos enfatizarem a

necessidade de uma nova gestatildeo escolar ou seja uma gestatildeo compartilhada indicando a

importacircncia da participaccedilatildeo da comunidade Essa nova forma de gerenciamento compartilhado

da educaccedilatildeo a partir da participaccedilatildeo da sociedade civil faz emergir variados projetos que

teriam a escola como um local oacutetimo para pocirc-los em praacutetica decorrendo daiacute como tambeacutem

percebe Klaus (2009) um alargamento das funccedilotildees dessa instituiccedilatildeo

Na deacutecada de 1990 assistiu-se no Brasil conforme relembra Krawczyk (2014) agrave

pressatildeo de organismos internacionais e do Executivo nacional para que o empresariado

brasileiro assumisse poliacuteticas sociais a fim de se responsabilizar pelo bem-estar da populaccedilatildeo

171

entre essas poliacuteticas o Programa Comunidade Solidaacuteria presidido pela entatildeo primeira-dama

Ruth Cardoso funcionou como ponta de lanccedila Esse programa teve como objetivo otimizar o

gerenciamento de um conjunto de programas sociais por meio da participaccedilatildeo da sociedade

civil no combate agrave pobreza Assim conforme assinala Krawczyk (2014) figuras juriacutedicas da

sociedade civil na prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos comeccedilam a surgir e por meio de parcerias

complementam o orccedilamento puacuteblico

Variados programas e projetos educacionais atualmente elaborados pelos governos

municipal estadual e federal brasileiros tambeacutem tecircm sido operacionalizados por meio de

parcerias com organizaccedilotildees natildeo governamentais (ONGs) instituiccedilotildees da sociedade civil e

empresas evidenciando a desestatizaccedilatildeo da educaccedilatildeo e o deslocamento da ecircnfase de uma

dimensatildeo puacuteblica estatal para a dimensatildeo puacuteblica natildeo estatal

Nota-se juntamente com Popkewitz (2001) o quanto sedutora a noccedilatildeo de parceria tem

se tornado e que esta conforme explicita o autor seria um dos temas redentores da

contemporaneidade Essa noccedilatildeo aparece como uma forma de renovaccedilatildeo do bem-estar social por

meio de accedilotildees civis em que os que estariam diretamente envolvidos com problemas locais

poderiam agir efetivamente No entanto Popkewitz (2001) ressalta que a ideia de parceria e de

participaccedilatildeo da comunidade natildeo pode ser pensada como puro princiacutepio abstrato apartado das

praacuteticas sociais Os discursos presentes nas reformas educacionais atuais que clamam por

mudanccedilas na gestatildeo escolar e primam por uma nova democratizaccedilatildeo da escola estariam

articulados com praacuteticas que produzem sujeitos com habilidades particulares pragmaacuteticos

empreendedores reflexivos autocircnomos e aprendizes permanentes que buscam realizar a si

mesmos por meio de suas escolhas

A partir do exposto evidencia-se que as recentes reconfiguraccedilotildees pelas quais a escola

puacuteblica brasileira vem passando a partir de alguns fenocircmenos interligados tais como loacutegica da

empresa desestatizaccedilatildeo da educaccedilatildeo parcerias e privatizaccedilatildeo do risco social acontecem num

momento histoacuterico em que se opera nos termos de Foucault (2008a 2008b) o neoliberalismo

como racionalidade governamental Essa forma de liberalismo vem sendo ressignificada desde

a deacutecada de 1980 e apresenta mudanccedilas em relaccedilatildeo ao liberalismo concebido no seacuteculo XVIII

(Saraiva amp Veiga-Neto 2009)

Na esteira de Foucault Saraiva e Veiga-Neto (2009) assinalam um dos deslocamentos

marcantes e que interessa ressaltar para este estudo entre o liberalismo e o neoliberalismo

Segundo os autores no liberalismo a liberdade de mercado era entendida como algo natural

ou seja a regulaccedilatildeo do mercado e do proacuteprio Estado seria determinada pelo livre mercado Jaacute

172

na governamentalidade neoliberal cujo princiacutepio de inteligibilidade eacute a maximizaccedilatildeo da

competiccedilatildeo haacute intervenccedilatildeo do Estado para prover condiccedilotildees miacutenimas para que todos possam

entrar no jogo do mercado ou ainda para ldquoproduzir liberdade para que todos possam estar no

jogo econocircmicordquo (Saraiva amp Veiga-Neto 2009 p 189)

Para garantir que todos possam se manter no jogo neoliberal Lopes (2013) afirma que

seria necessaacuterio educar a populaccedilatildeo para que esta possa integrar essa nova forma de vida ldquoque

exige de cada indiviacuteduo dedicaccedilatildeo e constante busca de formaccedilatildeo para poder empreender-serdquo

(Lopes 2013 p 296) Na perspectiva de Lopes (2013) as muitas estrateacutegias de governamento

que satildeo vistas hoje em operaccedilatildeo sobre a populaccedilatildeo em especial sobre aqueles segmentos

considerados de risco seriam investimentos que nas palavras da autora primam ldquotanto pelas

accedilotildees de proteccedilatildeo social quanto pelas accedilotildees de autogovernogovernamentordquo (Lopes 2013 p

296)

Percebe-se portanto que eacute no contexto dessa maneira de investir sobre as condiccedilotildees de

vida da populaccedilatildeo que precisam ser compreendidas as variadas estrateacutegias utilizadas pelos

paiacuteses a fim de reordenar as poliacuteticas educacionais para atender as populaccedilotildees denominadas

em situaccedilatildeo de vulnerabilidade e risco social Entre essas estrateacutegias estariam o aumento da

escolarizaccedilatildeo obrigatoacuteria e a ampliaccedilatildeo da jornada escolar que conforme destaca Perrude

(2013) vecircm sendo no Brasil ldquorecomendadas pelos oacutergatildeos puacuteblicos normatizadas pela

legislaccedilatildeo discutidas nas produccedilotildees acadecircmicas e tambeacutem sugeridas e apontadas como praacuteticas

pedagoacutegicas lsquoinovadorasrsquordquo (Perrude 2013 p 29)

Os debates em torno das propostas de escolas puacuteblicas de tempo integral reanimam-se

no Brasil ao longo dos anos 20002 e elas satildeo apontadas como instrumento indispensaacutevel para a

qualidade educacional Ao percorrer a legislaccedilatildeo3 que ampara a ampliaccedilatildeo da jornada escolar

evidencia-se a intenccedilatildeo do governo de expansatildeo das escolas de tempo integral com atenccedilatildeo

especial agraves ldquocamadas sociais mais necessitadasrdquo (Brasil 2001)

Uma das propostas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar que ganhou espaccedilo nos uacuteltimos anos

nas escolas puacuteblicas brasileiras eacute o Programa Mais Educaccedilatildeo Esse Programa incidiu no acircmbito

do Ensino Fundamental como um modelo de extensatildeo da jornada escolar e das funccedilotildees

2 Ainda que a defesa da escola puacuteblica de tempo integral tenha sido feita por Aniacutesio Teixeira na deacutecada de 1930

a expansatildeo das propostas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar ocorreria apoacutes a promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e

Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) em 1996 3 Menezes (2009) e Coelho e Menezes (2007) apresentam detalhada anaacutelise sobre o que dizem os documentos

legais apoacutes a Constituiccedilatildeo de 1988 acerca do tempo na escola e dos avanccedilos normativos em relaccedilatildeo ao Ensino

Fundamental em tempo integral no ordenamento constitucional

173

escolares pelo Paiacutes Por meio dos nuacutemeros do Censo Escolar4 (2010 2011 2012 2013 2014

2015) eacute possiacutevel acompanhar o aumento de alunos no ensino de tempo integral e o impacto do

Programa na expansatildeo dessas experiecircncias5

2 Poliacuteticas de inclusatildeo nos governos FHC e Lula e o investimento em mais educaccedilatildeo

A emergecircncia do movimento de inclusatildeo escolar no Brasil eacute evidenciada por Lopes e

Rech (2013) na deacutecada de 1990 quando a palavra inclusatildeo passou a ser utilizada de maneira

sutil em materiais e programas elaborados pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) As propostas

de inclusatildeo empreendidas pelo Paiacutes que era entatildeo presidido por Fernando Henrique Cardoso

(FHC) viriam ao encontro das metas estabelecidas pela Conferecircncia Mundial sobre Educaccedilatildeo

para Todos realizada na Tailacircndia em 1990 e pela Conferecircncia Mundial em Educaccedilatildeo

Especial ocorrida em Salamanca na Espanha em 1994

Com a necessidade de educar a todos as estrateacutegias criadas no decorrer dos governos

de FHC a fim de promover a inclusatildeo escolar ganhariam diferentes espaccedilos ultrapassando o

acircmbito escolar Lopes e Rech (2013) apontam que foram criados variados programas sociais

assistenciais que vinculavam o envio e a manutenccedilatildeo das crianccedilas em idade escolar obrigatoacuteria

ao recebimento de bolsas Entre os mais difundidos no periacuteodo destaca-se o Programa Bolsa

Escola6 O governo FHC teria encontrado conforme afirmam as autoras um meio de modificar

consideravelmente os iacutendices de evasatildeo e repetecircncia escolar ao recompensar as famiacutelias que

mantivessem seus filhos na escola

A instituiccedilatildeo de outros programas de transferecircncia monetaacuteria ndash aleacutem do Programa Bolsa

Escola ndash tais como o Programa de Erradicaccedilatildeo do Trabalho Infantil (Peti) o Bolsa-

Alimentaccedilatildeo e o Auxiacutelio-Gaacutes e o uso da educaccedilatildeo puacuteblica para viabilizar a implantaccedilatildeo e

4 O Censo Escolar eacute um levantamento de dados estatiacutestico-educacionais de acircmbito nacional realizado todos os

anos e coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Aniacutesio Teixeira (Inep) Ele eacute feito

com a colaboraccedilatildeo das secretarias estaduais e municipais de Educaccedilatildeo e com a participaccedilatildeo de todas as escolas

puacuteblicas e privadas do Paiacutes Trata-se do principal instrumento de coleta de informaccedilotildees da Educaccedilatildeo Baacutesica

coletando dados sobre estabelecimentos matriacuteculas funccedilotildees docentes movimento e rendimento escolar Dados

recuperados de httpportalinepgovbrbasica-censo 5 No site do Inep encontra-se a informaccedilatildeo sobre os dados do censo de 2014 em notiacutecia de 11 de fevereiro de

2015 em que o presidente do Instituto evidencia que ldquoA expansatildeo da educaccedilatildeo integral eacute fruto do programa Mais

Educaccedilatildeo desenvolvido pelo MEC por meio do qual satildeo transferidos recursos agraves escolas para manter os alunos

em jornada estendidardquo Dados recuperados de httpportalinepgovbrvisualizar-asset_publisher6AhJcontent

matriculas-em-educacao-integral-apresentam-crescimento-de-41-2redirect=http3a2f2fportalinepgovbr

2f 6 Iniciado em 2001 eram consideradas elegiacuteveis famiacutelias com renda mensal per capita correspondente a meio

salaacuterio miacutenimo que tivessem entre seus membros crianccedilas em idade escolar (6 a 15 anos) Era feito o pagamento

da bolsa de R$ 1500 (valor da eacutepoca) por filho que frequentasse pelo menos 85 das aulas (limitado ao maacuteximo

de trecircs filhos) (Ferro 2007)

174

controle desses programas ocuparam o papel central na abordagem do combate agrave pobreza

adotada no governo Fernando Henrique Cardoso (Algebaile 2009) Esses programas sofreriam

modificaccedilotildees ao longo das duas gestotildees de FHC (19951998 e 19992002) e a partir de 2001

segundo Algebaile (2009) mostraram-se como o eixo da accedilatildeo do Governo Federal no campo

social

A dificuldade de listar com precisatildeo os programas e as accedilotildees daquilo que seria chamado

de reforma educacional praticada durante as gestotildees de Fernando Henrique Cardoso eacute tambeacutem

percebida por Algebaile (2009) ao esclarecer que ela resulta

em primeiro lugar da profusatildeo de ldquoaccedilotildeesrdquo de diferentes portes ldquolanccediladasrdquo sem suficientemente

explicaccedilotildees a respeito de seu efetivo alcance e importacircncia no interior da reforma Em

segundo lugar devido agrave absoluta (e intencional) confusatildeo que caracterizou o processo de

lanccedilamento e implantaccedilatildeo dessas accedilotildees devido agrave expediccedilatildeo de muitas e contraditoacuterias peccedilas

normativas agraves mudanccedilas de nomes dos programas e agrave inclusatildeo de uma mesma accedilatildeo em diversos

programas tornando difiacutecil identificar sua origem definir seus contornos e rastrear seus

desdobramentos (Algebaile 2009 p 271)

Dando continuidade agraves poliacuteticas de inclusatildeo iniciadas no governo FHC ndash que

associariam educaccedilatildeo e assistecircncia social ndash o governo de Luiacutes Inaacutecio ldquoLulardquo da Silva (2003-

2010) embora com concepccedilotildees de governo distintas manteve e ampliou as poliacuteticas e os

programas criados por seu antecessor Lopes e Rech (2013) destacam que os programas criados

no governo Lula aleacutem de terem mantido o caraacuteter assistencialista e neoliberal dos programas

do governo FHC teriam acentuado as accedilotildees de assistecircncia e voluntariado A busca pelo Estado

de investimentos da inciativa privada para as camadas mais pobres da populaccedilatildeo realccedilaria

ainda ldquouma articulaccedilatildeo simbioacutetica entre Estado e mercadordquo (Lopes amp Rech 2013 p 216)

A possiacutevel proximidade em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas de inclusatildeo dos governos FHC e Lula

pode ser explicada pela consonacircncia com certas poliacuteticas mundiais e tambeacutem conforme

sublinham Lopes e Rech (2013) pela constataccedilatildeo de que ambos os governos teriam trabalhado

para inscrever o Brasil entre aqueles paiacuteses em condiccedilotildees de se desenvolver Qualquer governo

que estivesse agrave frente do paiacutes com esse objetivo ldquoseria avaliado pela disposiccedilatildeo mundial de

fazer da educaccedilatildeo uma das maiores tecnologias para a governamentalidaderdquo (Lopes amp Rech

2013 p 216)

Portanto eacute no contexto dos investimentos governamentais no campo da educaccedilatildeo e da

assistecircncia social que o Programa federal Mais Educaccedilatildeo foi criado no iniacutecio da segunda gestatildeo

do governo Lula e continuou sendo desenvolvido no governo Dilma Rousseff (2011-2014) O

segundo governo Lula (2007-2010) foi marcado pela criaccedilatildeo de uma diversidade de programas

175

educacionais que teriam como bandeira a educaccedilatildeo de qualidade com o fim de permitir a

inserccedilatildeo do paiacutes na economia mundial

O lanccedilamento feito pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) do Plano de Desenvolvimento

da Educaccedilatildeo (PDE)7 (Brasil 2007) no ano de 2007 demonstra a ampliaccedilatildeo do nuacutemero de accedilotildees

educacionais Esse Plano foi criado com o intuito de enfrentar o problema da qualidade do

ensino ministrado nas escolas de Educaccedilatildeo Baacutesica do Paiacutes Na sua origem o PDE agregou 30

accedilotildees que cobrem a Educaccedilatildeo Baacutesica e Superior e as modalidades de ensino Educaccedilatildeo de

Jovens e Adultos Educaccedilatildeo Especial e Educaccedilatildeo Profissional e Tecnoloacutegica

Compreendido por Saviani (2009) como um ldquogrande guarda-chuvardquo (Saviani 2009 p

5) o Plano de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (PDE) (Brasil 2007) abriga quase todos os

programas em desenvolvimento pelo MEC O Plano surgiu na circunstacircncia do lanccedilamento do

Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC)8 desenvolvido pelo Governo Federal Cada

ministeacuterio foi solicitado a indicar accedilotildees que se enquadrariam no referido Programa O

Ministeacuterio da Educaccedilatildeo lanccedilou entatildeo o Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb)9

e a ele atrelou diversas accedilotildees que jaacute se encontravam na pauta do MEC (Saviani 2009)

Incluso no PDE (Brasil 2007) como um programa do eixo da Educaccedilatildeo Baacutesica o

Programa Mais Educaccedilatildeo10 foi regulamentado pelo Decreto nordm 7083 de 27 de janeiro de 2010

com a finalidade de ldquocontribuir para a melhoria da aprendizagem por meio da ampliaccedilatildeo do

tempo de permanecircncia de crianccedilas adolescentes e jovens matriculados em escola puacuteblica

mediante oferta de educaccedilatildeo baacutesica em tempo integralrdquo (Brasil 2010)

Embora o Programa tenha sido lanccedilado em 2007 a ampliaccedilatildeo da jornada escolar jaacute era

prevista no art 34 da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (Lei nordm 939496) (Brasil

1996) que determina a progressiva ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos alunos na escola

7 O dispositivo legal que potildee em vigecircncia o Plano eacute o Decreto nordm 6094 de 24 de abril de 2007 ndash promulgado na

proacutepria data do lanccedilamento do PDE ndash que institui o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educaccedilatildeo (Saviani

2009) 8 Criado em 2007 o Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) promoveu a retomada do planejamento e

execuccedilatildeo de grandes obras de infraestrutura social urbana logiacutestica e energeacutetica do paiacutes Informaccedilotildees recuperadas

de httpwwwpacgovbrsobre-o-pac 9 O Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) foi criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos

e Pesquisas Educacionais Aniacutesio Teixeira (Inep) Foi formulado para medir a qualidade do aprendizado nacional

e estabelecer metas para a melhoria do ensino O Ideb eacute uma combinaccedilatildeo de percentuais de aprovaccedilatildeo com

proficiecircncia em liacutengua portuguesa e matemaacutetica As meacutedias de desempenho utilizadas satildeo as da Prova Brasil para

escolas e municiacutepios e do Sistema de Avaliaccedilatildeo da Educaccedilatildeo Baacutesica (Saeb) para os estados e o Paiacutes realizados

a cada dois anos As metas estabelecidas pelo Ideb satildeo diferenciadas para cada escola e rede de ensino com o

objetivo uacutenico de alcanccedilar seis pontos ateacute 2022 meacutedia correspondente ao sistema educacional dos paiacuteses

desenvolvidos Informaccedilotildees recuperadas de httpportalmecgovbrindexphpItemid=336 10 O Programa Mais Educaccedilatildeo foi instituiacutedo por meio da Portaria Interministerial nordm 17 em 2007 envolvendo os

seguintes Ministeacuterios Educaccedilatildeo Cultura Esporte e Desenvolvimento Social e Combate agrave Fome

176

e no Plano Nacional de Educaccedilatildeo (PNE) 2001-2010 O novo Plano Nacional de Educaccedilatildeo 2014-

2024 reafirma a intenccedilatildeo do Estado de ampliaccedilatildeo da jornada escolar e apresenta ainda uma

meta especiacutefica que trata da oferta da educaccedilatildeo em tempo integral ldquoOferecer educaccedilatildeo em

tempo integral em no miacutenimo 50 (cinquenta por cento) das escolas puacuteblicas de forma a

atender pelo menos 25 (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educaccedilatildeo baacutesicardquo

(Brasil 2014)

Inicialmente o Programa Mais Educaccedilatildeo atuou nas capitais nas regiotildees metropolitanas

e em territoacuterios de vulnerabilidade social Em 2012 as escolas do campo foram incluiacutedas E a

partir de 2013 escolas localizadas em todos os municiacutepios do Paiacutes que tecircm um baixo Iacutendice de

Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) ndash aleacutem de outros criteacuterios estabelecidos a cada

ano11 ndash foram consideradas elegiacuteveis para participar do Programa12 O Programa se fez presente

em todos estados brasileiros e no Distrito Federal em 2014 e a evoluccedilatildeo do nuacutemero de escolas

participantes foi crescente de 2008 a 201413

Concebido com o intuito de promover uma ldquoaccedilatildeo intersetorial entre as poliacuteticas puacuteblicas

educacionais e sociaisrdquo (Brasil 2014 p 4) os documentos oficiais normativos do Programa

Mais Educaccedilatildeo evidenciam que para enfrentar a situaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade e risco a que

estatildeo submetidas parcelas consideraacuteveis de crianccedilas adolescentes e jovens e suas famiacuteliasrdquo

(Brasil 2007) a escola deve cumprir o desafio de proteger e educar e para isso ldquoa escola puacuteblica

passa a incorporar um conjunto de responsabilidades que natildeo eram vistas como tipicamente

escolares mas que se natildeo estiverem garantidas podem inviabilizar o trabalho pedagoacutegicordquo

(Brasil 2009a p 17)

Ampliando as funccedilotildees da escola o Programa reconhece que as tarefas dos educadores

seratildeo consequentemente alargadas e defende a necessidade de uma ldquoconsistente valorizaccedilatildeo

11 Os dados utilizados na pesquisa foram aqueles disponibilizados ateacute o ano de 2014 pois natildeo foi possiacutevel ter

acesso aos dados do Programa referentes aos anos de 2015 e 2016 12 Em 2014 para as escolas urbanas os criteacuterios de seleccedilatildeo foram 1) Escolas contempladas nos anos anteriores

2) Escolas estaduais municipais eou distrital que foram contempladas com o PDEEscola e que possuam o Ideb

abaixo ou igual a 35 nos anos iniciais eou finais Ideb anos iniciais lt 46 e Ideb anos finais lt 39 3) Escolas

localizadas em todos os municiacutepios do Paiacutes 4) Escolas com iacutendices igual ou superior a 50 de estudantes

participantes do Programa Bolsa Famiacutelia (Brasil 2014) 13 Solicitamos ao coordenador do Programa Mais Educaccedilatildeo no niacutevel federal em julho de 2016 os dados das

escolas participantes do Programa em 2015 mas natildeo obtivemos resposta Ao longo de 2015 o Programa sofreu

com os ajustes fiscais realizados pelo Governo Federal ainda na gestatildeo de Dilma Rousseff Muitas das escolas

que em 2015 se beneficiavam da iniciativa do Mais Educaccedilatildeo tiveram os repasses das verbas referentes a 2014

e 2015 atrasados inviabilizando a continuidade das atividades em diversas escolas pelo Brasil Em 2016 a

expansatildeo do Programa continuou bastante afetada Apoacutes o impeachment da presidente eleita e a entrada do novo

governo o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo encerrou apoacutes nove anos de funcionamento as atividades do Mais Educaccedilatildeo

apresentando entre outros argumentos o fato de que o Paiacutes natildeo alcanccedilou as metas delineadas pelo Iacutendice de

Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) para o Ensino Fundamental entre os anos de 2013 e 2015

177

profissional [dos trabalhadores em educaccedilatildeo] a ser garantida pelos gestores puacuteblicos de modo

a permitir a dedicaccedilatildeo exclusiva e qualificada agrave educaccedilatildeordquo (Brasil 2009a p 39) Entretanto o

Programa parece ter como principal aposta para lidar com esse novo contexto o fomento de

uma outra postura profissional dos educadores que poderia ser adquirida por meio de mais

formaccedilatildeo uma formaccedilatildeo permanente

aos educadores tambeacutem vecircm sendo conferidas tarefas que natildeo lhes competiam haacute algum tempo

atraacutes o que tensiona ainda mais a fraacutegil relaccedilatildeo que se estabelece entre esses profissionais e a

escola como a encontramos hoje Esse conjunto de elementos desafia a uma nova postura

profissional que deve ser construiacuteda por meio de processos formativos permanentes (Brasil

2009a p 17 grifo nossos)

A construccedilatildeo de processos formativos permanentes como forma de solucionar o

acuacutemulo de tarefas de que os educadores tecircm sido encarregados demonstra que o Estado tem

transformado discussotildees poliacuteticas e econocircmicas desafiadoras em problemas relacionados com

a necessidade de mais aprendizagem Ou ainda revelam a forccedila do dispositivo de

aprendizagem (Simons amp Masschelein 2008) no presente que induz a compreensatildeo de

problemas econocircmicos a partir de uma loacutegica educacional Em outras palavras problemas

econocircmicos resultariam de uma falta de investimento em processos de aprendizagem

Em 2014 foram ofertadas para as escolas urbanas por meio do Mais Educaccedilatildeo

atividades distribuiacutedas em sete campos de conhecimento 1) Acompanhamento Pedagoacutegico 2)

Comunicaccedilatildeo Uso de Miacutedias e Cultura Digital e Tecnoloacutegica 3) Cultura Artes e Educaccedilatildeo

Patrimonial 4) Educaccedilatildeo Ambiental Desenvolvimento Sustentaacutevel e Economia Solidaacuteria e

CriativaEducaccedilatildeo Econocircmica (Educaccedilatildeo Financeira e Fiscal) 5) Esporte e Lazer 6) Educaccedilatildeo

em Direitos Humanos 7) Promoccedilatildeo da Sauacutede O Programa sugere que as atividades sejam

realizadas por monitores voluntaacuterios (estudantes em processo de formaccedilatildeo docente estudantes

do Ensino Meacutedio e de Educaccedilatildeo de Jovens a Adultos e pessoas da comunidade local) e

coordenadas por um professor vinculado agrave escola denominado Professor Comunitaacuterio

Percebe-se que ao aderir agrave loacutegica do voluntariado na prestaccedilatildeo dos serviccedilos na escola

o Estado natildeo apenas se exime de arcar com as despesas financeiras desses serviccedilos mas tambeacutem

dispensa a necessidade de serviccedilos especializados A participaccedilatildeo de diferentes atores que

seriam corresponsaacuteveis pela efetivaccedilatildeo do Programa mostra o estiacutemulo a uma cidadania ativa

de que nos falam Simons e Masschelein (2008) Ser cidadatildeo nesse contexto significaria

assumir o compromisso de colaborar com a oferta e manutenccedilatildeo de accedilotildees na escola ndash e de

maneira mais ampla envolvendo-o na resoluccedilatildeo de problemas presentes em sua localidade e na

sociedade de modo a produzir uma cidadania responsaacutevel

178

Os estudos de governamentalidade conforme aponta Lemke (2001) mostram que as

formas neoliberais de governo natildeo levam simplesmente a uma reduccedilatildeo do Estado O Estado

no neoliberalismo assume outras tarefas aleacutem de desenvolver teacutecnicas indiretas para controlar

os indiviacuteduos A reduccedilatildeo nos serviccedilos do Estado estaria associada a um chamado crescente para

a responsabilidade pessoal e o cuidado de si Em outras palavras a responsabilidade ndash no caso

das escolas puacuteblicas pela manutenccedilatildeo das unidades de ensino ndash passa a ser de indiviacuteduos ativos

solucionadores de problemas de modo que nas aacutereas sociais ela se torna uma questatildeo de

provisatildeo pessoal

Por meio da noccedilatildeo de governamentalidade a retirada do Estado presente na agenda

neoliberal pode ser decifrada como uma teacutecnica de governo (Lemke 2001) Assim as reduccedilotildees

nas formas de intervenccedilatildeo do Estado estariam menos relacionadas com a perda por parte do

Estado do poder de regulaccedilatildeo e controle e mais com uma reorganizaccedilatildeo das teacutecnicas de

governo Trata-se de uma mudanccedila da competecircncia regulatoacuteria do Estado para indiviacuteduos

racionais e responsaacuteveis encorajando-os a darem agraves suas vidas uma forma empresarial

especiacutefica

3 A trilogia do Programa Mais Educaccedilatildeo

A perspectiva de educaccedilatildeo integral agrave qual o Mais Educaccedilatildeo se refere eacute especialmente

explicitada em trecircs cadernos produzidos pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo que compotildeem a Seacuterie

Mais Educaccedilatildeo Esses cadernos expotildeem a concepccedilatildeo teoacuterica do Programa e propotildeem-se agrave

ldquoconstruccedilatildeo de um paradigma contemporacircneo de Educaccedilatildeo Integralrdquo (Brasil 2009a p 7) Os

trecircs cadernos14 tecircm objetivos e processos de elaboraccedilatildeo diferentes Publicados no mesmo ano

(2009) natildeo formam uma sequecircncia mas um conjunto complementar que visa a ldquocontribuir para

a conceituaccedilatildeo a operacionalizaccedilatildeo e a implementaccedilatildeo do Programa Mais Educaccedilatildeordquo (Brasil

2009a p 6)

14 O primeiro caderno Educaccedilatildeo Integral (Brasil 2009a) ndash texto referecircncia para o debate nacional ndash foi produzido

por um grupo de trabalho convocado pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e eacute uma produccedilatildeo coletiva que envolveu a

participaccedilatildeo de 29 colaboradores de 17 instituiccedilotildees sociais entre gestores e educadores municipais estaduais e

federais representantes de vaacuterias organizaccedilotildees aleacutem de professores universitaacuterios de cinco universidades puacuteblicas

federais e organizaccedilotildees natildeo governamentais O segundo caderno intitula-se Gestatildeo Intersetorial no Territoacuterio

(Brasil 2009b) e foi elaborado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educaccedilatildeo e Accedilatildeo Comunitaacuteria (Cenpec)

uma organizaccedilatildeo da sociedade civil sem fins lucrativos com sede em Satildeo Paulo (capital) Jaacute a publicaccedilatildeo Rede de

Saberes Mais Educaccedilatildeo (Brasil 2009c) cujo subtiacutetulo eacute pressupostos para projetos pedagoacutegicos de educaccedilatildeo

integral foi elaborada por um uacutenico autor com a colaboraccedilatildeo da Casa das Artes uma organizaccedilatildeo da sociedade

civil sem fins lucrativos com sede no Rio de Janeiro (capital) e da Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Recife

179

Com o objetivo de compreender o funcionamento do Mais Educaccedilatildeo produziu-se um

material subsidiado na anaacutelise dos trecircs cadernos e em entrevistas feitas para pesquisa de

mestrado (Zepletal 2017) com quatro gestores do Programa um gestor municipal e outro

estadual de Satildeo Paulo e dois gestores federais Os entrevistados foram escolhidos em razatildeo do

conhecimento que tecircm do Programa e por sua imersatildeo no contexto de sua estruturaccedilatildeo e

implantaccedilatildeo As entrevistas foram realizadas em Satildeo Paulo (capital) e Brasiacutelia em janeiro e

fevereiro de 2015 Utilizou-se um roteiro semiestruturado em torno dos seguintes toacutepicos o

papel da ampliaccedilatildeo da jornada escolar de tempo integral o porquecirc do atual investimento do

Governo Federal na ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos alunos nas escolasatividades

escolares e os desafios encontrados na implantaccedilatildeo do Programa As entrevistas foram

transcritas e enviadas aos entrevistados assim como o texto escrito a partir delas Os

entrevistados tambeacutem assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido em que

concordaram em participar como voluntaacuterios da pesquisa15 O material transcrito tornou-se

documento de estudo em nosso trabalho Algumas precauccedilotildees em relaccedilatildeo ao modo de operar

com os discursos com os quais se entrou em contato durante a pesquisa foram tomadas

Partindo de um horizonte no qual as verdades satildeo produzidas pelos discursos e operando

a partir do referencial teoacuterico foucaultiano (Foucault 2005) teve-se como premissa o esforccedilo

para natildeo retratar os sujeitos entrevistados como homogecircneos e a-histoacutericos tampouco

consideraacute-los como fonte original de suas falas ndash uma vez que estas participam de uma rede

discursiva que lhes permite dizer o que dizem do modo como dizem Nesse sentido os modos

de pensar e agir presentes no campo de investigaccedilatildeo natildeo satildeo tratados como fenocircmenos que natildeo

deveriam acontecer A esse respeito Machado (2011) lembra que aquilo que comumente

nomeamos como uma forma equivocada de agir e pensar porta uma positividade pois afirma

uma maneira de ver o mundo sendo portanto efeito de um processo de produccedilatildeo carregando

um sentido engendrado em um campo em que se embatem muacuteltiplas forccedilas

Por meio da anaacutelise dos cadernos e das entrevistas pudemos depreender alguns

enunciados recorrentes que parecem legitimar o Programa Com o propoacutesito de identificar e

analisar tais enunciados foram destacadas trecircs categorias denominadas de (1) escola e vida

(2) diaacutelogo com a comunidade e (3) gestatildeo intersetorial

15 As entrevistas realizadas com os gestores foram feitas a partir da assinatura do termo de consentimento livre e

esclarecido mas natildeo passou pelo Comitecirc de Eacutetica pois a Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade de Satildeo Paulo

(USP) natildeo requer passar nesse comitecirc quando se trata de entrevistas

180

31 Escola e vida

Entre as principais orientaccedilotildees do Mais Educaccedilatildeo encontram-se os discursos que

enfatizam a necessidade de uma reaproximaccedilatildeo entre escola e vida embora natildeo seja explicitado

qual o entendimento sobre essa noccedilatildeo Infere-se que a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre escola e

vida seria aleacutem da ampliaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos de educaccedilatildeo a ideia de uma escola que

funcionasse como uma ldquocomunidade de aprendizagemrdquo (Brasil 2009a p 31) onde diferentes

atores constroem um projeto educativo e cultural e reconhecem que

todos os espaccedilos satildeo educadores ndash toda a comunidade e a cidade com seus museus igrejas

monumentos locais como ruas e praccedilas lojas e diferentes locaccedilotildees ndash cabendo agrave escola articular

projetos comuns para sua utilizaccedilatildeo e fruiccedilatildeo considerando espaccedilos tempos sujeitos e objetos

do conhecimento (Brasil 2009a p 35)

Nota-se aqui a articulaccedilatildeo dos discursos do Programa com a proposta internacional de

cidade educadora Conforme afirma o Programa a educaccedilatildeo ldquonatildeo se realiza somente na escola

mas em todo um territoacuterio e deve expressar um projeto comunitaacuterio A cidade eacute compreendida

como educadora como territoacuterio pleno de experiecircncias de vida e instigador de interpretaccedilatildeo e

transformaccedilatildeordquo (Brasil 2009c p 31)

O coordenador do Mais Educaccedilatildeo no niacutevel municipal de Satildeo Paulo corrobora essa ideia

ao apontar que a possibilidade do uso de outros espaccedilos educativos presentes na comunidade

local em que as escolas estatildeo inseridas propiciaria uma via para que as atividades diversificadas

ofertadas fugissem do ldquomais do mesmordquo

A presenccedila ndash tanto nos documentos analisados que normatizam o Programa Mais

Educaccedilatildeo como nas entrevistas com os gestores do Programa ndash da ideia notavelmente repetida

de que ldquotodos os espaccedilos satildeo educadoresrdquo chama atenccedilatildeo Essa ideia remete agrave constataccedilatildeo jaacute

apontada por alguns autores de que estariacuteamos vivendo numa sociedade que pretende assegurar

que todos os tempos e espaccedilos sejam pedagogizados uma sociedade ldquototalmente

pedagogizadardquo (Ball 2013) Tal sociedade instiga a compreender a vida como podendo ser

medida e racionalizada como resultado de escolhas feitas ou a serem feitas As praacuteticas

contemporacircneas de subjetivaccedilatildeo alerta Rose (2001) produzem um ser com um projeto de

identidade e de estilo de vida e que entende que a vida tem sentido se construiacuteda como resultado

de escolha pessoal

A ideia de que por meio do Mais Educaccedilatildeo e das diversas atividades ofertadas pelo

Programa aos alunos eles poderiam ter maior possibilidade de fazer escolhas e por

conseguinte teriam maior liberdade individual eacute bastante presente nos cadernos analisados e

181

nos discursos sobre os possiacuteveis efeitos do Programa Tal ideia remete a uma noccedilatildeo de liberdade

compreendida como soberania de uma vontade ou escolha pessoal

No entanto ao pensar a noccedilatildeo de liberdade nas coordenadas da governamentalidade

esta lembra Aquino (2013) natildeo pode ser confundida com uma liberdade intimizada como

empresariamento de si ou como autorregulatoacuteria pois o exerciacutecio da liberdade natildeo se opotildee ao

poder mas a liberdade joga ldquocom o poder na proacutepria superfiacutecie dos acontecimentos cotidianosrdquo

(Aquino 2013 p 207)

32 Diaacutelogo com a comunidade

A segunda categoria de anaacutelise que se destaca a partir da leitura dos documentos que

normatizam o Programa e das entrevistas realizadas eacute designada aqui de diaacutelogo com a

comunidade Satildeo recorrentes nos cadernos analisados discursos que afirmam a necessidade de

se enfrentar a distacircncia que caracterizaria as relaccedilotildees entre escola e comunidade na atualidade

a fim de ampliar a dimensatildeo das experiecircncias educadoras Para o Programa a fragilidade do

diaacutelogo entre escola e comunidade seria o elemento responsaacutevel por uma seacuterie de efeitos

perniciosos tais como ldquo(hellip) a rebeldia frente agraves normas escolares os altos iacutendices de fracasso

escolar pichaccedilotildees e depredaccedilotildees de preacutedios escolares atitudes desrespeitosas no conviacutevio

escolar e a apatia dos alunosrdquo (Brasil 2009a p 34)

O Programa advoga que as escolas que mais avanccedilaram no diaacutelogo com a comunidade

ldquoforam as que atingiram os resultados acadecircmicos mais positivosrdquo (Brasil 2009c p 16)

Observa-se portanto uma grande aposta do Programa nas possibilidades de troca e diaacutelogo

entre escolas e comunidade e na entrada nas escolas daquilo que o Mais Educaccedilatildeo chama de

ldquosaberes comunitaacuteriosrdquo como perspectiva de mudanccedila das experiecircncias educadoras ateacute entatildeo

oferecidas

Essa ideia eacute tambeacutem evidenciada na fala do coordenador federal do Programa que

ressalta que a possibilidade de trazer ldquoo campo dos saberes comunitaacuteriosrdquo para o interior das

escolas eacute algo bastante significativo O coordenador compreende que natildeo seraacute possiacutevel avanccedilar

com a promoccedilatildeo da educaccedilatildeo integral no Paiacutes sem o uso de monitores Ele explica sua posiccedilatildeo

dizendo

182

sem monitores acho que natildeo daacute natildeo acho que natildeo seria bom primeiro por uma questatildeo

porque acho que os meninos precisam mesmo de outros saberes e segundo porque tem uma

questatildeo financeira e tambeacutem com o nuacutemero de professores que se tecircm hoje natildeo daacute16

A responsabilizaccedilatildeo da comunidade pela eficiecircncia das escolas eacute destacada tanto na fala

dos gestores do Programa quanto nos cadernos analisados A insuficiecircncia de recursos puacuteblicos

(humanos e financeiros) para atender as demandas das escolascomunidade conforme apontado

pelo coordenador do Programa e a escolha da utilizaccedilatildeo de monitores voluntaacuterios para dar

conta de tal situaccedilatildeo denotam que caberia agraves escolascomunidade localmente inventar a

superaccedilatildeo de seus problemas

Para o Mais Educaccedilatildeo o desafio de construccedilatildeo daquilo que o Programa chama de uma

educaccedilatildeo integral aumenta

se pensarmos que cada escola e cada comunidade mesmo que com aportes de programas de

governo satildeo responsaacuteveis pela superaccedilatildeo de seus proacuteprios limites vividos porque satildeo elas que

os conhecem e que podem reinventaacute-los O desafio do programa portanto eacute estruturar-se sobre

uma base capaz de permitir que os diversos projetos de educaccedilatildeo integral sejam territorializados

e nasccedilam em resposta a cada realidade (Brasil 2009c p 89 grifos nossos)

A partir do exposto pode-se compreender melhor o porquecirc de o Programa enfatizar seu

caraacuteter de estrateacutegia indutora da ampliaccedilatildeo da jornada escolar nos estados e municiacutepios O

Estado portanto natildeo seria mais o agente principaluacutenico da accedilatildeo puacuteblica ldquomas espera-se que

cumpra sua missatildeo de intelligentsia do fazer puacuteblico e em consequecircncia exerccedila papel indutor

e articulador de esforccedilos governamentais e societaacuterios em torno de prioridades da poliacutetica

puacuteblicardquo (Brasil 2009a p 44)

Entende-se assim que os desafios relacionados agrave garantia da qualidade de

aprendizagem propiciada pelas escolas puacuteblicas estariam especialmente relacionados agrave gestatildeo

dos sistemas educativos Essa ideia remete ao terceiro e uacuteltimo enunciado que parece legitimar

o Programa Mais Educaccedilatildeo presente nas entrevistas realizadas e nos cadernos analisados

gestatildeo intersetorial

33 Gestatildeo intersetorial

O termo intersetorialidade eacute bastante utilizado pelo Programa e expresso como

ldquocaracteriacutestica de uma nova geraccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas que orientam a formulaccedilatildeo de uma

proposta de Educaccedilatildeo Integralrdquo (Brasil 2009a p 43) Esse novo tipo de poliacutetica puacuteblica

16 Entrevista realizada no dia 3 de fevereiro de 2015 em Brasiacutelia [material transcrito]

183

impotildee-se como necessidade e tarefa que se devem ao reconhecimento da desarticulaccedilatildeo

institucional e da pulverizaccedilatildeo na oferta das poliacuteticas sociais mas tambeacutem ao passo seguinte

desse reconhecimento para articular os componentes materiais e ideais que qualifiquem essas

poliacuteticas (Brasil 2009a p 43)

Dito de outro modo a intersetorialidade se materializa no cotidiano da gestatildeo agrave medida que

consegue criar consenso em torno de uma meta com a qual todos possam em alguma medida

comprometer-se (Brasil 2009b p 25)

A analista do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo que coordena o Mais Educaccedilatildeo em niacutevel federal

aponta que hoje existe uma intencionalidade expliacutecita da gestatildeo puacuteblica em parar de atribuir

inuacutemeras funccedilotildees agraves escolas Segundo a analista a noccedilatildeo de intersetorialidade ou de poliacuteticas

puacuteblicas intersetoriais que ldquorequer que diferentes setores se comuniquem para que as

demandas puacuteblicas sejam canalizadas de um modo mais racionalrdquo17 joga um importante papel

na diminuiccedilatildeo da atribuiccedilatildeo de funccedilotildees de diferentes naturezas agraves escolas

Para o Programa outro requisito considerado indispensaacutevel para a boa gestatildeo das

unidades escolares refere-se ao papel da democratizaccedilatildeo da gestatildeo Esta eacute considerada um

indicador de qualidade da educaccedilatildeo

enfatizando que em muitos estados e municiacutepios ou mesmo comunidades com menor

financiamento puacuteblico as escolas que adotaram a gestatildeo democraacutetica e mantecircm projetos

pedagoacutegicos bem elaborados tecircm se destacado nas avaliaccedilotildees institucionais e no IDEB como

prova de que a participaccedilatildeo social se constitui um oacutetimo meacutetodo de avaliaccedilatildeo e de fiscalizaccedilatildeo

do desempenho escolar e que a eficiecircncia gestora natildeo se limita agrave racionalidade e agrave

potencializaccedilatildeo dos recursos financeiros e administrativos Os sistemas de ensino poderatildeo

ampliar a praacutetica da gestatildeo democraacutetica ao promover a participaccedilatildeo social nos Conselhos de

Educaccedilatildeo (Estaduais e Municipais) bem como realizar eleiccedilatildeo para diretores de escola

observadas as prerrogativas de autonomia administrativa (Brasil 2009a p 41)

Nota-se por meio da leitura dos cadernos do Programa e das falas dos gestores

entrevistados o lugar de destaque ocupado pelo tema da gestatildeo da escola

Um dos aspectos considerados desafiadores para o bom funcionamento do Programa

assinalados pelo coordenador de educaccedilatildeo integral da Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do

Ministeacuterio da Educaccedilatildeo diz respeito agrave necessidade de maior formaccedilatildeo dos profissionais da

educaccedilatildeo em geral em especial dos gestores para que possam lidar com a complexidade atual

da gestatildeo das escolas Essa ideia eacute corroborada na entrevista com a coordenadora estadual de

Satildeo Paulo do Mais Educaccedilatildeo ao afirmar a necessidade de uma maior capacitaccedilatildeo dos gestores

escolares para aprimorar a relaccedilatildeo escola e comunidade e para que os gestores possam lidar

com o grande volume de contas que precisam administrar Com a entrada nas escolas de muitos

17 Entrevista realizada no dia 3 de fevereiro de 2015 em Brasiacutelia [material transcrito]

184

outros Programas interligados ao Mais Educaccedilatildeo cabe aos diretores escolares administrarem a

prestaccedilatildeo de um nuacutemero extenso de contas

A recorrecircncia nas falas sobre o Programa que assinalam a necessidade de processos

formativos permanentes da gestatildeo escolar indica que os desafios enfrentados pelas escolas

puacuteblicas estariam prioritariamente relacionados a aspectos de gestatildeo Essa forma de

compreender as dificuldades das escolas parece estar alinhada com um aumento da

responsabilizaccedilatildeo individual dos gestores pela eficiecircncia das escolas e ainda com uma reduccedilatildeo

de questotildees poliacuteticas e econocircmicas complexas que perpassam as escolas puacuteblicas na atualidade

tais como a insuficiecircncia de recursos puacuteblicos para atender as demandas das

escolascomunidades

Percebe-se portanto a necessidade de se examinar com cautela os discursos que

apontam a necessidade de tal formaccedilatildeo permanente dos gestores escolares uma vez que tendem

a ter como efeito a culpabilizaccedilatildeo dos gestores por situaccedilotildees que ultrapassam em grande medida

sua possibilidade de atuaccedilatildeo

Consideraccedilotildees finais

Em uacuteltima anaacutelise o que as leituras dos documentos que normatizam o Programa Mais

Educaccedilatildeo e as entrevistas com seus gestores permitem inferir eacute que a entrada de programas

como o Mais Educaccedilatildeo nas escolas puacuteblicas brasileiras para aleacutem da evidente ampliaccedilatildeo do

caraacuteter de proteccedilatildeo integral das crianccedilas parece indicar mudanccedilas de concepccedilotildees sobre o que

seriam a aprendizagem e o tempo escolar Observa-se a presenccedila de uma noccedilatildeo de

aprendizagem escolar que estaria muito mais relacionada com o aprender a ser algo ndash um

aprendiz ao longo da vida ndash do que com o estudar ou praticar algo e uma noccedilatildeo de tempo

escolar como tempo produtivo tempo ocupado tempo para aprender Essa noccedilatildeo de

aprendizagem remete agrave constataccedilatildeo de que o conceito de aprendizagem no presente seria uma

forccedila crucial de governo de noacutes mesmos

Nota-se por fim juntamente com Magnus Dahlstedt e Mekonnen Tesfahuney (2010)

que os discursos de uma aprendizagem ao longo da vida trazem um apelo universal que os torna

aparentemente apoliacuteticos parecendo natildeo pertencer a um tempo nem lugar especiacuteficos No

entanto escondem uma natureza altamente poliacutetica e efetiva para produzir modos de viver em

que o aprender eacute uma norma Tais discursos satildeo portanto centrais para entender as

185

racionalidades governamentais neoliberais em que o Estado se inscreve nas accedilotildees dos sujeitos

ao investir para que os sujeitos faccedilam suas proacuteprias escolhas

Esse artigo ao enfatizar alguns elementos presentes nos cadernos do Programa Mais

Educaccedilatildeo e nas falas de alguns de seus gestores deu relevo agrave necessidade de se considerar que

ideias e termos como escolha pessoal participaccedilatildeo da comunidade e gestatildeo democraacutetica

precisam ser analisados em suas relaccedilotildees com as formas de governar e os processos de

pedagogizaccedilatildeo da vida Do contraacuterio as questotildees da escolha e da participaccedilatildeo tornam-se

abstratas pois abstraiacutedas de suas condiccedilotildees de existecircncia O agenciamento singular em cada

unidade escolar com a implementaccedilatildeo do Programa Mais Educaccedilatildeo se daacute na complexidade do

cotidiano e dependeraacute das compreensotildees locais da forma como ocorrem os atravessamentos

dos discursos oficiais e das condiccedilotildees concretas de cada realidade Ao nos debruccedilarmos sobre

discursos presentes em materiais e falas oficiais operamos um recorte em nossa anaacutelise que

considera esses discursos como forccedilas intensas na construccedilatildeo cotidiana das praacuteticas referentes

ao Programa e portanto de suas condiccedilotildees de existecircncia

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Dissertaccedilatildeo de Mestrado Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

189

Capiacutetulo 10

Poliacuteticas Puacuteblicas de Orientaccedilatildeo Profissional uma anaacutelise

socioconstrucionista sobre a construccedilatildeo do Projeto de Vida no Programa

Ensino Integral (PEI)

Omar Calazans Nogueira Pereira

Marcelo Afonso Ribeiro

Introduccedilatildeo

Na deacutecada de 1970 o ensino teacutecnico tornou-se compulsoacuterio para todos que

completavam o ciclo escolar e atividades de Orientaccedilatildeo Profissional (OP) estavam previstas na

legislaccedilatildeo e implementadas em alguns estados Houve entatildeo uma seacuterie de pesquisas sobre

estas poliacuteticas puacuteblicas de OP dentre as quais ressaltamos os trabalhos de Baptista (1984)

Carvalho (1985) e Lobo (2005) que investigaram o Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP)

no Estado de Satildeo Paulo

No entanto desde o encerramento destas poliacuteticas puacuteblicas nos anos 1980 ocorreram

somente pesquisas pontuais sobre poliacuteticas puacuteblicas em OP Temos como exemplo o trabalho

de Silva (2010) que investigou como as escolas puacuteblicas de Ensino Meacutedio auxiliam os alunos

na construccedilatildeo de projetos profissionais e discutiu caminhos para um programa de poliacutetica

puacuteblica em OP Tambeacutem haacute a pesquisa de Munhoz (2010) que sugere subsiacutedios para a

elaboraccedilatildeo de programas de OP no contexto educacional brasileiro

Em termos mundiais haacute vaacuterios modelos de programas de OP em escolas vinculados agraves

poliacuteticas puacuteblicas como a Ativaccedilatildeo do Desenvolvimento Vocacional e Pessoal (ADVP)

(Pelletier Noiseux amp Bujold 1982) e a proposta de Educaccedilatildeo para a Carreira (Hoyt 1987)

mas no sistema educacional brasileiro e na legislaccedilatildeo nunca houve nada sistematizado e

implementado semelhante agraves propostas citadas segundo Munhoz (2010) e Silva (2010)

Recentemente com a ampliaccedilatildeo do ensino integral puacuteblico e as reformas no sistema

educacional novas poliacuteticas puacuteblicas de educaccedilatildeo e trabalho estatildeo sendo implementadas

trazendo consigo a ecircnfase no aluno e na construccedilatildeo de seu projeto de vida Por exemplo no

Estado de Satildeo Paulo a partir de 2020 com base no modelo de ensino existente nas escolas do

190

Programa Ensino Integral (PEI) a disciplina Projeto de Vida estaraacute presente em todas as escolas

puacuteblicas estaduais de Ensino Meacutedio

O presente capiacutetulo eacute baseado em pesquisa de Mestrado desenvolvida no periacuteodo de

2017 a 2019 que visou compreender teoacuterico-metodoloacutegica e ideologicamente a proposta da

disciplina ldquoProjeto de Vidardquo nas escolas do PEI do Estado de Satildeo Paulo a partir do

construcionismo social e analisar se essa proposta seria uma poliacutetica puacuteblica de OP1 Com base

no construcionismo social principalmente a partir das contribuiccedilotildees de Blustein (2011) e

McNamee (2012) e por meio de uma metodologia qualitativa narrativa foi realizada uma

anaacutelise de conteuacutedo dos discursos sociais e narrativas pessoais produzidos em documentos

escolares e nos grupos focais com professores e alunos de duas escolas da Regiatildeo Metropolitana

de Satildeo Paulo

1 A orientaccedilatildeo profissional (OP) na legislaccedilatildeo educacional brasileira e em programas

educacionais paulistas

11 A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educaccedilatildeo de 1971 e o Programa de Informaccedilatildeo

Profissional (PIP)

Em meio ao golpe militar 1964 a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo de 1971 ndash LDB

nordm 569271 em substituiccedilatildeo agrave LDB nordm 402461 reformulou o 2ordm Grau tornando-o

profissionalizante (Brasil 1971) ou seja todos os alunos formados no Ensino Meacutedio saiacuteram

obrigatoriamente habilitados para o exerciacutecio de uma atividade profissional Havia uma pressatildeo

popular por mais vagas nas universidades e essa reformulaccedilatildeo do ensino teria sido uma forma

de conter essa demanda pois uma vez adquirida uma profissatildeo ao teacutermino da escola a pessoa

desistiria de ingressar no Ensino Superior (Romanelli 1986)

Esta nova LDB estabeleceu a orientaccedilatildeo vocacional tanto para o 1ordm Grau quanto para o

2ordm grau ldquoseraacute instituiacuteda obrigatoriamente a Orientaccedilatildeo Educacional incluindo aconselhamento

vocacional em cooperaccedilatildeo com os professores a famiacutelia e a comunidaderdquo (Brasil 1971 art

10) Na anaacutelise de Pimenta (1981) a praacutetica da OP na escola acabou reduzida agrave informaccedilatildeo

profissional devido a impossibilidade de testes psicoloacutegicos serem aplicados pelos orientadores

1 Pereira O C N (2019) A construccedilatildeo do projeto de vida no Programa Ensino Integral (PEI) uma anaacutelise na

perspectiva da Orientaccedilatildeo Profissional (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Instituto de Psicologia Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo Agecircncia de fomento Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES)

191

educacionais em funccedilatildeo da regulamentaccedilatildeo da profissatildeo de psicoacutelogo no Brasil pela Lei nordm

411962 (Brasil 1962) e a determinaccedilatildeo na mesma lei de que somente psicoacutelogos poderiam

usar testes psicoloacutegicos

Pouco tempo depois 1968 a profissatildeo do orientador educacional foi prevista pela Lei

nordm 556464 (Brasil 1968) e regulamentada pelo Decreto nordm 7284673 (Brasil 1973) Neste

decreto seriam atribuiccedilotildees privativas do orientador educacional coordenar a orientaccedilatildeo

vocacional do aluno assim como o processo de sondagem de interesses aptidotildees e habilidades

e o processo de informaccedilatildeo profissional Neste momento houve uma ruptura na qual os

pedagogos tornaram-se os detentores dos processos de OP nas escolas enquanto que os

psicoacutelogos afastados das escolas tornaram-se os detentores das ferramentas (Uvaldo amp Silva

2010)

Por conta de problemas na implementaccedilatildeo do ensino profissionalizante proposto pela

LDB 569271 houve em 1975 uma mudanccedila em seu formato tornando sua duraccedilatildeo mais breve

(Baptista 1984 Silva 2010) Dois anos depois o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) propocircs a

disciplina Orientaccedilatildeo Ocupacional no primeiro ano do Ensino Meacutedio Ministrada pelo

orientador educacional a disciplina visaria auxiliar os alunos na escolha entre as diferentes

ocupaccedilotildees dentro de determinada habilitaccedilatildeo (Brasil 1977) No Estado de Satildeo Paulo a

disciplina recebeu o nome de Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP)

O Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP) consistiu em uma disciplina oferecida aos

alunos do primeiro ano do 2ordm grau das escolas puacuteblicas O objetivo era dar informaccedilotildees e

subsiacutedios aos alunos para realizar a escolha por uma das trecircs opccedilotildees de habilitaccedilatildeo baacutesica O

primeiro ano era comum a todas habilitaccedilotildees sendo que nos dois anos seguintes os alunos

deveriam cursar disciplinas referentes agrave habilitaccedilatildeo escolhida (Silva 2010)

Em relaccedilatildeo ao documento ldquoProgramas de Informaccedilatildeo Profissionalrdquo publicado pela

Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagoacutegicas (CENP) estabelecendo os objetivos do PIP e

seu conteuacutedo programaacutetico Silva (2010) constata a concepccedilatildeo presente no documento de que

os alunos tecircm uma imagem errada das profissotildees que deveria ser corrigida pela disciplina por

meio de oferta de informaccedilatildeo profissional qualificada e Lobo (2005) destaca a ausecircncia de

conteuacutedos especiacuteficos sobre o conhecimento do aluno a respeito de si mesmo ou seja

autoconhecimento natildeo aparece como um tema especiacutefico

192

Para Baptista (1984) a contestaccedilatildeo da Lei 569271 (Brasil 1971) por parte da

comunidade escolar estendeu-se ao PIP contaminando a experiecircncia do programa Aleacutem disso

para Baptista (1984) outros fatores que contribuiacuteram para o fracasso do PIP foram

bull Falta de treinamento para professores que se mostraram despreparados

bull Falta de material didaacutetico e bibliograacutefico adequado para utilizaccedilatildeo

bull Desinteresse dos alunos que criticavam a maacute conduccedilatildeo das aulas e do desenvolvimento das

atividades

Baptista (1984) ainda traz outros dois motivos como a ausecircncia de discussatildeo sobre o

contexto socioeconocircmico e poliacutetico do trabalho e a imposiccedilatildeo do programa aos agentes

educativos que natildeo puderam debatecirc-lo Para Silva (2010 p 41) ldquoo contexto poliacutetico do periacuteodo

foi um dos principais motivos de fracasso da disciplinardquo

Somado a isso estavam ausentes no PIP dois pontos importantes na criaccedilatildeo de um

programa direcionado para o atendimento de um grande nuacutemero de pessoas apresentaccedilatildeo de

uma proposta teoacuterica clara como embasamento e consideraccedilatildeo de fatores regionais na sua

elaboraccedilatildeo (Silva 2010) Segundo o autor em programas de OP eacute importante adequar a

proposta agrave comunidade considerando os recursos disponiacuteveis na escola Igualmente uma

proposta tatildeo ampla deve possuir uma clara fundamentaccedilatildeo teoacuterica que propicie a formaccedilatildeo das

pessoas envolvidas e instrumentalize o trabalho No Estado de Satildeo Paulo a experiecircncia do PIP

esteve em vigecircncia ateacute 1982 (Baptista 1984 Carvalho 1985 Lobo 2005)

12 A Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional de 1996 e a Reforma do Ensino Meacutedio

ndash Lei no 134152017

A partir do final da deacutecada de 1970 o Brasil comeccedilou a passar por um processo de

abertura poliacutetica e nesse contexto o Governo Federal continuava lidando com o fracasso da

profissionalizaccedilatildeo compulsoacuteria (Palma Filho 2010) Em 1982 eacute promulgada a Lei nordm 704482

que alterou os dispositivos da Lei nordm 569271 retirando a profissionalizaccedilatildeo do ensino do 2ordm

grau (Brasil 1982) Assim voltam a ser opcionais as habilitaccedilotildees profissionais de niacutevel teacutecnico

Vale mencionar que mesmo com a Lei nordm 704482 natildeo foi alterado o Art 10ordm da LDB de 1971

que instituiacutea a obrigatoriedade da orientaccedilatildeo educacional e do aconselhamento vocacional

Praticamente sem alteraccedilotildees significativas a legislaccedilatildeo educacional se manteve ateacute

1996 ocasiatildeo da promulgaccedilatildeo da Lei nordm 939496 (Brasil 1996) Apesar de referecircncias sobre a

questatildeo do trabalho ao longo do texto eacute retirada a menccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo educacional assim

como qualquer menccedilatildeo direta agrave OPvocacional Entretanto a Lei nordm 939496 manteacutem a

193

possibilidade das escolas terem uma parte diversificada nos curriacuteculos de 1ordm e 2ordm graus aleacutem da

base nacional comum o que permitiu a inserccedilatildeo de disciplinas de OP ou semelhantes na grade

curricular em algumas escolas principalmente particulares

Mais recentemente a Medida Provisoacuteria no 7462016 (Brasil 2016b) posteriormente

convertida na Lei no 134152017 (Brasil 2017a) tambeacutem conhecida como Reforma do Ensino

Meacutedio propocircs uma seacuterie de alteraccedilotildees da legislaccedilatildeo anterior Segundo o MEC a Reforma do

Ensino Meacutedio teria por objetivo entre outros tornar o curriacuteculo mais atrativo tornando-o mais

flexiacutevel (Brasil 2016a) O Ensino Meacutedio possuiacutea ldquoum curriacuteculo extenso superficial e

fragmentado que natildeo dialoga com a juventude com o setor produtivo tampouco com as

demandas do seacuteculo XXIrdquo (Brasil 2016a)

Dentre algumas modificaccedilotildees da Lei no 134152017 (Brasil 2017a) somente o ensino

de portuguecircs e matemaacutetica se mantiveram como obrigatoacuterios nos trecircs anos do Ensino Meacutedio O

curriacuteculo deste niacutevel de ensino passa a ser composto por aleacutem da Base Nacional Comum

Curricular (BNCC) itineraacuterios formativos que deveratildeo ser organizados na oferta dos seguintes

arranjos linguagens e suas tecnologias matemaacutetica e suas tecnologias ciecircncias da natureza e

suas tecnologias ciecircncias humanas e sociais aplicadas formaccedilatildeo teacutecnica e profissional (Brasil

2017a)

Sfredo e Silva (2016) apontam que as reformas do Ensino Meacutedio nos uacuteltimos dez anos

anunciam uma aproximaccedilatildeo do processo de escolarizaccedilatildeo com os princiacutepios e leis do mercado

sendo o valor do conhecimento definido pelo potencial de empregabilidade que pode garantir

ao sujeito Segundo os autores o ldquoconhecimento natildeo pode ser esvaziado de seu potencial de

intervenccedilatildeo poliacutetica e socialrdquo (Sfredo amp Silva 2016 p 891) Nesse sentido seria necessaacuterio o

estabelecimento de uma criacutetica agraves reformas educacionais que vinculam ldquoa educaccedilatildeo a ganhos

econocircmicos e ao mesmo tempo responsabiliza o indiviacuteduo por seu sucesso ou fracassordquo

(Sfredo amp Silva 2016 p 893)

Ainda de acordo com a Lei no 134152017 ldquoos curriacuteculos do ensino meacutedio deveratildeo

considerar a formaccedilatildeo integral do aluno de maneira a adotar um trabalho voltado para a

construccedilatildeo de seu projeto de vida e para sua formaccedilatildeo nos aspectos fiacutesicos cognitivos e

socioemocionaisrdquo (Brasil 2017a art 35-A sect7) A escola por sua vez deve ldquoorientar os alunos

no processo de escolha das aacutereas de conhecimento ou de atuaccedilatildeo profissionalrdquo (Brasil 2017a

art 36 sect12) Especificamente sobre a escolha dos itineraacuterios formativos seraacute decidido pelos

sistemas estaduais de ensino quando o aluno faraacute essa escolha pois a parte diversificada do

194

curriacuteculo poderaacute iniciar por exemplo tanto no primeiro quanto no segundo ano do Ensino

Meacutedio (Brasil 2017b)

Atualmente a expressatildeo ldquoprojeto de vidardquo tem sido utilizada com frequecircncia e natildeo haacute

uma definiccedilatildeo clara sobre qual o significado dessa expressatildeo conforme aponta Bock (2018) O

autor assinala que haacute definiccedilotildees que trazem o projeto de vida como uma accedilatildeo individual

desconsiderando a realidade econocircmica social e poliacutetica na qual as pessoas vivem Nestas

definiccedilotildees a pessoa eacute a responsaacutevel pelo seu caminho e posiccedilatildeo na sociedade Ao mesmo

tempo existem concepccedilotildees mais criacuteticas de projeto de vida que colocam a meritocracia em

discussatildeo e que incluem projetos coletivos junto aos pessoais atraveacutes da compreensatildeo da

realidade social econocircmica e poliacutetica aleacutem da histoacuteria de vida e familiar da pessoa

O termo ldquoProjeto de Vidardquo tambeacutem estaacute presente na Base Nacional Comum Curricular

(BNCC) que define o conjunto orgacircnico e progressivo de aprendizagens essenciais que os

alunos devem desenvolver ao longo da Educaccedilatildeo Baacutesica (Brasil 2017c) Estas aprendizagens

asseguram ao estudante o desenvolvimento de dez competecircncias gerais No documento

competecircncia eacute definida como ldquoa mobilizaccedilatildeo de conhecimentos (conceitos e procedimentos)

habilidades (praacuteticas cognitivas e socioemocionais) atitudes e valores para resolver demandas

complexas da vida cotidiana do pleno exerciacutecio da cidadania e do mundo do trabalhordquo (Brasil

2017c p 8) Na BNCC dentre as dez competecircncias gerais temos como uma das competecircncias

gerais da Educaccedilatildeo Baacutesica

Valorizar a diversidade de saberes e vivecircncias culturais e apropriar-se de conhecimentos e

experiecircncias que lhe possibilitem entender as relaccedilotildees proacuteprias do mundo do trabalho e fazer

escolhas alinhadas ao exerciacutecio da cidadania e ao seu projeto de vida com liberdade autonomia

consciecircncia criacutetica e responsabilidade (Brasil 2017c p 9)

Para Ferreti e Silva (2017 p 398) a BNCC quando discute as finalidades do Ensino

Meacutedio possui uma inspiraccedilatildeo gramsciana mas ao mesmo tempo em caraacuteter hiacutebrido apresenta

proposiccedilotildees da ldquoperspectiva do desenvolvimento de competecircncias e do individualismordquo Para

Carvalho e Santos (2016 p 790) a loacutegica das competecircncias nos leva a validar ldquoa falsa ideia de

que as desigualdades sociais satildeo problemas individuais de sujeitos que natildeo foram

suficientemente competentes para se qualificarrdquo

13 O Programa Ensino Integral (PEI) e novos programas no Estado de Satildeo Paulo

No Estado de Satildeo Paulo o PEI foi implantado em 2012 atendendo inicialmente o Ensino

Meacutedio sendo posteriormente estendido para o Ensino Fundamental O PEI foi criado tendo

195

como base o modelo da Escola da Escolha desenvolvido e implementado em 2004 no Ginaacutesio

Pernambucano pelo Instituto de Corresponsabilidade pela Educaccedilatildeo (ICE) e posteriormente

implementado em 17 estados brasileiros

O modelo pedagoacutegico do PEI prevecirc a matriz curricular com uma parte diversificada

que inclui no Ensino Meacutedio as disciplinas Liacutengua Estrangeira Moderna Praacutetica de Ciecircncias

Orientaccedilatildeo de Estudos Projeto de Vida Mundo do Trabalho Preparaccedilatildeo Acadecircmica e

Disciplinas Eletivas (Satildeo Paulo 2014b) Todas as escolas integrantes do programa funcionam

em periacuteodo integral com uma jornada de oito horas diaacuterias e os professores trabalham em

Regime de Dedicaccedilatildeo Plena e Integral (RDPI) de 40 horas semanais (Satildeo Paulo 2012)

A construccedilatildeo do Projeto de Vida mais do que uma disciplina eacute principalmente o eixo

estruturante do PEI O Projeto de Vida ldquoeacute o foco para o qual devem convergir todas as accedilotildees

educativas sendo construiacutedo a partir do provimento da excelecircncia acadecircmica da formaccedilatildeo para

valores e da formaccedilatildeo para o mundo produtivordquo (Satildeo Paulo 2014a p 23) A realizaccedilatildeo do

Projeto de Vida pressupotildee interaccedilatildeo com o Protagonismo Juvenil enquanto princiacutepio premissa

e metodologia (Satildeo Paulo 2014a)

A partir de 2020 atraveacutes do Programa Inovaccedilatildeo Educaccedilatildeo foram anunciadas pelo

Governo do Estado de Satildeo Paulo mudanccedilas na matriz curricular das escolas puacuteblicas Por

exemplo haveraacute uma aula a mais por dia e seratildeo introduzidas novas disciplinas no curriacuteculo

Projeto de Vida Eletivas e Tecnologia Mais especificamente haveraacute por semana duas aulas de

Projeto de Vida duas aulas de Eletivas e uma de Tecnologia ao longo dos trecircs anos do Ensino

Meacutedio (Satildeo Paulo 2019)

A ideia deste novo programa eacute ampliar para a rede as experiecircncias ocorridas nas escolas

do PEI e assim como ocorre neste modelo professores de diferentes aacutereas poderatildeo ministrar

as novas disciplinas Aleacutem disso tambeacutem foi anunciado o ldquoPrograma Seguranccedila nas Escolasrdquo

no qual dentre outras medidas haveraacute a implantaccedilatildeo de equipes de psicoacutelogos e assistentes

sociais nas diretorias de ensino para realizar atividades como a formaccedilatildeo de profissionais e o

ldquodesenvolvimento de habilidades socioemocionais aliadas ao curriacuteculo escolarrdquo (Satildeo Paulo

2019 p 35)

Para a anaacutelise do PEI como uacuteltimo modelo proposto de poliacutetica puacuteblica que auxiliaria

nas questotildees de OP a ser estudado no presente capiacutetulo seraacute utilizada uma proposta

socioconstrucionista (Blustein 2011 McNamee 2012) apresentada a seguir

196

2 Uma proposta socioconstrucionista de anaacutelise para a orientaccedilatildeo profissional (OP)

A perspectiva socioconstrucionista eacute multifacetada e se constitui numa rede de propostas

de anaacutelise de fenocircmenos psicossociais ou seja que acontecem na relaccedilatildeo entre pessoas e

contextos e partem de alguns princiacutepios gerais

Visa compreender a realidade de forma dinacircmica sem partir de pressupostos

predeterminados por isso eacute baseada numa ontologia relacional pois postula que o

conhecimento e a realidade satildeo produzidos em relaccedilatildeo (Blustein 2011 McNamee 2012) Neste

sentido preconiza a existecircncia de muacuteltiplas visotildees de mundo (narrativas) que podem ser

intercambiadas e gerar padrotildees (discursos) sempre a partir da visatildeo da indissociabilidade entre

as dimensotildees subjetiva e social nomeada de psicossocial (Ribeiro 2017)

Assim a realidade seria sempre um discurso sobre a realidade produzido

intersubjetivamente e que visa cristalizar posicionamentos coletivos (macronarrativas) atraveacutes

da produccedilatildeo de significados As narrativas seriam produccedilotildees singulares (micronarrativas) que

visam interpelar e desconstruir os discursos atraveacutes da produccedilatildeo de sentidos As praacuteticas e

processos sociais como as poliacuteticas puacuteblicas por exemplo satildeo produccedilotildees discursivas

coconstruiacutedas na teia de relaccedilotildees psicossociais definindo transitoriamente quais seriam os

discursos e significados norteadores de dada praacutetica social em determinado contexto e em

determinado momento soacutecio-histoacuterico Esta loacutegica possibilita a anaacutelise dos discursos sociais

que fundamentam dada praacutetica social como eacute o caso do programa PEI aqui estudado

Especificamente no campo da OP a perspectiva construcionista auxilia a pensar a

construccedilatildeo das trajetoacuterias e projetos de vida de trabalho bem como analisar praacuteticas como a

disciplina de Projeto de Vida entendidos como discursos intersubjetivamente gerados na

relaccedilatildeo entre significados e sentidos produzidos pela accedilatildeo de muacuteltiplos atores sociais entre

eles gestores puacuteblicos legisladores professores e alunos (Ribeiro 2014)

3 Objetivo

Esta pesquisa teve por objetivo compreender teoacuterico-metodoloacutegica e ideologicamente a

proposta da disciplina Projeto de Vida nas escolas do Programa Ensino Integral (PEI) do Estado

de Satildeo Paulo a partir da perspectiva do construcionismo social

Enquanto objetivos especiacuteficos buscou-se

a) Compreender como ocorre a construccedilatildeo do projeto de vida na disciplina

197

b) Identificar qual eacute o papel do professor na construccedilatildeo do projeto de vida na disciplina

e qual eacute a preparaccedilatildeo ou a formaccedilatildeo que recebe para ministraacute-la

c) Depreender a relevacircncia do protagonismo juvenil na construccedilatildeo do projeto de vida

d) Verificar se a disciplina Projeto de Vida pode ser entendida como uma poliacutetica

puacuteblica de Orientaccedilatildeo Profissional (OP) na grade curricular

4 Metodologia

A pesquisa qualitativa pode ser definida como ldquoum conjunto de praacuteticas materiais e

interpretativas que datildeo visibilidade ao mundordquo (Denzin amp Lincoln 2006 p 17) Para Morrow

(2007) os meacutetodos qualitativos satildeo eficazes em examinar processos e apropriados em

responder perguntas sobre o ldquocomordquo e o ldquoporquecircrdquo os fenocircmenos psicossociais ocorrem Essas

metodologias podem ser usadas para explorar variaacuteveis que natildeo satildeo facilmente identificaacuteveis

ou que ainda natildeo foram identificadas assim como investigar temas pelos quais ainda natildeo

existem pesquisas ou existem poucas (Morrow 2007)

Nesta pesquisa foi utilizada uma metodologia qualitativa narrativa (Polkinghorne

1988) Um dos objetivos do processo de pesquisa eacute restaurar a agecircncia para o autor da narrativa

(Parker 2005 p 72) pois a agecircncia foi retirada das pessoas ao serem tratadas como objeto de

pesquisa Voltar a ser sujeito na narrativa implica uma relaccedilatildeo com um tempo e um contexto

social ou seja a histoacuteria deve ser contada dentro de um determinado quadro temporal (Parker

2005) Da mesma forma de acordo com Parker (2005) uma narrativa eacute sempre tambeacutem uma

narrativa cultural

41 Seleccedilatildeo das escolas para a realizaccedilatildeo do trabalho de campo (anaacutelise documental e grupos

focais)

Foram procuradas duas escolas que estivessem localizadas em regiotildees distintas na

Regiatildeo Metropolitana de Satildeo Paulo denominadas para esta pesquisa de Escola A e Escola B

com base em criteacuterios socioeconocircmicos ou seja uma escola que atendesse alunos de classe

meacutedia e outra escola que tivesse mais alunos de classe baixa

A Escola A estaacute localizada na cidade de Guarulhos em um bairro comercial A escola

possui cerca de 600 alunos divididos em 18 turmas Conta com cerca 36 professores sendo que

13 ministram a disciplina Projeto de Vida Segundo dados sociodemograacuteficos coletados pela

198

proacutepria escola cerca de 80 dos alunos satildeo de classe meacutedia e 25 moram no proacuteprio bairro

A escola havia entrado no PEI haacute quase trecircs anos na eacutepoca da realizaccedilatildeo da pesquisa

Por seu lado a Escola B estaacute localizada na cidade de Satildeo Paulo proacutexima agrave regiatildeo de

Guaianases no extremo leste do municiacutepio O bairro eacute considerado um ldquobairro dormitoacuteriordquo

Cerca de 80 dos alunos moram no proacuteprio bairro e a renda salarial de seus responsaacuteveis legais

varia entre um a trecircs salaacuterios miacutenimos portanto podendo ser considerados de classe baixa A

escola possui cerca de 110 alunos distribuiacutedos em sete turmas Possui 15 professores sendo que

trecircs destes ministram a disciplina Projeto de Vida A escola havia entrado no PEI haacute menos de

um ano do momento da realizaccedilatildeo da pesquisa

42 Contato com as escolas

O contato com a Escola A foi realizado em um primeiro momento atraveacutes de um

professor de Projeto de Vida da instituiccedilatildeo que havia procurado anteriormente o Serviccedilo de

Orientaccedilatildeo Profissional do Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (SOP-IPUSP)

Por sua vez o contato com a Escola B foi realizado por telefone cujo nuacutemero estaacute disponiacutevel

na internet A pesquisa foi realizada na Escola A no mecircs de abril de 2018 e na Escola B nos

meses de agosto e setembro de 2018

43 Cuidados eacuteticos e autorizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa

Como cuidados eacuteticos foram assinados pelos diretores das escolas um termo de

autorizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa assim como foi entregue para professores e pais um

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) Para alunos foi entregue um Termo de

Assentimento

44 Seleccedilatildeo dos documentos escolares para serem analisados

Foram analisadas as apostilas das disciplinas de Projeto de Vida Preparaccedilatildeo Acadecircmica

e Mundo do Trabalho que satildeo padronizadas para toda as escolas do PEI A princiacutepio foi

pensado em ser analisado tambeacutem o Projeto Poliacutetico-Pedagoacutegico de cada escola Entretanto

durante a pesquisa atraveacutes do contato com a direccedilatildeo da escola e dos grupos focais realizados

com professores foi constatado que esse documento natildeo orienta as praacuteticas da escola da mesma

forma que os documentos do PEI

199

45 Seleccedilatildeo dos participantes e realizaccedilatildeo dos grupos focais

Dois grupos de participantes foram recrutados para a presente pesquisa alunos do

terceiro ano Ensino Meacutedio de escolas do PEI e professores de escolas que estavam

desenvolvendo o PEI e que ministrassem a disciplina de Projeto de Vida ndash alvo da anaacutelise da

presente pesquisa Com base nas propostas de Carlini-Cotrim (1996) e Millward (2010) foram

realizados dois grupos focais especiacuteficos um com alunos e outro com professores

Para a realizaccedilatildeo dos grupos focais com alunos nas escolas selecionadas o pesquisador

entrou em cada turma de terceiro ano do Ensino Meacutedio para convidaacute-los a participar da

pesquisa Foi realizado um uacutenico grupo focal com alunos em cada escola contendo 11

participantes na Escola A e 9 na Escola B No total apresentaram uma idade meacutedia de 17 anos

sendo 70 do sexo feminino e 30 do masculino

Em relaccedilatildeo aos grupos com professores todos os professores de Projeto de Vida das

escolas selecionadas foram convidados pelo pesquisador sendo que todos aceitaram o convite

Foi realizado um uacutenico grupo focal com professores em cada escola contendo 13 participantes

na Escola A e trecircs na Escola B No total 81 dos professores eram do sexo feminino e 19

do sexo masculino apresentando uma idade meacutedia de 46 anos As formaccedilotildees universitaacuterias dos

professores eram nos cursos de Ciecircncias Bioloacutegicas Ciecircncias Sociais Educaccedilatildeo Artiacutestica

Educaccedilatildeo Fiacutesica Filosofia Histoacuteria Letras Matemaacutetica Pedagogia e Psicologia

46 Anaacutelise documental e anaacutelise dos grupos focais

Foi realizada uma anaacutelise de conteuacutedo dos discursos sociais e das narrativas pessoais

produzidos em documentos escolares e nos grupos focais com base em Bardin (1977)

Inspirada no socioconstrucionismo esta pesquisa tem como princiacutepio uma ontologia relacional

na qual a realidade eacute intersubjetivamente construiacuteda Narrativas e discursos produzidos e

articulados nas relaccedilotildees satildeo o foco da investigaccedilatildeo que tem a hermenecircutica diatoacutepica como

principal estrateacutegia para a interpretaccedilatildeo de significados sobre os fenocircmenos psicossociais e que

adota o diaacutelogo democraacutetico como sua perspectiva eacutetico-poliacutetica Na hermenecircutica diatoacutepica a

produccedilatildeo de sentidos se daacute na relaccedilatildeo entre todos (pesquisadores e participantes no presente

caso) e o conhecimento especiacutefico de cada um eacute levado em conta para a anaacutelise final (Ribeiro

2017) Foi realizada a leitura dos documentos escolares selecionados e das transcriccedilotildees dos

200

grupos focais Em seguida foram elaborados dois eixos de anaacutelise das produccedilotildees discursivas

teoacuterico-metodoloacutegico e ideoloacutegico

5 Anaacutelise dos resultados

51 Eixo Teoacuterico-Metodoloacutegico

Na perspectiva socioconstrucionista de OP as ideias de projeto de vida e plano de accedilatildeo

estatildeo presentes envolvendo processos contiacutenuos de escolhas (Ribeiro 2011) Projeto de vida

como narrativa abrange a compreensatildeo de eventos passados da vida das pessoas e o

planejamento de accedilotildees futuras Assim estaacute proacuteximo ao realizado na disciplina Projeto de Vida

na qual satildeo trabalhados o autoconhecimento a identidade e os valores pessoais

conhecer a si e conhecer os outros De onde vocecirc veio quem eacute vocecirc (Professor da Escola

B)

Por sua vez o plano de accedilatildeo no trabalho enquanto dimensatildeo operativa e instrumental

do projeto de vida de trabalho pode ser definido como um conjunto de accedilotildees para atingir um

fim (Ribeiro 2011) Vemos na disciplina Projeto de Vida o estabelecimento de um objetivo a

ser alcanccedilado e o planejamento para atingiacute-lo

Eacute tudo o que a gente quer alcanccedilar e como a gente vai fazer para alcanccedilar o objetivo (Aluna da

Escola B)

Neste sentido podemos afirmar que a disciplina Projeto de Vida tem todas as

caracteriacutesticas necessaacuterias para ser definida como accedilatildeo de OP apesar dos documentos oficiais

natildeo utilizarem esta nomeaccedilatildeo Inclusive o termo ldquoProjeto de vidardquo pode ser traduzido para a

liacutengua inglesa como ldquolife designrdquo que eacute uma das propostas contemporacircneas fundamentadas no

construcionismo social do campo da OP (Savickas et al 2009)

A disciplina Projeto de Vida pode ser entendida como accedilatildeo da OP primeiramente por

visar a construccedilatildeo de um projeto de vida principalmente focado no projeto de vida de trabalho

embora natildeo preconize este objetivo central em suas diretrizes

A disciplina Projeto de Vida visa no seu final o mercado de trabalho esta eacute a essecircncia da

disciplina natildeo satildeo apenas os seus sonhos diversos (Professor da Escola A)

E em segundo lugar por guardar semelhanccedilas com modelos tradicionais de OP como

o modelo da Ativaccedilatildeo do Desenvolvimento Vocacional e Pessoal (ADVP Pelletier Noiseux

amp Bujold 1982) ao se focar em situaccedilotildees de aprendizagem predefinidas e investir no

desenvolvimento sociocognitivo para planejamento do futuro bem como com a proposta de

201

Educaccedilatildeo para a Carreira (Hoyt 1987) Deve-se salientar que nenhuma dessas duas tradicionais

propostas do campo da OP satildeo citadas como referecircncia para a disciplina nem que ela seria uma

estrateacutegia de OP

Em comparaccedilatildeo ao Programa Informaccedilatildeo Profissional (PIP) antiga poliacutetica puacuteblica de

OP do Estado de Satildeo Paulo o PEI apresenta avanccedilos por trazer aleacutem da questatildeo da informaccedilatildeo

profissional o desenvolvimento do autoconhecimento e da construccedilatildeo do futuro via projetos

Ainda o PEI apresenta uma proposta de OP integrada ao projeto da escola que tem como eixo

estruturante a construccedilatildeo do projeto de vida do aluno Nesse aspecto tambeacutem estaacute aleacutem do

antigo PIP cuja disciplina estava desarticulada com o restante do projeto poliacutetico-pedagoacutegico

da escola

Tanto no PIP quanto no PEI o professor possui um papel central nas praacuteticas de OP que

satildeo desenvolvidas e historicamente sabe-se que um dos motivos do fracasso do PIP foi a falta

de treinamento especializado para os professores (Baptista 1984 Carvalho 1985 Silva 2010)

No PEI os professores relatam que recebem uma formaccedilatildeo precaacuteria para ministrar a disciplina

Projeto de Vida sendo realizada principalmente entre eles proacuteprios nas reuniotildees de

alinhamento e no dia a dia da sala de aula

no primeiro ano noacutes natildeo tivemos formaccedilatildeo absolutamente nenhuma (Professora da Escola A)

Nossa maior formaccedilatildeo eacute entre noacutes mesmos (Professor da Escola B)

Pessente (2016 p 61) traz o relato de professores do PEI afirmando que os processos

formativos mais uacuteteis foram aqueles oferecidos na proacutepria escola e na troca entre os colegas

configurando-se como um ldquoprocesso de formaccedilatildeo coletivordquo e realizado na praacutetica com base na

experiecircncia de cada um

Uma formaccedilatildeo de professores especiacutefica e sistemaacutetica se faz necessaacuteria aos professores

da disciplina Projeto de Vida Eacute um risco considerar que somente sua experiecircncia profissional

e pessoal seratildeo suficientes para desempenhar seu papel Essa formaccedilatildeo ou a precariedade desta

tambeacutem influencia em como os professores entendem as diretrizes da disciplina e como

adequam e criam as atividades para serem dadas em sala de aula

52 Eixo Ideoloacutegico

As produccedilotildees narrativas de alunos e professores reproduzem o discurso empresarial no

qual destacam-se deste leacutexico algumas palavras-chave como competiccedilatildeo metas pressatildeo

competecircncia

202

eu tenho que ser melhor que todo mundo nessa sala para eu conseguir alcanccedilar meu objetivo

(Aluna da Escola A)

Nos documentos do PEI o desenvolvimento de competecircncias surge com destaque nas

produccedilotildees discursivas Para Baptista (2015) enquanto haacute nos documentos norteadores do PEI

a sugestatildeo de uma educaccedilatildeo focada no ser humano um modelo empresarial eacute a base da gestatildeo

da escola atraveacutes da cobranccedila de metas e resultados fundamentados no que a loacutegica empresarial

preconiza como metas e resultados relevantes independentemente da realidade na qual a escola

estaacute inserida Para alcanccedilar esse resultado e reconhecimento os alunos devem concorrer com

os demais candidatos ateacute mesmo da proacutepria escola por vagas no Ensino Superior A base

ideoloacutegica desta competiccedilatildeo eacute a meritocracia neoliberal

vocecirc se vecirc forccedilado a entrar a passar para falar eu consegui eu sou bom o suficiente eles

potildeem vocecirc numa posiccedilatildeo de ou vocecirc eacute ou vocecirc eacute (Aluna da Escola A)

No acircmbito do trabalho o discurso neoliberal enfatiza a responsabilidade de cada pessoa

por seus resultados de carreira ao inveacutes de uma responsabilizaccedilatildeo da sociedade ou

organizacional (Roper Ganesh amp Inkson 2010) A desigualdade social eacute colocada como um

ldquoinfeliz resultado de um mundo globalizado tecnologicamente avanccedilado e competitivo que

pode ser superado pelas pessoas atraveacutes da determinaccedilatildeo pessoal da inovaccedilatildeo e do trabalho

durordquo (Irving 2010 p 59)

Exemplos desse discurso estatildeo presentes nas atividades do caderno do professor no qual

satildeo apresentadas histoacuterias de brasileiros que obtiveram sucesso na vida graccedilas ao seu esforccedilo

pessoal Por sua vez o protagonismo juvenil surge reforccedilando a responsabilizaccedilatildeo do aluno

pela concretizaccedilatildeo do seu projeto de vida Nos documentos do programa haacute uma naturalizaccedilatildeo

da atual estrutura sociolaboral O mundo de trabalho jaacute estaacute dado e o sucesso eacute pessoal e

individualizado baseado na loacutegica empresarial vigente do que eacute ter sucesso

Hoje eacute aquele negoacutecio ou vocecirc eacute patratildeo ou vocecirc eacute peatildeo (Aluna da Escola A)

Entretanto estes discursos hegemocircnicos satildeo parciais Haacute uma divergecircncia entre as

produccedilotildees discursivas sociais e as narrativas de professores e alunos Inclusive haacute diversidade

entre as proacuteprias narrativas de professores e alunos pois enquanto alguns reproduzem o

discurso meritocraacutetico neoliberal outros o questionam

ldquoEntatildeo estuda que vocecirc vai conseguirrdquo mas nem sempre vocecirc consegue A realidade eacute essa e

ela bate na porta (Aluna da Escola A)

Tem vaacuterias pessoas que satildeo felizes tecircm sucesso e que natildeo tecircm necessariamente uma faculdade

(Professora da Escola B)

203

Segundo Blustein (2011) McNamee (2012) e Ribeiro (2014 2017) com base no

construcionismo social esta divergecircncia caracteriza a construccedilatildeo ontoloacutegica relacional na qual

uma realidade natildeo eacute reproduzida mas coconstruiacuteda na relaccedilatildeo entre os atores narrativas e

discursos envolvidos No presente caso o discurso do PEI focado na loacutegica neoliberal e as

narrativas accedilotildees e reflexotildees dos professores e alunos baseada em suas realidades de vida

O discurso social predominante no PEI eacute a valorizaccedilatildeo do Ensino Superior a formaccedilatildeo

universitaacuteria como objetivo do Projeto de Vida Quando este objetivo se encontra

descontextualizado um modelo de sucesso pode se tornar um modelo de fracasso Estabelecer

como o uacutenico caminho para todos os alunos a formaccedilatildeo universitaacuteria considerando que natildeo haacute

vagas suficientes neste niacutevel de ensino tornaraacute esses alunos exemplos de fracasso e geraraacute mais

frustraccedilatildeo Contudo foi possiacutevel encontrar nas narrativas de professores e alunos divergecircncias

em relaccedilatildeo ao discurso social predominante no programa nas quais outros tipos de projetos

tambeacutem satildeo valorizados reforccedilando a ideia de que a realidade eacute coconstruiacuteda (Ribeiro 2014

Savickas et al 2009)

De forma alguma se trata por exemplo de deixar de estimular ou encorajar os alunos

O que se propotildee eacute estimular o aluno a ter maiores aspiraccedilotildees sem no entanto desvalorizar ou

menosprezar os projetos que natildeo passem pela escolha de uma universidade Os professores

devem ter o cuidado de levar em conta o contexto do aluno motivando-o sem ultrapassar o

limite de impor um modelo de sucesso que natildeo eacute dele Projetos como a escolha de um curso

teacutecnico ou a constituiccedilatildeo de uma famiacutelia ao final do Ensino Meacutedio devem ser respeitados e

legitimados

Um uacuteltimo aspecto a ser destacado refere-se agraves produccedilotildees discursivas em torno do

mundo do trabalho que eacute apresentado enquanto uma realidade natural Natildeo eacute realizada no PEI

uma discussatildeo sobre as representaccedilotildees sociais das carreiras sobre o contexto histoacuterico-poliacutetico

do trabalho ou sobre a interseccionalidade entre classe social gecircnero e raccedila no mundo do

trabalho

Criacuteticas semelhantes foram realizadas ao Programa Informaccedilatildeo Profissional (PIP) por

Baptista (1984) e ao modelo da Educaccedilatildeo para a Carreira por Irving (2010) Para Irving (2018)

as discussotildees sobre carreira deveriam dar suporte a muacuteltiplas maneiras de ser e participar no

mundo assim como possibilitar aos estudantes uma exploraccedilatildeo sobre caminhos coletivos nos

quais podem influenciar e impactar seu contexto poliacutetico econocircmico e social

204

Consideraccedilotildees finais

Teoacuterica e metodologicamente a disciplina de Projeto de vida se assemelha a modelos

tradicionais do campo da OP e pode ser considerada uma poliacutetica puacuteblica de OP apesar de natildeo

ser assim nomeada e de natildeo oferecer treinamento adequado aos professores responsaacuteveis pela

disciplina E ideologicamente a disciplina carrega o discurso neoliberal do esforccedilo individual

e da alta qualificaccedilatildeo como uacutenicos caminhos para o sucesso na vida de trabalho apesar de

narrativas singulares de professores e alunos problematizarem esta visatildeo

No Brasil natildeo haacute uma norma que regulamente a profissatildeo de orientador profissional

podendo ser encontrados neste campo de atuaccedilatildeo diferentes profissionais como psicoacutelogos

administradores pedagogos licenciados (professores) etc Assim como na deacutecada de 1970 na

qual os professores tiveram destaque atraveacutes de disciplinas de orientaccedilatildeo na grade curricular

com a atual Reforma do Ensino Meacutedio os professores voltam a ser os principais agentes da OP

No caso do Estado de Satildeo Paulo isso jaacute acontece no PEI e seraacute ampliado com o Programa Inova

Educaccedilatildeo

Considerando as reformas curriculares e a inserccedilatildeo da OP nestas poliacuteticas educacionais

atraveacutes de termos como Projeto de Vida faz-se relevante que a OP enquanto aacuterea deva se

preparar para os modelos pedagoacutegicos jaacute existentes e para as praacuteticas que seratildeo implementadas

Principalmente que seja oferecida formaccedilatildeo adequada para os professores e para os demais

educadores no desenvolvimento destes modelos de OP utilizados como poliacutetica puacuteblica de

educaccedilatildeo e trabalho

Para que esse diaacutelogo entre OP e educaccedilatildeo seja estabelecido haacute alguns caminhos que

podem ser apontados como a criaccedilatildeo ou o aprimoramento de espaccedilos de formaccedilatildeo em OP para

educadores seja em cursos de graduaccedilatildeo poacutes-graduaccedilatildeo ou eventos cientiacuteficos

No Estado de Satildeo Paulo a futura inserccedilatildeo de psicoacutelogos nas diretorias de ensino mesmo

que a princiacutepio seja para fazer parte de um programa voltado para a seguranccedila nas escolas abre

como possibilidade a atuaccedilatildeo direta nas poliacuteticas puacuteblicas educacionais As diretorias de ensino

enquanto intermediaacuterias entre a Secretaria da Educaccedilatildeo do Estado de Satildeo Paulo (SEESP) e a

direccedilatildeo de cada escola tecircm como algumas de suas atribuiccedilotildees implementar programas de

formaccedilatildeo continuada a docentes aleacutem de supervisionar e acompanhar o funcionamento das

escolas Neste aspecto faraacute sentido se o psicoacutelogo na Diretoria de Ensino trabalhar em conjunto

com a Equipe de Supervisatildeo de Ensino (ESE) e o Nuacutecleo Pedagoacutegico (NPE) mais

especificamente com os Professores Coordenadores do Nuacutecleo Pedagoacutegico (PCNPs)

205

Sobre a atuaccedilatildeo do psicoacutelogo-orientador profissional na formaccedilatildeo de educadores seja

nas diretorias de ensino ou em outros espaccedilos eacute possiacutevel antecipar como principal desafio a

preparaccedilatildeo enquanto educador e psicoacutelogo escolar Reafirmarmos o apontamento de Uvaldo

Garcia Munhoz e Teixeira (2012) sobre a necessidade de se incluir na formaccedilatildeo dos

orientadores profissionais conhecimentos sobre o funcionamento do sistema educacional

brasileiro dos processos de aprendizagem e das linhas pedagoacutegicas

O olhar da psicologia social nas poliacuteticas puacuteblicas como no caso de poliacuteticas

educacionais auxilia a pensar psicossocialmente os fenocircmenos e ampliar as possibilidades de

construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de programas gerais e de metodologias focadas na relaccedilatildeo pessoa e

contexto social Como principais limitaccedilotildees do estudo podemos citar a regionalizaccedilatildeo da

pesquisa concentrada na cidade de Satildeo Paulo uma anaacutelise que natildeo focou as questotildees da

interseccionalidade de gecircnero raccedilaetnia e classe e a falta de estudos sobre a mesma temaacutetica

ainda recente para uma melhor validaccedilatildeo intersubjetiva da pesquisa

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210

Capiacutetulo 11

A tessitura de redes de diaacutelogo e de participaccedilatildeo de crianccedilas no cuidado

hospitalar pediaacutetrico

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo

Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Adriana Marcondes Machado

Introduccedilatildeo

Este capiacutetulo tem como propoacutesito ensejar a construccedilatildeo de uma composiccedilatildeo que

estabeleccedila entrelaccedilamentos entre a infacircncia a psicologia e as poliacuteticas puacuteblicas destinadas agraves

crianccedilas Para tanto entrevistas com crianccedilas hospitalizadas na enfermaria pediaacutetrica de um

hospital puacuteblico do municiacutepio de CuiabaacuteMT produzidas no acircmbito de uma pesquisa de

mestrado (Assunccedilatildeo 2018) foram revisitadas com o intuito de mobilizar reflexotildees que

desvelassem os modos de inscriccedilatildeo e as redes de significaccedilotildees partilhados por 26 crianccedilas-

usuaacuterias frente agraves praacuteticas de cuidado em sauacutede a elas dirigidas

Na medida em que a investigaccedilatildeo apresentada assumiu o delineamento de uma

abordagem de pesquisa com crianccedilas enfatizou-se uma modalidade de escuta atenta ao

pertencimento e agrave inserccedilatildeo social de uma categoria geracional que dispotildee de estatuto social e

poliacutetico especiacuteficos e que mobiliza processos de inserccedilatildeo social fundados por esta condiccedilatildeo de

existecircncia Para tanto orientou-se pelos contornos da pesquisa do tipo etnograacutefica tal como

sintetiza Andreacute (2003) apoiada pelo emprego de entrevistas de observaccedilatildeo participante e de

anaacutelise documental A presente discussatildeo edificaraacute como recorte os conteuacutedos engendrados

particularmente pelas entrevistas com as crianccedilas hospitalizadas

Diante das conjecturas analiacuteticas empreendidas elucidou-se que as participantes ao

expressarem seus processos de elaboraccedilatildeo e partilha acerca de suas experiecircncias de

hospitalizaccedilatildeo anunciaram tambeacutem por intermeacutedio deste exerciacutecio de enunciaccedilatildeo os

atravessamentos suscitados pelos arranjos institucionais de organizaccedilatildeo e gestatildeo dos serviccedilos

de assistecircncia em sauacutede exprimindo as formas pelas quais interpretavam e imprimiam sentidos

agraves praacuteticas de cuidado ofertadas pelas equipes de sauacutede que compunham a instituiccedilatildeo enfocada

211

Os conteuacutedos explicitados pelas crianccedilas permitiram depreender que o agenciamento de

encontros intergeracionais menos hierarquizados em um contexto puacuteblico de sauacutede pediaacutetrica

pode adquirir o potencial de configurar-se enquanto fecundo dispositivo de participaccedilatildeo social

e de produccedilatildeo de visibilidade ciacutevica da infacircncia sinalizando possibilidades de inserccedilatildeo capazes

de oportunizar a elevaccedilatildeo do grau democraacutetico de tais instituiccedilotildees

Em atenccedilatildeo a isso pondera-se que o universo de relaccedilotildees sociais forjado no acircmbito dos

equipamentos puacuteblicos de sauacutede extrapola as fronteiras circunscritas agraves suas respectivas funccedilotildees

sociais de oferta de serviccedilos e estrateacutegias amalgamadas por percursos de atenccedilatildeo em sauacutede

assentados na prevenccedilatildeo promoccedilatildeo tratamento e reabilitaccedilatildeo traspondo-se a uma esfera que

considera a perspectiva do desenvolvimento dos sujeitos Neste sentido ao consolidar-se a

partir do marco constitucional do direito agrave sauacutede o acesso agraves instituiccedilotildees puacuteblicas se configura

enquanto componente da complexa rede de relaccedilotildees biopsicossociais que concorre para os

processos de constituiccedilatildeo dosas usuaacuteriosas notabilizando a dimensatildeo educativa poliacutetica e

cidadatilde que as encerram ao mobilizarem processos de participaccedilatildeo e inscriccedilatildeo no interior da

rede assistencial do Sistema Uacutenico de Sauacutede

Para a construccedilatildeo do itineraacuterio teoacuterico e analiacutetico ora proposto delineou-se a elaboraccedilatildeo

de subtemas que perpassaram a discussatildeo em torno do estatuto social da infacircncia em diaacutelogo

com a teoria histoacuterico-cultural o destaque das disposiccedilotildees sobre sauacutede da crianccedila a partir de

poliacuteticas e resoluccedilotildees especiacuteficas eleitas com o propoacutesito de explicitar os princiacutepios e diretrizes

que preconizam as crianccedilas-usuaacuterias como copartiacutecipes nos processos de gestatildeo produccedilatildeo

tratamento e avaliaccedilatildeo em sauacutede a contextualizaccedilatildeo da pesquisa de mestrado cujos dados foram

emprestados a anaacutelise das entrevistas com as crianccedilas hospitalizadas e as consideraccedilotildees finais

desta discussatildeo

1 O estatuto social das crianccedilas em diaacutelogo com a teoria histoacuterico-cultural e a sociologia

da infacircncia

Os conhecimentos partilhados sobre a infacircncia bem como acerca de seu potencial de

participaccedilatildeo social e poliacutetica satildeo engendrados por processos histoacutericos e sociais de construccedilatildeo

fundados por referecircncias e paradigmas distintos e coexistentes que disputam sua constituiccedilatildeo

Neste aspecto dedica-se agrave exploraccedilatildeo das formulaccedilotildees tencionadas pela teoria histoacuterico-

cultural de Vygotsky (2000a 2000b) e a sociologia da infacircncia (Sarmento 2007 Ferreira

212

2010) que colaborem para a compreensatildeo deste quadro conceitual e histoacuterico que participa da

constituiccedilatildeo do estatuto social da infacircncia

Em uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo de desenvolvimento segundo a qual a teoria

histoacuterico-cultural estabeleceu seus alicerces Vygotsky (2000a) enfatizou a necessidade de

combater as formulaccedilotildees que postulassem pela permanecircncia de um vestiacutegio oculto de

ldquopreformismordquo em torno das apreciaccedilotildees acerca do desenvolvimento infantil

O referido pressuposto ancora-se sob um paradigma vigente de maneira velada no

pensamento social e cientiacutefico que considera que a crianccedila se diferenciaria dosas adultosas

exclusivamente pelos contornos e proporccedilotildees fiacutesicas Esta imagem culturalmente eleita

adquiriu eficaacutecia e reverberaccedilatildeo social com o propoacutesito de tecer explicaccedilotildees aos fenocircmenos

pertinentes ao desenvolvimento infantil tendo sido a crianccedila usualmente simbolizada pela

designaccedilatildeo de adulto em miniatura (Vygotsky 2000a)

As teorias ldquopreformistasrdquo ampararam-se pela concepccedilatildeo de que o desenvolvimento se

estabelece sob condiccedilotildees simplesmente quantitativas cuja ldquosementerdquo do humano carrega

consigo todas as estruturas e particularidades de um organismo jaacute formado e maduro (Vygotsky

2000a)

As teorias psicoloacutegicas dedicadas agrave gecircnese do desenvolvimento infantil bem como a

proacutepria praacutetica psicoloacutegica empenham-se no esforccedilo de reiterar que tal fenocircmeno encerra

processos que superam a noccedilatildeo elementar de transformaccedilotildees quantitativas evidenciando que

os meacutetodos essencialmente comparativos entre adultosas e crianccedilas produzem saberes e teorias

que ocasionam a reduccedilatildeo da infacircncia aos aspectos contrastantes de sua situaccedilatildeo de

desenvolvimento em relaccedilatildeo agrave doa adultoa (Vygotsky 2000a) Neste campo desvelam-se

enfoques investigativos teoacutericos e praacuteticos que nada revelam acerca dos traccedilos da condiccedilatildeo

humana da infacircncia em estaacutegio singular de desenvolvimento e aprendizagem

Diante dessas consideraccedilotildees sublinha-se que tais discursos construiacutedos ao longo da

histoacuteria incorrem em impactos psicossociais que adquirem o potencial de produzir efeitos de

invisibilizaccedilatildeo da infacircncia concorrendo para a constituiccedilatildeo de seu estatuto social A

constituiccedilatildeo simboacutelica desta categoria geracional mediante as condiccedilotildees enfatizadas encontra-

se inscrita nas redes de significados socialmente elaboradas que a partir dos processos de

interpretaccedilatildeo da realidade orientam praacuteticas e discursos que circunscrevem a infacircncia e as

crianccedilas

213

As investigaccedilotildees desenvolvidas na seara da sociologia da infacircncia discorrem acerca do

processo de ocultamento da complexidade social da categoria geracional infacircncia gerando

impactos a respeito do que se sabe sobre as infacircncias e crianccedilas posto que ldquonuma ciecircncia que

tem sido predominantemente produzida a partir de uma perspectiva adultocentrada as

vivecircncias culturas e representaccedilotildees das crianccedilas escapam-se ao conhecimento que delas temosrdquo

(Sarmento 2007 p 26)

O campo das imagens sociais sobre a infacircncia se traduz por um expressivo significado

social que incorre na produccedilatildeo de seu estatuto social o qual se revela na esfera da justificaccedilatildeo

das praacuteticas dosas adultos em relaccedilatildeo agraves crianccedilas sobretudo objetivada pela prescriccedilatildeo e pela

invisibilidade de sua potecircncia social cultural poliacutetica e ciacutevica na medida em que eacute considerada

sob a eacutegide da marca da negatividade e da ausecircncia (Sarmento 2007)

Os argumentos expostos contribuem para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese de que tais

concepccedilotildees fortalecem os discursos mais estaacuteveis e tradicionais antagocircnicos ao paradigma

preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas pertinentes ao setor sauacutede acerca da infacircncia que

privilegiam as orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas que legitimam a condiccedilatildeo de cidadania destes

sujeitos

Contrapondo-se agrave concepccedilatildeo de que o desenvolvimento cultural seria uma continuaccedilatildeo

direta do desenvolvimento natural da crianccedila Vygotsky (2000b) propotildee que

[hellip] quando a crianccedila se insere na cultura natildeo apenas apreende algo natildeo apenas assimila e se

enriquece com o que estaacute fora dela [crianccedila] mas a proacutepria cultura reelabora profundamente a

composiccedilatildeo natural do comportamento da crianccedila e fornece uma orientaccedilatildeo completamente

nova a todo o curso de seu desenvolvimento (Vygotsky 2000b p 305 traduccedilatildeo nossa) 1

Assim notabiliza-se que aleacutem de enfatizar o caraacuteter dialeacutetico do desenvolvimento

cultural da crianccedila Vygotsky (2000b) anuncia que a mesma tambeacutem contribui para a

reelaboraccedilatildeo da composiccedilatildeo cultural ressaltando a participaccedilatildeo da crianccedila na cultura e na

histoacuteria

Acerca do exposto salienta-se que as crianccedilas enquanto dotadas de capacidade de

negociaccedilatildeo de gerir e reinterpretar a composiccedilatildeo social e cultural em seus proacuteprios termos a

partir das relaccedilotildees intra e intergeracionais negociam e produzem sentidos que se desvelam

ancorados em criteacuterios e referecircncias que se distinguem daquelas dosas adultosas mas que natildeo

por isso as destituem do exerciacutecio de seus respectivas papeis como atoresatrizes sociais

1 [] ldquocuando el nintildeo se adentra en la cultura no soacutelo toma algo de ella no soacutelo asimila y se enriquece con lo que

estaacute fuera de eacutel sino que la propria cultura reelabora en profundidad la composicioacuten natural de su conducta y da

una orientacioacuten completamente nueva a todo el curso de su desarrollordquo (Vygotsky 2000b p 305)

214

(Ferreira 2010) A presente contribuiccedilatildeo assume portanto como patente o exerciacutecio de

encontro com a alteridade objetivada pela crianccedila convocando para a criaccedilatildeo e o tensionamento

de estrateacutegias que reivindiquem a validade de seus modos de compor e se inscrever nos

diferentes contextos de existecircncia com vistas agrave superaccedilatildeo do estatuto social que as confere o

semblante de negatividade e de ausecircncia ao interpor obstaacuteculos para o reconhecimento de sua

condiccedilatildeo de cidadania e da legitimidade de sua participaccedilatildeo social nos diferentes cenaacuterios Um

dos desafios do mundo adulto passa a ser neste acircmbito acessar aquilo que as crianccedilas vivem e

pensam no cotidiano das praacuteticas sociais a elas endereccediladas

A partir das consideraccedilotildees enfocadas acerca das crianccedilas dedica-se agrave explanaccedilatildeo de

suas interlocuccedilotildees com as poliacuteticas puacuteblicas a fim de avanccedilar na composiccedilatildeo da presente

construccedilatildeo argumentativa

2 Notas sobre as poliacuteticas de atenccedilatildeo em sauacutede e a infacircncia

No final do seacuteculo XX sob pressotildees dos movimentos populares de redemocratizaccedilatildeo

do paiacutes assim como da Reforma Sanitaacuteria Brasileira2 foi promulgada em 1988 a Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica Federativa do Brasil que preconizou a sauacutede como um direito social fundamental

de todosas osas cidadatildeoscidadatildes e dever a ser garantido pelo Estado instituindo o Sistema

Uacutenico de Sauacutede (SUS) Para regulamentaacute-lo foi estabelecida uma legislaccedilatildeo especiacutefica que natildeo

se resumiu apenas aos limites do SUS mas a diversos aspectos da sauacutede da populaccedilatildeo de

maneira geral intitulada lei orgacircnica da sauacutede (Lei ndeg 8080 de 19 de setembro de 1990) Esta

foi complementada pela lei que dispotildee sobre a participaccedilatildeo e o controle social do SUS (Lei nordm

8142 de 28 de dezembro de 1990) (Paim 2009)

No que se refere agraves poliacuteticas de sauacutede direcionadas agrave infacircncia apoacutes a instituiccedilatildeo do SUS

pela Constituiccedilatildeo de 1988 foi sancionado o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Lei nordm 8069

de 13 de julho de 1990) que instituiu a proteccedilatildeo integral e resolveu questotildees que perpassavam

a atenccedilatildeo em sauacutede desta populaccedilatildeo como por exemplo os direitos do neonato as obrigaccedilotildees

hospitalares e dosas profissionais de sauacutede o direito agrave permanecircncia em tempo integral do pai

2 O movimento da Reforma Sanitaacuteria Brasileira tambeacutem conhecido como RSB originou-se na segunda metade

da deacutecada de 1970 com a finalidade de defender a democratizaccedilatildeo da sauacutede e o processo de reestruturaccedilatildeo de seu

sistema de serviccedilos Foi protagonizado por membros de vaacuterios segmentos sociais e populares como estudantes

sociedade civil pesquisadoresas profissionais de sauacutede bem como membros de entidades comunitaacuterias

profissionais e sindicais Um importante marco deste movimento foi a 8ordf Conferecircncia Nacional de Sauacutede em 1986

na qual foram debatidas as proposiccedilotildees sociais que fariam parte da RSB sendo o relatoacuterio final desta reuniatildeo

utilizado como base para a elaboraccedilatildeo da seccedilatildeo ldquoDa Sauacutederdquo da Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 (Paim 2009)

215

da matildee ou doa responsaacutevel legal em regime intensivo enfermarias e demais setores de atenccedilatildeo

pediaacutetrica e neonatal (Brasil 1990)

Posteriormente foi aprovada a Resoluccedilatildeo nordm 41 (de 13 de outubro de 1995) do Conselho

Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente (CONANDA) fundamentada no texto

formulado pela Sociedade Brasileira de Pediatria Neste documento instituiu-se dimensotildees natildeo

antes abarcadas pela lei anterior enfatizando a importacircncia de a perspectiva da crianccedila ser

levada em conta apontando a necessidade de ela ser escutada e instruiacuteda em seus processos de

adoecimento e tratamento em sauacutede (Brasil 2004)

Apesar da promulgaccedilatildeo da sauacutede como um direito e de sua regulamentaccedilatildeo enquanto

serviccedilo puacuteblico de atenccedilatildeo e de cuidado ainda assim persistiram problemaacuteticas relacionadas agrave

qualidade da gestatildeo e dos serviccedilos prestados ao sofrimento dosas trabalhadoresas e

usuaacuteriosas a ampliaccedilatildeo do acesso dentre outras Nesse sentido a emergecircncia do tema da

humanizaccedilatildeo foi anunciada na 11ordf Conferecircncia Nacional de Sauacutede no ano de 2000 sendo

reconhecida como um dos principais desafios que permeavam o SUS suscitando sua necessaacuteria

abordagem como parte da pauta e da agenda do setor sauacutede na qualidade de uma estrateacutegia para

o enfrentamento das questotildees salientadas (Pasche 2013)

Para sua instituiccedilatildeo seria preciso constituir o sentido de humanizaccedilatildeo a ser elencado a

direccedilatildeo eacutetico-poliacutetica a ser legitimada e tomada como base para a constituiccedilatildeo deste paradigma

de cuidado e de gestatildeo em sauacutede O valor de humanizaccedilatildeo tencionado pressupunha a inserccedilatildeo

das diferentes pessoas nos processos de gestatildeo e de cuidado colocando-as em diaacutelogo para o

exerciacutecio de relaccedilotildees mais democraacuteticas (Pasche 2013)

Diante dessas problemaacuteticas sob tensionamentos populares e sindicais o Ministeacuterio da

Sauacutede regulamentou o Programa Nacional de Humanizaccedilatildeo da Assistecircncia Hospitalar

(PNHAH) a partir de um projeto apresentado no ano de 2000 Este visava difundir accedilotildees e

propostas de humanizaccedilatildeo ao atendimento puacuteblico em sauacutede nos hospitais preconizando a

transformaccedilatildeo da cultura de atendimento existente de seus modos de cuidar e do modelo de

atenccedilatildeo principalmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre profissionais de sauacutede e

usuaacuteriosas entre osas proacutepriosas profissionais e entre o hospital e a comunidade (Brasil

2001)

Posteriormente compreendeu-se que para sua consolidaccedilatildeo nas instituiccedilotildees

hospitalares era necessaacuterio que este programa fosse pensado para toda a rede do sistema de

sauacutede Segundo Rios (2009) em 2003 o programa foi revisto e incorporado como um

216

aprimoramento ao SUS como um todo sendo lanccedilado como poliacutetica puacuteblica com a

denominaccedilatildeo de Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (PNH)

A PNH dos serviccedilos de sauacutede atribuiu destaque agraves relaccedilotildees estabelecidas entre os

sujeitos agraves atitudes e praacuteticas sociais que circunscrevem seus modos de cuidar e gerir em

direccedilatildeo ao reposicionamento destes diante dos modos de ldquofazerrdquo sauacutede Este modelo preconiza

como imprescindiacuteveis os processos de negociaccedilatildeo coletiva suscitando a corresponsabilidade

a autonomia e a participaccedilatildeo dosas diferentes atoresatrizes sociais para a reconstruccedilatildeo das

relaccedilotildees de saber de poder e de afeto a partir de orientaccedilotildees princiacutepios e meacutetodos eacutetico-

poliacuteticos que privilegiam o exerciacutecio da inclusatildeo e do diaacutelogo (Pasche 2013)

A PNH orienta-se segundo os princiacutepios da transversalidade da indissociabilidade entre

atenccedilatildeo e gestatildeo e do protagonismo corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos

O primeiro pressupotildee que a humanizaccedilatildeo deve estar presente e inserida em todos os programas

estrateacutegias e poliacuteticas que fazem parte do SUS atravessando as diversas accedilotildees instacircncias e

relaccedilotildees entre os diferentes sujeitos ampliando a comunicaccedilatildeo entre estes O segundo

estabelece que a atenccedilatildeo e a gestatildeo compotildeem uma unidade e por isso devem ser

compreendidas como interdependentes e complementares natildeo podendo ser tomadas

separadamente nos processos de produccedilatildeo de sauacutede O terceiro consolida que a atenccedilatildeo o

cuidado e a gestatildeo precisam ser compartilhados entre equipes de sauacutede usuaacuteriosas redes

sociofamiliares e comunidades reconhecendo a cidadania a legitimidade de participaccedilatildeo e a

contribuiccedilatildeo destes para a construccedilatildeo de modos coletivos de gerir e cuidar (Brasil 2013)

As diretrizes da PNH retomadas por Santos Filho (2013) foram a cogestatildeo a diretriz

de acolhimento ambiecircncia e cliacutenica ampliada a diretriz da defesa dos direitos dosas

usuaacuteriosas e a diretriz de valorizaccedilatildeo do trabalho e dosas trabalhadoresas da sauacutede

Em continuidade a este processo histoacuterico de promulgaccedilatildeo de poliacuteticas enfatiza-se a

instituiccedilatildeo da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Crianccedila (PNAISC)

implementada por intermeacutedio da Portaria nordm 1130 de 5 de agosto de 2015 do Ministeacuterio da

Sauacutede no acircmbito do Sistema Uacutenico de Sauacutede Esta poliacutetica encontra-se fundada por princiacutepios

diretrizes e eixos estrateacutegicos que se estruturam com o objetivo de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo da

sauacutede da crianccedila e do aleitamento materno da gestaccedilatildeo aos nove anos de idade por intermeacutedio

de uma rede de accedilotildees de cuidado integral que coadune para a atenccedilatildeo agrave primeira infacircncia e agraves

populaccedilotildees vulneraacuteveis Este delineamento aspira como propoacutesito alccedilar a reduccedilatildeo da

morbimortalidade bem como ensejar condiccedilotildees dignas ao desenvolvimento e agrave existecircncia

humanos (Brasil 2018)

217

Os princiacutepios que orientam a PNAISC alicerccedilam-se sob o direito agrave vida e agrave sauacutede agrave

prioridade absoluta da crianccedila ao acesso universal agrave sauacutede no interior da rede assistencial agrave

integralidade do cuidado agrave equidade em sauacutede a um ambiente facilitador agrave vida agrave humanizaccedilatildeo

da atenccedilatildeo e agrave gestatildeo participativa e ao controle social Em relaccedilatildeo agraves diretrizes cuja

observacircncia se estabelece como necessaacuteria para a elaboraccedilatildeo dos programas e accedilotildees em sauacutede

desta populaccedilatildeo estas especificam-se a partir dos indicadores de gestatildeo interfederativa das

accedilotildees de sauacutede da crianccedila de organizaccedilatildeo das accedilotildees e dos serviccedilos na rede de atenccedilatildeo na

promoccedilatildeo da sauacutede no fomento agrave autonomia do cuidado e da corresponsabilidade da famiacutelia

na qualificaccedilatildeo da forccedila de trabalho do SUS no planejamento e desenvolvimento das accedilotildees no

incentivo agrave pesquisa e agrave produccedilatildeo de conhecimento no monitoramento e avaliaccedilatildeo e na

intersetorialidade (Brasil 2018) Neste campo notabiliza-se que a PNAISC enquanto uma

poliacutetica puacuteblica pertinente ao setor sauacutede fundamenta-se segundo o marco constitucional do

SUS e por conseguinte sob os princiacutepios e diretrizes da PNH

As accedilotildees estrateacutegicas da PNAISC por sua vez organizam-se a partir de sete eixos a

saber atenccedilatildeo humanizada e qualificada agrave gestaccedilatildeo ao parto ao nascimento e ao receacutem-

nascido aleitamento materno e alimentaccedilatildeo complementar saudaacutevel promoccedilatildeo e

acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento integral atenccedilatildeo integral agraves crianccedilas

com agravos prevalentes na infacircncia e com doenccedilas crocircnicas atenccedilatildeo integral agrave crianccedila em

situaccedilatildeo de violecircncias prevenccedilatildeo de acidentes e promoccedilatildeo da cultura de paz atenccedilatildeo agrave sauacutede

de crianccedilas com deficiecircncia ou em situaccedilotildees especiacuteficas e de vulnerabilidade vigilacircncia e

prevenccedilatildeo do oacutebito infantil fetal e materno (Brasil 2018)

Em suma a presente discussatildeo permite compreender que as poliacuteticas puacuteblicas em sauacutede

desenvolvidas no Brasil no final do seacuteculo XX e iniacutecio do XXI foram impulsionadas

principalmente pelos movimentos sociais e poliacuteticos Em consonacircncia os direitos civis da

infacircncia e da adolescecircncia tambeacutem foram debatidos e sancionados mobilizando-se a elaboraccedilatildeo

de poliacuteticas resoluccedilotildees eou claacuteusulas destinadas agrave sauacutede desta populaccedilatildeo

Com a emergecircncia da PNH chama-se a atenccedilatildeo para o desenvolvimento de um

paradigma em sauacutede que recobra o proacuteprio marco constitucional preconizado pelo Sistema

Uacutenico de Sauacutede enfatizado diante das problemaacuteticas que persistiam neste setor e sustentado

pela urgecircncia no estabelecimento de relaccedilotildees mais democraacuteticas entre os diferentes sujeitos

implicados no processo de atenccedilatildeo e de cuidado Apesar de natildeo realizar menccedilotildees particulares agrave

infacircncia e adolescecircncia sob o uso da terminologia de usuaacuteriosas crianccedilas adolescentes

adultosas e idososas tecircm sido entendidosas no bojo da PNH como sujeitos e agentes dos

218

processos de atenccedilatildeo e gestatildeo em sauacutede segundo as orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas de inclusatildeo

diaacutelogo protagonismo autonomia e corresponsabilidade Na PNAISC por sua vez essas

concepccedilotildees foram reiteradas mais frequentemente atreladas agraves famiacutelias como por vezes

tambeacutem dirigidas agraves crianccedilas-usuaacuterias enfocadas por esta poliacutetica contudo sem pormenorizar

sua aplicabilidade e efeitos

Diante do exposto eacute importante salientar que como categorias geracionais especiacuteficas

a infacircncia e a adolescecircncia possuem especificidades sociais histoacutericas e culturais atribuindo-

lhes marcas sociais que as diferenciam dosas adultosas e que precisam ser pensadas a partir

da complexidade que as encerram

A eacutetica que permeia a proacutepria poliacutetica de humanizaccedilatildeo e o marco constitucional do SUS

permite que coletivamente sejam propostas e efetuadas transformaccedilotildees dos arranjos que

constituem as relaccedilotildees de saber poder e afeto Nesse sentido a inclusatildeo de meacutetodos

dispositivos e experiecircncias que preconizem a crianccedila como copartiacutecipe e protagonista nas

diversas facetas do setor sauacutede podem se consolidar como medidas que contribuam para que

estas poliacuteticas promovam e potencializem a participaccedilatildeo das crianccedilas e dosas adolescentes

hospitalizadosas nos processos de produccedilatildeo de sauacutede

Diante do exposto a articulaccedilatildeo entre infacircncia e poliacuteticas puacuteblicas ora proposta

organiza-se em torno da premissa de que os espaccedilos puacuteblicos adquirem o potencial de se

configurar enquanto fecundos dispositivos de participaccedilatildeo social e de cidadania Os processos

coletivos de trabalho e de gestatildeo podem neste sentido intensificar as forccedilas democraacuteticas em

tais instituiccedilotildees especialmente quando pautados por encontros menos hierarquizados cuja

negociaccedilatildeo intergeracional seja tomada como princiacutepio prioritaacuterio

Mediante esta formulaccedilatildeo revela-se a importacircncia de que as instituiccedilotildees puacuteblicas de

sauacutede e de educaccedilatildeo sejam constituiacutedas e designadas segundo diretrizes que engendrem

estruturas de oportunidade de desenvolvimento e aprendizagem que conformem com

orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas mais democraacuteticas e dialoacutegicas preconizando processos de

implicaccedilatildeo e pertenccedila que sustentem a expressatildeo de atoresatrizes sociais autocircnomosas e

participativosas

Nesta amplitude a instituiccedilatildeo de sauacutede mais do que um loacutecus de produccedilatildeo de saberes

sobre o corpo e de reestabelecimento da sauacutede anuncia-se enquanto um contexto permeado por

redes de significados que concorrem para o processo de constituiccedilatildeo dos sujeitos Esta

modulaccedilatildeo sinaliza a existecircncia de processos de desenvolvimento forjados pelas relaccedilotildees

219

intersubjetivas desveladas nos espaccedilos de sauacutede notabilizando-se sua dimensatildeo educativa

poliacutetica e cidadatilde

A inserccedilatildeo neste cenaacuterio abrangeria neste aspecto a organizaccedilatildeo de ferramentas e

estrateacutegias que encorajassem o exerciacutecio da condiccedilatildeo de cidadania de categorias geracionais

especiacuteficas mobilizando processos de participaccedilatildeo no interior da rede assistencial do SUS em

interlocuccedilatildeo com as praacuteticas discursos e saberes sociais historicamente forjados sobre a

infacircncia e sobre o potencial de participaccedilatildeo desta nos serviccedilos de sauacutede

Neste sentido os modos possiacuteveis de encontro entre a psicologia a educaccedilatildeo sauacutede e

poliacuteticas puacuteblicas encontram-se amparados sobre a premissa de que as instituiccedilotildees destinadas agrave

infacircncia se tornam capazes de ensejar possibilidades de apreensatildeo de conhecimentos por

intermeacutedio de aprendizagens sociais desenroladas em seu acircmago Estas por sua vez demandam

a inscriccedilatildeo de brechas institucionais que disputem o campo de uma organizaccedilatildeo hospitalar

predominantemente centrada na loacutegica adulta e biomeacutedica em direccedilatildeo agrave ampliaccedilatildeo dos direitos

da infacircncia e adolescecircncia hospitalizadas sobretudo ao preconizar meios para a sua participaccedilatildeo

e protagonismo nos processos de produccedilatildeo de sauacutede que se materializam na gestatildeo nas praacuteticas

de cuidado e nas poliacuteticas que regulamentam os serviccedilos

3 A contextualizaccedilatildeo da pesquisa

A pesquisa de mestrado cujos dados foram revisitados para a construccedilatildeo da presente

discussatildeo intitula-se ldquoRepresentaccedilotildees sociais sobre profissionais de sauacutede segundo crianccedilas

implicaccedilotildees identitaacuterias no contexto da hospitalizaccedilatildeo pediaacutetricardquo Esta investigaccedilatildeo foi

desenvolvida no acircmbito do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Universidade Federal

de Mato Grosso (PPGE UFMT) no acircmbito do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infacircncia

(GPPIN) sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Este estudo notabilizou como objeto de investigaccedilatildeo as representaccedilotildees sociais de

crianccedilas hospitalizadas sobre osas profissionais de sauacutede vinculados ao tratamento destas

explorando-se a partir do recorte proposto as implicaccedilotildees desta rede de significaccedilotildees aos

processos de representaccedilatildeo de si das participantes O aporte teoacuterico da pesquisa explicitada

compreendeu originalmente o diaacutelogo entre a teoria das representaccedilotildees sociais em uma

abordagem ontogeneacutetica e a teoria histoacuterico-cultural

O cenaacuterio em que a pesquisa foi construiacuteda circunscreveu a enfermaria pediaacutetrica de um

hospital puacuteblico pertencente agrave rede assistencial do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) do municiacutepio

220

de Cuiabaacute (MT) Esta trajetoacuteria se constituiu ao longo de trecircs meses e congregou em seu

conjunto a participaccedilatildeo de vinte e seis crianccedilas hospitalizadas com idades entre sete e doze

anos por intermeacutedio do assentimento destas e o consentimento escrito dosas respectivosas

acompanhantes apoacutes elucidados os procedimentos e objetivos investigativos

O itineraacuterio que sustentou o processo de produccedilatildeo de dados alicerccedilou-se sob os

contornos da abordagem do tipo etnograacutefica (Andreacute 2003) e considerou a adoccedilatildeo dos

procedimentos de entrevistas observaccedilatildeo participante e anaacutelise de documentos Como exposto

privilegiou-se para a construccedilatildeo deste capiacutetulo as informaccedilotildees produzidas a partir da realizaccedilatildeo

de entrevistas com as crianccedilas participantes

Ao dedicar-se agrave abordagem de pesquisa com crianccedilas procedeu-se com a elaboraccedilatildeo de

adequaccedilotildees metodoloacutegicas que permitissem o encontro com as crianccedilas participantes assumido

enquanto diaacutelogo intergeracional Esta construccedilatildeo foi norteada pela adaptaccedilatildeo e refinamento

dos procedimentos para que adquirissem o potencial de propiciar a escuta e o registro da

pluralidade de expressotildees das crianccedilas tomadas como interlocutoras legiacutetimas em

contraposiccedilatildeo agraves tendecircncias dos estudos que consideram exclusivamente os sentidos partilhados

pelosas respondentes adultosas ao interessarem-se pelas experiecircncias das crianccedilas sob a

responsabilidade daquelesas

Neste sentido especificamente no que tange agraves entrevistas ponderou-se como

pertinente a elaboraccedilatildeo de um roteiro luacutedico3 segundo a proposiccedilatildeo de rearranjos ao

procedimento de entrevista ao ser esboccedilado a partir do delineamento de uma brincadeira eou

jogo mediado pela pesquisadora na qual as crianccedilas foram convidadas agrave construccedilatildeo de desenhos

e narrativas apreciados como ferramentas compatiacuteveis com a expressividade e enunciaccedilatildeo das

significaccedilotildees que compartilham acerca das intervenccedilotildees de sauacutede objetivadas pelas praacuteticas

dosas profissionais implicadosas no tratamento destas

Os materiais elaborados a partir do roteiro luacutedico foram organizados em diferentes

etapas em decorrecircncia da multiplicidade da natureza de suas produccedilotildees a saber metaacuteforas e

metoniacutemias narrativas descriccedilotildees de experiecircncias e desenhos Neste sentido estabelece-se

como objeto da discussatildeo ora apresentada a explanaccedilatildeo proveniente da anaacutelise das respostas agrave

questatildeo 1 e das questotildees 4 a 104 do roteiro luacutedico processadas pelo programa computacional

IRAMUTEQ (Camargo amp Justo 2013 2014)

3 Este instrumento foi denominado ldquoQuem cuida de mim no hospitalrdquo 4 Demonstrativo de questotildees do roteiro luacutedico elencadas na presente ocasiatildeo Questatildeo 1 Quem vocecirc desenhou e

como essa pessoa cuida de vocecirc no hospital Questatildeo 4 Imagine que uma crianccedila que nunca ficou hospitalizada

221

Com o propoacutesito de explicitar a natureza da composiccedilatildeo das questotildees do roteiro luacutedico

salientadas discorre-se que na ocasiatildeo de seu empreendimento a crianccedila foi convidada a criar

a partir da realizaccedilatildeo de desenhos sua proacutepria equipe de sauacutede podendo incluir nesta as

distintas categorias profissionais e funccedilotildees conforme a perspectiva da participante Apoacutes o

desenho a crianccedila foi estimulada a identificar para a pesquisadora as pessoas desenhadas nos

cartotildees e explicar como cada uma delas realizava a funccedilatildeo de cuidado intra-hospitalar Neste

enquadramento as transcriccedilotildees agraves respostas agrave questatildeo 1 compuseram o corpus textual

processado pelo software de maneira que os desenhos propriamente ditos natildeo seratildeo enfocados

na presente discussatildeo mas somente as descriccedilotildees destes

O segundo momento ora enfocado para a anaacutelise exprime os conteuacutedos abarcados pelas

questotildees 4 e 5 do roteiro luacutedico cujas participantes foram apresentadas a uma situaccedilatildeo

imaginaacuteria para que como em uma brincadeira de faz-de-conta explicaria para uma crianccedila

hipoteticamente receacutem-chegada quais pessoas seriam responsaacuteveis pelas praacuteticas de cuidado e

como essa abordagem era empreendida Apoacutes esse momento eram incentivadas a atribuir um

tiacutetulo agrave narrativa elaborada

As questotildees 6 e 7 seguintes foram dedicadas a estimular que a crianccedila discorresse acerca

das fontes informacionais que as permitiram acessar os conhecimentos descritos pela narrativa

bem como explicitar os conteuacutedos que consideravam importantes dentre aqueles experienciados

no cenaacuterio hospitalar os quais sustentaram o desenvolvimento da narrativa anteriormente

construiacuteda com o propoacutesito de identificar a dimensatildeo expressiva destas vivecircncias segundo a

focalizaccedilatildeo das crianccedilas

No que concerne agraves questotildees de 8 a 10 estas foram configuradas segundo o propoacutesito

de explorar os processos identitaacuterios em termos psicossociais subjacentes agrave experiecircncia de

hospitalizaccedilatildeo atravessadas pelas praacuteticas em sauacutede empreendidas pela equipe desvelando as

implicaccedilotildees do outro aos processos de constituiccedilatildeo do sentimento de identidade e de pertenccedila

das participantes Mediante a transcriccedilatildeo destes conteuacutedos elaborados pelas crianccedilas e

mobilizados a partir das questotildees elucidadas procedeu-se com o procedimento de

processamento destas informaccedilotildees sob o apoio do programa computacional IRAMUTEQ que

estaacute chegando agora no hospital e natildeo conhece quem cuidaraacute dela [hellip] Como vocecirc que jaacute estaacute mais experiente

com o que acontece no hospital explicaria para essa crianccedila quem cuidaraacute dela no hospital e o que cada um faraacute

com ela Questatildeo 5 Que nome vocecirc daria para essa histoacuteria que vocecirc acabou de contar Questatildeo 6 Como vocecirc

ficou sabendo de tudo isso que acabou de contar Questatildeo 7 O que foi importante aqui no hospital que fez com

que vocecirc aprendesse tudo isso que acaba de contar Questatildeo 8 Como era vocecirc antes e depois de ter ficado no

hospital Questatildeo 9 O que vocecirc aprendeu sobre vocecirc a partir da experiecircncia de hospitalizaccedilatildeo Questatildeo 10

Agora uma uacuteltima pergunta como vocecirc chegou ao hospital e o que aconteceu que vocecirc teve que vir (Assunccedilatildeo

2018)

222

resultou na identificaccedilatildeo de cinco classes que se demonstraram estaacuteveis Diante do exposto

delimitou-se que as anaacutelises tecidas neste trabalho enfocariam particularmente os materiais

textuais classificados no interior da Classe 4 que representou 2325 da totalidade do corpus

original

4 As praacuteticas de cuidado em sauacutede pediaacutetrica segundo crianccedilas hospitalizadas

O conjunto de excertos produzidos pelas crianccedilas e congregados nesta classe

tangenciou mais especificamente o universo dos sentidos atribuiacutedos agraves relaccedilotildees de cuidado

tendo sido elencadas suas faces desejaacuteveis e natildeo desejaacuteveis de pessoalidade e impessoalidade

Neste sentido o narrar e o desenhar podem ser compreendidos como recursos que sintetizaram

os processos de classificaccedilatildeo e nomeaccedilatildeo das crianccedilas engendrando exerciacutecios de seleccedilatildeo de

conteuacutedos e afetos sobre os sujeitos focalizados e suas accedilotildees resgatados pela vivecircncia da

crianccedila diante deste universo de cuidado que permeia o quem desempenha e o como eacute percebido

Ah ela quando eu tava com dor ela foi ver eu como que tava meu coraccedilatildeozinho e ela foi laacute na

sala na hora que eu tava laacute mediu pressatildeo um monte de coisa Fez bastante coisa pra mim Ela

olhou meu coraccedilatildeo viu como tava a pressatildeo e viu se eu tava com febre A meacutedica Ela eacute daqui

de cima mesmo da pediatria (Flor5 10 anos)

A de pressatildeo Escreve a de pressatildeo Ela mede nossa pressatildeo se estaacute alta ou baixa Soacute Eu vou

desenhar vocecirc Porque sim vocecirc eacute legal Eu posso desenhar vocecirc Eu natildeo sei o que desenho

mais Eu jaacute desenhei a de agulha a de pressatildeo Eacute Como eacute esse assim que a gente coloca assim

e fica medindo assim Eacute Eacute de pressatildeo quase neacute Termocircmetro Mas eacute a mesma pessoa que

cuida da pressatildeo Acho que natildeo Mas taacute bom soacute esses desenhos (Raissa 9 anos)

Vem ver se eu tocirc com febre Ela coloca aquele negocinho no meu sovaco pra ver se eu tocirc com

febre Ela tem vez que troca o meu curativo Tava esquecendo Eacute que ela eacute a mulher que passa

e vem ver a minha pressatildeo ver se eu tocirc com febre e troca meu curativo (Rafael 12 anos)

Vou fazer o doutor cardiologista Primeiro o cabelo O olho grande ele Esse aqui saiu melhor

O cardiologista De vez em quando ele passa aqui para olhar como eacute que o braccedilo estaacute

melhorando (Gabriel 10 anos)

Agora soacute falta desenhar os meninos no hospital Eu vou desenhar ela arrumando o soro Sabe o

que que eacute isso Eacute um hospital Mas eacute tipo uma casa (Beatriz 7 anos)

Ela eacute da equipe do Superman Ela levanta minha camisa e coloca aquele negoacutecio de axila

Como que eacute o nome Eacute O trermocircmeto Aiacute quando ela natildeo acha no meu braccedilo ela coloca na

minha axila (Lilo 10 anos)

O instrumento de pesquisa possibilitou uma dinacircmica que encorajou processos

reflexivos acerca de elementos jaacute naturalizados pela crianccedila desencadeados pela produccedilatildeo de

certo estranhamento em relaccedilatildeo a tais conteuacutedos principalmente aqueles motivados pela

5 Os nomes informados ao longo deste relatoacuterio de pesquisa satildeo fictiacutecios e foram eleitos pelas proacuteprias crianccedilas

hospitalizadas participantes do estudo ao final da realizaccedilatildeo de cada entrevista

223

formulaccedilatildeo de uma questatildeo com resposta aparentemente oacutebvia no contexto de inserccedilatildeo dosas

participantes

Os excertos elucidaram que as crianccedilas percebem a existecircncia de pessoas que

desempenham o ofiacutecio do cuidado bem como as atividades que estas realizam para fazecirc-lo

poreacutem nessa classe os sujeitos da accedilatildeo dos segmentos de texto muitas vezes apresentaram-se

nomeados de maneira vaga eou geneacuterica apesar da existecircncia de detalhamento em relaccedilatildeo agraves

praacuteticas de sauacutede explorando inclusive seu aparato instrumental

As narrativas estatildeo imbricadas em uma dimensatildeo afetiva que demonstra as formas pelas

quais as experiecircncias relatadas foram vivenciadas pelas crianccedilas Esse fenocircmeno explicitou os

processos de atribuiccedilatildeo de sentido a um universo de accedilotildees desconhecidas declaradas a partir

de recursos e nomenclaturas familiares como em ldquoEla eacute da equipe do Supermanrdquo ldquoE um

hospital Mas eacute tipo uma casardquo que conferiram menores niacuteveis de estranhamento e

possibilitaram uma descriccedilatildeo ancorada agraves categorias que lhes eram comuns

Na medida em que elaboraram seus discursos por intermeacutedio de uma fala dirigida para

si mesmosas como em um exerciacutecio de autorregulaccedilatildeo que osas apoiaram na produccedilatildeo de um

saber as crianccedilas explicitaram a descriccedilatildeo de um modelo de cuidado marcado por uma

conotaccedilatildeo operacional dessa praacutetica revelando seus modos de accedilatildeo protocolares

Se uma crianccedila chegasse falaria que ela ia apertar neacute nossa matildeo pra saber se taacute com febre se

natildeo coloca um trermocircmeto de axila de baixo do suvaco [hellip] Eacute do mesmo jeito Eacute o mesmo

jeito de medir tambeacutem Eles mandam a mesma coisa neacute Fazer Pra ver apertar o braccedilo pra

saber se taacute com febre se natildeo colocar o trermocircmeto de axila [hellip] Natildeo eu natildeo fiquei sabendo

eu descobri que ela fazia assim comigo Ah eu tava de boa neacute achei que ningueacutem ia cuidar de

mim [Risos] Soacute vinha com trermocircmeto assim pra conferir colocar e ver se eu tava com febre

ou natildeo Aiacute eu tava aqui deitado de repente chega ela Aiacute ela foi e fez do mesmo jeito aiacute veio

essa outra aiacute que eu desenhei e fez do mesmo jeito Aiacute eu descobri aiacute eu jaacute sabia que vinha outra

e ia fazer Aiacute eu gostei dessa daqui (Lilo 10 anos)

Tem um monte de Eacute um monte de doutora que vem aqui aplicar Uma hora vem uma outra

hora vem outra No total que vem aplicar eacute umas trecircs Acho que eacute por causa do turno neacute Vou

desenhar o doutor O doutor laacute o cabelo dele eacute liso (Gabriel II 10 anos)

Aqui eacute aquela ldquoAnnyrdquo E daqui mesmo Agora lembrei o nome Ela cuida da mesma coisa da

ldquoLuisardquo ela vem para caacute para ver se eu estou com febre e ver minha pressatildeo (Rafael 12 anos)6

A accedilatildeo descritiva da crianccedila avanccedilou na compreensatildeo da dinacircmica de cuidado

ensejando a formulaccedilatildeo de hipoacuteteses que referendam a existecircncia de um script de praacuteticas em

sauacutede seguido pelosas profissionais Os discursos revelaram um modo de operar a promoccedilatildeo

do cuidado que implica a repeticcedilatildeo de um ldquomesmo jeitordquo ou a execuccedilatildeo de uma ldquomesma coisardquo

6 Os nomes dosas profissionais de sauacutede apresentados ao longo do relatoacuterio de pesquisa satildeo fictiacutecios e foram

escolhidos pela proacutepria pesquisadora

224

cuja realizaccedilatildeo eacute intercalada entre membros da equipe ldquouma hora vem uma outra hora vem

outrardquo que por conseguinte satildeo distribuiacutedosas sob o regime de ldquoturnosrdquo

Os participantes enunciaram ainda a existecircncia de uma instacircncia reguladora destas

atividades ao mencionar que ldquoEles mandam a mesma coisa neacute Fazerrdquo (Lilo 10 anos) bem

como apresentaram o senso de existecircncia de uma organizaccedilatildeo hieraacuterquica entre as categorias

profissionais existentes na cena hospitalar A assertiva demonstra proximidade entre as ideias

elaboradas pelas crianccedilas e as normativas que regulamentam de modo sistemaacutetico e

padronizado as accedilotildees teacutecnico-assistenciais em sauacutede frequentemente objetivadas pelos

protocolos operacionais padratildeo

O processo de discorrer sobre esse conhecimento social aparenta alicerccedilar-se sobretudo

pela exposiccedilatildeo de circunstacircncias marcadas pelos domiacutenios da percepccedilatildeo da concretude e a partir

da experiecircncia corporal que resultou das accedilotildees de cuidado empreendidas as quais a crianccedila foi

depositaacuteria delineando-se como um sujeito que recebeu a accedilatildeo do outro As vivecircncias

fornecidas pelas relaccedilotildees intersubjetivas foram utilizadas como suporte para a apreensatildeo de

conhecimentos sociais e para o desenvolvimento de importantes conceitos que tangenciaram a

hospitalizaccedilatildeo explorando noccedilotildees sobre a organizaccedilatildeo dos serviccedilos as praacuteticas de atenccedilatildeo em

sauacutede suas ferramentas e quem as realiza

Ela eacute enfermeira aqui Sabe sempre tem a melhor laacute que fica eu acho que ela eacute a enfermeira

Ah eu natildeo sei eacute a que fica responsaacutevel pelo plantatildeo sei laacute eu natildeo sei o nome (Moana 12

anos)

Vou desenhar ela carregando agulha Taacute estranho Eacute aquilo que coloca Eacute a seringa neacute Que

segura assim e a gente vai puxando pra passar tudo Seraacute que eu desenho um kit e outro Na

outra matildeo dela um kit Um kit assim de primeiros socorros (Raissa 9 anos)

Ficou estranho neacute O negoacutecio A que mede pressatildeo com aquele negoacutecio que aperta tudo Com

o negoacutecio que aperta o pulso assim [hellip] Esse daqui eacute aquilo que faz assim pra colocar no braccedilo

Aiacute coloca no braccedilo e essa daqui eacute a parte que zera Aiacute aqui coloca o braccedilo aiacute vai taacute uns

coraccedilatildeozinho assim Aiacute o papelzinho e aiacute esse eacute a pulseira (Raissa 9 anos)

Essa construccedilatildeo dialoacutegica resulta em aprendizagens sociais que possibilitam que as

crianccedilas se aproximem e muitas vezes passem a operar segundo o significado de certos

constructos aplicando com sentido terminologias teacutecnicas pertencentes agrave rede de conteuacutedos que

permeiam o acircmbito hospitalar Esses termos passam a ser tambeacutem partilhados entre e pelas

crianccedilas que os adotam como descritores da realidade ao empregaacute-los durante os processos

comunicacionais entre pares e com os adultos conferindo compreensatildeo e uso aos mesmos

Ao utilizar esse repertoacuterio de conceitos a crianccedila se dedica a um processo de

significaccedilatildeo do real a partir de suas proacuteprias produccedilotildees alavancando anaacutelises de suas

experiecircncias e dos produtos culturais que elabora sustentados pelos marcadores sociais que

225

acessa exprimindo pelos desenhos e narrativas as formas pelas quais interpreta e imprime

sentidos agraves particularidades da realidade social Nesse escopo descreve qualifica e se coloca

afetivamente implicada nos conteuacutedos que formula revelando as dimensotildees vivenciais e

reflexivas de suas construccedilotildees como nos segmentos que se seguem

Esqueci como eacute o cabelo dela Deve ser assim neacute Eu tocirc desenhando ela mais bonita porque

eu gosto mais eacute dela daqui do hospital A doutora a doutora natildeo a enfermeira Ela cuida assim

bem ela natildeo natildeo briga natildeo manda eu ir dormir toda hora quando taacute ficando tarde e ela eacute

boazinha A gente pediu pra ela deixar jogar no play aiacute ela falou que podia soacute que tava muito

tarde jaacute se tivesse pedido antes ela deixava mas era meia noite Aiacute ela eacute boazinha Eu gosto

dela (Moana 12 anos)

Essa doutora aqui de vez em quando ela vem aqui me perguntar se eu preciso de alguma coisa

Natildeo vem aqui de vez em quando natildeo Ela soacute veio aqui soacute fazer uma visita veio soacute ver se tava

precisando de alguma coisa Ela falou que se precisasse de alguma coisa ela tava ali na na

frente Falei nada natildeo a matildee que conversou com ela Falou taacute bom Ela veio aqui falar que se

precisar de alguma coisa eacute soacute falar com ela Acho que ela tava de feacuterias e ela chegou Disse que

se precisar de alguma coisa eacute soacute falar com ela Primeira vez que eu vejo ela Eacute bem prestativa

ela Chegou de feacuterias natildeo tinha nada pra fazer e veio aqui avisar que se precisasse de ajuda

alguma coisa assim ela tava disponiacutevel (Gabriel II 10 anos)

[hellip] nas horas que eu falava que eu tava com muita dor muito coccedilando ela me dava remeacutedio

na hora que eu precisava Ela ficava mais perto de mim Ficava olhando ela perguntava se eu

tinha dor aiacute eu falava agraves vezes que sim agraves vezes que natildeo mas ela cuidou muito bem de mim

Ah ela eacute meacutedica laacute de baixo Da sala amarela (Flor 10 anos)

Fui aprendendo com a meacutedica que ela falou um monte de coisas pra mim ldquoNatildeo precisa ter

medo Beatriz quando for furar vocecirc natildeo precisa ter medo natildeo precisa olharrdquo E quando o tio

falou ldquoVocecirc soacute vai taacute dormindo vocecirc natildeo vai sentir nadardquo E eu falei ldquoNem senti nadardquo Na

cirurgia (Beatriz 7 anos)

Os coraccedilotildees satildeo pra elas ficar feliz Tavam tristes Agora a que veio aqui ficou alegre neacute por

causa dos coraccedilotildees (Batman 12 anos)

Os recortes discursivos explicitam que a seleccedilatildeo e a organizaccedilatildeo dos conteuacutedos

expressos acerca dosas profissionais de sauacutede foram anunciadas segundo as implicaccedilotildees

afetivas engendradas nas interaccedilotildees que circunscrevem a hospitalizaccedilatildeo Os exemplos

ilustrados tangenciam diferentes modulaccedilotildees sobre esse campo elucidando perspectivas de

atenccedilatildeo em sauacutede que demonstram as accedilotildees que agradam as crianccedilas e que segundo elas satildeo

desejaacuteveis de se receber eou partilhar exprimidas principalmente pelo uso das colocaccedilotildees

gostar cuidar natildeo brigar natildeo mandar deixar falar poder pedir vir perguntar fazer

precisar estar ser dizer chegar avisar ajudar dar ficar olhar aprender De alguma

maneira as conotaccedilotildees que essas palavras traduzem se ramificam de uma faceta de cuidado

ancorada a uma eacutetica de proximidade diaacutelogo e disponibilidade para o outro

Tais processos de negociaccedilatildeo alicerccedilados pela relaccedilatildeo indissociaacutevel entre a concretude

e a forma com que satildeo vivenciadas pela crianccedila resultam tambeacutem na atribuiccedilatildeo de sentidos agraves

226

experiecircncias que desvelam um aspecto desagradaacutevel e natildeo desejaacutevel da dinacircmica de promoccedilatildeo

de sauacutede conferindo modulaccedilotildees agraves conotaccedilotildees de cuidado apresentadas anteriormente

Ela cuida mal porque era Minha veia tava doendo neacute daiacute era pra ela olhar e arrumar certinho

neacute aiacute ela foi e puxou tudo de uma vez assim e ficou doendo o meu braccedilo Porque uma outra

enfermeira ela conseguiu arrumar ela olhou e arrumou certinho a veia E ela puxou de uma

vez A outra arruma certinho na veia de volta [hellip] Acho importante que ela natildeo cuidou de mim

Ela podia ter machucado o meu braccedilo Eacute que ela puxou de uma vez o negoacutecio Ateacute a matildee falou

assim ldquoVai com cuidado soacute daacute uma olhada vecirc se taacute fora da veiardquo e ela foi puxando assim e eu

falei ldquoAi meus pelinhosrdquo Bem assim e ela puxou de uma vez assim e arrancou tudo Nesse

braccedilo aqui (Moana 12 anos)

Eacute chato levar injeccedilatildeo para tirar sangue Tirei duas vezes ontem Esse aqui foi hoje esse daqui

foi ontem Esse foi com borboletinha E esse aqui natildeo Prefiro sem borboleta Porque agulha

com borboleta demora pra pegar sangue E a sem vai puxando assim eacute rapidatildeo Quando foi a

da borboletinha eu soacute dei um grito Sem borboletinha natildeo precisou gritar (Raissa 9 anos)

A que tira sangue eacute maacute ela eacute muito maacute Soube porque eu vi elas fazendo em mim Ainda mais

essa daqui que tira sangue que eacute muito chata Machuca muito o braccedilo ontem eu tive que dormir

com o braccedilo assim oacute (Raissa 9 anos)

Esse aqui eu jaacute tomei doze Soacute nessa veia Eu tomei um grandatildeo daqueles grandatildeo Eu conto

Mas claro Pra ver se natildeo passou da hora Matildee vai ter que chamar a mulher Taacute pingando aqui

Aiacute depois vai ter que lavar Lavar doacutei eu que natildeo falava nada Doacutei Lava com aacutegua A veia

enche Manda essa mulher aiacute lavar matildee Eu natildeo vou falar que doacutei Ah aiacute vatildeo querer trocar de

veia Eu natildeo quero Ela troca de veia e eu natildeo quero (Batman 12 anos)

Ateacute gelou aqui agora ateacute gelou Acho que apertou tanto Sai ateacute o couro Esparadrapo puxa

cabelo (Batman 12 anos)

Os trechos salientados transmitem em seus conteuacutedos descritivos a compreensatildeo de que

as crianccedilas nomeiam a presenccedila de uma dimensatildeo do cuidado que eacute qualificada como adversa

e hostil que pode ser acentuada pela postura e a conduta adotadas pelosas profissionais quando

a accedilatildeo eacute desempenhada eou pela maneira com que eacute percebida pela crianccedila que a recebe

As accedilotildees desagradaacuteveis e repelidas recordam modalidades de intervenccedilotildees que satildeo

antagocircnicas agraves associadas ao que osas participantes classificam como desejaacuteveis e positivas

pormenorizando-as com o suporte de verbos como puxar machucar arrancar levar tirar

demorar pegar gritar fazer tomar lavar doer encher trocar apertar sair O emprego

dessas terminologias denota a percepccedilatildeo das accedilotildees de cuidado como incisivas abruptas

dolorosas e invasivas distintas daquelas caracteriacutesticas nomeadas pelas crianccedilas ao discorrer

sobre episoacutedios identificados pelos sentidos de proximidade diaacutelogo e disponibilidade

A conjuntura analiacutetica empreendida pelos segmentos de texto apresentados permite

formular a hipoacutetese da existecircncia de uma importante fonte de informaccedilatildeo que decorre

diretamente da experiecircncia corporal delineada pelas praacuteticas de sauacutede atitudes e prescriccedilotildees

que incidem sobre o corpo da crianccedila configurando as relaccedilotildees de instruccedilatildeo face a face eou

anocircnimas Essa ordem de saberes se constitui como fonte por protagonizar processos

227

comunicacionais que operam sob a eacutegide das relaccedilotildees mediatizadas pelo corpo ao fornecer o

escopo para a transmissatildeo de conhecimentos sociais sendo as accedilotildees que lhes satildeo dirigidas

significadas pela crianccedila a partir de diferentes conotaccedilotildees que oscilam desde as entendidas

como agradaacuteveis e desejaacuteveis ateacute aquelas nomeadas como hostis e adversas

Consideraccedilotildees finais

Diante do propoacutesito de revisitar o recorte dos conteuacutedos gerados no acircmbito da pesquisa

de mestrado anunciada buscou-se estabelecer entrelaccedilamentos entre infacircncia psicologia e

poliacuteticas puacuteblicas destinadas agraves crianccedilas mais especificamente as poliacuteticas e resoluccedilotildees

salientadas ao longo deste capiacutetulo

Os conteuacutedos elaborados pelas crianccedilas anunciaram os modos pelos quais elas

nomeavam e descreviam as praacuteticas de cuidado em sauacutede empreendidas pela equipe de sauacutede

desvelando suas ancoragens agraves normas rotinas institucionais e aos processos de gestatildeo e

organizaccedilatildeo dos serviccedilos que traduzem em seu conjunto os itineraacuterios de apropriaccedilatildeo e

implementaccedilatildeo dos princiacutepios diretrizes e eixos de atuaccedilatildeo recomendados pelas poliacuteticas

puacuteblicas pertinentes ao equipamento hospitalar pediaacutetrico e agrave populaccedilatildeo atendida

Neste sentido os processos de enunciaccedilatildeo engendrados situaram-se inscritos pelos

arranjos que constituiacuteram as relaccedilotildees de saber poder e afeto que permitiram acessar como osas

participantes perspectivaram as accedilotildees assistenciais em sauacutede a eleselas endereccediladosas

declarando as possibilidades que dispunham de participaccedilatildeo nos processos de cuidado em sauacutede

intra-hospitalares

Em correlaccedilatildeo aos pressupostos salientados pelas poliacuteticas e resoluccedilotildees tomadas para a

presente discussatildeo identifica-se que os equipamentos e dispositivos de sauacutede satildeo fundados por

princiacutepios e diretrizes que visam a elevaccedilatildeo do grau democraacutetico da rede assistencial do SUS

em que as crianccedilas sob a eacutegide da terminologia de usuaacuterias tambeacutem se encontram abarcadas

Apesar do exposto notabiliza-se que o estatuto social e poliacutetico da infacircncia ao situaacute-la a partir

dos marcadores da negatividade e da ausecircncia inscrevem-na a condiccedilatildeo de incapacidade de

exerciacutecio de sua condiccedilatildeo de participaccedilatildeo e de cidadania no interior da instituiccedilatildeo enfocada

privilegiadamente pautada pelas perspectivas adultas e biomeacutedicas de gestatildeo e produccedilatildeo de

sauacutede

Assim reafirma-se que frente agraves particularidades sociais histoacutericas e poliacuteticas que

permeiam a infacircncia desvela-se como patente a inclusatildeo e a partilha de meacutetodos dispositivos

228

e experiecircncias que inscrevam a crianccedila como protagonista e copartiacutecipe das accedilotildees de cuidado

em sauacutede com o propoacutesito de convocar a dimensatildeo educativa poliacutetica e cidadatilde que as

instituiccedilotildees de sauacutede puacuteblicas mobilizam e conduzir a tessitura de redes de diaacutelogo e

participaccedilatildeo no que tange agrave atuaccedilatildeo da infacircncia nestes contextos

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Visor Dis S A

230

Capiacutetulo 12

Psicologia Social e Poliacuteticas Puacuteblicas em diaacutelogo com sauacutede e educaccedilatildeo

questotildees de gecircnero sauacutede mental justiccedila violecircncia e permanecircncia

estudantil

Mariana Fagundes de Almeida Rivera

Tatiana Alves Romatildeo

Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim

Fernanda Lyrio Heinzelmann

Kate Delfini Santos

Paula Rosana Cavalcante

Ianni Regia Scarcelli

Introduccedilatildeo

A partir de pesquisas desenvolvidas no LAPSO - Laboratoacuterio de Estudos em Psicanaacutelise

e Psicologia Social do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (IP-USP) que primam pela diversidade metodoloacutegica

busca-se neste capiacutetulo apresentar algumas pesquisas em desenvolvimento1 na linha de

pesquisa ldquoSauacutede direitos humanos e poliacuteticas na interface com a Psicologia Socialrdquo A seguir

procura-se discutir a partir delas possibilidades de interlocuccedilatildeo entre a psicologia social e

poliacuteticas puacuteblicas em setores como sauacutede e educaccedilatildeo e na interface com gecircnero sauacutede mental

justiccedila violecircncia e permanecircncia estudantil Os estudos do LAPSO fundamentam-se em

pressupostos que consideram dimensotildees intrapsiacutequicas intersubjetivas e trans-subjetivas na

especificidade dos processos psiacutequicos dos grupos e instituiccedilotildees e no contexto da poliacutetica A

referida linha de pesquisa objetiva investigar processos psicossociais que ocorrem em campos

de relevacircncia na vida social contemporacircnea como as poliacuteticas puacuteblicas de caraacuteter intersetorial2

Apoiando-se em autores do campo da psicologia social em particular Enrique Pichon-

Riviegravere busca-se de modo geral indagar sobre quais contribuiccedilotildees de saberes psi podem trazer

1 As pesquisas satildeo orientadas pela Professora Ianni Scarcelli 2 A polissemia do tema que envolve intersetorialidade tem sido bastante discutida Em uma perspectiva

operacional de acordo com Akerman de Saacute Moyses Rezende amp Rocha (2014) poderia ser definida como um

modo de gestatildeo que se desenvolve em processo sistemaacutetico de articulaccedilatildeo planejamento e cooperaccedilatildeo entre os

distintos setores da sociedade e entre as diversas poliacuteticas puacuteblicas de modo a atuar sobre determinantes sociais

231

agrave discussatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Tambeacutem se aborda como esses saberes podem ser ampliados

pela participaccedilatildeo nesse debate e quais ressonacircncias da e sobre a Psicologia Outra questatildeo

relaciona-se agrave intenccedilatildeo de compreender os efeitos das poliacuteticas puacuteblicas sobre vidas das pessoas

e tipos de lacunas que se estabelecem entre os acircmbitos poliacutetico-juriacutedico e teacutecnico-assistencial

quando estaacute em questatildeo a implementaccedilatildeo de novos programas e poliacuteticas (Scarcelli 2017)

As pesquisas que apresentamos se debruccedilam em questotildees de gecircnero sauacutede mental

violecircncia justiccedila permanecircncia estudantil relacionadas agraves poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede e

educaccedilatildeo no contexto brasileiro Aleacutem disso possuem diferentes caminhos metodoloacutegicos ndash

como observaccedilatildeo e registro em diaacuterios de campo narrativas entrevistas e sociodrama ndash e satildeo

pautadas por uma concepccedilatildeo de sujeito compreendido como ser histoacuterico e socialmente

determinado em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica entre mundos interno e externo (Pichon-Riviegravere 2005) de

tal modo que projetos poliacuteticos ressoam na constituiccedilatildeo psiacutequica dos sujeitos Refletem assim

sobre possibilidades de uma psicologia social imbricada na relaccedilatildeo dialeacutetica entre sociedade e

produccedilatildeo de saberes buscando pautar o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas comprometidas

com diferentes necessidades sociais

Eacute importante ressaltar que no contexto do vasto campo da psicologia social

caracterizado pela pluralidade e multiplicidade de abordagens teoacutericas a perspectiva

pichoniana concebe uma interciecircncia com metodologia interdisciplinar ou seja o lsquohomem-em-

situaccedilatildeorsquo como objeto das vaacuterias ciecircncias suscetiacutevel de uma abordagem pluridimensional

Segundo o proacuteprio Pichon-Riviegravere (2005) seu pensamento estaacute sistematizado num conjunto de

conceitos gerais e teoacutericos referidos a um setor do real e a um determinado universo do

discurso que permitem uma aproximaccedilatildeo instrumental a um objeto particular concreto Esses

conceitos segundo Quiroga (2009) buscam dar conta de uma realidade para guiar uma accedilatildeo

sobre ela

Tais referecircncias tecircm nos guiado e se mostrado relevantes no diaacutelogo com o campo das

poliacuteticas puacuteblicas com os setores das poliacuteticas sociais como a sauacutede e abordagens psicoloacutegicas

em meio a outros modos diversos e tambeacutem potentes de buscar aproximaccedilatildeo entre esses campos

(Scarcelli 2017)

1 As pesquisas

As pesquisas apresentadas sinteticamente a partir de seus objetivos e caminhos

seguidos e agrupadas neste texto segundo as questotildees que abordam situam-se no acircmbito de

232

Mestrado e Doutorado no Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social do IP-USP

11 Gecircnero

Duas pesquisas desenvolvidas uma em niacutevel de Doutorado e outra de Mestrado

partiram de uma concepccedilatildeo na qual gecircnero eacute relacional e poliacutetico como defende Joan Scott

(1995) Donna Haraway (2004) por sua vez afirma que gecircnero seria um conceito desenvolvido

para contestar a naturalizaccedilatildeo da diferenccedila sexual de modo que os feminismos buscam explicar

e transformar sistemas histoacutericos nos quais ldquohomensrdquo e ldquomulheresrdquo satildeo socialmente

constituiacutedos e posicionados em relaccedilotildees de hierarquia Nesta mesma perspectiva Judith Butler

(2008) propotildee repensar categorias de identidade no contexto de uma assimetria radical do

gecircnero A autora problematiza a proacutepria construccedilatildeo dos corpos como gendrados pautada numa

inteligibilidade cultural diretamente associada agrave matriz heterossexual e agrave praacutetica compulsoacuteria

da heterossexualidade que naturaliza corpos gecircneros e desejos Corpos inteligiacuteveis possuiriam

um sexo estaacutevel expresso por um gecircnero estaacutevel que eacute definido oposicional e

hierarquicamente por meio da praacutetica compulsoacuteria da heterossexualidade (Butler 2008 p

216)

A pesquisa de Doutorado Transmasculinidades no Sistema Puacuteblico de Sauacutede

experiecircncias dos usuaacuterios3 investiga experiecircncias de transiccedilatildeo de gecircnero em sistemas puacuteblicos

de sauacutede no Brasil e em Portugal Para tal a partir de entrevistas realizadas com de homens

trans4 que utilizaram o Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) no Brasil ou o Sistema Nacional de

Sauacutede (SNS) em Portugal Entrevistando interlocutores nos dois paiacuteses busca compreender

como suas experiecircncias podem contribuir agrave proposiccedilatildeo e reformulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

Foram realizadas quatro entrevistas de caraacuteter exploratoacuterio duas em Portugal e duas no

Brasil com homens trans atendidos no processo de transiccedilatildeo de gecircnero no sistema de sauacutede

puacuteblica no seu paiacutes Nestas entrevistas os toacutepicos abordados partiram da percepccedilatildeo dos proacuteprios

interlocutores sobre efeitos da transiccedilatildeo em curso em suas vidas aleacutem de investigar o acesso

destes e os caminhos que percorreram dentro do sistema de sauacutede bem como suas concepccedilotildees

de gecircnero

Aleacutem das entrevistas textos das poliacuteticas puacuteblicas brasileiras como o da Poliacutetica

3 Conduzida por Fernanda Lyrio Heinzelmann 4 Conforme a definiccedilatildeo de Jaqueline de Jesus (2013) pessoas trans satildeo aquelas que natildeo se identificam com o

gecircnero que lhes foi atribuiacutedo ao nascimento ou socialmente Para a pesquisa em questatildeo satildeo homens trans os que

natildeo se identificam com o gecircnero feminino que lhes foi atribuiacutedo ao nascimento ou socialmente

233

Nacional de Sauacutede Integral LGBT (Leacutesbicas Gays Bissexuais Travestis e Transexuais) de

2011 e o da Portaria nordm 2803 de 19 de novembro de 2013 do Ministeacuterio da Sauacutede que

redefine e amplia o Processo Transexualizador no SUS satildeo analisados nesta pesquisa visando

problematizar possiacuteveis discrepacircncias entre proposiccedilotildees teoacutericas por parte do Estado e o que na

praacutetica eacute vivenciado pelos usuaacuterios do sistema O texto da lei de identidade de gecircnero

portuguesa Lei nordm 382018 tambeacutem eacute estudado (Portugal 2018) A partir da discussatildeo dos

dados levantados almeja-se traccedilar um panorama do que existe em termos de cuidado para estes

homens e tambeacutem pensar sobre a relaccedilatildeo existente entre estes cuidados e suas demandas

A pesquisa de Mestrado intitulada ldquoDiscussotildees de gecircnero nas praacuteticas de sauacutede no

contexto da Atenccedilatildeo Baacutesica do SUSrdquo5 analisa como se manifestam questotildees de gecircnero na

Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS bem como suas implicaccedilotildees nas praacuteticas de sauacutede do ponto de vista

do cuidado das relaccedilotildees concepccedilotildees e poliacuteticas puacuteblicas Para tanto a poacutes-graduanda

permaneceu por cinco meses em uma unidade baacutesica de sauacutede de uma grande cidade da regiatildeo

sudeste brasileira Atendimentos grupos reuniotildees e discussotildees de casos foram observados e

registrados em caderno de campo

A Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS foi considerada como campo privilegiado por se tratar da

ldquoporta de entradardquo do sistema de sauacutede tanto responsaacutevel por cuidar de grande parte dos

problemas de sauacutede da populaccedilatildeo quanto capaz de organizar o fluxo de atendimento para os

niacuteveis mais complexos de atenccedilatildeo agrave sauacutede Dessa forma nas unidades baacutesicas profissionais

acolhem diariamente diferentes situaccedilotildees e demandas de sauacutede que estatildeo mutuamente

relacionadas ao contexto de vida das pessoas e agraves dimensotildees estruturais da sociedade como a

patriarcal Entende-se conforme Avtar Brah (2006) que as relaccedilotildees patriarcais satildeo como uma

ldquoforma especiacutefica de relaccedilatildeo de gecircnero em que as mulheres estatildeo numa posiccedilatildeo subordinadardquo

(Brah 2006 p 351)

A partir de concepccedilotildees feministas de gecircnero segundo as quais diferentes instituiccedilotildees e

praacuteticas sociais satildeo constituiacutedas pelos gecircneros e constituintes dos gecircneros (Louro 1997)

compreende-se que haacute uma iacutentima relaccedilatildeo entre gecircnero e praacuteticas de sauacutede que pode ser

analisada Por essa anaacutelise tem sido possiacutevel refletir sobre a cotidianidade dos serviccedilos de

sauacutede sobretudo a respeito das poliacuteticas puacuteblicas do campo visando desenvolvecirc-las em um

sentido mais comprometido com o combate agraves desigualdades de gecircnero

5 Conduzida por Mariana Fagundes de Almeida Rivera

234

12 Violecircncia

Tambeacutem posicionada no acircmbito da Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS encontra-se uma pesquisa

de Doutorado que aborda a Poliacutetica de Enfrentamento e Prevenccedilatildeo de Violecircncia na aacuterea da

Sauacutede do municiacutepio de Satildeo Paulo6 objetivando identificar e compreender quais as

possibilidades e desafios que os Nuacutecleos de Prevenccedilatildeo de Violecircncia (NPV) possuem para lidar

com as situaccedilotildees de violecircncia que se apresentam no dia a dia seja no niacutevel da prevenccedilatildeo ou da

intervenccedilatildeo nas Unidades Baacutesicas de Sauacutede (UBS)

Em 2002 a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) reconheceu a violecircncia como um

problema de sauacutede puacuteblica e divulgou o ldquoRelatoacuterio Mundial sobre Violecircncia e Sauacutederdquo (Krug

Dahlberg Mercy Zwi amp Lozano 2002) No Brasil apesar de desde a deacutecada de 1980 esses

eventos constituiacuterem a segunda causa de oacutebito no perfil da mortalidade geral somente em 2001

foi instituiacuteda por meio da Portaria nordm 737GM do Ministeacuterio da Sauacutede a ldquoPoliacutetica Nacional de

Reduccedilatildeo da Morbimortalidade por Acidentes e Violecircnciasrdquo (PNRMAV) em que foram

estabelecidas diretrizes e responsabilidades institucionais de cada ente da Federaccedilatildeo Na cidade

de Satildeo Paulo destaca-se a Portaria nordm 13002015SMSG que institui Nuacutecleos de Prevenccedilatildeo da

Violecircncia (NPV) nos estabelecimentos de sauacutede do municiacutepio ou seja equipes de referecircncia

das Unidades de Sauacutede responsaacuteveis pela ldquoorganizaccedilatildeo do cuidado e articulaccedilatildeo das accedilotildees a

serem desencadeadas para a superaccedilatildeo da violecircncia e promoccedilatildeo da cultura de pazrdquo (Prefeitura

de Satildeo Paulo 2015)

Minayo (2005) fala sobre a complexidade do tema e afirma que as causas devem ser

analisadas a partir de componentes soacutecio-histoacutericos econocircmicos culturais e subjetivos

Ressalta que no caso do Brasil questotildees estruturais que cronificam a fome a miseacuteria e as

desigualdades sociais de gecircnero de etnia e mantecircm o domiacutenio adultocecircntrico sobre crianccedilas e

adolescentes relacionam-se diretamente com os atos violentos que se revelam no dia-a-dia

Em sua obra ldquoSobre a Violecircnciardquo Marilena Chauiacute (2017) destaca a questatildeo do

autoritarismo da sociedade brasileira que naturalizou a violecircncia que se apresenta sobretudo

de maneira velada estruturada a partir de relaccedilotildees familiares de classes dominantes com

predomiacutenio do espaccedilo privado sobre o puacuteblico em que os benefiacutecios concedidos a uma minoria

satildeo percebidos como naturais

Para alcanccedilar o objetivo da pesquisa foram realizadas oito entrevistas abertas com

pessoas que trabalham nos NPVs e trecircs entrevistas com gestoras e gestores da aacuterea teacutecnica de

6 Conduzida por Kate Delfini Santos

235

Atenccedilatildeo Integral da Pessoa em Situaccedilatildeo de Violecircncia sendo uma no niacutevel da supervisatildeo de

sauacutede outra na coordenadoria aleacutem da responsaacutevel pela aacuterea na Secretaria Municipal de Sauacutede

Tambeacutem foi realizada uma anaacutelise da Poliacutetica Nacional de Reduccedilatildeo da Morbidade sobre

Violecircncia e Sauacutede e da Linha de Cuidado para Atenccedilatildeo Integral da Pessoa em Situaccedilatildeo de

Violecircncia

13 Sauacutede Mental e Justiccedila

Duas pesquisas em niacutevel de Doutorado abordam a Sauacutede Mental na interface com a

Justiccedila Uma delas intitulada ldquoSauacutede Mental e Defensoria Puacuteblica buscando caminhos para

praacuteticas de cuidado no Sistema de (in)Justiccedilardquo7 trata de demandas relacionadas ao campo da

Sauacutede Mental e como estas se apresentam e se cruzam com instituiccedilotildees juriacutedicas a partir da

perspectiva da Defensoria Puacuteblica do Estado de Satildeo Paulo Objetiva levantar e compartilhar

possibilidades para efetivaccedilatildeo de praacuteticas de cuidado e garantia de direitos das ldquopessoas com

transtornos mentaisrdquo8 e de suas famiacutelias as quais tecircm suas histoacuterias acompanhadas pelo Sistema

de Justiccedila Partindo de narrativas registradas no diaacuterio de campo da pesquisadora ndash que eacute

tambeacutem psicoacuteloga da Defensoria Puacuteblica e estaacute imersa cotidianamente em seu campo de

pesquisa ndash foram analisados alguns casos processos judiciais fluxos intra-institucionais e

intersetoriais intervenccedilotildees e projetos articulando as anaacutelises das praacuteticas com legislaccedilotildees

normativas dados e bibliografia que versa sobre o tema

Frequentemente nas Defensorias Puacuteblicas chegam pedidos de internaccedilatildeo

involuntaacuteriacompulsoacuteria para pessoas com transtorno mental eou que fazem uso problemaacutetico

de drogas geralmente a pedido de familiares Tambeacutem se observa a interface com a Sauacutede

Mental quando pessoas procuram a instituiccedilatildeo com discursos confusos ou ideias aparentemente

delirantespersecutoacuterias eou vivendo situaccedilotildees de violecircncianegligecircncia nas accedilotildees de

destituiccedilatildeo do poder familiar de mulheres pobres com transtorno mental eou que fazem uso

problemaacutetico de drogas por exemplo em casos em que medidas de seguranccedila determinam a

internaccedilatildeo de pessoas em Hospitais de Custoacutedia e Tratamento Psiquiaacutetrico (HCTP)

Demandas relacionadas ao campo da Sauacutede Mental satildeo encontradas no Sistema de

7 Conduzida por Paula Rosana Cavalcante 8 Os termos ldquotranstorno mentalrdquo e ldquopessoas com transtorno mentalrdquo foram designados pelos diagnoacutesticos meacutedicos

ou pelo modo estas pessoas ou situaccedilotildees foram historicamente denominadas na sociedade Aqui satildeo utilizadas para

circunscrever o fenocircmeno social mas natildeo sem fazer a criacutetica a estes roacutetulos e o significado destes Entende-se que

se trata de uma construccedilatildeo social que denominou certas caracteriacutesticas ou comportamentos como ldquodesviordquo

ldquodoenccedilardquo ou ldquoanormalidaderdquo portanto algo indesejado a ser corrigido ou controlado

236

Justiccedila haacute muito tempo Observa-se que historicamente estes casos em geral eram atendidos

de maneira segmentada e estigmatizante com praacuteticas de segregaccedilatildeo contenccedilatildeo e violecircncia

(Dotto Endo Sposito amp Endo 2012)

Neste contexto apesar da cultura ainda repressora e estigmatizante do campo do direito

identificam-se algumas praacuteticas alinhadas com os princiacutepios da Luta Antimanicomial

(Amarante 2008) tais como accedilotildees de qualificaccedilatildeo ao atendimento ndash na perspectiva do cuidado

ndash accedilotildees de articulaccedilatildeo com outras poliacuteticas puacuteblicas e equipamentos construccedilatildeo de termos de

cooperaccedilatildeo e accedilotildees civis puacuteblicas para implementaccedilatildeo e fortalecimento da Rede de Atenccedilatildeo

Psicossocial projetos de capacitaccedilatildeo e de educaccedilatildeo em direitos O papel de profissionais da

psicologia tem sido fundamental neste processo buscando novos e alternativos caminhos neste

campo preocupando-se com a escuta qualificada e a autonomia de usuaacuterias e usuaacuterios atuando

no fortalecimento dos laccedilos sociais e familiares bem como visando potencializar as conexotildees

entre as poliacuteticas puacuteblicas fomentando intervenccedilotildees para que a Defensoria Puacuteblica integre

tambeacutem esta Rede

Outra pesquisa de Doutorado em curso que compotildee o cenaacuterio de interface entre

poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede mental e o campo do Sistema de Justiccedila sobretudo o campo de

garantia de direitos eacute o estudo de uma poacutes-graduanda9 que tambeacutem eacute trabalhadora do

Ministeacuterio Puacuteblico de Satildeo Paulo (MPSP) o qual a exemplo da Defensoria Puacuteblica compotildee o

Sistema de Justiccedila brasileiro e que a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 tem como funccedilatildeo

ldquoa defesa da ordem juriacutedica do regime democraacutetico e dos interesses sociais e individuais

indisponiacuteveisrdquo (Brasil 1988 art 127) Na perspectiva institucional o MPSP inclui accedilotildees que

se direcionam para a efetivaccedilatildeo do projeto societaacuterio democraacutetico atuando tambeacutem no

monitoramento e na avaliaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas assim podendo contar com apoio de

equipes teacutecnicas proacuteprias (eg Goulart 2016) Neste contexto no estado de Satildeo Paulo foi

criado um Nuacutecleo de Assessoria Teacutecnica Psicossocial (NAT) em 2012 em cujo contexto o

trabalho da pesquisadora estaacute inserido

Entre 2012 e 2018 portanto a pesquisadora teve acesso por meio de visitas

institucionais a serviccedilos previstos na Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental Tambeacutem adentrou

outras unidades natildeo configuradas nesta poliacutetica como Instituiccedilotildees de Longa Permanecircncia para

Idosos (ILPI) previstas na poliacutetica de Assistecircncia Social Comunidades Terapecircuticas que

recebem casos sem conexatildeo com o perfil de uso de aacutelcool e outras drogas cliacutenicas particulares

9 Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim

237

serviccedilos sem oficializaccedilatildeo de funcionamento (entendidos como ilegais) deparando-se com

discursos e praacuteticas ainda de caraacuteter manicomial Neste sentido a pesquisa por meio de

narrativas da trabalhadora revela situaccedilotildees de persistentes internaccedilotildees em situaccedilotildees natildeo

parametrizadas que vatildeo no sentido oposto aos contextos da Luta Antimanicomial e de poliacuteticas

de Atenccedilatildeo em Sauacutede Mental que permitem refletir sobre o processo de Reforma Psiquiaacutetrica

frente a avanccedilos retrocessos e sentidos do termo manicomial como ldquometaacutefora de relaccedilotildees de

violecircncia e discriminaccedilatildeo geradoras de exclusatildeo socialrdquo (Scarcelli 1998 p 1)

14 Permanecircncia Estudantil

No campo das poliacuteticas puacuteblicas voltadas agrave educaccedilatildeo superior a pesquisa de Doutorado

ldquoEncontros e desencontros entre o saber popular e o conhecimento acadecircmicordquo10 procura

compreender o percurso das comunidades que adentram a universidade puacuteblica gratuita aleacutem

de analisar papeacuteis que os grupos sociais possuem na permanecircncia de estudantes cotistas Trata-

se de uma pesquisa-accedilatildeo de natureza qualitativa A anaacutelise documental (2000 a 2016) permite

compreender que um conjunto de poliacuteticas puacuteblicas construiu uma expansatildeo da rede de

universidades federais para aleacutem da ampliaccedilatildeo de vagas pautando o desenvolvimento de

territoacuterios (Programa de Aceleraccedilatildeo de Crescimento) e a inclusatildeo de maiorias e minorias sociais

(Brasil 2012)11

Na tese propotildee-se o termo ldquoUniversidades Suleadasrdquo12 para nomear algumas

universidades puacuteblicas federais que surgiram em um movimento de expansatildeo destas

universidades com um projeto poliacutetico-pedagoacutegico pautado num ideaacuterio contra hegemocircnico e

na praacutexis da emancipaccedilatildeo social

Ainda para o caso brasileiro cabe considerar a recente configuraccedilatildeo de novas universidades

puacuteblicas que buscam outro modelo de universidade contra a loacutegica hegemocircnica ainda que

dentro da oficialidade estatal Alguns desses exemplos satildeo a Universidade Federal da Integraccedilatildeo

Latino-Americana (Unila) a Universidade Federal da Integraccedilatildeo Internacional da Lusofonia

Afro-Brasileira (Unilab) a Universidade Federal do Sul da Bahia e a Universidade Federal da

Fronteira Sul (UFFS) esta que inclusive se autodefine como uma universidade popular em

seus documentos de fundaccedilatildeo Sobre essas universidades e o processo de expansatildeo do sistema

puacuteblico brasileiro temos trabalhos de produccedilatildeo recente baseados em pesquisas em andamento

10 Conduzida por Tatiana Alves Romatildeo 11 A Lei nordm 12711 de 29 de agosto de 2012 (Nova Lei de Cotas) conjuga criteacuterios de cotas raciais e de cotas

sociais que altera a questatildeo do acesso agrave educaccedilatildeo superior federal por um mecanismo que ao direcionar o bem

puacuteblico aos menos privilegiados efetivam uma forma de desenvolvimento social de uma maioria historicamente

excluiacuteda de acesso agrave educaccedilatildeo superior (Lei nordm 12711 2012) 12 O termo Universidade Suleada tem em Paulo Freire uma de suas inspiraccedilotildees Freire chama atenccedilatildeo para os

aspectos ideoloacutegicos do termo ldquonortearrdquo e usa a expressatildeo ldquosulearrdquo para referir-se agrave oacutetica do sul agrave construccedilatildeo de

paradigmas alternativos e agrave reinvenccedilatildeo da emancipaccedilatildeo social (Cf Dicionaacuterio Paulo Freire 2008)

238

no projeto Observatoacuterio da Universidade Popular no Brasil (Morris 2016 p 117)

Com base no cenaacuterio apresentado elege-se a Universidade Federal do Sul da Bahia

inaugurada em 2014 para a conduccedilatildeo da pesquisa Esta Universidade pratica uma poliacutetica de

cotas que privilegia indiacutegenas aldeadaos quilombolas e campesinaos do Movimento Sem

Terra

2 Caminhos da investigaccedilatildeo procedimentos e instrumentos utilizados nas pesquisas de

campo

Como jaacute referido haacute uma ampla diversidade metodoloacutegica no campo da Psicologia

Social Tendo meacutetodo como ldquocaminho do pensamentordquo (Minayo 2014) ilustra-se aqui o

desenvolvimento e a construccedilatildeo de possiacuteveis trajetos de investigaccedilatildeo que permitam

compreender efeitos das poliacuteticas puacuteblicas sobre as vidas das pessoas A definiccedilatildeo de desenho

metodoloacutegico bem como a escolha de procedimentos e instrumentos utilizados eacute pautada tanto

pelo campo da pesquisa quanto pelo referencial teoacuterico guiotildees estes que permitem um rigor

que valide os saberes gerados pelas investigaccedilotildees e o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas

comprometidas com diversas necessidades sociais

Diferentes instrumentos e procedimentos foram utilizados nas pesquisas apresentadas

entrevistas narrativas observaccedilatildeo diaacuterio de campo e sociodrama se constituiacuteram como

possibilidades viaacuteveis nas investigaccedilotildees e satildeo apresentados como forma de dar visibilidade a

essas propostas no campo da Psicologia Social

21 Observaccedilatildeo e diaacuterio de campo

As Ciecircncias Sociais haacute muito se utilizam da observaccedilatildeo participante e da etnografia para

a realizaccedilatildeo de pesquisas nas quais se busca conhecer uma realidade diversa daquela da pessoa

que a conduz Nestes trabalhos o uso de diaacuterio de campo ou caderno de campo se fez

fundamental uma vez que nele foram registradas caracteriacutesticas da cultura da realidade do

ldquocampordquo que se punham a conhecer A Psicologia Social pocircde ao longo do tempo se debruccedilar

sobre essas contribuiccedilotildees e tambeacutem se utilizar delas

Comprometidas com uma criacutetica agrave construccedilatildeo do conhecimento positivista e agrave

hegemonia do saber cientiacutefico as pesquisas que se utilizaram desses caminhos metodoloacutegicos

objetivaram ultrapassar a falsa dicotomia entre o pesquisador e o objeto da pesquisa A

ldquopesquisa de campordquo no contexto do grupo de pesquisa aqui mencionado no entanto se realiza

239

menos proacutexima agrave etnografia e mais proacutexima de um ldquose deixar levarrdquo Scarcelli (2012) em sua

pesquisa de Doutorado demonstrou como eacute possiacutevel se apoiar nas ideias pichonianas para

produzir uma investigaccedilatildeo de campo que permita encontros e conversas com o intuito de se

aproximar de uma realidade desconhecida ou conhecer algum aspecto dela em particular

A partir das ideias de Pichon-Riviegravere (2005) eacute possiacutevel acessar processos

intersubjetivos realizando tambeacutem uma constante anaacutelise do mundo interno por quem

investiga Como o autor propotildee deve-se atentar a duas dimensotildees de fenocircmenos presentes neste

processo o observaacutevel (expliacutecito) e as fantasias inconscientes (impliacutecito) As observaccedilotildees em

uma pesquisa de campo que adote esse modo de investigaccedilatildeo entatildeo servem para se questionar

o que se processa no sujeito e nos arranjos e rearranjos grupais Para Pichon

todo processo impliacutecito manifesta-se dentro do campo de observaccedilatildeo pelo surgimento de uma

qualidade nova nesse campo a qual seraacute denominada emergente O emergente destaca-se como

conceito por representar a articulaccedilatildeo possiacutevel entre os acircmbitos da intra e intersubjetividade

(Scarcelli 2002 p 102)

O conceito de emergente representa a articulaccedilatildeo possiacutevel entre os acircmbitos da intra e

intersubjetividade do mundo interno e mundo externo expressa-se por um conjunto de

fantasias inconscientes explicitadas atraveacutes do processo de atribuiccedilatildeo e assunccedilatildeo de papeacuteis

(Pichon-Riviegravere 2005) Trata-se de uma formulaccedilatildeo relacionada agravequele que pode ser

considerado um dos pilares da teoria pichoniana o conceito de porta-voz Porta-voz de um

grupo eacute aquele que em um determinado momento denuncia o acontecer grupal as fantasias

que o movem as ansiedades e necessidades do grupo Natildeo fala por si soacute mas por todo o grupo

pois eacute no porta-voz que se conjugam a verticalidade e horizontalidade grupais (Scarcelli 2012)

Nesse sentido o sujeito porta-voz eacute veiacuteculo de uma qualidade emergente que remete agrave

a dimensatildeo impliacutecita das relaccedilotildees estruturantes do grupo estabelecidas entre seus integrantes

O emergente representa uma nova situaccedilatildeo grupal sendo porta-voz quem explicita as fantasias

inconscientes do grupo (Pichon-Riviegravere 2005) A investigaccedilatildeo feita a partir do grupo indaga o

interjogo entre o intra e o intersubjetivo (mundo interno e mundo externo) considerando-se

entre outros aspectos uma observaccedilatildeo dos modos de interaccedilatildeo simultaneamente agrave formulaccedilatildeo

de hipoacuteteses provisoacuterias acerca dos processos envolvidos nesse interjogo

Na pesquisa que aborda gecircnero realizada na UBS adotou-se a ldquoobservaccedilatildeordquo das

atividades realizadas na e pela instituiccedilatildeo sendo o diaacuterio de campo instrumento primordial para

seu objetivo Neste diaacuterio registravam-se acontecimentos presenciados em campo encontros e

desencontros aquilo que se mostrava significativo para a pesquisa e ao mesmo tempo

sensaccedilotildees ideias vivecircncias internas da proacutepria pesquisadora em campo como frequentemente

240

se faz o observador de grupos operativos tal como teorizado por Pichon-Riviegravere (2005) Para

este autor o mundo interno representa um conjunto de relaccedilotildees sociais internalizadas que

passam do que estaacute fora (mundo externo) para o grupo interno (mundo interno) que se

encontram em permanente interaccedilatildeo Essas relaccedilotildees apresentam-se como objeto da Psicologia

Social da Praacutexis que tem como instrumentos privilegiado de investigaccedilatildeo o grupo que foi

denominado de operativo no qual se investiga o interjogo entre a dimensatildeo psicossocial e a

dimensatildeo sociodinacircmica (Scarcelli 2017) a ldquoobservaccedilatildeo das formas de interaccedilatildeo dos

mecanismos de adjudicaccedilatildeo e assunccedilatildeo de papeacuteisrdquo (Pichon-Riviegravere 2005 p 238) ou das

ldquoformas de interaccedilatildeo que nos conduzem a estabelecer hipoacuteteses acerca de seus determinantesrdquo

(Lema 2008 p 107) Nesse sentido

ter o grupo operativo como instrumento de investigaccedilatildeo natildeo significa constituir um grupo assim

formalizado ou investigar um grupo constituiacutedo a partir do que propotildee a teacutecnica Em outros

termos do grupo operativo decorre um conjunto de conceitos que orientam nosso olhar quando

examinamos situaccedilotildees de maneira geral (Scarcelli 2017 p 192)

Desse modo o diaacuterio de campo tudo incluiacutea informaccedilotildees sobre o local e as pessoas

datas e horaacuterios ocorridos contatos acordos e combinados bem como questotildees subjetivas

reflexotildees acerca do tema da pesquisa e diaacutelogos com leituras que a pesquisadora jaacute havia feito

Todo esse registro formou um diaacuterio de campo de uma experiecircncia vivida

corporalmente nas relaccedilotildees entre pessoas ndash e natildeo com o ldquoobjetordquo de pesquisa ndash assim como

de uma experiecircncia vivida na instituiccedilatildeo com sua (des)organizaccedilatildeo hierarquia cultura e

histoacuteria Portanto os escritos no diaacuterio de campo natildeo representam a realidade externa mas uma

construccedilatildeo na qual a proacutepria pesquisadora participa jaacute que o que eacute selecionado para registro

passa por sua atenccedilatildeo interpretaccedilatildeo vida interna que pode ser teorizada a partir de uma teoria

de grupos concebida no acircmbito da Psicologia Social da Praacutexis (Kazi 2006)

22 Entrevistas

A entrevista como recurso metodoloacutegico eacute entendida acima de tudo como conversa

entre duas ou vaacuterias pessoas interlocutoras tendo como finalidade fornecer informaccedilotildees

pertinentes sobre um objeto de pesquisa (Minayo 2014) Traz informaccedilotildees dos proacuteprios

sujeitos a partir de sua maneira individual de sentir e compreender sua realidade revela crenccedilas

valores condutas maneiras de atuar Bleger (1998) afirma que o campo da entrevista eacute

dinacircmico sendo necessaacuterio considerar (a) quem conduz a entrevista considerando aspectos de

identificaccedilatildeo e contratransferecircncia etc (b) quem eacute a pessoa entrevistada incluindo aqui os

aspectos transferenciais suas defesas e ansiedades etc (c) a relaccedilatildeo interpessoal onde

241

circulam as ansiedades o processo de comunicaccedilatildeo (projeccedilatildeo introjeccedilatildeo identificaccedilatildeo) etc

Isso quer dizer que ateacute pelas condiccedilotildees em que as entrevistas ocorrem devem ser considerados

tanto aspectos formais e objetivos quanto a subjetividade envolvida nesse encontro

Entrevistas foram realizadas nas pesquisas desenvolvidas por este grupo de autoras e

elas aconteciam frequentemente na perspectiva do ldquose deixar levarrdquo que pode se encaminhar agrave

modalidade de encontro previamente marcado e orientado por questotildees previamente definidas

A pesquisa que abordou questotildees de gecircnero em Portugal e no Brasil simultaneamente

encaminhou-se com entrevistas que almejaram obter relatos pessoais a partir de respostas dadas

pelos interlocutores Inicialmente foram propostas entrevistas abertas com toacutepicos sugeridos

e listados num roteiro natildeo riacutegido Ao longo do trabalho foram feitos ajustes para incluir

particularidades natildeo pensadas originalmente a exemplo da existecircncia de uma lei de identidade

de gecircnero no contexto portuguecircs Deste modo em Portugal foi necessaacuterio elaborar um roteiro

de perguntas que partiram de um questionaacuterio semiestruturado enquanto no Brasil as

entrevistas permaneceram abertas tendo como elemento disparador uma uacutenica pergunta Ainda

que no primeiro caso nem todos os toacutepicos listados no roteiro preacutevio tenham sido abordados

as ausecircncias destes tambeacutem puderam fornecer dados relacionadas a relevacircncia de tais questotildees

para cada interlocutor

23 Narrativas

Conforme exposto no toacutepico anterior algumas das pesquisas aqui descritas utilizam

narrativas a partir do resgate de registros em diaacuterio de campo das pesquisadoras que satildeo

tambeacutem trabalhadoras em seu campo de pesquisa Esta escolha se deu fundamentada no

entendimento de que poderaacute ser um modo coerente de acolher diversas formas de manifestaccedilatildeo

das questotildees de sauacutede mental e de como estas se apresentam nas instituiccedilotildees juriacutedicas ou ainda

em relaccedilatildeo a oacutergatildeos que representam direitos e portanto justiccedila Deste modo procura-se

retratar resgatar recolher visibilizar atraveacutes de narrativas os atendimentos visitas reuniotildees

diaacutelogos e demais procedimentos que compotildeem o cotidiano das pesquisadoras A pesquisa

narrativa eacute um instrumento criativo e inovador jaacute consagrado pela Organizaccedilatildeo Mundial de

Sauacutede (OMS)

Em 2003 o Escritoacuterio Regional para a Europa da Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede criou um

serviccedilo de informaccedilatildeo puacuteblica denominado HEN ndash Health Evidence Network Baseado em

ldquoevidecircncias sintetizadasrdquo propotildee ldquoopccedilotildees poliacuteticasrdquo para o desenvolvimento de futuras

recomendaccedilotildees na tomada de decisotildees em sauacutede Entre as sugestotildees figuraram uso de

novos tipos de evidecircncia pesquisa qualitativa e narrativa ampliaccedilatildeo de disciplinas acadecircmicas

242

relacionadas a contextos culturais (Nunes 2018 p 307 grifo nosso)

Este relatoacuterio com recomendaccedilotildees da OMS observa que abordagens altamente

estruturadas minimizam a importacircncia da leitura e da interaccedilatildeo dialoacutegica entre a literatura e a

pesquisadora a continuidade interpretativa e o questionamento a avaliaccedilatildeo criacutetica e a

criatividade o desenvolvimento da argumentaccedilatildeo e da escrita ndash atividades altamente

intelectuais e criativas que buscam originalidade ao inveacutes de replicabilidade Desse modo uma

narrativa seria um relato com um comeccedilo uma sequecircncia de eventos que se desenrolam e um

final A narrativa coloca personagens eventos accedilotildees e contexto juntos para dar sentido a eles

(Nunes 2018)

Segundo esta anaacutelise as histoacuterias satildeo subjetivas e intersubjetivas incorporadas em

praacuteticas institucionais e sociais e convencem natildeo pela sua verdade objetiva mas por sua

semelhanccedila com a vida real e o impacto sobre o leitor ou ouvinte O foco da pesquisa narrativa

estaria em produzir o que nomeia de ldquointerpretaccedilatildeo convincenterdquo destacando que

confiabilidade plausibilidade e criticidade ndash reflexividade questionamento e interpretaccedilotildees

alternativas ndash satildeo fundamentais (Nunes 2018)

O documento tambeacutem aponta que ldquopesquisas narrativas bem conduzidas e analisadas

podem complementar estudos randomizados estudos observacionais e dados coletados

rotineiramente de vaacuterios tiposrdquo (Nunes 2018 p 309) Satildeo recomendados como procedimentos

para garantir criteacuterios cientiacuteficos agrave pesquisa coletar vaacuterias histoacuterias sobre o mesmo assunto

relacionar a histoacuteria a outras fontes como dados biomeacutedicos e estar atenta aos deveres eacuteticos

de honestidade e confidencialidade Desta forma o conteuacutedo das narrativas pode ser o material

disparador para um encontro com o campo de interesse do estudo ilustrando dinacircmicas

(institucionais interpessoais interinstitucionais) relaccedilotildees discursos diaacutelogos accedilotildees

intervenccedilotildees dentre outras descriccedilotildees elementos que podem ser analisados em conjunto com

outras fontes de dados tais como legislaccedilatildeo normativas estatiacutesticas bibliografia e outras

pesquisas

Por fim se por um lado a narrativa eacute considerada como elemento inovador haacute que se

ponderar sobre a criticidade direcionada a esta concepccedilatildeo de fazer e compreender a ciecircncia

desde os trabalhos de Walter Benjamin (1985) e Hannah Arendt (2016) A funccedilatildeo poliacutetica de

narrar eacute resgatada na pesquisa ao se buscar o sentido desta accedilatildeo na composiccedilatildeo da mesma e a

partir dela deixar vir agrave cena aquilo que estava fora do discurso oficial de sucesso da histoacuteria

neste caso para compor o cenaacuterio dos avanccedilos da sauacutede mental no Brasil que como temos

visto vem sendo desconstruiacuteda atualmente sem representaccedilatildeo de resistecircncias que efetivem

243

barras no desmonte

Agraves pesquisas portanto interessam contar dos processos a fim de compor contextos de

estudos quantitativos e outros qualitativos e tambeacutem promover reflexatildeo sobre os restos que

ficam de fora do discurso apenas dos avanccedilos e conquistas para partilhar de experiecircncias no

campo de interface da justiccedila e sauacutede que recolham as contradiccedilotildees e incongruecircncias da

realidade (Critelli 2012) Ficaria a cargo do narrador a transmissatildeo natildeo oficial ou dominante

pois eacute dela que a tradiccedilatildeo natildeo recorda (Gagnebin 2006) e assim do lugar de trabalhadoras do

sistema de justiccedila buscamos narrar o que testemunhamos deste lugar

Assim dialoga-se com Pichon partindo de conceitos que foram trazidos e trabalhados

anteriormente Se quem eacute porta-voz denuncia o acontecer grupal entende-se que as narradoras

tambeacutem promovem esse dizer das realidades nos contextos da interface justiccedila e sauacutede como

accedilatildeo de denuacutencia de um acontecer grupal tendo as realidades narradas surgindo como

emergente de um movimento pela sauacutede mental ndash que compotildee o contexto do direito da poliacutetica

e dos aspectos sociais

24 Sociodrama

O sociodrama eacute um instrumento metodoloacutegico da socionomia que ao ser utilizado como

meacutetodo de pesquisa interventiva permite estabelecer uma relaccedilatildeo dialeacutetica e dialoacutegica com seus

participantes Nesta concepccedilatildeo metodoloacutegica para se manter a coerecircncia com o referencial

filosoacutefico e teoacuterico os sujeitos satildeo convidados a ocupar o papel de co-pesquisadoras ou co-

pesquisadores a respeito da temaacutetica investigada

Moreno13 (1975) introduz o sociodrama como meacutetodo de accedilatildeo na abordagem dos

problemas antropoloacutegicos e culturais

O Conceito subjacente nessa abordagem eacute o reconhecimento de que o homem eacute um inteacuterprete

de papeacuteis que todo e qualquer indiviacuteduo se caracteriza por um certo repertoacuterio de papeacuteis que

dominam o seu comportamento e que toda e qualquer cultura eacute caracterizada por um certo

conjunto de papeacuteis que ela impotildee Para o estudo das inter-relaccedilotildees culturais o procedimento

sociodramaacutetico eacute idealmente adequado especialmente quando duas culturas coexistem em

proximidade fiacutesica e seus membros se encontram respectivamente num processo contiacutenuo de

13 Eacute importante destacar que Jacob Levy Moreno (1892-1974) trouxe agrave teoria do papel no campo da Psicologia e

na criaccedilatildeo do psicodrama quando procurava descrever os processos psiacutequicos que ocorriam neste meacutetodo nascido

do Teatro do Improviso E se ele trouxe contribuiccedilotildees importantes para a Psicologia eacute George Mead quem vai

desenvolver a noccedilatildeo de papel no acircmbito da Psicologia Social e explicar muitos aspectos da vida social por meio

do estudo dos papeacuteis Para ele na mente de cada um de noacutes natildeo soacute assumimos nosso papel como fazemos isso

tambeacutem em relaccedilatildeo ao papel do outro assumindo o papel social de um grupo organizado E foi no estudo de Mead

que Pichon buscou subsiacutedios para a construccedilatildeo de sua Psicologia social histoacuterica e concreta (Scarcelli 2017)

244

interaccedilatildeo e permuta de valores (Moreno 1975 p 413)

Convidou-se agrave vivecircncia de um ato sociodramaacutetico membros dos grupos que constituem

a instituiccedilatildeo os quais vestidos de seus papeacuteis sociais e do papel de co-pesquisadoras e co-

pesquisadores satildeo conduzidos em dramatizaccedilotildees de cenas eleitas e criadas pelo proacuteprio grupo

No sociodrama o grupo eacute ao mesmo tempo autor e ator das histoacuterias representadas

3 Anaacutelise

As pesquisas que apresentamos trazem diferentes questotildees e colocam reflexotildees de

dimensotildees de ordens diversas A partir de uma perspectiva pichoniana quando se tem o grupo

operativo como instrumento de investigaccedilatildeo sempre satildeo analisadas trecircs dimensotildees que natildeo se

separam mas satildeo consideradas como recortes metodoloacutegicos a psicossocial que analisa a parte

do sujeito que se dirige aos diferentes membros que o rodeiam a sociodinacircmica que aborda

diversas tensotildees existentes entre todos os membros que configuram a estrutura do grupo e a

institucional que consiste na investigaccedilatildeo dos grandes grupos (estrutura origem composiccedilatildeo

histoacuteria economia poliacutetica ideologia etc) (Pichon-Riviegravere 2005) Elas representam trecircs

direccedilotildees de anaacutelise na investigaccedilatildeo social e perpassam a discussatildeo desenvolvida nas pesquisas

aqui apresentadas que dialogam com o esquema conceitual referencial e operativo (ECRO) da

formulaccedilatildeo teoacuterica de Pichon-Riviegravere (Scarcelli 2017) Contudo a discussatildeo acerca da

dimensatildeo institucional natildeo tem sido suficientemente desenvolvida em estudos que priorizam a

abordagem psicoloacutegica para se refletir sobre as poliacuteticas puacuteblicas e praacuteticas institucionais

Baseadas nesta hipoacutetese e com o intuito de examinar com mais cuidado tal dimensatildeo

nas pesquisas e no caraacuteter social que elas tecircm lanccedilamos matildeo de outro recorte metodoloacutegico

sugerido por Scarcelli (2017) a partir do diaacutelogo feito com a teoria pichoniana mas que natildeo se

restringe a ela Tal proposta possibilita a identificaccedilatildeo de camadas relacionais que interrogam

questotildees e agregam conhecimento agrave dimensatildeo institucional e sua relaccedilatildeo intriacutenseca com as

dimensotildees psicossocial e sociodinacircmica quando estamos por exemplo diante das poliacuteticas

puacuteblicas e as praacuteticas que delas decorrem14

De acordo com esse recorte compreendem-se quatro acircmbitos distintos O poliacutetico-

juriacutedico refere-se agraves leis normas diretrizes e programas governamentais decorrentes de

definiccedilotildees poliacuteticas o social-cultural aos grupos e sujeitos suas necessidades e demandas no

14 Considerando os limites deste texto natildeo seraacute apresentado com mais detalhes o modo de fazer tal anaacutelise

Discussatildeo mais detalhada encontra-se em Scarcelli (2017)

245

contexto da implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo das poliacuteticas o teoacuterico-conceitual aos fundamentos

teoacutericos e filosoacuteficos assim como as concepccedilotildees que sustentam as praacuteticas leis diretrizes

poliacuteticas e programas e por fim o teacutecnico-assistencial que se refere aos modos de criaccedilatildeo

implantaccedilatildeo implementaccedilatildeo e desenvolvimento de praacuteticas leis diretrizes poliacuteticas e

programas (Scarcelli 2017)

Os acircmbitos estatildeo sempre interligados apoiando a investigaccedilatildeo de problemas que se

encontram na esfera das poliacuteticas puacuteblicas (por exemplo) e podendo ser utilizados como lentes

para adentrar o campo de pesquisa e refletir experiecircncias que satildeo mobilizadas tambeacutem na pessoa

que conduz a pesquisa Neste sentido os acircmbitos pensados como recorte metodoloacutegico

auxiliam o enquadre15 e o desenvolvimento da pesquisa considerando que a experiecircncia de

quem pesquisa estaacute implicada no processo de pesquisar

Os trabalhos das pesquisadoras deste capiacutetulo por exemplo se referem aos setores da

sauacutede e educaccedilatildeo e podem assim indagar sobre diferentes situaccedilotildees que se relacionam aos

acircmbitos propostos no recorte apresentado no campo das poliacuteticas puacuteblicas levantando questotildees

diversas Quais as leis e diretrizes que sustentam os setores da educaccedilatildeo e sauacutede no paiacutes Quais

poliacuteticas governamentais subsidiam as praacuteticas encontradas nas diferentes instituiccedilotildees

estudadas

E como satildeo concretizadas as praacuteticas no cotidiano das instituiccedilotildees que estatildeo prescritas

nas leis e diretrizes que as sustentam Estatildeo alinhadas ou em desalinho com tais poliacuteticas

Como concretizar em praacuteticas o que estaacute sendo proposto legalmente

Quem satildeo os grupos de pessoas que produzem tais praacuteticas Quais seus modos de

expressatildeo seus contextos de vida Mas aleacutem disso quais sujeitos que constituiacuteram as leis e

diretrizes poliacuteticas estudadas Como se organizaram e como realizaram esse trabalho

Haacute concepccedilotildees e referenciais teoacutericos e filosoacuteficos que orientam as praacuteticas nessas

instituiccedilotildees entatildeo quais satildeo eles E quais princiacutepios baseiam a construccedilatildeo das leis diretrizes

e programas que se relacionam a essas praacuteticas Qual a visatildeo de mundo e interesses dos sujeitos

que participaram desse processo

Como proposta de compreensatildeo dos focos que cada acircmbito pode motivar as perguntas

acima referem-se respectivamente aos acircmbitos poliacutetico-juriacutedico teacutecnico-assistencial social-

15 Joseacute Bleger (1984) disciacutepulo de Pichon-Riviegravere propotildee a concepccedilatildeo de enquadre para se aproximar de um

fenocircmeno do qual se toma uma parte de suas relaccedilotildees delimitando o que estaacute presente implicitamente em todas

as indagaccedilotildees cientiacuteficas ou natildeo De acordo com o autor enquadre satildeo as constantes dentro das quais acontece o

processo operando como um organizador psiacutequico Se por um lado o enquadre eacute imprescindiacutevel tambeacutem eacute

essencial que se tenha a criticidade quanto agrave caracteriacutestica de mobilidade do campo)

246

cultural e teoacuterico-conceitual ndash lembrando que satildeo camadas imbricadas podendo ser utilizadas

como recortes metodoloacutegicos que auxiliem na apreensatildeo da realidade sem ignorar suas relaccedilotildees

Uma busca estaacute em indagar sobre as lacunas entre os acircmbitos poliacutetico-juriacutedico e teacutecnico-

assistencial (Scarcelli 2011 2017) O que estaacute proposto em diretrizes leis e programas eacute de

fato concretizado no cotidiano das praacuteticas nas instituiccedilotildees Em muitos aspectos e

circunstacircncias como aqueles captados pelas pesquisas aqui apresentadas pode-se afirmar que

natildeo Mas isso jaacute eacute sentido e conhecido pelos diferentes atores dessas instituiccedilotildees O que se

torna interessante eacute conhecer como isso se daacute e quais as consequecircncias dessa discrepacircncia

tarefa que se torna facilitada pelo uso do recorte metodoloacutegico

Conflitos contradiccedilotildees e ambiguidades que se expressam entre o que se propotildee e o que

se estabelece (Scarcelli 2017) podem assim ser conhecidos Isso se expressou nos objetivos

e no desenvolvimento dos trabalhos das poacutes-graduandas que aqui escrevem

Um exemplo foi a adaptaccedilatildeo do formato das entrevistas de uma das pesquisas bem

como a inclusatildeo de alguns temas inicialmente desconsiderados A necessidade de se discutir

discrepacircncias entre os contextos portuguecircs e brasileiro possibilitou um olhar sobre questotildees

estruturais pautadas no poacutes-colonialismo (Brah 2006) Neste ponto pesaram natildeo apenas as

diferenccedilas entre os dois paiacuteses mas tambeacutem o fato de a pesquisadora em questatildeo ser brasileira

e ter se mostrado preponderante ao realizar a investigaccedilatildeo em Portugal

Jaacute no acircmbito da justiccedila em interface com a execuccedilatildeo da poliacutetica de sauacutede as

contradiccedilotildees satildeo inerentes e revelam campos de disputas diversas inclusive ideoloacutegicas

permitindo que as praacuteticas visualizem diferentes interaccedilotildees possiacuteveis que fogem agraves

regulamentaccedilotildees pactuadas na estrutura legal democraacutetica ndash esta inclusive se consolida em

nuances tambeacutem mais ou menos democraacuteticas como temos presenciado na histoacuteria da aacuterdua

construccedilatildeo da democracia no Brasil ingrediente fundamental ao lanccedilar-se em pesquisas do

universo das poliacuteticas puacuteblicas Os proacuteprios oacutergatildeos de defesa e garantia de direitos acabam por

apresentar diferentes posturas e condutas apesar da lei escrita e pactuada como unidade de

direccedilatildeo pois os inter-jogos vivos no campo social impactam nos movimentos diaacuterios e

institucionais

Nos serviccedilos de sauacutede em contexto nas diversas pesquisas presentes neste capiacutetulo a

diversidade de acesso e atendimento bem como as resoluccedilotildees cotidianas para conflitos e

desafios que se apresentam narram sobre as particularidades que inundam os processos de

relaccedilotildees cotidianas que estatildeo em jogo na execuccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede que satildeo reveladas por

247

meio de diferentes meios de instrumentais metodoloacutegicos e compotildeem o cenaacuterio das pesquisas

Tal configuraccedilatildeo tambeacutem eacute percebida no campo da execuccedilatildeo da poliacutetica de educaccedilatildeo

Consideraccedilotildees finais

O conhecimento que adveacutem das indagaccedilotildees por meio da proposta de recorte

metodoloacutegico dos acircmbitos assim como da proposta em realizar uma criacutetica da vida cotidiana16

pode trazer reflexotildees sobre a construccedilatildeo e implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Desnaturalizar

discriminar analisar desconstruir estereoacutetipos pode ser potente para se questionar sobre quais

instituiccedilotildees e praacuteticas estatildeo sendo produzidas nesta sociedade desigual ndash afinal de que tratam

as poliacuteticas puacuteblicas no Brasil na constante tensatildeo entre a diminuiccedilatildeo da desigualdade social e

na manutenccedilatildeo de um estado de desigualdade harmocircnico

As contribuiccedilotildees da Psicologia Social nesse sentido se referem agrave possibilidade de natildeo

perder de vista a dimensatildeo do sujeito psiacutequico e social Eacute por meio por exemplo das sensaccedilotildees

de impotecircncia de anguacutestia e sofrimento dos sujeitos envolvidos nos processos investigados que

se pode indagar a respeito da dimensatildeo social e institucional que compotildee a formulaccedilatildeo e

implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Se a violecircncia a injusticcedila o manicocircmio o sexismo o

racismo a falta de pertencimento se desvelam nas relaccedilotildees constituiacutedas nos cotidianos da

execuccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas a Psicologia Social nos convida a adentrar este campo com a

ciecircncia do tamanho de sua complexidade bem como da ausecircncia da ineacutercia e da insuficiecircncia

dos pactos convocando a compreensatildeo destes inter-jogos campo-pesquisa poliacutetica puacuteblica-

execuccedilatildeo lei-praacutetica serviccedilo-profissional e pessoa-pessoa

Referecircncias

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16 A psicologia social formulada por Pichon estaacute inscrita em uma criacutetica da vida cotidiana porque aborda o sujeito

imerso em suas relaccedilotildees sociais nas condiccedilotildees concretas de existecircncia ou seja aos modos de produccedilatildeo e

reproduccedilatildeo da existecircncia material de inserccedilatildeo dos sujeitos no processo produtivo Mas na cotidianidade os fatos

satildeo aceitos de forma naturalizada autoevidente sem ao menos serem questionados ou verificados pois eles satildeo

significados como o real por excelecircncia O sistema de representaccedilotildees sociais (ideologias) encobre e distorce o

cotidiano enquanto oculta a essecircncia da vida cotidiana segundo interesses dos setores hegemocircnicos da sociedade

as ideologias tecircm caraacuteter de classe social Sendo assim a reflexatildeo psicoloacutegica deve incluir indagaccedilotildees frente agrave

complexidade das relaccedilotildees que determinam as tramas vinculares e constituiccedilatildeo subjetiva e satildeo por elas

determinadas pois a vida cotidiana reivindica uma criacutetica uma atitude analiacutetica que faccedila frente agrave consciecircncia

ingecircnua indagando as leis que regem a configuraccedilatildeo do sujeito (interjogo necessidadessatisfaccedilatildeo) e as

modalidades de resposta social em cada formaccedilatildeo social concretardquo (Scarcelli 2017 p 217)

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Capiacutetulo 13

Algumas contribuiccedilotildees da Psicologia para o campo da Sauacutede do

Trabalhador

Heloiacutesa Aparecida de Souza

Johanna Garrido Pinzoacuten

Marcia Hespanhol Bernardo

Mariana Pereira da Silva

Introduccedilatildeo

O movimento de reforma sanitaacuteria brasileira e os movimentos operaacuterios que tiveram

seu auge na deacutecada de 1980 ndash periacuteodo de abertura poliacutetica apoacutes 21 anos de ditadura militar ndash

foram essenciais para a elaboraccedilatildeo do capiacutetulo sobre Sauacutede na Constituiccedilatildeo Federal de 1988

que indicou a criaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) Inserido nesse contexto o campo da

Sauacutede do Trabalhador (ST) colaborou com o avanccedilo nas poliacuteticas puacuteblicas de proteccedilatildeo aos

direitos dos trabalhadores Trata-se de um campo composto por saberes teoacutericos e praacuteticos

interdisciplinares ndash incluindo o saber dos trabalhadores ndash que fundamentados nas formulaccedilotildees

da Sauacutede Coletiva e da Medicina Social Latino-americana buscaram superar os limites

epistemoloacutegicos da Medicina do Trabalho e da Sauacutede Ocupacional que eram exercidas nas

empresas (Lacaz 1996) Desse modo seu loacutecus de atuaccedilatildeo foi a sauacutede puacuteblica abrangendo natildeo

apenas o atendimento agravequeles que se acidentam ou adoecem no trabalho mas tambeacutem a

promoccedilatildeo da sauacutede e intervenccedilotildees nos locais de trabalho visando agrave prevenccedilatildeo de acidentes e de

adoecimento dos trabalhadores

Todavia manter e ampliar a atenccedilatildeo agrave sauacutede dos trabalhadores no SUS tem sido um

desafio permanente Se o proacuteprio SUS sempre foi objeto de disputa por empresas privadas de

sauacutede a atuaccedilatildeo da Sauacutede do Trabalhador enfrenta uma seacuterie de obstaacuteculos que impedem sua

plena execuccedilatildeo Como todas as poliacuteticas puacuteblicas a ST eacute proveniente de um conflituoso e

intenso emaranhado de relaccedilotildees sociais econocircmicas e poliacuteticas e de acordo com Di Giovanni

(2009) sua manutenccedilatildeo depende da garantia de direitos agrave dignidade e agrave cidadania e das

articulaccedilotildees organizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees populares

252

Os desafios satildeo ainda mais graves na atualidade brasileira com as aceleradas perdas dos

ainda incipientes direitos conquistados no campo do trabalho Nesse sentido diversos projetos

desfavoraacuteveis aos trabalhadores foram apresentados aos Poderes Executivo e Legislativo

alguns jaacute aprovados e outros em discussatildeo no momento da escrita deste capiacutetulo Entre eles

estaacute a polecircmica ldquoreforma da previdecircnciardquo a Lei 134672017 que alterou a Consolidaccedilatildeo das

Leis do Trabalho (Brasil 2017a) e leis como a 134292017 que possibilita a terceirizaccedilatildeo de

qualquer tipo de atividade (Brasil 2017b)

Lacaz (2019) discute os retrocessos desse conjunto de leis e suas consequecircncias para as

conquistas no acircmbito da sauacutede dos trabalhadores Segundo o autor aleacutem de contribuir com o

aumento do desemprego e do trabalho precaacuterio tais alteraccedilotildees legais provocam mais acidentes

e incapacidades geram maior desgaste da sauacutede fiacutesica e mental dos trabalhadores e

concomitantemente levam ao desmonte das poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede

As caracteriacutesticas do atual contexto brasileiro estabelecidas dentro das margens do

capitalismo global satildeo levadas em conta pela Psicologia Social do Trabalho (Coutinho

Bernardo amp Sato 2017) que assume uma postura criacutetica ao modelo social de trabalho vigente

na atualidade Os profissionais e pesquisadores circunscritos nesse enfoque ndash no qual se incluem

as autoras deste artigo ndash estudam e discutem as implicaccedilotildees poliacuteticas e sociais da relaccedilatildeo

indiviacuteduo-trabalho no contexto social bem como promovem accedilotildees partindo do pressuposto de

que as relaccedilotildees de trabalho satildeo permeadas por assimetrias de poder (Coutinho Bernardo amp

Sato 2017) Portanto sua atuaccedilatildeo ndash em intervenccedilotildees ou em pesquisas ndash inclui uma anaacutelise

abrangente das contradiccedilotildees do trabalho dentro das condiccedilotildees decorrentes de seus processos de

produccedilatildeo particulares Ela tambeacutem valoriza os aspectos subjetivos a partir da perspectiva dos

proacuteprios trabalhadores e assim diferencia-se da relaccedilatildeo que a tradicional Psicologia

Organizacional estabelece com o trabalho (Bernardo Oliveira Souza amp Sousa 2017)

Na sauacutede puacuteblica desse modo as praacuteticas e as pesquisas em Psicologia precisam

abranger prevenccedilatildeo promoccedilatildeo e intervenccedilatildeo na sauacutede integral dos trabalhadores mediante a

problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o adoecimento do trabalhador e sua atividade laboral assim

como a conscientizaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees de trabalho nas quais se encontram Suas

contribuiccedilotildees abrangem os mais diversos niacuteveis do sistema de sauacutede que vatildeo da participaccedilatildeo

em equipes responsaacuteveis pela proacutepria formulaccedilatildeo das poliacuteticas ao atendimento direto a

trabalhadores adoecidos pelo trabalho Deve-se ressaltar que ao longo da histoacuteria no Brasil a

Psicologia com o vieacutes criacutetico com atuaccedilotildees e investigaccedilotildees que valorizavam o diaacutelogo com os

movimentos sociais a classe trabalhadora e os diversos serviccedilos puacuteblicos forneceu importantes

253

contribuiccedilotildees para a constituiccedilatildeo e implementaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas em Sauacutede do

Trabalhador

Considerando os pressupostos dessa exposiccedilatildeo inicial o presente capiacutetulo tem o

objetivo de refletir sobre as contribuiccedilotildees e desafios da participaccedilatildeo da Psicologia nas poliacuteticas

puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador Para isso parte das discussotildees e pesquisas realizadas pelo

grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que desde o ano

de 2009 tem se dedicado agrave anaacutelise das situaccedilotildees de trabalho e sua relaccedilatildeo com a sauacutede dos

trabalhadores em especial a sauacutede mental

Para abordar esse tema comeccedilaremos apresentando algumas reflexotildees sobre as

caracteriacutesticas do trabalho no contexto atual e suas repercussotildees para os trabalhadores

especialmente no que se refere agrave sauacutede que entendemos ser fundamental para a discussatildeo das

poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador e das contribuiccedilotildees da Psicologia agrave temaacutetica

Depois dessas reflexotildees introdutoacuterias seratildeo apresentadas algumas pesquisas de poacutes-graduaccedilatildeo

em Psicologia que colaboram com a construccedilatildeo de conhecimento na aacuterea da sauacutede coletiva e

na atuaccedilatildeo profissional do psicoacutelogo em prol dos direitos dos trabalhadores

1 Reflexotildees sobre as caracteriacutesticas do trabalho no contexto atual e suas consequecircncias

para os trabalhadores

Iniciamos lembrando que o trabalho possui um significado maior do que o ato de exercer

uma atividade ou de vender a forccedila de trabalho por uma remuneraccedilatildeo Existe tambeacutem uma

representaccedilatildeo social do trabalho como fator de integraccedilatildeo reconhecimento e cooperaccedilatildeo

Segundo Antunes (1998) ldquoO ato de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana realiza-se pelo

trabalho E a partir do trabalho em sua cotidianidade que o homem torna-se ser social

distinguindo-se de todas as formas natildeo humanasrdquo (Antunes 1998 p 121) Todavia sob o

capitalismo em vez de favorecer a humanizaccedilatildeo e a socializaccedilatildeo com frequecircncia ele se torna

nocivo aos trabalhadores

A busca inerente ao capitalismo pela maior acumulaccedilatildeo do lucro leva agrave intensificaccedilatildeo

do trabalho e consequentemente agrave fragilizaccedilatildeo da sauacutede dos trabalhadores Aspectos relativos

agrave organizaccedilatildeo do trabalho tais como a carga e o ritmo do trabalho o conteuacutedo das tarefas a

duraccedilatildeo da jornada a hierarquizaccedilatildeo estabelecida o trabalho em turnos e o controle na

produccedilatildeo desencadeiam desgastes fiacutesicos e psiacutequicos dos trabalhadores o que favorece o

sofrimento e os processos de adoecimento

254

Nesse sentido Lacaz (2007) faz referecircncia ao ldquoprocesso de trabalhordquo no qual se

inscrevem as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo estabelecidas a fim de ressaltar a determinaccedilatildeo

social e histoacuterica na compreensatildeo das relaccedilotildees trabalho e sauacutede-doenccedila O autor afirma

Importa entatildeo desvendar a nocividade do processo de trabalho sob o capitalismo e suas

implicaccedilotildees alienaccedilatildeo sobrecarga eou subcarga pela interaccedilatildeo dinacircmica de ldquocargasrdquo sobre os

corpos que trabalham conformado um nexo biopsiacutequico que expressa o desgaste impeditivo da

fluiccedilatildeo das potencialidades e da criatividade (Lacaz 2007 p 759-760)

O capitalismo tem sua trajetoacuteria marcada por diversos periacuteodos de expansatildeo e retraccedilatildeo

aleacutem de transformaccedilotildees na organizaccedilatildeo do trabalho e consequentemente dos trabalhadores

Uma das caracteriacutesticas mais significativas na contemporaneidade diz respeito agrave instauraccedilatildeo de

um modo de produccedilatildeo conhecido como ldquoregime de acumulaccedilatildeo flexiacutevelrdquo (Harvey 2011) O

aumento da competiccedilatildeo internacional em um periacuteodo de mudanccedilas e incertezas obrigou os

Estados capitalistas a favorecerem o ambiente dos negoacutecios facilitando e motivando a

introduccedilatildeo de novas alternativas de produccedilatildeo caracterizadas por uma maior flexibilidade dos

mercados pela mobilidade geograacutefica e pelo estabelecimento de raacutepidas mudanccedilas nas praacuteticas

de consumo (Antunes 1998 Bauman 1999) Ante essas imposiccedilotildees o regime de acumulaccedilatildeo

flexiacutevel tambeacutem introduz alteraccedilotildees significativas nos modelos da organizaccedilatildeo do trabalho e

nas relaccedilotildees trabalhistas com a finalidade (e a necessidade) de conter a forccedila dos trabalhadores

Isso configurou um novo contexto nas relaccedilotildees de trabalho no qual prevaleceu uma

caracteriacutestica em particular que se pode denominar flexibilidade laboral (Antunes 2005

Harvey 2011)

Essas transformaccedilotildees implicaram expressiva reduccedilatildeo do nuacutemero de trabalhadores

formais em empresas em paralelo agrave crescente ampliaccedilatildeo da informalidade e do desemprego Do

mesmo modo conveacutem destacar que as transformaccedilotildees ocorridas incluem desregulamentaccedilatildeo

terceirizaccedilatildeo e precarizaccedilatildeo do trabalho Um exemplo recente eacute o crescimento vertiginoso de

formas de trabalho relacionadas ao uso de tecnologias que vecircm sendo denominadas de

ldquouberizaccedilatildeordquo (Abiacutelio 2017) as quais oferecem situaccedilatildeo desprotegida insegura e muitas vezes

degradante ao trabalhador

Tal contexto impotildee grandes desafios aos trabalhadores tais como o cumprimento das

diversas exigecircncias cotidianas o envolvimento com a concorrecircncia do mercado a

aprendizagem constante das novas tecnologias o saber agir diante de um contexto em frequente

transformaccedilatildeo e vivecircncia de incerteza com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo de trabalho Desse modo a sauacutede

mental dos trabalhadores tambeacutem sofre um processo de desgaste

255

Franco Druck e Seligmann-Silva (2010) mencionam a identificaccedilatildeo de um conjunto de

transtornos mentais associados a condiccedilotildees precaacuterias de trabalho entre os quais se encontram

estresse depressatildeo esgotamento profissional (Burnout) estresse poacutes-traumaacutetico (TEPT) e a

dependecircncia de bebidas alcooacutelicas e a outras substacircncias psicoativas O psiquiatra francecircs Louis

Le Guillant (2006) foi um dos pioneiros nos estudos sobre a influecircncia do trabalho no

adoecimento mental Seu estudo sobre as telefonistas realizado na deacutecada de 1950 evidenciou

os efeitos nocivos para a sauacutede da intensificaccedilatildeo do trabalho e do controle exercido pelo poder

hieraacuterquico O autor expotildee que a organizaccedilatildeo do trabalho eacute a responsaacutevel por constrangimentos

pressotildees ou imposiccedilotildees que desorganizam o equiliacutebrio psicofisioloacutegico e mental dos

trabalhadores (Le Guillant 2006) A esse respeito Sato e Bernardo (2005) acrescentam que os

problemas reconhecidos por Le Guillant natildeo soacute continuam se reproduzindo na atualidade como

tambeacutem se ampliam com a intensificaccedilatildeo do trabalho e a sofisticaccedilatildeo do controle possibilitada

pelos avanccedilos tecnoloacutegicos

Assim ao abordar as grandes transformaccedilotildees sofridas pelo trabalho observa-se que

aleacutem de acentuarem ainda mais as desigualdades e a injusticcedila social presentes em nossa

sociedade trazem outras formas de sofrimento e adoecimento mais complexas e sutis

sobretudo do ponto de vista da sauacutede mental relacionada ao trabalho Vale enfatizar ainda que

tal quadro natildeo afeta apenas os trabalhadores formais do setor privado Os efeitos atingem toda

a classe-que-vive-do-trabalho (Antunes 1998) que abarca inclusive aqueles que natildeo

conseguem trabalho Daiacute a importacircncia de poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede dos

trabalhadores e do compromisso da Psicologia com tais poliacuteticas

2 Poliacuteticas Puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador Breve apanhado histoacuterico e contribuiccedilotildees

da Psicologia

A Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Trabalhador e da Trabalhadora tem como principais

objetivos o fortalecimento da Vigilacircncia em Sauacutede do Trabalhador a promoccedilatildeo de ambientes e

processos de trabalhos saudaacuteveis a garantia de integralidade na atenccedilatildeo agrave sauacutede dos

trabalhadores a ampliaccedilatildeo do entendimento de que a sauacutede do trabalhador deve ser concebida

como uma accedilatildeo transversal a incorporaccedilatildeo da categoria trabalho como determinante do

processo sauacutede-doenccedila dos indiviacuteduos e da coletividade a garantia de que a identificaccedilatildeo da

situaccedilatildeo do trabalho dos usuaacuterios seja considerada nas accedilotildees e serviccedilos de sauacutede assegurando

desse modo maior qualidade da atenccedilatildeo agrave sauacutede dos trabalhadores usuaacuterios do SUS (Brasil

2012)

256

Apesar de amplas e promissoras tal poliacutetica permanece cercada de fragilidades e como

discutido anteriormente sofre intensas ameaccedilas na atualidade Ela eacute oriunda de um longo

processo de organizaccedilatildeo e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores que comeccedilou a ser debatida de

forma mais estruturada na deacutecada de 1980 com forte influecircncia da Medicina Social Latino-

americana e do Movimento Operaacuterio Italiano Configura-se assim como uma das importantes

conquistas sociais presentes na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 (Lacaz 2007)

As raiacutezes das poliacuteticas puacuteblicas em ST satildeo criacuteticas e engajadas com os interesses e

participaccedilatildeo da classe trabalhadora Costa Lacaz Jackson Filho e Vilela (2013) afirmam que

se trata de um campo interdisciplinar plurinstitucional integrado agrave Sauacutede Coletiva e voltado

para a promoccedilatildeo prevenccedilatildeo e a assistecircncia aos trabalhadores privilegiando o seu protagonismo

e compreendendo a sauacutede-doenccedila como processo dinacircmico histoacuterico coletivo e com possiacuteveis

relaccedilotildees com o trabalho

A efetiva implantaccedilatildeo da ST no acircmbito da sauacutede puacuteblica ganhou relevacircncia na deacutecada

de 1990 quando a Lei Orgacircnica da Sauacutede regulamentou o SUS destacando accedilotildees de vigilacircncia

e atenccedilatildeo agraves condiccedilotildees de trabalho e seus impactos na sauacutede dos trabalhadores (Brasil 1990)

Posteriormente foram instituiacutedos os Centros de Referecircncia em Sauacutede do Trabalhador

(CERESTs) Sato Lacaz e Bernardo (2006) afirmam que no processo da reforma sanitaacuteria

ocorrida no Brasil na deacutecada de 1980 a Psicologia contribuiu para a efetivaccedilatildeo da Sauacutede do

Trabalhador colaborando por exemplo com a elaboraccedilatildeo de diretrizes com o

desenvolvimento de novas propostas de atendimento psicossocial (Sato Arauacutejo Udihara

Franco Nicotera Daldon Settimi e Silvestre 1993) e de accedilotildees de vigilacircncia em sauacutede (Sato amp

Bernardo 1995)

Segundo o documento produzido pelo Centro de Referecircncia Teacutecnica em Psicologia e

Poliacuteticas Puacuteblicas (Conselho Federal de Psicologia 2008) os psicoacutelogos que atuam na Sauacutede

do Trabalhador satildeo convidados a contribuir com a reflexatildeo sobre as vivecircncias desencadeadas

pelos aspectos da organizaccedilatildeo dos processos e das situaccedilotildees de trabalho existentes na

atualidade e a compreender as possiacuteveis repercussotildees desses elementos sobre a sauacutede dos

trabalhadores O documento destaca a importacircncia do psicoacutelogo na defesa da sauacutede dos

trabalhadores ao afirmar que no ldquoacircmbito do SUS o campo da sauacutede mental e trabalho encontra

nos psicoacutelogos importante base teacutecnica de sustentaccedilatildeordquo (Conselho Federal de Psicologia 2008

p 23) e ressalta a contribuiccedilatildeo da Psicologia na compreensatildeo da subjetividade do trabalhador

das vivecircncias de sofrimento no trabalho e das patologias provocadas ou agravadas pelo trabalho

257

A diferenccedila do olhar do psicoacutelogo em relaccedilatildeo a outros profissionais da sauacutede em nossa

concepccedilatildeo eacute que esse profissional recebe uma formaccedilatildeo que indiferente da perspectiva teoacuterica

prioriza a atenccedilatildeo agrave subjetividade e esse enfoque eacute essencial quando o assunto eacute a sauacutede mental

A Psicologia pode contribuir tambeacutem para a compreensatildeo dos sentidos atribuiacutedos ao trabalho

na atualidade para a anaacutelise das dinacircmicas intersubjetivas que ocorrem nos ambientes do

trabalho para o entendimento das defesas psiacutequicas adotadas pelos trabalhadores entre outras

articulaccedilotildees possiacuteveis de se estabelecer entre a atividade e o sujeito trabalhador Contudo essa

atenccedilatildeo agrave subjetividade por parte do psicoacutelogo natildeo pode se dar de forma individualizante e

descontextualizada Apesar de haver um leque de possibilidades natildeo eacute possiacutevel indicar uma

receita preacute-estabelecida para os fazeres do psicoacutelogo do sistema puacuteblico de sauacutede na defesa da

sauacutede mental dos trabalhadores

O principal aspecto que pode ser destacado na pesquisa e na praacutetica psicoloacutegica em

Sauacutede do Trabalhador eacute o compromisso com os interesses da classe trabalhadora e o

cumprimento do coacutedigo de eacutetica da profissatildeo que sintetiza as accedilotildees dos profissionais de forma

a atender as demandas sociais e valorizar a dignidade humana Vale lembrar alguns dos

princiacutepios fundamentais do coacutedigo de conduta eacutetica

I O psicoacutelogo basearaacute o seu trabalho no respeito e na promoccedilatildeo da liberdade da dignidade da

igualdade e da integridade do ser humano apoiado nos valores que embasam a Declaraccedilatildeo

Universal dos Direitos Humanos

II O psicoacutelogo trabalharaacute visando promover a sauacutede e a qualidade de vida das pessoas e das

coletividades e contribuiraacute para a eliminaccedilatildeo de quaisquer formas de negligecircncia discriminaccedilatildeo

exploraccedilatildeo violecircncia crueldade e opressatildeo

III O psicoacutelogo atuaraacute com responsabilidade social analisando criacutetica e historicamente a

realidade poliacutetica econocircmica social e cultural (Conselho Federal de Psicologia 2005 p 07)

Natildeo eacute simples manter esse compromisso em um cenaacuterio de banalizaccedilatildeo das injusticcedilas

sociais e de ataques aos direitos dos indiviacuteduos Sem duacutevida as profundas mudanccedilas nas

relaccedilotildees de trabalho das uacuteltimas deacutecadas e o alarmante crescimento do desgaste mental dos

trabalhadores apresentam novos e maiores desafios aos psicoacutelogos em especial aos que estatildeo

inseridos na Sauacutede Puacuteblica Todavia como destaca Parker (2014) os inuacutemeros embates sociais

apresentados agrave Psicologia na atualidade natildeo podem ser considerados de forma negativa e sim

devem ser encarados como sinais de forccedila ao proporcionarem a possibilidade de accedilotildees que

promovam a transcendecircncia dos pensamentos cristalizados por meio de praacuteticas experiecircncias

e teacutecnicas que contribuam com o rompimento da alienaccedilatildeo da populaccedilatildeo almejando a

emancipaccedilatildeo do ser humano

Ao escrever sobre a atuaccedilatildeo da Psicologia na sociedade latino-americana em sua

claacutessica obra ldquoO papel do psicoacutelogordquo Martiacuten-Baroacute (1996) tambeacutem eacute enfaacutetico ao afirmar que o

258

objetivo da praacutetica desse profissional em qualquer aacuterea deve ser em primeiro lugar o de

colaborar com o processo de conscientizaccedilatildeo da populaccedilatildeo Em outro momento ao falar

especificamente do trabalho o autor destaca a importacircncia de os psicoacutelogos verem os

trabalhadores natildeo como ldquoobjetos mas como sujeitos sociaisrdquo (Martiacuten-Baroacute 2014 p 621) e

especificamente com relaccedilatildeo agrave sauacutede mental dos trabalhadores afirma que esse conceito deve

ser revisto ldquoagrave luz da totalidade poliacutetica e natildeo de uma consideraccedilatildeo puramente individualista e

tecnocraacuteticardquo (Martiacuten-Baroacute 2014 p 621) Desse modo o saber do psicoacutelogo deve estar

a serviccedilo da construccedilatildeo de uma sociedade em que o bem-estar dos menos natildeo se faccedila sobre o

mal estar dos mais em que a realizaccedilatildeo de alguns natildeo requeira a negaccedilatildeo dos outros em que o

interesse de poucos natildeo exija desumanizaccedilatildeo de todos (Martiacuten-Baroacute 1996 p 23)

Reiteramos que uma forma de se alcanccedilar essa atuaccedilatildeo comprometida eacute por meio do

investimento na formaccedilatildeo criacutetica incentivando a reflexatildeo sobre a realidade social desde a

graduaccedilatildeo dos novos profissionais mantendo-a na formaccedilatildeo permanente Aleacutem disso os

pressupostos do campo da Sauacutede do Trabalhador precisam ser amplamente divulgados entre os

profissionais de sauacutede incluindo os psicoacutelogos

Considerando essa realidade apresentamos a seguir pesquisas realizadas pelo grupo

ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que buscaram analisar

diferentes situaccedilotildees de trabalho e sua relaccedilatildeo com a sauacutede dos trabalhadores Entendemos que

essa apresentaccedilatildeo possibilita o compartilhamento de compreensotildees e atuaccedilotildees criacuteticas de

psicoacutelogos em interface com as Poliacuteticas Puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador

3 Pesquisas de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia ndash Grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual

Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo

Os estudos realizados no Grupo de Pesquisa aqui apresentado se centraram

principalmente na construccedilatildeo de conhecimento nas aacutereas da Psicologia Social e da Sauacutede do

Trabalhador e na investigaccedilatildeo da atuaccedilatildeo profissional do psicoacutelogo em prol dos direitos e da

sauacutede dos trabalhadores em diversos segmentos da sociedade Essas pesquisas partiram de uma

releitura teoacuterica e metodoloacutegica da praacutetica da busca pela ampliaccedilatildeo dos conhecimentos sobre

a relaccedilatildeo entre sauacutede e trabalho e da necessidade de privilegiar o olhar e a participaccedilatildeo dos

trabalhadores bem como o reconhecimento de sua subjetividade nos diversos contextos de

trabalho implicando portanto um olhar criacutetico sobre os aspectos micro e macrossociais que

configuram o mundo do trabalho Mesmo que muitas delas natildeo tenham focalizado

259

especificamente as poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador entendemos que o

conhecimento construiacutedo colabora para o desenvolvimento desse campo

Com meacutetodos qualitativos1 baseadas no enfoque da Psicologia Social do Trabalho

(Coutinho Bernardo amp Sato 2017) e na compreensatildeo do Desgaste Mental (Seligmann-Silva

2011) foram desenvolvidas 40 pesquisas2 entre pesquisas-docente doutorados mestrados e

iniciaccedilotildees cientiacuteficas que deram origem a diversos artigos trabalhos completos capiacutetulos de

livros e outras produccedilotildees Abaixo apresentamos um quadro com as pesquisas realizadas pelo

grupo

Quadro 1 ndash Trabalhos produzidos pelo Grupo de Pesquisa ao longo de seu desenvolvimento

Ord Tiacutetulo da pesquisa Ano Modalidade Pesquisador(a)

1 Possibilidades de enfrentamento do desgaste

mental relacionado ao trabalho no acircmbito

das poliacuteticas puacuteblicas

2016-

2019

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)3

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Joyce Cristina Rodrigues Samuel de Medeiros Barreto

Rocircmulo Lopes da Silva

2 Relaccedilatildeo entre sauacutede mental e trabalho uma

anaacutelise das concepccedilotildees de profissionais de

sauacutede puacuteblica e de sindicalistas

2014-

2016

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Natasha Contro de Souza Fernando Garcia Silva

Edna Regina Verri Thiago Girardi de Andrade Mariana Pereira da Silva

3 A relaccedilatildeo entre psicologia e trabalho no

contexto contemporacircneo 2012-

2015

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Ramon Arauacutejo Silva Paulo Canheti Bertoni

Pedro Henrique Bedin Affonso Marcela Spinardi Cintra

Faacutebio Frazatto Verde

4

O capitalismo organizacional em

universidades e hospitais puacuteblicos no

contexto brasileiro

2009-

2012

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Faacutebio Frazatto Verde Ana Carolina Florence Barros Pedro Henrique Bedin Affonso

1 As opccedilotildees metodoloacutegicas variaram de acordo com o contexto e o objetivo da pesquisa Assim realizou-se

etnografias entrevistas abertas pesquisas-intervenccedilatildeo anaacutelise de histoacuterias de vida entre outras 2 As pesquisas foram desenvolvidas no programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Psicologia da PUC-

Campinas ao longo dos anos de 2009 a 2018 e foram orientadas pela professora doutora Marcia Hespanhol

Bernardo 3 Cada uma das pesquisas-docente envolveu tambeacutem diversos trabalhos de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica totalizando 17

260

5 Sauacutede Mental Relacionada ao Trabalho na

rede puacuteblica de sauacutede brasileira concepccedilotildees

e atuaccedilotildees transformadoras 2017 Doutorado Heloisa Aparecida de Souza

6 Vivecircncias de trabalhadores da sauacutede frente agrave

loacutegica capitalista um estudo da atenccedilatildeo

baacutesica na Colocircmbia e no Brasil 2016 Doutorado Johanna Garrido Pinzoacuten

7 Quantas vidas vive um trabalhador

Trabalho e cultura popular 2016 Doutorado Sandra Bull

8 Sem-terra com terra contradiccedilotildees e

potencialidades na organizaccedilatildeo social e

produtiva de assentamentos rurais 2016 Doutorado Caroline Cristiane de Sousa

9 O sonho que se tornou pesadelo a vivecircncia

de um grupo de trabalhadores da induacutestria

automobiliacutestica 2018 Mestrado Mariana Pereira da Silva

10 Caiu no meu iacutentimo repercussotildees dos

acidentes de trabalho na vida dos

trabalhadores 2018 Mestrado Juliana Lopes da Silva

11 Campo abstrato para um destino concreto O

fazer do psicoacutelogo como perito na justiccedila do

trabalho 2018 Mestrado Natasha Contro de Souza

12 Possibilidades de interface entre a atuaccedilatildeo

do psicoacutelogo na Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS e a

Psicologia Social 2017 Mestrado Marcela Spinardi Cintra

13

Vivecircncias de imigrantes latino-americanos

na Regiatildeo Metropolitana de Campinas

estudo de casos pela perspectiva da

Psicologia Social

2017 Mestrado Maria Manuela C Manaia

14 O poder de agir de trabalhadoras da

Assistecircncia Social no contexto neoliberal 2015 Mestrado Fabiano Galbiatti

15 A sauacutede mental e a (re)organizaccedilatildeo do

trabalho docente trabalho coletivo e poder

de agir 2015 Mestrado Eduardo Alessandro Kawamura

16 Vida de caminhoneiro sofrimento e paixatildeo 2015 Mestrado Ramon Arauacutejo Silva

17 O processo de consciecircncia em um

movimento de trabalhadores na luta pela

sauacutede 2013 Mestrado Daniel Luca Dassan da Silva

18 Humilhaccedilatildeo social no trabalho o caso das

advogadas negras 2013 Mestrado Rosana Antoniaci Platero

19 Representaccedilotildees Sociais de Trabalhadores

Acidentados sobre o retorno ao trabalho 2012 Mestrado Luciana de Souza Garbin

20 Os Desafios do Trabalho na Vida Cotidiana

de Mulheres Transexuais 2012 Mestrado Heloisa Aparecida de Souza

21 Trabalho e Sofrimento as narrativas de

alguns psicanalistas 2011 Mestrado Francisco Capoulade Nogueira

22

Relaccedilotildees cotidianas contradiccedilotildees e

articulaccedilotildees entre movimentos sociais um

estudo sobre a Flaskocirc e a Vila Operaacuteria e

Popular

2011 Mestrado Caroline Cristiane de Sousa

261

23 Histoacuterias de trabalho e outras histoacuterias no

trecho 2010 Mestrado Sandra Bull

Tais pesquisas revelam que existem inuacutemeras possibilidades de atuaccedilatildeo da Psicologia

em interface com o tema da sauacutede do trabalhador Diante da atual ameaccedila de desmonte do

sistema puacuteblico de sauacutede e de intensificaccedilatildeo da precarizaccedilatildeo social e do trabalho esses estudos

evidenciam a necessidade de conhecer a realidade dos trabalhadores de compreender com

clareza a relaccedilatildeo entre trabalho e adoecimento e de incentivar praacuteticas que busquem a promoccedilatildeo

da sauacutede integral da populaccedilatildeo

De forma geral as pesquisas buscaram o acesso ao cotidiano de trabalho por meio do

olhar dos proacuteprios trabalhadores pois satildeo eles os que vivenciam diariamente o trabalho em seus

muacuteltiplos processos O entendimento dos trabalhadores enquanto protagonistas tem como

principal referecircncia o Movimento Operaacuterio Italiano (Oddone Marri Gloria Briante Chiatella

amp Re 1986) Nessa perspectiva compreende-se que satildeo os trabalhadores que vivenciam o

trabalho e portanto seu conhecimento deve ter tanto valor quanto o conhecimento teacutecnico dos

profissionais de sauacutede Os psicoacutelogos pesquisadores assim valorizam e acessam as histoacuterias

dos participantes por meio de seus relatos e compartilhamento de experiecircncias de suas

realidades

Tendo entatildeo como principal foco a vivecircncia dos trabalhadores e sua relaccedilatildeo com a

sauacutede as pesquisas citadas no Quadro 1 focalizaram diversas situaccedilotildees e contextos Buumlll (2010)

por exemplo analisou a vivecircncia de trabalho de pessoas em situaccedilatildeo de rua e Sousa (2016) a

de moradores de assentamentos populares Pessoas viacutetimas de preconceitos e exclusatildeo social

no acircmbito do trabalho tambeacutem foram foco de investigaccedilotildees como as mulheres transexuais

(Souza 2012) e as advogadas negras (Platero 2013) bem como foram analisadas as

perspectivas de importantes atores sociais no campo da Sauacutede do Trabalhador como operadores

de Direito (Souza 2018) e psicanalistas (Nogueira 2011) Houve ainda pesquisas sobre as

repercussotildees de acidentes de trabalho na vida dos trabalhadores (Silva 2018 Garbiacuten 2012)

condiccedilotildees de trabalho de motoristas caminhoneiros (Silva 2015) imigrantes (Manaia 2017)

educadores (Kawamura 2015) e relaccedilatildeo entre cultura popular e trabalho (Buumlll 2016) Esses

exemplos demonstram como pesquisas com o olhar da Psicologia Social do Trabalho podem

auxiliar na compreensatildeo das muacuteltiplas realidades laborais oferecendo subsiacutedios para o

desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador

262

Considerando os limites deste capiacutetulo apresentaremos aqui com mais profundidade

trecircs dessas pesquisas por considerar que oferecem contribuiccedilotildees mais especiacuteficas agraves poliacuteticas

puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador A primeira focaliza diferentes sistemas de sauacutede na Ameacuterica

Latina (Garrido-Pinzoacuten 2016) outra relata uma intervenccedilatildeo-pesquisa grupal com trabalhadores

de uma induacutestria automobiliacutestica que manifestavam adoecimento fiacutesico e mental (Silva 2018)

e a terceira visou agrave anaacutelise das concepccedilotildees e as accedilotildees de trabalhadores do Sistema Uacutenico de

Sauacutede (SUS) no enfrentamento dos agravos agrave sauacutede mental do trabalhador (Souza 2017)

Apesar de partirem dos mesmos pressupostos trata-se de pesquisas com estruturas

meacutetodos e objetivos bastante distintos que datildeo luz a diferentes nuances da relaccedilatildeo entre

trabalho e sauacutede Por isso natildeo buscamos apresentaacute-las de forma homogecircnea e sim nos

empenhamos para trazer os aspectos mais relevantes de cada uma respeitando sua proacutepria

estrutura de modo a mostrar a riqueza de possibilidades de pesquisa criacuteticas em Psicologia

Social do Trabalho no campo das poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador

31 Vivecircncias de trabalhadores da sauacutede frente agrave loacutegica capitalista um estudo da Atenccedilatildeo

Baacutesica na Colocircmbia e no Brasil (Garrido-Pinzoacuten 2016)

A primeira pesquisa a ser apresentada realizada no periacuteodo de 2012 a 2016 teve como

objetivo principal compreender as vivecircncias de trabalhadores da Atenccedilatildeo Baacutesica dos Sistemas

Puacuteblicos de Sauacutede da Colocircmbia e do Brasil frente agrave loacutegica capitalista mediante a estrateacutegia

metodoloacutegica de entrevistas reflexivas em profundidade Sendo a pesquisadora uma

colombiana radicada no Brasil ela teve interesse em estudar esses contextos de trabalho no

setor da sauacutede puacuteblica nos dois paiacuteses buscando identificar possiacuteveis similaridades eou

diferenccedilas entre os cenaacuterios antagocircnicos o sistema colombiano criado nas esferas

governamentais com uma marcada influecircncia privatista jaacute haacute trecircs deacutecadas e o sistema

brasileiro uma importante conquista dos movimentos sociais que vem sofrendo ataques

visando seu desmonte na esfera puacuteblica

Um dos pressupostos centrais foi que o conhecimento das vivecircncias dos servidores

puacuteblicos da sauacutede nos dois contextos poderia ajudar cada uma das partes a melhorar a

compreensatildeo de sua proacutepria realidade e provavelmente definir novas perspectivas para lidar

com os efeitos negativos da precarizaccedilatildeo e flexibilizaccedilatildeo laboral A experiecircncia do sistema de

sauacutede da Colocircmbia foi considerada uma referecircncia para a anaacutelise das repercussotildees da ideologia

neoliberal nos trabalhadores do SUS

263

Nesse sentido o estudo destacou que as caracteriacutesticas dos modelos de gerenciamento

flexiacutevel tecircm sido introduzidas no setor puacuteblico nas uacuteltimas deacutecadas em diversos paiacuteses

determinando os dispositivos de regulaccedilatildeo social das relaccedilotildees de trabalho em funccedilatildeo da loacutegica

da economia de mercado sem levar em consideraccedilatildeo a qualidade dos serviccedilos prestados e a

sauacutede dos trabalhadores Trata-se daquilo que Blanch-Ribas (2007) denomina ldquocapitalismo

organizacionalrdquo Nesse contexto os funcionaacuterios puacuteblicos passam a ser submetidos a uma nova

forma de organizaccedilatildeo do trabalho muito similar agrave do setor privado com aumento da carga e do

ritmo de trabalho o qual eacute medido pela quantidade de serviccedilos prestados Em meio a esse

quadro de intensificaccedilatildeo da produccedilatildeo e redirecionamento do sentido do trabalho aparecem

tensotildees psicossociais em niacutevel individual e institucional (Gaulejac 2007) Eacute preciso pontuar

que em sistemas de sauacutede embasados em diretrizes neoliberais como o da Colocircmbia a ecircnfase

na produtividade conduz necessariamente agrave adoccedilatildeo de novas formas de organizaccedilatildeo do

trabalho nas quais prevalece o individualismo a competiccedilatildeo o estabelecimento de metas de

produccedilatildeo e o excessivo controle do gasto que satildeo caracteriacutesticas de empresas privadas em

detrimento das necessidades da populaccedilatildeo atendida

A pesquisa tambeacutem revelou que em ambos os paiacuteses as principais vivecircncias dos

profissionais da sauacutede determinadas pela loacutegica neoliberal estatildeo relacionadas com as

transformaccedilotildees introduzidas nas condiccedilotildees relaccedilotildees e organizaccedilatildeo do trabalho No contexto

colombiano estudado a origem das problemaacuteticas centrais apresentadas pelos entrevistados foi

identificada no processo de transiccedilatildeo induzido pela reforma realizada em 1993 que constituiu

seu atual sistema de sauacutede Essas problemaacuteticas se traduzem essencialmente na deterioraccedilatildeo

das relaccedilotildees com os usuaacuterios bem como na configuraccedilatildeo das equipes de trabalho marcadas

pelo contraste entre pessoas com diferentes viacutenculos empregatiacutecios Esta uacuteltima condiccedilatildeo

empecilho para a coesatildeo dos grupos de trabalho tambeacutem eacute observada no contexto brasileiro

pesquisado como produto da terceirizaccedilatildeo que parece ter se tornado um efetivo mecanismo

para enfraquecer o SUS facilitar seu desmonte e colocaacute-lo no mesmo caminho atualmente

percorrido pelo sistema de sauacutede colombiano

Ainda foi encontrado que nos dois cenaacuterios estudados tal panorama de precariedade do

trabalho permeado pela instabilidade intensificaccedilatildeo e sobrecarga laboral pela reduccedilatildeo de

salaacuterios dentre outros fatores tem ocasionado graves consequecircncias para a vida e a sauacutede dos

trabalhadores que se refletem na falta de reconhecimento social na deterioraccedilatildeo da eacutetica e da

moral e nas restriccedilotildees para a construccedilatildeo de um projeto de vida e na degradaccedilatildeo de sua sauacutede

fiacutesica e mental Assim queixas de estresse esgotamento fiacutesico e mental depressatildeo fadiga e

264

irritabilidade decorrentes da precarizaccedilatildeo das condiccedilotildees de trabalho foram comuns entre os

entrevistados

As abruptas mudanccedilas vivenciadas pelos trabalhadores dos dois contextos

indiscutivelmente atingiram a sua subjetividade Assim seus efeitos negativos incidiram na

sua identidade como profissionais da sauacutede na relaccedilatildeo com seu trabalho nos espaccedilos fora do

trabalho nos acircmbitos pessoal e familiar bem como na sua sauacutede fiacutesica e mental Como visto

comumente a desregulamentaccedilatildeo e flexibilizaccedilatildeo laboral estatildeo intimamente atreladas agrave

precarizaccedilatildeo do trabalho Essas deficientes relaccedilotildees e condiccedilotildees de trabalho vividas constituem

um desencadeante do desgaste mental (Seligmann-Silva 2011) A inseguranccedila incerteza

instabilidade e fragilidade que vivencia grande parte dos trabalhadores geraram um sentimento

de desrespeito a sua dignidade em detrimento de sua identidade de trabalhadores da sauacutede

Assim foi possiacutevel identificar o impacto na subjetividade dos trabalhadores das complexas

caracteriacutesticas das formas de organizaccedilatildeo do trabalho que integram o setor da sauacutede nos

contextos pesquisados impacto este que pode deflagrar processos de sofrimento e adoecimento

mental marcantes

E importante destacar que esses aspectos mencionados se revelam como uma

manifestaccedilatildeo de que em um sistema de sauacutede privatizado eacute praticamente inviaacutevel desenvolver

uma poliacutetica de Sauacutede do Trabalhador tornando-se um verdadeiro desafio a proteccedilatildeo da

dignidade dos direitos e da sauacutede dos trabalhadores Desse modo essa pesquisa evidencia os

graves riscos para a ST no Brasil no contexto atual incluindo suas consequecircncias para os

trabalhadores responsaacuteveis pelo desenvolvimento das poliacuteticas de sauacutede puacuteblica

32 O sonho que se tornou pesadelo a vivecircncia de um grupo de trabalhadores da induacutestria

automobiliacutestica (Silva 2018)

O segundo estudo a ser focalizado eacute o de Silva (2018) que teve uma configuraccedilatildeo

bastante diferente daquela apresentada no item 31 Ele se constituiu como uma intervenccedilatildeo-

pesquisa com um grupo de trabalhadores da induacutestria automobiliacutestica que apresentavam queixas

de adoecimento fiacutesico e mental relacionado ao trabalho Tal estudo foi realizado no periacuteodo de

2017 a 2018 no Centro de Referecircncia em Sauacutede do Trabalhador (CEREST) de Campinas - SP

e desde o princiacutepio esteve imerso em algumas dificuldades como por exemplo relacionadas

agrave ausecircncia de um psicoacutelogo no serviccedilo em questatildeo De acordo com Keppler e Yamamoto (2016)

a presenccedila de um psicoacutelogo natildeo eacute obrigatoacuteria nos CERESTs muito embora seja extremamente

265

necessaacuteria jaacute que as demandas de sauacutede-adoecimento relacionadas ao trabalho aumentam a

cada dia e apontam para a importacircncia desse profissional na rede puacuteblica especificamente nos

centros de referecircncia voltados ao atendimento em sauacutede e trabalho

A pesquisa se iniciou a partir de uma demanda presente no CEREST a respeito de

trabalhadores com queixas de adoecimento fiacutesico (LERDORT) e mental (depressatildeo ansiedade

e processos de desgaste) que invadiram outras esferas da vida que natildeo soacute a do trabalho Frente

a isso teve como objetivo promover uma intervenccedilatildeo em um grupo de reflexatildeo sobre trabalho

e sauacutede e analisar o processo de adoecimento vivenciado pelos trabalhadores participantes A

estrateacutegia de intervenccedilatildeo grupal foi utilizada por Sato et al (1993) haacute mais de 20 anos e

conforme afirmam O grupo facilita a construccedilatildeo de estrateacutegias individuais e coletivas no

sentido de melhorar a qualidade de vida requerendo tais estrateacutegias a adoccedilatildeo de uma postura

ativa diante da situaccedilatildeo (Sato et al 1993 p 49) Esse tipo de intervenccedilatildeo portanto valorizaria

o enfrentamento coletivo e pode gerar uniatildeo e solidariedade entre os membros

O grupo contou com a participaccedilatildeo de 14 trabalhadores de uma induacutestria automobiliacutestica

da regiatildeo e foi acompanhado por membros da equipe multidisciplinar do CEREST e pela

psicoacuteloga pesquisadora Ao todo houve 11 encontros ao longo de seis meses cuja principal

estrateacutegia metodoloacutegica foi rodas de conversa para compartilhamento de experiecircncias

Utilizaram-se tambeacutem materialidades mediadoras que se configuraram como disparadoras de

discussatildeo como filmes charges imagens muacutesicas entre outras Os temas discutidos com os

participantes foram por exemplo o trabalho no capitalismo o discurso flexiacutevel a

culpabilizaccedilatildeo dos trabalhadores pelo adoecimento suas histoacuterias de vida novos projetos e

planos futuros a uniatildeo e solidariedade entre os trabalhadores entre outros

De forma geral as informaccedilotildees compartilhadas mostraram que inicialmente os

trabalhadores almejavam muito ingressar na empresa e ao conseguirem sentiam ter realizado

um sonho Ao longo do tempo poreacutem o sonho acabou tornando-se pesadelo jaacute que eles

passaram a vivenciar muacuteltiplas formas de violecircncia psicoloacutegica como asseacutedio moral e

organizacional aleacutem de cobranccedilas e pressotildees por produtividade e rapidez o que acabava

favorecendo o desenvolvimento de lesotildees fiacutesicas Consequentemente o sofrimento e

adoecimento mental foram se intensificando pois os lesionados eram tambeacutem excluiacutedos

humilhados e reinseridos ao trabalho em funccedilotildees incompatiacuteveis

Os resultados foram analisados com base em referecircncias da Psicologia Social do

Trabalho e em Paulo Freire e Martiacuten-Baroacute autores engajados com a transformaccedilatildeo social e

entendimento do ser humano como ser histoacuterico dialeacutetico e natildeo naturalizante Silva (2018)

266

evidenciou o caraacuteter eacutetico poliacutetico da Psicologia enquanto ciecircncia com potencial transformador

que por meio da sensibilizaccedilatildeo e conscientizaccedilatildeo dos oprimidos pode evidenciar contradiccedilotildees

e fazer com que os trabalhadores percebam suas condiccedilotildees e lutem por uma realidade mais justa

e igualitaacuteria Freire (2014) afirma que quando o homem se daacute conta de sua construccedilatildeo histoacuteria

ele percebe que muitas vezes seus problemas satildeo compartilhados e natildeo individuais Durante o

grupo foi possiacutevel discutir tais noccedilotildees e auxiliar os participantes a amenizar a culpa que

carregavam por terem adoecido devido ao trabalho impulsionando-os a tomar as reacutedeas de suas

vidas e de suas histoacuterias

Tal pesquisa assim colaborou para o desenvolvimento de meacutetodos de atenccedilatildeo a

trabalhadores adoecidos pelo trabalho que vatildeo aleacutem do atendimento cliacutenico tradicional

individualizante

33 Sauacutede Mental Relacionada ao Trabalho na rede puacuteblica de sauacutede brasileira concepccedilotildees

e atuaccedilotildees transformadoras (Souza 2017)

Tendo em vista a evidente relaccedilatildeo entre as situaccedilotildees de trabalho existente na atualidade

e o processo de adoecimento mental dos trabalhadores essa terceira pesquisa realizada no

periacuteodo de 2013 a 2017 teve como objetivo identificar e analisar praacutexis consideradas exitosas

realizadas por profissionais da aacuterea da sauacutede puacuteblica que compreendem a complexidade

presente no processo de sauacutede-adoecimento mental O estudo remeteu agrave importacircncia da praacutetica

interdisciplinar e em rede no SUS e revelou que os diversos profissionais de sauacutede podem ter

atuaccedilotildees que vatildeo do atendimento aos trabalhadores jaacute adoecidos a propostas de promoccedilatildeo de

sauacutede psiacutequica nos ambientes de trabalho sendo sensiacuteveis agrave relaccedilatildeo entre sauacutede mental e

trabalho e demonstrando comprometimento eacutetico e poliacutetico

Por meio de entrevistas abertas com nove trabalhadores do SUS de diferentes categorias

profissionais (Psicologia Terapia Ocupacional Fisioterapia Medicina Enfermagem) que

tinham uma histoacuteria de envolvimento com a sauacutede dos trabalhadores buscou-se compreender

suas praacuteticas na Atenccedilatildeo Baacutesica em Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e em CERESTs

de diversas cidades do Estado de Satildeo Paulo

Os resultados da pesquisa demonstraram que por possuiacuterem uma compreensatildeo criacutetica

da realidade os participantes distanciavam-se de posturas fatalistas individualizantes e que

naturalizam as condiccedilotildees de trabalho Buscavam realizar accedilotildees que estimulam a resistecircncia dos

trabalhadores percebendo-os como protagonistas no enfrentamento do adoecimento mental

267

relacionado ao trabalho Para isso assim como realizado por Silva (2018) promoviam grupos

psicossociais visando favorecer o fortalecimento dos trabalhadores Tambeacutem incentivavam a

formaccedilatildeo e participaccedilatildeo de associaccedilotildees para reivindicar direitos e estimulavam a organizaccedilatildeo

coletiva dos trabalhadores como a participaccedilatildeo em sindicatos e em modelos alternativos de

organizaccedilatildeo do trabalho tais como autogestatildeo e cooperativas Aleacutem dessas praacuteticas realizavam

Vigilacircncia em Sauacutede do Trabalhador que eacute um instrumento essencial para prevenir o

adoecimento e promover a sauacutede nos locais de trabalho (Brasil 2010) e Apoio matricial (Santos

amp Lacaz 2012) buscando irradiar na rede de sauacutede a conscientizaccedilatildeo sobre as possiacuteveis

relaccedilotildees do trabalho com o adoecimento mental

Tais posturas revelam que apesar das inuacutemeras contradiccedilotildees existentes na sauacutede puacuteblica

brasileira encontramos profissionais com diferentes formaccedilotildees que partem de uma ampla

compreensatildeo do contexto social e de trabalho para o entendimento do processo sauacutede-

adoecimento mental dos trabalhadores Vale destacar que embora a maioria natildeo tenha

apresentado referenciais teoacutericos que embasam suas praacuteticas fica evidente seu entendimento

da historicidade e da dialeacutetica que define as relaccedilotildees sociais (Freire 2014)

Diante dos atuais desafios especialmente no que se refere ao desenvolvimento de

praacuteticas natildeo hegemocircnicas em sauacutede eacute necessaacuterio compartilhar praacuteticas consideradas exitosas

que respeitem e promovam os direitos dos trabalhadores no acircmbito da sauacutede puacuteblica Os

diversos atores sociais inclusive a Psicologia enquanto ciecircncia e profissatildeo precisam assumir

uma postura que considere as caracteriacutesticas da atual realidade social econocircmica e poliacutetica da

sociedade brasileira agindo de forma comprometida com a populaccedilatildeo menos favorecida

defendendo e colaborando com o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que visem agrave sauacutede

integral dos trabalhadores

A compreensatildeo das praacuteticas contra-hegemocircnicas desses profissionais em um contexto

de constantes ataques agraves poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede tambeacutem evidencia que natildeo eacute exclusividade

da Psicologia o olhar para os processos de sofrimento e adoecimento mental sobretudo quando

estatildeo relacionados ao trabalho demonstrando a importacircncia da atuaccedilatildeo interdisciplinar que

busque compreender e prevenir o adoecimento mental relacionado ao trabalho Nesse sentido

as praacuteticas profissionais apresentadas na pesquisa podem colaborar para o desenvolvimento e

aprimoramento de diferentes formas de atuaccedilatildeo no acircmbito da Sauacutede do Trabalhador no SUS

que considerem o conhecimento dos trabalhadores e favoreccedilam seu protagonismo

268

Consideraccedilotildees finais

Neste capiacutetulo buscamos discutir possiacuteveis contribuiccedilotildees da perspectiva da Psicologia

Social do Trabalho no acircmbito das poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador a partir da

apresentaccedilatildeo de algumas pesquisas que tecircm em comum o olhar criacutetico para o contexto social

que envolve as relaccedilotildees de trabalho e buscam o fortalecimento da classendashque-vive-do-trabalho

(Antunes 1998)

Vale dizer que diante da realidade atual de ataque agraves poliacuteticas puacuteblicas e aos direitos

dos trabalhadores eacute necessaacuterio reinventar e fortalecer as organizaccedilotildees coletivas para resistecircncia

e enfrentamento de tal situaccedilatildeo Tendo em vista o compromisso eacutetico poliacutetico da Psicologia

enquanto ciecircncia e profissatildeo faz-se necessaacuterio atuar de forma contextualizada e engajada com

a realidade em seus muacuteltiplos acircmbitos como social poliacutetico e econocircmico defendendo as

poliacuteticas puacuteblicas que visem agrave sauacutede e dignidade dos trabalhadores em geral E essa eacute uma

caracteriacutestica das pesquisas apresentadas aqui

Finalizamos lembrando Martiacuten-Baroacute (1996) que afirma que natildeo eacute possiacutevel fazer

Psicologia de forma comprometida sem assumir uma responsabilidade histoacuterica que tenta

transformar as condiccedilotildees dos oprimidos para que eles estejam conscientes recuperem a

memoacuteria histoacuterica de suas condiccedilotildees e possam transformaacute-las O quefazer do psicoacutelogo

portanto eacute auxiliar as pessoas a superar a alienaccedilatildeo e mudar suas realidades em prol da

libertaccedilatildeo Entendemos que as pesquisas apresentadas neste capiacutetulo buscaram modestamente

contribuir com uma accedilatildeo contextualizada que a Psicologia pode ter com a Sauacutede do Trabalhador

e com a Sauacutede Puacuteblica trazendo reflexotildees criacuteticas para o enfrentamento e transformaccedilatildeo da

realidade

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273

Capiacutetulo 14

Mulheres e Mineraccedilatildeo contribuiccedilotildees da Psicologia Social no campo das

poliacuteticas puacuteblicas

Paula Sassaki Coelho

Introduccedilatildeo

A procura por mineacuterios tem apresentado um recente crescimento no mercado

internacional com velocidade e quantidades expressivas Segundo Bruno Milanez (2012) este

crescimento estaacute associado principalmente agrave alta demanda no mercado mundial agrave reduccedilatildeo das

melhores fontes de mineacuterios e agrave possibilidade de escassez a meacutedio prazo O aumento da

demanda global tanto se daacute pela necessidade dos paiacuteses mais industrializados quanto pelo

aumento da procura de paiacuteses emergentes Neste contexto a grande mineraccedilatildeo tem ganhado

proporccedilotildees significativas e importacircncia na economia nacional no uacuteltimo periacuteodo Mais

recentemente como documentado por Mansur e colaboradores (2016) de 2003 a 2013 ficou

marcado um periacuteodo chamado de boom da mineraccedilatildeo no qual o Brasil exerceu papel

representativo enquanto fornecedor de mineacuterios com crescimento de 630 nas exportaccedilotildees

para o mercado global (passando de U$38 bilhotildees para U$196 bilhotildees) Com destaque ao

mineacuterio de ferro nas exportaccedilotildees nacionais que em 2011 representou 70 das exportaccedilotildees

minerais Em 2013 o Brasil era responsaacutevel por 143 da exportaccedilatildeo de ferro no mundo (o

segundo lugar entre cinco principais paiacuteses fornecedores do mineacuterio) Eacute exatamente neste

periacuteodo de boom da mineraccedilatildeo que o empreendimento Minas-Rio se instalou em Conceiccedilatildeo do

Mato Dentro

Conceiccedilatildeo do Mato Dentro eacute hoje um municiacutepio com cerca de 18 mil habitantes

localizado na Serra do Espinhaccedilo a pouco mais de 160km de Belo Horizonte1 Com alto perfil

turiacutestico a ldquocapital mineira do ecoturismordquo comporta cachoeiras e vegetaccedilatildeo exuberantes

dentre elas o cartatildeo postal da regiatildeo que eacute a Cachoeira do Tabuleiro Aleacutem disso a regiatildeo

tambeacutem conta com siacutetios arqueoloacutegicos importantes Antes da chegada da grande mineraccedilatildeo a

cidade tinha como atividade econocircmica importante a agricultura familiar (caracteriacutestica da

1 Dados extraiacutedos do portal ldquoCidadesrdquo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) Recuperado de

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274

regiatildeo) e caminhava para a consolidaccedilatildeo do turismo enquanto uma de suas principais atividades

econocircmicas Em 2005 poucos anos antes da chegada do Minas-Rio apoacutes uma seacuterie de

articulaccedilotildees regionais a cidade foi declarada como integrante da Reserva da Biosfera da Serra

do Espinhaccedilo (RBSE) pela Unesco (Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura) considerada enquanto patrimocircnio da humanidade (Cidade e Alteridade 2015

Conceiccedilatildeo do Mato Dentro 2019)

O complexo Minas-Rio inicialmente concebido pelo empresaacuterio Eike Batista foi

comprado pela Anglo American (uma das maiores empresas mineradoras do mundo) em 2009

Dentre outras coisas o empreendimento compreende o maior mineroduto do mundo (com mais

de 500km de extensatildeo ligando Conceiccedilatildeo do Mato Dentro ao Porto do Accedilu no Rio de Janeiro

cruzando cerca de 32 cidades) sua lavra principal eacute uma das maiores do Brasil e impacta uma

aacuterea de 6125 hectares conta com duas barragens de rejeitos (uma que impactaraacute uma aacuterea de

875 hectares e capacidade de receber 370 milhotildees de m3 de rejeitos) uma linha de energia uma

adutora independente de aacutegua entre outras instalaccedilotildees A totalidade deste complexo minerador

expressa indubitavelmente as dimensotildees que a grande mineraccedilatildeo tem assumido nacionalmente

(SISEMA 2008 Ferreira Rocha 2015)

Essa recente e volumosa exportaccedilatildeo mineral alimenta uma relaccedilatildeo de dependecircncia

econocircmica do paiacutes e das regiotildees diretamente envolvidas em relaccedilatildeo ao setor E seu modelo de

atuaccedilatildeo explicita o lugar atual do Brasil no sistema capitalista O notaacutevel aumento da extraccedilatildeo

estaacute relacionado natildeo apenas ao aumento do volume e velocidade de extraccedilatildeo mas tambeacutem agrave

diversificaccedilatildeo de mineacuterios extraiacutedos nos uacuteltimos anos Algo que implica necessariamente um

aumento do nuacutemero e do tamanho das aacutereas de mineraccedilatildeo assim como do tamanho e volume

de suas barragens e dos recursos hiacutedricos energeacuteticos e fundiaacuterios Essa necessidade do

mercado de volumosa extraccedilatildeo em tempo acelerado para acompanhar as altas de preccedilos no

mercado internacional somada agrave financeirizaccedilatildeo do mesmo e ao enorme investimento de

capital fazem com que as mineradoras exerccedilam forte pressatildeo para aprovaccedilatildeo de seus processos

de licenciamento ambientais e licitaccedilotildees de implementaccedilatildeo e expansatildeo Isto dificulta os

processos de avaliaccedilatildeo e reduccedilatildeo do enorme desgaste ambiental e social Dentre os desgastes

podemos citar as cataacutestrofes de rompimentos de barragens com as quais a sociedade brasileira

tem tido que lidar nos uacuteltimos anos De acordo com Santos e Wanderley (2016) apenas no

estado de Minas Gerais no periacuteodo de 1986 a 2015 foram oito rompimentos de barragens de

mineraccedilatildeo em seis municiacutepios distintos (dois rompimentos em Itabirito dois em Miraiacute e um

episoacutedio em cada um dos municiacutepios de Nova Lima Congonhas Itabira e Mariana) A estes

275

episoacutedios eacute preciso somar ainda o rompimento ocorrido em Brumadinho de responsabilidade

da Vale SA em 25 de janeiro de 2019 que teve mais de 300 viacutetimas fatais e atingiu toda a

bacia do rio Paraopeba

Outro grande entrave para o fortalecimento do modelo primaacuterio-exportador ao qual a

mineraccedilatildeo se integra eacute a desindustrializaccedilatildeo e a dependecircncia da exportaccedilatildeo de produtos com

baixa tecnologia e baixo valor agregado tornando nossa economia mais suscetiacutevel agrave

volatilidade e agraves pressotildees do mercado externo de commodities A opccedilatildeo pela desindustrializaccedilatildeo

aumenta nossa dependecircncia em relaccedilatildeo ao capital internacional uma vez que os preccedilos satildeo

determinados por ele Desta forma a pressatildeo sobre as decisotildees locais torna-se direta e

extremamente intensa numa correlaccedilatildeo de forccedilas desigual que garante que as decisotildees locais

sejam altamente determinadas pelo mercado internacional de mineacuterios sem a consideraccedilatildeo dos

planos e necessidades das populaccedilotildees diretamente atingidas pela exploraccedilatildeo primaacuterio-

exportadora Esta dependecircncia por sua vez nos leva agrave flexibilizaccedilatildeo das exigecircncias sociais e

ambientais aprofundando os impactos negativos da mineraccedilatildeo Esta relaccedilatildeo pode ser chamada

de mineacuterio-dependecircncia (T Coelho 2014)

A partir das contradiccedilotildees embates que este modelo de mineraccedilatildeo vem alimentando no

paiacutes surgiu o Movimento pela Soberania Nacional na Mineraccedilatildeo (MAM) Trata-se de um

movimento social recente e de acircmbito nacional que nasceu a partir da necessidade de enfrentar

denunciar e transformar o modelo de exploraccedilatildeo mineral vigente no Brasil Um de seus

objetivos eacute popularizar as decisotildees tomadas neste campo em prol da soberania popular na

mineraccedilatildeo Em consonacircncia com outras organizaccedilotildees do campo da esquerda e outros

movimentos sociais o MAM se oficializou enquanto tal no ano de 2012 Atualmente ele

compotildee o Comitecirc Nacional de Defesa dos Territoacuterios Frente agrave Mineraccedilatildeo e faz parte das

organizaccedilotildees integrantes da Via Campesina da comissatildeo organizadora do Encontro Continental

contra a Mineraccedilatildeo e pela Soberania Popular assim como tem participado de encontros em

outros paiacuteses da Ameacuterica Latina e da Aacutefrica em torno do tema da mineraccedilatildeo (MAM 2015) Eacute

importante destacar que a aproximaccedilatildeo com Conceiccedilatildeo do Mato Dentro que possibilitou este

trabalho foi viabilizada a partir da parceria com representantes do MAM

O eixo central dos debates propostos pelo MAM estaacute voltado ao modelo de mineraccedilatildeo

Neste sentido este capiacutetulo tambeacutem se debruccedilaraacute sobre alguns pontos relacionados agraves poliacuteticas

puacuteblicas que regulam ou deveriam regular a atividade mineradora no paiacutes pensando em

possiacuteveis contribuiccedilotildees da Psicologia Social Vale destacar que parto de relatos feitos por

mulheres de comunidades diretamente atingidas para problematizar algumas dimensotildees dos

276

impactos gerados Abrir um debate sobre os modos de minerar quais os retornos para as

comunidades atingidas determinaccedilatildeo de lugares (a serem minerados e a natildeo serem) e ritmos

poliacuteticas compensatoacuterias caacutelculo e utilizaccedilatildeo da Compensaccedilatildeo Financeira pela Exploraccedilatildeo de

Recursos Minerais (CFEM) dentre outros Estes satildeo temas essenciais que precisam ser

decididos pelo conjunto da sociedade brasileira e natildeo apenas segundo as exigecircncias do mercado

internacional ou das empresas mineradoras

1 Enfoque de gecircnero

A escolha pelo enfoque de gecircnero fundamenta-se na crescente importacircncia do

Feminismo e das mobilizaccedilotildees de mulheres no Brasil e no mundo Tal questatildeo se mostrou

relevante desde as primeiras aproximaccedilotildees com Conceiccedilatildeo do Mato Dentro a partir do relato

do protagonismo das mulheres nos processos de resistecircncia e mobilizaccedilatildeo popular frente ao

modelo de exploraccedilatildeo e destruiccedilatildeo relacionado ao complexo Minas-Rio Vale destacar que a

mobilizaccedilatildeo popular caminha diretamente com a luta por direitos humanos e pela consolidaccedilatildeo

entre outras coisas de poliacuteticas puacuteblicas mais justas do ponto de vista social

Parto da perspectiva de Maria Ameacutelia Telles (1999) e de outras feministas do campo

marxista que entendem o Feminismo enquanto uma corrente filosoacutefica e principalmente um

movimento social e poliacutetico que estaacute voltado agraves relaccedilotildees de opressatildeo e exploraccedilatildeo vividas pelas

mulheres E como movimento social natildeo apenas analisa mas tambeacutem se esforccedila em alterar

estas relaccedilotildees Neste mesmo sentido gecircnero tambeacutem eacute entendido como conceito que nasce da

inquietaccedilatildeo dos movimentos feministas e que possui cunho poliacutetico para aleacutem de apenas um

sentido analiacutetico (Piscitelli 2001)

Donna Haraway (2004) afirma que a conceituaccedilatildeo de gecircnero (termo anglo-saxatildeo

originado no poacutes-segunda guerra pelos movimentos feministas) surge bastante apoiado nas

formulaccedilotildees de Simone de Beauvoir (19492016) como uma maneira de contraposiccedilatildeo a

leituras deterministas e biologizantes Beauvoir consagra as diferenccedilas entre homens e mulheres

enquanto circunstanciadas por fatores sociais e natildeo necessariamente bioloacutegicos (apesar de

existirem distinccedilotildees bioloacutegicas entre os sexos natildeo satildeo estas que justificam as hierarquias

sociais) Sendo assim busco um entendimento de gecircnero que visa superar possiacuteveis

naturalizaccedilotildees para analisar as relaccedilotildees de poder que satildeo fundantes de nossa sociedade

assumindo um posicionamento histoacuterico e poliacutetico aliado a transformaccedilatildeo social

277

A mineraccedilatildeo eacute historicamente associada a uma atividade de cunho masculino e a

invisibilizaccedilatildeo das mulheres neste campo eacute algo marcante O trabalho nas minas eacute associado a

caracteriacutesticas tidas como ldquomasculinasrdquo como um trabalho ldquobrutordquo que prescinde de forccedila e

resistecircncia fiacutesica sob duras condiccedilotildees agraves quais natildeo se adaptariam as mulheres Esta concepccedilatildeo

eacute contraditoacuteria ao que acontece na realidade uma vez que agraves mulheres satildeo destinados

historicamente os postos e atividades de trabalho mais precarizados sob condiccedilotildees muitas vezes

mais arriscadas insalubres e mal remuneradas As mulheres foram marcadamente

marginalizadas na mineraccedilatildeo por meio de trabalhos informais como por exemplo nas minas

de carvatildeo mineral como ldquoescolhedeirasrdquo ou em trabalhos essenciais agrave atividade mineradora

mas que natildeo satildeo reconhecidos tal como no caso das mulheres na Boliacutevia que carregam aacutegua

na mineraccedilatildeo do ouro ou ainda quando assumem a figura de matildees viuacutevas e esposas satildeo

fundamentais para a manutenccedilatildeo da vida e do trabalho reprodutivo tatildeo necessaacuterio agraves famiacutelias

que dependem da mineraccedilatildeo e fundamentais tambeacutem na organizaccedilatildeo e luta por melhores

condiccedilotildees de vida e trabalho como um todo

Ainda hoje nas empresas mineradoras apesar do crescimento de postos ocupados por

mulheres elas frequentemente assumem cargos que correspondem a um grau de formaccedilatildeo

profissional inferior ao delas em cargos fora de sua especializaccedilatildeo e de menor possibilidade de

crescimento profissional E de maneira geral elas foram e continuam sendo marginalizadas

tambeacutem por meios simboacutelicos por meio de histoacuterias crenccedilas e lendas em torno do feminino

em vaacuterios lugares do mundo o associando ao ldquomal agourordquo (Castilho amp Castro 2005 Quirino

2015)

Eacute portanto por conta desses elementos que a escolha de investigar impactos da grande

mineraccedilatildeo em uma regiatildeo de Minas Gerais se deu a partir dos relatos de mulheres e em especial

de mulheres apontadas enquanto lideranccedilas uma escolha contraacuteria ao silenciamento histoacuterico

e agrave falta de registros e sistematizaccedilotildees a respeito do lugar das mulheres na mineraccedilatildeo e ao

mesmo tempo de destacar a importacircncia e protagonismo delas nos processos de resistecircncia e

mobilizaccedilatildeo populares

2 Objetivos e delineamento metodoloacutegico

Neste capiacutetulo busco relacionar os impactos da mineraccedilatildeo aos debates acerca de

poliacuteticas puacuteblicas relacionadas e possiacuteveis contribuiccedilotildees da psicologia partindo de um territoacuterio

278

determinado sob a perspectiva de mulheres em torno dos efeitos deste modelo de exploraccedilatildeo

valorizando a mobilizaccedilatildeo e resistecircncia popular com apoio do MAM

Deste modo pretendo tambeacutem contribuir com a ampliaccedilatildeo e difusatildeo das discussotildees a

respeito da grande mineraccedilatildeo no Brasil e seu modelo de desenvolvimento dar enfoque a

processos de resistecircncia popular considerando a contribuiccedilatildeo do MAM elaborar reflexotildees

sobre os impactos da mineraccedilatildeo de difiacutecil mensuraccedilatildeo (como o aumento da preocupaccedilatildeo

ansiedade vivecircncia de inseguranccedila e medo gerados pela mineraccedilatildeo) possibilitar uma maior

visibilidade dos pontos de vista das mulheres em uma aacuterea marcadamente considerada

masculina

Os relatos que seratildeo trazidos neste trabalho satildeo recortes oriundos de uma pesquisa de

mestrado realizada na regiatildeo de Conceiccedilatildeo do Mato Dentro (P Coelho 2019) Durante a

pesquisa foram realizadas visitas agraves casas das mulheres apontadas enquanto figuras de

referecircncia e lideranccedilas locais em comunidades distintas Durante todas as idas agrave Conceiccedilatildeo e

em especial nas visitas domiciliares foram feitas conversas no sentido dado por Gonccedilalves

Filho (2003) enquanto histoacuterias que satildeo contadas diferentemente de caracterizaccedilatildeo ou acuacutemulo

de informaccedilotildees

Foram tambeacutem realizados encontros de debate e formaccedilatildeo sobre gecircnero e mineraccedilatildeo

uma primeira formaccedilatildeo de um dia um encontro de mulheres da regiatildeo de trecircs dias e uma

exposiccedilatildeo realizada no centro de Conceiccedilatildeo com os paineacuteis de Arpilleras confeccionados pelas

mulheres2 As mulheres se reuniram por comunidade e ao final da duraccedilatildeo da pesquisa foi

organizada uma exposiccedilatildeo dos mesmos em uma casa de cultura na regiatildeo urbana de Conceiccedilatildeo

do Mato Dentro como maneira de abrir o diaacutelogo a respeito da mineraccedilatildeo

Tudo o que era vivido e observado em Conceiccedilatildeo foi registrado em Diaacuterios de Campo

e foram gravadas apenas algumas conversas com as mulheres nas uacuteltimas idas de acordo com

a confianccedila e conforto delas em relaccedilatildeo a serem gravadas Foram ofertados e explicados Termos

de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a pesquisa e seus objetivos foram expostos

conversados e acordados em diversos momentos Ao final do trabalho foi decidido junto agraves

mulheres a criaccedilatildeo de nomes fictiacutecios para proteccedilatildeo de suas identidades

O delineamento metodoloacutegico seguiu pressupostos da pesquisa participante partindo do

princiacutepio de realidade social enquanto totalidade complexa e dialeacutetica A metodologia se alinha

tambeacutem agrave pesquisa participante por considerar uma posiccedilatildeo ativa das pessoas agraves quais a

2 Mais informaccedilotildees em Zaliasnik (2010)

279

pesquisa se volta levando em consideraccedilatildeo sua historicidade e se propondo a construiacute-la de

modo conjunto assim como de colocar a pesquisa tambeacutem a serviccedilo das pessoas envolvidas

Outro aspecto importante eacute o de explicitar os vieses teoacutericos utilizados posicionando-me eacutetica

e politicamente com interesse especialmente voltado aos processos de transformaccedilatildeo social

Parti do pressuposto de que a pesquisa eacute um processo que unifica investigaccedilatildeo accedilatildeo social e

educaccedilatildeo em um movimento uacutenico e constante (Brandatildeo amp Borges 2007 Freire 1985)

Como forma de anaacutelise dos resultados foi realizada triangulaccedilatildeo dos dados a fim de

garantir a sua validade interna Para tanto foi realizado estudo (leitura atenta e repetida) e

organizaccedilatildeo de todo o material produzido nas idas a Conceiccedilatildeo de modo interrogativo e

procurando ligaccedilatildeo entre eles e seguindo de relaccedilotildees com as teorias e a literatura cientiacutefica

levantada Este procedimento se pauta em uma trajetoacuteria de construccedilatildeo de conhecimento que

parte de um grupo especiacutefico mas que tem em vista tambeacutem seu conjunto social mais amplo e

o momento histoacuterico vivido E entende o ato de pesquisar e construir conhecimento enquanto

um ato humano e natildeo puramente tecnicista (Minayo 2010)

3 Efeitos da mineraccedilatildeo sob a perspectiva de mulheres atingidas

Inicialmente vale a pena destacar alguns dos elementos principais que surgiram a partir

dos relatos das mulheres em torno dos efeitos da mineraccedilatildeo e que podem ser de maior interesse

ao debate sobre as poliacuteticas puacuteblicas e possiacuteveis contribuiccedilotildees da Psicologia Social muito a

atenccedilatildeo Como a mineraccedilatildeo industrial faz uso extensivo de aacutegua na extraccedilatildeo dos mineacuterios e no

caso de Conceiccedilatildeo no transporte da popa de ferro por meio do mineroduto a escassez de aacutegua

em lugares que sempre tiveram suas fontes naturais garantidas era algo narrado de maneira

constante

Como as comunidades vivem da agricultura familiar como principal ou uma das

principais atividades econocircmicas a escassez de aacutegua das nascentes significa um impacto

profundo em seus modos de vida E a maior parte das comunidades tinham de enfrentar a falta

de aacutegua potaacutevel apoacutes a chegada da grande mineraccedilatildeo tendo que muitas vezes buscar aacutegua em

baldes e recipientes em lugares vizinhos Mesmo as comunidades que recebiam caminhotildees-

pipa da Prefeitura ou da empresa (de acordo com a avaliaccedilatildeo da responsabilidade ou natildeo da

mineradora sobre a escassez de aacutegua) o recebiam de maneira ineficiente apenas em alguns

dias da semana e com frequentes ausecircncias natildeo comunicadas de fornecimento (por motivo de

chuva e dificuldade de acesso dos caminhotildees nas estradas de terra entre outras)

280

A poluiccedilatildeo da aacutegua e do ar era tambeacutem relatada de maneira frequente e estava sempre

relacionada a uma queda na qualidade de vida de maneira geral e a efeitos deleteacuterios agrave sauacutede

Segundo autoras como Almeida (1999) a poluiccedilatildeo atmosfeacuterica gerada pela grande mineraccedilatildeo

pode gerar efeitos variados desde incocircmodos e irritaccedilatildeo ateacute a morte Um levantamento

realizado pela Diversus (2012) constatou aumento no nuacutemero de queixas de sauacutede relacionados

a poeira e poluiccedilatildeo do ar e da aacutegua nas aacutereas atingidas pela Empresa Anglo American na regiatildeo

de Conceiccedilatildeo do Mato Dentro

A questatildeo hiacutedrica e de poluiccedilatildeo interferem portanto na atividade produtiva das

famiacutelias aleacutem de acarretar prejuiacutezos agrave sauacutede e na queda da qualidade de vida de maneira ampla

e diversa A realocaccedilatildeo de comunidades causada pela mineraccedilatildeo traz consigo tambeacutem a

mudanccedila de haacutebitos e de sociabilidade Dissolvendo as comunidades e distanciando familiares

que acabam se mudando de maneira dispersa e sem respaldo teacutecnico para continuar sua

produccedilatildeo agriacutecola ou para desenvolver outra fonte de renda

Outra questatildeo bastante preponderante e que tem forte relaccedilatildeo com possiacuteveis

contribuiccedilotildees da Psicologia eacute a vivecircncia constante da sensaccedilatildeo de medo Medo de um possiacutevel

rompimento das barragens (real tendo em vista o modelo de produccedilatildeo mineral e dos

rompimentos proacuteximos e recentes em Mariana e Brumadinho) medo em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees

de vida futura (para elas e para as geraccedilotildees posteriores) medo diante das alteraccedilotildees do modo

de vida ndash como por exemplo maior circulaccedilatildeo de pessoas desconhecidas aumento dos casos

de violecircncia em geral mas tambeacutem contra as mulheres3 aumento da circulaccedilatildeo de carros e

caminhotildees nas estradas e maior risco de atropelamentos entre outros Eram constantes e

marcantes os relatos sobre a perda do sono da tranquilidade e dos planos futuros

A seguir destaco trechos das falas de algumas das mulheres em relaccedilatildeo ao sentimento

de medo e agrave perda dos planos futuros O primeiro relato eacute de Helenira que teve de sair de sua

comunidade para morar em uma casa de aluguel social pago pela mineradora na aacuterea urbana

devido agraves rachaduras em sua casa iniciadas apoacutes a instalaccedilatildeo do mineroduto

Helenira Para falar a verdade Paulinha eu perdi ateacute o amor que eu tinha ali na minha casa

Tem hora que daacute um sentimento ruim sabe

Paula uhum

Helenira Que a gente tinha tanto projeto tanta coisa E acabou tudo

Paula e foi uma coisa que interrompeu neacute

Helenira Interrompeu tudo

3 De acordo com Zouri et al (2014) houve aumento geral nos casos de violecircncia nuacutemero de crimes ocorridos por

ano de assaltos com porte de arma de venda e traacutefico de substacircncias iliacutecitas e de casos de violecircncia contra mulher

Apenas para elucidar de 2010 a 2013 o nuacutemero de denuacutencias de violecircncia contra mulher mais do que dobrou

281

Em outro momento sobre sua condiccedilatildeo provisoacuteria de aluguel social haacute mais de dois

anos no periacuteodo da entrevista uma vez que a famiacutelia ainda natildeo havia sido devidamente

ressarcida ou realocada

Helenira Tem meses que natildeo vejo assim eles [se referindo a representantes da Anglo American]

para conversar mesmo sobre o nosso caso Ixi para falar a verdade acho que jaacute tem um ano jaacute

isso Eles renovam o contrato laacute da casa E eu natildeo sei Eu sei que eles renovam de seis em seis

meses Tipo assim vence se renovaram em abril vence em outubro Quando vai chegando

outubro eu e Carlos jaacute ficamos loucos E agora Seraacute que jaacute renovou Seraacute que noacutes vamos ficar

Seraacute que vamos sair Seraacute que noacutes vamos voltar Entatildeo assim isso vai acabando com a gente

por dentro

Paula Porque eacute soacute incerteza neacute

Helenira Ansiedade E incerteza Aiacute vocecirc vai falar que eles estatildeo violando o nosso direito e

eles dizem que natildeo E isso natildeo eacute violaccedilatildeo de direito natildeo (pausa) Teve eacutepocas da gente ficar

assim doido Parece que fica doido da cabeccedila com essas coisas

No trecho acima fica evidente a maneira como algumas decisotildees foram tomadas por

parte da Anglo American e a posiccedilatildeo de incerteza diante da qual se encontra Helenira e sua

famiacutelia Ela destaca a dimensatildeo de violaccedilatildeo de direito no que diz respeito agrave questatildeo da

inseguranccedila e dificuldade de fazer planos para o futuro e relata como isto afeta sua sauacutede mental

de modo mais geral As rachaduras em sua casa que surgiram a partir dos tremores apoacutes a

implantaccedilatildeo do mineroduto natildeo foram reconhecidas pela empresa enquanto efeito do mesmo

e por isso a famiacutelia encontrava-se em situaccedilatildeo indefinida Natildeo retornaram agrave casa por medo de

acidente mas tambeacutem natildeo receberam indenizaccedilatildeo para poder ter condiccedilatildeo de se instalar em

outro local E permaneciam em aluguel social fora de sua comunidade sem seus meios de

subsistecircncia antigos e sem uma devolutiva definitiva com a possibilidade de recomeccedilar em

outro lugar No periacuteodo em que a pesquisa se encerrou Helenira e Carlos estavam

desempregados e impedidos de dar continuidade a suas ocupaccedilotildees anteriores

Mesmo em casos em que houve compra dos terrenos o processo de adaptaccedilatildeo tambeacutem

teve suas dificuldades Luiza conta sobre a realocaccedilatildeo da famiacutelia de um de seus irmatildeos

Luiza me diz que no mesmo mecircs em que a famiacutelia do irmatildeo mudou de casa e saiu da roccedila que

tinham o irmatildeo tomou veneno Quando pergunto ela diz que ele nunca havia tentado suiciacutedio

antes Nesta primeira ocasiatildeo anos atraacutes logo apoacutes a mudanccedila da famiacutelia da comunidade para

a cidade a dosagem de veneno natildeo tinha sido suficiente para tirar-lhe a vida Luiza conta que

este irmatildeo tambeacutem ldquocomeccedilou a beber depois que se mudourdquo se referindo a um uso abusivo de

aacutelcool E conta que ele assim como ela sentia falta da ldquoirmandaderdquo e que queria ldquoviver como

antesrdquo ldquoA gente era tudo unido sabe Era um na casa do outro semprerdquo As relaccedilotildees familiares

tambeacutem geravam relaccedilotildees de trabalho mesmo que temporaacuterios E quando o irmatildeo se mudou

para a cidade perdeu sua irmandade e tambeacutem seus locais e rede de trabalhos Luiza conta que

com o dinheiro que receberam para a realocaccedilatildeo compraram uma casa (que precisava de

reforma) na aacuterea urbana e o dinheiro restante foi muito pouco para que a famiacutelia pudesse se

reestabelecer E completa ldquonatildeo foi soacute esse irmatildeo natildeo todos os que foram para a cidade estatildeo

282

num desespero soacuterdquo Luiza conta com tristeza do suiciacutedio deste irmatildeo por enforcamento e do

choque de toda a famiacutelia com o ocorrido E completa com preocupaccedilatildeo ldquoe agora o meu sobrinho

diz que quer morrer no mesmo lugar que o pairdquo (Trecho de Diaacuterio de Campo)

Tanto os relatos de Helenira quanto de Luiza evidenciam as mudanccedilas abruptas no modo

de vida e a necessidade de acompanhamento e avaliaccedilatildeo multiprofissional nos casos de

realocamento de famiacutelias e comunidades como o acompanhamento de sauacutede social e teacutecnico

para manutenccedilatildeo ou alteraccedilatildeo da atividade de renda principal da famiacutelia de maneira que todos

esses elementos sejam considerados nas negociaccedilotildees com as mineradoras

A seguir outro trecho de Luiza moradora de uma das comunidades que estaacute a cerca de

um quilocircmetro apenas da barragem de rejeitos sobre a vivecircncia do medo de um possiacutevel

rompimento de barragem

ldquoComo eacute que a gente dorme agora em eacutepoca de chuva A gente natildeo dorme natildeordquo E eu pensava

em eacutepoca de chuva por quecirc Era de medo de romper a barragem Enquanto falaacutevamos sobre

isso durante a confecccedilatildeo dos paineacuteis percebo que todas ali presentes conviviam com essa

possibilidade Todas jaacute tinham imaginado como seria se a barragem rompesse se daria tempo

de se salvar o que fariam onde se abrigariam com suas famiacutelias (talvez a igreja natildeo fosse

atingida pela lama) Aleacutem da preocupaccedilatildeo com o restante da comunidade E sua tranquilidade e

noites de sono ocupadas do perigo real Tatildeo real quanto Bento Rodrigues (Trecho de Diaacuterio de

Campo)

Junto agrave exposiccedilatildeo dos paineacuteis de Arpilleras havia tambeacutem alguns textos produzidos

pelas mulheres no intuito de apresentar suas comunidades Destaco trechos de um deles que

dimensiona explicitamente o sentimento de inseguranccedila e incerteza em relaccedilatildeo ao futuro

Comunidade Aacutegua Quente

Um vilarejo pequenino mas com grandes histoacuterias Pessoas simples de boas memoacuterias

Um passado de lindas recordaccedilotildees Um futuro indeciso Onde vemos somente tristeza e dor

Uma bomba rio acima Prestes a detonar

E mais uma vez a comunidade se pergunta ateacute quando iremos viver e chorar

Queremos paz em outro lugar

Queremos dormir

E poder acordar

Sonhar e realizar

Ver nossos filhos crescerem

E com tranquilidade viver

Peccedilo a Deus pra nos iluminar

E ao lado em letras coloridas e destacadas ldquopedimos socorro queremos viverrdquo

Eacute um desafio dimensionar e de alguma maneira incluir as preocupaccedilotildees os medos a

ansiedade as alteraccedilotildees na tranquilidade e no sono das pessoas dentro do conjunto de impactos

gerados pela mineraccedilatildeo Assim como de pensar maneiras de compensar minimizar e proteger

283

as comunidades atingidas Mas esta eacute uma dimensatildeo importante sobre a qual a Psicologia pode

trazer significativas contribuiccedilotildees

Martiacuten-Baroacute (1984) por exemplo afirma que a deterioraccedilatildeo profunda das relaccedilotildees e

convivecircncias sociais jaacute eacute por si soacute um grave transtorno social E em relaccedilatildeo ao contexto de

guerra ao qual o autor se voltou ele afirma que este grande transtorno social eacute gerado na medida

em que as pessoas perdem a qualidade de amar de trabalhar juntas e perdem possibilidades de

afirmar sua identidade peculiaridades e de ter voz para contar e afirmar sua histoacuteria e de seu

povo Natildeo podemos fazer um paralelo direto entre guerra e situaccedilatildeo de mineraccedilatildeo mas satildeo

profundas e abruptas as alteraccedilotildees das relaccedilotildees sociais e suas configuraccedilotildees de trabalho

conjunto e de poderem afirmar sua identidade e sua histoacuteria Diversas praacuteticas de vida trabalho

e de conviacutevio social foram amplamente atingidas e algumas delas desfeitas e este grande efeito

social tem tambeacutem repercussotildees no niacutevel individual

Conceituar e investigar estes tipos de impactos juntamente ao debate mais geral sobre

modelos de mineraccedilatildeo pode trazer contribuiccedilotildees relacionadas agraves poliacuteticas puacuteblicas e do

reconhecimento de direitos Como uma forma de vislumbrar meios de proteccedilatildeo e compensaccedilatildeo

agraves pessoas diretamente atingidas e como um elemento de debate e reflexatildeo junto agrave sociedade

em relaccedilatildeo aos impactos da grande mineraccedilatildeo Ter uma imagem mais fidedigna e completa do

conjunto de impactos gerados pelo modelo de exploraccedilatildeo da grande mineraccedilatildeo eacute essencial para

problematizaacute-lo e para podermos propor outras formas de regular a atividade mineradora

Vale destacar contudo outro papel fundamental dessas mulheres para aleacutem de pessoas

que notam e sofrem uma ampla gama de impactos da mineraccedilatildeo Elas assumem tambeacutem papeacuteis

centrais enquanto referecircncias e lideranccedilas comunitaacuterias em todos os processos de mobilizaccedilatildeo

que passaram a se dar a partir da implantaccedilatildeo do empreendimento Minas-Rio como

protagonizando falas importantes em audiecircncias puacuteblicas variadas (com oacutergatildeos puacuteblicos

variados e com a empresa) em assembleias e reuniotildees das comunidades como representantes

das comunidades nos variados processos de negociaccedilatildeo recebendo as visitas de representantes

de oacutergatildeos governamentais como Ministeacuterio Puacuteblico IBAMA entre outros em entrevistas com

fins midiaacuteticos ou com fins de pesquisa acadecircmica em atividades organizadas junto ao MAM

entre outros

O fato delas serem impactadas em acircmbitos diversos e em grande proporccedilatildeo tambeacutem as

fazia ter dimensatildeo dos impactos e da necessidade de lutar por suas vidas e de suas famiacutelias e

comunidades A presenccedila do MAM tambeacutem foi muito importante no fortalecimento desse

284

protagonismo e na ampliaccedilatildeo do debate e resistecircncia acerca da mineraccedilatildeo e seus impactos

(Coelho 2019)

4 Poliacuteticas Puacuteblicas e contribuiccedilotildees da Psicologia

Por mais insuficientes e excludentes que muitas vezes os programas sociais e as

plataformas governamentais possam ser (sobretudo quando se trata do atendimento agraves parcelas

mais excluiacutedas e exploradas da sociedade) natildeo se pode ignorar a necessidade de conquistas e

vitoacuterias que sejam asseguradas materialmente como programas de sauacutede reforma agraacuteria

assistecircncia social educaccedilatildeo moradia melhoria do transporte puacuteblico direitos trabalhistas

entre outras Todos esses avanccedilos satildeo fruto da luta histoacuterica da classe trabalhadora e de suas

histoacuterias de conquistas e resistecircncias E todas passam pela luta por garantia de programas

governamentais que englobem um conjunto de poliacuteticas puacuteblicas que atendam com qualidade

as necessidades e reivindicaccedilotildees da classe No entanto parece vaacutelido questionar como algumas

destas poliacuteticas impactam as vidas da populaccedilatildeo de acordo com o modo como elas estatildeo

planejadas investidas e implementadas Pensando neste aspecto este eacute um campo que pode

tanto atender agraves camadas mais exploradas garantindo o acesso a direitos quanto pode

contribuir na manutenccedilatildeo da exploraccedilatildeo e da dependecircncia

O campo das poliacuteticas puacuteblicas eacute portanto uma aacuterea de interesse dinacircmica e em

constante disputa sob qual se debruccedilam e atuam diversas praacuteticas e saberes como o direito a

sociologia a economia e tambeacutem a psicologia Sinteticamente uma poliacutetica puacuteblica pode ser

definida enquanto um programa de accedilatildeo governamental em um setor da sociedade ou um espaccedilo

geograacutefico especiacutefico (Muller 2002) Segundo Lahera (2003) poliacuteticas puacuteblicas correspondem

a maneiras especiacuteficas de dar respostas a questotildees puacuteblicas e estaacute necessariamente conectada

ao campo mais geral da poliacutetica como um todo De acordo com Muller (2002) a anaacutelise das

poliacuteticas puacuteblicas pode ser considerada como uma disciplina cientiacutefica recente de natureza

necessariamente multidisciplinar e que carece de maior atenccedilatildeo e dedicaccedilatildeo de maneira geral

uma vez que as sociedades contemporacircneas satildeo altamente reguladas pelo Estado e o grande

aumento e complexificaccedilatildeo de intervenccedilotildees estatais eacute um dos principais fenocircmenos sociais do

seacuteculo XX

Cabe destacar que este trabalho natildeo pretende se estender no amplo debate sobre as

poliacuteticas puacuteblicas mas sim se voltar a alguns aspectos referentes agrave grande mineraccedilatildeo e agraves

contribuiccedilotildees da Psicologia Social Diante dos enormes impactos que a mineraccedilatildeo industrial

285

gera e dos altos riscos de cataacutestrofes como os rompimentos de barragens e dos casos de

contaminaccedilatildeo (por exemplo os vazamentos como os gerados pela Hydro no Paraacute e pela Anglo

American em Minas Gerais) todo o seu modelo de atuaccedilatildeo precisa ser debatido com o conjunto

da sociedade brasileira e natildeo apenas pelas empresas privadas e oacutergatildeos governamentais Os

desastres soacutecio-ambientais infelizmente tecircm sido frequentes e de grande magnitude no

panorama da mineraccedilatildeo no paiacutes e satildeo um risco real uma vez que estatildeo diretamente relacionados

ao modo de minerar

Eacute preciso salientar o vieacutes sobre os desastres enquanto acontecimentos criacuteticos que

evidenciam ou potencializam as injusticcedilas e discrepacircncias sociais vividas cotidianamente E

que explicitam as diferenccedilas de sobrevivecircncia e de recuperaccedilatildeo de boas condiccedilotildees de vida

trabalho sauacutede e moradia havendo diferenccedila de tratamento quando as pessoas atingidas satildeo

ricas e quando satildeo pobres Desta forma a vulnerabilidade estaacute mais ligada ao contexto social

do que a fatores de risco externos Mesmo o tratamento que se daacute aos desastres se faz distinto

de acordo com a origem de classe Natildeo sendo os desastres portanto meramente circunstanciais

e originaacuterios apenas de fatores externos ao contexto social (Valencio 2009 Marchezini 2009)

No caso da mineraccedilatildeo fica evidente o modelo destrutivo que seu modo produtivo vem

acarretando

Aleacutem dos desastres de rompimento de barragem casos de crimes sociais e ambientais

a mineraccedilatildeo usa extensivos recursos hiacutedricos e fundiaacuterios de maneira que se faz fundamental

que a sociedade brasileira comece a determinar como seraacute nossa mineraccedilatildeo em que aacutereas elas

aconteceratildeo ou natildeo (estabelecendo por exemplo aacutereas livres de mineraccedilatildeo) em que ritmo a

extraccedilatildeo se daraacute como seraacute calculada e destinada a CFEM e de que maneira ela pode ser

investido nas regiotildees diretamente atingidas que tipo de apoio (financeiro e teacutecnico) e por

quanto tempo devem receber esse apoio as famiacutelias que sejam realocadas em funccedilatildeo da

mineraccedilatildeo estabelecer comprometimento das empresas com um fundo ligado a um

planejamento social e econocircmico da regiatildeo para quando a atividade mineradora se encerrar

(uma vez que a extraccedilatildeo se daacute por tempo determinado e a mineacuterio-dependecircncia impede ou

enfraquece outras possiacuteveis atividades econocircmicas) necessitamos de investimento em oacutergatildeos

de monitoramento soacutecio-ambiental assim como pesquisas cientiacuteficas entre outras (MAM

2015 Mansur et al 2016 Milanez 2012)

A partir dos relatos e dados em relaccedilatildeo ao sofrimento e aumento dos casos de violecircncia

tambeacutem seria importante que poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede e de proteccedilatildeo social fossem

fortalecidas eou implementadas como medida compensatoacuteria das empresas Assim como

286

subsiacutedios ao Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) no que diz respeito ao tratamento e prevenccedilatildeo das

enfermidades relacionadas agrave mineraccedilatildeo causadas pela poluiccedilatildeo da aacutegua do ar entre outros

efeitos (Almeida 1999) Deveria haver um planejamento de medidas protetivas e

compensatoacuterias no que diz respeito aos principais agravos causados pelos impactos da grande

mineraccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave sauacutede poluiccedilatildeo e desgaste ambiental crescimento da violecircncia e

reestruturaccedilatildeo econocircmica da regiatildeo que levasse em consideraccedilatildeo as caracteriacutesticas de cada

territoacuterio e que fosse de responsabilidade das empresas repassar verbas e do poder puacuteblico

implementar sob o acompanhamento de espaccedilos de poder popular consultando moradores e

famiacutelias da regiatildeo

Outra dimensatildeo que merece medidas e cuidados especiacuteficos satildeo as poliacuteticas voltadas agrave

proteccedilatildeo das mulheres Os relatos colhidos assim como os dados apontados (Zouri etal 2005

Coelho 2019) demonstram a necessidade de poliacuteticas amplas de proteccedilatildeo agrave mulher tendo em

vista tambeacutem sua posiccedilatildeo de menor acesso aos postos de trabalho na mineraccedilatildeo e em piores

condiccedilotildees de ascensatildeo de carreira (Quirino 2015) Para as mulheres a garantia de poliacuteticas

puacuteblicas de educaccedilatildeo e sauacutede gerais as beneficiaria tambeacutem indiretamente devido a seu lugar

social de cuidadora da famiacutelia e de responsaacutevel pelo cuidado e educaccedilatildeo das crianccedilas E para

aleacutem disso programas voltados especificamente a elas no que diz respeito ao combate agrave

violecircncia contra a mulher sauacutede mental e programas de geraccedilatildeo de renda e formaccedilatildeo

profissional seriam de profunda importacircncia em contextos de aacutereas de mineraccedilatildeo

De modo geral seria fundamental o planejamento de programas de curto meacutedio e longo

prazo para fortalecimento das famiacutelias atingidas e para a cobertura das diversas dimensotildees

sociais ambientais e da sauacutede que satildeo afetadas pelos impactos da mineraccedilatildeo Aleacutem disso as

localidades que ainda natildeo estatildeo sob accedilatildeo da mineraccedilatildeo mas que satildeo aacutereas em potencial

tambeacutem precisariam estar cientes dos impactos concretos e subjetivos (como preocupaccedilotildees

sentimento de inseguranccedila e medo vivenciados pelas famiacutelias) em regiotildees onde a grande

mineraccedilatildeo jaacute estaacute instalada Eacute preciso que a ideia de progresso propagandeada pela grande

mineraccedilatildeo possa ser problematizada e esclarecida junto ao conjunto social mais amplo para

que seja possiacutevel um debate seacuterio com medidas protetivas e compensatoacuterias consistentes

Outra contribuiccedilatildeo da Psicologia aleacutem de destacar os elementos relacionados agrave sauacutede

mental e os sentimentos de medo e inseguranccedila seria reiterar a dimensatildeo de pertenccedila social e

de considerar modos de vida das comunidades atingidas Assim como frisar a importacircncia de

que as negociaccedilotildees com as comunidades sejam feitas de maneira coletiva Uma vez que

individualmente as famiacutelias tecircm menores chances de ter seus direitos garantidos assim como

287

correm maior risco de ter seus viacutenculos comunitaacuterios fragilizados e ateacute desfeitos (nos casos de

remoccedilatildeo de comunidades isto fica ainda mais evidente) como foi relatado pelas mulheres em

Conceiccedilatildeo do Mato Dentro Por isso eacute importante reforccedilar o caraacuteter de identidade das famiacutelias

e comunidades para aleacutem do valor econocircmico das terras ou das medidas pois haacute que se levar

em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo de pertenccedila das famiacutelias e evidenciar tambeacutem as alteraccedilotildees e sua

sociabilidade Assim como propor um acompanhamento social e teacutecnico (com programas que

abarquem as dimensotildees de sauacutede sociais e de suporte econocircmico) das famiacutelias durante e apoacutes

a chegada das mineradoras

Consideraccedilotildees finais

De maneira geral a grande mineraccedilatildeo pode ser considerada um retrato rico no que diz

respeito ao modo de operar explorar e acumular do capitalismo e de nossa posiccedilatildeo de

dependecircncia dentro dele Por isso seu estudo pode refletir questotildees que estatildeo na ordem do dia

Os mineacuterios satildeo finitos e os impactos de sua extraccedilatildeo nos tecircm custado caro Fica expliacutecita a

necessidade de debate da sociedade brasileira em torno do modelo de mineraccedilatildeo que queremos

Modelo este que se apoiaraacute em programas de poliacuteticas puacuteblicas que possam assegurar

delimitaccedilatildeo de aacutereas livres de mineraccedilatildeo assim como de ritmos de extraccedilatildeo condiccedilotildees de

realocamento de comunidades poliacuteticas regulatoacuterias medidas compensatoacuterias programas de

desenvolvimento alternativo com fundo de planejamento e investimentos em outras atividades

econocircmicas jaacute que a mineraccedilatildeo tem accedilatildeo datada melhor dimensionamento dos impactos sociais

e ambientais seguranccedila hiacutedrica de modo amplo entre outras Neste sentido a Psicologia Social

pode contribuir ajudando a pautar e reforccedilar de maneira multidisciplinar a necessidade de

negociaccedilatildeo e consideraccedilatildeo das comunidades de suas identidades e histoacuterias de seu direito agrave

qualidade de vida e a ter planos e perspectivas de futuro com mais seguranccedila e dignidade

Dentro de um processo que leve em consideraccedilatildeo aspectos que natildeo satildeo apenas econocircmicos

mas estatildeo relacionados tambeacutem agrave qualidade de vida sauacutede mental identidade formaccedilatildeo

comunitaacuteria entre outros

Aleacutem disto fica evidente a riqueza de destacar pontos de vistas usualmente silenciados

como de pessoas atingidas diretamente pela mineraccedilatildeo e mais especificamente mulheres Em

um campo visto como masculino onde as mulheres foram historicamente invizibilizadas notar

suas perspectivas e sua participaccedilatildeo social eacute um ato necessaacuterio e que merece desdobramentos e

maiores aprofundamentos Para que seja possiacutevel destacar sua importacircncia e atuaccedilatildeo mas

288

tambeacutem exigir programas e poliacuteticas especiacuteficas de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo sociais e de sauacutede para

este grupo social especiacutefico uma vez que atingido de maneiras profundas e tatildeo variadas

Fica evidente portanto a necessidade de ampliar o debate sobre os modos de minerar

e para isso esse debate natildeo pode se restringir aos oacutergatildeos governamentais ou agraves empresas pois

necessita abarcar a maior parcela da sociedade brasileira possiacutevel Contando com pesquisas

cientiacuteficas (e investimentos) melhores condiccedilotildees para a regulamentaccedilatildeo ambiental e social

pelos oacutergatildeos puacuteblicos responsaacuteveis contar com a participaccedilatildeo de movimentos sociais assim

como das comunidades diretamente atingidas e com o conjunto da sociedade brasileira como

um todo jaacute que eacute uma atividade de enormes repercussotildees Natildeo podemos mais assistir a

cataacutestrofes como as ocorridas em Mariana e Brumadinho (ambas envolvendo a privatizada Vale

SA) sem termos propostas de mineraccedilatildeo mais seguras que levem em consideraccedilatildeo o conjunto

de elementos ambientais sociais econocircmicos e subjetivos que estatildeo em questatildeo E que

considerem nossa soberania e o tipo de desenvolvimento que a sociedade brasileira almeja

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291

Sobre asos autorases

Adriana Marcondes Machado

Professora do Departamento da Aprendizagem do Desenvolvimento e da Personalidade do

Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia

pela USP Fez Mestrado e Doutorado em Psicologia Social na mesma Universidade Trabalhou

como psicoacuteloga no Serviccedilo de Psicologia Escolar do IPUSP

Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim

Doutoranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

(IPUSP) Graduada em Psicologia possui especializaccedilatildeo em ldquoPraacuteticas Psicoloacutegicas em

Instituiccedilotildeesrdquo e Licenciatura pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) Pesquisa sobre Sauacutede

Mental em interface com Direitos Humanos Atualmente eacute psicoacuteloga no Ministeacuterio Puacuteblico de

SP

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo

Doutoranda do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento

Humano da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Graduada em Psicologia pela Universidade

Federal de Mato Grosso (UFMT) Mestre em Educaccedilatildeo pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Educaccedilatildeo no acircmbito do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infacircncia (GPPIN UFMT)

Andrielly Darcanchy de Toledo

Mestranda em Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Psicoacuteloga formada pela mesma Universidade Atua em Serviccedilos de Acolhimento Institucional

para Crianccedilas e Adolescentes (SAICA) de administraccedilatildeo direta da Prefeitura Municipal de

Osasco no estado de Satildeo Paulo Colaborou com a implementaccedilatildeo e acompanhamento do

Programa Laccedilos e iniciou a implementaccedilatildeo de Serviccedilo de Acolhimento em Famiacutelias

Acolhedoras

Beatriz Saks Hahne

Mestre e Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade

de Satildeo Paulo (USP) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Satildeo Paulo (PUC-SP) Atua com juventude em contextos de violecircncia especificamente

adolescentes autores de ato infracional e em cumprimento de medidas socioeducativas

Camila Trindade

Doutoranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringaacute (UEM) Graduada em

Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) Mestra em Psicologia pela

292

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Pesquisadora integrante do Nuacutecleo de Estudos

do Trabalho e Constituiccedilatildeo do Sujeito (NETCOSUFSC)

Carolina Esmanhoto Bertol

Doutora em Psicologia Social pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Integrante do

Laboratoacuterio Psicanaacutelise Sociedade e Poliacutetica do Programa de Psicologia Cliacutenica do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) e do Nuacutecleo de Loacutegicas Institucionais e

Coletivas da PUC-SP Atua como supervisora cliacutenico-institucional e em processos de formaccedilatildeo

de equipes que atuam nos serviccedilos da Poliacutetica de Assistecircncia Social

Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Psicoacuteloga Doutora em Psicologia da Educaccedilatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo

Paulo (PUC-SP) Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo

em Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) onde coordena o Grupo de

Pesquisa em Psicologia da Infacircncia (GPPINUFMT) Pesquisadora do Centro Internacional de

Estudos em Representaccedilotildees Sociais e Subjetividade - Educaccedilatildeo (CIERS-Ed)

Denise Zakabi

Possui mestrado em Ciecircncias pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de

Medicina da Universidade de Satildeo Paulo (USP) e doutorado em Psicologia Escolar e do

Desenvolvimento Humano no Instituto de Psicologia da mesma Universidade Graduou-se em

Psicologia pela USP

Fernanda Lyrio Heinzelmann

Doutoranda no programa de poacutes-graduaccedilatildeo de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da

Universidade de Satildeo Paulo (USP) Tecnoacuteloga em Moda e Estilo pela Universidade de Caxias

do Sul (UCS) Especialista em Criaccedilatildeo de Imagem de Moda e Styling pelo SENAC-SP e Mestra

em Psicologia pela Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Pesquisa a temaacutetica

de gecircnero com enfoque em transgeneridade e poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede

Heloiacutesa Aparecida de Souza

Docente da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas (PUC-Campinas) e membro da

Associaccedilatildeo Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) Psicoacuteloga e Doutora em Psicologia

como Profissatildeo e Ciecircncia pela PUC-Campinas

Henrique Araujo Aragusuku

Doutorando e Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo

Paulo Especialista em Psicologia Poliacutetica pela Escola de Artes Ciecircncias e Humanidades da

293

USP Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso Eacute membro do

Nuacutecleo de Pesquisas em Psicologia Poliacutetica e Movimentos Sociais (NUPMOS) da Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

Ianni Regia Scarcelli

Professora Associada do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Orienta Doutorado e Mestrado em Psicologia

Social aleacutem de Mestrado Profissional no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Formaccedilatildeo

Interdisciplinar em Sauacutede Possui Livre Docecircncia Doutorado e Mestrado em Psicologia Social

pela USP Psicoacuteloga graduada pela mesma Universidade

Izabela Penha Silva

Mestranda em psicologia pela Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) Especialista em

Abordagem Sistecircmica no Atendimento a Casal e Famiacutelia pelo Centro Universitaacuterio de

Araraquara (UNIARA) Psicoacuteloga graduada pelo Instituto de Psicologia da UFU

Johanna Garrido Pinzoacuten

Docente da Fundaccedilatildeo Hermiacutenio Ometto Psicoacuteloga pela Universidade Pontifiacutecia Bolivariana e

Doutora em Psicologia como Profissatildeo e Ciecircncia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Campinas (PUC-Campinas)

Joseacute Fernando Andrade Costa

Professor da aacuterea de Psicologia no Departamento de Ciecircncias Humanas e Filosofia da

Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Mestre e doutorando em Psicologia Social

pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo Eacute membro do Grupo de Pesquisa

ldquoPsicologia e Teoria Criacuteticardquo (UEFS) e do Laboratoacuterio Interinstitucional de Estudos sobre

Intersubjetividade Criacutetica Social Direitos Humanos (INCIDIR)

Kate Delfini Santos

Doutoranda no programa de poacutes-graduaccedilatildeo de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da

Universidade de Satildeo Paulo (USP) Mestre em Psicologia Cliacutenica pela mesma Universidade

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie Atuou como pesquisadora

do Nuacutecleo de Estudos da Violecircncia da Universidade de Satildeo Paulo (NEVUSP) e atualmente eacute

psicoacuteloga cliacutenica em um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infanto-juvenil (CAPS-IJ)

Liandra Savanhago

Psicoacuteloga do Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) Pesquisadora integrante do

Nuacutecleo de Estudos do Trabalho e Constituiccedilatildeo do Sujeito (NETCOSUFSC) Possui graduaccedilatildeo

em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Mestra em Psicologia na

294

aacuterea de Psicologia Social e Cultura (UFSC) Especialista em Sauacutede Coletiva com ecircnfase na

temaacutetica sobre violecircncia de gecircnero (UFSC)

Marcelo Afonso Ribeiro

Professor Livre Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (PST-IPUSP)

Marcia Hespanhol Bernardo

Doutora em Psicologia Social pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) trabalhou como psicoacuteloga

na sauacutede mental e na sauacutede do trabalhador no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) e foi professora

do programa de poacutes-graduaccedilatildeo da Pontifiacutecia UC-Campinas durante 10 anos Atualmente estaacute

aposentada e colabora como professora e coorientadora no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em

Psicologia Social na USP

Maria Chalfin Coutinho

Professora Titular Aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Docente do

PPGPUFSC Possui graduaccedilatildeo em Psicologia e mestrado em Educaccedilatildeo pela UFRGS Doutora

em Ciecircncias Sociais pela UNICAMP Realizou estudos poacutes-doutorais junto ao Programa de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social da USP Coordena o Nuacutecleo de Estudos Trabalho e

Constituiccedilatildeo do Sujeito (NETCOS UFSC)

Maria Fernanda Aguilar Lara

Mestranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

Possui experiecircncia na Assistecircncia Social atraveacutes da atuaccedilatildeo como psicoacuteloga no SUAS de 2016

a 2018 Atualmente eacute membro do grupo de pesquisa ldquoA governanccedila multiniacutevel da poliacutetica de

assistecircncia socialrdquo vinculado ao Centro de Estudos da Metroacutepole (CEM-USP) e do

Laboratoacuterio de Estudos e Pesquisas em Trabalho Movimentos Sociais e Poliacuteticas Sociais

(TRAMPOS) do IPUSP

Maria Luisa Sandoval Schmidt

Professora Titular do departamento de Psicologia da Aprendizagem do Desenvolvimento e da

Personalidade da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia pela

mesma instituiccedilatildeo Mestre e Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano

pela USP Tambeacutem eacute livre-docente pela mesma instituiccedilatildeo

Mariana Belluzzi Ferreira

Mestre em Psicologia Social pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

Membro do Laboratoacuterio Psicanaacutelise Poliacutetica e Sociedade do Programa de Psicologia Cliacutenica

do Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Atua como supervisora cliacutenico-

295

institucional e em processos formativos junto agraves equipes dos serviccedilos referenciados agrave poliacutetica

puacuteblica de Assistecircncia Social

Mariana Fagundes de Almeida Rivera

Mestranda no programa de poacutes-graduaccedilatildeo de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da

Universidade de Satildeo Paulo (PST-IPUSP) pesquisando a temaacutetica de gecircnero e sauacutede Psicoacuteloga

formada pelo IPUSP Atende tambeacutem em consultoacuterio particular Jaacute foi psicoacuteloga em equipe

NASF (Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia) no SUS e em Serviccedilo de Medidas Socioeducativas

em Meio Aberto no SUAS

Mariana Pereira da Silva

Psicoacuteloga cliacutenica e Mestre em Psicologia como Profissatildeo e Ciecircncia pela Pontifiacutecia Universidade

Catoacutelica de Campinas (PUC-Campinas) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia pela mesma

Universidade

Mariana Prioli Cordeiro

Professora Doutora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Eacute Mestre e Doutora em Psicologia Social pela

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) e poacutes-doutora na mesma aacuterea pelo

Instituto de Psicologia da USP Desenvolve estudos sobre poliacuteticas sociais enfocando a

inserccedilatildeo da Psicologia no Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS)

Omar Calazans Nogueira Pereira

Psicoacutelogo escolar na Diretoria de Ensino da Regiatildeo de Suzano por meio da Fundaccedilatildeo Faculdade

de Medicina Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo

Paulo (IPUSP) Psicoacutelogo e licenciado em Psicologia pelo IPUSP com aperfeiccediloamento em

Orientaccedilatildeo Profissional e de Carreira pelo IPUSP

Patriacutecia Peixoto Zapletal

Pedagoga formada pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) e mestre em

Educaccedilatildeo pela Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Paula Rosana Cavalcante

Mestre e Doutoranda em Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo

Paulo (USP) Graduada em Psicologia pela mesma Universidade e especialista em Psicologia

Juriacutedica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) Psicoacuteloga da Defensoria Puacuteblica do Estado

de Satildeo Paulo desde 2010

296

Paula Sassaki Coelho

Mestre em Psicologia Social pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) com especializaccedilatildeo latu

sensu em Educaccedilatildeo do Campo e Agroecologia pela mesma Universidade Possui graduaccedilatildeo em

Psicologia pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Tem experiecircncia profissional

na aacuterea de Psicologia com ecircnfase em Sauacutede Mental na Atenccedilatildeo Baacutesica no Sistema Uacutenico de

Sauacutede (SUS)

Renata Fabiana Pegoraro

Poacutes-Doutoranda em Psicologia Social pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

(PUC-SP) Doutora e mestre em Psicologia pela Universidade de Satildeo Paulo ndash Campus Ribeiratildeo

Especialista em Sauacutede Coletiva pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCAR) Docente

do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Psicologia do Instituto de Psicologia da

Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU)

Rodolfo Luis Almeida Maia

Atualmente eacute mestrando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) e

estuda os espaccedilos institucionalizados de Controle Social do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) a

partir das experiecircncias com a Comissatildeo de Moradores do Jardim Brasiacutelia e Vitoacuteria-reacutegia

Psicoacutelogo e bacharel em Psicologia formado pela mesma Universidade Desenvolveu um

projeto de iniciaccedilatildeo cientiacutefica sobre a atuaccedilatildeo de psicoacutelogas(os) do Sistema Uacutenico de

Assistecircncia Social (SUAS) no tema das relaccedilotildees eacutetnico-raciais

Tatiana Alves Romatildeo

Psicoacuteloga Psicodramatista e Socionomista Mestre em Educaccedilatildeo e doutoranda no Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (IP-USP) Eacute membro de dois grupos de pesquisa no

Brasil o Grupo de Pesquisa ldquoPoliacuteticas de Educaccedilatildeo Superiorrdquo sediado no PPGE-Uninove e o

ldquoLaboratoacuterio de Psicanaacutelise e Psicologia Socialrdquo (LAPSO-USP)

Tielly Rosado Maders

Mestra e Doutoranda em Psicologia pela UFSC Graduada em Psicologia pela Universidade

Franciscana (UFN) Especialista em Poliacuteticas Puacuteblicas para igualdade na Ameacuterica Latina pelo

Conselho Latinoamericano de Ciecircncias Sociais (CLACSO-Argentina) Pesquisadora integrante

do Nuacutecleo de Estudos do Trabalho e Constituiccedilatildeo do Sujeito e do Nuacutecleo de Estudos e Pesquisa

em Serviccedilo Social e Organizaccedilatildeo Popular

297

Pareceristas

Agradecemos a todasos aquelases que contribuiacuteram para o aprimoramento dos capiacutetulos

desta coletacircnea emitindo pareceres

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo

Beatriz Besen de Oliveira

Beatriz Saks Hahne

Cintia Helena Bulgarelli Freitas

Daniel Augusto de Andrade Pinheiro

Denise Zakabi

Felipe Cazeiro

Fernanda Lyrio Heinzelmann

Flaacutevia de Mendonccedila Ribeiro

Gabriela Milareacute Camargo

Henrique Araujo Aragusuku

Joseacute Fernando Andrade Costa

Laura Vilela e Souza

Liandra Savanhago

Luciana Alonso

Maria Fernanda Aguilar Lara

Mariana Belluzzi Ferreira

Mariana Fagundes de Almeida Rivera

Mariana Prioli Cordeiro

Naiana Marinho Gonccedilalves

Omar Calazans Nogueira Pereira

Rociacuteo Bravo Shuntildea

Rodolfo Luis Almeida Maia

Ruzia Chaouchar dos Santos

Sirlene Lopes de Miranda

Thiago Sousa Felix

Page 3: P ú b l i c a s : P o l í t i c a s P s i c o l o g i a e

1

E permitida a reproduccedilatildeo parcial ou total desta obra desde que citada a fonte e autoria

proibido qualquer uso para fins comerciais

Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo

Biblioteca Dante Moreira Leite

Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

Pesquisas em psicologia e poliacuteticas puacuteblicas organizado por Mariana Prioli Cordeiro [et al] ‐ Satildeo Paulo IPUSP 2019 298 p (Diaacutelogos na Poacutes‐Graduaccedilatildeo v1) ISBN 978-85-86736-92-6 DOI 10116069788586736926 1 Psicologia social 2 Pesquisa cientiacutefica 3 Poliacuteticas puacuteblicas I Tiacutetulo HM 251

2

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

Reitor Vahan Agopyan

Vice reitor Antonio Carlos Hernandes

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Diretora Marilene Proenccedila Rebello de Souza

Vice diretor Andreacutes Eduardo Aguirre Antuacutenez

CONSELHO EDITORIAL

Profa Dra Adriana Marcondes Machado

Prof Dr Arley Andriollo

Prof Dr Danilo Silva Guimaratildees

Profa Dra Marina Ferreira da Rosa Ribeiro

Profa Dra Miriam Debieux Rosa

Prof Dr Nelson Ernesto Coelho Junior

Prof Dr Rogeacuterio Lerner

3

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 5

Maria Fernanda Aguilar Lara Henrique Araujo Aragusuku Rodolfo Luis Almeida

Maia e Mariana Prioli Cordeiro

1 Contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para anaacutelise da relaccedilatildeo entre atores estatais e

natildeo estatais na implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas 10

Joseacute Fernando Andrade Costa

2 A assistecircncia social no Brasil uma anaacutelise histoacuterica das relaccedilotildees entre OSC e Estado 30

Maria Fernanda Aguilar Lara e Mariana Prioli Cordeiro

3 Proteccedilatildeo Social e Fortalecimento de Viacutenculos contribuiccedilotildees da Poliacutetica de Assistecircncia

Social a mulheres idosas 50

Izabela Penha Silva e Renata Fabiana Pegoraro

4 A Psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social estudo de caso de um jovem em

cumprimento de medidas socioeducativas 66

Liandra Savanhago Camila Trindade Tielly Rosado Maders e Maria Chalfin

Coutinho

5 Medidas socioeducativas as narrativas de adolescentes e o uso da literatura como

disparadores de anaacutelise 86

Beatriz Saks Hahne e Adriana Marcondes Machado

6 A Implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo em SAICAs de Osasco

103

Andrielly Darcanchy de Toledo e Mariana Prioli Cordeiro

7 A concepccedilatildeo desenvolvimentista de adolescecircncia e seus impasses para a poliacutetica de

Assistecircncia Social 128

Mariana Belluzzi Ferreira e Carolina Esmanhoto Bertol

8 Jovens da escola Nazareacute Flor experiecircncias de vida no assentamento Maceioacute litoral do

Cearaacute 148

Denise Zakabi e Maria Luisa Sandoval Schmidt

9 O Programa Mais Educaccedilatildeo e a produccedilatildeo de uma subjetividade aprendiz 168

Patriacutecia Peixoto Zapletal e Adriana Marcondes Machado

4

10 Poliacuteticas Puacuteblicas de Orientaccedilatildeo Profissional uma anaacutelise socioconstrucionista sobre a

construccedilatildeo do Projeto de Vida no Programa Ensino Integral (PEI) 189

Omar Calazans Nogueira Pereira e Marcelo Afonso Ribeiro

11 A tessitura de redes de diaacutelogo e de participaccedilatildeo de crianccedilas no cuidado hospitalar

pediaacutetrico 210

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo Daniela Barros da Silva Freire Andrade e

Adriana Marcondes Machado

12 Psicologia Social e Poliacuteticas Puacuteblicas em diaacutelogo com sauacutede e educaccedilatildeo questotildees de

gecircnero sauacutede mental justiccedila violecircncia e permanecircncia estudantil 230

Mariana Fagundes de Almeida Rivera Tatiana Alves Romatildeo Ana Carolina

Martins de Souza Felippe Valentim Fernanda Lyrio Heinzelmann Kate Delfini

Santos Paula Rosana Cavalcante e Ianni Regia Scarcelli

13 Algumas contribuiccedilotildees da Psicologia para o campo da Sauacutede do Trabalhador 251

Heloiacutesa Aparecida de Souza Johanna Garrido Pinzoacuten Marcia Hespanhol

Bernardo e Mariana Pereira da Silva

14 Mulheres e Mineraccedilatildeo contribuiccedilotildees da Psicologia Social no campo das poliacuteticas

puacuteblicas 273

Paula Sassaki Coelho

Sobre asos autorases 291

Pareceristas 297

5

Apresentaccedilatildeo

Maria Fernanda Aguilar Lara

Henrique Araujo Aragusuku

Rodolfo Luis Almeida Maia

Mariana Prioli Cordeiro

No Brasil as relaccedilotildees entre a Psicologia e as poliacuteticas puacuteblicas satildeo complexas e

multifacetadas e natildeo existe um uacutenico modo de compreendermos essa questatildeo Ao realizarmos

uma breve busca nos bancos de dados acadecircmicos utilizando de forma combinada esses dois

descritores constatamos que haacute uma vasta literatura em Psicologia que trata sobre a temaacutetica

das poliacuteticas puacuteblicas em suas diversas aacutereas ndash como na sauacutede educaccedilatildeo assistecircncia social

seguranccedila puacuteblica direitos humanos entre outras Estes textos foram produzidos a partir de

distintas perspectivas analiacuteticas e mobilizam muacuteltiplos repertoacuterios teoacutericos conceituais e

metodoloacutegicos de pesquisa e intervenccedilatildeo Foram escritos principalmente por psicoacutelogosas

ainda que em algumas publicaccedilotildees constatamos a participaccedilatildeo de profissionais de outros

campos Psicoacutelogosas com diferentes tipos de formaccedilatildeo profissional atuando a partir de

distintas localidades e aacutereas em um paiacutes de tamanho continental marcado por uma grande

diversidade geograacutefica institucional e sociocultural

Poderiacuteamos dizer que para discutirmos as relaccedilotildees entre esses dois ldquocamposrdquo teriacuteamos

de nos perguntar o que eacute a Psicologia E o que satildeo poliacuteticas puacuteblicas Como se estabelecem

as conexotildees entre ambas No entanto essas perguntas que em princiacutepio parecem simples (e ateacute

ingecircnuas) natildeo satildeo nada faacuteceis de responder Afinal as palavras ldquoPsicologiardquo e ldquopoliacuteticas

puacuteblicasrdquo funcionam como termos guarda-chuvas que aglutinam uma seacuterie de conceitos e

sistemas de representaccedilatildeo (ontologias epistemologias e teorias) estando permeadas por

contradiccedilotildees conflitos e polissemias Isto eacute natildeo eacute possiacutevel estabelecer uma uacutenica verdade sobre

esses termos e seus sentidos Prova disso eacute que em muitos momentos vemos que os estudos

em Psicologia trabalham as poliacuteticas puacuteblicas a partir de linguagens diferentes que pouco

dialogam entre si

De forma geneacuterica a Psicologia pode ser compreendida como um campo disciplinar

institucional e profissional autocircnomo Poreacutem essa definiccedilatildeo natildeo daacute conta da complexidade de

6

sua natureza e funccedilatildeo enquanto campo do conhecimento Trata-se de uma aacuterea da sauacutede da

educaccedilatildeo das ciecircncias sociais das ciecircncias do comportamento Seu objeto eacute a mente a psique

o comportamento o social a cultura Por outro lado em termos gerais as poliacuteticas puacuteblicas

podem ser compreendidas como as accedilotildees promovidas pelo poder puacuteblico (Judiciaacuterio Executivo

e Legislativo) nas mais diversas aacutereas de atuaccedilatildeo No entanto o poder puacuteblico se manifesta

unicamente pela via estatal As poliacuteticas puacuteblicas satildeo apenas accedilotildees estruturadas e de longo

prazo ou seriam todas as accedilotildees (fragmentaacuterias de curto e meacutedio prazo) promovidas pelo poder

puacuteblico Como a esfera privada se relaciona com as poliacuteticas puacuteblicas

Neste sentido acreditamos que eacute de fundamental importacircncia a proposiccedilatildeo de diaacutelogos

e aproximaccedilotildees entre as vaacuterias abordagens que constituem esse campo ndash compreendendo que

existem diferentes formas de conceituaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas e de definiccedilatildeo dos ldquoobjetosrdquo e

ldquoobjetivosrdquo da Psicologia Cabe ressaltar que natildeo se trata de estabelecermos uma uacutenica verdade

sobre o que eacute um estudo em ldquoPsicologiardquo sobre ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo mas sim de pensarmos

como estes dois campos podem se relacionar a partir de diferentes olhares espaccedilos

temporalidades e perspectivas

A proposta de construccedilatildeo desta coletacircnea surgiu a partir dessas inquietaccedilotildees recorrentes

em diversos espaccedilos de diaacutelogo e reflexatildeo acadecircmica Inquietaccedilotildees que apontam para a

necessidade de discutirmos as diferentes abordagens teorias e metodologias utilizadas em

pesquisas sobre o tema Para alcanccedilar esse objetivo optamos por enfocar pesquisas receacutem

realizadas (ou em fase de conclusatildeo) no acircmbito dos programas de poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia

Esta escolha foi motivada fundamentalmente pela necessidade de dar visibilidade a pesquisas

de mestrado e doutorado que trataram a temaacutetica das poliacuteticas puacuteblicas a partir dos referenciais

da Psicologia estabelecendo tambeacutem pontes de diaacutelogo e aproximaccedilotildees entre distintos aportes

Notamos que a maioria das pesquisas desenvolvidas no acircmbito da poacutes-graduaccedilatildeo ficam

restritas aos formatos de teses e dissertaccedilotildees natildeo sendo publicadas em versotildees resumidas como

artigos capiacutetulos e ensaios que facilitam a circulaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo do conhecimento

acadecircmico Em conversas entre estudantes da poacutes-graduaccedilatildeo do IPUSP satildeo frequentes os

relatos sobre as dificuldades que perpassam a publicaccedilatildeo de artigos em perioacutedicos cientiacuteficos

tendo em vista a falta de estrutura profissional (em relaccedilatildeo agrave vida acadecircmica) para a elaboraccedilatildeo

e submissatildeo dos textos e o longo processo de avaliaccedilatildeo e editoraccedilatildeo dos perioacutedicos Por outro

lado osas estudantes tambeacutem relatam que sentem a necessidade de publicar suas pesquisas em

formato de artigo tanto para a melhoria de seus curriacuteculos quanto pela circulaccedilatildeo e

compartilhamento dos resultados produzidos ao longo de anos de estudo

7

Somado a isto natildeo podemos deixar de mencionar o momento poliacutetico que enfrentamos

no Brasil no que concerne agrave poacutes-graduaccedilatildeo Temos presenciado e sentido as medidas

sancionadas pela atual gestatildeo do Governo Federal que reduzem significativamente o nuacutemero

de bolsas destinadas a pesquisas de poacutes-graduaccedilatildeo Ateacute setembro de 2019 foram cortadas

aproximadamente doze mil bolsas da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior (Capes) Concomitantemente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e

Tecnoloacutegico (CNPq) informou que natildeo possui orccedilamento para pagar as mais de oitenta mil

bolsas de pesquisa ateacute o final do ano gerando uma imensa crise administrativa na pasta de

Ciecircncia e Tecnologia Essas medidas se natildeo revogadas prejudicam o desenvolvimento

imediato e futuro da pesquisa cientiacutefica no Brasil que somadas a outras accedilotildees do governo

resultaratildeo no desmonte e na privatizaccedilatildeo das universidades puacuteblicas Assim as duas maiores

agecircncias brasileiras de fomento agrave pesquisa cientiacutefica encontram-se ameaccediladas por um projeto

de governo que ataca a democratizaccedilatildeo da ensino superior no Brasil

Foi a partir deste contexto poliacutetico e institucional que tem afligido milhares de

pesquisadoresas que pensamos em dar visibilidade agraves pesquisas cientiacuteficas desenvolvidas por

estudantes de poacutes-graduaccedilatildeo Portanto a construccedilatildeo deste livro eacute para noacutes um ato de

resistecircncia uma forma de ilustrar quantos trabalhos importantes estatildeo sendo desenvolvidos por

meio do financiamento puacuteblico de pesquisa cientiacutefica ndash seja atraveacutes da estrutura que a

universidade puacuteblica oferece ou pelo fomento direto proporcionado pelas bolsas de mestrado

e doutorado do CNPq e da Capes Todo esse debate demonstra o quanto as poliacuteticas puacuteblicas

atravessam as pessoas e a vida social em seus mais diversos aspectos e que dificilmente

conseguimos nos esquivar dessa temaacutetica

Sobre o processo de construccedilatildeo deste livro inicialmente fizemos uma chamada aberta

a pesquisadoresas que desenvolveram estudos sobre poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito de

programas de poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Recebemos uma grande quantidade de propostas

de capiacutetulo com significativa relevacircncia social e acadecircmica o que acabou fazendo com que

fossem necessaacuterios dois volumes para a publicaccedilatildeo de todos os trabalhos selecionados O

processo de anaacutelise avaliaccedilatildeo e revisatildeo dos trabalhos tambeacutem foi feito de forma coletiva

Convidamos asos proacuteprios autoresas assim como outrosas pesquisadoresas para atuar como

pareceristas Assim cada texto foi avaliado por doisduas pareceristas que fizeram comentaacuterios

e contribuiccedilotildees que ajudaram no aperfeiccediloamento dos textos Entendemos que a avaliaccedilatildeo por

pares natildeo apenas tornou o processo de elaboraccedilatildeo do livro mais colaborativo mas tambeacutem

contribuiu para melhorar a explicitaccedilatildeo do meacutetodo a descriccedilatildeo das resultados e o

8

amadurecimento das proposiccedilotildees teoacutericas presentes nos capiacutetulos favorecendo um processo

reflexivo

O resultado desse processo coletivo resultou em uma coletacircnea composta por 14

capiacutetulos No primeiro deles Joseacute Fernando Andrade Costa recorre aos pressupostos da

Psicologia Social Criacutetica para discutir implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas enfocando a relaccedilatildeo

entre atores estatais e natildeo estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos O debate em torno da

relaccedilatildeo estado-sociedade civil segue sendo tema do capiacutetulo seguinte de autoria de Maria

Fernanda Aguilar Lara e Mariana Prioli Cordeiro Mas nele o foco recai sobre como essa

relaccedilatildeo foi se constituindo ao longo da histoacuteria da Assistecircncia Social no Brasil

Jaacute no capiacutetulo 3 de autoria de Izabela Penha Silva e Renata Fabiana Pegoraro eacute o

presente da poliacutetica de Assistecircncia Social que estaacute em debate Mais especificamente as autoras

apresentam os resultados de uma pesquisa que buscou investigar como um grupo de mulheres

idosas compreendem e avaliam as accedilotildees do Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social do qual

satildeo usuaacuterias No capiacutetulo seguinte Liandra Savanhago Camila Trindade Tielly Rosado

Maders e Maria Chalfin Coutinho articulam reflexotildees sobre as trajetoacuterias de vida de um jovem

em cumprimento de medida socioeducativa com a discussatildeo em torno das praacuteticas psi em

serviccedilos de assistecircncia social No capiacutetulo 5 de autoria de Beatriz Saks Hahne e Adriana

Marcondes Machado a discussatildeo dessa medida ganha outros contornos Nele o foco recai

sobre as memoacuterias e narrativas de adolescentes que cumprem ou cumpriram recentemente

medida socioeducativa

Ainda sobre a poliacutetica de assistecircncia social de autoria de Andrielly Darcanchy de

Toledo e Mariana Prioli Cordeiro o capiacutetulo 6 debate a implementaccedilatildeo do Programa de

Apadrinhamento Afetivo no municiacutepio de Osasco-SP atraveacutes do relato de experiecircncia de

trabalho com Serviccedilos de Acolhimento Institucional para Crianccedilas e Adolescentes (SAICA) E

no capiacutetulo 7 Mariana Belluzzi Ferreira e Carolina Esmanhoto Bertol levantam reflexotildees sobre

as poliacuteticas puacuteblicas destinadas agrave garantia de direitos de adolescentes no acircmbito da assistecircncia

social discutindo o discurso ldquomenoristardquo que perpassa a histoacuteria desta poliacutetica no Brasil

Nos capiacutetulos seguintes a discussatildeo sobre poliacuteticas puacuteblicas ganha outros rumos com

o enfoque na temaacutetica da educaccedilatildeo em diaacutelogo com outras poliacuteticas puacuteblicas No capiacutetulo 8

Denise Zakabi e Maria Luisa Sandoval Schmidt abordam as contribuiccedilatildeo da Psicologia para o

estudo das ruralidades e das poliacuteticas puacuteblicas relacionadas ao campo Para isto as autoras

analisam as experiecircncias de jovens que frequentam a escola Nazareacute Flor localizada em uma

assentamento rural na planiacutecie litoracircnea oeste do Cearaacute Jaacute no capiacutetulo 9 de autoria de Patriacutecia

9

Peixoto Zapletal e Adriana Marcondes Machado o Programa Mais Educaccedilatildeo ndash promovido pelo

Governo Federal de 2007 a 2016 ndash se torna o centro do debate Utilizando a noccedilatildeo de

governamentalidade oriunda dos escritos foucaultianos as autoras problematizam a

formulaccedilatildeo e a implementaccedilatildeo deste programa governamental

No capiacutetulo 10 Omar Calazans Nogueira Pereira e Marcelo Afonso Ribeiro discutem

como a Orientaccedilatildeo Profissional enquanto campo teoacuterico-metodoloacutegico da Psicologia se insere

nas poliacuteticas puacuteblicas de educaccedilatildeo a partir da anaacutelise do Programa de Escola Integral (PEI) do

Governo do Estado de Satildeo Paulo

Os dois proacuteximos capiacutetulos discutem a temaacutetica da Psicologia e poliacuteticas puacuteblicas em

diaacutelogo com a educaccedilatildeo e a sauacutede O capiacutetulo 11 ndash de autoria de Andreia Maria de Lima

Assunccedilatildeo Adriana Marcondes Machado e Daniela Barros da Silva Freire Andrade - apresenta

uma pesquisa realizada na ala pediaacutetrica de um hospital puacuteblico da cidade de Cuiabaacute

levantando questotildees sobre como considerar as vivecircncias das crianccedilas nas poliacuteticas de sauacutede Jaacute

no capiacutetulo 12 Mariana Fagundes de Almeida Rivera Tatiana Alves Romatildeo Ana Carolina

Martins de Souza Felippe Valentim Fernanda Lyrio Heinzelmann Kate Delfini Santos Paula

Rosana Cavalcante e Ianni Regia Scarcelli apresentam as pesquisas de mestrado e doutorado

desenvolvidas pelo Laboratoacuterio de Estudos em Psicanaacutelise e Psicologia Social (LAPSO) do

IPUSP

No capiacutetulo seguinte a poliacutetica de sauacutede eacute debatida em conjunto agrave temaacutetica do Trabalho

Heloiacutesa Aparecida de Souza Johanna Garrido Pinzoacuten Marcia Hespanhol Bernardo e Mariana

Pereira da Silva apresentam uma siacutentese dos resultados das discussotildees e pesquisas realizadas

pelo grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que desde

2009 tem se dedicado ao estudo dos fenocircmenos vinculados agrave sauacutede de trabalhador Por fim no

capiacutetulo 14 Paula Sassaki Coelho traz algumas reflexotildees sobre o papel do Estado diante da

induacutestria da mineraccedilatildeo a partir de uma experiecircncia de pesquisa em Conceiccedilatildeo do Mato Dentro

no estado de Minas Gerais

10

Capiacutetulo 1

Contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para anaacutelise da relaccedilatildeo entre

atores estatais e natildeo estatais na implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

Joseacute Fernando Andrade Costa

Introduccedilatildeo

Este capiacutetulo tem como objetivo apresentar e discutir algumas contribuiccedilotildees atuais da

Psicologia Social Criacutetica para a anaacutelise de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas tomando como

recorte a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos Trata-se

de realizar um aprofundamento analiacutetico de parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado

sobre a implementaccedilatildeo de serviccedilos socioassistenciais na cidade de Satildeo Paulo (Costa 2016) A

intenccedilatildeo aqui natildeo eacute repetir os argumentos jaacute apresentados na referida pesquisa mas

desenvolver melhor alguns pontos que laacute foram apenas esboccedilados sobretudo em termos de uma

fundamentaccedilatildeo teoacuterico-metodoloacutegica baseada na articulaccedilatildeo entre uma teoria criacutetica do

reconhecimento reciacuteproco (Honneth 2003) e a sociologia da accedilatildeo puacuteblica (Lascoumes amp Le

Galegraves 2012) para o estudo psicossocial das poliacuteticas puacuteblicas

Cabe frisar uma motivaccedilatildeo para o resgate da pesquisa empiacuterica e o esforccedilo de continuar

a refletir sobre seus achados quando do iniacutecio do processo do mestrado o projeto fora escrito

tendo em vista compreender o papel das poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social para o

fortalecimento da cidadania Contudo os desafios do trabalho de pesquisa e o curto tempo de

um mestrado acabaram provocando algumas transformaccedilotildees significativas na forma de abordar

esse objeto Nem sempre todas as transformaccedilotildees e aprendizados decorrentes de uma pesquisa

de poacutes-graduaccedilatildeo satildeo depurados no relatoacuterio final por isso vale a pena seguir desenvolvendo

as ideias em novos foacuteruns (Costa 2017)

Das transformaccedilotildees do projeto inicial a principal foi uma radical mudanccedila na

compreensatildeo sobre o que satildeo as poliacuteticas puacuteblicas e sobre como abordaacute-las numa perspectiva

psicossocial criacutetica Se inicialmente a ideia era pesquisar as ldquoPoliacuteticas Puacuteblicas de Assistecircncia

Socialrdquo no decorrer do processo de pesquisa passei a conhecer o ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah

2016) e em especial a perspectiva da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo A importacircncia analiacutetica atribuiacuteda a tal

11

deslocamento seraacute tratada neste capiacutetulo na medida em que se pretende discutir possiacuteveis

contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para a anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas

Houve tambeacutem a necessidade de problematizar o que se convencionou chamar de

Psicologia Social Criacutetica Toda Psicologia Social enseja de certa forma um esclarecimento

sobre de qual Psicologia Social se trata exatamente uma vez que este natildeo eacute um campo

homogecircneo (Silva Juacutenior amp Zangari 2017) Isso eacute verdadeiro tambeacutem para a Psicologia Social

Criacutetica Este qualificativo ndash ldquocriacuteticardquo ndash refere-se efetivamente a quecirc Agrave criacutetica de determinado

modelo teoacuterico-metodoloacutegico ldquotradicionalrdquo Agrave criacutetica de uma determinada atitude (passiva)

perante as contradiccedilotildees da realidade social Agrave proposiccedilatildeo de um determinado referencial

analiacutetico ldquocriacuteticordquo Ou ainda ele designa uma subaacuterea da Psicologia Social na qual se

encontram determinadas pessoas e ideias A Psicologia Social Criacutetica com a qual irei trabalhar

nesse texto eacute aquela que se vale reflexivamente das contribuiccedilotildees da filosofia moral e da teoria

social com o intuito de explicar processos e padrotildees de interaccedilatildeo interpessoais institucionais

e societaacuterios de forma articulada mas sem perder de vista os horizontes normativos de

libertaccedilatildeo e emancipaccedilatildeo humana

Nessa perspectiva as disciplinaridades tambeacutem merecem ser questionadas A

ultraespecializaccedilatildeo exigida pelo mercado simboacutelico do campo acadecircmico tem um alcance

limitado e limitador para produzir conversas instrutivas e alargar o espaccedilo formativo de seus

participantes Se por um lado a especializaccedilatildeo contiacutenua eacute um valor intriacutenseco ao

desenvolvimento do pensamento cientiacutefico e da capacitaccedilatildeo teacutecnica por outro eacute necessaacuterio

olhar para aleacutem das fronteiras para enxergar no horizonte os benefiacutecios da interdisciplinaridade

da transdisciplinaridade e inclusive de certa dose de indisciplinaridade

Assim espero contribuir para ampliar as perspectivas criacuteticas de anaacutelise das poliacuteticas

puacuteblicas pela Psicologia Social e para favorecer a busca de um diaacutelogo profiacutecuo entre esses dois

campos Afinal como diz Howard Becker (2015) a vida intelectual nada mais eacute do que um

diaacutelogo entre pessoas interessadas no mesmo assunto

O presente capiacutetulo estaacute estruturado da seguinte maneira num primeiro momento (1)

seraacute abordada a questatildeo da relaccedilatildeo entre Psicologia Social e Teoria Criacutetica com o intuito de

apresentar a teoria do reconhecimento reciacuteproco de Axel Honneth e o modo como ela pode ser

uacutetil para a anaacutelise de instituiccedilotildees em seguida (2) seraacute proposto o deslocamento da perspectiva

das poliacuteticas puacuteblicas em direccedilatildeo agrave compreensatildeo mais ampla da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo enfatizando o

potencial do campo psicossocial em contribuir com estudos sobre anaacutelise do processo de

implementaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos e por fim (3) as articulaccedilotildees entre as duas perspectivas

12

anteriores seratildeo desenvolvidas a partir de alguns dos resultados da pesquisa empiacuterica com foco

na relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais que atuam na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos de

assistecircncia social no municiacutepio de Satildeo Paulo Nas consideraccedilotildees finais satildeo apresentas algumas

reflexotildees sobre as potencialidades e os limites dessa proposta

1 Psicologia Social e Teoria Criacutetica

A Psicologia Social Criacutetica costuma ser genericamente identificada como resultado da

crise de referecircncia da disciplina na deacutecada de 1970 quando o modelo dominante da Psicologia

Social positivista passou a ser sistematicamente criticado por sua insuficiecircncia em dar respostas

efetivas aos diversos problemas sociais cada vez mais urgentes nos paiacuteses latino-americanos

Esse movimento fez surgir uma concepccedilatildeo alternativa de Psicologia Social orientada natildeo

apenas por pressupostos cientiacuteficos mas principalmente pela ideia de um compromisso social

e poliacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade

Diversos referenciais teoacuterico-metodoloacutegicos passaram a ser desenvolvidos desde entatildeo

pela Psicologia Social com destaque para a assimilaccedilatildeo de abordagens marxistas poacutes-

estruturalistas e construcionistas1 Como observa Fernaacutendez Christlieb (2019) em sua descriccedilatildeo

das transformaccedilotildees da disciplina nas uacuteltimas deacutecadas hoje a Psicologia Social encontra-se

enormemente enriquecida pela quantidade de leituras produccedilotildees e debates sobre os mais

variados temas que a tornaram ldquouma disciplina paradoxalmente soacutelida e consolidada mas sem

ser canocircnica nem dogmaacuteticardquo (p 17) O elemento da ldquocriacuteticardquo parece funcionar como pivocirc da

articulaccedilatildeo de diferentes perspectivas e modos de fazer Psicologia Social capazes natildeo apenas

de desvelar a realidade mas tambeacutem de buscar caminhos para transformaacute-la

Dentre os modelos que informam os trabalhos teoacutericos e empiacutericos da Psicologia Social

Criacutetica no Brasil destacam-se as contribuiccedilotildees da tradiccedilatildeo de pensamento conhecida como

ldquoTeoria Criacutetica da Sociedaderdquo ou ldquoEscola de Frankfurtrdquo (Crochiacutek 2013 Lima 2015) As

1Em relaccedilatildeo agraves Poliacuteticas Puacuteblicas a Psicologia Social tem buscado contribuir teoacuterico-metodologicamente a partir

de diferentes bases epistemoloacutegicas que vatildeo se fortalecendo em diversos foacuteruns profissionais e acadecircmicos Por

exemplo desde uma perspectiva marxista haacute trabalhos que discutem as contradiccedilotildees estruturais das poliacuteticas

sociais implementadas pelo Estado como resposta agrave questatildeo social no Modo de Produccedilatildeo Capitalista (Oliveira amp

Costa 2018) desde uma perspectiva poacutes-estruturalista ressalta-se o aspecto biopoliacutetico dos dispositivos puacuteblicos

enquanto tecnologias de governo das populaccedilotildees e de gerenciamento dos riscos sociais (Cavagoli amp Guareschi

2018) desde uma perspectiva (poacutes-)construcionista as poliacuteticas puacuteblicas satildeo entendidas como processos

heterogecircneos que constituem redes hiacutebridas fruto de muacuteltiplos processos de associaccedilatildeo nos quais participam uma

grande quantidade de elementos de forma complexa e por vezes complicada (Brigagatildeo Nascimento amp Spink

2011) Minha proposta neste capiacutetulo eacute contribuir com esse debate desde as perspectivas da Teoria Criacutetica

(Honneth 2003) e do ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah 2016)

13

principais caracteriacutesticas dessa tradiccedilatildeo de pensamento satildeo a busca pela formulaccedilatildeo de

diagnoacutesticos do tempo presente e a orientaccedilatildeo para a emancipaccedilatildeo Metodologicamente a

criacutetica da sociedade requer a reconexatildeo entre filosofia e ciecircncias sociais de modo a proceder agrave

investigaccedilatildeo sistemaacutetica das promessas de emancipaccedilatildeo contidas na realidade mas que satildeo

sistematicamente bloqueadas pela proacutepria organizaccedilatildeo social Em outras palavras a Teoria

Criacutetica natildeo visa criticar a realidade de fora como se houvesse um ponto externo do qual se pode

observar melhor a dinacircmica societaacuteria ou segundo um horizonte utoacutepico formulado idealmente

mas procura filosoficamente desvelar o possiacutevel no existente A reconexatildeo entre filosofia e

ciecircncias empiacutericas visa fundamentar uma criacutetica imanente da sociedade na qual por um lado

o pensamento natildeo seja refeacutem da empiria e por outro a teoria natildeo prescinda dos meacutetodos

cientiacuteficos

Autores como Theodor Adorno Herbert Marcuse Walter Benjamin e Juumlrgen Habermas

foram decisivos para a formaccedilatildeo de muitos psicoacutelogos(as) sociais brasileiros(as) e para o

desenvolvimento de pesquisas criacuteticas sobre diversos assuntos como preconceito violecircncia

identidade etc Eacute possiacutevel afirmar que a relevacircncia das duas primeiras geraccedilotildees da Teoria Criacutetica

para a Psicologia Social brasileira eacute bastante conhecida e consolidada jaacute a recepccedilatildeo das

geraccedilotildees mais recentes de teoacutericos criacuteticos eacute um processo atual e encontra-se ainda em

construccedilatildeo

O principal representante da chamada ldquoterceira geraccedilatildeordquo da Teoria Criacutetica eacute o filoacutesofo

e socioacutelogo alematildeo Axel Honneth autor de vasta obra nas uacuteltimas trecircs deacutecadas sobre filosofia

moral e teoria social A grande contribuiccedilatildeo de Honneth consiste em desenvolver uma filosofia

social de teor normativo ancorada no processo de construccedilatildeo da identidade (pessoal e coletiva)

como resultado de padrotildees de interaccedilatildeo social mediados pelo conflito social Mais

precisamente Honneth (2003) elabora seu projeto de teoria criacutetica sobre o paradigma da

intersubjetividade na forma de uma teoria do reconhecimento reciacuteproco Conveacutem analisar em

detalhes como esse projeto pode ser uma via promissora para a Psicologia Social Criacutetica

brasileira inclusive para a anaacutelise de processos de implementaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos

11 Axel Honneth e a renovaccedilatildeo da Teoria Criacutetica

Honneth eacute conhecido por sua pretensatildeo de renovar o projeto original da Teoria Criacutetica

a partir da criacutetica ao ldquodeacuteficit socioloacutegicordquo que ele identifica em seus antecessores Ele mostra

que em Horkheimer e Adorno a criacutetica funcionalista da razatildeo instrumental e do mundo

14

totalmente administrado leva a um impasse em relaccedilatildeo aos fundamentos para a criacutetica social

em termos normativos Em Habermas ele critica a concepccedilatildeo dual de sociedade que opotildee dois

conceitos concorrentes de organizaccedilatildeo social (sistema e mundo da vida) pois entende que natildeo

eacute possiacutevel supor a existecircncia de instituiccedilotildees (sistemas) desprovidas de normatividade e

tampouco eacute plausiacutevel conceber esferas de accedilatildeo comunicativa (mundo da vida) privadas de

relaccedilotildees de poder Honneth retoma os escritos de Hegel para fazer uma atualizaccedilatildeo da teoria

criacutetica pautada pelo paradigma das relaccedilotildees intersubjetivas no qual estatildeo inseridas as

instituiccedilotildees mas tomando o conflito como elemento constitutivo

Como observa Saavedra (2007) na obra de Honneth as concepccedilotildees teoreacuteticas de

continuidade histoacuterica estatildeo ancoradas materialmente em espaccedilos vitais devendo ser

fundamentadas objetivamente no acircmbito da accedilatildeo social no qual os acontecimentos histoacutericos

satildeo interpretativamente derivados Em outras palavras com essa concepccedilatildeo processual de

histoacuteria a proacutepria noccedilatildeo de sujeito histoacuterico passa a ser redefinida de modo que este ldquonatildeo eacute

mais considerado uma pura imposiccedilatildeo teoacuterica ou histoacuterica mas sim uma projeccedilatildeo normativa

na qual a possiacutevel integraccedilatildeo histoacuterica de todas as diferentes unidades sociais e regionais eacute

tematizada na humanidade consciente de si mesmardquo (Saavedra 2007 p 99)

Nesta perspectiva a histoacuteria natildeo deve ser vista como uma grande trama de relaccedilotildees sem

sujeitos e nem deve ser assimilada como acircmbito de acontecimentos caoacuteticos que soacute podem ser

apreendidos em construccedilotildees narrativas situadas na representaccedilatildeo imediata que os sujeitos fazem

de si e dos outros O esforccedilo teoacuterico de Honneth situa-se na intersecccedilatildeo entre filosofia moral e

teoria social procurando desenvolver a criacutetica da sociedade fundada na identificaccedilatildeo dos

princiacutepios normativos constitutivos dos conflitos sociais A categoria-chave para esse projeto eacute

a luta por reconhecimento reciacuteproco (Honneth 2003)

12 Uma teoria criacutetica do reconhecimento

Em sua principal obra Honneth (2003) busca atualizar a concepccedilatildeo hegeliana sobre a

formaccedilatildeo intersubjetiva das relaccedilotildees pessoais e institucionais segundo as exigecircncias poacutes-

metafiacutesicas das teorias sociais de base empiacuterica Ele encontra na psicologia social de G H

Mead os fundamentos para essa atualizaccedilatildeo O intuito eacute elaborar uma teoria social de teor

normativo isto eacute uma teoria criacutetica das patologias sociais que bloqueiam os processos de

autorrealizaccedilatildeo praacutetica necessaacuterios agrave formaccedilatildeo de uma vida eacutetica ou ldquoeticidaderdquo (Sittlichkeit)

Para tanto deve-se partir da reconstruccedilatildeo das regras e valores morais estruturantes das relaccedilotildees

15

sociais especialmente daquelas experiecircncias de desrespeito natildeo simbolizadas nas relaccedilotildees

intersubjetivas

Esquematicamente Honneth (2003) mostra que para Hegel a formaccedilatildeo do indiviacuteduo

se daacute a partir de embates intersubjetivos que ocorrem nos acircmbitos da famiacutelia do direito e da

formaccedilatildeo da vontade puacuteblica isto eacute da solidariedade Em Mead o reconhecimento social

aparece na forma de relaccedilotildees primaacuterias (guiadas pelo amor) juriacutedicas (pautadas por leis) e na

esfera do trabalho (na qual os indiviacuteduos poderiam mostrar-se valiosos para a coletividade) A

partir dos insights desses dois autores Honneth refina as categorias de relaccedilotildees de

reconhecimento social extraindo delas trecircs princiacutepios integradores as ligaccedilotildees emotivas fortes

a adjudicaccedilatildeo de direitos e a orientaccedilatildeo por valores

Para tornar esses princiacutepios base de uma filosofia social criacutetica Honneth (2003) adota o

procedimento metodoloacutegico negativo isto eacute ele parte dos sentimentos de injusticcedila dos atores

sociais para elaborar uma teoria da base moral das concepccedilotildees de justiccedila e suas violaccedilotildees O

interesse inicial de Honneth era analisar as formas de resistecircncia agrave dominaccedilatildeo no acircmbito dos

chamados ldquoestudos culturaisrdquo em que haacute primazia da perspectiva dos participantes sobre as

narrativas das grandes revoluccedilotildees Isso o leva a investigar sistematicamente as formas mais

sutis ou menos expliacutecitas de resistecircncia em suma as violaccedilotildees de certas expectativas de

reciprocidade que satildeo processadas pelos indiviacuteduos como sentimentos de injusticcedila e por isso

podem ser a base da formaccedilatildeo tanto de coletivos e movimentos sociais organizados quanto de

reaccedilotildees natildeo articuladas Honneth identifica que a anaacutelise dessas violaccedilotildees de expectativas

representa uma lacuna psicoloacutegica na filosofia social pois as reaccedilotildees emocionais negativas tais

como vergonha raiva ofensa ou desprezo devem ser interpretadas dentro do quadro teoacuterico da

experiecircncia social de desrespeito em relaccedilatildeo agraves demandas de reconhecimento

Com isso a centralidade da teoria criacutetica de Honneth repousa sobre o conflito social

cuja gramaacutetica moral satildeo as lutas por reconhecimento reciacuteproco A partir da leitura de Hegel e

Mead Honneth apresenta trecircs esferas do reconhecimento social amor direito e estima social

A cada uma delas correspondem respectivamente uma forma de autorrelaccedilatildeo praacutetica dos

indiviacuteduos e uma forma de desrespeito

Na esfera do amor as demandas por reconhecimento se expressam nas relaccedilotildees afetivas

primaacuterias pois satildeo as mais fundamentais para a estruturaccedilatildeo da personalidade Sejam as

relaccedilotildees de filiaccedilatildeo de amizade ou entre parceiros sexuais a autocompreensatildeo de si como

indiviacuteduo autocircnomo depende do reconhecimento do outro Retomando a psicanaacutelise de Donald

Winnicott Honneth aponta para os conflitos existentes na relaccedilatildeo matildee-bebecirc na primeira

16

infacircncia cuja resoluccedilatildeo da tensatildeo dependecircncia x autonomia seraacute a base para a formaccedilatildeo do

sentimento de autoconfianccedila Tal sentimento seraacute fundamental para a participaccedilatildeo segura na

esfera puacuteblica O desrespeito correspondente a essa esfera do reconhecimento satildeo os maus-

tratos e a violaccedilatildeo

As relaccedilotildees de direito ou de cidadania por sua vez pautam-se pelos princiacutepios morais

universalistas que um sistema juriacutedico garante aos membros de uma determinada comunidade

poliacutetica Honneth observa que a institucionalidade dos direitos eacute resultado de conflitos sociais

histoacutericos Mais do que apenas normas juriacutedicas o conceito de direito indica toda uma gama de

relaccedilotildees modernas pautadas por demandas de liberdade individual e que conseguem estabelecer

uma consistecircncia e legitimidade moral assentida pelos participantes da comunidade Isso

significa que da perspectiva da igualdade pelo direito todos podem se reconhecer como seres

humanos capazes de participaccedilatildeo social A autorrelaccedilatildeo praacutetica decorrente dessas relaccedilotildees

juriacutedicas seraacute o autorrespeito e a ela corresponde o tipo de desrespeito associado agrave privaccedilatildeo de

direitos e agrave exclusatildeo

A terceira dimensatildeo do reconhecimento refere-se ao domiacutenio das relaccedilotildees de

solidariedade ou mais precisamente de estima social No interior de uma comunidade de

valores os indiviacuteduos podem encontrar a valorizaccedilatildeo de suas habilidades particulares a partir

do reconhecimento puacuteblico de seus feitos e realizaccedilotildees em prol da coletividade Dessa forma

a autorrelaccedilatildeo praacutetica associada seraacute a autoestima isto eacute um sentimento de orgulho do grupo

ou de honra coletiva O desrespeito nesse caso seraacute a vexaccedilatildeo a degradaccedilatildeo puacuteblica os tipos

de ofensa o preconceito e a humilhaccedilatildeo

Honneth reivindica a heranccedila da Teoria Criacutetica na medida em que sob as bases de uma

concepccedilatildeo naturalista e pragmaacutetica das ciecircncias sociais procede agrave reconstruccedilatildeo dos conflitos

intersubjetivos (sua gramaacutetica eacute a luta por reconhecimento) do ldquoespiacuterito objetivordquo para usar os

termos hegelianos e aponta para uma eticidade formal (Sittlichkeit) isto eacute para uma concepccedilatildeo

de vida boa que visa natildeo apenas a realizaccedilatildeo da autonomia moral dos indiviacuteduos mas tambeacutem

as condiccedilotildees eacuteticas de sua autorrealizaccedilatildeo como um todo societaacuterio

As formas de reconhecimento do amor do direito e da solidariedade formam dispositivos de

proteccedilatildeo intersubjetivos que asseguram as condiccedilotildees da liberdade externa e interna das quais

depende o processo de uma articulaccedilatildeo e de uma realizaccedilatildeo espontacircnea de metas individuais de

vida Com esse potencial interno de desenvolvimento migra para as condiccedilotildees normativas

de autorrealizaccedilatildeo um iacutendice histoacuterico que deve limitar as pretensotildees de nossa concepccedilatildeo formal

de eticidade o que pode ser considerado condiccedilatildeo intersubjetiva de uma vida bem-sucedida

torna-se uma grandeza historicamente variaacutevel determinada pelo niacutevel atual de

desenvolvimento dos padrotildees de reconhecimento (Honneth 2003 p 274)

17

Nesses termos um sistema filosoacutefico derivado da teoria do reconhecimento seraacute capaz

de explicar a gecircnese moral dos conflitos histoacutericos como as lutas de classe ndash no sentido de uma

luta pelo reconhecimento da classe trabalhadora como produtora da riqueza socialmente

produzida ndash mas tambeacutem das diferentes reivindicaccedilotildees de reconhecimento das identidades

como por exemplo as lutas antirracistas feministas de diversidade sexual e de gecircnero etc De

fato o modelo honnethiano repercutiu na filosofia social como uma contribuiccedilatildeo maior para a

nossa autocompreensatildeo do tempo presente em seus desejos e lutas

13 Reconhecimento e instituiccedilotildees

Das criacuteticas feitas a essa teoria criacutetica do reconhecimento destacam-se a objeccedilatildeo de

Nancy Fraser (2006) quanto agrave capacidade de um conceito de reconhecimento cultural abarcar

demandas de redistribuiccedilatildeo econocircmica e a discussatildeo de Rahel Jaeggi (2013) sobre certas

relaccedilotildees de reconhecimento fracassarem ou serem deficitaacuterias enquanto relaccedilotildees de

reconhecimento pois mesmo certas adscriccedilotildees positivas podem ser limitantes e injuriosas Haacute

tambeacutem um conjunto de debates sobre o vieacutes individualista da teoria de Honneth ao priorizar

as relaccedilotildees pessoais em detrimento da criacutetica das instituiccedilotildees Dentre essas uacuteltimas eacute

particularmente importante para a discussatildeo deste capiacutetulo as consideraccedilotildees de Emmanuel

Renault (2011) sobre o papel atribuiacutedo agraves instituiccedilotildees na teoria do reconhecimento

Renault (2011) questiona se Honneth foi capaz de explicar adequadamente a relaccedilatildeo

entre expectativas intersubjetivas de reconhecimento reciacuteproco e a formaccedilatildeo de instituiccedilotildees que

encarnam certos princiacutepios normativos como uma ldquosegunda naturezardquo seja na forma de modos

relativamente mais simples de coordenaccedilatildeo das accedilotildees (escolas prisotildees etc) seja em sistemas

mais complexos de organizaccedilatildeo da vida social (famiacutelia estado mercado) O problema central

para Renault consiste em estabelecer a ordem de prioridade entre as demandas de

reconhecimento e as exigecircncias institucionais Por um lado numa concepccedilatildeo ldquoexpressivistardquo

de reconhecimento as instituiccedilotildees expressam relaccedilotildees de reconhecimento isto eacute as relaccedilotildees

intersubjetivas precedem as instituiccedilotildees operando num niacutevel ldquopreacute-institucionalrdquo Assim as

instituiccedilotildees seriam apenas um resultado em diferentes niacuteveis de lutas por reconhecimentos que

sedimentaram determinadas praacuteticas sociais Ocorre que as relaccedilotildees de reconhecimento nunca

acontecem de forma pura mas sempre condicionadas por regras sociais e expectativas

normativas das quais as instituiccedilotildees participam ativamente Desse modo por outro lado

argumenta Renault as instituiccedilotildees tambeacutem produzem relaccedilotildees de reconhecimento Numa

18

perspectiva histoacuterica diferentes settings institucionais satildeo capazes de coordenar accedilotildees

individuais e de sustentaacute-las em conformidade com certas promessas normativas

Ao provocar a reflexatildeo sobre a necessidade de explicitar os elos entre reconhecimento

e instituiccedilotildees Renault (2011) entende estar contribuindo para dar agrave filosofia de Honneth um

ldquocomplemento socioloacutegicordquo (p231) Isso significa que as demandas por reconhecimento

operam tanto no niacutevel mais elementar das relaccedilotildees intersubjetivas (como expectativas

normativas) quanto no niacutevel dos fatos sociais (como efeitos do reconhecimento) mas o link

entre esses dois niacuteveis natildeo eacute de todo evidente A criacutetica de Renault seraacute que a resoluccedilatildeo desse

problema afeta a ambiccedilatildeo do projeto de uma teoria do reconhecimento como criacutetica social

Em minha opiniatildeo explicitar isso implica em uma concepccedilatildeo diferente de reconhecimento na

medida em que nos obriga a renunciar agrave ideia de pressupostos normativos da vida social bem

como a desenvolver uma teoria do reconhecimento como teoria da justiccedila As expectativas

baacutesicas de reconhecimento satildeo demasiado indeterminadas para definir princiacutepios de justiccedila e

para serem entendidas como pressupostos da vida social2 (Renault 2011 p 231 traduccedilatildeo livre)

Honneth (2011) responde a Renault argumentando por uma consideraccedilatildeo ldquomais

dialeacuteticardquo da relaccedilatildeo entre instituiccedilotildees e reconhecimento a partir do que ele chama de ldquoordens

de reconhecimentordquo Isso significa que as instituiccedilotildees natildeo satildeo apenas instacircncias que refletem

ou expressam o reconhecimento intersubjetivo uma vez que os indiviacuteduos recorrem a normas

institucionalizadas em suas demandas de reconhecimento e eacute apenas agrave luz dessas instituiccedilotildees

que concedem uns aos outros determinado status normativo Para Honneth (2011) ldquoessas

lsquoordens de reconhecimentorsquo consistem em estruturas normativas institucionalizadas que

historicamente se desenvolveram em torno das exigecircncias de reproduccedilatildeo social ao mesmo

tempo em que tornaram tais exigecircncias dependentes do preenchimento de certas obrigaccedilotildees e

papeacuteis pelos atores sociaisrdquo (p 403 traduccedilatildeo livre)

A efetivaccedilatildeo da autonomia individual soacute poderaacute ser possiacutevel se vir acompanhada de

complexos institucionais que garantam a realizaccedilatildeo da liberdade social (Honneth 2015) Isso

significa que para cada ordem de reconhecimento correspondem sistemas de accedilatildeo

normativamente institucionalizados agraves relaccedilotildees pessoais correspondem instituiccedilotildees como a

amizade a intimidade e a famiacutelia agraves relaccedilotildees econocircmicas correspondem as instituiccedilotildees

produtivas de consumo e de mercado e agraves relaccedilotildees poliacuteticas correspondem a vida puacuteblica

democraacutetica a cultura poliacutetica e o Estado democraacutetico de direito (Honneth 2015)

2 Em resposta a essas e outras criacuteticas Honneth desenvolve em O direito da liberdade uma teoria da justiccedila como

criacutetica social Esta obra marca um giro teoacuterico em direccedilatildeo agraves instituiccedilotildees na qual o objetivo central eacute a reconstruccedilatildeo

normativa da ideia moderna de liberdade (Honneth 2015)

19

Em suma Emmanuel Renault apresenta uma questatildeo extremamente importante mas sua busca

por uma resposta leva-o na direccedilatildeo errada Uma anaacutelise abrangente da sociedade natildeo deve se

contentar apenas em reconstruir normativamente aquelas formas de reconhecimento inerentes

ao cerne da reproduccedilatildeo social Para compreender o padratildeo de acordo com o qual os sujeitos satildeo

integrados agrave sociedade tambeacutem precisamos de uma anaacutelise das formas de reconhecimento

praticadas em organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas Seria fatal simplesmente assumir que somente

encontraremos formas de reconhecimento sob o niacutevel normativo das formas gerais de interaccedilatildeo

A questatildeo sobre quais padrotildees de interaccedilatildeo devem ser implementados em cada organizaccedilatildeo eacute

sempre decidida em processos conflitivos de negociaccedilatildeo social Os resultados natildeo podem ser

previstos teoricamente mas soacute podem ser explorados com o auxiacutelio de investigaccedilotildees empiacutericas

(Honneth 2011 pp 404-405 traduccedilatildeo livre)

A questatildeo agora natildeo consiste em estabelecer a prioridade das instituiccedilotildees sobre o

reconhecimento ou do reconhecimento sobre as instituiccedilotildees mas de proceder agrave investigaccedilatildeo

dos processos conflitivos de negociaccedilatildeo cotidiana que dialeticamente conformam determinadas

ordens de reconhecimento institucionalizadas seja na esfera das relaccedilotildees pessoais econocircmicas

ou da vida puacuteblico-poliacutetica Tendo em vista essa uacuteltima proponho considerar a seguir o

processo de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas como uma possibilidade para tal investigaccedilatildeo

tomando como exemplo um padratildeo de interaccedilatildeo especiacutefico a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo

estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos

2 Das ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo agrave ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo

Passemos agora a considerar de que modo a filosofia social de Axel Honneth pode

contribuir para as ciecircncias sociais especialmente para a anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas De fato

a teoria do reconhecimento pode ser categorizada como filosofia social na medida em que parte

da filosofia moral e poliacutetica para determinar as bases normativas da interaccedilatildeo social mas

tambeacutem se configura como teoria social criacutetica pois reconstroacutei os sistemas de accedilatildeo coletiva

observando a formaccedilatildeo dos sentimentos de injusticcedila e as patologias sociais enquanto resultado

de demandas e lutas por reconhecimento reciacuteproco assim como tambeacutem o satildeo as noccedilotildees de

progresso moral e emancipaccedilatildeo social Da breve explanaccedilatildeo feita no toacutepico anterior resulta que

a teoria do reconhecimento de Axel Honneth oferece bons fundamentos para a construccedilatildeo de

uma Psicologia Social Criacutetica atualizada em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da criacutetica social

contemporacircnea No entanto a questatildeo agora eacute saber como essa teorizaccedilatildeo se reconecta com as

exigecircncias metodoloacutegicas das ciecircncias empiacutericas Essa eacute uma discussatildeo da maior importacircncia

e que jaacute vem sendo feita haacute algum tempo (OrsquoNeill amp Smith 2012)

Todo programa de pesquisa cientiacutefica fundamenta-se em pressupostos teoacutericos e utiliza

de hipoacuteteses auxiliares e de meacutetodos rigorosos para o desenvolvimento sistemaacutetico de novos

conhecimentos sobre a realidade As ciecircncias sociais diferente das ciecircncias formais se

20

desenvolvem a partir da pesquisa empiacuterica Assim para que a Psicologia Social Criacutetica

fundamentada em uma teoria criacutetica do reconhecimento possa oferecer alguma contribuiccedilatildeo

para o estudo das Poliacuteticas Puacuteblicas eacute necessaacuterio partir dos problemas da realidade social em

busca de respostas que visem consequecircncias praacuteticas Eacute neste sentido que a relaccedilatildeo entre

Psicologia e o campo das Poliacuteticas Puacuteblicas emerge como uma questatildeo da maior relevacircncia na

atualidade3 Antes de discutir os achados da pesquisa de mestrado que norteia a discussatildeo

proposta neste capiacutetulo vamos dar mais um passo na direccedilatildeo da construccedilatildeo de elementos

teoacutericos que subsidiam a anaacutelise psicossocial criacutetica das poliacuteticas puacuteblicas fundamentada na

teoria do reconhecimento Como mencionado na introduccedilatildeo no decorrer do processo de

pesquisa foi essencial uma aproximaccedilatildeo ao ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah 2016) e em especial

agrave sociologia da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2012)

21 A sociologia da accedilatildeo puacuteblica

A relaccedilatildeo entre Psicologia e Poliacuteticas Puacuteblicas eacute marcada por uma histoacuteria de conexotildees

e desconexotildees com a promessa recente de uma reconexatildeo mais duraacutevel As produccedilotildees mais

recentes indicam maior possibilidade de diaacutelogo entre esses dois campos ainda que ambos

sejam marcados por uma multiplicidade de enfoques teoacutericos e linguagens de accedilatildeo (Spink

2013) Se por um lado as poliacuteticas puacuteblicas satildeo frequentemente encaradas como um artefato

isto eacute como um sistema de accedilatildeo institucional voltado a obtenccedilatildeo de resultados com alto grau

de eficiecircncia eficaacutecia e efetividade por outro lado elas tambeacutem satildeo encaradas como processos

fluiacutedos e dinacircmicos em busca de coerecircncia diante da ambiguidade contiacutenua dos processos

organizativos poliacuteticos e sociais que a conformam Como sintetiza Spink (2013 p 172) mais

do que um conceito ldquopoliacutetica puacuteblica eacute tambeacutem algo que as pessoas fazemrdquo

Tambeacutem o estudo das poliacuteticas puacuteblicas eacute uma praacutetica construiacuteda socialmente Eacute o que

argumentam Pierre Lascoumes e Patrick Le Galegraves (2010) Para esses autores o modelo claacutessico

de anaacutelise das poliacuteticas centradas no protagonismo da administraccedilatildeo estatal como se esta fosse

o uacutenico ator responsaacutevel pela materializaccedilatildeo das poliacuteticas ldquoestaacute completamente ultrapassadordquo

de modo que ldquoa expressatildeo poliacutetica puacuteblica tem sido abandonada em benefiacutecio da noccedilatildeo de accedilatildeo

puacuteblicardquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 pp 32-33) Isso natildeo significa evidentemente

3 Em geral a Psicologia tem abordado o universo das poliacuteticas puacuteblicas desde o enfoque das praacuteticas profissionais

setorializadas em funccedilatildeo do nuacutemero crescente de postos de trabalho em diferentes serviccedilos puacuteblicos Podemos

dizer que a Psicologia foi a reboque da demanda social e institucional Reflexo dessa situaccedilatildeo eacute a criaccedilatildeo do

CREPOP (Centro de Referecircncia Teacutecnica em Psicologia e Poliacutetica Puacuteblica) pelo Conselho Federal de Psicologia

em 2006 e o crescente nuacutemero de teses e dissertaccedilotildees sobre poliacuteticas puacuteblicas (Spink 2013)

21

abandonar a criacutetica do Estado e de sua responsabilidade na gestatildeo dos interesses dos cidadatildeos

e cidadatildes Trata-se de ampliar o escopo de anaacutelise para aleacutem do Estado tomando-o como um

(importante) ator no jogo de relaccedilotildees que determinam a realidade das poliacuteticas mas natildeo como

o uacutenico O problema das poliacuteticas puacuteblicas nessa perspectiva passa a considerar um intrincado

jogo de relaccedilotildees disputas e orientaccedilotildees coletivas que envolvem atores puacuteblicos e privados em

diferentes niacuteveis ampliando a noccedilatildeo de governanccedila (Bichir 2018) Dessa forma ldquoo

emaranhado de niacuteveis de formas de regulaccedilatildeo e de redes de atores forccedilou uma revisatildeo das

concepccedilotildees estatistas de intervenccedilotildees puacuteblicas em benefiacutecio de sistemas de anaacutelise muito mais

abertosrdquo (p 33)

A anaacutelise das poliacuteticas puacuteblicas na medida em que natildeo se ateacutem exclusivamente agrave

burocracia estatal contribui para a compreensatildeo da dinacircmica das sociedades A sociologia da

accedilatildeo puacuteblica situa-se no domiacutenio das ciecircncias sociais mas natildeo reivindica uma epistemologia

especiacutefica Ela enfatiza ldquoas accedilotildees dos atores suas interaccedilotildees e o sentido que eles lhes atribui

mas tambeacutem as instituiccedilotildees as normas as representaccedilotildees coletivas e os procedimentos que

disciplinam o conjunto de tais interaccedilotildeesrdquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 p 40) Os autores

defendem um modelo de anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica denominado ldquopentaacutegono das poliacuteticas

puacuteblicasrdquo que compreende cinco elementos articulados entre si atores representaccedilotildees

instituiccedilotildees processos e resultados

Os atores podem ser individuais ou coletivos eles satildeo dotados de recursos possuem certa

autonomia estrateacutegias e capacidade de fazer escolhas Satildeo mais ou menos guiados por interesses

materiais eou simboacutelicos As representaccedilotildees satildeo os espaccedilos cognitivos e normativos que datildeo

sentido agraves suas accedilotildees as condicionam e as refletem As instituiccedilotildees satildeo normas regras rotinas

procedimentos que governam as interaccedilotildees Os processos satildeo as formas de interaccedilatildeo e sua

recomposiccedilatildeo no tempo Eles justificam as muacuteltiplas atividades de mobilizaccedilatildeo dos atores

individuais e coletivos Os resultados (outputs) satildeo as consequecircncias os efeitos da accedilatildeo puacuteblica

(Lascoumes amp Le Galegraves 2010 pp 45-46)

A perspectiva da accedilatildeo puacuteblica eacute uma abordagem centrada mais nas interaccedilotildees do que

nos efeitos das poliacuteticas puacuteblicas De forma simplificada pode-se dizer que a perspectiva das

ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo eacute tradicionalmente a da ciecircncia poliacutetica interessada no alcance e nos efeitos

das poliacuteticas produzidas nos niacuteveis mais centrais da administraccedilatildeo estatal (modelo top-down)

enquanto a perspectiva da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo eacute a da sociologia e dirige-se prioritariamente para a

compreensatildeo das interaccedilotildees entre os muacuteltiplos atores que compotildeem a poliacutetica (modelo bottom-

up) Com isso natildeo quero dizer que a sociologia da accedilatildeo puacuteblica natildeo atribui a devida importacircncia

para os processos poliacuteticos A mudanccedila eacute mais de ecircnfase pois tambeacutem na Ciecircncia Poliacutetica tem

sido dada cada vez mais a devida atenccedilatildeo agraves interaccedilotildees no seio das instituiccedilotildees (Marques

2013) Em suma a ldquopostura fecundardquo como argumentam os autores ldquoconsiste em trabalhar as

22

articulaccedilotildees entre regulaccedilatildeo social e regulaccedilatildeo poliacutetica entre o que eacute ou natildeo governado pelas

poliacuteticas puacuteblicasrdquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 p 52) Um acircmbito privilegiado de anaacutelise

empiacuterica satildeo os processos de implementaccedilatildeo de poliacuteticas

22 Implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas e ordens de reconhecimento

O ciclo de poliacuteticas puacuteblicas ndash elemento analiacutetico baacutesico no ldquocampo de puacuteblicasrdquo ndash

parece ser pouco conhecido ou de certa forma negligenciado pela Psicologia Eacute no estaacutegio de

implementaccedilatildeo que as poliacuteticas seratildeo ldquoentreguesrdquo aos cidadatildeos e cidadatildes E nesse estaacutegio do

ciclo que a execuccedilatildeo do serviccedilo no cotidiano materializa as intenccedilotildees dos formuladores e

decisores E eacute nesse momento que a funccedilatildeo dos agentes implementadores ndash os chamados

ldquoburocratas do niacutevel da ruardquo (Lipsky 2019) ndash ganha centralidade para a perspectiva da

sociologia da accedilatildeo puacuteblica Afinal o que acontece ldquona pontardquo dos serviccedilos natildeo reflete apenas

desenhos institucionais e modos de gestatildeo mas da objetivaccedilatildeo cotidiana dos cinco elementos

do ldquopentaacutegono da accedilatildeo puacuteblicardquo E isso supotildee processos conflitivos de negociaccedilatildeo que

dialeticamente conformam determinadas ordens de reconhecimento

Esses burocratas do niacutevel da rua satildeo todos aqueles funcionaacuterios que cotidianamente

entregam as poliacuteticas para os usuaacuterios independente se contratados diretamente pelo Estado ou

de forma indireta Satildeo eles professores policiais assistentes sociais agentes de sauacutede etc Entre

eles encontram-se todas as psicoacutelogas e psicoacutelogos que atuam em serviccedilos puacuteblicos O estudo

seminal de Lipsky (2019) revela como esses atores natildeo satildeo passivos diante dos niacuteveis mais

ldquoelevadosrdquo da poliacutetica de certa forma esses burocratas tambeacutem ldquofazemrdquo a poliacutetica

cotidianamente ao fazerem escolhas e tomarem decisotildees com relativa margem de liberdade no

interior dos procedimentos e legislaccedilotildees estabelecidas pelo ordenamento juriacutedico das poliacuteticas

Natildeo se trata de uma subversatildeo mas de reconhecer a existecircncia de um espaccedilo de atuaccedilatildeo

relativamente livre para o exerciacutecio de certo poder discricionaacuterio

Nessa perspectiva a discricionariedade natildeo eacute uma anomalia do desenho de uma poliacutetica

puacuteblica mas um resultado inevitaacutevel que emerge nas interaccedilotildees cotidianas dos burocratas entre

si e com os usuaacuterios A accedilatildeo desses burocratas eacute permeada por valores e referecircncias individuais

que para a populaccedilatildeo pode se mesclar com os valores das instituiccedilotildees Para compreender a

implementaccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender natildeo apenas os fatores organizacionais e institucionais

do trabalho desses burocratas mas tambeacutem fatores individuais e relacionais que podem ser

igualmente importantes para determinar a natureza a qualidade e quantidade dos benefiacutecios

23

aleacutem de sanccedilotildees e direcionamentos Desse modo o debate sobre a discricionariedade dos

burocratas do niacutevel da rua costuma girar em torno da legitimidade ou natildeo das escolhas e

decisotildees por eles tomadas pois se por um lado podem adaptar as poliacuteticas para melhor alcanccedilar

os objetivos previstos por outro lado eles natildeo possuem legitimidade democraacutetica para tomar

decisotildees que afetem negativamente a vida dos cidadatildeos4

Nesse ponto uma contribuiccedilatildeo importante para os estudos sobre implementaccedilatildeo pode

ser encontrada na teoria do reconhecimento a partir do conceito de ldquoordens de

reconhecimentordquo Vimos que essas ordens correspondem a padrotildees de interaccedilatildeo mais ou menos

institucionalizados cujo fundamento satildeo as expectativas e demandas por reconhecimento Se

retomarmos as trecircs esferas do reconhecimento ndash amor direito e estima social ndash veremos que a

sociologia da accedilatildeo puacuteblica concentra-se nas duas uacuteltimas Natildeo obstante a ecircnfase dada aos

processos e interaccedilotildees cotidianas ainda falta ao campo de anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas como

um todo um suporte propriamente psicoloacutegico ou mais precisamente psicossocial Penso que

esse suporte pode ser dado pela Psicologia Social Criacutetica orientada pela teoria do

reconhecimento Ao tomar as ordens institucionalizadas do reconhecimento como pano de

fundo para a pesquisa social dos processos de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas creio que eacute

possiacutevel ir aleacutem de alguns limites encontrados em ambos os lados pela Psicologia que nesse

assunto padece de seu relativo insulamento e pelo ldquocampo de puacuteblicasrdquo que parece reticente

quanto a retomar perspectivas psicoloacutegicas

Considero que uma indicaccedilatildeo importante para construir esse diaacutelogo foi dada por Peter

Spink (2013) ao distinguir a linguagem dos direitos da linguagem das poliacuteticas puacuteblicas Para

ele enquanto a linguagem dos direitos evocada pelos coletivos e movimentos sociais eacute

imperativa ndash pois fundada na segunda esfera do reconhecimento ndash a linguagem das poliacuteticas

puacuteblicas eacute uma linguagem de possibilidades de orientaccedilatildeo de processos poliacuteticos e de

orientaccedilatildeo ndash pertence portanto agrave terceira esfera das relaccedilotildees de reconhecimento Em meio agraves

diferentes linguagens de accedilatildeo e ontologias poliacuteticas vislumbradas pelo autor surge como

estrateacutegia metodoloacutegica e analiacutetica que ldquooptar pela cacofonia performaacutetica poderia ser mais

adequado do que aceitar a hegemonia automaacutetica e articuladora da poliacutetica puacuteblicardquo (Spink

2013 p 179) E sobre o espaccedilo da Psicologia Social nesse debate acrescenta

Talvez uma maneira de ampliar o foco fosse relocalizar a temaacutetica da poliacutetica puacuteblica para a

discussatildeo da accedilatildeo puacuteblica em geral Se entendermos accedilatildeo puacuteblica natildeo somente em relaccedilatildeo

agraves atividades do setor puacuteblico mas incluindo os diversos arranjos entre governo e sociedade

presentes na formulaccedilatildeo e gestatildeo do agir puacuteblico e a pressatildeo de novas instacircncias da sociedade

4 Sobre os estudos de burocracia de niacutevel da rua no Brasil ver o prefaacutecio de Gabriela Lotta em Lipsky (2019)

24

civil e a provisatildeo de serviccedilos proacuteprios pelas comunidades segue que eacute aqui que precisaremos

aprofundar nossas investigaccedilotildees (Spink 2013 p 180 grifos meus)

Seguindo essa pista mas sem abrir matildeo de uma teoria social criacutetica de longo alcance

como a que encontramos na obra de Axel Honneth proponho agora utilizar essas elaboraccedilotildees

para a anaacutelise de um caso concreto decorrente da etapa empiacuterica da pesquisa de mestrado

referida no iniacutecio deste capiacutetulo (Costa 2016)

3 Um exemplo empiacuterico a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais na accedilatildeo puacuteblica de

assistecircncia social

Partindo desses referenciais a pesquisa de mestrado visou compreender as accedilotildees dos

serviccedilos socioassistenciais para efetivaccedilatildeo da proteccedilatildeo social como um direito de cidadania

Para tanto foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa compreensiva de cunho

teoacuterico e empiacuterico utilizando os seguintes meacutetodos revisatildeo bibliograacutefica (sobre ldquocidadaniardquo

ldquoreconhecimentordquo e ldquoproteccedilatildeo socialrdquo) e pesquisa de campo (observaccedilatildeo participante em um

serviccedilo estatal e um natildeo estatal aleacutem de nove entrevistas semi-dirigidas sendo seis com

trabalhadoras e trecircs com usuaacuterias dos serviccedilos socioassistenciais) Como mencionado acima a

mudanccedila de ecircnfase das ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo para a ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo decorreu da proacutepria

especificidade do objeto a rede socioassistencial do municiacutepio de Satildeo Paulo caracteriza-se pela

articulaccedilatildeo de atores estatais (Poder Puacuteblico) e natildeo estatais (Organizaccedilotildees da Sociedade Civil)

na provisatildeo dos serviccedilos puacuteblicos agrave populaccedilatildeo Assim para compreender as accedilotildees desses

serviccedilos foi necessaacuterio observar as particularidades da relaccedilatildeo entre esses diferentes atores

Por se tratar de uma pesquisa que tomou como recorte um territoacuterio especiacutefico natildeo

houve a pretensatildeo de estender os achados para a rede como um todo pois isso demandaria um

estudo detalhado da diversidade de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil (OSCs) que atuam em

diferentes territoacuterios Trata-se portanto de uma discussatildeo situada no espaccedilo e no tempo pois

reflete as caracteriacutesticas que foram observadas em um momento especiacutefico No entanto a partir

desse recorte algumas consideraccedilotildees podem ser bastante uacuteteis para entender melhor a relaccedilatildeo

entre atores estatais (no caso um Centro de Referecircncia da Assistecircncia Social) e atores natildeo

estatais (no caso um Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos gerenciado por uma

OSC) na provisatildeo da accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia social

A primeira consideraccedilatildeo a ser feita diz respeito agrave configuraccedilatildeo da rede socioassistencial

em Satildeo Paulo como exemplo para anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica jaacute que a provisatildeo dos serviccedilos eacute

executada quase em sua totalidade pelas OSCs por meio de contratos estabelecidos com a

25

administraccedilatildeo municipal (Costa 2016 p 76) Essa caracteriacutestica confere certa

excepcionalidade na operacionalizaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) na

metroacutepole paulista5 Isso natildeo significa que os serviccedilos sejam ldquoterceirizadosrdquo como se costuma

argumentar na literatura Uma anaacutelise mais detalhada dos processos e interaccedilotildees entre esses

diferentes atores como a realizada por Brettas (2016 citada por Costa 2016 pp 77-78) revela

a existecircncia de uma ldquorede socioassistencial do SUAS uacutenica de finalidade puacuteblica independente

da natureza da organizaccedilatildeo ofertante do serviccedilordquo Haacute diversos exemplos que ilustram essa

situaccedilatildeo de maneira mais adequada do que a simples ideia de ldquoterceirizaccedilatildeordquo (que pressupotildee a

centralidade do Estado na realizaccedilatildeo da poliacutetica e ignora a diversidade de OSCs de tensotildees e

processos que materializam a accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia) Para resumir basta ressaltar que

as OSC satildeo muito diversas Geralmente satildeo associaccedilotildees ciacutevicas ligadas a grupos com declarada

vocaccedilatildeo para a accedilatildeo social como setores comunitaacuterios da Igreja Catoacutelica associaccedilotildees de

moradores ou grupos beneficentes e humanitaacuterios Tambeacutem podem ser associaccedilotildees poliacuteticas

como movimentos sociais tradicionais com maior ou menor enraizamento no territoacuterio onde

atuam Desse modo o estudo da accedilatildeo puacuteblica no niacutevel local deve considerar a accedilatildeo de ambos

atores estatais e natildeo estatais em relaccedilatildeo agrave dinacircmica socioterritorial na qual estatildeo inseridos

(Costa 2016 p 78)

Como afirma Bichir (2018 p 54) tambeacutem a ldquoregulamentaccedilatildeo das organizaccedilotildees eacute

definida na interaccedilatildeo entre burocratas da Secretaria Municipal de Assistecircncia e atores ligados

agraves OSCs e ocorre tanto em espaccedilos formais como o conselho e o foacuterum da aacuterea quanto em

arenas informaisrdquo Outro exemplo nesse sentido satildeo as conferecircncias autocircnomas tambeacutem

denominadas ldquoConferecircncias Livresrdquo ldquoCiacutevicasrdquo ou ldquoDemocraacuteticasrdquo que satildeo realizadas por um

conjunto de atores das OSCs ligados agrave poliacutetica de assistecircncia para discutir caminhos da accedilatildeo

puacuteblica Isso significa que a relaccedilatildeo entre atores estatais eacute muito mais complexa do que supotildee

uma simples ldquoterceirizaccedilatildeordquo pois a dinacircmica da accedilatildeo puacuteblica inclui tensotildees disputas e

capacidades institucionais de ambos os atores envolvidos

Ao observarmos essas situaccedilotildees de conflito veremos que elas satildeo marcadas por lutas

por reconhecimento Um exemplo observado durante a pesquisa empiacuterica foi a disputa

linguiacutestica sobre como definir a relaccedilatildeo entre esses atores enquanto as burocratas da

administraccedilatildeo direta apregoavam o caraacuteter de ldquoconvecircniordquo as representantes da OSC insistiam

na ideia de ldquoparceriardquo O primeiro termo diferencia as posiccedilotildees e ressalta o trabalho burocraacutetico

da administraccedilatildeo puacuteblica enquanto o segundo termo por sua vez ldquosupotildee que obrigaccedilotildees dos

dois lados para aleacutem do decretordquo (Costa 2016 p 124) Em ambos os casos haacute para aleacutem das

5 Essa caracteriacutestica do caso paulistano eacute analisada entre outras por Bichir (2018)

26

tensotildees e disputas a reivindicaccedilatildeo de que sejam reconhecidas as contribuiccedilotildees e realizaccedilotildees

(terceira esfera do reconhecimento) de cada ator para a efetivaccedilatildeo da poliacutetica socioassistencial6

Aleacutem da natureza da relaccedilatildeo entre os atores envolvidos na accedilatildeo puacuteblica outros termos

satildeo ressignificados nas lutas por reconhecimento dos atores que realizam a accedilatildeo puacuteblica no

cotidiano tais como a noccedilatildeo de ldquoporta de entradardquo e de ldquocidadaniardquo (Costa 2016)

Tambeacutem as capacidades institucionais e a discricionariedade desses atores devem ser

observadas enquanto ordens de reconhecimento institucionalizadas Ficou patente na pesquisa

empiacuterica que determinadas OSCs possuem motivaccedilotildees morais para o desenvolvimento do

trabalho assistencial (uma vocaccedilatildeo religiosa por exemplo) e podem mobilizar determinados

recursos (financeiros e humanos como doaccedilotildees e voluntariado) para aleacutem daquilo que recebem

da parceria com o poder puacuteblico Dessa forma natildeo eacute descabido levantar a seguinte hipoacutetese os

baixos repasses financeiros feitos pela administraccedilatildeo puacuteblica para as OSCs acabam forccedilando

essas uacuteltimas a complementarem os recursos necessaacuterios para garantir a accedilatildeo puacuteblica

assistencial enquanto totalidade (para aleacutem dos termos estritos dos contratos estabelecidos)

assim o montante de recursos mobilizados pela accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia acaba sendo maior

do que aquele destinado pelos orccedilamentos puacuteblicos de modo que as decisotildees e orientaccedilotildees

sobre quais caminhos devem ser seguidos pela poliacutetica de assistecircncia social acabam sendo

motivo de intensas lutas por reconhecimento entre diferentes atores

Por fim uma uacuteltima consideraccedilatildeo possiacutevel de ser feita a partir da pesquisa empiacuterica

consiste em observar as demandas de reconhecimento natildeo apenas das trabalhadoras das

poliacuteticas7 mas tambeacutem da populaccedilatildeo usuaacuteria Nesse caso podemos ir aleacutem das duas esferas

puacuteblicas do reconhecimento (direito e estima social) e acrescentar tambeacutem a relevacircncia de

observar as lutas por reconhecimento na esfera das relaccedilotildees pessoais (amor) Afinal como

argumenta Honneth (2003 p 177) ldquoa experiecircncia intersubjetiva do amor constitui o

pressuposto psiacutequico do desenvolvimento de todas as outras formas de autorrespeitordquo

constituindo portanto a base indispensaacutevel para a participaccedilatildeo autocircnoma na vida puacuteblica

Para uma pessoa que busca os serviccedilos da assistecircncia social o simples fato de ser bem recebida

respeitada e acolhida pelas teacutecnicas possui consequecircncias profundas em relaccedilatildeo agrave validaccedilatildeo de

suas pretensotildees normativas Receber o devido reconhecimento como diz Charles Taylor

natildeo eacute apenas uma cortesia mas uma necessidade humana vital Assim podemos questionar as

accedilotildees dos serviccedilos socioassistenciais natildeo apenas quanto aos impactos produzidos nas famiacutelias e

6 Para mais detalhes sobre esse exemplo ver o capiacutetulo 7 (toacutepico 73) em Costa (2016) 7 Para mais detalhes sobre essas demandas conferir o capiacutetulo 7 (toacutepico 71 subtoacutepico ldquoenfrentando as dificuldades

do trabalho precarizadordquo) em Costa (2016) E importante notar que a pesquisa revelou naquele momento aspectos

de precarizaccedilatildeo do trabalho relativamente maiores no acircmbito da administraccedilatildeo direta do que no acircmbito da OSC

contrariamente ao que de modo geral tem sido observado na literatura

27

nos territoacuterios mas tambeacutem com relaccedilatildeo ao que pode e deve ser feito nos momentos de

atendimento individual onde deveria predominar a ldquoseguranccedila de acolhidardquo entendida natildeo

como um mero instrumento ldquoteacutecnicordquo mas como uma verdadeira abertura para o

reconhecimento do outro em suas necessidades e capabilidades Penso que este eacute um caminho

que vale a pena a ser seguido por quaisquer profissionais que atuam nos serviccedilos puacuteblicos da

assistecircncia social uma formaccedilatildeo criacutetica da sociedade comeccedila pela compreensatildeo do potencial

contido nos encontros intersubjetivos e por aiacute que devemos caminhar (Costa 2016 p 154)

Consideraccedilotildees finais

Os argumentos apresentados neste capiacutetulo pretendem servir como um convite para a

reflexatildeo sobre o potencial da articulaccedilatildeo entre uma teoria criacutetica do reconhecimento

intersubjetivo e o campo de anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica Esse exerciacutecio do pensamento visto sob a

perspectiva da Psicologia Social Criacutetica poderaacute ser uma via bastante promissora para explicar

a dinacircmica das poliacuteticas puacuteblicas

Diferente de outras propostas que tomam a poliacutetica puacuteblica como um fato (uma

consequecircncia do Modo de Produccedilatildeo Capitalista) ou como processos mais ou menos

fragmentados (seja como dispositivos de controle dos corpos ou como construccedilatildeo social) com

base no referencial teoacuterico apresentado advogo por uma via alternativa isto eacute uma postura

pragmaacutetica e criacutetico-normativa diante da realidade dos processos de accedilatildeo puacuteblica e do

fundamento intersubjetivo das relaccedilotildees sociais que podem ser adequadamente entendidas como

lutas por reconhecimento reciacuteproco

Isso natildeo significa tomar uma via uacutenica em detrimento das outras linguagens que tecircm

procurado dizer algo sobre as poliacuteticas puacuteblicas desde a Psicologia Antes o que parece estar

em jogo agora eacute o alargamento dos recursos disponiacuteveis para a compreensatildeo da accedilatildeo puacuteblica

de forma mais ampla Considerando a complexidade do objeto o estudo psicossocial criacutetico

deveria se pautar natildeo apenas pela criacutetica das determinaccedilotildees sociais e intersubjetivas que

conformam as poliacuteticas do ldquoEstado em accedilatildeordquo mas tambeacutem deveria aprofundar a anaacutelise dos

processos de interaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais que constituem a accedilatildeo puacuteblica

Evidentemente a discussatildeo sobre todas as mediaccedilotildees e nuances dessa proposta natildeo se

encerra neste texto Na realidade se a Psicologia Social Criacutetica almeja dar alguma contribuiccedilatildeo

efetiva para a anaacutelise das poliacuteticas puacuteblicas entatildeo eacute fundamental buscar o diaacutelogo

comprometido e interessado com outras disciplinas Essa tarefa natildeo eacute faacutecil pois implica em

correr uma seacuterie de riscos como por exemplo a articulaccedilatildeo de linguagens que aparentemente

natildeo conversam tatildeo facilmente Mas eacute preciso ousar sem perder a modeacutestia em relaccedilatildeo ao alcance

do nosso saber afinal como escreveu Leandro Konder (2011 p 36) ldquoa realidade eacute sempre

28

mais rica do que o conhecimento que temos dela Haacute sempre algo que escapa agraves nossas siacutenteses

isso poreacutem natildeo nos dispensa do esforccedilo de elaborar siacutenteses se quisermos entender melhor a

nossa realidaderdquo

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30

Capiacutetulo 2

A assistecircncia social no Brasil uma anaacutelise histoacuterica das relaccedilotildees entre OSC

e Estado

Maria Fernanda Aguilar Lara

Mariana Prioli Cordeiro

Introduccedilatildeo

As parcerias entre organizaccedilotildees da sociedade civil (OSC) e o Estado na implementaccedilatildeo

de poliacuteticas puacuteblicas satildeo atualmente uma realidade na administraccedilatildeo puacuteblica brasileira Assim

temos presenciado o crescimento e a relevacircncia do papel que as OSC ocupam na implementaccedilatildeo

de serviccedilos em vaacuterias esferas de poliacuteticas puacuteblicas Concomitantemente na literatura de

diversos campos acadecircmicos (como na Ciecircncia Poliacutetica na Administraccedilatildeo Puacuteblica na

Sociologia no Direito na Psicologia Social no Serviccedilo Social etc) este tem sido um assunto

recorrente e latente tendo em vista como se estabelece este tipo de relaccedilatildeo puacuteblico-privada (ou

estatalnatildeo estatal) e quais os efeitos produzidos natildeo apenas no acircmbito das poliacuteticas puacuteblicas

mas tambeacutem na proacutepria configuraccedilatildeo de distintas dimensotildees da esfera puacuteblica e da esfera

privada

No acircmbito da poliacutetica puacuteblica de assistencial social a relaccedilatildeo entre organizaccedilotildees da

sociedade civil1 e Estado na execuccedilatildeo de accedilotildees assistenciais eacute antiga e se constitui enquanto um

eixo estruturante da poliacutetica Se recorrermos a uma anaacutelise histoacuterica sobre as praacuteticas

assistenciais no Brasil constataremos o papel central que as organizaccedilotildees da sociedade civil ndash

entidades filantroacutepicas organizaccedilotildees religiosas (sobretudo vinculadas ao catolicismo)

organizaccedilotildees natildeo-governamentais ndash ocuparam na promoccedilatildeo de serviccedilos e accedilotildees voltadas agraves

populaccedilotildees em situaccedilatildeo de vulnerabilidade e extrema pobreza Por outro lado historicamente

o Estado assumiu um papel residual e subsidiaacuterio atuando de forma perifeacuterica atraveacutes da

1 Haacute uma grande variedade de termos utilizados para se referir agraves ldquoinstituiccedilotildees privadas sem fins lucrativosrdquo que

satildeo conveniadas ao Estado para a implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas como organizaccedilotildees natildeo governamentais

(ONG) organizaccedilotildees sociais de interesse puacuteblico (OSCIP) entidades de assistecircncia social organizaccedilotildees da

sociedade civil (OSC) organizaccedilotildees sociais (OS) organizaccedilotildees do Terceiro Setor entre outros Contudo nos

documentos oficiais de caraacuteter teacutecnico-administrativo e regulatoacuterio os termos que aparecem com maior frequecircncia

satildeo ldquoentidades de assistecircncia socialrdquo e mais recentemente ldquoorganizaccedilotildees da sociedade civilrdquo Neste trabalho

optamos por utilizar o termo OSC para fazer menccedilatildeo agraves organizaccedilotildees conveniadas que ofertam serviccedilos

socioassistenciais

31

concessatildeo de subsiacutedios e subvenccedilotildees para as organizaccedilotildees Foi apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 e com a promulgaccedilatildeo da Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) em 1993 que a

assistecircncia social passou a ser concebida enquanto uma poliacutetica puacuteblica e um dever do Estado

se tornando um direito inalienaacutevel de toda(o) cidadatilde(o) (Amacircncio 2008 Marin 2012

Mestriner 2008)

Este cenaacuterio de ampla participaccedilatildeo das OSC na poliacutetica de assistecircncia social nos traz

algumas inquietaccedilotildees que tecircm se tornado inclusive tema de pesquisa de diferentes aacutereas Aqui

lanccedilaremos matildeo de algumas perguntas que se constituem como importantes eixos

mobilizadores deste trabalho2 como ocorreu a participaccedilatildeo das OSC na histoacuteria da assistecircncia

social Qual o papel que as OSC ocupam atualmente na assistecircncia Como eacute tratada a relaccedilatildeo

entre as OSC e o Estado nas principais normativas que regem esta poliacutetica puacuteblica

Desse modo o objetivo deste capiacutetulo eacute discutir o processo de constituiccedilatildeo da poliacutetica

puacuteblica de assistecircncia social no Brasil de modo a analisar como ocorreu a participaccedilatildeo do

Estado e das organizaccedilotildees da sociedade civil (OSC) na construccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica3 De

forma mais especiacutefica buscamos discorrer sobre (I) a participaccedilatildeo das organizaccedilotildees da

sociedade civil na assistecircncia social (II) o processo de consolidaccedilatildeo e regulamentaccedilatildeo da

assistecircncia enquanto uma poliacutetica puacuteblica Em termos metodoloacutegicos utilizamos duas

estrateacutegias principais para a construccedilatildeo desta narrativa (a) revisatildeo da literatura que discute a

poliacutetica de assistecircncia social no Brasil (b) levantamento e anaacutelise documental de normativas

que regulamentam a aacuterea da assistecircncia social principalmente daquelas que versam sobre os

convecircnios firmados com as OSC

Tendo em vista o escopo deste livro podemos lanccedilar matildeo de mais duas perguntas com

as quais tambeacutem pretendemos dialogar qual a importacircncia do estudo da poliacutetica puacuteblica de

assistecircncia social a partir da Psicologia Social Qual seria a contribuiccedilatildeo deste campo

acadecircmico para o estudo desta poliacutetica puacuteblica De forma breve podemos apresentar algumas

consideraccedilotildees que julgamos relevantes Em primeiro lugar compreendemos que houve um

2 Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla de mestrado que estudou o discurso de profissionais do

Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) sobre as estabelecidas entre OSC e Estado na poliacutetica de assistecircncia

social no municiacutepio de Satildeo Paulo A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Psicologia Social do Instituto de

Psicologia da USP sob orientaccedilatildeo da Profa Dra Mariana Prioli Cordeiro 3 Neste trabalho partirmos da perspectiva de poliacutetica puacuteblica como um ldquocampo de conhecimento que busca ao

mesmo tempo ldquocolocar o governo em accedilatildeordquo eou analisar essa accedilatildeo (variaacutevel independente) e quando necessaacuterio

propor mudanccedilas no rumo ou curso dessas accedilotildees (variaacutevel dependente)rdquo (Souza 2006 p 26) Neste sentido o

estudo das poliacuteticas puacuteblicas vai desde a formulaccedilatildeo implementaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo agrave anaacutelise dos processos

relacionais dos atores envolvidos e dos desenhos institucionais que perpassam a construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

como um fenocircmeno amplo e complexo (Farah 2016 Marques 2013)

32

aumento significativo no nuacutemero de psicoacutelogos(as) que atuam na assistecircncia social Este

nuacutemero acompanhou o proacuteprio crescimento da aacuterea aumentando consideravelmente a partir da

publicaccedilatildeo da Norma Operacional Baacutesica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RHSUAS)

ndash que prevecirc a contrataccedilatildeo de psicoacutelogos(as) nas equipes de referecircncias de diversos serviccedilos do

SUAS De acordo com Mariana Cordeiro Bernardo Svartman e Laura Souza (2018) em 2017

eram cerca de 22 mil profissionais de psicologia atuantes na assistecircncia social ou seja cerca

de 8 dos(as) psicoacutelogos(as) em atividade no Brasil Concomitantemente presenciamos

tambeacutem um aumento no nuacutemero de pesquisas em Psicologia que tratam sobre a assistecircncia

social (Cordeiro Svartman amp Souza 2018)

Destarte grande parte dos artigos e trabalhos acadecircmicos que versam sobre a Psicologia

na assistecircncia social tem tido como foco a atuaccedilatildeo profissional nos diversos serviccedilos do SUAS

Certamente este eacute um assusto bastante relevante e fundamental para a aacuterea tendo em vista a

importacircncia da praacutetica profissional da Psicologia para o funcionamento desta poliacutetica puacuteblica

Poreacutem acreditamos ser fundamental que as pesquisa em Psicologia expandam os objetos de

estudos vinculados agrave assistecircncia tratando de assuntos como construccedilatildeo de normativas do

SUAS espaccedilos de controle social anaacutelise de normativas e regulamentaccedilotildees gestatildeo e

operacionalizaccedilatildeo da poliacutetica anaacutelise institucional da estruturaccedilatildeo da aacuterea relaccedilatildeo puacuteblico-

privada na assistecircncia entre outros Todos estes aspectos interferem na configuraccedilatildeo da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica e por conseguinte afetam a atuaccedilatildeo dos(as)

psicoacutelogos(as) nos serviccedilos

Neste sentido acreditamos que satildeo aspectos relevantes que podem se tornar temas de

pesquisa da Psicologia Afinal em todos eles haacute a presenccedila de pessoas ndash gestores(as)

trabalhadores(as) poliacuteticos usuaacuterios(as) ndash que interagem em processos constantes de

negociaccedilotildees disputas e pactuaccedilotildees de acordos necessaacuterios para a operacionalizaccedilatildeo da poliacutetica

nos mais diferentes niacuteveis e instacircncias Em acordo com Peter Spink (2018) ldquoconsiderando que

governos e equipes de agecircncias puacuteblicas satildeo compostos por pessoas podemos presumir que as

accedilotildees foram acompanhadas e fundadas em conversas ndash muitas conversas Decisotildees foram

tomadas escolhas feitas novas materialidades e socialidades produzidasrdquo (P Spink 2018 p

19) estabelecendo a institucionalidade que rege as poliacuteticas puacuteblicas Portanto na nossa

concepccedilatildeo o estudo das institucionalidades eacute tambeacutem um objeto de estudo da Psicologia

Desta forma neste capiacutetulo propomos o estudo da histoacuteria institucional da assistecircncia

social como poliacutetica puacuteblica a partir das contribuiccedilotildees da Psicologia Social Quando vamos

falar especificamente sobre o histoacuterico da poliacutetica de assistecircncia social podemos constatar que

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haacute uma vasta literatura acadecircmica que se debruccedilou sobre esta temaacutetica (Amacircncio 2008

Chiachio 2006 Cordeiro 2018 Cruz amp Guareschi 2009 Jacooud Bichir amp Mesquita 2017

Brettas 2016 Marin 2012 Sposati Bonetti Yazbek amp Falcatildeo 1987) que narra de diversas

maneiras e a partir de diferentes enfoques os acontecimentos que configuram a estruturaccedilatildeo da

assistecircncia social como uma poliacutetica puacuteblica

Na nossa concepccedilatildeo existem muitas formas de narrar uma histoacuteria dando maior ou

menor destaque a eventos e fatos a partir dos nossos objetivos da nossa visatildeo de mundo do

desenho da pesquisa e de outros fatores que constrangem e influenciam a forma em como uma

narrativa seraacute apresentada Neste trabalho buscamos construir uma narrativa tendo como lente

a Psicologia Social de perspectiva construcionista (Ibantildeez 2001 2003 Intildeiguez 2003 M J

Spink 2010 P Spink 2018) Nesta perspectiva sujeitos e objetos satildeo resultantes de

convenccedilotildees e praacuteticas sociais portanto social e historicamente produzidos (Intildeiguez 2001

2003) Parte-se do princiacutepio de que a ldquorealidaderdquo eacute mediada por processos que estatildeo

condicionados pelas interaccedilotildees linguiacutesticas e socioculturais impossibilitando a apreensatildeo de

uma ldquoessecircncia naturalrdquo das ldquocoisasrdquo que conformam o mundo (Ibantildeez 2003 M J Spink

2010)

Nesta forma de compreender o mundo as proacuteprias poliacuteticas puacuteblicas satildeo um produto

social que foi historicamente construiacutedo por meio das interaccedilotildees linguiacutesticas Nas palavras de

Peter Spink (2018) poliacutetica puacuteblica ldquoeacute uma ferramenta discursiva ou um conceito que

utilizamos para conversar sobre o que governos fazem dizem que querem mudar ou priorizar

e pela mesma loacutegica ndash porque a falta de accedilatildeo eacute tambeacutem accedilatildeo ndash aquilo que governos natildeo querem

fazer ou que natildeo querem mudar ou priorizarrdquo (Spink 2018 pp 13-14) Neste sentido a partir

da perspectiva construcionista damos ecircnfase ao estudo do uso das diferentes linguagens que

conformam o funcionamento das poliacuteticas puacuteblicas tendo em vista a compreensatildeo da ldquoformardquo

como satildeo produzidas e dos ldquoefeitosrdquo que produzem nos sujeitos envolvidos

Neste estudo em especiacutefico daremos ecircnfase no estudo da ldquolinguagem normativardquo que

estrutura a assistecircncia social ou seja na anaacutelise das normas leis diretrizes que regem esta

poliacutetica puacuteblica De forma complementar utilizamos como base a literatura acadecircmica que

tratou do mesmo objeto Assim a histoacuteria que seraacute narrada expotildee fatos acontecimentos trechos

discursivos que apresentam uma certa linha argumentativa com foco na participaccedilatildeo das OSC

no processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica Desse modo escolhemos tratar a assistecircncia social sob

a oacutetica da institucionalidade puacuteblica ou seja daquilo que foi ou natildeo incorporado nas accedilotildees do

Estado Nesta perspectiva o Estado ndash que eacute composto por muacuteltiplos atores abrangendo

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teacutecnicos(as) gestores(as) governos burocracias instituiccedilotildees normativas e legislaccedilotildees etc ndash

assume uma centralidade na narrativa sendo colocado como agente principal ou sujeito ldquoda

accedilatildeordquo por ser protagonista dos eventos que seratildeo narrados Entretanto a despeito da escolha

narrativa se centrar na oacutetica da institucionalidade ndash afinal marcos institucionais satildeo importantes

para compreender a dinacircmica atual da poliacutetica ndash buscamos tambeacutem discutir outras

possibilidades de pensar a consolidaccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica tentando expor diferentes

perceptivas e olhares sobre a relaccedilatildeo entre OSC e Estado na implementaccedilatildeo da poliacutetica de

assistecircncia social Cabe destacar que os documentos utilizados para a construccedilatildeo desta narrativa

foram analisados como ldquodocumentos de domiacutenio puacuteblicordquo

Os documentos de domiacutenio puacuteblico satildeo produtos sociais tornados puacuteblicos Eticamente estatildeo

abertos para anaacutelise por pertencerem ao espaccedilo puacuteblico por terem sido tornados puacuteblicos de

uma forma que permite a responsabilizaccedilatildeo Podem refletir as transformaccedilotildees lentas em

posiccedilotildees e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simboacutelicos que permeiam o dia a

dia ou no acircmbito das redes sociais pelos agrupamentos e coletivos que datildeo forma ao informal

refletindo o ir e vir de versotildees circulantes assumidas ou advogadas (P Spink 2013 p 112)

A histoacuteria que seraacute apresentada tem por objetivo lanccedilar luz a uma perspectiva diferente

de se compreender a participaccedilatildeo das OSC no processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica Em alguns

trabalhos que tratam sobre a mesma temaacutetica o processo de participaccedilatildeo das OSC eacute visto como

uma ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal ou um processo de ldquoterceirizaccedilatildeordquo (Perez 2005 Souza

2016 Souza 2017 T Cordeiro 2017 Pereira 2015 Reis 2013 Souza 2017) Em outros

momentos a atuaccedilatildeo das OSC eacute associada manutenccedilatildeo de resquiacutecios de caridade e filantropia

(Nunes 2010 Souza 2017) Aqui pretendemos apresentar mais uma possibilidade de

compreender a participaccedilatildeo das OSC Como seraacute exposto a seguir constataremos que as OSC

atuam na assistecircncia muito antes desta aacuterea se tornar uma poliacutetica puacuteblica e algumas aturam no

processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica sendo atores importantes na luta em prol da assistecircncia

social

Assim iremos argumentar que a participaccedilatildeo das OSC na assistecircncia social natildeo se

constitui em essecircncia enquanto um processo de ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal A

desresponsabilizaccedilatildeo por parte do Estado com a poliacutetica de assistecircncia social no Brasil ocorreu

em muitos momentos da histoacuteria e ainda ocorre nos tempos atuais Poreacutem na nossa

compreensatildeo a desresponsabilizaccedilatildeo estaacute vincula agrave falta de centralidade que a assistecircncia ocupa

nas agendas governamentais e natildeo necessariamente agrave existecircncia de uma rede socioassistencial

mista composta por instituiccedilotildees estatais e natildeo estatais

Por fim no que concerne a estrutura deste capiacutetulo dividiremos o trabalho em trecircs

partes aleacutem da presente introduccedilatildeo Na primeira parte nos remetemos agraves primeiras accedilotildees

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socioassistenciais iniciadas no periacuteodo colonial perpassando o processo de institucionalizaccedilatildeo

da assistecircncia ao longo do seacuteculo XX Na segunda parte apresentamos a consolidaccedilatildeo da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica no final dos anos 1980 junto agrave efetivaccedilatildeo do SUAS

nos anos 2000 E na terceira parte apresentaremos a linha argumentativa que o texto propotildee

1 Histoacuterico das relaccedilotildees entre organizaccedilotildees da sociedade e Estado do Brasil Colonial agrave

Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS)

Ao remontarmos agraves primeiras praacuteticas socioassistenciais no Brasil durante a eacutepoca

Colonial vemos que as accedilotildees ndash como dar alimento abrigo e atendimento meacutedico aos pobres ndash

eram executadas fundamentalmente por instituiccedilotildees vinculadas agrave Igreja Catoacutelica pautadas

pelos preceitos da caridade e benevolecircncia (Cruz amp Guareschi 2009) Como exemplo temos a

criaccedilatildeo da primeira ldquoRoda dos Expostosrdquo4 no seacuteculo XVIII em Salvador como uma demanda

das autoridades brasileiras diante do crescente nuacutemero de bebecircs abandonados nas ruas

A Santa Casa de Misericoacuterdia vinculada agrave Igreja ficou responsaacutevel pela realizaccedilatildeo dos

trabalhos da ldquoRodardquo recebendo subsiacutedios da Coroa para o seu funcionamento Vemos nesta

iniciativa como destacado por Lilian Cruz e Neuza Guareschi (2009) um marco histoacuterico para

pensarmos nas relaccedilotildees entre sociedade civil e Estado ao longo do processo de constituiccedilatildeo das

primeiras accedilotildees socioassistenciais em que a sociedade civil guiada pelo princiacutepio da caridade

tomava a iniciativa e o Governo entrava com o financiamento das accedilotildees Dessa forma

ldquoconstatamos que as alianccedilasparcerias entre Estado e sociedade civil satildeo antigas e atravessam

a histoacuteria nas quais a Igreja Catoacutelica marca significativa presenccedilardquo (Cruz amp Guareschi 2009

p 20)

Ao avanccedilarmos na histoacuteria vemos que esta relaccedilatildeo entre Estado e Igreja continuou a

perpassar as accedilotildees assistenciais pois compreendia-se que o auxiacutelio aos pobres e a ldquocaridaderdquo

natildeo era uma funccedilatildeo a priori do poder puacuteblico Contudo a partir do final do seacuteculo XIX o

Brasil passou por importantes transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas ndash como por

exemplo o fim da escravidatildeo o aumento da matildeo de obra assalariada a chegada de imigrantes

de diversos paiacuteses o ecircxodo rural e o crescimento desordenado das cidades Tais transformaccedilotildees

provocaram graves problemas sociais vinculados ao alto iacutendice de desemprego e ao

4 A ldquoRoda dos Expostosrdquo era um dispositivo utilizado para o abandono de bebecircs sendo uma espeacutecie de tabuleiro

em forma ciliacutendrica fixado na janela das Casas de Misericoacuterdia Este dispositivo funcionava a partir de um

mecanismo giratoacuterio de forma a preservar a identidade das matildees que tocavam uma sineta avisando que um bebecirc

havia sido deixado na casa (Cordeiro 2018)

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crescimento da miseacuteria urbana Neste cenaacuterio o Estado ndash que ateacute entatildeo intervinha sobre a

pobreza majoritariamente a partir de seus aparelhos repressivos ndash comeccedilou a assumir o papel

de organismo ldquocivilizadorrdquo promotor e organizador de accedilotildees poliacuteticas que garantiam um

miacutenimo de coesatildeo social e ordem puacuteblica (Cordeiro 2018 Cruz amp Guareschi 2009 Sposati et

al 1987)

Seguindo tais transformaccedilotildees institucionais em 1942 temos a criaccedilatildeo da primeira

grande instituiccedilatildeo filantroacutepica de assistecircncia social no paiacutes a Legiatildeo Brasileira de Assistecircncia

(LBA) tendo em sua presidecircncia a primeira-dama Darcy Vargas A LBA foi inicialmente criada

para prestar assistecircncia agraves famiacutelias dos soldados que lutavam na Segunda Guerra e com o fim

da guerra a instituiccedilatildeo voltou-se para as populaccedilotildees em situaccedilatildeo de pobreza (Cruz amp Guareschi

2009 Sposati et al 1987) Como apresentado por Mariana P Cordeiro (2018) podemos

destacar duas caracteriacutesticas centrais da LBA (1) tratava-se de uma organizaccedilatildeo da sociedade

civil sem finalidade econocircmica que compreendia a assistecircncia social como uma accedilatildeo de ldquoboa

vontaderdquo e natildeo um direito agrave cidadania e (2) assegurava estatutariamente sua presidecircncia agrave

primeira-dama da Repuacuteblica instituindo assim o chamado ldquoprimeiro-damismordquo (Cordeiro

2018) Neste sentido percebe-se que o Estado mais uma vez delegou agraves organizaccedilotildees da

sociedade civil a responsabilidade pela execuccedilatildeo de accedilotildees de assistecircncia social pautando-se

agora na ldquoboa vontaderdquo das mulheres da alta sociedade e da esposa do governante

Continuando nosso relato histoacuterico podemos afirmar que o primeiro-damismo bem

como a filantropia e o assistencialismo marcaram as praacuteticas socioassistenciais nas deacutecadas

que se seguiram Ateacute final dos anos 1980 a assistecircncia social natildeo foi concebida enquanto uma

poliacutetica estruturada mas era entendida como ldquoum mix de accedilotildees dispersas e descontiacutenuas de

oacutergatildeos governamentais e instituiccedilotildees privadas nas quais o Estado figurou desde sempre um

papel subsidiaacuteriordquo (Amacircncio 2008 p 31) Eacute apenas no final dos anos 70 e iniacutecio dos anos 80

com o avanccedilo dos movimentos da sociedade civil pela redemocratizaccedilatildeo do paiacutes ndash apoacutes quase

vinte anos de autoritarismo e Ditadura Militar ndash que presenciamos transformaccedilotildees mais

significativas no debate puacuteblico em torno da assistecircncia social com a entrada de uma agenda

cidadatilde que ampararia as discussotildees para a formalizaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 (Cordeiro

2018 Ximenes Paula amp Barros 2009)

Podemos considerar a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 como um marco para a

consolidaccedilatildeo do papel do poder puacuteblico enquanto promotor de poliacuteticas sociais Um dos grandes

avanccedilos trazidos pela nova Constituiccedilatildeo foi a instituiccedilatildeo do chamado ldquotripeacute da Seguridade

Socialrdquo ndash a partir disso a promoccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de Sauacutede Previdecircncia Social e

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Assistecircncia Social se tornam um dever do Estado Por conseguinte a assistecircncia social (ao

menos no plano juriacutedico e discursivo) deixou de se pautar pelas noccedilotildees de caridade

benevolecircncia e filantropia dando lugar agraves noccedilotildees de cidadania direito e poliacutetica puacuteblica

(Cordeiro amp Sato 2017 Macedo et al 2011) Para Thais Marin (2012) a Constituiccedilatildeo de 1988

inaugurou uma nova fase no sistema de proteccedilatildeo social brasileiro que apesar de natildeo ter

significado o fim do legado do assistencialismo e das praacuteticas caritativasfilantroacutepicas se

apresentou como um importante marco simboacutelico e juriacutedico que iria ldquodisputarrdquo as concepccedilotildees

sobre assistecircncia social a partir dos princiacutepios da cidadania e dos direitos humanos

Outra contribuiccedilatildeo importante foi a instituiccedilatildeo da descentralizaccedilatildeo das poliacuteticas sociais

outorgando maior autonomia aos municiacutepios para a implementaccedilatildeo e adequaccedilatildeo das diretrizes

nacionais A partir da utilizaccedilatildeo de modelos federalistas com corresponsabilizaccedilotildees e

atribuiccedilotildees especiacuteficas dos trecircs niacuteveis de governos (uniatildeo estados e municiacutepios) as poliacuteticas

sociais passam a ser implementadas a partir de sistemas uacutenicos ndash com diretrizes nacionais

unitaacuterias que norteiam o processo de implementaccedilatildeo que deve se dar a partir da realidade dos

municiacutepios (Jaccoud Bichir amp Mesquita 2017)

Em confluecircncia com esta mudanccedila constitucional tivemos em 1993 a promulgaccedilatildeo da

Lei nordm 874293 intitulada de Lei Orgacircnica da Assistecircncia Social (LOAS) que estabeleceu

normas e criteacuterios para organizaccedilatildeo da assistecircncia social reafirmando a proteccedilatildeo social

enquanto um direito inalienaacutevel e um dever do Estado Em seu artigo 5ordm a LOAS define trecircs

diretrizes gerais que devem nortear o processo de construccedilatildeo da poliacutetica (1) descentralizaccedilatildeo

poliacutetico-administrativa para os Estados o Distrito Federal e os Municiacutepios e comando uacutenico

das accedilotildees em cada esfera de governo (2) participaccedilatildeo da populaccedilatildeo por meio de organizaccedilotildees

representativas na formulaccedilatildeo das poliacuteticas e no controle das accedilotildees em todos os niacuteveis (3)

primazia da responsabilidade do Estado na conduccedilatildeo da poliacutetica de assistecircncia social em cada

esfera de governo (Brasil 1993 2009)

Portanto o Estado deve conduzir e protagonizar o processo de construccedilatildeo e

implementaccedilatildeo da poliacutetica a partir de um ldquojogordquo coordenado pelos trecircs niacuteveis de governos

com ampla participaccedilatildeo popular em todo o processo Neste documento normativo o poder

puacuteblico reafirma o papel complementar das OSC na assistecircncia social reconhecendo-as

juridicamente como ldquoentidades e organizaccedilotildees de assistecircncia socialrdquo Assim afirma-se a

importacircncia das organizaccedilotildees para a construccedilatildeo e consolidaccedilatildeo da poliacutetica desde que se

adequem e passem a ser regidas por esta normativa conforme Art 6 ordm

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As accedilotildees na aacuterea de assistecircncia social satildeo organizadas em sistema descentralizado e

participativo constituiacutedo pelas entidades e organizaccedilotildees de assistecircncia social abrangidas por

esta lei que articule meios esforccedilos e recursos e por um conjunto de instacircncias deliberativas

compostas pelos diversos setores envolvidos na aacuterea (Brasil 1993)

Outro avanccedilo importante da LOAS foi instituir o Conselho Nacional de Assistecircncia

Social (CNAS) como oacutergatildeo superior de deliberaccedilatildeo colegiada da poliacutetica de assistecircncia social

de composiccedilatildeo paritaacuteria entre sociedade civil e governo Este oacutergatildeo eacute uma importante instacircncia

de pactuaccedilatildeo controle e deliberaccedilatildeo da assistecircncia social a niacutevel federal

Se paramos a nossa anaacutelise neste momento de consolidaccedilatildeo normativa da poliacutetica

percebemos que a trajetoacuteria histoacuterica da assistecircncia social no Brasil deixou muitas ldquomarcasrdquo e

ldquolegadosrdquo que certamente influenciaram a forma como o Estado compreendeu implementou e

consolidou o que naquele momento passou a ser uma poliacutetica puacuteblica Temos como exemplo

a ideia da assistecircncia social como qualquer accedilatildeo voltada a populaccedilotildees vulneraacuteveis (Mestriner

2008) as concepccedilotildees da assistecircncia social como caridade benevolecircncia clientelismo vinculada

a figura da primeira dama (Amacircncio 2008 Marin 2012) a falta de prioridade desta poliacutetica

nas agendas governamentais (T Cordeiro 2017) entre outros

O reconhecimento da assistecircncia social como uma poliacutetica de ampliaccedilatildeo da cidadania ndash

circunscrita na Constituiccedilatildeo de 1988 e na LOAS ndash foi um importante meio de disputa discursiva

na concepccedilatildeo da assistecircncia social jaacute que a partir deste momento as organizaccedilotildees que

desejassem firmar convecircnios e parcerias com a administraccedilatildeo puacuteblica deveriam fazecirc-lo a partir

das disposiccedilotildees contidas em lei se pautando pelos princiacutepios dispostos em ambas as

normativas Portanto tendo como premissa central a noccedilatildeo de cidadania Certamente o processo

de mudanccedila de paradigma da assistecircncia da caridadefilantropia agrave cidadaniapoliacutetica puacuteblica

natildeo seria realizado de forma abrupta e imediata mas como todo processo de transformaccedilatildeo

seria gradual processual e dialoacutegico incorporado pelos indiviacuteduos a partir de diferentes formas

e significaccedilotildees

2 O periacuteodo poacutes-LOAS e o desafio da construccedilatildeo o Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social

A partir da promulgaccedilatildeo da LOAS em 1993 passou a ser de competecircncia dos governos

(nos trecircs niacuteveis) implementar e consolidar as normativas e diretrizes contidas em lei Esperava-

se assim o compromisso real e contiacutenuo por parte do poder puacuteblico na construccedilatildeo da poliacutetica

de assistecircncia social ou seja a priorizaccedilatildeo desta agenda nos planos de governo e

consequentemente na disposiccedilatildeo orccedilamentaacuteria necessaacuteria para a sua implementaccedilatildeo (Amacircncio

2008) Contudo a deacutecada que sucedeu a LOAS natildeo foi um periacuteodo de grandes avanccedilos na

39

consolidaccedilatildeo da poliacutetica de assistecircncia social (Chiachio 2006 Marin 2012 Mestriner 2008)

Pelo contraacuterio pouco sistemaacuteticas foram as iniciativas em prol da construccedilatildeo e consolidaccedilatildeo

desta poliacutetica

Juacutelia Amacircncio (2008) afirmou que apoacutes a Constituiccedilatildeo de 88 o Governo Federal passou

a dar ecircnfase a construccedilatildeo de programas de transferecircncia de renda como forma de enfrentamento

agrave pobreza Isto ficou evidente com a criaccedilatildeo de uma seacuterie de programas como o Fundo de

Combate agrave Pobreza o Bolsa Alimentaccedilatildeo o Agente Jovem o Auxiacutelio gaacutes o Bolsa Escola entre

outros Damos destaque para a criaccedilatildeo em 2003 do Programa Bolsa Famiacutelia que se constituiu

como um dos principais programas de transferecircncia de renda no paiacutes Na mesma perspectiva

Luciana Jaccoud Renata Bichir e Ana Mesquita (2017) salientaram que nos anos 1990

tivemos alguns avanccedilos normativos ndash como a implementaccedilatildeo do primeiro benefiacutecio assistencial

de acircmbito nacional o benefiacutecio de prestaccedilatildeo continuada (BPC) em 1996 e a mobilizaccedilatildeo da

sociedade em torno da construccedilatildeo da Conferecircncia Nacional de Assistecircncia Social em 1995

Entretanto poucos foram os avanccedilos observados ldquono que se refere agrave afirmaccedilatildeo da gestatildeo

puacuteblica e compartilhada em niacutevel federativo e tampouco no campo dos serviccedilos entatildeo

majoritariamente operados por entidades privadas sem fins lucrativosrdquo (Jaccoud Bichir amp

Mesquita 2017 p 41)

No entanto a implementaccedilatildeo das poliacuteticas de Assistecircncia Social preconizadas pela

LOAS ocorreu em um momento de avanccedilo do projeto neoliberal no cenaacuterio internacional

(Coutinho 2011) preconizando a ldquodiminuiccedilatildeordquo do Estado e restringindo a sua capacidade de

intervenccedilatildeo sobre a economia e a sociedade Dessa forma os governos que se seguiram nos

anos de 1990 natildeo incluiacuteam em sua agenda prioritaacuteria a construccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica de

assistecircncia social que consolidasse as prerrogativas da LOAS Certamente o cenaacuterio econocircmico

e poliacutetico de instabilidades influenciou este processo de poucos avanccedilos

Foi apenas na deacutecada seguinte nos anos 2000 que presenciamos a efetivaccedilatildeo das

diretrizes estabelecidas pela LOAS com a publicaccedilatildeo da Poliacutetica Nacional de Assistecircncia

Social (PNAS) em 2004 ndash formulada a partir do acuacutemulo de amplas discussotildees com a sociedade

civil organizada em torno da IV Conferecircncia Nacional de Assistecircncia Social realizada em 2003

(Brasil 2005)

Por meio da PNAS tivemos a retomada das diretrizes da LOAS e em 2005 iniciou-se

o processo de construccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) ndash que tem como

objetivo a integraccedilatildeo e articulaccedilatildeo da rede socioassistencial em seus diferentes niacuteveis

40

(municipal estadual e federal) regulamentando tambeacutem a participaccedilatildeo da sociedade civil para

a efetivaccedilatildeo do controle social5

No texto da PNAS foi afirmado que a proteccedilatildeo social deve garantir as seguranccedilas de

sobrevivecircncia (de rendimento e de autonomia) de acolhida e de conviacutevio ou vivecircncia familiar

Para materializar estas prerrogativas a seguranccedila de renda deve ser provida pela concessatildeo de

benefiacutecios e as outras seguranccedilas devem ser garantidas atraveacutes da oferta de serviccedilos programas

e projetos organizada a partir de dois niacuteveis de complexidade a Proteccedilatildeo Social Baacutesica (PSB)

e a Proteccedilatildeo Social Especial (PSE) A gestatildeo e implementaccedilatildeo destes programas ficariam ldquosob

encargo de equipamentos puacuteblicos diferenciados os Centros de Referecircncia de Assistecircncia

Social (CRAS) e os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) aleacutem

da rede puacuteblica e privada voltada a puacuteblicos e atendimentos especiacuteficosrdquo (Jacooud Bichir amp

Mesquita 2017 p 42)

Este documento tambeacutem versa sobre as relaccedilotildees estabelecidas entre Estado e sociedade

civil e afirma que diante dos problemas sociais que caracterizam a sociedade brasileira eacute

necessaacuterio que o Estado assuma a ldquoprimazia da responsabilidade em cada esfera de governo na

conduccedilatildeo da poliacutetica Por outro lado a sociedade civil participa como parceira de forma

complementar na oferta de serviccedilos programas projetos e benefiacutecios de Assistecircncia Social

Possui ainda o papel de exercer o controle social sobre a mesmardquo (Brasil 2005 p 47) Em

outro trecho importante consta que ldquosomente o Estado dispotildee de mecanismos fortemente

estruturados para coordenar accedilotildees capazes de catalisar atores em torno de propostas

abrangentes que natildeo percam de vista a universalizaccedilatildeo das poliacuteticas combinada com a garantia

de equidaderdquo (Brasil 2005 p 47) Neste sentido entendemos que as organizaccedilotildees da sociedade

civil vinculadas agrave assistecircncia social continuam sendo reconhecidas como agentes importantes

no processo de consolidaccedilatildeo da poliacutetica Contudo eacute ressaltado o seu papel complementar

cabendo ao Estado o papel protagonista e condutor na estruturaccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica

Nos anos que se seguiram presenciamos o aumento crescente na implementaccedilatildeo de

CRAS e CREAS Em algumas localidades este aumento da oferta de serviccedilos ocorreu por meio

de convecircnios com OSC Este cenaacuterio de aumento da provisatildeo indireta exigiu do poder puacuteblico

o aperfeiccediloamento dos instrumentais juriacutedicos que regulamentam a participaccedilatildeo das OSC na

rede socioassistencial (Amacircncio 2008 Bretas 2016 Jacooud Bichir e Mesquita 2017 Marin

2012) Desse modo em 2009 foi promulgada a Lei nordm 121012009 que desvinculou a

5 A organizaccedilatildeo do SUAS tambeacutem estaacute regulamentada pela Norma Operacional Baacutesica do SUAS (NOB-SUAS) e

pela Norma Operacional Baacutesica de Recursos do SUAS (NOB-RHSUAS) (Brasil 2005 2011)

41

concessatildeo do Certificado de Entidades Beneficentes de Assistecircncia Social (CEBAS)6 do

Conselho Nacional de Assistecircncia Social (CNAS) e atribui esta responsabilidade agrave cada

ministeacuterio setorial ou seja no caso na assistecircncia social passou a ser competecircncia do Ministeacuterio

de Desenvolvimento Social (MDS) a concessatildeo da certificaccedilatildeo Este movimento possibilitou

que o CNAS que acabava atuando numa loacutegica cartorial concedendo ou negando certificaccedilotildees

pudesse assumir de fato a sua atribuiccedilatildeo de oacutergatildeo superior de deliberaccedilatildeo controle social e

coordenaccedilatildeo da poliacutetica de Assistecircncia Social

Naquele mesmo ano tivemos a aprovaccedilatildeo da Tipificaccedilatildeo Nacional de Serviccedilos

Socioassistenciais (Brasil 2009) que estabeleceu padrotildees de organizaccedilatildeo e execuccedilatildeo dos

serviccedilos dividindo-os por niacuteveis de complexidade (PSB e PSE de meacutedia e alta complexidade)

Nesse documento constam paracircmetros miacutenimos de desenvolvimento e execuccedilatildeo dos serviccedilos

puacuteblicos de assistecircncia social que devem ser seguidos por todas as instituiccedilotildees que os executem

ndash sejam estatais ou natildeo estatais Ao estabelecer ldquoparacircmetros miacutenimosrdquo para a execuccedilatildeo dos

serviccedilos avanccedilou-se na consolidaccedilatildeo de uma rede uacutenica de assistecircncia social na qual todas as

instituiccedilotildees (estatais e natildeo-estatais) satildeo regidas pelas mesmas normativas que norteiam a

construccedilatildeo do SUAS

Seguindo a mesma perspectiva tivemos em 2012 a revisatildeo e atualizaccedilatildeo da LOAS que

em sua nova redaccedilatildeo institui o ldquoviacutenculo SUASrdquo e o Cadastro Nacional de Entidades de

Assistecircncia Social ldquoambos visando integrar a rede privada agraves normativas e agrave fiscalizaccedilatildeo

puacuteblicardquo (Jaccoud Bichir e Mesquita 2017 p 42) Desde entatildeo temos observado o aumento

da rede socioassistencial em niacutevel nacional seja por meio apenas da provisatildeo direta ou atraveacutes

da integraccedilatildeo de serviccedilos estatais e natildeo estatais Entretanto apesar de termos presenciado

avanccedilos na consolidaccedilatildeo de programas accedilotildees e serviccedilos na assistecircncia social a rede atualmente

implementada natildeo eacute suficiente para tratar as demandas sociais que caracterizam a realidade

brasileira

3 Analisando a participaccedilatildeo das OSC na poliacutetica de assistecircncia social

Em linhas gerais tentamos apresentar o histoacuterico do desenvolvimento da assistecircncia

social enquanto uma poliacutetica puacuteblica Certamente natildeo eacute consenso nem na literatura acadecircmica

6 O CEBAS eacute definido como um ldquoinstrumento que possibilita a organizaccedilatildeo usufruir da isenccedilatildeo das contribuiccedilotildees

sociais tais como a parte patronal da contribuiccedilatildeo previdenciaacuteria sobre a folha de pagamento e permite ainda a

priorizaccedilatildeo na celebraccedilatildeo de contratualizaccedilatildeoconvecircnios com o poder puacuteblico entre outros benefiacuteciosrdquo

Informaccedilatildeo retirada do site oficial do Ministeacuterio da cidadania ndash disponiacutevel em httpmdsgovbr acesso em

10022019

42

nem na arena poliacutetica o papel da assistecircncia social no sistema de proteccedilatildeo social brasileiro Ao

longo das deacutecadas a assistecircncia social ganhou diferentes posiccedilotildees e contornos em relaccedilatildeo agrave

priorizaccedilatildeo nas agendas dos governos e agrave proacutepria concepccedilatildeo do que seria esta aacuterea Ainda hoje

vemos que mesmo apoacutes 26 anos da promulgaccedilatildeo da LOAS e 31 anos da Constituiccedilatildeo de 88 a

ldquoidentidaderdquo da assistecircncia social eacute alvo de constantes disputas e ataques sendo necessaacuterio a

atuaccedilatildeo exaustiva de ativistas e militantes em prol da defesa da assistecircncia a partir das

prerrogativas destas normativas

Isto fica ainda mais evidente nas uacuteltimas gestotildees no Governo Federal principalmente

na gestatildeo de Michel Temer (2016-2018) que cortou significativamente os repasses direcionados

a assistecircncia social bem como suas accedilotildees se restringiram a fomentar o Programa Crianccedila Feliz

amplamente questionado por especialistas trabalhadores da assistecircncia por estar desvinculados

dos princiacutepios normativos do SUAS Outra importante medida sancionada por este governo

que afeta as poliacuteticas puacuteblicas como um todo foi a aprovaccedilatildeo da Emenda Constitucional 95 ndash

intitulada de PEC do teto de gastos durante sua tramitaccedilatildeo no Congresso Nacional Esta

emenda vincula os investimentos puacuteblicos ao crescimento do PIB por vinte anos ou seja

restringe o investimento em aacutereas sociais a despeito da atual condiccedilatildeo de subfinanciamento No

atual governo apesar de natildeo termos presenciado significativas mudanccedilas na assistecircncia social

ateacute este momento a proposta de reforma da previdecircncia se aprovada nos termos propostos iraacute

reconfigurar o sistema da proteccedilatildeo social restringindo ainda mais o alcance da poliacutetica de

assistecircncia social

No que diz respeito a oferta de serviccedilos socioassistenciais por meio de parcerias com

OSC haacute muitas controveacutersias (nos espaccedilos acadecircmicos e poliacuteticos) sobre o papel e a

centralidade destas organizaccedilotildees Gabriela Brettas (2016) que tambeacutem estudou a relaccedilatildeo entre

OSC e Estado na implementaccedilatildeo da Assistecircncia Social afirmou que existem trecircs momentos

sobre o entendimento do papel das OSC na poliacutetica de Assistecircncia Social Em um primeiro

momento na fase inicial de implementaccedilatildeo do SUAS havia uma visatildeo estatista da execuccedilatildeo

desta poliacutetica puacuteblica Entendia-se que implementaccedilatildeo da rede socioassistencial deveria ser

realizada unicamente atraveacutes de serviccedilos administrados de forma direta pelo poder puacuteblico As

organizaccedilotildees por outro lado eram associadas de forma generalizante a praacuteticas conservadoras

assistencialistas e filantroacutepicas Portanto vincular os serviccedilos agrave oferta pelas OSC seria atrelar

assistecircncia social a estas praacuteticas

Em um segundo momento em que o SUAS comeccedilou a ganhar contornos mais

estruturados a administraccedilatildeo puacuteblica passou a entender que haacute uma rede socioassistencial

43

privada do SUAS ou seja que a despeito da implementaccedilatildeo direta (realizada primordialmente

atraveacutes dos CRAS e CREAS) as organizaccedilotildees continuaram ofertando serviccedilos especiacuteficos a

populaccedilotildees em situaccedilatildeo de vulnerabilidade Neste sentido as OSC passam a ser vistas como

instituiccedilotildees que tem expertise e capilaridade Concomitantemente algumas OSC

(principalmente as grandes) participaram de espaccedilos nacionais de construccedilatildeo da poliacutetica

reivindicando o seu lugar no sistema Por fim no terceiro momento a partir de 2011 entendeu-

se que as organizaccedilotildees satildeo importantes ficando evidente o discurso em prol de uma rede

socioassistencial do SUAS uacutenica Iniciou-se entatildeo um processo de aprimoramento das

regulamentaccedilotildees que tratam da relaccedilatildeo entre OSC e Estado (Brettas 2016)

A autora destacou que estas concepccedilotildees ainda hoje permeiam as discussotildees na

assistecircncia social Evidentemente isto natildeo eacute ldquoum processo no qual essas ideias se substituem

no tempo de modo linear ao contraacuterio envolve dinacircmicas complexas e tensotildees entre as distintas

concepccedilotildees poliacuteticas a respeito do papel do Estado e das OSCrdquo (Brettas 2016 p 151) Em

complementariedade a autora apresentou que

Questotildees como o ldquotamanhordquo do Estado as implicaccedilotildees nos espaccedilos de autonomia e papeis das

OSC (de controle social de prestadoras de serviccedilo de articulaccedilatildeo intersetorial etc) ou sobre a

loacutegica de vinculaccedilatildeo e participaccedilatildeo das OSC ao SUAS (seu lugar institucional no sistema) por

exemplo natildeo satildeo consensuais e continuam em disputa nos espaccedilos de reflexatildeo e construccedilatildeo da

poliacutetica ndash na academia entre as equipes da SNASMDS no CNAS entre as OSC nos conselhos

e oacutergatildeos gestores locais de assistecircncia ou ainda nas instacircncias de discussatildeo e deliberaccedilatildeo sobre

as relaccedilotildees entre Estado e OSC em sentido mais abrangente (como a SGPR ou a Plataforma do

Marco Regulatoacuterio e tambeacutem nos foacuteruns em acircmbito local) (Brettas 2016 p 152)

Seguindo esta linha de pensamento Julia Amacircncio (2008) destacou que se por um lado

a participaccedilatildeo das OSC na implementaccedilatildeo de serviccedilos socioassistenciais aumenta por outro a

relaccedilatildeo que o Estado estabelece com estas organizaccedilotildees natildeo se daacute nos mesmos moldes daquelas

historicamente construiacutedas antes da promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 Como descrito

anteriormente a oferta de serviccedilos era feita de forma fragmentada sendo considerada como

qualquer accedilatildeo a populaccedilotildees vulneraacuteveis baseadas em diferentes princiacutepios (da cidadania

filantropia assistencialismo primeiro-damismo)

Apoacutes a promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 e da LOAS a luta pela consolidaccedilatildeo da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica caminhou num sentido contraacuterio Buscou-se a

construccedilatildeo de um sistema uacutenico com diretrizes princiacutepios e paracircmetros universais pautados

nos preceitos da cidadania e do direito social Disputou-se assim a ldquoidentidaderdquo da assistecircncia

social tentando imprimir o caraacuteter de poliacutetica puacuteblica de direito de todo cidadatildeo e dever do

Estado Esta ldquodisputa identitaacuteriardquo natildeo apenas chegou nas OSC que ofertavam os serviccedilos mas

tambeacutem foi construiacuteda de forma ativa por muitas organizaccedilotildees que participaram dos espaccedilos

44

de construccedilatildeo da poliacutetica Neste sentido vemos que a relaccedilatildeo entre Estado e sociedade civil natildeo

se constroacutei a partir de relaccedilotildees unilaterais de passividade e atividade mas sim em um processo

dialoacutegico de muacutetua constituiccedilatildeo

Por outro lado isto natildeo quer dizer que acreditamos que natildeo houve

ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo por parte do poder puacuteblico como abordado por parte da literatura

(Souza 2016 Souza 2017 Perez 2005) Na nossa leitura isto aconteceu em muitos momentos

afinal a histoacuteria natildeo eacute linear e a construccedilatildeo natildeo foi puramente progressiva Tivemos governos

nos quais a assistecircncia social ganhou destaque na agenda poliacutetica com a maior disponibilidade

de recursos e governos que foram marcados por um momento de retraccedilatildeo e pouco investimento

Contudo nos parece que em alguns momentos a utilizaccedilatildeo do termo

ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estaacute associada apenas a realizaccedilatildeo de convecircnios e parcerias

Certamente a construccedilatildeo de parcerias com as OSC foi algo ldquorentaacutevelrdquo e ldquoconvenienterdquo para o

poder puacuteblico pois o governo comumente investe um montante de recuso financeiro

insuficiente para a execuccedilatildeo efetiva dos serviccedilos Contudo esta precarizaccedilatildeo ocorre tambeacutem

em serviccedilos da administraccedilatildeo direta em que haacute a contraccedilatildeo de uma equipe muito reduzida com

baixas remuneraccedilotildees para a execuccedilatildeo de um volume muito grande de trabalho Nesse sentido

compreendemos que a desresponsabilizaccedilatildeo estaacute associada agrave centralidade que a assistecircncia

social ocupa (ou no caso natildeo ocupa) na agenda governamental ndash e natildeo apenas do desenho

institucional de uma rede socioassistencial mista

Para Amacircncio (2008) o fato de a assistecircncia social passar a ser considerada como

poliacutetica puacuteblica de dever do Estado natildeo condiciona sua execuccedilatildeo exclusivamente pela accedilatildeo

direta do poder puacuteblico Portanto puacuteblico natildeo quer dizer exclusivamente estatal A autora

desenvolveu uma linha de pensamento a partir de alguns trechos escritos por Raquel Raichelis

(1998) e por Maria Luiza Mestriner (2005) ndash que compreendemos ser bastante pertinente para

a discussatildeo desta questatildeo Assim neste diaacutelogo

Esta compreensatildeo [do puacuteblico natildeo apenas como estatal] natildeo restringe o universo da assistecircncia

social a uma intervenccedilatildeo exclusiva dos governos uma vez que supotildee a participaccedilatildeo em

diferentes niacuteveis dos segmentos organizados da sociedade civil em sua formulaccedilatildeo

implementaccedilatildeo e gestatildeo (RAICHELIS 1998 129)

No entanto

Conceber a assistecircncia social nesta perspectiva natildeo implica diluir a responsabilidade estatal por

sua conduccedilatildeo Ao contraacuterio situaacute-la no campo dos direitos remete agrave ativa intervenccedilatildeo do Estado

para garantir sua efetivaccedilatildeo dentro dos paracircmetros legais que a definem (RAICHELIS 1998

37)

A soluccedilatildeo para esse impasse depende

45

A possibilidade de uma parceria com o Estado na elaboraccedilatildeo implementaccedilatildeo e controle de uma

poliacutetica puacuteblica de assistecircncia social com clara definiccedilatildeo das responsabilidades deste Estado

enquanto normatizador coordenador e financiador da poliacutetica que integra agrave sua accedilatildeo as

iniciativas privadas num sistema articulado e agrave sua accedilatildeo as iniciativas privadas num sistema

articulado e coerente de accedilotildees (Mestriner 2005 p 47 citado por Amacircncio 2008 p 173)

Numa apreciaccedilatildeo similar Peter Spink e Ana Marcia Ramos (2016) sustentam que ldquoser

o condutor das poliacuteticas sociais natildeo impede que os governos tenham parceiros tanto para a

execuccedilatildeo dos serviccedilos que adveacutem dessas poliacuteticas quanto para a construccedilatildeo conjunta de

projetos societaacuterios que venham ao encontro de maior justiccedila e equidade socialrdquo (p288) Dessa

forma no que diz respeito agrave assistecircncia social entende-se que o caraacuteter puacuteblico das poliacuteticas

natildeo adveacutem exclusivamente da oferta direta do Estado mas do enquadramento normativo

construiacutedo nas instacircncias de pactuaccedilatildeo e negociaccedilatildeo socioestatais em que a sociedade civil

tambeacutem estaacute presente Ou seja o caraacuteter puacuteblico dos serviccedilos depende da vinculaccedilatildeo das accedilotildees

desenvolvidas agraves diretrizes e princiacutepios nacionais dispostos em lei (como na LOAS na PNAS

e no SUAS)

Consideraccedilotildees finais

O argumento central do presente artigo foi sustentar a ideia de que as parcerias puacuteblico-

privadas com organizaccedilotildees da sociedade civil natildeo necessariamente marcam um processo de

ldquoterceirizaccedilatildeordquo ou ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal conforme defendido por parte da literatura

acadecircmica ndash ou que a participaccedilatildeo das OSC necessariamente faccedila menccedilatildeo a resquiacutecios de

caridade e filantropia Acreditamos que certamente existem OSC que atuam a partir destas

perspectivas assim como deve haver profissionais concursados(a)s e gestores(as) que pautam

sua atuaccedilatildeo nos mesmos preceitos Como apresentado anteriormente foram muitos anos da

assistecircncia social baseados nos paradigmas da caridade benevolecircncia filantropia A histoacuteria da

assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica ndash ou seja de direito de toda(o) cidadatilde(o) e de dever do

Estado ndash eacute recente em termos histoacutericos

Desse modo como todo processo de transformaccedilatildeo macroestrutural a mudanccedila de

paradigma eacute gradual processual e dialoacutegica incorporada de diferentes formas pelos sujeitos

ressignificada a partir das experiecircncias particulares e do cotidiano Assim vemos que

atualmente haacute diferentes concepccedilotildees sobre a assistecircncia social tanto por parte da sociedade

civil quanto dos governos que perpassam um processo de constantes disputas e negociaccedilotildees

sobre os rumos desta poliacutetica puacuteblica Neste sentido a Psicologia Social de perspectiva

construcionista pela ecircnfase no estudo das interaccedilotildees discursivas e dos processos dialoacutegicos se

46

constitui enquanto uma importante ferramenta teoacuterica e metodoloacutegica para o estudo das

poliacuteticas puacuteblicas

Por fim argumentamos que a Constituiccedilatildeo de 1988 a LOAS a PNAS e todos as outras

normativas que regem a assistecircncia social foram importantes meios de disputa discursiva na

concepccedilatildeo desta poliacutetica influindo sobre a sua operacionalizaccedilatildeo Posto que com base nestas

legislaccedilotildees as organizaccedilotildees conveniadas devem prestar serviccedilos baseados nos princiacutepios

expostos nestes documentos ndash portanto tendo como premissa central a noccedilatildeo de direito e

cidadania Dessa forma acreditamos que o intento em resgatar os marcos histoacutericos e as

normativas relevantes para a constituiccedilatildeo das parcerias puacuteblico-privadas (ou estataisnatildeo-

estatais) pode nos servir com um importante recurso analiacutetico para a compreensatildeo dos efeitos

deste legado histoacuterico no desenvolvimento institucional e na dinacircmica organizacional na

poliacutetica de assistecircncia social nos dias atuais

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Capiacutetulo 3

Proteccedilatildeo Social e Fortalecimento de Viacutenculos contribuiccedilotildees da Poliacutetica de

Assistecircncia Social a mulheres idosas

Izabela Penha Silva

Renata Fabiana Pegoraro

Introduccedilatildeo

A Psicologia vem tendo participaccedilatildeo importante nas poliacuteticas sociais desde o final da

deacutecada de 1970 por meio da criaccedilatildeo de sindicatos e efetiva ocupaccedilatildeo dos mesmos pela classe

profissional bem como do chamado ldquosistema conselhosrdquo Na deacutecada de 1980 os psicoacutelogos

brasileiros se envolveram em importante movimento no campo social o que auxiliou na

definiccedilatildeo de algumas condiccedilotildees para uma inserccedilatildeo mais extensiva da Psicologia no campo das

poliacuteticas puacuteblicas (Yamamoto 2007)

A temaacutetica das poliacuteticas sociais tem sido alvo de investigaccedilotildees e debates no acircmbito

acadecircmico da Psicologia tanto no que diz respeito agrave compreensatildeo das accedilotildees e serviccedilos

vinculados agraves poliacuteticas puacuteblicas quanto agrave sua articulaccedilatildeo com o trabalho dos(as) psicoacutelogos(as)

buscando compreender como tem se dado atualmente a participaccedilatildeo da categoria no campo

social Neste contexto este capiacutetulo versa sobre uma pesquisa de mestrado realizada em um

Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) do interior de Minas Gerais com 13

usuaacuterias pertencentes ao ldquoGrupo de Mulheresrdquo ofertado pelo Serviccedilo de Convivecircncia e

Fortalecimento de Viacutenculos (SCFV) da instituiccedilatildeo com objetivo de investigar como tais

usuaacuterias compreendem as accedilotildees do CRAS Abordaremos em seccedilatildeo seguinte a poliacutetica de

assistecircncia social e o CRAS enquanto um dispositivo dessa aacuterea

1 A Poliacutetica de Assistecircncia Social e a Proteccedilatildeo Social Baacutesica

A Assistecircncia Social no Brasil configurou-se enquanto poliacutetica puacuteblica a partir da

Constituiccedilatildeo Federal de 1988 quando passou a constituir um dos pilares da Seguridade Social

junto agrave Sauacutede e agrave Previdecircncia Seus serviccedilos accedilotildees projetos e programas satildeo geridos pelo

Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) que eacute organizado a partir de uma loacutegica estrutural

51

de proteccedilatildeo em dois niacuteveis a Proteccedilatildeo Social Baacutesica (PSB) e a Proteccedilatildeo Social Especial (PSE)

A PSB eacute considerada a porta de entrada da Assistecircncia Social e desenvolve accedilotildees de caraacuteter

preventivo isto eacute atua para que a violaccedilatildeo de direitos constitucionais seja prevenida tendo suas

accedilotildees referenciadas nos Centros de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) Jaacute a PSE tem

caraacuteter protetivo uma vez que se destina a sujeitos e famiacutelias que se encontram em situaccedilatildeo de

risco pessoal ou social isto eacute aqueles que jaacute tiveram seus direitos violados As accedilotildees deste niacutevel

de proteccedilatildeo estatildeo referenciadas nos Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social

(CREAS) (Pereira amp Guareschi 2018 Cruz amp Guareschi 2013 Couto 2013) Neste texto

abordaremos a PSB por se tratar do contexto em que foi realizada a pesquisa aqui relatada

Como mencionado anteriormente as accedilotildees da PSB estatildeo referenciadas no CRAS Esta

unidade da Poliacutetica de Assistecircncia Social atua em municiacutepios e no Distrito Federal e tem como

foco aqueles que em seu territoacuterio de abrangecircncia encontram-se em situaccedilatildeo de

vulnerabilidade e risco social decorrente de pobreza privaccedilatildeo eou fragilidade de viacutenculos

afetivos familiares comunitaacuterios e de pertencimento Sua proposta eacute prevenir a violaccedilatildeo de

direitos por meio do desenvolvimento de potencialidades aquisiccedilotildees fortalecimento de

viacutenculos familiares e comunitaacuterios e acesso a benefiacutecios eventuais e de transferecircncia de renda

(tais como cesta baacutesica cobertor auxiacutelio natalidade auxiacutelio funeral Bolsa Famiacutelia e Benefiacutecio

de Prestaccedilatildeo Continuada) Para isso faz-se importante o conhecimento do territoacuterio de atuaccedilatildeo

do CRAS e das famiacutelias que nele vivem suas necessidades vulnerabilidades situaccedilotildees de risco

bem como suas potencialidades e as ofertas jaacute existentes no territoacuterio em questatildeo Este trabalho

eacute denominado busca ativa e possibilita compreender melhor a realidade para nela atuar O

CRAS tambeacutem tem como funccedilatildeo promover a articulaccedilatildeo intersetorial do territoacuterio buscando

dialogar com as demais poliacuteticas e setores (educaccedilatildeo sauacutede previdecircncia cultura esporte

lazer) viabilizando o acesso das famiacutelias aos serviccedilos setoriais para que tenham um

atendimento integral (Brasil 2009)

No Brasil de acordo com o Censo SUAS realizado no ano de 2018 haacute um total de 8360

unidades de CRAS os quais atendem 28823500 famiacutelias sendo 1173 destas unidades

alocadas no Estado de Minas Gerais Em todo o Brasil os CRAS empregam 103625

profissionais dos quais 10529 satildeo psicoacutelogos(as) Em Minas Gerais atuam 1660 profissionais

da Psicologia isto eacute haacute a presenccedila de ao menos um psicoacutelogo em todos os CRAS do Estado

(Brasil 2019)

Dentre as accedilotildees que se encontram na alccedilada do CRAS temos (a) Serviccedilo de Proteccedilatildeo

e Atendimento Integral agrave Famiacutelia (PAIF) (b) Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de

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Viacutenculos (SCFV) e (c) Serviccedilo de Proteccedilatildeo Social Baacutesica no domiciacutelio para pessoas com

deficiecircncia e idosas (Ministeacuterio do Desenvolvimento Social 2016) Seraacute abordado mais

especificamente neste capiacutetulo o Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos uma

vez que o ldquoGrupo de Mulheresrdquo eacute uma accedilatildeo que pertence ao SCFV do CRAS pesquisado

11 O Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos (SCFV) e a contextualizaccedilatildeo da

pesquisa

Como o proacuteprio nome sugere o Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos

(SCFV) tem como principal objetivo a promoccedilatildeo da convivecircncia coletiva e o fortalecimento de

viacutenculos afetivos familiares comunitaacuterios e de pertencimento Devido a isso suas accedilotildees satildeo

organizadas no formato de grupos e satildeo propostas atividades que promovam trocas culturais e

de vivecircncias entre os usuaacuterios bem como contribuam com o desenvolvimento do sentimento

de pertenccedila e de identidade Para isto eacute importante que a formaccedilatildeo dos grupos leve em

consideraccedilatildeo as especificidades do ciclo de vida dos usuaacuterios podendo ser organizados grupos

de crianccedilas adolescentes jovens adultos pessoas idosas entre outros As atividades do SCFV

satildeo ofertadas na proacutepria instituiccedilatildeo [CRAS] ou em instituiccedilotildees parceiras (Brasil 2016)

O ldquoGrupo de Mulheresrdquo do qual as participantes da pesquisa aqui apresentada satildeo

frequentadoras integra o SCFV de um CRAS do interior de Minas Gerais Este grupo eacute

composto por mulheres em sua maioria idosas aposentadaspensionistas e viuacutevas que estatildeo no

serviccedilo haacute pelo menos oito anos O grupo eacute ofertado semanalmente na instituiccedilatildeo tem duraccedilatildeo

aproximada de 60 minutos e eacute coordenado por uma psicoacuteloga da equipe de referecircncia do CRAS

Nele satildeo abordadas diversas temaacuteticas relacionadas aos interesses das participantes por vezes

contempladas por palestrantes convidados Satildeo realizadas atividades que promovem a sauacutede

mental e fiacutesica (ex memoacuteria concentraccedilatildeo coordenaccedilatildeo motora) e o fortalecimento de

viacutenculos aleacutem de espaccedilo para compartilhamento de experiecircncias diversas por meio de rodas de

conversa acerca de conteuacutedos relacionados ao cotidiano e agraves relaccedilotildees sociais e comunitaacuterias das

usuaacuterias

Esta pesquisa buscou investigar como as usuaacuterias deste grupo compreendem as accedilotildees

ofertadas pelo CRAS O ldquoGrupo de Mulheresrdquo foi eleito para fase de campo da pesquisa por

agregar as usuaacuterias mais antigas do serviccedilo e que apresentam elevada taxa de frequecircncia no

grupo Para a construccedilatildeo de dados foram aplicados questionaacuterios para caracterizaccedilatildeo das

usuaacuterias e realizados trecircs encontros para entrevistas em grupo no formato de Grupos Focais

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os quais contaram com materiais de apoio como disparadores de discussotildees acerca do tema

proposto Os dados foram analisados por meio de Anaacutelise de Conteuacutedo Temaacutetica proposta por

Bardin (1977) Abordaremos em seccedilatildeo seguinte o uso de Grupo Focal como teacutecnica de

construccedilatildeo de dados na pesquisa no campo das poliacuteticas puacuteblicas

2 O uso de Grupos Focais em pesquisas no campo das poliacuteticas puacuteblicas organizaccedilatildeo

conduccedilatildeo vantagens e desvantagens

A teacutecnica de Grupos Focais (GF) foi eleita para fase de construccedilatildeo de dados por ser um

procedimento raacutepido praacutetico e que permite acessar com facilidade as contribuiccedilotildees que a

populaccedilatildeo investigada tem a oferecer sendo comumente utilizado nos campos das Ciecircncias

Sociais Antropologia e Sauacutede Essa teacutecnica tem como objetivo investigar por meio de

entrevistas em grupo um tema comum aos participantes proporcionando espaccedilo interacional

que possibilita a expressatildeo de sentimentos crenccedilas valores experiecircncias representaccedilotildees e

percepccedilotildees dos participantes sobre o fenocircmeno investigado Para isto eacute importante que os

participantes sejam escolhidos de forma intencional isto eacute tenham relaccedilatildeo com os objetivos da

pesquisa Aleacutem disso eacute recomendado que o grupo seja composto por uma meacutedia entre quatro e

quinze participantes e que tenha uma duraccedilatildeo meacutedia de 60 a 120 minutos atentando-se para

que encontros muito longos sejam evitados uma vez que podem causar cansaccedilo e desgaste

mental (Busanello Lunardi-Filho Kerber amp Santos 2013 Backes Colomeacute Erdman amp

Lunardi 2011) A literatura tambeacutem aponta que o nuacutemero de encontros necessaacuterios para

investigaccedilatildeo de um tema varia de acordo com a complexidade do mesmo sendo recomendado

o uso do criteacuterio de saturaccedilatildeo como estrateacutegia para delimitaccedilatildeo do nuacutemero de encontros

necessaacuterios pois considera a repeticcedilatildeo a previsibilidade dos testemunhos e a ausecircncia do

surgimento de novas ideias identificando que o esgotamento do tema foi alcanccedilado (Trad

2009)

Para desenvolvimento dos grupos focais eacute necessaacuteria a presenccedila de um moderador que

tem como funccedilatildeo coordenar o grupo esclarecer sobre o objetivo da pesquisa e a dinacircmica dos

encontros bem como criar um clima agradaacutevel entre os participantes e fomentar as discussotildees

O moderador pode contar com o auxiacutelio de um observador para controle do tempo

monitoramento dos equipamentos de gravaccedilatildeo e registro da dinacircmica grupal expressotildees dos

participantes e demais aspectos que julgar importantes O espaccedilo para realizaccedilatildeo dos encontros

deve ser localizado preferencialmente em territoacuterio neutro protegido de ruiacutedos ou demais

interrupccedilotildees confortaacutevel e que assegure a privacidade dos participantes (Busanello et al 2013

54

Backes et al 2011 Trad 2009) O desenvolvimento e a observaccedilatildeo do GF podem ser

facilitadas pela organizaccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico com as cadeiras dispostas em ciacuterculo (Gaskell

2002)

Compreendemos que o uso da teacutecnica de GF pode ser vantajosa no campo das poliacuteticas

puacuteblicas em especial por ofertar um espaccedilo confortaacutevel para a livre expressatildeo de ideias e

opiniotildees sobre determinado assunto o que permite aos pesquisadores explorarem perguntas natildeo

antevistas e incentivar a participaccedilatildeo dos integrantes possibilitando o entendimento das

questotildees de forma mais ampla Aleacutem disso a flexibilidade em seu formato o qual permite o

uso de imagens metaacuteforas ou estiacutemulos projetivos tambeacutem eacute vantajoso para uma construccedilatildeo de

dados de maior qualidade e mais rica em detalhes (Gaskell 2002 Trad 2009)

A literatura aponta alguns limites do procedimento de GF que versam sobre o risco de

interferecircncia dos juiacutezos de valores do moderador bem como a dificuldade de generalizaccedilatildeo dos

dados construiacutedos visto que a seleccedilatildeo de participantes eacute feita de forma intencional e por

conveniecircncia Quanto agrave generalizaccedilatildeo em pesquisas qualitativas vale pontuar que natildeo se

objetiva encontrar uma unidade entre as representaccedilotildees sobre determinado objeto de estudo

Pelo contraacuterio busca-se a compreensatildeo dos diferentes e muitas vezes divergentes pontos de

vista sobre o tema em foco Em alguns casos no entanto a discussatildeo em grupo pode impedir a

expressatildeo de opiniotildees que sejam divergentes das dos demais participantes e alguns integrantes

do grupo podem dominar a discussatildeo ou desviar o assunto proposto enviesando a construccedilatildeo

de dados A dificuldade de garantir o total anonimato dos participantes por se tratar de uma

entrevista grupal tambeacutem eacute apontada como uma desvantagem da teacutecnica (Trad 2009 Backes

et al 2011)

Na pesquisa com o ldquoGrupo de Mulheresrdquo foram realizados trecircs encontros de GF com

duraccedilatildeo aproximada de 90 minutos Cada encontro contou com materiais de apoio como

dispositivos disparadores de ideias reflexotildees e sentimentos acerca do tema a ser investigado

naquele encontro No primeiro encontro foi utilizado como material disparador de discussatildeo a

foto da fachada do CRAS investigado procurando compreender os sentidos atribuiacutedos agrave

instituiccedilatildeo por suas usuaacuterias Em um segundo momento deste encontro foram apresentadas agraves

participantes imagens de diferentes serviccedilos puacuteblicos de aacutereas diversas como Sauacutede Educaccedilatildeo

Previdecircncia Assistecircncia Social Cultura Esporte e Lazer com o intuito de investigar o

conhecimento que as idosas tinham a respeito da Poliacutetica de Assistecircncia Social e do CRAS

enquanto pertencente a essa aacuterea No segundo encontro objetivou-se investigar o conhecimento

que as participantes tinham sobre as atividades e accedilotildees realizadas pela instituiccedilatildeo sendo

55

convidadas a comporem uma lista com todas aquelas que se lembrassem Em seguida foram

apresentadas imagens dos benefiacutecios eventuais e de transferecircncia de renda da Proteccedilatildeo Social

Baacutesica para investigaccedilatildeo minuciosa do conhecimento que as mesmas apresentavam sobre cada

um deles bem como de sua relaccedilatildeo com o CRAS No terceiro e uacuteltimo encontro as idosas

foram convidadas a circular pelos espaccedilos da instituiccedilatildeo observando sua estrutura

organizaccedilatildeo dinacircmica corpo de funcionaacuterios para em seguida fazerem uma avaliaccedilatildeo do

CRAS pontuando o que estava funcionando bem e o que precisava ser melhorado Nesse

mesmo encontro tambeacutem foi investigado o lugar que o CRAS ocupa na vida das usuaacuterias

contando com a apresentaccedilatildeo de um viacutedeo produzido pela equipe com seus momentos na

instituiccedilatildeo como material disparador de reflexotildees

O nuacutemero de participantes em cada encontro variou entre 8 e 12 A partir do uso dessa

teacutecnica de construccedilatildeo de dados (GF) e da Anaacutelise de Conteuacutedo Temaacutetica proposta por Bardin

(1977) foi possiacutevel elencar alguns eixos de anaacutelise construiacutedos ao longo da pesquisa os quais

seratildeo discutidos em seccedilatildeo seguinte A pesquisa foi aprovada pelo Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa

com seres humanos da Universidade Federal de Uberlacircndia (Parecer 2735403) e cada

participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias uma

ficou com a participante e a outra foi entregue agrave pesquisadora Os encontros ocorreram em uma

sala reservada no proacuteprio CRAS

3 Contribuiccedilotildees da Poliacutetica de Assistecircncia Social a mulheres usuaacuterias do CRAS

As 12 mulheres que participaram da pesquisa tinham entre 53 e 92 anos sendo a grande

maioria idosas (n=10) viuacutevas (n=8) aposentadas ou pensionistas Destas 11 acessaram o

CRAS por demanda espontacircnea (convidadas por familiares ou conhecidos jaacute vinculados ao

serviccedilo) e apenas uma por busca ativa A maior parte (n=8) eacute usuaacuteria do CRAS haacute pelo menos

oito anos

De acordo com os resultados da pesquisa a participaccedilatildeo de mulheres idosas nas poliacuteticas

sociais e neste caso no serviccedilo de Proteccedilatildeo Social Baacutesica tem feito com que elas identifiquem

nesses espaccedilos um lugar que lhes pertence Ao longo do processo de construccedilatildeo de dados da

pesquisa um dos aspectos investigados pelas pesquisadoras dizia respeito ao puacuteblico-alvo da

instituiccedilatildeo isto eacute foi investigado junto agraves usuaacuterias para quem os serviccedilos ofertados na

instituiccedilatildeo [CRAS] satildeo destinados As participantes mencionaram que aquele serviccedilo se

destinava agraves pessoas em situaccedilatildeo de vulnerabilidade enfatizando o puacuteblico da terceira idade

56

As demais faixas etaacuterias segundo as participantes tambeacutem satildeo contempladas nas accedilotildees do

CRAS entretanto em segundo plano como ilustrado pelo trecho ldquo- O adolescente eacute puacuteblico

alvo do CRASrdquo (Pesquisadora GF1) ldquo- O CRAS Soacute se for [adolescente] deficiente Isso aqui

eacute mais para noacutes [idosas mulheres]rdquo (Neide1 GF1)

Nesse sentido mesmo sendo um serviccedilo destinado ao puacuteblico em situaccedilatildeo de

vulnerabilidade independente de sua faixa etaacuteria o CRAS tem sido reconhecido por essas

mulheres como um lugar que tem como foco acolher as questotildees da terceira idade Alguns

autores (Stuart-Hamilton 2002 citado por Morais 2009) apontam situaccedilotildees que contribuem

para a elucidaccedilatildeo de conflitos nesse momento de vida como (1) surgimento de algumas

doenccedilas muitas vezes crocircnicas que afetam a qualidade de vida dos idosos (2) mudanccedilas

corporais e orgacircnicas que podem influenciar a autoimagem do idoso (3) viuvez eou morte de

amigos e parentes (4) perda de algumas funccedilotildees sociais que podem ocasionar uma sensaccedilatildeo de

invalidezinutilidade ao idoso (5) dificuldades financeiras muitas vezes ocasionadas pela

diminuiccedilatildeo da renda apoacutes saiacuteda do mercado de trabalho eou aposentadoria Estas questotildees

podem afetar a autoestima e a identidade do idoso gerar crises e conflitos fazendo com que ele

recorra a recursos tanto internos quanto externos para enfrentamento das consequecircncias

ocasionadas pelas mudanccedilas que vivencia (Morais 2009)

Segundo a Poliacutetica Nacional de Sauacutede da Pessoa Idosa (Brasil 2006) a proporccedilatildeo de

usuaacuterios idosos nos serviccedilos puacuteblicos em todos os setores tende a ser cada vez maior tanto pelo

maior acesso a informaccedilotildees que as pessoas da terceira idade vecircm tendo quanto pelo aumento

relativo e absoluto da populaccedilatildeo pertencente a essa faixa etaacuteria no paiacutes A presenccedila da mulher

idosa nos serviccedilos puacuteblicos tambeacutem eacute marcante visto que 55 da populaccedilatildeo idosa brasileira eacute

composta por mulheres e 35 da populaccedilatildeo feminina do paiacutes pertence a esta faixa etaacuteria Nesta

pesquisa 10 participantes eram mulheres idosas A forte presenccedila da mulher nas poliacuteticas

puacuteblicas tambeacutem estaacute relacionada com a busca por atendimento natildeo apenas para suas demandas

pessoais mas sobretudo para filhos netos outros familiares pessoas idosas com deficiecircncia e

ateacute mesmo vizinhos e amigos por ser a mulher a pessoa identificada como principal e agraves vezes

uacutenica cuidadora (Brasil 2011)

Esse excesso de funccedilotildees desempenhadas pelo gecircnero feminino (matildee avoacute educadora

cuidadora e em geral principal provedora) pode muitas vezes ocasionar sobrecarga fiacutesica e

emocional agrave mulher desencadeando adoecimento psiacutequico (Batista Reinaldo Martins

1 Todas as participantes foram identificadas por meio de nome fictiacutecio visando preservar sua identidade

57

Paschoal amp Santos 2015) Tal aspecto alerta para a necessidade de que as poliacuteticas puacuteblicas

levem em consideraccedilatildeo a perspectiva de gecircnero para o planejamento de suas accedilotildees Segundo

Madureira Peliser Beltrame e Stamm (2008) incluir o debate sobre gecircnero na construccedilatildeo de

accedilotildees de promoccedilatildeo de sauacutede e ndash incluiacutemos de proteccedilatildeo social ndash contribui para uma melhor

assistecircncia das mulheres de forma integral visto que deixa de considerar o envelhecer como

um processo universal vivenciado da mesma forma por homens e mulheres possibilitando

assim atender de forma efetiva as especificidades do puacuteblico feminino

A participaccedilatildeo em grupos ofertados por serviccedilos puacuteblicos voltados agrave terceira idade tem

se mostrado um recurso externo interessante utilizado por idosas no enfrentamento das

intercorrecircncias relacionadas ao envelhecer As participantes do ldquoGrupo de Mulheresrdquo por

exemplo relataram ter encontrado no CRAS um lugar de acolhimento e apoio em especial

emocional pois contribuiu em momentos difiacuteceis como luto e depressatildeo ldquoquando eu perdi meu

filho amigas me convidaram e eu vim para caacute Estava em depressatildeo fiquei em depressatildeo trecircs anos

tomando remeacutedio Eu vim para caacute e graccedilas a Deus foi uma belezardquo (Ceacutelia GF1)

E outra usuaacuteria complementa ldquoO CRAS nos tira do fundo do poccedilo Eu tambeacutem perdi

minha menina e foi aqui que eu natildeo que eu aguentei Se eu ficasse em casa eu natildeo

aguentariardquo (Neide GF1) As idosas relataram com carinho e apreccedilo sobre o viacutenculo que

construiacuteram por meio do Grupo de Mulheres ofertado pela instituiccedilatildeo considerando ainda

terem ganhado uma nova famiacutelia ldquoA uniatildeo nossa eacute muito bonita aquirdquo (Neide GF3) e Marcela

complementa ldquoEu falo que aqui a gente tem uma famiacuteliardquo Carmona Couto e Scorsolini-Comin

(2014) pontuam que as relaccedilotildees de amizade entre idosos podem oferecer consequecircncias

positivas uma vez que amplia a rede de apoio social e funciona como um recurso de proteccedilatildeo

contra a solidatildeo ao proporcionar o contato com outras pessoas significativas que experimentam

vivecircncias semelhantes agraves deles

Souza (2016) relatou experiecircncia semelhante ao realizar estudo sobre um grupo de

convivecircncia composto por idosos usuaacuterios de um CRAS da cidade de Serra Negra do NorteRN

buscando identificar as contribuiccedilotildees que a participaccedilatildeo nesse grupo oferecia agrave vida dos

mesmos Segundo a autora fazer parte de tal grupo auxiliou na melhoria da qualidade de vida

dos idosos visto que naquele espaccedilo eles tinham oportunidade de socializaccedilatildeo e consequente

construccedilatildeo de viacutenculos afetivos entre si participavam de atividades diversas incluindo

passeios se sentiam acolhidos pela equipe sendo tratados com carinho e atenccedilatildeo o que os

auxiliava na lida com as dificuldades cotidianas

58

Neri (2001) tambeacutem apontou como uma das alternativas atuais de enfrentamento das

intercorrecircncias relacionadas agrave velhice a participaccedilatildeo em grupos voltados ao puacuteblico da terceira

idade por serem interessantes espaccedilos de construccedilatildeo de novas possibilidades e perspectivas de

vida agravequeles que muitas vezes se deparam com uma realidade marcada pelo sentimento de

solidatildeo inutilidade invalidez e mesmice

as pessoas de mais idade dentro de um grupo sociocultural podem afirmar a sua proacutepria

identidade expandir as fronteiras de seu valor reconhecerem-se como participantes da vida

atual do grupo por meio da memoacuteria compartilhada porque a identidade individual eacute uma

instacircncia que depende do outro (Neri 2001 p 144)

Aleacutem de um espaccedilo de acolhimento e apoio estes grupos podem ser proporcionadores

de aprendizados As participantes do ldquoGrupo de Mulheresrdquo relataram encontrar no CRAS um

espaccedilo importante para veiculaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre sauacutede nutriccedilatildeo poliacuteticas puacuteblicas

entre outros assuntos importantes por meio de atividades realizadas nos grupos de convivecircncia

e de palestras que satildeo ofertadas na instituiccedilatildeo

a gente aprende muita coisa aqui Atraveacutes dessas palestras que [trabalhadores do CRAS] fizeram

aiacute eu aprendi tanta coisa necessaacuteria importante doenccedila que eu nem sabia que existia acabei

descobrindo que meu neto estaacute com essa doenccedila Entatildeo a gente vai aprendendo muita coisa

eu acho muito importante a gente que tem famiacutelia saber as coisas melhor sobre a sauacutede de cada

um (Marcela GF1)

Aleacutem disso ao longo de suas trajetoacuterias na instituiccedilatildeo as idosas tambeacutem evidenciaram

nos encontros de GF terem aprendido sobre a Poliacutetica de Assistecircncia Social As mesmas

demonstraram ter bom conhecimento dos serviccedilos e accedilotildees ofertados pela Proteccedilatildeo Social

Baacutesica como os benefiacutecios de transferecircncia de renda (Bolsa Famiacutelia e Benefiacutecio de Prestaccedilatildeo

Continuada) os benefiacutecios eventuais (cesta baacutesica cobertor auxiacutelio natalidade) bem como as

atividades realizadas na instituiccedilatildeo e pela equipe de referecircncia (visitas domiciliares acolhidas

encaminhamentos mediaccedilatildeo de grupos do SCFV atividades culturais de danccedila e atividades

infantis) Isto mostra que a instituiccedilatildeo tem conseguido contar por meio de sua praacutetica cotidiana

ldquoa que veiordquo e ldquoa quem veiordquo e que seus usuaacuterios natildeo satildeo meros participantes mas ativos atores

na efetivaccedilatildeo do serviccedilo

Leandro-Franccedila e Murta (2014) tambeacutem apontam a experiecircncia de grupo como

importante estrateacutegia de promoccedilatildeo de sauacutede mental entre idosos Segundo as autoras a

participaccedilatildeo em grupos que tenham como objetivo a promoccedilatildeo da valorizaccedilatildeo do envelhecer e

de discussotildees sobre as questotildees que afetam a vida na terceira idade pode ser interessante

caminho de empoderamento dos idosos no lidar com as adversidades deste periacuteodo

beneficiando a sua sauacutede mental De acordo com as autoras a prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da sauacutede

mental podem contribuir tambeacutem com (1) melhoria na sauacutede em geral (2) promoccedilatildeo de

59

cidadania (3) planejamento e adaptaccedilatildeo agrave saiacuteda do mercado de trabalhoaposentadoria (4)

reduccedilatildeo de sintomas de depressatildeo e ansiedade (5) prevenccedilatildeo do suiciacutedio Leandro-Franccedila e

Murta (2014) pontuam ainda que as estrateacutegias mais eficazes para este puacuteblico satildeo aquelas

que apresentam abordagens abrangentes isto eacute que englobam intervenccedilotildees que levam em

consideraccedilatildeo natildeo apenas os determinantes individuais de sauacutede (comportamentos haacutebitos

conhecimentos) mas tambeacutem determinantes sociais como a rede de apoio ao idoso a

comunidade em que vive as instituiccedilotildees e as poliacuteticas puacuteblicas

Rabelo e Neri (2013) orientam que intervenccedilotildees grupais com idosos podem funcionar

como catalisadores para maximizar ldquoas potencialidades compensar perdas reorganizar a vida

e ajustar-se agraves situaccedilotildeesrdquo (Rabelo amp Neri 2013 p 61) Para tanto eacute necessaacuterio que os

profissionais responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo e conduccedilatildeo desses grupos respeitem os valores a

escolaridade e a cultura de seus participantes estimulem a livre expressatildeo de memoacuterias e

sentimentos num clima de confianccedila e acolhimento mediante um contrato de convivecircncia

efetuado previamente que garanta o sigilo o compromisso com o grupo e seguranccedila para

expressar diferentes opiniotildees

Carmona Couto e Scorsolini-Comin (2014) defendem que a terceira idade precisa ser

olhada natildeo mais como um periacuteodo de perdas crises e limitaccedilotildees mas sim como uma

experiecircncia que possibilita transformaccedilotildees aquisiccedilotildees significados e novas possibilidades

Sobre isto Zimmerman (2000 citado por Morais 2009) pontua que pessoas mais saudaacuteveis e

otimistas estatildeo mais propensas a ver a velhice como um tempo de acuacutemulo de experiecircncias

maturidade liberaccedilatildeo de certas responsabilidades e liberdade para assumir novas ocupaccedilotildees

4 A Psicologia frente agrave poliacutetica de Assistecircncia Social

As questotildees abordadas neste texto dialogam de maneira importante com a formaccedilatildeo em

Psicologia e demais aacutereas que se debruccedilam nos estudos sobre o desenvolvimento humano uma

vez que apesar de mudanccedilas importantes ao longo dos uacuteltimos anos ainda estatildeo marcados por

olhares que enfocam a incapacidade funcional e limitaccedilotildees fiacutesicas cognitivas e sensoriais dos

idosos bem como o controle e a prevenccedilatildeo de agravos de doenccedilas Precisamos nos lembrar

diariamente que a sauacutede do idoso se caracteriza como a ldquointeraccedilatildeo multidimensional entre sauacutede

fiacutesica sauacutede mental independecircncia na vida diaacuteria integraccedilatildeo social suporte familiar e

independecircncia econocircmica (Ramos 2003 p 794)

60

Os(as) psicoacutelogos(as) por se tratar de uma classe profissional fortemente presente nas

poliacuteticas puacuteblicas de atenccedilatildeo aos idosos podem contribuir com a mudanccedila desta perspectiva

para um olhar mais positivo voltado ao envelhecimento em suas praacuteticas Eacute importante destacar

que a presenccedila de uma psicoacuteloga na coordenaccedilatildeo e mediaccedilatildeo do ldquoGrupo de Mulheresrdquo pode

ofertar experiecircncias interessantes agraves usuaacuterias Apesar de natildeo terem um formato terapecircutico

visto que a praacutetica psicoteraacutepica se consolida como responsabilidade da poliacutetica de Sauacutede o

grupo do SCFV coordenado por uma psicoacuteloga pode trazer benefiacutecios que acabam sendo

terapecircuticos para seus participantes O(a) psicoacutelogo(a) quando no papel de facilitador do

processo grupal auxilia na socializaccedilatildeo e compartilhamento de experiecircncias em comum e na

construccedilatildeo de uma rede de suporte psicossocial entre os participantes promovendo sauacutede

mental e fortalecimento de viacutenculos Nesse sentido o formato de grupos tem se mostrado uma

alternativa interessante e viaacutevel para a promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo da sauacutede biopsicossocial dos

idosos no serviccedilo puacuteblico (Reis Giuglliani amp Pasini 2012)

A participaccedilatildeo da Psicologia na Poliacutetica de Assistecircncia Social natildeo eacute um evento novo

Inicialmente o trabalho da Psicologia neste campo se configurava de forma mais pontual

atuando apenas em praacuteticas focalizadas em grupos considerados de risco ficando fora de seu

acircmbito de atuaccedilatildeo as demais parcelas da populaccedilatildeo Aos poucos com a divulgaccedilatildeo dos

resultados de suas experiecircncias relacionadas a intervenccedilotildees em situaccedilotildees de vulnerabilidade

social bem como do apontamento de recursos subjetivos como mediadores da minimizaccedilatildeo de

tais vulnerabilidades houve uma ampliaccedilatildeo da concepccedilatildeo social e governamental das

contribuiccedilotildees que a Psicologia oferecia agraves poliacuteticas puacuteblicas o que implicou em sua inserccedilatildeo

na Proteccedilatildeo Social Baacutesica a partir da estruturaccedilatildeo do SUAS em 2005 (Reis Giuglliani amp Pasini

2012 Conselho Federal de Psicologia 2005)

Mas afinal o que faz um(a) psicoacutelogo(a) no cotidiano da Proteccedilatildeo Social Baacutesica Esta

pergunta eacute importante uma vez que ainda haacute um desconhecimento sobre a atuaccedilatildeo do psicoacutelogo

em contextos que sejam diferentes do setting cliacutenico-terapecircutico Este dado se revela como um

reflexo da predominacircncia das cliacutenicas tradicionais como referenciais norteadores das praacuteticas

do psicoacutelogo desde sua formaccedilatildeo em detrimento das atuaccedilotildees que envolvem o cenaacuterio das

poliacuteticas puacuteblicas Por esta razatildeo intervenccedilotildees ligadas agrave psicoterapia ainda satildeo percebidas em

alguns serviccedilos de Proteccedilatildeo Social Baacutesica como a praacutetica do psicoacutelogo por excelecircncia o que

reforccedila sua manutenccedilatildeo neste contexto (Flor amp Goto 2015 Reis Giuglliani amp Pasini 2012)

Na Assistecircncia Social o(a) psicoacutelogo(a) tem como funccedilatildeo baacutesica atuar junto agrave equipe

para o fortalecimento das poliacuteticas puacuteblicas e de seus usuaacuterios enquanto sujeitos de direitos

61

tendo sempre como foco as necessidades e potencialidades de seu puacuteblico alvo Ao considerar

e atuar sobre a subjetividade a Psicologia pode favorecer o desenvolvimento da autonomia e

cidadania dos usuaacuterios do serviccedilo Para isto eacute importante que o psicoacutelogo tenha uma postura

de trabalho que seja contra qualquer accedilatildeo que categorize patologize ou objetifique as pessoas

atendidas Ao contraacuterio disso eacute imprescindiacutevel que o profissional busque compreender os

aspectos histoacuterico-culturais envolvidos no contexto de vulnerabilidade bem como os processos

e recursos psicossociais de que dispotildeem os sujeitos que ali vivem (Conselho Federal de

Psicologia 2007)

Sobre isso Cruz e Guareschi (2012) alertam que de acordo com resgate histoacuterico sobre

as praacuteticas da Psicologia na Assistecircncia Social muitas accedilotildees tecircm sido pautadas em dicotomias

como ldquonormalpatoloacutegicordquo ldquofamiacutelia estruturadadesestruturadardquo orientadas agrave manutenccedilatildeo da

norma categorizaccedilatildeo de vulnerabilidades sociais culpabilizaccedilatildeo das famiacutelias por sua condiccedilatildeo

socioeconocircmica eou daquilo que natildeo transcorre dentro do esperado e psicologizaccedilatildeo das

questotildees que atravessam o social Com isto o saber cientiacutefico neste campo vem produzindo

subjetividades desqualificadas ao considerar o conhecimento dos especialistas como verdade

uacutenica sobre o sujeito Nesse contexto as autoras apontam a necessidade de promover

diariamente o exerciacutecio reflexivo sobre a proacutepria praacutetica e fazem interessante questionamento

ldquoateacute que ponto nossas accedilotildees natildeo tecircm se configurado como dispositivo de controle sobre as

famiacutelias e sujeitosrdquo (Cruz amp Guareschi 2012 p 31)

Para evitar tais condutas indesejadas o(a) psicoacutelogo(a) deve tomar como princiacutepios em

sua praacutetica na Proteccedilatildeo Social Baacutesica (1) conhecer previamente o territoacuterio de abrangecircncia no

qual atuaraacute para entatildeo planejar accedilotildees e intervenccedilotildees condizentes com os objetivos da PSB (2)

identificar valorizar e auxiliar no desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos e da

comunidade por meio de intervenccedilotildees individuais familiares grupais e coletivas (3) trabalhar

sempre buscando o diaacutelogo entre o saber popular e o saber cientiacutefico da Psicologia natildeo

deixando de valorizar as mais diversas experiecircncias expectativas e conhecimentos em sua

atuaccedilatildeo (4) contribuir com o exerciacutecio ativo da cidadania com o empoderamento e autonomia

dos sujeitos bem como com o controle social por meio da oferta de espaccedilos de participaccedilatildeo da

comunidade mobilizaccedilatildeo social e organizaccedilatildeo comunitaacuteria evitando que as vulnerabilidades

se cronifiquem (Conselho Federal de Psicologia 2007)

Diante disto os(as) psicoacutelogos(as) atuantes na Proteccedilatildeo Social Baacutesica tecircm como desafio

pensar em um sujeito para aleacutem daquele que precisa ser normalizado adequado a padrotildees Eacute

preciso olhar para o sujeito para aleacutem das ldquovulnerabilidades sociaisrdquo ou da ldquopobrezardquo que o

62

acometem isto eacute reconhecer nele um sujeito ativo vivo que tem contradiccedilotildees saberes

potencialidades e que tem o que dizer Isso implica na necessidade de que diferentes olhares

possam ser construiacutedos e que natildeo apontem apenas para o que ldquofaltardquo mas tambeacutem para a

potecircncia de resistir desses sujeitos que escancaram todos os dias que a pobreza e a carecircncia natildeo

se configuram enquanto impossibilidade de vida (Lasta Guareschi amp Cruz 2012)

Consideraccedilotildees finais

A participaccedilatildeo de mulheres idosas em grupo focal sobre o alcance das accedilotildees de um

CRAS apontou a valorizaccedilatildeo do espaccedilo grupal por elas frequentado e coordenado por um

profissional de Psicologia como facilitador da formaccedilatildeo de viacutenculos e de promoccedilatildeo de sauacutede

mental contribuindo para o bem-estar das participantes A idade avanccedilada de algumas

participantes a condiccedilatildeo de viuacuteva a experiecircncia de perda de pessoas importantes e a vivecircncia

do luto datildeo um contorno de proteccedilatildeo agrave sauacutede ao Grupo Convivecircncia e Fortalecimento de

Viacutenculos o qual dialoga natildeo apenas com as poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social mas tambeacutem

com poliacutetica de sauacutede do idoso e poliacutetica integral de sauacutede da mulher

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66

Capiacutetulo 4

A Psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social estudo de caso de

um jovem em cumprimento de medidas socioeducativas

Liandra Savanhago

Camila Trindade

Tielly Rosado Maders

Maria Chalfin Coutinho

Introduccedilatildeo

A atuaccedilatildeo da Psicologia nas Equipes de Referecircncia da poliacutetica puacuteblica de assistecircncia

social tem se intensificado nos uacuteltimos anos Sobretudo a partir de 2005 com a concretizaccedilatildeo

do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) E mais especificamente a partir do ano de

2011 com a implementaccedilatildeo da Norma Operacional Baacutesica de Recursos Humanos do SUAS

(NOB-RHSUAS) a qual dispotildee sobre a obrigatoriedade da presenccedila de psicoacutelogosas nos

respectivos serviccedilos (Brasil 2011) Mesmo sendo uma profissatildeo essencial para o SUAS apenas

apoacutes um longo tempo de concretizaccedilatildeo oa psicoacutelogoa passou obrigatoriamente a integrar a

equipe de referecircncia dos serviccedilos de Proteccedilatildeo Social Baacutesica e Proteccedilatildeo Social Especial de

Meacutedia e de Alta Complexidade os quais constituem os trecircs niacuteveis de complexidade do SUAS

Ao longo deste trabalho elucidamos algumas atividades que se inserem na Proteccedilatildeo

Social Especial de Meacutedia Complexidade a qual oferece atendimentos para pessoas em situaccedilatildeo

de violaccedilatildeo de direitos tal como o serviccedilo de medidas socioeducativas (MSE) em meio aberto

(Brasil 2005) em um municiacutepio localizado no litoral norte do estado de Santa Catarina cuja

populaccedilatildeo foi estimada segundo o Censo demograacutefico de 2010 em 45797 habitantes (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2010)

As MSE elementos centrais dessa discussatildeo satildeo serviccedilos preconizados pelo Estatuto

da Crianccedila e do Adolescente (ECA) instituiacutedo pela Lei Federal nordm 8069 de 1990 (Brasil 1990)

Tal legislaccedilatildeo tem como base os pressupostos da Doutrina da Proteccedilatildeo Integral dos direitos das

Crianccedilas e dos Adolescentes a qual teve marco no artigo ndeg 227 da Constituiccedilatildeo Federal da

Repuacuteblica Federativa do Brasil do ano de 1988 Esses serviccedilos satildeo realizados quando haacute a

praacutetica de atos infracionais por jovens que estejam na faixa etaacuteria dos 12 ateacute os 18 anos As

67

medidas podem ser privativas de liberdade (Internaccedilatildeo e Semiliberdade) e natildeo privativas de

liberdade (Liberdade Assistida Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade Obrigaccedilatildeo de Reparaccedilatildeo

de Danos e Advertecircncia) (Brasil 1990)

Em relaccedilatildeo agraves medidas de Liberdade Assistida (LA) e Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave

Comunidade (PSC) o ECA estabelece que a LA tem o propoacutesito de acompanhar auxiliar e

orientar o jovem durante o tempo miacutenimo de seis meses com o objetivo de fornecer auxiacutelio em

projetos de profissionalizaccedilatildeo e de inserccedilatildeo no mercado de trabalho (Brasil 1990) A PSC tem

a funccedilatildeo de realizar ldquotarefas gratuitas de interesse geral por periacuteodo natildeo excedente a seis meses

junto a entidades assistenciais hospitais escolas e outros estabelecimentos congecircneres bem

como em programas comunitaacuterios ou governamentaisrdquo (Brasil 1990) ou seja por meio desta

medida eacute exigido que o jovem realize trabalho comunitaacuterio

A partir destas breves consideraccedilotildees este trabalho objetivou discutir algumas relaccedilotildees

entre as trajetoacuterias de vida de um jovem em cumprimento de medidas socioeducativas e as

praacuteticas psis em serviccedilo da poliacutetica de assistecircncia social Para isso realizamos um estudo de

caso de um jovem em cumprimento de MSE em meio aberto em que problematizamos suas

trajetoacuterias juvenis com as poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social de forma a enfatizar como

as praacuteticas psis podem se revelar no cenaacuterio da assistecircncia

Para essas reflexotildees tomamos como base a questatildeo social entendida por Iamamoto e

Carvalho (2001) como siacutentese explicativa do processo de pauperizaccedilatildeo massiva da classe

trabalhadora expressa por meio de muacuteltiplas determinaccedilotildees tais como desemprego

subemprego violecircncia criminalizaccedilatildeo e patologizaccedilatildeo da pobreza entre outras

1 Trajetoacuteria dos jovens inseridos nas medidas socioeducativas

Para discutir a atuaccedilatildeo da psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social optamos

por dar visibilidade agrave trajetoacuteria de um jovem inserido no serviccedilo de meacutedia complexidade da

Proteccedilatildeo Social Especial Poreacutem antes de nos atentar a um fenocircmeno especiacutefico julgamos

necessaacuterio evidenciar algumas determinaccedilotildees histoacutericas e sociais que constituem a presente

discussatildeo Com isso objetivamos natildeo recair em meacutetodos e compreensotildees que individualizam

as questotildees sociais que constituem a nossa sociedade

Rizzini (1997) ao realizar uma anaacutelise histoacuterica da construccedilatildeo social do jovem

criminalizado a partir do advento da Repuacuteblica brasileira afirma que tal contexto foi permeado

por diversas alteraccedilotildees sociais as quais tinham como finalidade tornar o Brasil uma ldquonaccedilatildeo

68

culta e civilizadardquo (Rizzini 1997 p 27) Para a autora a concepccedilatildeo de alteraccedilatildeo posta nesse

momento histoacuterico era baseada no entendimento da necessidade de educar instruir e vigiar a

grande massa da populaccedilatildeo brasileira considerada como ldquoignoranterdquo E o iniacutecio dessa

empreitada seria com os sujeitos que eram considerados ldquoo futuro do paiacutesrdquo isto eacute as crianccedilas

e jovens brasileiros

Tal discurso salvacionista acabava por mascarar as contradiccedilotildees e posicionamentos

higienistas para com a infacircncia pobre e criminalizada e ao mesmo tempo era pautado pela

loacutegica da era industrial capitalista a qual tinha como preocupaccedilatildeo conter a ldquodelinquecircnciardquo e a

ldquovadiagemrdquo em razatildeo da natildeo absorccedilatildeo da matildeo-de-obra (Cabral amp Sousa 2004) Este controle

da populaccedilatildeo juvenil tornou-se politicamente viaacutevel pois assumiu uma funccedilatildeo regulatoacuteria

desde a infacircncia quando por exemplo a pedagogia do trabalho era considerada como a

principal estrateacutegia para a ldquoregeneraccedilatildeordquo daqueles que natildeo estavam inseridos no regime

produtivo vigente (Santos 2013)

Ainda com o advento da Repuacuteblica Brasileira Rizzini (1997) destaca a origem de ldquoum

complexo aparato meacutedico-juriacutedico-assistencial cujas metas eram definidas pelas funccedilotildees de

prevenccedilatildeo educaccedilatildeo recuperaccedilatildeo e repressatildeordquo (pp 29-30) Tal aparato possuiacutea a funccedilatildeo de

prestar assistecircncia e vigilacircncia agrave populaccedilatildeo pobre com a intenccedilatildeo de efetivar uma formaccedilatildeo

moral e de ldquocivilizaccedilatildeordquo Nesse sentido a necessidade de controle da infacircncia e juventude era

efetivada desde uma educaccedilatildeo direcionada para a absorccedilatildeo de matildeo-de-obra ateacute um sistema de

classificaccedilatildeo para aqueles sujeitos que ora eram classificados como ldquoperigososrdquo e por isso

precisavam de puniccedilatildeo ora eram considerados em ldquoperigordquo e precisavam de proteccedilatildeo

Assim observamos que as preocupaccedilotildees relacionadas ao gerenciamento das condutas

das crianccedilas e dos jovens das camadas populares possuem raiacutezes antigas relacionadas com a

histoacuteria do Brasil Algumas dimensotildees do controle de crianccedilas e jovens foram observadas

pontualmente no sistema educativo Para Mayer e Nuacutentildeez (2017) a massificaccedilatildeo e a

universalizaccedilatildeo dos sistemas escolares se traduziram em processos de discriminaccedilatildeo e

estigmatizaccedilatildeo na experiecircncia de crianccedilas e jovens de camadas populares em toda Ameacuterica

Latina Baseada em valores e comportamentos hegemocircnicos da classe meacutedia e diante de

infacircncias e juventudes atravessadas pela pobreza isto eacute pela necessidade de trabalho precoce

muitas vezes ilegal e consequente evasatildeo escolar o sistema educacional maquiado pelo

discurso da meritocracia produziu desigualdades legitimando hierarquias e novas

diferenciaccedilotildees sociais em sua maioria individualizantes e excludentes

69

Associado a isso historicamente a juventude tem sido compreendida de forma

naturalizada e individualizante ou seja ldquocomo um periacuteodo muito difiacutecil para os que nele se

encontram cheio de conflitos instaacutevel com mudanccedilas de comportamento muito grandesrdquo (Leal

amp Facci 2014 p 17) Com isso observamos o desenvolvimento histoacuterico de associaccedilotildees entre

concepccedilotildees que naturalizam a juventude com concepccedilotildees de prevenccedilatildeo e a repressatildeo presentes

no discurso social e juriacutedico na passagem do seacuteculo XIX ao XX (Rizzini 1997) Entendemos

que o desdobramento disso se revela na construccedilatildeo de praacuteticas profissionais e concepccedilotildees que

reiteram a individualizaccedilatildeo de contradiccedilotildees de cunho estrutural de nossa sociedade na mesma

medida em que a pobreza e os jovens pobres passam a ser entendidos como sujeitos que carecem

de civilizaccedilatildeo de cultura enfim da proacutepria vida

Eacute tambeacutem nesse contexto e com base nessas concepccedilotildees que temos o desenvolvimento

da ciecircncia psicoloacutegica no Brasil Patto (1990) aponta que diante de noccedilotildees baseadas na

necessidade de ldquoculturalizarrdquo os brasileiros tal ciecircncia assumiu um papel ideoloacutegico de

avaliaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo dos aspectos subjetivos que constituem os sujeitos pobres

Para Patto (1990) o foco era comparar esses sujeitos com os da classe dominante

considerados superiores cultural e intelectualmente Com isso tem-se o impulso dos testes

psicoloacutegicos enquanto instrumentos utilizados por psicoacutelogosas que vinham para legitimar a

condiccedilatildeo inferior do pobre e da pobreza na medida em que analisavam por exemplo variaacuteveis

comportamentais ou cognitivas de forma descontextualizada fragmentada e baseada na

avaliaccedilatildeo de elementos que ldquofaltavamrdquo no sujeito (Patto 1990)

Bock (2009) nos recorda para atentarmos agraves questotildees ideoloacutegicas voltadas aos

interesses burgueses que constituiacuteram a histoacuteria da ciecircncia psicoloacutegica Por isso entendemos

que mesmo sendo superadas determinadas praacuteticas e concepccedilotildees desenvolvidas napela aacuterea

ainda na atualidade nos deparamos com uma ciecircncia psicoloacutegica mais preocupada em ajustar

os indiviacuteduos agrave sociedade do que possibilitar o desenvolvimento de mediaccedilotildees que lhe

impulsionem a emancipaccedilatildeo ao inveacutes do ajustamento A discussatildeo acerca da emancipaccedilatildeo

humana passa por uma reformulaccedilatildeo de toda estruturaccedilatildeo da sociedade e pela superaccedilatildeo do

modo de produccedilatildeo capitalista uma vez que a atuaccedilatildeo profissional da psicologia deva ser

pautada na eacutetica e direcionada ao desenvolvimento humano em seus aspectos totais fiacutesicos

subjetivos e relacionais Praacuteticas de formataccedilatildeo de sujeitos para adaptaccedilatildeo do mercado de

trabalho extrapolam natildeo soacute as dimensotildees eacuteticas da atuaccedilatildeo profissional das aacutereas psis mas

acabam por reproduzir e reiterar loacutegicas excludentes e adoecedoras que desconsideram os

sujeitos de direito e a proacutepria sauacutede mental

70

Mesmo diante desse cenaacuterio contraditoacuterio observamos o histoacuterico esforccedilo para o

desenvolvimento de novas formas e praacuteticas psis voltadas para a compreensatildeo dos sujeitos em

suas muacuteltiplas relaccedilotildees e contextos Oliveira e Costa (2018) discorrem que eacute a partir da inserccedilatildeo

dos profissionais da psicologia no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) e no SUAS que ocorre

tambeacutem um movimento de ldquoexpansatildeo e diversificaccedilatildeo das atividades e praacuteticas psicoloacutegicasrdquo

(p 36) Com isso satildeo impulsionados ldquonovos debates em torno dos direcionamentos eacutetico-

poliacuteticos do trabalho dos[as] psicoacutelogos[as]rdquo (Oliveira amp Costa 2018 p 36)

Em relaccedilatildeo ao SUAS as autoras enfatizam que esse foi o primeiro momento da histoacuteria

da profissatildeo no qual efetivamente o trabalho dosas psicoacutelogosas teve como base a questatildeo

da ldquocondiccedilatildeo de pobrezardquo (Oliveira amp Costa 2018 p 38) Contudo muitas vezes a mesma foi

tomada como ldquoimpeditivo ou como empecilho a um trabalho efetivo e de qualidaderdquo (Oliveira

amp Costa 2018 p 39)

Retomamos tambeacutem a discussatildeo sobre a importacircncia da implementaccedilatildeo do ECA para

enfatizar que se mostrou como uma legislaccedilatildeo importante para as mudanccedilas em relaccedilatildeo agraves

compreensotildees das condiccedilotildees de vidas das crianccedilas e jovens brasileiros sobretudo quando esses

passam a ser entendidos como sujeitos de direitos Entretanto eacute nesta e em outras legislaccedilotildees

como o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)1 (Brasil 2012) que se

revelam outras contradiccedilotildees que colocam em xeque essas possibilidades de mudanccedila quando

dispotildeem sobre concepccedilotildees baseadas em ressocializaccedilatildeo e reeducaccedilatildeo Aleacutem do imaginaacuterio

social o qual (ainda) permanece adotando a antiga ideologia do menorismo enquanto um

sistema discriminatoacuterio das crianccedilas pobres e natildeo brancas

Batista (2013) faz uma criacutetica a essas perspectivas das possibilidades ldquorerdquo

(ressocializaccedilatildeo reeducaccedilatildeo reintegraccedilatildeo) as quais na verdade mantecircm praacuteticas punitivas e

excludentes que objetivam normalizar modos de comportamento Da mesma forma Calado e

Souza (2014) apontam que os fundamentos pedagoacutegicos das medidas socioeducativas satildeo

baseados em concepccedilotildees educativas que tecircm como foco os indiviacuteduos e suas capacidades de

ajustamento e regulaccedilatildeo diante das contradiccedilotildees sociais

Eacute importante frisar que a socioeducaccedilatildeo eacute vista como uma poliacutetica puacuteblica direcionada

para o resgate de uma diacutevida histoacuterica da sociedade brasileira com uma parte especiacutefica da

populaccedilatildeo jovem Poreacutem a histoacuteria tem mostrado muitas contradiccedilotildees entre as legislaccedilotildees

1 O Sinase eacute uma legislaccedilatildeo que regulamenta as medidas socioeducativas Instituiacutedo em 2012 seu objetivo eacute

demarcar princiacutepios regras e programas especiacuteficos a niacutevel municipal estadual e nacional de atendimento aos

jovens (Brasil 2012)

71

brasileiras e a execuccedilatildeo do que preconizam por meio das poliacuteticas puacuteblicas Tanto que no que

tange agrave legislaccedilatildeo brasileira atual mesmo com a implantaccedilatildeo do ECA e seus princiacutepios de

proteccedilatildeo integral diversas denuacutencias de violaccedilotildees de direitos humanos satildeo relatadas em espaccedilos

puacuteblicos na miacutedia e em ambientes acadecircmicos Calado e Souza (2014) alertam para as diversas

dimensotildees que assumem essas violecircncias de Estado enfatizando o quanto muitas vezes elas satildeo

aceitas socialmente enquanto uma forma de ldquocorreccedilatildeordquo eou ldquopuniccedilatildeordquo para os jovens Nesse

cenaacuterio mais uma vez temos a reproduccedilatildeo de uma loacutegica desigual excludente que visa o

funcionamento do mercado e natildeo o desenvolvimento humano

Passetti (2013) considera questionaacutevel que a mentalidade juriacutedica no Brasil permaneccedila

penalizadora e cada vez mais distante do ECA Entretanto ao analisarmos tal estatuto

percebemos que apesar de seus avanccedilos normativos o mesmo ainda se mostra distante de sanar

a referida diacutevida histoacuterica a que se propotildee Nessa perspectiva Cabral e Sousa (2004) apontam

que ldquoainda existe certa distacircncia entre aquilo que dispotildee a lei e a realidaderdquo (p 85) Entendemos

que mesmo passados quinze anos de tal constataccedilatildeo a mesma ainda se sustenta Pois apesar

dos avanccedilos no acircmbito dos Direitos Humanos que dispotildee a lei do Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo (Sinase) (Brasil 2012) as MSE ainda abarcam as tensotildees e as

(con)tradiccedilotildees do contexto social brasileiro em que o estigma social continua refletindo nos

nuacutemeros dos jovens apreendidos pela justiccedila2

Eacute nesse cenaacuterio que o trabalho dao psicoacutelogao eacute desenvolvido isto eacute em meio a uma

seacuterie de contradiccedilotildees estruturantes de um modelo social excludente Eidelwein (2007) destaca

que mesmo diante de determinaccedilotildees limitadoras que constituem o trabalho dao psicoacutelogao no

contexto capitalista ainda assim podem e devem ser construiacutedas possibilidades de superaccedilatildeo

dessas formas de relaccedilotildees Quanto as praacuteticas psi em termos imediatos um passo importante

que envolve o trabalho dao psicoacutelogao eacute a delimitaccedilatildeo das opccedilotildees eacuteticos-poliacuteticas teoacuterico-

metodoloacutegicas e teacutecnico-operativas (Eidelwein 2007) visto que satildeo essas que orientam

possibilidades de construccedilatildeo de novas formas de compreensatildeo atuaccedilatildeo e intervenccedilatildeo psi para

aleacutem das hegemocircnicas e excludentes apresentadas anteriormente em relaccedilatildeo aos jovens

brasileiros

2 Exemplo disso nos sistemas socioeducativos atuais bem como no sistema prisional observamos ldquoum padratildeo de

intervenccedilatildeo racialmente seletivo e higienista que se configura como forma de anulaccedilatildeo e eliminaccedilatildeo das pessoas

que compotildeem a categoria forjada dos ditos lsquoperigososrsquo e lsquodelinquentesrsquordquo (Instituto de Pesquisa Econocircmica e

Aplicada 2016 p 71) Isto eacute tais espaccedilos satildeo ocupados majoritariamente por jovens negros do gecircnero

masculino com baixa escolarizaccedilatildeo e renda

72

A mesma autora destaca que mesmo em meio ao modelo social excludente apresentado

ainda assim eacute possiacutevel construir possibilidades de emancipaccedilatildeo e superaccedilatildeo de condicionantes

da realidade social (Eidelwein 2007) Um exemplo a ser evidenciado eacute a adoccedilatildeo dos

pressupostos apresentados pela autora a partir da perspectiva da classe trabalhadora posto que

satildeo esses que orientam possibilidades de construccedilatildeo de novas formas de compreensatildeo atuaccedilatildeo

e intervenccedilatildeo psi para aleacutem das hegemocircnicas e excludentes apresentadas anteriormente em

relaccedilatildeo aos jovens brasileiros Ou seja o entendimento de pertencimento a classe trabalhadora

que natildeo abarca apenas os jovens mas tambeacutem os profissionais da psicologia deve ser pensado

enquanto entendimento basilar que estrutura nossas accedilotildees profissionais nossa categoria e que

estrutura a sociedade do capital

2 Meacutetodo

Este estudo de caso eacute um recorte de uma pesquisa mais ampla realizada pela primeira

autora no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia da Universidade Federal de Santa

Catarina finalizada em fevereiro de 2019 Na pesquisa de mestrado a autora investigou os

sentidos sobre o trabalho para quatro jovens utilizando a perspectiva teoacuterica e metodoloacutegica da

Psicologia Histoacuterico-Cultural preconizada por Lev Semyonovich Vigotski Alexis Leontiev e

Alexander Luria

Partindo de uma compreensatildeo Histoacuterico-Cultural esta pesquisa se trata de uma anaacutelise

qualitativa em que realizamos um estudo de caso com um jovem em cumprimento de medidas

socioeducativas em meio aberto Aleacutem do Diaacuterio de Campo utilizamos a entrevista

semiestruturada como ferramenta de pesquisa A entrevista foi composta pela identificaccedilatildeo

dados sociodemograacuteficos e por questotildees abertas sobre temas como trajetoacuterias de estudo e de

trabalho cotidiano de trabalho e interfaces entre trabalho medidas socioeducativas e atos

infracionais As entrevistas foram gravadas e transcritas

Em consonacircncia com a perspectiva teoacuterica e metodoloacutegica adotada as anaacutelises foram

realizadas por meio dos Nuacutecleos de Significaccedilatildeo inspirados em Aguiar Soares e Machado

(2015) Na dissertaccedilatildeo de mestrado as anaacutelises foram realizadas por meio de quatro etapas de

siacutenteses e aglutinaccedilotildees temaacuteticas Preacute-indicadores indicadores separados por jovem

indicadores entrelaccedilados e Nuacutecleos de Significaccedilatildeo Neste estudo de caso pela ausecircncia dos

outros jovens participantes as anaacutelises foram realizadas por meio de trecircs etapas sucessivas de

aglutinaccedilotildees e siacutenteses temaacuteticas Preacute-indicadores indicadores e Nuacutecleos de Significaccedilatildeo

73

Para a dissertaccedilatildeo foram formados trecircs nuacutecleos de significaccedilatildeo nomeados como

ldquoTrajetoacuterias de educaccedilatildeo e de trabalhordquo ldquoCotidiano e trabalhordquo ldquoInterfaces entre trabalho e

medidas socioeducativasrdquo A fim de dialogar com o objetivo deste trabalho construiacutemos dois

nuacutecleos de significaccedilatildeo o primeiro chamado ldquoTrajetoacuterias de Pedro uma vida marcada pelo

trabalhordquo e o segundo tal como a pesquisa de mestrado ldquoInterfaces entre trabalho e medidas

socioeducativasrdquo

O primeiro Nuacutecleo teraacute visibilidade nesta pesquisa de forma a contextualizar a vida do

jovem entrevistado e dar suporte para as discussotildees presentes do segundo nuacutecleo Nesse sentido

o uacuteltimo nuacutecleo que possui uma interface com as poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social e

instituiccedilotildees proacuteximas teraacute um papel central na discussatildeo do trabalho

Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos o projeto da investigaccedilatildeo foi

submetido e aprovado pelo Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSHUFSC)

e contamos com a autorizaccedilatildeo por escrito do jovem participante

3 Trajetoacuterias de Pedro uma vida marcada pelo trabalho

Pedro eacute um jovem extrovertido que tem muitas histoacuterias a serem contadas sobre a sua

vida histoacuterias estas que iniciaram tatildeo rapidamente desde o iniacutecio do contato com a pesquisadora

que muitas natildeo puderam ser registradas no gravador Pedro se declarou como pardo tem 18

anos de idade e no momento da entrevista estudava no segundo ano do ensino meacutedio do EJA

- Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos O jovem tem uma extensa trajetoacuteria nos serviccedilos de Proteccedilatildeo

Social Especial de Meacutedia e Alta Complexidade Em sua adolescecircncia frequentou o Serviccedilo de

Proteccedilatildeo e Atendimento Especializado a Famiacutelias e Indiviacuteduos (PAEFI) em seguida transitou

entre medidas socioeducativas em meio fechado e meio aberto em diversos municiacutepios e

estados No momento em que a pesquisa foi realizada cumpria medida de LA e PSC no

municiacutepio em que residia

O municiacutepio em questatildeo estaacute localizado no litoral catarinense Sobre seu bairro de

residecircncia Pedro diz que mora em um ldquobecordquo caracterizado por ele como o menor bairro da

cidade por essa razatildeo relata natildeo frequentar muitos locais da regiatildeo O jovem mora com sua

avoacute um irmatildeo de 17 anos e uma irmatilde de 14 anos Aleacutem de seus dois irmatildeos diz ter uma irmatilde

por parte de pai trecircs irmatildes que foram segundo o jovem ldquoadotadas por consideraccedilatildeordquo e um

irmatildeo que faleceu antes do nascimento Sua matildee reside em outro municiacutepio de Santa Catarina

74

e seu pai encontra-se encarcerado em um presiacutedio de seguranccedila maacutexima tambeacutem em Santa

Catarina motivo este que relata ter ingressado no PAEFI

Sobre as ocupaccedilotildees familiares a avoacute com quem reside trabalha haacute muito tempo em uma

padaria da regiatildeo Aleacutem de trabalhar como doceira trabalha com revendas de cosmeacuteticos

nacionais A irmatilde caccedilula por sua vez trabalha informalmente nas temporadas de veratildeo com os

tios vendendo milho churros e aacutegua Em relaccedilatildeo ao irmatildeo Pedro diz que o jovem ldquoeacute

malandratildeordquo pois as vezes aparece com dinheiro cuja origem eacute desconhecida

Em relaccedilatildeo ao contexto de trabalho Pedro traz muitas histoacuterias e diz que sempre teve

muito incentivo de sua famiacutelia para trabalhar Na infacircncia havia um engenho de farinha em que

todos os familiares trabalhavam inclusive Pedro Poreacutem o engenho entrou em processo de

falecircncia Em seguida Pedro trabalhou em diferentes praias vendendo castanhas-de-caju e

fazendo bijuterias artesanais segundo o jovem ldquoeu mesmo fazia e eu mesmo vendiardquo Por certo

tempo de sua vida o jovem diz que ganhou bastante dinheiro realizando atividades ligadas ao

narcotraacutefico e atividades afins

Atualmente Pedro e seu tio trabalham na aacuterea de construccedilatildeo civil realizando o serviccedilo

de calfinagem isto eacute o acabamento de paredes internas de casas e apartamentos com cal fina

Em concomitacircncia com esse trabalho o jovem e sua tia realizaram um curso de importaccedilatildeo pela

internet e hoje importam produtos de outro paiacutes para vender no Brasil

Como vimos Pedro iniciou sua trajetoacuteria de trabalho de forma precoce Aos sete anos

de idade jaacute desenvolvia trabalhos na aacuterea alimentiacutecia em conjunto com sua famiacutelia Calil (2003)

aponta que ldquohistoricamente o trabalho eacute uma presenccedila constante na vida de crianccedilas e

adolescentes das camadas popularesrdquo (p 151) A condiccedilatildeo de pobreza e de trabalho infantil

acabam marcando a experiecircncia em relaccedilatildeo ao trabalho e a proacutepria vida em geral para esses

sujeitos Tendo em vista que os jovens passam a significar e a construir sentidos tomando

contato com outras realidades a realidade em que o trabalho era a uacutenica forma de garantir o

sustento familiar (Pereira 2003) eacute constitutiva na vida de Pedro

Para que conseguisse um trabalho com retorno financeiro satisfatoacuterio Pedro contou que

teve que trabalhar bastante durante sua vida Todos os seus trabalhos ateacute o momento da

entrevista foram considerados pelo jovem como ldquoautocircnomosrdquo ndash ldquoeu mesmo fazia e eu mesmo

vendiardquo ndash embora sempre atrelados aos trabalhos familiares e lugares puacuteblicos

Trabalhei muito em diversos lugares Trabalhei na praia igual a minha irmatilde Fazia tipo

aqueles negoacutecios de bijuteria artesanal O meu tio fazia no quadro eu fazia aqueles negoacutecios

75

de prosperidade incenso noacutes fazia tambeacutem coisas pra colocar tabaco vendia castanha na praia

Trabalhei muito sempre em lugares que tinha bastante pessoas (Pedro)

A condiccedilatildeo de pobreza persistente conforme Calil (2003) leva os adultos a utilizarem

o trabalho infantil como estrateacutegia de sobrevivecircncia do grupo familiar Nesse sentido embora

Pedro afirme que toda sua trajetoacuteria laboral foi como ldquoautocircnomordquo o suporte familiar

possibilitou sua autonomia no trabalho na medida em que necessitava auxiliar na sobrevivecircncia

proacutepria e da famiacutelia (Calil 2003) Eacute interessante perceber como tais relaccedilotildees entre trabalho e

famiacutelia se mostram paradoxais pois o trabalho infantil foi utilizado como subsiacutedio para a

complementaccedilatildeo da renda familiar atrelando-se assim a uma forma de sobrevivecircncia familiar

ao mesmo tempo em que as experiecircncias de trabalho para a sobrevivecircncia de si e de sua famiacutelia

lhe permitiram atribuir sentidos de autonomia e emancipaccedilatildeo precoce

O jovem relatou que desde sua juventude trabalhou no traacutefico de drogas e em atividades

afins

Natildeo era soacute traacutefico neacute Eu com 15 anos era patratildeo tinha duas trecircs biqueiras3 jaacute Jaacute tinha 15

anos e jaacute cuidava neacute E comprava coisas com caras que tavam dentro do sistema neacute Comprava

creacutedito pra eles dava telefone pra eles pra falar com eles Jaacute tava bem mais avanccedilado tambeacutem

entendeu (Pedro)

Consideramos tal como Feffermann (2006) o traacutefico de drogas como um fenocircmeno que

transpassa a ordem policial e criminal pois estaacute inserido na sociedade como parte integrante do

sistema social poliacutetico e econocircmico vigente Este sistema ldquoalicerccedilado na acumulaccedilatildeo do

capital cria e reproduz uma reserva de forccedila de trabalho desempregada ou parcialmente

desempregada e uma grande parcela desta populaccedilatildeo passa a desenvolver estrateacutegias de

sobrevivecircncia sendo que alguns transpassam o limite da legalidaderdquo (Feffermann 2006 p

209)

O trabalho no traacutefico de drogas eacute portanto uma atividade que surge para o jovem como

resposta a uma marginalidade econocircmica (Feffermann 2006) e que possui caracteriacutesticas de

um trabalho duplamente informal pois aleacutem de ser um trabalho sem regulamentaccedilatildeo formal

ldquoeacute um mercado de circulaccedilatildeo de mercadorias iliacutecitas cuja atividade eacute em si mesmo

criminalizadardquo (Misse 1999 p 293)

Em seu trabalho atual o jovem afirma conciliar duas formas de trabalho os serviccedilos de

calfinagem e de revenda de produtos importados O trabalho com cal fina por ser um serviccedilo

informal natildeo gera um salaacuterio fixo mas sim uma remuneraccedilatildeo por dia de trabalho conforme o

metro de revestimento realizado por exemplo ldquovamos fazer as contas faz uns 15 20 metros

3 Terminologia coloquial que significa o lugar onde se vendem substacircncias psicoativas

76

por dia daiacute agraves vezes 18 aiacute daacute uns 400 300 [reais] por diardquo A flexibilidade desse tipo de

trabalho eacute considerada pelo jovem como um aspecto positivo tendo em vista que natildeo precisa

estar subordinado a ningueacutem ldquose eu trabalhei hoje eu ganho se eu natildeo trabalhar eu natildeo ganho

eu natildeo preciso ficar dependendo de ningueacutem escutando coisa dos outrosrdquo

Por residir em um municiacutepio onde a construccedilatildeo civil eacute um dos principais ldquomotoresrdquo da

economia regional o jovem diz que ldquosempre tem bastante serviccedilo mas tem bastante

concorrecircncia tambeacutem mas daiacute eu melhoro o preccedilo e melhoro a qualidade aiacute sempre vai neacuterdquo

O jovem trabalha durante o dia e estuda no periacuteodo noturno

Segundo Mattos e Chaves (2010) para conciliar o tempo de estudo e de trabalho que

ocorrem em turnos diferentes do dia os jovens precisam (re)organizar a rotina diaacuteria para

acomodar a atividade laboral Os mesmos autores dizem que o tempo gasto no deslocamento

entre o trabalho e a escola foi apontado em sua pesquisa empiacuterica com jovens trabalhadores

como uma dificuldade a ser superada Tais constataccedilotildees tambeacutem foram encontradas no discurso

de Pedro o jovem diz que precisa sair mais cedo do trabalho deixando de ganhar mais dinheiro

no dia pois a localizaccedilatildeo da escola eacute afastada dos locais onde normalmente trabalha

A conciliaccedilatildeo de estudo e trabalho faz com que o cotidiano de Pedro seja exaustivo isso

se deve agrave carga horaacuteria de trabalho agrave distacircncia da escola e ao fato de ser um trabalho pesado

ldquoEacute braccedilal pra caramba toda hora eu tenho peso na matildeordquo ldquoEacute corrido pra mim tambeacutem eu

chego cansado porque o cal fino cansardquo ldquoeacute calo na matildeo pra carambardquo

Antunes (2011) ao descrever os diversos modos de ser da informalidade cita os que se

inserem em setores de prestaccedilatildeo de serviccedilos sem garantias e direitos sociais Caso fiquem

doentes pelo excesso de trabalho braccedilal por exemplo correm o risco de perder sua renda Outra

caracteriacutestica sobre os modos de ser na informalidade diz respeito agrave carga horaacuteria de trabalho

segundo Antunes (2011 sp) ldquonatildeo haacute horaacuterio fixo de trabalho e as jornadas de trabalho levam

frequentemente ao uso das horas vagas para aumentar a renda oriunda da atividaderdquo Tal

realidade pode ser ilustrada pela fala de Pedro ao dizer que ldquo[em] dois dias eu tive que

trabalhar cheio Ateacute 8 9 horas da noite no saacutebado por exemplo fiquei ateacute 9 horas da noite

trabalhando porque a gente faz pra terminarrdquo

Dialogando sobre aspectos gerais sobre a categoria trabalho Pedro definiu a mesma

enquanto uma forma de rotina que garante sua sobrevivecircncia Tal definiccedilatildeo acaba por

evidenciar sua origem social

Trabalho pra mim eacute uma coisa que a pessoa precisa da nossa comunidade da minha

comunidade mesmo eu natildeo sei da tua neacute mas na minha comunidade eu nasci na pobreza

77

neacute Eu preciso de um trabalho pra crescer neacute pra adquirir Trabalho eacute o que a pessoa precisa na

minha comunidade por exemplo que todo mundo precisa e natildeo tem taacute em falta neacute E hoje em

dia tem bastante pessoa que natildeo consegue trabalho Taacute em crise (Pedro)

A condiccedilatildeo de pobreza situada por Pedro eacute considerada uma das expressotildees da questatildeo

social a qual se manifesta dentre muitos outros determinantes pelas desigualdades de renda

entre os grupos sociais

Para os grupos sociais empobrecidos que vivem em condiccedilotildees precaacuterias de trabalho

basta uma situaccedilatildeo conjuntural de crise de subsistecircncia para que esta populaccedilatildeo seja suscetiacutevel

de ser desestabilizada tanto pela queda de produccedilatildeo de atividades quanto pelo desemprego

conforme afirma Castel (2008) Tal caracteriacutestica eacute visualizada no trecho em que Pedro relata

sobre a crise econocircmica que se faz presente no atual contexto brasileiro a qual afetou e vem

afetando pessoas que residem em sua comunidade (e que compartilham de sua situaccedilatildeo de

pobreza) agravando a condiccedilatildeo de trabalhadores subempregados e desempregados

Em referecircncia a seu meio social e a seu trabalho com a cal fina o jovem diz que realiza

um trabalho o qual tem condiccedilotildees de executar de modo a obter um retorno financeiro ldquoeu tenho

condiccedilotildees que eu tenho como trabalhar eacute um jeito que eu acho de guardar mais dinheirordquo

Atrelado a isso o trabalho de importaccedilotildees que realiza com sua tia eacute um ldquotrabalho que me ajudou

muito porque pra mim ter condiccedilotildees de taacute vendendo isso taacute importando passei por bastante

coisa e foi difiacutecil natildeo eacute faacutecilrdquo ldquoeu tenho o maior orgulho de venderrdquo Mesmo diante das

inuacutemeras contradiccedilotildees que perpassam o cotidiano de trabalho de Pedro o jovem se refere com

sentimentos positivos em relaccedilatildeo agraves atividades que vem desenvolvendo

Eu fico bastante orgulhoso de mim porque eu tenho aprendido essa profissatildeo e o significado

dela eacute que me motiva a cada dia Eacute o dinheiro neacute pra eu ter o meu sustendo e eu sofri bastante

pra poder fazer o que eu faccedilo E eu me orgulho muito e tem um significado de gratidatildeo De

aprender mesmo a fazer esse negoacutecio (Pedro)

Isto eacute mesmo desenvolvendo trabalhos informais e conciliando uma rotina exaustiva

Pedro expressa orgulho em revender produtos importados e executar serviccedilos de calfinagem

uma vez que esses trabalhos lhe trouxeram autonomia financeira em sua vida Por fim podemos

considerar que a histoacuteria de Pedro eacute marcada desde sua infacircncia pela necessidade de muito

trabalho

4 Manifestaccedilotildees da questatildeo social Interfaces entre trabalho Psicologia e MSE

A histoacuteria de Pedro nos revela que aleacutem de uma vida marcada por muito trabalho o

jovem vivenciou uma longa experiecircncia com alguns equipamentos de assistecircncia social Por

78

exemplo antes de cumprir a medida socioeducativa ele relata que frequentou o CREAS no

serviccedilo de Proteccedilatildeo e Atendimento Especializado a Famiacutelias e Indiviacuteduos (PAEFI) desde os

14 anos de idade junto a seu irmatildeo Ao relatar tais experiecircncias Pedro destaca que

mas daiacute ela era psicoacuteloga tambeacutem Mas natildeo era referente ao ato infracional Mas era tipo na

minha famiacutelia tinha pessoa que tava fazendo ato infracional e ela sabia tinha denuacutencia E eu

tinha que vir aqui pra ela ver meu psicoloacutegico pra eu natildeo cair na vida daiacute tinha que vir (Pedro)

Cruz Hillesheim e Guareschi (2005) alertam para a existecircncia de praacuteticas psis

hegemocircnicas em serviccedilos de prevenccedilatildeo e vigilacircncia direcionada aos jovens ldquopotencialmente

perigososrdquo que acabam por se desdobrar em uma concepccedilatildeo dicotomizada de infacircncia dita

normal ideal e desejaacutevel em oposiccedilatildeo a uma infacircncia de risco Nesse sentido eacute interessante

observar a referecircncia que Pedro faz ao trabalho da psicoacuteloga que lhe prestou atendimento

Enquanto profissional que ao desenvolver seu trabalho tem como horizonte manter a

estabilidade das possibilidades de desenvolvimento dele conforme um padratildeo do que eacute

considerado normal e natildeo a partir das contradiccedilotildees que envolvem a sua vida concreta

Entendemos que o trabalho doa psicoacutelogoa na aacuterea da assistecircncia social eacute psicossocial

ou seja eacute um serviccedilo realizado junto a profissionais do serviccedilo social e logo supera as praacuteticas

tradicionais da psicologia tais como atendimento individual e cliacutenico Em relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo

profissional nos serviccedilos do PAEFI as atividades satildeo realizadas conforme as demandas das

pessoas atendidas por isso as atuaccedilotildees profissionais satildeo diversas como orientaccedilotildees sobre seus

direitos sociais encaminhamentos para outros equipamentos da rede atendimento

especializado ateacute oficinas com famiacutelias (Brasil 2012) nesse sentido constitui-se uma gama de

possibilidades para o desenvolvimento do trabalho doa psicoacutelogoa no respectivo serviccedilo

Pedro nos relata ter passado por grande parte das MSEs que estatildeo tipificadas no ECA

tais como medida socioeducativa de internaccedilatildeo de liberdade assistida e de prestaccedilatildeo de

serviccedilos agrave comunidade aleacutem de jaacute ter pago cestas baacutesicas ldquoJaacute paguei cesta baacutesica jaacute paguei

um monte de coisardquo As trajetoacuterias de Pedro nos respectivos serviccedilos o PAEFI como forma de

ldquoproteccedilatildeo e prevenccedilatildeordquo e a medida socioeducativa como forma de ldquorecuperaccedilatildeo e reeducaccedilatildeordquo

se desdobram na relaccedilatildeo experienciada pelas crianccedilas e adolescentes pobres que ora satildeo

consideradas perigosas necessitando de medidas de ldquocorreccedilatildeordquo ora estatildeo em perigo de ser e

precisam de ldquoproteccedilatildeordquo e ldquoprevenccedilatildeordquo (Rizzini 1997) E interessante pontuar que tal

representaccedilatildeo ambivalente foi construiacuteda no advento da urbanizaccedilatildeo e da industrializaccedilatildeo

brasileira estando associada a determinados grupos sociais do jovem pobre negro morador

de periferia na medida em que eacute transformado em ldquomenor infratorrdquo (Meneghetti 2018) pela

periculosidade invariavelmente atrelada agraves classes populares (Rizzini 1997)

79

Durante seu percurso de internaccedilotildees o jovem diz que ldquovivia dopadordquo pois enquanto

permanecia no centro de internaccedilatildeo recebia psicotroacutepicos com receita meacutedica A

medicalizaccedilatildeo4 de jovens em ambientes socioeducativos de internaccedilatildeo eacute um fato que ocorre

frequentemente e eacute um tema presente na literatura brasileira (Anjos 2018 Vicentin Gramkow

amp Rosa 2010) portanto eacute tambeacutem um tema de sauacutede puacuteblica

Historicamente as praacuteticas psis estiveram atreladas ao modelo hegemocircnico pautado na

medicina e psiquiatria em que as praacuteticas cliacutenicas estatildeo direcionadas agrave adaptaccedilatildeo das pessoas

na busca por padrotildees de normalidade A partir disso problematizamos a responsabilidade eacutetico-

poliacutetica que constitui o trabalho dosas psicoacutelogosas quando natildeo satildeo questionados os processos

de medicalizaccedilatildeo patologizaccedilatildeo e institucionalizaccedilatildeo em ambientes socioeducativos Mesmo

que a categoria de psicoacutelogosas natildeo possa receitar medicamentos a atuaccedilatildeo nestes serviccedilos

conta com uma equipe teacutecnica multidisciplinar o que coloca todosas os profissionais

envolvidos num lugar de responsabilidade e postura eacutetica com suas praacuteticas Assim reiteramos

a necessidade de superaccedilatildeo dessa loacutegica uma vez que fenocircmenos sociais devem ser tratados

em sua totalidade e singularidade e natildeo como doenccedilas ou como comportamentos a serem

medidos e ldquoajustadosrdquo de forma individual

Diante disso entendemos a necessidade do desenvolvimento de um trabalho

efetivamente multidisciplinar no acircmbito da assistecircncia social envolvendo desde meacutedicosas

psicoacutelogosas assistentes sociais advogados educadores sociais entre outros Em certa

medida a legislaccedilatildeo da poliacutetica jaacute prevecirc essa disposiccedilatildeo contudo o que se observa eacute que apesar

da existecircncia dessa prerrogativa muitas vezes os profissionais acabam atuando de forma

fragmentada

No que diz respeito agrave interface entre medidas socioeducativas ato infracional e trabalho

na vida de Pedro o jovem relata suas experiecircncias de trabalho dentro e fora do campo da

legalidade Nesse sentido o traacutefico de drogas para o jovem eacute significado como uma atividade

importante pois remete a sua adolescecircncia e sua forma de sobrevivecircncia naquele momento

Segundo o jovem

antes eu soacute traficava natildeo trabalhava soacute vivia das coisas erradas Era soacute coisa errada realmente

era soacute coisa errada Eu quando tinha uma cabeccedila mais era mais menor tinha uma cabeccedila

diferente de pensar eu achava isso uma maneira de ganhar dinheiro hoje em dia eu jaacute natildeo acho

mais (Pedro)

4 Salientamos a necessidade de compreender as muacuteltiplas determinaccedilotildees que envolvem tal temaacutetica tais como a

patologizaccedilatildeo da infacircncia os mecanismos de controle social da populaccedilatildeo juvenil a sauacutede mental em instituiccedilotildees

socioeducativas a ideia de periculosidade atrelada aos transtornos mentais entre outras

80

Feffermann (2006) destaca que o mercado ilegal surge como uma das respostas agrave

marginalidade econocircmica para jovens pertencentes agraves classes populares viacutetimas do crescimento

econocircmico desigual Sabendo da complexidade do trabalho e do traacutefico de drogas enquanto

importante dimensatildeo da constituiccedilatildeo subjetiva e natildeo querendo esgotar tais dimensotildees

afirmamos a partir dos relatos de Pedro que o traacutefico de drogas esteve presente em sua vida

como uma estrateacutegia de sobrevivecircncia e um meio de ganhar dinheiro

Entendemos que o trabalho doa psicoacutelogoa nas poliacuteticas puacuteblicas com questotildees

relacionadas a atos infracionais natildeo deve ser pautado em concepccedilotildees moralizantes que

contribuem para a criminalizaccedilatildeo da juventude envolvida nessas relaccedilotildees Mas sim uma

atuaccedilatildeo voltada para compreender o lugar que tais relaccedilotildees assumem na vida desses jovens e

para a construccedilatildeo de soluccedilotildees coletivas que visam superar esse contexto de produccedilatildeo de

criminalidade no qual se constituem as vidas de tantos jovens

Segundo Oliveira e Costa (2018) o desafio da psicologia consiste em compreender que

eacute a proacutepria pobreza que condiciona produz e reverbera os mais variados problemas

apresentados no cotidiano da profissatildeo Natildeo se trata apenas de uma formaccedilatildeo precaacuteria que natildeo

prepara seus profissionais para atuar em contextos de pobreza enquanto uma postura eacutetica

social e de classe comprometida com nossa realidade mas tambeacutem a proacutepria estrutura da

economia e da poliacutetica que satildeo permeadas por interesses da classe dominante (Oliveira amp Costa

2018) Por exemplo uma atuaccedilatildeo voltada a inserccedilatildeo de jovens no mercado de trabalho parece

desconsiderar a realidade dezenas de milhotildees desempregados na atualidade isto eacute o

desemprego estrutural

Em relaccedilatildeo ao cotidiano de trabalhadores do traacutefico outro aspecto a ser visibilizado diz

respeito ao cotidiano de sucessivas violecircncias atreladas agrave atividade Pedro revela ter

interrompido as atividades de traacutefico de drogas pois estava em busca de sua liberdade

Tambeacutem pelo amor que sente por sua famiacutelia e pelo medo de morrer ou de perder algum

membro de sua famiacutelia para a violecircncia por isso diz ter se distanciado das atividades ilegais e

passou a desenvolver atividades na construccedilatildeo civil conforme jaacute mencionamos

Poreacutem esse tempo de permanecircncia em atividades natildeo legalizadas fizeram com que o

jovem ficasse ldquorotuladordquo pela poliacutecia militar e sofresse diversas violaccedilotildees de direitos Segundo

o jovem tais violaccedilotildees acontecem com frequecircncia

foi de noite Eu tava na rua da minha casa eles me pegaram laacute eu tava vendendo droga eles

sabiam neacute tinha muita denuacutencia jaacute sabiam e eu tava marcado jaacute avisaram Eu natildeo tava

escutando eles eles podiam falar eu natildeo tava nem aiacute Daiacute foi o que aconteceu eles me pegaram

perto da 130 1h me levaram e me bateram (Pedro)

81

De acordo com Wacquant (2001) o uso constante da violecircncia pela poliacutecia militar

contra pessoas de camadas populares banalizou a brutalidade no seio do Estado Aleacutem disso o

uso da violecircncia policial estaacute ancorado em concepccedilotildees hieraacuterquicas e paternalistas que atingem

trabalhadores e pessoas ldquoem conflito com a leirdquo de forma que a manutenccedilatildeo da ordem de classe

e da ordem puacuteblica se confundem

Na histoacuteria de Pedro a violecircncia policial natildeo se restringe ao momento imediato da

abordagem policial mas sim se constitui em ameaccedilas constantes napara vida do jovem ldquoEles

[policiais militares] avisaram na frente do advogado falaram ldquoah se noacutes te pegar de novo

na rua vocecirc jaacute sabe a gente vai te matar [me] ameaccedilou ameaccedilou assim com o advogado

vendo eu natildeo meti um processo neles porque eu natildeo quero morrerrdquo A fala de Pedro eacute

reveladora de um contexto no qual natildeo raramente as ameaccedilas de morte se materializam em

assassinatos de jovens pobres e negros por parte da poliacutecia entrando para as estatiacutesticas de

genociacutedio dessa populaccedilatildeo

Eacute importante ressaltar que mesmo cumprindo as medidas socioeducativas e afirmando

que encerrou as atividades ligadas ao narcotraacutefico as abordagens policiais e violaccedilotildees de

direitos continuam na vida de Pedro Desse modo Pedro poderia ser situado como provaacutevel

alvo daquilo que Meneghetti (2018) considera como ldquocisma policialrdquo a qual eacute constituiacuteda a

partir da imagem construiacuteda em relaccedilatildeo aos jovens desde sua primeira ocorrecircncia sobretudo

caso ele apresente atributos baacutesicos de suspeiccedilatildeo em termos de gecircnero raccedila e classe somados

agrave aparecircncia No caso de Pedro observamos a seguinte situaccedilatildeo

Aqui acontece direto Me pegaram em quatro agora e me pegaram 100 reais Faz duas ou trecircs

semanas tava com 500 reais no bolso e eles [policiais militares] falaram ldquode quem eacute esse

dinheiro aquirdquo E eu falei ldquoacabei de receber tava voltando do serviccedilordquo Me pegaram eu tava

com roupa e o sapatatildeo de tecircnis e tudo Me pegaram eles me conhecem neacute Se eles pegassem

os 500 reais que eu tivesse recebido no dia aiacute meu deus eu ia levar na corregedoria e eles iam

se incomodar neacute Soacute que por 100 reais eu natildeo ia me incomodar Depois ele vai querer me matar

ainda neacute (Pedro)

Em busca de desfazer o estereoacutetipo ldquomenor suspeitordquo Pedro recorre ao trabalho O

uniforme de trabalho ldquoroupa e o sapatatildeordquo adquire um sentido para aleacutem de subsistecircncia mas

sim envolve uma possibilidade de condiccedilatildeo de seguranccedila relacionada a um status de natildeo

delinquecircncia Ao mesmo tempo em que Pedro enfatiza o orgulho e a autonomia que o seu

trabalho proporciona tambeacutem retrata que a realidade de desemprego estaacute presente para muitas

pessoas que residem ao seu redor Isto eacute a contradiccedilatildeo sobressalente nos sentidos sobre o

trabalho diz respeito ao sistema social e econocircmico que precariza as condiccedilotildees mais baacutesicas de

82

existecircncia tirando das pessoas o direito ao trabalho que se tratando de uma classe que necessita

trabalhar para (sobre)viver trata-se de uma ameaccedila agrave proacutepria vida humana

Consideraccedilotildees finais

Este trabalho teve como objetivo compreender as trajetoacuterias de vida de um jovem em

cumprimento de medidas socioeducativas e algumas reflexotildees acerca das praacuteticas psis em

serviccedilo da poliacutetica de assistecircncia social Ao longo do desenvolvimento da pesquisa que deu

origem agrave presente reflexatildeo diversos questionamentos sobre essas relaccedilotildees principalmente

acerca do trabalho doa psicoacutelogoa no ambiente socioeducativo foram se constituindo no

diaacuterio de campo Como acolher as histoacuterias dos jovens que estatildeo por vir Como abordar as

temaacuteticas de cunho institucional sem que gere desconforto ou que criminalize ainda mais os

jovens Qual eacute a melhor forma ou instrumentos de trabalho para que eles se sintam acolhidos

numa instituiccedilatildeo direcionada a temaacuteticas que transversalizam questotildees sobre criminalidade

Como a psicologia pode ajudar na superaccedilatildeo de condiccedilotildees de vidas precaacuterias

Os desafios postos na construccedilatildeo de praacuteticas psi que indiquem possibilidades de romper

com preconceitos e concepccedilotildees que naturalizam a condiccedilatildeo de pobreza em relaccedilatildeo aos jovens

satildeo muitos Tais desafios apontam tanto para a revisatildeo das concepccedilotildees teoacutericas que sustentam

as praacuteticas como para as proacuteprias praacuteticas dosas psicoacutelogosas Oliveira e Costa (2018) nos datildeo

uma pista para que possamos compreender e superar tais condiccedilotildees qual seja pressupor que o

cerne das contradiccedilotildees postas na atualidade estaacute situado nas relaccedilotildees capital-trabalho E por

isso por mais acessiacutevel inclusiva ou democraacutetica que sejam as poliacuteticas puacuteblicas elas ainda

em maior ou menor grau satildeo engendradas nesse contexto de contradiccedilotildees

Entendemos que essa compreensatildeo retoma a funccedilatildeo histoacuterica social e poliacutetica do

trabalho doa psicoacutelogoa E neste caso pensar e concretizar possibilidades de superaccedilatildeo do

que estaacute posto em relaccedilatildeo a ele desdobra-se em uma responsabilidade eacutetico-poliacutetica com a

classe trabalhadora brasileira isto eacute com a proacutepria de vida de jovens como Pedro Destacamos

na histoacuteria de Pedro a persistecircncia de desigualdades de classe constituiacuteda por relaccedilotildees

complexas de uma estrutura social precaacuteria e perversa que coloca a vida humana nas margens

Portanto eacute importante resgatar a urgecircncia de uma praacutetica profissional baseada na eacutetica na

permanente reflexatildeo e autocriacutetica e ainda comprometida com a realidade e com os jovens

brasileiros As diversas trajetoacuterias de trabalho de Pedro evidenciam o quanto na vida deste

jovem trabalhador a ocupaccedilatildeo em serviccedilos informais e ilegais se colocou como uacutenica

83

possibilidade assim como para outros jovens inclusive de sua proacutepria famiacutelia E tambeacutem o

quanto tais condiccedilotildees o colocaram em relaccedilotildees contraditoacuterias e sucessivas com as poliacuteticas de

assistecircncia social

Por fim reiteramos como ressaltam Mayer e Nuacutentildeez (2017) a importacircncia de

considerarmos processos de longo prazo e natildeo apenas conjunturas especiacuteficas pois ao conhecer

a constituiccedilatildeo histoacuterica do Estado brasileiro e a trajetoacuteria de Pedro comum a tantos jovens de

camadas populares cabe a Psicologia contribuir para identificar e natildeo permitir a reproduccedilatildeo de

padrotildees e loacutegicas excludentes de praacuteticas psicologizantes correcionistas e culpabilizadoras de

questotildees que satildeo de ordem social

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86

Capiacutetulo 5

Medidas socioeducativas as narrativas de adolescentes e o uso da literatura

como disparadores de anaacutelise

Beatriz Saks Hahne

Adriana Marcondes Machado

Introduccedilatildeo

Seratildeo apresentadas a partir de pesquisa de doutorado em andamento1 experiecircncias

construiacutedas em parceria com adolescentes e jovens que cumprem ou cumpriram recentemente

medida socioeducativa Satildeo meninos e meninas que ao praticarem ato infracional tecircm suas

trajetoacuterias carregadas de vivecircncias em unidades de internaccedilatildeo e se percebem transitando na

comunidade em que habitam tomados como autores de ato infracional isso estaacute presente na

famiacutelia na escola nos olhos dos vizinhos e na relaccedilatildeo com a poliacutecia

Situada no departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do

Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo a incursatildeo acadecircmica no campo das

medidas socioeducativas se alia agrave afirmaccedilatildeo da Psicologia como lugar do debate a favor da

garantia de direitos Para tanto um primeiro tensionamento parece necessaacuterio falamos em

Psicologias no plural compreendendo seu saber inserido em uma disputa (Coimbra amp

Nascimento 2008) de mundos representada por aquilo que eacute solicitado de sua praacutetica

Profissionais do campo ldquopsirdquo satildeo frequentemente convocados a agir por meio de verbos como

nomear definir e significar demandados a corrigir caminhos ou de outra forma no que diz

respeito agrave discussatildeo deste artigo a ressocializar o adolescente que ldquodesviardquo (Batista 2003)

Com a perspectiva de ampliar a discussatildeo sobre o trabalho com os adolescentes

atendidos por essa poliacutetica puacuteblica a pesquisa de doutorado que alimenta estas linhas realiza a

construccedilatildeo de narrativas com jovens que hoje cumprem medidas socioeducativas de meio

aberto ndash Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade e Liberdade Assistida ndash ou que possuem trajetoacuteria

anterior de cumprimento de alguma das seis sanccedilotildees descritas na Lei 8069 (Brasil 1990)

Importa escutar histoacuterias para alongar o olhar em relaccedilatildeo a um horizonte que diz respeito a

vidas ameaccediladas ndash de sua dignidade e do corpo fiacutesico Na intenccedilatildeo de conhecer o que esses

1 O trabalho de campo da presente pesquisa foi iniciado em dezembro de 2018

87

adolescentes contariam sobre suas trajetoacuterias em meio ao tempo de cumprimento das medidas

socioeducativas tomamos o ato infracional vinculado ao contexto histoacuterico que tambeacutem o

constitui

Certos modos de pensar e de operacionalizar os atendimentos teacutecnicos e os

encaminhamentos aos serviccedilos e atores do Sistema de Garantia de Direitos2 aleacutem da elaboraccedilatildeo

do Plano Individual de Atendimento3 e dos relatoacuterios enviados ao poder judiciaacuterio fazem colar

nos adolescentes discursos de uma identidade totalizada Falamos dos procedimentos que se

repetem ao natildeo considerarem aquilo que singularmente suas trajetoacuterias solicitam Ao

contribuir para um certo enrijecimento identitaacuterio (Rolnik 2006) afirmando determinadas

formas de vida em detrimento de outras ndash avaliaccedilatildeo sempre do campo da moral e da

arbitrariedade ndash potencializam as chances de que todos fiquem assimilados como adolescentes-

infratores4

Esse modo de operar cria elo com a natildeo variaccedilatildeo da vida pois atribuindo agrave medida

socioeducativa o objetivo de ressocializar arriscamos ver no jovem algueacutem desinteressado ou

destoante que natildeo consegue alcanccedilar a ideia socialmente constituiacuteda do que seria uma vida boa

e correta Essa posiccedilatildeo tambeacutem produz efeitos nos profissionais cujas praacuteticas ficam menos

criativas e mais pressionadas a responder a demandas judiciais que em geral natildeo se articulam

aos desafios dos enfrentamentos cotidianos Opor-se a esse modo de pensar a juventude implica

uma atuaccedilatildeo que conquiste discussotildees elaboraccedilotildees e conversas para que a cada passo as

estrateacutegias de atendimento considerem as especificidades daqueles para quem e com quem

trabalhamos

A produccedilatildeo da realidade passa necessariamente pelas trocas que se datildeo no mundo de

forma que a duacutevida pode ser alimento para a accedilatildeo ao natildeo restringir a vida a ser aquilo que se

supotildee que deveria ser Nessa reduccedilatildeo fica de fora o singular cuja importacircncia eacute permitir ver o

2 Resoluccedilatildeo 113 Conanda (2006) ldquoArt 1ordm O Sistema de Garantia dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente

constitui-se na articulaccedilatildeo e integraccedilatildeo das instacircncias puacuteblicas governamentais e da sociedade civil na aplicaccedilatildeo

de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoccedilatildeo defesa e controle para a efetivaccedilatildeo

dos direitos humanos da crianccedila e do adolescente nos niacuteveis Federal Estadual Distrital e Municipalrdquo Disponiacutevel

em httpwwwcrpsporgbrportalcomunicacaodiversosmini_cdpdfsRes_113_CONANDApdf Acesso em

23 jul 2019 3 Lei 1259412 Art 1 sect 2ordm ldquoEntendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art 112 da Lei nordm 8069

de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Crianccedila e do Adolescente) as quais tecircm por objetivos I - a responsabilizaccedilatildeo

do adolescente quanto agraves consequecircncias lesivas do ato infracional sempre que possiacutevel incentivando a sua

reparaccedilatildeo II - a integraccedilatildeo social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais por meio do

cumprimento de seu plano individual de atendimento e III - a desaprovaccedilatildeo da conduta infracional efetivando as

disposiccedilotildees da sentenccedila como paracircmetro maacuteximo de privaccedilatildeo de liberdade ou restriccedilatildeo de direitos observados os

limites previstos em leirdquo 4 A historiadora Vera Malaguti Batista (2003) traz esta questatildeo ao estudar relatoacuterios produzidos por psicoacutelogas nas

unidades da Febem da cidade do Rio de Janeiro ao longo de 20 anos (1960-1980)

88

que faz uma existecircncia persistir O que faz uma vida vingar Agamben (2007) em diaacutelogo com

Foucault ressalta as vidas que satildeo caladas e colocadas agrave margem ao serem acessiacuteveis por meio

de escritas feitas sobre elas que registram a marca da infacircmia daqueles sobre quem se escreve

Convocar esses adolescentes a produzirem narrativas a partir de saberes sobre a proacutepria

trajetoacuteria eacute uma estrateacutegia entre outras contra o apagamento de uma autoria de vida

Para acessar e discutir com nossos colaboradores suas memoacuterias ndash aquilo que constitui

sua existecircncia ndash utilizamos a construccedilatildeo de narrativas como ferramenta Ouvir os relatos

escrevecirc-los ler conjuntamente e reescrevecirc-los eacute processo animado pelo uso da literatura

Romances letras de muacutesicas e poemas satildeo tomados como recursos para dignificar a vida

coletivizar as existecircncias e criar alianccedilas em um contexto em que a marca juriacutedica coloca esses

jovens como se fossem maacutes exceccedilotildees Os textos emprestam uma experiecircncia ao leitor fazendo

de suas linhas moradas do afeto pois ao compartilhar sentimentos duacutevidas e amores neles

presentes o leitor emprestando essas experiecircncias torna-se algueacutem menos isolado

Para continuaccedilatildeo da discussatildeo apresentaremos a poliacutetica puacuteblica das medidas

socioeducativas e o procedimento que temos utilizado a partir de uma certa Psicologia junto

aos adolescentes que vivem essas medidas

1Medidas socioeducativas entre a poliacutetica puacuteblica e o sujeito-adolescente

Data de 1923 a poliacutetica de proteccedilatildeo social brasileira voltada agravequeles entatildeo nomeados

como ldquomenores abandonados e delinquentesrdquo5 Dela a criaccedilatildeo do Juizado de Menores e o

reforccedilo ao termo que mora em tempo contiacutenuo no saber social como marca do jovem que

diverge ou que delinque ou que eacute pobre e em geral negro Menor palavra que com o Coacutedigo

de Menores eacute associada ldquodefinitivamente a crianccedilas pobres a serem tuteladas pelo Estado para

a preservaccedilatildeo da ordem e asseguramento da modernizaccedilatildeo capitalista em cursordquo (Batista 2003

p 69) Processo de capitalizaccedilatildeo de um Brasil recentemente saiacutedo dos tempos de escravatura e

que natildeo teve de seu seio retiradas as marcas da escravizaccedilatildeo dos negros roubados agrave sua terra

(Gomes amp Schwarcz 2018) Ao contraacuterio tais feridas persistem e constroem incessantemente

dados estatiacutesticos acerca das desigualdades sociais no Brasil6

5 Decreto nordm 16272 de 20 de dezembro de 1923 ndash Artigo 24 sect 2ordm ldquoSe o menor focircr abandonado pervertido ou

estiver em perigo de o ser a autoridade competente promoveraacute a sua collocaccedilatildeo em asylo casa de educaccedilatildeo escola

de preservaccedilatildeo ou o confiaraacute a pessoa idonea por todo o tempo necessario aacute sua educaccedilatildeo comtanto que natildeo

ultrapasse a idade de 21 annosrdquo (Passetti 2013 p 354) 6 Atlas da Violecircncia 2019 Disponiacutevel em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=

articleampid=34784ampItemid=432 Acesso em 23 jul 2019

89

O primeiro Coacutedigo de Menores de 1927 reafirmava o papel do Estado de assistir e

cuidar dos ldquoabandonadosrdquo e o fazia por meio da institucionalizaccedilatildeo A lei colocou fim agrave

condiccedilatildeo de anonimato da praacutetica de renuacutencia a crianccedilas atraveacutes do uso da Roda dos Expostos

O Estado assumia legalmente a responsabilidade pelo atendimento de uma camada da infacircncia

e juventude brasileiras por meio de estrateacutegias que como efeito ampliavam sua segregaccedilatildeo

(Hahne 2017)

Todas as crianccedilas e jovens tidos como em perigo ou perigosos (por exemplo abandonado

carente infrator apresentando conduta dita antissocial deficiente ou doente ocioso

perambulante) eram passiacuteveis em um momento ou outro de serem enviados agraves instituiccedilotildees de

recolhimento Na praacutetica isto significava que o Estado podia atraveacutes do Juiz de Menor destituir

determinados pais do paacutetrio poder atraveacutes da decretaccedilatildeo da sentenccedila de ldquosituaccedilatildeo irregular do

menorrdquo Sendo a ldquocarecircnciardquo uma das hipoacuteteses de ldquosituaccedilatildeo irregularrdquo podemos ter uma ideia

do que isto podia representar em um paiacutes onde jaacute se estimou em 36 milhotildees o nuacutemero de crianccedilas

pobres (Arantes 2004 p 163)

Em 1979 o Coacutedigo de Menores eacute reformulado e sem mudanccedilas estruturais naquilo que

conferia a crianccedilas e adolescentes a condiccedilatildeo de inclusatildeo marginal ndash pois com a pecha de

destoantes ndash funda a Doutrina da Situaccedilatildeo Irregular Satildeo irregulares os pobres abandonados

ou natildeo filhos da escravidatildeo Essa concepccedilatildeo foi enfrentada na letra da lei apenas 63 depois

com a implementaccedilatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Brasil 1990) que institui a

Doutrina da Proteccedilatildeo Integral e assume os direitos fundamentais e as poliacuteticas que devem

asseguraacute-los A ordem eacute menos controle e mais proteccedilatildeo

Medida socioeducativa eacute a poliacutetica puacuteblica apresentada pelo Estatuto da Crianccedila e do

Adolescente (Brasil 1990) que determina e aplica sanccedilatildeo legal aos brasileiros e brasileiras em

idade entre 12 e 18 anos7 Posterior agrave primeira legislaccedilatildeo destinada exclusivamente a crianccedilas

e adolescentes ndash o Coacutedigo de Menores ndash o Estatuto carrega histoacuterias de luta pela afirmaccedilatildeo de

direitos em meio agrave entatildeo recente redemocratizaccedilatildeo do Brasil A todas as crianccedilas e adolescentes

inclusive agravequeles apreendidos por ato infracional satildeo aplicaacuteveis sob avaliaccedilatildeo judicial

medidas de proteccedilatildeo8 de forma que a transgressatildeo natildeo apaga ndash e ao contraacuterio em muitas

7 Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) ndash Art 112 ldquoVerificada a praacutetica de ato infracional a autoridade

competente poderaacute aplicar ao adolescente as seguintes medidas I - advertecircncia II - obrigaccedilatildeo de reparar o dano

III - prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade IV - liberdade assistida V - inserccedilatildeo em regime de semiliberdade VI -

internaccedilatildeo em estabelecimento educacionalrdquo 8 Art 101 do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente define as medidas protetivas ldquoI - Encaminhamento aos pais

ou responsaacutevel mediante termo de responsabilidade II - Orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III -

matriacutecula e frequecircncia obrigatoacuterias em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV - inclusatildeo em serviccedilos

e programas oficiais ou comunitaacuterios de proteccedilatildeo apoio e promoccedilatildeo da famiacutelia da crianccedila e do adolescente V -

requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI - inclusatildeo

em programa oficial ou comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII -

acolhimento institucional VIII - inclusatildeo em programa de acolhimento familiar IX - colocaccedilatildeo em famiacutelia

substitutardquo

90

histoacuterias de vida faz ver ndash necessidades de ordem socioeconocircmica que marcam jovens

trajetoacuterias

Mais recentemente outra lei voltada agrave juventude ndash especiacutefica aos adolescentes objeto

das medidas socioeducativas ndash foi criada para regular orientar e normatizar a execuccedilatildeo desta

poliacutetica puacuteblica A Lei 12594 (Brasil 2012) foi bastante reduzida no momento de sua

promulgaccedilatildeo especialmente no que diz respeito aos aspectos pedagoacutegicos das medidas

socioeducativas que receberam menor ecircnfase se comparados agrave defesa da responsabilizaccedilatildeo que

a Lei ressalta (Barone Botarelli Frassetto amp Guaraacute 2012)

O Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Brasil 1990) ao posicionar seu puacuteblico-alvo

como sujeitos de direitos sociais cujas vozes devem compor a construccedilatildeo do mundo9 convoca

os profissionais no que diz respeito agrave execuccedilatildeo das medidas a trazerem para si o adolescente

e fazerem com ele a composiccedilatildeo dos processos educativos de reflexatildeo e de debate sobre sua

trajetoacuteria singular A Lei 12594 (Brasil 2012) ressalta a construccedilatildeo do Plano Individual de

Atendimento (PIA) como ferramenta estrateacutegica para essa composiccedilatildeo coletiva

A centralidade nos sujeitos-adolescentes se faz importante porque procura respeitar o indiviacuteduo

em sua singularidade ressaltando sua efetiva participaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo do Plano Individual de

Atendimento que sugerimos deve ser posicionado no projeto de vida dos adolescentes e em

sua histoacuteria e no projeto pedagoacutegico das instituiccedilotildees que executam as medidas socioeducativas

(Barone et al 2012 p 68)

A legislaccedilatildeo brasileira portanto defende a participaccedilatildeo do adolescente na construccedilatildeo

das ponderaccedilotildees e das accedilotildees que permitiratildeo a constituiccedilatildeo de trajetoacuterias distanciadas do

universo infracional tornando sociedade e Estado coautores de suas histoacuterias e natildeo apenas

cobradores de mudanccedilas ndash da chamada ressocializaccedilatildeo termo complexo quando satildeo tomadas

as condiccedilotildees para uma primeira socializaccedilatildeo daqueles cujas cidadanias tecircm sido historicamente

impedidas ou nas palavras do geoacutegrafo Milton Santos mutiladas (Santos 19961997)

Sob essa loacutegica os adolescentes fazem parte dos momentos que servem agrave construccedilatildeo do

trabalho socioeducativo tomando os processos tatildeo ou mais importantes que o produto final

Ocorre que suas ferramentas podem ser capturadas e burocratizadas fechando os olhos agravequilo

que a vida de cada adolescente apresenta e solicita O sujeito quando ausente daquilo que

9 Art 53 ldquoA crianccedila e o adolescente tecircm direito agrave educaccedilatildeo visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa

preparo para o exerciacutecio da cidadania e qualificaccedilatildeo para o trabalho assegurando-se-lhes I - igualdade de

condiccedilotildees para o acesso e permanecircncia na escola II - direito de ser respeitado por seus educadores III - direito de

contestar criteacuterios avaliativos podendo recorrer agraves instacircncias escolares superiores IV - direito de organizaccedilatildeo e

participaccedilatildeo em entidades estudantis V - acesso agrave escola puacuteblica e gratuita proacutexima de sua residecircncia garantindo-

se vagas no mesmo estabelecimento a irmatildeos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educaccedilatildeo

baacutesica (Redaccedilatildeo dada pela Lei nordm 13845 de 2019) Paraacutegrafo uacutenico Eacute direito dos pais ou responsaacuteveis ter ciecircncia

do processo pedagoacutegico bem como participar da definiccedilatildeo das propostas educacionaisrdquo

91

constitui discursos sobre si eacute tornado objeto do saber de um outro que se supotildee mais saacutebio

sobre o que ele pode Na posiccedilatildeo de representaccedilatildeo ndash adolescente-infrator ndash fica destituiacutedo de

seus conhecimentos

Naquilo que tem constituiacutedo a realidade do adolescente que cumpre medida

socioeducativa hoje exemplificamos a explicaccedilatildeo com duas notiacutecias recentes A primeira delas

eacute o pedido de revisatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente a favor da ampliaccedilatildeo do poder

punitivo contra os adolescentes10 No mesmo periacuteodo em que era veiculada a notiacutecia ocorria o

lanccedilamento de pesquisa sobre a aplicaccedilatildeo e a execuccedilatildeo das medidas socioeducativas em meio

aberto nas cidades do Rio de Janeiro e Satildeo Paulo11 que aponta para a prevalecircncia do caraacuteter

punitivo em relaccedilatildeo aos adolescentes a quem satildeo atribuiacutedas medidas socioeducativas de meio

aberto em ambas as cidades A persistecircncia da chamada progressatildeo de medida12 afirma o olhar

sancionatoacuterio

Com esse pano de fundo a Psicologia sempre sob o risco de ser fisgada por modos de

agir burocratizados e homogeneizadores a partir de crenccedilas socialmente aprendidas (Machado

2008) eacute convocada a questionar suas praacuteticas A construccedilatildeo coletiva dos processos educativos

e participativos eacute tatildeo complexa quanto a defesa da vida dos adolescentes que vivem a medida

socioeducativa13 atravessada que eacute por discursos que o tomam como sujeito violento e

antissocial (Violante 1984 Trassi 2006) Sob essa identidade esses adolescentes satildeo

colocados em posiccedilotildees que natildeo tecircm variado ao menos na maior parte das experiecircncias

localizadas e debatidas na cidade de Satildeo Paulo quando estatildeo perante a um juiz que pouco

conhece suas condiccedilotildees de vida e em seguida a adultos convocados a produzir registros sobre

suas tatildeo erradas vidas (Miraglia 2005 Malvasi 2012)

10 STF marca para agosto julgamento de accedilatildeo contra ECA Disponiacutevel em httpsogloboglobocomsociedade

stf-marca-para-agosto-julgamento-de-acao-contra-eca-23594873 Acesso em 19 abr 2019 11 A pesquisa intitulada Juventude e cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto entre a garantia

de direitos e a judicializaccedilatildeo foi apresentada no evento Execuccedilatildeo das medidas socioeducativas para adolescentes

haacute mais o que saber sobre o ldquomeio abertordquo realizada pelo Nuacutecleo de estudos poacutes-graduados em Serviccedilo Social

ndash Nuacutecleo de estudos em seguridade e assistecircncia social (NEPSAS) da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo

Paulo em 15042019 12 Aplicaccedilatildeo de uma ou ambas as medidas em meio aberto ndash Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade e Liberdade

Assistida ndash apoacutes o cumprimento de internaccedilatildeo eou semiliberdade alongando em meses ou anos o

acompanhamento do adolescente pelo poder judiciaacuterio 13 IPEA (2015) Nota Teacutecnica ndash O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Reduccedilatildeo da Maioridade

Penal esclarecimentos necessaacuterios Brasiacutelia Sobre o perfil do adolescente em conflito com a lei no Brasil mais

de 60 dos adolescentes privados de liberdade eram negros 51 natildeo frequentavam a escola 49 natildeo

trabalhavam quando cometeram o delito e 66 viviam em famiacutelias consideradas extremamente pobres Disponiacutevel

em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=articleampid=25621ampItemid =9 Acesso

em 26 jun 2019

92

Eacute nesse contexto que se inscreve a pesquisa em andamento em meio agrave produccedilatildeo

massificada de vidas-adolescentes construir narrativas singulares com aqueles cujas

existecircncias satildeo marcadas pelo cometimento de ato infracional e pelas formas com as quais o

Brasil tem escolhido agir a partir dele o encarceramento natildeo precisa ser consequecircncia uacutenica ou

primeira agrave infraccedilatildeo A retomada de solicitaccedilotildees pela reduccedilatildeo da maioridade penal e pela

ampliaccedilatildeo do tempo de privaccedilatildeo da liberdade torna urgente a discussatildeo

Consideramos que assumir esses adolescentes como narradores do vivido eacute brigar pela

dignificaccedilatildeo e duraccedilatildeo de suas vidas Apostando na importacircncia da literatura para afirmar a

singularidade das existecircncias algo que lhes teria sido furtado (Petit 2009) ela se torna suporte

para o registro de suas palavras Satildeo utilizados contos letras de muacutesicas poemas e histoacuterias

presentes na literatura como recursos estrateacutegicos para dignificar a vida dessas pessoas

produzindo saberes sobre si

2 Experiecircncia e variaccedilatildeo da vida na literatura

A histoacuteria pregressa e atual de parcela consideraacutevel da juventude brasileira ndash aquela que

eacute objeto das sanccedilotildees legais14 ndash daacute a ver os desafios agrave Psicologia para que considere a

singularidade das vidas que encontra em seu fazer Adolescentes autores de atos infracionais

com frequecircncia satildeo tomados como sujeitos-supostos submetidos a histoacuterias que antecedem

sua vinda ao mundo e com muitas experiecircncias cotidianas de indignidade que desafiam a

construccedilatildeo de trajetoacuterias que sejam pensadas por eles mesmos O desafio eacute o de ldquouma

singularizaccedilatildeo existencial que coincida com um desejo com um gosto de viver com uma

vontade de construir o mundo no qual nos encontramosrdquo (Guattari amp Rolnik 2013 p 22)

A construccedilatildeo de narrativas atua como dispositivo para provocar a pensar as formas como

os adolescentes parceiros dessa pesquisa sobrevivem em contextos tatildeo indignos Memoacuterias e

experiecircncias permitem ver como o Sistema Socioeducativo e em seu interior o atendimento

teacutecnico satildeo percebidos por eles e os efeitos que neles produzem A escrita das narrativas e as

reflexotildees nascidas no processo de elaboraccedilatildeo permitem afirmarmos que os adolescentes se

constituem a partir dos discursos que os atravessam de forma que o falado e o escrito sobre

eles compotildeem a existecircncia e a maneira de cumprir a medida socioeducativa ldquoa singularidade

carrega uma experiecircncia coletiva em que haacute um elemento impessoal um comum o que

14 Brasiacutelia Distrito Federal (2016) Caderno de Orientaccedilotildees Teacutecnicas Serviccedilo de Medidas Socioeducativas em

Meio Aberto Secretaria Nacional de Assistecircncia Social Disponiacutevel em httpswwwmdsgovbrwebarquivospu

blicacaoassistencia_socialCadernoscaderno_MSE_0712pdf Acesso em 28 jul 2019

93

significa que aquilo que eacute narrado eacute agregado singular de mil outros casosrdquo (Alaion 2017 p

104) Identificaccedilotildees e nomeaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves situaccedilotildees que esses jovens vivem satildeo

construiacutedas a partir das compreensotildees de mundo de quem de uma forma ou outra com eles

convive

O processo educativo da sanccedilatildeo disciplinar eacute disputado por visotildees de mundo e

idealizaccedilotildees socialmente construiacutedas sobre esses adolescentes e sobre suas vidas Teacutecnicos que

realizam seu atendimento com frequecircncia referem-se a solicitaccedilotildees do poder judiciaacuterio para

encaminhamentos que devem ser realizados aos adolescentes como afirmaccedilatildeo corrente meio

para a criaccedilatildeo de alternativas ao ato infracional Se a desigualdade socioeconocircmica eacute ponto

crucial para o problema aqui discutido ao ser considerada uacutenica motivaccedilatildeo esconde o sujeito

por traacutes de quem o pratica ou seja os sentidos pensados e construiacutedos em relaccedilatildeo ao vivido

Essa constataccedilatildeo eacute um convite ao psicoacutelogo para agir tal como um cartoacutegrafo como um

investigador curioso sobre as coisas do mundo e os repertoacuterios de vida de quem acompanha em

seu trabalho

A praacutetica de um cartoacutegrafo diz respeito fundamentalmente agraves estrateacutegias das formaccedilotildees do

desejo no campo social natildeo tem o menor racismo de frequecircncia linguagem ou estilo Tudo

o que der liacutengua para os movimentos do desejo tudo o que servir para cunhar mateacuteria de

expressatildeo e criar sentido para ele eacute bem-vindo Todas as entradas satildeo boas desde que as saiacutedas

sejam muacuteltiplas (Rolnik 2006 p 65 destaques do original)

Ao cartoacutegrafo natildeo cabe a valoraccedilatildeo dos modos de agir no mundo mas a sustentaccedilatildeo da

expansatildeo da vida natildeo a revelaccedilatildeo do sentido das existecircncias mas a criaccedilatildeo de sentido com

elas Eacute sempre no campo relacional e por meio das alianccedilas que nos constituiacutemos essa

composiccedilatildeo eacute mais conectada agrave variaccedilatildeo da vida quando haacute lugar para a construccedilatildeo de

experiecircncias que rompam mesmo que por poucos momentos com a impossibilidade de

elaboraccedilatildeo da proacutepria existecircncia construccedilatildeo que se daacute por meio de uma certa qualidade das

relaccedilotildees estabelecidas que permita a transformaccedilatildeo dos lugares operaacuteveis natildeo apenas nos

adolescentes mas naqueles que os acompanham

Entre aquilo que eacute roubado a esses adolescentes ndash a moradia a escola o alimento o

lazer a seguranccedila os amigos ndash estaacute a cultura Os livros natildeo chegam15 e sem eles as paacuteginas

que tornariam a vida menos solitaacuteria ao ver-se na narrativa do outro Afirmar a vida eacute accedilatildeo que

tambeacutem compete agrave Psicologia A dor o amor a tristeza e a sobrevivecircncia narradas por um outro

a quem se lecirc permitem que o vivido seja apreendido como experiecircncia do um e tambeacutem de

15 Rede Nossa Satildeo Paulo Mapa da desigualdade 2017 Disponiacutevel em httpsnossasaopauloorgbrportalmapa_

2017_completopdf Acesso em 27 jun 2019

94

todos se o outro sofrendo existe pode-se construir a hipoacutetese de uma dimensatildeo puacuteblica da

vida em seu sofrimento e sua persistecircncia

A leitura dos textos literaacuterios opera como instrumento de confirmaccedilatildeo de suas

biografias ao ressaltarem que satildeo ldquosoacute mais umrdquo ndash sensaccedilatildeo mencionada por vaacuterios de nossos

colaboradores ndash natildeo com pouca frequecircncia os adolescentes-parceiros mostram-se

surpreendidos com aquilo que leem ao descobrirem na dor e na beleza narrada por um outro o

valor da proacutepria existecircncia conferindo sentido agrave persistecircncia dos dias

Alagar a vida ajudar a tornar mais real uma existecircncia e dar a ela destaque particular

que legitima sua forma de ser comprova sua autenticidade e o direito de existir A existecircncia eacute

sempre efeito de gestos de movimentos contiacutenuos e nunca finitos ndash ldquonatildeo haacute mais seres soacute haacute

processos ou melhor as uacutenicas entidades a partir de agora satildeo atos mudanccedilas transformaccedilotildees

metamorfoses que afetam esses seres e os fazem existir de outra maneirardquo (Lapoujade 2017 p

61 destaque do original) Instaurar atraveacutes do gesto eacute fazer valer o direito de ser e de nos

tornarmos reais

3 O percurso dos encontros

O lugar de iniacutecio da pesquisa aqui compartilhada eacute um Serviccedilo de Medidas

Socioeducativas de Meio Aberto (SMSE-MA) da cidade de Satildeo Paulo responsaacutevel por

acompanhar adolescentes que em sua comunidade semanalmente se encontram com a equipe

teacutecnica que os acompanha no caminho ateacute a extinccedilatildeo da sanccedilatildeo

As relaccedilotildees em que as primeiras conversas foram provocadas foram possibilitadas por

experiecircncias de uma das autoras desse trabalho realizadas nos uacuteltimos anos junto agrave juventude

atendida pelas medidas socioeducativas e a profissionais que atuam com este puacuteblico O SMSE-

MA em questatildeo eacute antigo parceiro de trabalho profissional que aceitou facilitar o acesso a

adolescentes que pudessem ser convidados a compor com esse trabalho As narrativas satildeo

constituiacutedas em encontros atravessados em muitos momentos pelas experiecircncias na infacircncia

na famiacutelia na medida socioeducativa e na rua

A construccedilatildeo do espaccedilo narrativo eacute apoiada na histoacuteria oral que tem sido o meio para

conhecer as vivecircncias singulares tomadas em um campo plural que carrega consigo Histoacuteria e

Sociedade (Portelli 2016) Na metodologia alguns elementos pedem atenccedilatildeo accedilatildeo entre

aquele que escuta e quem fala tempo em que a fala eacute realizada e tempo que criou a memoacuteria

o fato de que a histoacuteria ocorre em meio agrave Histoacuteria aleacutem da oralidade e da escrita produzidas

95

As narrativas com os adolescentes satildeo construiacutedas em pelo menos trecircs tempos (1)

constituiccedilatildeo do relato (2) escrita posterior pela pesquisadora e (3) encontros para releitura com

os colaboradores sempre com a abertura para correccedilotildees e mudanccedilas de rotas Esses tempos satildeo

constituiacutedos em muitos encontros quantos forem necessaacuterios para o estabelecimento de

confianccedila que torne possiacutevel o relato das cenas vividas O tempo eacute distinto em cada relaccedilatildeo e

precisa ser considerado para que evitemos atravessamentos que por vontade nossa

desrespeitassem a vida vivida pelo jovem Nesse sentido o tempo da pesquisa motiva mas natildeo

determina o trabalho

O primeiro encontro com a maioria dos adolescentes ocorreu no SMSE-MA com a

intermediaccedilatildeo da equipe teacutecnica Aproveitamos eventos festivos e reuniotildees buscando

momentos em que os adolescentes estando em coletivo talvez ficassem mais agrave vontade para

iniciar uma conversa para a qual seriam convidados a continuar em outro momento Alguns

encontros passaram a ocorrer inesperadamente quando em serviccedilo da rede socioassistencial a

partir do cuidado atento da pesquisadora provocamos conversas com jovens que natildeo

frequentavam mais o SMSE-MA mas que ao estarem naquele territoacuterio e terem passado por

medida socioeducativa puderam ser convidados para compor com a pesquisa Entre os seis

adolescentes entrevistados ateacute o momento uma era menina que aceitou uma conversa breve

nos avisando que naquele momento natildeo havia espaccedilo para continuar os encontros

Haacute sempre um primeiro pedido de licenccedila da pesquisadora seguido da apresentaccedilatildeo do

que a motiva a iniciar a conversa a hipoacutetese formada por meio de vivecircncias em outros trabalhos

que fazem pensar que os adolescentes satildeo os menos escutados no processo socioeducativo Os

tempos de cada adolescente satildeo tatildeo distintos quanto eles o satildeo mais ou menos tiacutemidos falantes

curiosos ou desconfiados

Construir narrativas sobre histoacuterias de vida-adolescente-sancionada carrega o desejo de

que sobrevivam e possam viver outras variaccedilotildees de suas trajetoacuterias Para alguns adolescentes

narrar as proacuteprias memoacuterias eacute aposta de proteccedilatildeo em relaccedilatildeo a outros que como eles poderiam

vir a ser apreendidos e encaminhados agraves unidades de privaccedilatildeo da liberdade disse um de nossos

parceiros ldquoquero falar natildeo por mim que jaacute lsquotocircrsquo velho mas pelos outros menores Eu jaacute tenho

dezessete anos e natildeo vou mais ser preso [em unidade de internaccedilatildeo para adolescentes] mas tem

os outros que eu natildeo quero que passem pelo o que eu passeirdquo Compartilhar experiecircncias e

estrateacutegias de cuidado com o proacuteprio corpo eacute uma maneira de cuidar inclusive de algueacutem que

natildeo conhecem Para outros ainda contar as proacuteprias experiecircncias eacute dar a elas visibilidade

dando importacircncia agrave vida aprendemos com um dos jovens que uma cena vivida por uma pessoa

96

pode retratar um campo muito vasto ldquoeacute como beber aacutegua ou comer ou escrever A gente pode

falar do mundo pelas coisas que uma pessoa fazrdquo Mora aiacute a vontade de que saibamos de um

algueacutem que existe

Os encontros com cada adolescente pedem uma primeira organizaccedilatildeo de horaacuterio data e

local que melhor contemplem cada entrevistado de forma que as conversas satildeo realizadas em

serviccedilos da rede socioassistencial praccedilas em seu local de trabalho ou em equipamentos de

cultura nos quais trabalham ou cumprem medida socioeducativa Nos primeiros encontros satildeo

retomadas as ideias que alimentam a vontade de escuta e escrita das experiecircncias que contam

testemunhar suas existecircncias (Lapoujade 2017) e contribuir para o debate sobre o que vem

concorrendo com suas vidas

Palavras como oacutedio relatos sobre violecircncia fiacutesica sofridas pelas matildeos das instituiccedilotildees

estatais e da famiacutelia e um mundo vivido como inflexiacutevel satildeo tomados como produccedilotildees que a

pesquisa opera Os relatos trazem o ato infracional praticado e as violecircncias vividas ainda na

infacircncia Haacute uma convocaccedilatildeo da pesquisadora agrave posiccedilatildeo de testemunha do corpo que sofre e

duvida solicitando a criaccedilatildeo de estrateacutegias para que o silenciamento natildeo domine A literatura

e a palavra escrita (como letras de muacutesica) criam um comum nesse encontro em que a posiccedilatildeo

social da pesquisadora implica um natildeo compartilhamento de muitas das experiecircncias que

marcam a juventude dos entrevistados os textos e os autores emprestam vivecircncias que agem

no isolamento da dor apostando no fortalecimento do adolescente para a criaccedilatildeo de estrateacutegias

de vida

Nesse momento satildeo contadas histoacuterias de diferentes fontes literaacuterias16 e lidos poemas

inspirados nas palavras dos entrevistados Com as biografias que permitem a variaccedilatildeo do olhar

sobre o vivido o mundo vai ficando maior permitindo uma elaboraccedilatildeo mais autoral dos

discursos sobre si Juntos lemos textos e entrelaccedilamos palavras agravequelas que haviam sido antes

pronunciadas pelos entrevistados Um dos apoios convocados tem sido o poeta Manuel de

Barros (2015)

Eu queria fazer parte das aacutervores como os paacutessaros fazem Eu queria fazer parte do orvalho

como as pedras fazem Eu soacute natildeo queria significar Porque significar limita a imaginaccedilatildeo E com

pouca imaginaccedilatildeo eu natildeo poderia fazer parte de uma aacutervore Como os paacutessaros fazem Entatildeo a

razatildeo me falou o homem natildeo pode fazer parte do orvalho como as pedras fazem Porque o

homem natildeo se transfigura senatildeo pelas palavras E era isso mesmo (Barros 2015 p 97)

16 Lemos juntos aleacutem de poemas de Manuel de Barros tambeacutem os de Eduardo Galeano (O livro dos abraccedilos)

comentamos sobre as histoacuterias narradas na obra A guerra natildeo tem rosto de mulher falamos sobre a ativista

americana Acircngela Davis discutimos letras de muacutesica do cantor Tim Maia indicamos uns aos outros filmes como

Cortina de fumaccedila e 400 contra 1

97

Com alguns adolescentes satildeo realizados muitos encontros com outros apenas dois

seratildeo possiacuteveis tornando-os ainda mais preciosos Aceitamos seu tempo As entrevistas tecircm

priorizado o relato oral sem o uso de gravador buscando menos o caraacuteter de entrevista e mais

a conversa fluida um encontro-entrevista Sabe-se de partida que os registros seratildeo revisitados

e poderatildeo ser recompostos a construccedilatildeo de sentido eacute incessante A cada novo encontro vamos

repensando os termos escolhendo palavras ndash quais satildeo eleitas e por quecirc Tomadas como

substacircncia que constituem a existecircncia interessa o processo de construccedilatildeo das linhas escritas

que disputa com a ilusoacuteria suposiccedilatildeo de existir uma verdade fundamental

E isto a partir da convicccedilatildeo de que as palavras produzem sentido criam realidades e agraves vezes

funcionam como potentes mecanismos de subjetivaccedilatildeo Eu creio no poder das palavras na forccedila

das palavras creio que fazemos coisas com as palavras e tambeacutem que as palavras fazem coisas

conosco As palavras determinam nosso pensamento porque natildeo pensamos com pensamentos

mas com palavras natildeo pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligecircncia mas a

partir de nossas palavras E pensar natildeo eacute somente ldquoraciocinarrdquo ou ldquocalcularrdquo ou ldquoargumentarrdquo

como nos tem sido ensinado algumas vezes mas eacute sobretudo dar sentido ao que somos e ao que

nos acontece (Larrosa 2002 p 21)

Tendo em matildeos uma escrita construiacuteda com a direccedilatildeo eacutetica de potencializar a existecircncia

convidamos o jovem a um novo encontro em que lhe eacute apresentada a narrativa escrita a partir

da conversa inicial Juntos pesquisadora e adolescente leem as narrativas que se tornam nova

palavra a ser escutada uma espeacutecie de outra voz em que se compotildee um corpo formado em

coautoria Revisam frase por frase questionam-se quanto agrave escolha das palavras repensam

aquelas que parecem deslocadas enfatizam as que satildeo importantes reconstroem outras a

produccedilatildeo de sentidos eacute alimentada pela escolha das palavras e pelo trabalho da memoacuteria As

frases satildeo construiacutedas como uma associaccedilatildeo entre a memoacuteria do narrador e a escuta da

pesquisadora satildeo elaboradas em terceira pessoa buscando alcanccedilar as lembranccedilas em uma

posiccedilatildeo afirmativa quanto agraves vidas sobre as quais falam Nesse momento as reaccedilotildees variam

adolescentes veem-se no relato e lendo a proacutepria vida muitos se espantam com a largueza

percebida Surpreendem-se alguns como se suas vidas se tornassem elas mesmas poesia Em

uma seacuterie de encontros em que dois adolescentes eram entrevistados juntos chegamos agrave

seguinte construccedilatildeo

O menino que fala raacutepido e bastante gruda uma histoacuteria atraacutes da outra Quer compartilhar

vivecircncias de seu dia a dia e contar sobre como elas entram em seu corpo o afetam e fazem

pensar Ao seu lado estaacute L que observador daacute espaccedilo agrave voz do amigo em meio agrave narrativa

corrida vai cavando momentos para falar sobre si Compotildeem uma dupla disposta a lembrar de

fatos que poderiam endurecer o coraccedilatildeo mas que neles movimenta o sangue que corre atraacutes

de novas ideias As muitas violecircncias satildeo localizadas em cenas que exemplificam dilemas de

todos os dias

98

O material colhido pela oralidade implica performance e processo natildeo estanque Haacute uma

certa presenccedila de quem narra sua histoacuteria e do modo como o faz que se mostra por meio da

construccedilatildeo das frases A passagem do narrado para a escrita elaborada pela pesquisadora precisa

respeitar que aquilo que eacute falado pelos adolescentes seraacute efeito de uma multiplicidade de

elementos entre eles as formas de compreender que a pesquisadora tem da vida e das situaccedilotildees

Respeitar nesse sentido implica (i) criar narrativas que permitam abertura de questotildees e natildeo

adjetivaccedilotildees e julgamentos (ii) desenvolver um procedimento de trabalho em que os jovens

possam avaliar e se posicionar em relaccedilatildeo aos efeitos que a leitura da narrativa escrita lhes

produz (iii) considerar que haacute elementos da singularidade do narrador natildeo captaacuteveis pela

pesquisadora ndash talvez nem mesmo pelo contador ndash e isso eacute condiccedilatildeo da pesquisa ldquoa tonalidade

e as ecircnfases do discurso oral carregam a histoacuteria e a identidade dos falantes e transmitem

significados que vatildeo bem aleacutem da intenccedilatildeo consciente destesrdquo (Portelli 2016 p 21)

Na pesquisa a escrita age pelo estabelecimento de alianccedilas com o pensamento por meio

do fazer a quatro matildeos Convidamos os adolescentes agrave posiccedilatildeo de coautores a partir da reflexatildeo

de suas memoacuterias Essa metodologia vai operando como

um espaccedilo onde encontrar um lugar viver tempos que sejam um pouco tranquilos poeacuteticos

criativos e natildeo apenas ser o objeto de avaliaccedilotildees em um universo produtivista Conjugar os

diferentes universos culturais de que cada um participa Tomar o seu lugar no devir

compartilhado e entrar em relaccedilatildeo com outros de modo menos violento menos desencontrado

paciacutefico (Petit 2010 p 289)

Apanhar ser humilhado e silenciado satildeo experiecircncias que produzem oacutedio Ao sofrer e vendo-

se tatildeo sozinho com esse sentimento a vida lhes eacute de certo modo furtada Muitos jaacute foram

tombados como Gomes (2017) afirma ao narrar os enfrentamentos de Dom Quixote Pixaim

Eu natildeo queria mais cultivar o oacutedio mas eles nos obrigam a vencer desde que o inventaram o

poacutedio Uhuru a liberdade ainda eacute sonho Um triste soneto o medo de cair destroccedilos Nessa

terra em que jaacute tombaram tantos dos nossos Mas enquanto constroem pelourinhos eu sigo

erguendo mocambos enfrentando moinhos e todos os traumas de ser assim Dom Quixote

Pixaim (Gomes 2017 p 45)

Amor oacutedio duacutevida e violecircncia existem singularmente no corpo de um e coletivamente

no corpo social Na histoacuteria narrada oralmente o vivido eacute percebido como algo do particular e

do plural que diz de cada adolescente e de muitos outros Os adolescentes apresentam suas

referecircncias no compartilhamento dos textos em geral de filmes e muacutesica e nas conversas

sugerem palavras que permitam o exerciacutecio de compreender o que se passou com eles A

pesquisa toma o alargamento do imaginaacutevel como ensaio de um lugar natildeo-determinado e aposta

que a discussatildeo a partir das relaccedilotildees construiacutedas das narrativas escritas e do material literaacuterio

partilhado contribui para um trabalho que vise agrave garantia de direitos desses adolescentes

99

4 Fazer advir aquilo que natildeo deve existir

Animada pela vontade de conhecer e registrar percursos de experiecircncias de adolescentes

que em um terreno no qual pressupor o outro tantas vezes o adianta em relaccedilatildeo a quem eacute ou

agravequilo que poderia realizar de sua existecircncia a pesquisa faz alianccedila com o campo

socioeducativo Contar sobre a constituiccedilatildeo de uma metodologia de acesso aos nossos

interlocutores e de construccedilatildeo de narrativas com eles a partir de suas vivecircncias tem como

desafio acessar as infacircncias as abordagens policiais os entraves que percebem no percurso e

as vinculaccedilotildees com os profissionais que os atendem na execuccedilatildeo da medida socioeducativa A

preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave sua sobrevivecircncia eacute dimensatildeo que para muitos adolescentes

fortalece a presenccedila nos atendimentos realizados pelas equipes socioeducativas e a vontade de

conversar A conversa com um dos jovens constroacutei a seguinte narrativa

faz diferenccedila o teacutecnico que mostra o relatoacuterio antes que siga ao juiz e pergunta a opiniatildeo do

adolescente Com eles [a equipe que o atendia no SMSE-MA] nunca foi preciso pedir mudanccedila

na escrita sempre fiel agravequilo que ocorria naquela eacutepoca da vida Eacute bom quando o teacutecnico daacute

conselhos e natildeo julga deixando a L o direito de decidir As boas conversas fazem quando de

volta agrave comunidade pensar e fortalecer a vontade de mudar de vida era verdade que com o

dinheiro do traacutefico fica difiacutecil ter uma reserva Vem faacutecil vai faacutecil e aleacutem disso a famiacutelia natildeo

aceita o dinheiro sujo em casa

Suas histoacuterias variam e inspiram modos de fazer alianccedilas Essa eacute uma dimensatildeo que

desafia conquistar uma qualidade de relaccedilatildeo a partir da qual a palavra e o pensamento

produzam possiacuteveis Aacuterdua tarefa pois satildeo muitos os atravessamentos que concorrem com

essas interaccedilotildees necessidade de tempo grandes distacircncias fiacutesicas falta de dinheiro precaacuterias

condiccedilotildees de trabalho violecircncia territorial e descontinuidade das poliacuteticas puacuteblicas

O convite aos adolescentes para narrarem suas trajetoacuterias foi possibilitado pelas relaccedilotildees

estabelecidas a partir da atuaccedilatildeo profissional no campo da psicologia junto a um SMSE-MA de

determinado territoacuterio da cidade de Satildeo Paulo No processo uma das condiccedilotildees reconhecidas

como necessaacuterias para esses encontros tem sido o tempo tempo para as distacircncias em que os

encontros se datildeo tempo para a espera tempo para sustentar um intervalo entre os encontros

sem se saber direito por que o adolescente desmarca o agendado outros compromissos surgem

e a disponibilidade muda

A persistecircncia em promover a continuidade dos encontros tem permitido a construccedilatildeo

de alianccedilas e a possibilidade de o jovem interlocutor ver-se coautor das linhas que registram

suas experiecircncias As condiccedilotildees que nossos colaboradores apresentam exigem consenso

100

Na construccedilatildeo dos registros uma questatildeo eacute colocada agrave pesquisa como responder aos

relatos de violecircncias sofridas desde a infacircncia O racismo e as situaccedilotildees violentas ao longo da

vida solicitam respostas e a afirmaccedilatildeo de que natildeo deveriam ter ocorrido Na narrativa abaixo

o jovem pede alianccedila parceria e compreensatildeo e segundo ele talvez isso fosse possiacutevel se na

cena algum policial fosse negro

Agrave noite na praccedila em que muitos traficam mas natildeo ele vem um carro de poliacutecia e de dentro

dele algueacutem manda que levante a camiseta para provar o que o menino sabe natildeo levava em seu

corpo arma alguma Na ausecircncia do objeto que mata algueacutem grita ldquosai fora natildeo vou nem descer

do carro lsquoprarsquo natildeo sujar a matildeo com vocecirc seu macaco preto Sai forardquo De fora do carro pocircde

ver que dentro dele havia apenas brancos Seus olhos buscavam algueacutem que fosse da mesma

cor de sua pele para nele encontrar a conivecircncia com a cena que o humilhava Satildeo sempre

brancos os que fazem isso fosse negro poderia ir embora sem essa

O fato de o adolescente compartilhar sobre seu corpo que sofre pede um deslocamento

em relaccedilatildeo a uma suposta neutralidade da pesquisa ou agrave ideia de que natildeo haacute nada que possa ser

feito Falar sobre a medida socioeducativa quando toda uma vida eacute invocada implica vermo-

nos testemunhas da dor alheia ndash e natildeo haacute silenciamento possiacutevel frente a tais horrores Haacute

movimentos necessaacuterios de desterritorializaccedilatildeo de todos narrador e escutador Reconhecer o

horror de uma cena de violecircncia e advogar por uma existecircncia eacute testemunhar o valor da vida e

aquilo que a impede Os efeitos da escuta de tantas violecircncias passam pelo corpo da

pesquisadora fica-se quente ao ouvir a violecircncia enquanto se pensa no que dizer em uma

situaccedilatildeo em que um direito natildeo foi garantido pois os relatos vivos exigem a emergecircncia de uma

resposta A narrativa escrita eacute uma escrita-ato que toma a funccedilatildeo de natildeo deixar calar

Fazer existir implica brigar contra o apagamento e contra a sombra Lapoujade (2017)

afirma a posiccedilatildeo de advogar em defesa das existecircncias que satildeo impedidas como uma questatildeo

poliacutetica pois jaacute natildeo se trata de (apenas) existir mas de ter o direito de natildeo existir conforme

modelos predeterminados

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Capiacutetulo 6

A Implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo em

SAICAs de Osasco

Andrielly Darcanchy de Toledo

Mariana Prioli Cordeiro

Introduccedilatildeo

A aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 trouxe importantes transformaccedilotildees para

o campo das poliacuteticas sociais brasileiras Entre outras coisas determinou que o sistema de

seguridade social do paiacutes passasse a ser composto pelo tripeacute assistecircncia social sauacutede e

previdecircncia social (Brasil 1988) Seguindo as diretrizes propostas pela nova Constituiccedilatildeo em

1993 eacute aprovada a Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) que estabelece as diretrizes da

poliacutetica de assistecircncia social ao defini-la como direito do cidadatildeo e dever do Estado (Brasil

1993) A fim de transformar em accedilotildees diretas os pressupostos da LOAS e da Constituiccedilatildeo de

1988 em 2004 eacute aprovada a Poliacutetica Nacional de Assistecircncia Social (PNAS) que prevecirc o

reordenamento da poliacutetica em dois niacuteveis de proteccedilatildeo social baacutesica e especial sendo a proteccedilatildeo

especial subdividida em dois graus de complexidade meacutedia e alta A partir da PNAS em 2005

tem iniacutecio a implementaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) (Alberto Freire

Leite amp Gouveia 2014)

Uma das funccedilotildees da proteccedilatildeo social especial eacute garantir a seguranccedila de acolhida de

usuaacuterios e famiacutelias em situaccedilatildeo de risco pessoal e social Tal seguranccedila eacute oferecida em casos

em que haacute situaccedilatildeo de abandono e isolamento quando haacute necessidade de separaccedilatildeo da famiacutelia

ou da parentela (motivada por situaccedilotildees de violecircncia familiar ou social drogadiccedilatildeo alcoolismo

criminalidade entre outras) ou em situaccedilotildees de acidentes e desastres naturais Seu objetivo

central consiste em restaurar a autonomia a capacidade de conviacutevio e o protagonismo das(os)

usuaacuterias(os) por meio da oferta de condiccedilotildees materiais de abrigo repouso alimentaccedilatildeo

higienizaccedilatildeo vestuaacuterio e aquisiccedilotildees pessoais (Brasil 2005)

A seguranccedila de acolhida eacute ofertada em diferentes tipos de instituiccedilatildeo (para crianccedilas

jovens adultos idosos pessoas com deficiecircncia etc) todos considerados parte da rede de

proteccedilatildeo social especial de alta complexidade Neste capiacutetulo enfocaremos o acolhimento

104

institucional de crianccedilas e adolescentes Mais especificamente apresentaremos e discutiremos

a experiecircncia de implementaccedilatildeo do Programa de Apadrinhamento Afetivo no municiacutepio de

Osasco enfocando seus resultados dificuldades e avanccedilos Com isso o presente trabalho

pretende contribuir com a circulaccedilatildeo de relatos e reflexotildees entre os municiacutepios que possuem

programa semelhante Aleacutem disso tambeacutem busca suprir uma lacuna na literatura acadecircmica

uma vez que em pesquisas realizadas em maio de 2019 em trecircs bases de dados (Scientific

Electronic Library Online - SciELO Applied Social Sciences Index amp Abstracts - ASSIA e

Banco de Teses da Capes) encontramos apenas seis trabalhos que abordam diretamente o

programa de apadrinhamento afetivo no Brasil Em buscas no Google Acadecircmico foram

encontrados mais textos contudo nenhum abordava a implementaccedilatildeo da mesma maneira

proposta neste artigo a partir de um relato de experiecircncia1 Mas antes de apresentarmos ndash e

discutirmos ndash a experiecircncia propriamente dita consideramos importante apresentar ainda que

de forma breve algumas caracteriacutesticas importantes do acolhimento institucional no acircmbito do

SUAS bem como a ideia central que embasa o programa de apadrinhamento afetivo

1 Acolhimento Institucional e Apadrinhamento Afetivo

De acordo com a Tipificaccedilatildeo Nacional dos Serviccedilos Socioassistenciais (Brasil 2014)

existem duas modalidades de Serviccedilos de Acolhimento Institucional para Crianccedilas e

Adolescentes (SAICA) 1) abrigo institucional que acolhe ateacute 20 crianccedilas e adolescentes tendo

profissionais que se revezam em plantotildees e 2) casa-lar que atende ateacute 10 acolhidos com uma

pessoa ou casal como educadorcuidador residente Jaacute o apadrinhamento afetivo natildeo eacute

propriamente um serviccedilo de acolhimento nem estaacute tipificado nas normativas do SUAS Mas eacute

uma iniciativa que vem ocorrendo em cada vez mais municiacutepios com o objetivo de lidar com

alguns dos resultados do acolhimento institucional prolongado

No entanto a despeito de natildeo ser oficialmente um serviccedilo do SUAS podemos dizer que

esse programa constitui uma poliacutetica puacuteblica uma vez que envolve escolhas essenciais feitas

pelo poder puacuteblico que produzem materialidades e socialidades (Spink 2018) Aleacutem disso

assim como toda poliacutetica puacuteblica eacute uma accedilatildeo intencional implica implementaccedilatildeo execuccedilatildeo e

avaliaccedilatildeo possui objetivos determinados e apesar de produzir impactos no curto prazo visa

resultados continuados e no longo prazo (Brigagatildeo Nascimento amp Spink 2011) Um dos

1 Vale destacar que o Instituto Fazendo Histoacuteria tem uma publicaccedilatildeo proacutepria que inspirou essa experiecircncia mas

que conteacutem muitas diferenccedilas pois eacute focada em propor etapas e atividades para possiacuteveis implementaccedilotildees mas

natildeo narra uma experiecircncia com seus diversos resultados Essa publicaccedilatildeo eacute citada mais abaixo

105

principais resultados almejados eacute a diminuiccedilatildeo das sequelas de longos periacuteodos de acolhimento

institucional

Apesar de o acolhimento institucional prolongado ser uma realidade em muitos

municiacutepios do paiacutes de acordo com as diretrizes do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA)

(Brasil 1990) essa medida protetiva deveria ser excepcional e provisoacuteria Afinal o ECA

compreende que toda crianccedila e adolescente estaacute em uma condiccedilatildeo peculiar por encontrar-se

ainda em desenvolvimento sendo seu direito ldquoser criado e educado no seio de sua famiacutelia e

excepcionalmente em famiacutelia substituta assegurada a convivecircncia familiar e comunitaacuteria em

ambiente que garanta seu desenvolvimento integralrdquo (Art19) Seguindo essas diretrizes

recentemente o prazo maacuteximo de acolhimento institucional de crianccedilas e adolescentes foi

reduzido de dois anos (Lei 120102009) para 18 meses (Lei 135092017) Assim quando uma

crianccedila ou adolescente eacute acolhido eacute necessaacuteria uma reavaliaccedilatildeo constante de sua situaccedilatildeo a

fim de garantir que a institucionalizaccedilatildeo seja de fato excepcional e provisoacuteria

Rachel Baptista e Maria Helena Zamora (2016) afirmam que a medida protetiva de

acolhimento institucional atinge quase exclusivamente as classes pobres o que para as autoras

daria margem agrave associaccedilatildeo enganosa da pobreza com uma possiacutevel incompetecircncia em fornecer

proteccedilatildeo e cuidados adequados agraves crianccedilas Irene Rizzini Irma Rizzini Luciene Naiff e Rachel

Baptista (2007) entendem que atualmente ldquoressaltam-se as competecircncias da famiacutelia mas na

praacutetica com frequecircncia cobra-se dos pais que deem conta de criar seus filhos mesmo que

faltem poliacuteticas puacuteblicas que assegurem as condiccedilotildees miacutenimas de vida dignardquo (p 18) Na

mesma direccedilatildeo Maria Liacutevia Nascimento (2012) sustenta que haacute situaccedilotildees em que o acolhimento

realmente ocorre como medida provisoacuteria enquanto a famiacutelia se reorganiza contudo a

ldquoproblematizaccedilatildeo se faz em torno do abrigamento como salvaccedilatildeo quando se destinam

recursos apenas para o abrigamento e natildeo para outras possibilidadesrdquo (p 43)

Apoacutes o acolhimento eacute intensificado o trabalho com suas famiacutelias de origem e extensas

(tios avoacutes etc) visando o desacolhimento o mais breve possiacutevel Somente depois de encerradas

as possibilidades de retorno a essas famiacutelias eacute que se considera a destituiccedilatildeo do poder familiar

para futura colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta inscrita no Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e

Acolhimento (SNA)2 (ECA Art101 sect1ordm)

Contudo devido a diversos fatores os SAICAs atendem muitas crianccedilas e adolescentes

2 O antigo e mais conhecido Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo que esteve ativo desde 2008 foi substituiacutedo pelo

Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e Acolhimento (SNA) em 2018 com o objetivo de aperfeiccediloar a busca por

pretendentes agrave adoccedilatildeo Mais informaccedilotildees disponiacuteveis em httpswwwcnjjusbrprogramas-e-acoescadastro-

nacional-de-adocao-cna

106

que legalmente poderiam ser adotados mas permanecem acolhidos ateacute a maioridade Um dos

fatores principais eacute a diferenccedila jaacute conhecida entre o perfil daqueles que podem ser adotados e o

procurado pelos adotantes3

Em pesquisa realizada no antigo Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo (CNA) em julho de

2018 no paiacutes todo havia quase 9 mil crianccedilasadolescentes aptos agrave adoccedilatildeo e mais de 44 mil

pretendentes Entretanto aproximadamente 95 deles desejava crianccedilas de ateacute sete anos e

somente 36 dos acolhidos estava nessa faixa etaacuteria A isso se somam outros fatores como o

fato de aproximadamente 60 dos acolhidos terem irmatildeos e mais de 20 apresentarem

doenccedilas eou deficiecircncias Dessa forma eacute expressivo o nuacutemero de crianccedilas e principalmente

adolescentes que estatildeo acolhidos haacute vaacuterios anos e hoje tecircm pouquiacutessimas chances de adoccedilatildeo

tendo como previsatildeo o desacolhimento por maioridade

Em nova pesquisa realizada no Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e Acolhimento (SNA) em

julho de 2019 foi possiacutevel acessar os dados da Vara da Infacircncia e Juventude (VIJ) ndash Foro

Central Ciacutevel da capital de Satildeo Paulo Nessa VIJ constavam 193 crianccedilas e adolescentes

acolhidos sendo que naquele momento 4 estavam aptas agrave adoccedilatildeo e todas tinham entre 9 e 18

anos Na mesma VIJ ao mesmo tempo havia 203 pretendentes habilitados aguardando para

se tornarem pais haacute ateacute 36 meses contudo nenhum aceitava crianccedilas maiores de 10 anos

O acolhimento institucional prolongado gera consequecircncias bastante estudadas pela

Psicologia Aline Siqueira e Deacutebora DellAglio (2006) fizeram uma revisatildeo bibliograacutefica sobre

os impactos da institucionalizaccedilatildeo que mostrou convergecircncia de muitos estudos ao apontarem

dificuldades funcionais dos serviccedilos de acolhimento (profissionais pouco capacitados e em

nuacutemero insuficiente aleacutem de precariedades de diversas ordens) que resultavam em pouca

efetividade da atuaccedilatildeo da rede de garantia de direitos das crianccedilas e adolescentes As autoras

afirmam ainda que o tempo de permanecircncia em instituiccedilotildees pode ultrapassar dez anos o que

interfere na sociabilidade e na manutenccedilatildeo de viacutenculos na vida adulta

Como uma medida excepcional o acolhimento institucional carrega paradoxos que tecircm

chamado cada vez mais atenccedilatildeo de profissionais e pesquisadores O Plano Nacional de

Promoccedilatildeo Proteccedilatildeo e Defesa dos Direitos de Crianccedilas e Adolescentes agrave Convivecircncia Familiar

e Comunitaacuteria (PNCFC) foi criado em 2006 justamente para ressaltar a necessidade de

combater algumas das dificuldades dessa medida Maria Moreira (2014) afirma que a ldquomedida

de acolhimento institucional traz agrave tona as contradiccedilotildees entre o direito agrave convivecircncia familiar e

3 Esses nuacutemeros satildeo puacuteblicos e podem ser consultados no site do Conselho Nacional de Justiccedila

(httpwwwcnjjusbr)

107

a supressatildeo dessa convivecircncia como condiccedilatildeo para restaurar esse mesmo direito agrave

convivecircnciardquo Ou seja observa-se que o proacuteprio acolhimento promove a tatildeo nociva ruptura de

viacutenculos e limita o direito agrave convivecircncia familiar de quem eacute acolhido em uma instituiccedilatildeo

Diante dessa contradiccedilatildeo o atual modelo de apadrinhamento afetivo surgiu com o

objetivo maior de restaurar o direito agrave convivecircncia familiar e comunitaacuteria dos acolhidos em

instituiccedilotildees Isso vem ocorrendo atraveacutes da modificaccedilatildeo de antigas praacuteticas assistencialistas

criando maior comprometimento dos voluntaacuterios que desejem se aproximar dos SAICAs por

meio de relaccedilotildees individualizadas

Cada programa de apadrinhamento afetivo estabelece suas proacuteprias regras e haacute cidades

que tecircm portarias municipais com as especificaccedilotildees do apadrinhamento naquela localidade ndash

um exemplo disso eacute Satildeo CarlosSP com a Lei nordm 180322016 Mesmo com essa diversidade

pelo paiacutes tal ideia ganhou tanta notoriedade que os poderes judiciaacuterio e legislativo

concentraram esforccedilos para regulamentaacute-la e ampliar sua implementaccedilatildeo

Em 2014 a Corregedoria Geral da Justiccedila do Estado de Satildeo Paulo publicou o

Provimento nordm 362014 regulamentando o apadrinhamento afetivo no estado (Jusbrasil 2016)

O Provimento tinha o objetivo de ldquocriar e estimular a manutenccedilatildeo de viacutenculos afetivos

ampliando assim as oportunidades de convivecircncia familiar e comunitaacuteriardquo (Art 2ordm) No acircmbito

nacional em 2017 a Lei Federal no 13509 incluiu no ECA o seguinte artigo

Art 19-B A crianccedila e o adolescente em programa de acolhimento institucional ou familiar

poderatildeo participar de programa de apadrinhamento

sect 1o O apadrinhamento consiste em estabelecer e proporcionar agrave crianccedila e ao adolescente

viacutenculos externos agrave instituiccedilatildeo para fins de convivecircncia familiar e comunitaacuteria e colaboraccedilatildeo

com o seu desenvolvimento nos aspectos social moral fiacutesico cognitivo educacional e

financeiro

sect 4o O perfil da crianccedila ou do adolescente a ser apadrinhado seraacute definido no acircmbito de cada

programa de apadrinhamento com prioridade para crianccedilas ou adolescentes com remota

possibilidade de reinserccedilatildeo familiar ou colocaccedilatildeo em famiacutelia adotiva (Brasil 2017)

A partir do texto da lei (Brasil 2017) e da literatura consultada (Dantas 2011 Oliveira

2011 Leal 2015 Nascimento amp Malveira 2017 Instituto Fazendo Histoacuteria 2017) eacute possiacutevel

observar que existem ao menos dois tipos de apadrinhamento o afetivo focado em estabelecer

relaccedilotildees de convivecircncia e o financeiro em que pessoas fiacutesicas ou juriacutedicas suprem diferentes

necessidades materiais dos acolhidos

Percebe-se que a lei natildeo define a maneira exata como deve ser executado cada programa

de apadrinhamento nem quais criteacuterios devem ser levados em conta para avaliar a qualidade

da relaccedilatildeo estabelecida ela apenas determina que os acolhidos poderatildeo participar de tais

programas Sendo assim na maior parte das vezes esse trabalho (de seleccedilatildeo capacitaccedilatildeo e

108

acompanhamento das relaccedilotildees) eacute realizado pelas proacuteprias equipes teacutecnicas dos serviccedilos de

acolhimento ndash as quais satildeo compostas necessariamente por uma(um) assistente social e

uma(um) psicoacuteloga(o) (Brasil 2006)

Recentemente foram publicados os resultados de pesquisas que investigaram alguns

programas de apadrinhamento com diferentes enfoques meacutetodos referenciais teoacutericos e

conclusotildees Deacutebora Nascimento e Jamille Malveira (2017) por exemplo realizaram entrevistas

com atores do judiciaacuterio e concluiacuteram que um dos efeitos duradouros do programa seria ldquoa

inserccedilatildeo das crianccedilas na sociedaderdquo (Nascimento amp Malveira 2017 p 50) Juliana Goulart e

Simone Paludo (2014) analisaram a evoluccedilatildeo de cinco ediccedilotildees de um programa de

apadrinhamento Para isso entrevistam 25 afilhados e aplicaram questionaacuterios em seus

respectivos padrinhos com o intuito de identificar o significado da relaccedilatildeo para os envolvidos

As pesquisadoras observaram que os afilhados relataram o apadrinhamento como possibilidade

de afeto e cuidado fora do espaccedilo institucional enquanto que os padrinhos o enxergavam de

maneira assistencialista como forma de ajudar outras pessoas

Jaacute Livia Leal (2015) afirma a importacircncia de tais programas no sentido de proporcionar

visibilidade social para essas crianccedilas e adolescentes o que estimularia o pleno exerciacutecio da

solidariedade e da cidadania Ela sugere que o apadrinhamento pode ter um resultado ainda

mais extremo na garantia da convivecircncia familiar ao defender a utilizaccedilatildeo do mesmo como

instrumento facilitador da adoccedilatildeo homoafetiva Segundo a autora ainda haacute resistecircncia de alguns

magistrados em reconhecer a adoccedilatildeo por casais do mesmo sexo assim a existecircncia de uma

relaccedilatildeo afetiva preacutevia atraveacutes do apadrinhamento poderia ser usada como argumento para

justificar a adoccedilatildeo por esses casais como maior interesse da crianccedilaadolescente

Aline Zerbinatti e Verocircnica Kemmelmeier (2014) por sua vez argumentam que o

apadrinhamento afetivo eacute permeado por ambiguidades e contradiccedilotildees As autoras entrevistaram

padrinhos que demonstraram entendimento sobre as possibilidades e limites de seus viacutenculos

quando perguntados sobre seus desejos de adotar os afilhados todos disseram natildeo ter essa

intenccedilatildeo por diversos fatores circunscrevendo sua motivaccedilatildeo em apadrinhar dentro das

categorias assistecircncia realizaccedilatildeo e condiccedilatildeo No mesmo sentido Karollyne de Sousa e Joatildeo

Paravidini (2011) analisaram quatro entrevistas com madrinhas e o caso cliacutenico de uma crianccedila

apadrinhada Os autores observaram haver em relaccedilatildeo ao apadrinhamento ldquoexaltaccedilatildeo da

solidariedade correlacionada a sentimentos como a bondade e o amor ao proacuteximo narcisismo

exacerbado como tentativa de recuperar a onipotecircncia perdida nos primoacuterdios da existecircncia a

seduccedilatildeo que perpassa a relaccedilatildeo padrinho-crianccedila institucionalizada a ambivalecircncia de

109

sentimentosrdquo (Sousa amp Paravidini 2011 p 537)

Neste artigo seguimos um caminho diferente As reflexotildees que aqui apresentaremos

natildeo estatildeo embasadas em questionaacuterios ou entrevistas mas na experiecircncia de uma das autoras

como membro da comissatildeo responsaacutevel pela implementaccedilatildeo do programa de apadrinhamento

em Osasco o Laccedilos Consideraremos como implementaccedilatildeo um periacuteodo que comeccedilou com a

formaccedilatildeo da Comissatildeo de Implementaccedilatildeo do Programa incluiu o lanccedilamento oficial do Laccedilos

as reuniotildees de rede a preparaccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes os encontros de capacitaccedilatildeo e

seleccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos e os primeiros seis meses de monitoramento e

acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas

2 A Primeira Ediccedilatildeo do Programa Laccedilos

Osasco tem aproximadamente 700 mil habitantes um dos maiores Produtos Internos

Brutos (PIB) do Estado de Satildeo Paulo (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2018) e

tem sua aacuterea urbana conurbada com a cidade de Satildeo PauloSP mantendo caracteriacutesticas de uma

cidade de grande importacircncia econocircmica e social No ano de 2017 contava com cinco abrigos

institucionais de administraccedilatildeo direta e trecircs conveniados agrave Prefeitura

A Secretaria de Assistecircncia Social de Osasco comeccedilou a realizar apadrinhamentos

afetivos em 2016 com algumas crianccedilas e adolescentes acolhidas em SAICAs de administraccedilatildeo

direta de maneira pontual e sempre acordada entre as teacutecnicas dos SAICAs e da VIJ Entatildeo a

partir dos resultados dessas primeiras experiecircncias em 2017 o municiacutepio decidiu implementar

o referido programa de apadrinhamento afetivo A implementaccedilatildeo de um programa municipal

tinha o objetivo de garantir um processo de seleccedilatildeo capacitaccedilatildeo e acompanhamento de maior

qualidade e padronizaccedilatildeo entre os padrinhos de todos os SAICAs

21 A Comissatildeo de Implementaccedilatildeo

Por ser a primeira ediccedilatildeo do Programa houve um processo licitatoacuterio que resultou na

contrataccedilatildeo de uma consultoria Aleacutem das consultoras a comissatildeo responsaacutevel pela

implementaccedilatildeo do programa contou tambeacutem com uma equipe de profissionais do municiacutepio4

A Comissatildeo batizou o projeto como Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo e estabeleceu

4 Danielle Silva Bueno Diretora do Departamento de Proteccedilatildeo Social Especial da Secretaria de Assistecircncia Social

da Prefeitura Municipal de Osasco (DPSE-SAS-PMO) Maacutercia Marciana Favorim Supervisora do DPSE-SAS-

PMO e as Teacutecnicas de SAICA Valquiacuteria De Conto (assistente social) e Andrielly Darcanchy (psicoacuteloga)

110

os criteacuterios para os candidatos a padrinhos

22 Os Criteacuterios para Apadrinhar

Apoacutes consultar algumas experiecircncias existentes (Goulart amp Paludo 2014 Souza amp

Paravidini 2011) optamos por realizar apadrinhamentos exclusivamente de pessoas fiacutesicas e

com o uacutenico intuito de formarem viacutenculos afetivos Era necessaacuterio residir em Osasco ou

comprovar faacutecil acesso agrave cidade Os candidatos natildeo poderiam estar inscritos no entatildeo ativo

CNA e obviamente era imprescindiacutevel ter disponibilidade afetiva e de tempo mantendo ao

menos encontros quinzenais com os afilhados5

23 Lanccedilamento do Programa

Em novembro de 2017 houve a apresentaccedilatildeo oficial do Programa contando com o

prefeito conselheiros tutelares funcionaacuterios dos SAICAs organizaccedilotildees parceiras e

representantes do poder legislativo Do poder judiciaacuterio foi convidada a equipe da Vara de

Infacircncia e Juventude

Foram apresentados dados gerais dos acolhimentos no municiacutepio Naquele momento

havia quatro SAICAs de administraccedilatildeo direta da Prefeitura e trecircs conveniados No total havia

aproximadamente 120 acolhidos sendo a maioria adolescentes

Tambeacutem foi exibido um viacutedeo feito para a divulgaccedilatildeo do Programa com o objetivo de

ilustrar as ideias que os acolhidos tinham sobre ele O viacutedeo continha desenhos e falas das

crianccedilas e adolescentes respondendo a questotildees sobre a importacircncia da relaccedilatildeo com um adulto

e suas expectativas em relaccedilatildeo ao apadrinhamento Nesse viacutedeo os acolhidos relatavam que

precisavam de um adulto para cuidados cotidianos e lazer mas tambeacutem para trocas afetivas

para se sentirem valorizados e para ldquonatildeo ser tratado como um objeto que pode ser trocadordquo nas

palavras de um adolescente Eles relatavam ainda que considerariam os padrinhos como ldquouma

segunda famiacuteliardquo (sic) uma famiacutelia substituta com a qual poderiam contar independentemente

das dificuldades que passassem

Apoacutes a cerimocircnia de lanccedilamento do programa iniciamos as primeiras formaccedilotildees Elas

foram realizadas entre dezembro de 2017 e marccedilo de 2018 e incluiacuteram seis reuniotildees de rede

(com teacutecnicos dos SAICAs dos CREAS e da VIJ) a preparaccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes e

5 Os criteacuterios para apadrinhar e ser apadrinhado estatildeo melhor detalhados no anexo 1

111

seis encontros com os candidatos a madrinhas e padrinhos sendo um deles de caraacuteter luacutedico

Eacute importante ressaltar que todas essas atividades aconteceram simultaneamente durante

o mesmo intervalo de meses Contudo faremos uma divisatildeo didaacutetica dentro dos eixos em que

as atividades se concentraram com os profissionais da rede com os acolhidos e com os

candidatos a madrinhas e padrinhos Dessa forma algumas atividades seratildeo mencionadas mais

de uma vez enfocando o trabalho proposto dentro de cada eixo

24 Reuniotildees de Rede e Preparaccedilatildeo das Crianccedilas e Adolescentes

Na primeira reuniatildeo com diversos atores da rede de proteccedilatildeo apresentamos os marcos

legais e os resultados esperados a criaccedilatildeo de referecircncias afetivas fora de instituiccedilotildees a melhora

na qualidade das relaccedilotildees interpessoais dos afilhados o enriquecimento dos referenciais sociais

e culturais e o suporte emocional oferecido na saiacuteda do acolhimento por maioridade (Goulart

amp Paludo 2014) Seguiram-se a essa outras cinco reuniotildees de rede nas quais decidimos

coletivamente os detalhes da implementaccedilatildeo conforme relatado a seguir (anexo 2)

Na segunda reuniatildeo acordamos os criteacuterios para as crianccedilas e adolescentes

participarem do Programa (1) ter mais de sete anos (2) o apadrinhamento afetivo ser parte do

Plano Individual de Atendimento (PIA) (3) estar acolhido haacute mais de oito meses ndash tempo

acordado como miacutenimo necessaacuterio para a equipe teacutecnica elaborar e avaliar o desenvolvimento

do PIA (4) previsatildeo de longa permanecircncia no SAICA (5) manter poucas referecircncias afetivas

eou todas as referecircncias serem institucionalizadas (6) estar disposto a estabelecer novas

relaccedilotildees

Como naquele momento havia um SAICA que recebia somente crianccedilas de zero a trecircs

anos sem irmatildeos ndash ou seja que natildeo atendiam aos criteacuterios que acabaacutevamos de estabelecer ndash

decidimos que esse equipamento natildeo participaria do Programa Assim foram incluiacutedos apenas

seis SAICAs sendo trecircs de administraccedilatildeo direta e trecircs conveniados

Nessa reuniatildeo tambeacutem solicitamos que as equipes teacutecnicas dos SAICAs fizessem

organogramas com as referecircncias afetivas dos acolhidos qualificando a relaccedilatildeo e a forccedila do

viacutenculo estabelecido Esses organogramas continham o acolhido no centro e todas as pessoas

eou instituiccedilotildees com as quais ele se relacionava sendo que o traccedilo indicativo da relaccedilatildeo poderia

ter caracteriacutesticas (ser uma linha reforccedilada simples ou um tracejado) e cores diferentes para

indicar a intensidade da relaccedilatildeo se ela era conflituosa entre outros adjetivos que a equipe

achasse necessaacuterio ressaltar Esse exerciacutecio foi utilizado principalmente para observar se as

112

relaccedilotildees estabelecidas por cada crianccedilaadolescente eram prioritariamente vinculadas a uma

instituiccedilatildeo principal criteacuterio utilizado para estabelecer quais crianccedilasadolescentes

participariam dessa primeira ediccedilatildeo tendo em vista natildeo haver candidatos a padrinhos para todos

os que se enquadravam aos outros criteacuterios

Na terceira reuniatildeo de rede discutimos coletivamente os casos levantados como

prioritaacuterios e assim criamos uma lista daqueles que participariam dessa e da proacutexima ediccedilatildeo

do programa de acordo com o nuacutemero de candidatos a padrinhos Pelas caracteriacutesticas dos

acolhidos naquele momento essa lista continha somente maiores de 11 anos que jaacute estavam em

acolhimento institucional havia mais de 6 anos chegando a um caso que estava acolhido havia

14 anos

Na quarta reuniatildeo de rede orientamos as equipes teacutecnicas a fazerem duas atividades

de preparaccedilatildeo de todos os acolhidos Primeiramente os teacutecnicos de cada SAICA conduziriam

no seu Serviccedilo uma roda de conversa com todos os integrantes (acolhidos e funcionaacuterios) para

explicar o Programa os criteacuterios estabelecidos quais crianccedilasadolescentes participariam

daquela ediccedilatildeo e por quecirc (anexo 3) As equipes relataram esse momento como uma

oportunidade para observarem a solidariedade entre os acolhidos pois eles foram

gradativamente entendendo os criteacuterios e passaram a compreender e concordar com nossa

escolha de quem deveria participar daquela ediccedilatildeo em detrimento de seus proacuteprios interesses

em ter padrinhos afetivos rapidamente

Em seguida as equipes teacutecnicas de cada SAICA realizaram atendimentos individuais

com os participantes daquela ediccedilatildeo para tirar duacutevidas e confirmar seu interesse ressaltando

que o apadrinhamento envolvia um compromisso com responsabilidades reciacuteprocas Nesse

momento tambeacutem foi solicitado que refletissem sobre como queriam se apresentar aos

padrinhos Essa proposta surgiu da observaccedilatildeo de que as histoacuterias dos acolhidos satildeo muitas

vezes expostas em demasia fazendo com que nunca estejam em uma relaccedilatildeo de maneira

igualitaacuteria podendo escolher o que contar e o que guardar pra si Afinal tal como afirma Maria

Moreira (2014) apesar de repetirmos que a crianccedila e o adolescente satildeo sujeitos de direitos ldquoeles

ainda satildeo pouco escutados sobre a compreensatildeo que tecircm de suas proacuteprias trajetoacuterias sobre as

suas escolhas e sobre as alternativas que propotildeem para seus problemas e dificuldadesrdquo (Moreira

2014 p 36) Thalita Poker (2017) completa ao afirmar que a ldquocrianccedila institucionalizada por

longos periacuteodos eacute um dos sintomas de uma sociedade colonizada cujas poliacuteticas de identidade

infantojuvenis pressupotildeem que as crianccedilas e os adolescentes deveratildeo ter representantes isso

significa que na maioria das situaccedilotildees elas natildeo podem se representarrdquo (Poker 2017 p 8)

113

Com esse cuidado em mente ainda nessa quarta reuniatildeo decidimos fazer um encontro

luacutedico entre todos os candidatos a padrinhos e os acolhidos que poderiam ser apadrinhados

Afinal esse momento descontraiacutedo eacute importante para facilitar a primeira experiecircncia entre os

participantes (Instituto Fazendo Histoacuteria 2017) O encontro luacutedico consistiu em uma gincana

incluindo diversos jogos e brincadeiras aleacutem de um piquenique Ele ocorreu em um parque

sem que houvesse predeterminaccedilatildeo dos apadrinhamentos pois aquele era um momento para

que todos pudessem se conhecer ndash essa informaccedilatildeo foi transmitida e reiterada aos acolhidos e

aos pretendentes por diversas vezes pois eles estavam ansiosos com a formaccedilatildeo das duplas

afilhados-padrinhos

A quinta reuniatildeo ocorreu em seguida e nela discutimos as impressotildees que as crianccedilas

e os adolescentes expressaram agraves equipes Aleacutem disso tambeacutem acordamos os detalhes dos

proacuteximos passos que incluiacuteam uma visita domiciliar aos candidatos a padrinhos para avaliar

a receptividade da famiacutelia expandida ao apadrinhamento a confirmaccedilatildeo do interesse daquela

crianccedilaadolescente em ter aquela pessoa como padrinhomadrinha um atendimento individual

aos candidatos a padrinhos apresentando de maneira breve o possiacutevel afilhado (apenas

caracteriacutesticas e preferecircncias gerais respeitando o acordo de deixar que a crianccedilaadolescente

se apresentasse e escolhesse se iria quando e como contar sua histoacuteria) e por fim os primeiros

passeios individuais dos candidatos a padrinhos com as crianccedilas e adolescentes que desejavam

apadrinhar

Na sexta e uacuteltima reuniatildeo de rede as equipes informaram como foram as visitas

domiciliares os atendimentos aos padrinhos e os primeiros passeios para os acolhidos

25 Capacitaccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos6

Do primeiro encontro participaram 12 nuacutecleos familiares com diferentes composiccedilotildees

ndash casais heterossexuais com e sem filhos casais homossexuais sem filhos famiacutelias

monoparentais e pessoas solteiras Desses nuacutecleos sete estavam dispostos a conhecer qualquer

crianccedilaadolescente Trecircs famiacutelias haviam conhecido previamente alguma crianccedilaadolescente

e participavam do encontro com o interesse de iniciar um apadrinhamento especiacutefico com essa

pessoa jaacute conhecida Outros dois nuacutecleos jaacute apadrinhavam e participaram para qualificar eou

oficializar essa relaccedilatildeo

Realizamos uma rodada de apresentaccedilatildeo em que cada um dizia resumidamente seu

6 O anexo 4 apresenta uma siacutentese das atividades de capacitaccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos

114

interesse em participar do Programa Apareceram motivos variados algumas famiacutelias jaacute tinham

filhos de vaacuterias idades e outras natildeo desejavam tecirc-los mas todas compartilhavam o interesse em

contribuir socialmente e estabelecer uma nova relaccedilatildeo de cuidados e proteccedilatildeo ndash cabe apontar

que tais motivos estatildeo em consonacircncia com os resultados de pesquisas anteriores sobre

programas semelhantes (Sousa amp Paravidini 2011 Goulart amp Paludo 2014 Zerbinatti amp

Kemmelmeier 2014)

No segundo encontro abordamos as principais caracteriacutesticas dos antigos orfanatos e

dos atuais serviccedilos de acolhimento promovendo a discussatildeo sobre conceitos ainda presentes

socialmente como por exemplo o questionamento sobre os acolhidos terem ou natildeo famiacutelia ou

a duacutevida sobre as crianccedilas poderem sair do serviccedilo de acolhimento pois a instituiccedilatildeo algumas

vezes eacute confundida com uma medida de restriccedilatildeo de liberdade para adolescentes em conflito

com a lei As famiacutelias expuseram muitas de suas duacutevidas e preconceitos que puderam ser

trabalhados durante a formaccedilatildeo

Por fim lemos uma paraacutebola de Walter Benjamin (1995) que conta a histoacuteria de um rei

e seu desejo por comer uma omelete de amoras exatamente igual a uma que comera na infacircncia

sendo que ao longo do texto eacute explicado se tratar na verdade do desejo de reviver uma

experiecircncia com grande valor emocional Essa paraacutebola foi usada para ilustrar como as

memoacuterias afetivas satildeo constitutivas das histoacuterias de vida e das identidades

Assim o terceiro encontro foi dedicado agraves referecircncias e memoacuterias afetivas de cada

participante Notamos que todos se referiram exclusivamente a familiares com os quais

mantinham laccedilos consanguiacuteneos por isso aprofundamos a discussatildeo sobre a possibilidade de

estabelecer viacutenculos tatildeo relevantes quanto aqueles com pessoas sem parentesco

O quarto encontro foi o luacutedico Eacute importante ressaltar que ao longo dos encontros o

nuacutemero de candidatos foi diminuindo por motivos que seratildeo explicados a seguir mas ateacute aquele

momento havia seis famiacutelias participando ativamente Todas tinham confirmado presenccedila no

encontro luacutedico por isso levamos ao parque tambeacutem as seis primeiras crianccedilasadolescentes

determinadas nas reuniotildees de rede relatadas Entretanto um dos candidatos faltou e natildeo

conseguimos mais contato com ele Portanto compareceram ao encontro cinco nuacutecleos

familiares e seis acolhidos aleacutem de uma das pessoas que jaacute apadrinhava com a respectiva

afilhada O encontro durou cerca de 4h e ao longo das atividades foi possiacutevel observar quatro

duplas (de padrinhos e afilhados) se aproximando enquanto dois adolescentes apresentaram

dificuldades para se relacionar com os candidatos

115

Apoacutes o encontro luacutedico realizamos a reuniatildeo de rede jaacute relatada na qual os teacutecnicos dos

SAICAs informaram os desejos das crianccedilas e dos adolescentes Com esses dados da reuniatildeo

de rede no quinto encontro com os candidatos a madrinhas e padrinhos ouvimos suas

impressotildees as quais no geral combinavam com as apontadas pelos acolhidos dessa forma

estabelecemos as cinco duplas possiacuteveis

Lembrando que houve uma adolescente que natildeo pocircde ser apadrinhada por causa de uma

desistecircncia repentina trecircs famiacutelias se ofereceram para realizar encontros esporaacutedicos com ela

e assim ampliar seu ciacuterculo de convivecircncia comunitaacuteria

A partir de entatildeo as equipes teacutecnicas dos SAICAs deveriam realizar as visitas

domiciliares e iniciar o apadrinhamento em si com frequecircncia quinzenal Para garantir que jaacute

tivesse ocorrido ao menos um encontro individual com os afilhados realizamos o uacuteltimo

encontro pouco mais de um mecircs depois

Nesse intervalo entre os encontros com os candidatos uma das duplas se desfez Ela era

formada por um adolescente que apresentara dificuldades em se relacionar durante o encontro

luacutedico e logo no primeiro passeio com o candidato a padrinho a comunicaccedilatildeo entre eles foi

difiacutecil O candidato tambeacutem afirmou ter percebido somente naquele momento que desejava

adotar outro perfil de crianccedilaadolescente natildeo apadrinhar por isso pediu para encerrar sua

participaccedilatildeo no Programa Conforme exposto acima jaacute haviacuteamos acordado entre todos os

participantes (candidatos a padrinhos e afilhados) que as possiacuteveis desistecircncias deveriam incluir

uma uacuteltima conversa de encerramento para poderem ser rompimentos cuidados e natildeo

repentinos Contudo naquele momento avaliamos que realizar outro encontro para despedida

seria uma situaccedilatildeo danosa para o adolescente por se tratar apenas de um primeiro passeio que

durou menos de meia hora e por especificidades daquelas pessoas ndash o candidato a padrinho

demonstrou muita dificuldade em lidar com a situaccedilatildeo parecia sentir-se amedrontado por estar

sozinho com o adolescente e o adolescente voltou do encontro dizendo que a relaccedilatildeo natildeo teria

continuidade e que preferia assim Entatildeo realizamos atendimentos individuais com os dois e

compreendemos que seria melhor encerrar o apadrinhamento somente com o adolescente

Por uacuteltimo o sexto encontro encerrou o ciclo de capacitaccedilatildeo do Programa Laccedilos

contando com quatro apadrinhamentos iniciados e dois continuados Esse momento foi

dedicado agrave discussatildeo das impressotildees dos padrinhos em relaccedilatildeo aos primeiros encontros com os

afilhados Em comum todas as famiacutelias relataram entusiasmo com o iniacutecio da relaccedilatildeo

116

26 Acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas

Conforme mencionado consideramos os primeiros seis meses de convivecircncia como

parte do processo de implementaccedilatildeo pois estaacutevamos realizando acompanhamentos constantes

a fim de verificar a efetividade das accedilotildees realizadas ateacute entatildeo Os acompanhamentos envolviam

trabalhos com os afilhados e com os padrinhos divididos entre as equipes teacutecnicas dos SAICAs

e a Comissatildeo sendo necessaacuteria comunicaccedilatildeo constante e organizada

As equipes teacutecnicas dos SAICAs realizavam atendimentos individuais com os afilhados

e em separado com os padrinhos sendo os resultados informados periodicamente agrave Comissatildeo

(anexo 5) Esses atendimentos tinham o objetivo de monitorar periodicamente como a relaccedilatildeo

estava se desenvolvendo no cotidiano

Jaacute agrave Comissatildeo cabiam encontros com periodicidade bimestral com todos os padrinhos

A proposta desses encontros era fornecer um momento para os padrinhos partilharem como

estava sendo a experiecircncia de apadrinhar uma crianccedilaadolescente que residia havia muitos anos

em um SAICA Portanto nesses encontros eles podiam compartilhar de maneira mais geral

como estavam sendo os contatos e dividir os sentimentos que esses encontros provocavam

Dentre os quatro apadrinhamentos iniciados dois resultaram em desistecircncias durante

esses primeiros seis meses de convivecircncia Uma das desistecircncias envolveu uma adolescente

proacutexima do seu desacolhimento por maioridade A relaccedilatildeo comeccedilou a apresentar dificuldades

nos primeiros meses de convivecircncia a ponto de os padrinhos solicitarem o encerramento Esse

apadrinhamento foi estabelecido com uma adolescente de 16 anos pertencente a um grande

grupo de irmatildeos com acolhimentos anteriores e uma histoacuteria transgeracional de extrema

vulnerabilidade social

Antes do encontro luacutedico a adolescente havia sido selecionada para trabalhar como

Jovem Aprendiz em um programa organizado pelo casal na empresa em que trabalhavam entatildeo

ela comeccedilou a trabalhar chefiada pela madrinha no mesmo periacuteodo em que iniciou a relaccedilatildeo

Poucas semanas apoacutes o iniacutecio do trabalho a madrinha disse que a jovem natildeo estava se

comportando adequadamente (usava vestes inadequadas e chegou a dormir em algumas

atividades no horaacuterio de trabalho) e o apadrinhamento estava afetando o programa Jovem

Aprendiz na empresa como um todo pois os outros jovens entendiam que ela estava tendo um

tratamento privilegiado O casal de padrinhos expressou ainda que o acompanhamento teacutecnico

teria sido insuficiente para lidar com essas questotildees Por isso eles decidiram encerrar a relaccedilatildeo

sozinhos recusando nossas indicaccedilotildees de realizar o encerramento na presenccedila da equipe teacutecnica

117

do SAICA ou da Comissatildeo Ademais logo apoacutes o fim do apadrinhamento eles tambeacutem

desligaram a adolescente do trabalho

A outra desistecircncia envolveu uma adolescente acolhida desde crianccedila e com um

transtorno mental em tratamento Depois de alguns encontros os padrinhos que tinham dois

filhos pequenos pediram para encerrar o apadrinhamento por falta de tempo questotildees de sauacutede

na famiacutelia e ciuacutemes por parte dos filhos Da mesma forma solicitamos que o encerramento

fosse mediado pela Comissatildeo e nos oferecemos para atendecirc-los a qualquer dia e horaacuterio

(inclusive fora dos nossos horaacuterios de trabalho agrave noite ou em algum final de semana) mas eles

afirmaram total indisponibilidade Por fim eles tiveram uma uacuteltima conversa raacutepida com a

adolescente por telefone e a psicoacuteloga que a tratava ficou responsaacutevel por retomar os

significados daquele encerramento com a adolescente

3 Discussatildeo sobre os resultados da primeira ediccedilatildeo do Programa Laccedilos

Essa primeira experiecircncia produziu natildeo somente novas relaccedilotildees novos viacutenculos novos

afetos Mas produziu tambeacutem desistecircncias e frustraccedilotildees aleacutem da percepccedilatildeo de que era possiacutevel

(e necessaacuterio) aperfeiccediloar o Programa

Conforme mencionado no toacutepico anterior no primeiro encontro havia 12 famiacutelias

(Quadro 1) sete dispostas a conhecer qualquer crianccedilaadolescente trecircs desejavam iniciar uma

relaccedilatildeo especiacutefica e duas jaacute apadrinhavam As duas famiacutelias que participaram do Programa para

qualificar e oficializar seus apadrinhamentos concluiacuteram os encontros e mantiveram as

relaccedilotildees

As trecircs famiacutelias que desejavam iniciar uma relaccedilatildeo de apadrinhamento especiacutefica natildeo

concluiacuteram o programa Uma delas relatou logo no primeiro encontro que desejava adotar as

adolescentes mencionadas e foi orientada a procurar a VIJ A segunda famiacutelia era composta

pela professora da crianccedila desejada o casal tinha dois filhos menores de quatro anos e estava

muito sensibilizado com a situaccedilatildeo da crianccedila acolhida mas ao longo das formaccedilotildees eles

perceberam que naquele momento natildeo conseguiriam assumir mais esse compromisso A

terceira famiacutelia desistiu apoacutes o encontro em que discutimos preconceitos pois percebeu que

tinha muitos receios quanto agraves dificuldades que poderia vivenciar nesse tipo de relaccedilatildeo

Das outras sete famiacutelias uma delas engravidou durante o ciclo de encontros Outra

conforme relatado desistiu no dia do encontro luacutedico sem nos informar os motivos nem

retornar nossas diversas tentativas de contato Uma terceira desistiu apoacutes o primeiro passeio

118

sozinho com o adolescente quando percebeu que queria adotar em vez de apadrinhar Por fim

quatro apadrinhamentos foram iniciados

Dentre esses quatro dois foram encerrados por solicitaccedilatildeo dos padrinhos conforme

descrito acima Entatildeo ao final do periacuteodo que denominamos implementaccedilatildeo somente duas

relaccedilotildees foram iniciadas pelo Programa e outras duas relaccedilotildees anteriores permaneceram

Quadro 1 ndash Resultados da implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos

Famiacutelia Interesse inicial Desfecho Momento Motivo

1 Qualificar e oficializar

apadrinhamento

Relaccedilatildeo

mantida

______ ______

2 Qualificar e oficializar

apadrinhamento

Relaccedilatildeo

mantida

______ ______

3 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo

______ ______

4 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo

______ ______

5 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo e

Desistecircncia

No iniacutecio da

convivecircncia

Dificuldades na relaccedilatildeo

6 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Iniciaram

relaccedilatildeo e

Desistecircncia

No iniacutecio da

convivecircncia

Falta de tempo questotildees de

sauacutede e ciuacutemes

7 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Dificuldades na relaccedilatildeo e

desejo por adoccedilatildeo

8 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Gravidez

9 Conhecer qualquer

crianccedila ou adolescente

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Natildeo justificado

10 Apadrinhamento

especiacutefico

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Desejava adotar

11 Apadrinhamento

especiacutefico

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Sem condiccedilotildees no

momento familiar

12 Apadrinhamento

especiacutefico

Desistecircncia Durante

capacitaccedilatildeo

Tinha receios

Portanto percebemos que das doze famiacutelias iniciais mais de 65 (oito) desistiu por

motivos diversos durante as formaccedilotildees ou no iniacutecio da convivecircncia O que mais chama a

atenccedilatildeo eacute o fato de 25 do grupo inicial (trecircs famiacutelias dentre as doze iniciais) ter desistido por

motivos que indicavam natildeo terem seus projetos familiares concluiacutedos - como o iniacutecio de uma

gravidez ou a decisatildeo por adotar Esse dado se destaca porque pode indicar como nossa

sociedade enxerga essas crianccedilas e adolescentes acolhidos e como se relaciona com eles como

aqueles com quem se pode assumir um compromisso e abandonaacute-lo sem grandes preocupaccedilotildees

119

O fato de algumas dessas famiacutelias desejarem adotar levanta a duacutevida sobre os motivos

que as levaram a procurar o apadrinhamento afetivo Apoiadas na dissertaccedilatildeo de mestrado de

Karollyne de Sousa (2011) que reflete sobre o processo de apadrinhamento observando que ele

envolve um ldquonarcisismo exacerbado como tentativa de recuperar a onipotecircncia perdida nos

primoacuterdios da existecircnciardquo (Sousa 2011 p 7) eacute possiacutevel questionar se esse interesse estaria

relacionado agrave intenccedilatildeo de utilizar o apadrinhamento como um teste drive uma experiecircncia de

convivecircncia com uma crianccedila ou adolescente acolhido sem o compromisso de filiaccedilatildeo sabendo

que assim que quisessem adotar teriam plenas condiccedilotildees legais para isso Se fosse esse o caso

seraacute que soacute desistiram do apadrinhamento pela nossa insistecircncia em explicitar o

comprometimento necessaacuterio para iniciar aquela relaccedilatildeo

Provavelmente nem os candidatos saberiam responder essas questotildees pois eacute comum a

situaccedilatildeo do acolhimento levantar sentimentos ambiacuteguos nos primeiros contatos Sendo assim

eacute importante que a capacitaccedilatildeo mobilize repetidas reflexotildees sobre as dimensotildees afetivas

envolvidas no apadrinhamento a fim de que os candidatos estejam seguros quanto ao desejo de

iniciar a relaccedilatildeo Portanto eacute fundamental contribuir na elucidaccedilatildeo do interesse dessas famiacutelias

em participar do Programa e eacute esperado que haja um nuacutemero de desistecircncias

Quanto agraves desistecircncias que chegaram a envolver alguns contatos com os adolescentes

(seja na aproximaccedilatildeo ou no iniacutecio da convivecircncia) eacute importante refletir sobre alguns pontos

Nina Costa e Maria Rossetti-Ferreira (2009) afirmam que ldquoa ameaccedila ou existecircncia de rupturas

afetivas anteriores parece criar enredamentos ou tramas que as pessoas em interaccedilatildeo reeditam

nas suas praacuteticas dialoacutegicas e discursivas coconstruindo no momento atual os problemas ou

uma visatildeo de desenvolvimento inadequado para essas crianccedilasrdquo (Costa amp Rossetti-Ferreira

2009 p 116) Na mesma direccedilatildeo Bruna Wendt Luana Dullius e Deacutebora DellAglio (2017)

realizaram uma pesquisa quantitativa sobre as imagens sociais atribuiacutedas aos jovens em

acolhimento institucional Atraveacutes da aplicaccedilatildeo de questionaacuterio fechado em 224 pessoas de 18

a 71 anos que tinham ou natildeo contato com acolhidos as autoras observaram que as

caracteriacutesticas negativas foram mais associadas aos jovens em acolhimento institucional

(Wendt Dellius amp DellrsquoAglio 2017 p 529) em comparaccedilatildeo com os jovens cuidados por suas

famiacutelias Essas informaccedilotildees demonstram obstaacuteculos que permeiam o processo de

apadrinhamento afetivo de adolescentes com perspectiva de longa permanecircncia na instituiccedilatildeo

como era o caso dos que participaram dessa ediccedilatildeo do Programa

Outro fator que pode ter contribuiacutedo para o alto nuacutemero de desistecircncias eacute o fato de haver

ldquosemelhanccedilas do processo de apadrinhamento com o processo de adoccedilatildeo no que diz respeito agrave

120

busca do filho ideal que se estende agrave procura do padrinho ideal e do afilhado idealrdquo (Sousa amp

Paravidini 2011 p537) Ou seja haacute afilhados que apresentam comportamentos que aos olhos

dos padrinhos satildeo vistos como inadequados (comportamentos agressivos ou desafiadores)

mas tambeacutem eacute possiacutevel observar idealizaccedilotildees e baixa toleracircncia por parte de alguns padrinhos

A partir dessa primeira experiecircncia uma liccedilatildeo importante que levamos para a segunda

ediccedilatildeo do Programa foi a realizaccedilatildeo de encontros luacutedicos com menos acolhidos que candidatos

a padrinhos preferindo formar uma lista de espera dos adultos e natildeo das crianccedilas e adolescentes

Outra modificaccedilatildeo baseada nessa experiecircncia relatada foi a realizaccedilatildeo de dois encontros

luacutedicos na segunda ediccedilatildeo que foi iniciada em 2018 Na segunda ediccedilatildeo fizemos o primeiro

encontro luacutedico totalmente livre como em 2017 mas entatildeo a partir das afinidades nele

observadas aliadas aos perfis dos acolhidos e dos candidatos realizamos um segundo encontro

luacutedico em que indicamos aos adultos que se aproximassem mais de duas crianccedilasadolescentes

que avaliaacutevamos como combinaccedilotildees possiacuteveis Eacute importante indicar que essa segunda ediccedilatildeo

contou com a consultoria do Instituto Fazendo Histoacuteria sendo que muitas das alteraccedilotildees foram

resultantes da nossa experiecircncia combinada com as propostas daquela equipe

Tambeacutem ampliamos o acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas nessa e na segunda

ediccedilatildeo Incluiacutemos encontros coletivos entre os afilhados aleacutem de manter os atendimentos

individuais e os encontros dos padrinhos com a Comissatildeo passaram a ter frequecircncia mensal

Como resultados imediatos observamos uma diminuiccedilatildeo do percentual de desistecircncias de

candidatos durante a capacitaccedilatildeo e eles relataram seguranccedila e satisfaccedilatildeo com o processo de

formaccedilatildeo das duplas de padrinhos-afilhados por terem tido dois encontros luacutedicos As

mudanccedilas no acompanhamento apoacutes iniacutecio da convivecircncia ainda estatildeo sendo avaliadas mas a

maior parte dos padrinhos tem frequentado os encontros e aproveitado esse espaccedilo de trocas de

experiecircncias Por fim planejamos continuar realizando ediccedilotildees anuais do Programa no

municiacutepio com o intuito de ter padrinhos para todos os acolhidos que possam se beneficiar

dessa relaccedilatildeo

Consideraccedilotildees finais

Notamos que apesar de haver alguns estudos relativos agraves motivaccedilotildees que levam pessoas

a apadrinhar e reflexotildees quanto aos sentimentos envolvidos nesse ato os estudos sobre efeitos

do apadrinhamento afetivo ainda estatildeo em passo inicial principalmente quanto agrave contribuiccedilatildeo

especiacutefica da Psicologia nesses processos Da mesma forma a efetividade dessa iniciativa na

121

garantia de convivecircncia familiar e na diminuiccedilatildeo dos impactos da institucionalizaccedilatildeo estaacute em

construccedilatildeo necessitando de mais estudos sobre seus resultados

Contudo se faltam estudos que discutam as contribuiccedilotildees da Psicologia para esse

programa especiacutefico haacute uma ampla literatura que discorre sobre suas contribuiccedilotildees para as

poliacuteticas puacuteblicas em geral ou mais especificamente para a poliacutetica de Assistecircncia Social Para

isso partem de diferentes abordagens e posicionamentos poliacuteticos bem como apresentam

argumentos distintos Apesar dessas diferenccedilas muitas(os) autoras(es) parecem concordar com

a afirmaccedilatildeo de que a entrada maciccedila da Psicologia no campo das poliacuteticas puacuteblicas trouxe agrave

tona a necessidade de repensar suas praacuteticas hegemocircnicas (Brigagatildeo Nascimento amp Spink

2011 Cordeiro 2018 Yamamoto 2007) Afinal nesse campo natildeo haacute a presenccedila do setting

tradicional as demandas satildeo outras as possibilidades de intervenccedilatildeo satildeo distintas No caso

especiacutefico da Assistecircncia Social a cliacutenica tradicional tatildeo enfatizada pelos cursos de graduaccedilatildeo

eacute inclusive proibida - documentos normativos do SUAS e referecircncias teacutecnicas do conselho de

classe afirmam claramente que usuaacuterias(os) que necessitam de atendimento cliacutenico devem ser

encaminhadas(os) para serviccedilos de sauacutede (Conselho Federal de Psicologia 2012 2013) Mas o

que fazem entatildeo as psicoacutelogas e psicoacutelogos que atuam nessa poliacutetica puacuteblica Ou melhor

como a Psicologia pode contribuir para sua implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo

Diversas(os) autoras(es) sustentam que nossa contribuiccedilatildeo reside sobretudo na nossa

capacidade de intervir em questotildees subjetivas eou intersubjetivas (Cordeiro 2019) Aleacutem

disso ressaltam a importacircncia da interface entre os fatores psicoloacutegicos e sociais nas situaccedilotildees

de risco e vulnerabilidade e destacam a necessidade de pensar a subjetividade sempre de forma

contextualizada (Cordeiro 2019 pp 170-171) Maria Luacutecia Afonso e colaboradoras(es)

(2012) chamam a nossa atenccedilatildeo para o fato de que fazer isso implica

criar condiccedilotildees sociais para o exerciacutecio da cidadania (promoccedilatildeo dos direitos socioassistenciais)

bem como favorecer as condiccedilotildees subjetivas para o seu exerciacutecio (circular informaccedilatildeo

fortalecer participaccedilatildeo desenvolver potencialidades facilitar processos decisoacuterios dentre

outros) Transformaccedilotildees sociais tecircm impacto sobre identidades sociais relaccedilotildees e valores

(Afonso et al 2012 p 197)

Nesse sentido garantir o exerciacutecio da cidadania de crianccedilas e adolescentes acolhidos

natildeo significa simplesmente oferecer um teto embaixo do qual eles podem dormir Mas criar

condiccedilotildees para que possam se desenvolver aprender ressignificar suas histoacuterias construir

novos viacutenculos afetar e ser afetado E eacute justamente nesse ponto que os programas de

apadrinhamento afetivo buscam intervir

No entanto cabe ressaltar que tal intervenccedilatildeo natildeo acontece sem contradiccedilotildees

122

Conforme exposto o apadrinhamento visa garantir o direito agrave convivecircncia familiar e

comunitaacuteria modificando o formato de relaccedilotildees que jaacute se formavam entre acolhidos e adultos

que natildeo trabalham na instituiccedilatildeo Entatildeo notamos que apesar de ser um direito e como tal deve

ser garantido pelo Estado o apadrinhamento afetivo depende da disponibilidade de voluntaacuterios

os quais geralmente satildeo motivados primeiramente por uma ideia de caridade

Eacute importante salientar que esse tipo de viacutenculo soacute pode se formar com pessoas que natildeo

tecircm sua relaccedilatildeo mediada por uma questatildeo trabalhista O padrinho natildeo poderia ser um

profissional contratado para estabelecer uma relaccedilatildeo diferenciada com o acolhido pois o

viacutenculo mais importante de um funcionaacuterio eacute com o trabalho natildeo com a crianccedilaadolescente

(Mariotto 2009) Assim vale lembrar que nossa Constituiccedilatildeo Federal se destaca por propor a

participaccedilatildeo social e convocar a populaccedilatildeo a tambeacutem se comprometer com a garantia de seus

direitos contribuindo ativamente para as poliacuteticas puacuteblicas Sendo assim o apadrinhamento

efetiva a participaccedilatildeo da sociedade na garantia de seus direitos de maneira solidaacuteria

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Anexos

Anexo 1 Caracteriacutesticas gerais do Programa Laccedilos

Tipo de Apadrinhamento exclusivo com pessoas fiacutesicas com o objetivo de formar viacutenculos

afetivos entre padrinhos e afilhados

Criteacuterios para apadrinhar

Residir em Osasco ou comprovar faacutecil acesso agrave cidade

Natildeo estar inscritos no Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo

Ter disponibilidade afetiva e de tempo

Manter encontros presenciais com o afilhado ao menos duas vezes por mecircs

Criteacuterios para ser apadrinhado

Ter mais de sete anos

O apadrinhamento afetivo deve ser parte do Plano Individual de Atendimento (PIA)

Estar acolhido haacute mais de oito meses ndash tempo acordado como miacutenimo necessaacuterio para a equipe

teacutecnica elaborar e avaliar o desenvolvimento do PIA

Ter previsatildeo de longa permanecircncia no SAICA

Manter poucas referecircncias afetivas ou todas serem institucionalizadas

Estar disposto a estabelecer novas relaccedilotildees

Anexo 2 Reuniotildees de Rede ndash com teacutecnicos dos SAICAs dos CREAS e da VIJ

Objetivos Resultados

1ordf Apresentar os marcos legais e os

resultados esperados do Programa

Maior conhecimento e disponibilidade para

participaccedilatildeo dos profissionais envolvidos

com o acolhimento em diferentes dimensotildees

2ordf Estabelecer os criteacuterios para os

acolhidos participarem do Programa

Criaccedilatildeo de consenso entre os profissionais

sobre as especificidades do programa

3ordf Decidir quais crianccedilas e adolescentes

participaratildeo daquela ediccedilatildeo

Anaacutelise da rede de relaccedilotildees de cada acolhido

e estabelecimento de prioridade de casos para

a participaccedilatildeo

4ordf Orientaccedilatildeo das equipes teacutecnicas dos

SAICAs sobre a preparaccedilatildeo de todos os

acolhidos para o programa e dos

participantes daquela ediccedilatildeo para o

encontro luacutedico

Estabelecimento de um roteiro com temas a

serem abordados em uma roda de conversa

com todos os acolhidos e um atendimento

individual com os participantes daquela

ediccedilatildeo

5ordf Elencar as impressotildees das crianccedilas e

adolescentes quanto aos candidatos a

Apresentaccedilatildeo dos relatos dos acolhidos sobre

o encontro luacutedico e seus candidatos

126

padrinhos a fim de combinaacute-las com as

impressotildees dos adultos e acertar os

proacuteximos passos da aproximaccedilatildeo com

as equipes teacutecnicas dos SAICAs

preferidos aleacutem do acordo de que as equipes

de cada SAICA realizariam visita domiciliar

confirmaccedilatildeo do interesse do acolhido

atendimentos individuais e os primeiros

encontros das duplas

6ordf Acompanhar o desenvolvimento da

aproximaccedilatildeo acordada na reuniatildeo

anterior

Apresentaccedilatildeo das visitas domiciliares dos

atendimentos aos padrinhos e das primeiras

saiacutedas com os acolhidos

Anexo 3 Preparaccedilatildeo das Crianccedilas e Adolescentes ndash realizadas em cada SAICA

Presentes Objetivos Resultados

Rodas de

Conversa

Todos os

acolhidos e

funcionaacuterios

de cada abrigo

Explicar etapas e

criteacuterios do Programa e

quais acolhidos

participariam daquela

ediccedilatildeo

Observaccedilatildeo da

compreensatildeo e

solidariedade entre os

acolhidos e capacitaccedilatildeo dos

demais funcionaacuterios do

SAICA

Atendimentos

individuais antes

do encontro

luacutedico

Apenas os

acolhidos

participantes

da ediccedilatildeo

Confirmar interesse na

criaccedilatildeo de uma nova

relaccedilatildeo

Promoccedilatildeo da implicaccedilatildeo

dos acolhidos em

participar pois passaram a

entender seu protagonismo

Encontro luacutedico Apenas os

acolhidos

participantes

da ediccedilatildeo

Promover a

aproximaccedilatildeo entre

candidatos e acolhidos

Alguns acolhidos

participaram das atividades

e outros natildeo

Atendimentos

individuais apoacutes

o encontro luacutedico

Apenas os

acolhidos

participantes

da ediccedilatildeo

Levantar como estava a

interaccedilatildeo com os

candidatos e a

aproximaccedilatildeo

Levantamento de dados

importantes para avaliar a

continuidade das

aproximaccedilotildees

Anexo 4 Encontros com candidatos a madrinhas e padrinhos

Objetivos Resultados

1ordm Apresentaccedilatildeo dos candidatos e de

seus interesses em participar

Iniacutecio da formaccedilatildeo do grupo

2ordm Diferenciar orfanatos de SAICAs e

refletir sobre conceitos associados

aos acolhidos

Promoccedilatildeo de reflexotildees sobre a realidade dos

acolhimentos com os quais teriam contato

3ordm Refletir sobre as referecircncias e

memoacuterias afetivas dos candidatos

Todos se referiram a familiares por isso discutimos

a possibilidade de estabelecer viacutenculos relevantes

com pessoas sem parentesco

4ordm Encontro luacutedico Todos os candidatos a padrinhos estavam bastante

participativos

5ordm Ouvir suas impressotildees sobre o

encontro luacutedico

Levantamento de informaccedilotildees para realizar a

combinaccedilatildeo das duplas de padrinhos e afilhados

6ordm Acompanhar os primeiros

encontros sozinhos com os

afilhados e as expectativas

Encerramento da capacitaccedilatildeo e observaccedilatildeo de que

todos estavam animados com o iniacutecio da

convivecircncia

127

Anexo 5 Acompanhamento

Com afilhados Atendimentos individuais com as equipes de cada SAICA e encontros

coletivos dos afilhados

Com padrinhos Contatos semanais dos teacutecnicos dos SAICAs com os padrinhos e encontros

bimestrais dos padrinhos com a Comissatildeo do Programa

128

Capiacutetulo 7

A concepccedilatildeo desenvolvimentista de adolescecircncia e seus impasses para a

poliacutetica de Assistecircncia Social

Mariana Belluzzi Ferreira

Carolina Esmanhoto Bertol

Introduccedilatildeo

As poliacuteticas do campo da Assistecircncia Social foram instituiacutedas pela Constituiccedilatildeo Federal

(Brasil 1988) trazendo importantes mudanccedilas ao tomar como responsabilidade puacuteblica

necessidades ateacute entatildeo consideradas de acircmbito pessoal ou individual (Brasil 2013 Sposati

2009) Como poliacutetica puacuteblica a Assistecircncia Social ancora-se na prevalecircncia do interesse

puacuteblico possuindo caraacuteter contiacutenuo regular universal e obrigatoacuterio Regulamentada em 1993

por meio da Lei 8742 (Brasil 1993) ela passa a compreender as situaccedilotildees de desproteccedilatildeo

social como expressatildeo de uma questatildeo social ou seja produzida por determinantes histoacutericos

poliacuteticos e sociais que natildeo podem ser atribuiacutedos a um sujeito ou agraves particularidades de uma

determinada famiacutelia ou grupo Ao entender que uma poliacutetica puacuteblica trata de necessidades

sociais e coletivas ainda que essas se manifestem concretamente em situaccedilotildees e pessoas eacute

preciso que a gestatildeo ganhe competecircncia e conhecimento na atenccedilatildeo superaccedilatildeo e ateacute mesmo

prevenccedilatildeo dessas necessidades (Brasil 2013)

Destaca-se assim o fato de o Estado tambeacutem estar implicado em situaccedilotildees de

desproteccedilatildeo situando o sofrimento do sujeito e de sua famiacutelia nos contextos histoacuterico e poliacutetico-

social nos quais estatildeo inseridos e natildeo mais em si mesmos Assume-se que o Estado eacute

responsaacutevel pela proteccedilatildeo da famiacutelia e de seus membros pois dada a estruturaccedilatildeo social e

econocircmica do paiacutes em uma histoacuteria de escravidatildeo ele tambeacutem foi e eacute produtor de desigualdades

sociais e desproteccedilatildeo de muitas famiacutelias

Apesar das mudanccedilas descritas observamos contudo que a concepccedilatildeo da Assistecircncia

Social como poliacutetica puacuteblica centrada no princiacutepio do direito ainda eacute um modelo a ser

implantado um norte muito mais do que uma realidade jaacute efetuada (Sposati 2009) Estamos

diante do processo de institucionalizaccedilatildeo desta poliacutetica de seus princiacutepios e concepccedilotildees

129

fundantes e de suas seguranccedilas socioassistenciais1 resultante da tensatildeo entre dois discursos

antagocircnicos presentes neste campo (Ferreira 2015) Sposati (2009) acrescenta que avanccedilar na

institucionalizaccedilatildeo da Assistecircncia Social como poliacutetica puacuteblica consiste em efetuar um tracircnsito

do acircmbito individual para o social consistindo esse tracircnsito na ldquoraiz fundante da poliacutetica

puacuteblicardquo e exigindo o seu deslocamento do acircmbito assistencialista para o da compreensatildeo da

proteccedilatildeo e do direito

No caso de crianccedilas e adolescentes podemos compreender que o discurso que se

encontra instituiacutedo consiste no discurso assistencialista menorista que atribui agrave crianccedila e ao

adolescente os lugares de carecircncia anormalidade e perigo e agrave sua famiacutelia o lugar de ldquoincapazrdquo

Jaacute o discurso instituinte refere-se agrave compreensatildeo da proteccedilatildeo e do direito como necessidades

coletivas responsabilidades puacuteblicas e potecircncias relacionais No que diz respeito

especificamente ao campo dos direitos da infacircncia e juventude o Estatuto da Crianccedila do

Adolescente (ECA) (Brasil 1990) efetivou um tracircnsito do acircmbito individual para o social ao

prever o direito universal de Proteccedilatildeo Integral aplicado portanto a todas as crianccedilas e

adolescentes deixando assim de ser restrito como seraacute visto a seguir aos filhos das famiacutelias

pobres identificados anteriormente pelo Coacutedigo de Menores agrave categoria menor (Brasil 1979)

A contiacutenua institucionalizaccedilatildeo da poliacutetica de Assistecircncia Social exige o seu

deslocamento do discurso instituiacutedo para o discurso instituinte consistindo assim em desafio

presente no cotidiano de trabalho dos diversos serviccedilos e nas muacuteltiplas relaccedilotildees estabelecidas

entre trabalhadores crianccedilas adolescentes e familiares Essas relaccedilotildees satildeo construiacutedas de

acordo com os lugares atribuiacutedos no discurso institucional e no discurso social mais amplo agraves

famiacutelias e agraves crianccedilas e aos adolescentes

Assim nesse artigo procuramos problematizar como a execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

destinadas a garantir os direitos dos adolescentes eacute ainda um grande desafio no acircmbito da

Assistecircncia Social A despeito dos avanccedilos legais e poliacuteticos em nossa atuaccedilatildeo profissional e

de pesquisa fica evidente que as principais poliacuteticas para essa populaccedilatildeo ainda atribuem ao

adolescente os lugares de carente desviante ou perigoso como o antigo Coacutedigo de Menores o

fazia

Neste trabalho problematizaremos entatildeo como o discurso menorista insiste e

reatualiza-se muitas vezes na noccedilatildeo de proteccedilatildeo e de desenvolvimento que estaacute na base das

atuais poliacuteticas puacuteblicas dirigidas a essa populaccedilatildeo atravessando o cotidiano dos serviccedilos

1 A poliacutetica puacuteblica de Assistecircncia Social deve afianccedilar trecircs seguranccedilas sociais especiacuteficas de sobrevivecircncia (ou

de rendimento e autonomia) de acolhida e de convivecircncia (familiar e comunitaacuteria) (Brasil 2004)

130

socioassistenciais e ratificando praacuteticas de exclusatildeo Partiremos da discussatildeo de dois casos

institucionais ndash o desacolhimento institucional de adolescentes por maioridade e as medidas

socioeducativas em meio aberto ndash para apresentar os efeitos desse discurso e como dispositivos

coletivos de discussatildeo de caso podem operar novos efeitos As discussotildees apresentadas

baseiam-se em parte nas pesquisas de mestrado e doutorado realizados pelas autoras sob o

aporte da Psicanaacutelise Implicada (Rosa 2012) no Programa de Estudos Poacutes-Graduados em

Psicologia Social da PUC-SP

1 O lugar da crianccedila e do adolescente na Doutrina de Situaccedilatildeo Irregular

O seacuteculo XX foi caracterizado como um periacuteodo de grande presenccedila do Estado na

implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de atendimento agrave categoria dos entatildeo chamados

ldquomenoresrdquo Ele inicia-se com a instituiccedilatildeo do Coacutedigo de Menores de 1927 o qual sofreu

algumas alteraccedilotildees culminando no novo Coacutedigo de Menores de 1979 Esse periacuteodo que ficou

amplamente conhecido como tutelar buscava identificar crianccedilas que estivessem em risco

devido agrave falta de condiccedilotildees morais e materiais de suas famiacutelias e colocaacute-las sob a tutela do

Estado Os processos de reeducaccedilatildeo eram a diretriz das instituiccedilotildees que se ocupavam destas

crianccedilas nas quais investia-se na compreensatildeo dos comportamentos da infacircncia e suas causas

e da construccedilatildeo de teacutecnicas e intervenccedilotildees mais eficazes na prevenccedilatildeo e na mudanccedila de

comportamentos indesejaacuteveis (Donzelot 1980)

Como passaram a ser vistos com caracteriacutesticas e necessidades especiacuteficas agraves suas fases

da vida aqueles que apresentavam condutas antissociais foram diagnosticados como carentes

e desajustados em funccedilatildeo da ldquoausecircncia moral da falta de formaccedilatildeo de valores haacutebitos e atitudes

desejaacuteveis dentro do considerado padratildeo liberal bem como resultado da falta de afeto e amor

da famiacuteliardquo (Silva 2011 p 86) Juntamente com esta nova concepccedilatildeo se produziu a ideia de

que as famiacutelias pobres natildeo estavam aptas a educar e dar condiccedilotildees adequadas ao

desenvolvimento de seus filhos

Entretanto nesse periacuteodo natildeo se buscava levantar as condiccedilotildees sociais das famiacutelias para

avaliar suas necessidades e contribuir para sua promoccedilatildeo social mas apenas para julgaacute-las e

apontar falhas nas suas formas de vida Nesse sentido elas acabavam sendo culpabilizadas pela

sua situaccedilatildeo de precariedade social pela sua inadequaccedilatildeo a uma norma moral dominante Por

outro lado o Estado se desresponsabilizava pela produccedilatildeo das condiccedilotildees de pobreza na qual

essas famiacutelias viviam e assumia o controle de seus filhos atraveacutes da sua institucionalizaccedilatildeo

Como eram considerados incapazes as vontades e os interesses das crianccedilas e dos adolescentes

131

natildeo eram considerados Quem falava por eles eram os educadores e os trabalhadores sociais os

quais por serem especialistas conheciam mais dos adolescentes e de sua dinacircmica familiar do

que eles mesmos (Guirado 1986 Gadelha 1998)

Produzia-se uma relaccedilatildeo na qual as crianccedilas os adolescentes e suas famiacutelias ocupavam

o lugar de objetos de cuidados de higiene de exame de avaliaccedilatildeo e de diagnoacutesticos como

objeto a ser cuidado e controlado Ao analisar este periacuteodo autores como Silva (2011) Mendez

(2013) e Sposato (2011) ressaltam como ele contribuiu para uma judicializaccedilatildeo dos problemas

sociais e para a criminalizaccedilatildeo de crianccedilas e jovens pobres que tinham seus direitos violados

em nome da sua proteccedilatildeo As famiacutelias eram punidas duas vezes pois aleacutem de viverem em

situaccedilotildees sociais e materiais precaacuterias ainda eram criminalizadas e tinham suas crianccedilas

retiradas de seu conviacutevio Nesse periacuteodo milhares de crianccedilas foram institucionalizadas

arbitrariamente separadas de suas famiacutelias ou voluntariamente entregues por elas com o

objetivo de serem educadas e cuidadas em regime de internaccedilatildeo

2 O lugar da crianccedila e do adolescente na Doutrina de Proteccedilatildeo Integral

O processo de redemocratizaccedilatildeo do paiacutes no final do seacuteculo XX permitiu a discussatildeo

sobre a garantia de direitos incluindo os direitos das crianccedilas e dos adolescentes em

consonacircncia com o debate internacional sobre o tema O campo da proteccedilatildeo agrave infacircncia e agrave

adolescecircncia foi marcado particularmente nesse periacuteodo pelo questionamento das praacuteticas e

concepccedilotildees assistencialistas e institucionalizantes tendo como principal efeito a

descentralizaccedilatildeo de suas poliacuteticas e praacuteticas Foram herdeiros da redemocratizaccedilatildeo do paiacutes e de

forte mobilizaccedilatildeo social e poliacutetica a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o Estatuto da Crianccedila e do

Adolescente (ECA) em 1990 e a Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) em 1993

Entre as mudanccedilas que ocorreram nesse momento destacamos o reconhecimento de

crianccedilas e adolescentes como sujeito de direitos2 Segundo Rosemberg e Mariano (2010) nesse

2 Esses direitos estatildeo descritos nos artigos nordm 15 nordm 16 e nordm 17 do ECA (Brasil 1990) Art nordm 15 ndash A crianccedila e o

adolescente tecircm direito agrave liberdade ao respeito e agrave dignidade como pessoas humanas em processo de

desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis humanos e sociais garantidos na Constituiccedilatildeo e nas leis Art nordm

16 ndash O direito agrave liberdade compreende os seguintes aspectos I ndash ir vir e estar nos logradouros puacuteblicos e espaccedilos

comunitaacuterios ressalvadas as restriccedilotildees legais II ndash opiniatildeo e expressatildeo III ndash crenccedila e culto religioso IV ndash brincar

praticar esportes e divertir-se V ndash participar da vida familiar e comunitaacuteria sem discriminaccedilatildeo VI ndash participar da

vida poliacutetica na forma da lei VII ndash buscar refuacutegio auxiacutelio e orientaccedilatildeo Art nordm 17 ndash O direito ao respeito consiste

na inviolabilidade da integridade fiacutesica psiacutequica e moral da crianccedila e do adolescente abrangendo a preservaccedilatildeo

da imagem da identidade da autonomia dos valores ideias e crenccedilas dos espaccedilos e objetos pessoais (Brasil

1990)

132

processo eles passam a usufruir dos direitos garantidos pela Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos

Humanos entre eles o direito a participaccedilatildeo expressatildeo e liberdade ndash sendo dever da famiacutelia da

sociedade civil e do Estado assegurar com absoluta prioridade esses direitos uma vez que

crianccedilas e adolescentes natildeo possuem plena autonomia sendo considerados sujeitos em

desenvolvimento Em um cenaacuterio no qual eles eram punidos arbitrariamente com a privaccedilatildeo de

sua liberdade em nome de sua proteccedilatildeo essa mudanccedila foi fundamental para regular as

intervenccedilotildees do Estado junto a crianccedilas e adolescentes que deixam de ser objeto de tutela

controle e vigilacircncia do adulto para serem sujeitos com direitos a serem garantidos entre eles

a liberdade e a participaccedilatildeo social e poliacutetica

Nesse sentido as mudanccedilas natildeo satildeo somente teacutecnicas implicam em uma mudanccedila na

forma de o Estado perceber e se relacionar com as crianccedilas e os adolescentes (Mendez 2008

2013) Apesar da centralidade do cuidado e da educaccedilatildeo ser da famiacutelia se reconhece o dever

do Estado de dar condiccedilotildees para que esta cumpra sua funccedilatildeo de proteccedilatildeo por meio de suas

poliacuteticas sociais promovendo a diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais e priorizando crianccedilas e

adolescentes

Estas mudanccedilas trouxeram novos impasses para as relaccedilotildees de poder intergeracionais

pois ao mesmo tempo que o paradigma da Proteccedilatildeo Integral implica o direito agrave liberdade e agrave

participaccedilatildeo eles natildeo possuem autonomia plena devendo receber proteccedilatildeo especial Nesse

sentido Rosemberg e Mariano (2010) discutem as tensotildees que emergiram entre duas

perspectivas no campo dos direitos das crianccedilas e adolescentes as que priorizam os direitos

individuais ndash entre eles o direito agrave liberdade e agrave participaccedilatildeo ndash conhecidas como correntes

liberacionista e as que priorizam a proteccedilatildeo especial conhecidas como protecionistas

Enquanto na primeira perspectiva haacute um princiacutepio de igualdade que sustenta as relaccedilotildees entre

os sujeitos na segunda sustenta-se a ideia de que as crianccedilas satildeo dependentes daqueles que tecircm

o poder sobre suas vidas Trata-se de uma dialeacutetica entre o direito agrave liberdade e os direitos de

proteccedilatildeo inerentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito em um pacto social democraacutetico A doutrina da

Proteccedilatildeo Integral coloca entatildeo novos impasses para o trabalho junto a crianccedilas e adolescentes

uma vez que se trata de respeitar seu direito de liberdade e de participaccedilatildeo e ao mesmo tempo

garantir sua proteccedilatildeo o que em muitas situaccedilotildees pode levar a direccedilotildees de trabalho antagocircnicas

3 O discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia

Compreendemos que muitas questotildees estatildeo envolvidas na dinacircmica

133

participaccedilatildeoproteccedilatildeo mas ressaltamos que entre elas encontra-se o fato de o discurso juriacutedico

sobre a infacircncia e adolescecircncia particularmente no Brasil estar articulado agrave noccedilatildeo de

desenvolvimento3 a partir da qual entende-se que ao longo da vida haacute uma aquisiccedilatildeo linear de

caracteriacutesticas e habilidades marcadas cronologicamente que culminam na maturidade moral

cognitiva e na autonomia Poreacutem estudos de autores como Ariegraves (1981) e Del Priore (2010)

ressaltam que a concepccedilatildeo da infacircncia e da adolescecircncia como etapas da vida consiste em uma

construccedilatildeo histoacuterica e social que no ocidente contemporacircneo ao hierarquizar as idades atribui-

se determinados lugares agrave crianccedila ao adolescente e ao adulto sendo esse uacuteltimo considerado o

aacutepice de um processo de desenvolvimento Trata-se natildeo somente da atribuiccedilatildeo de lugares

diversos a depender das diferentes caracteriacutesticas atribuiacutedas a cada etapa da vida mas de como

essas diferenccedilas satildeo tomadas para justificar uma desigualdade e atribuir uma suposta

inferioridade agrave crianccedila e ao adolescente em relaccedilatildeo ao adulto Nesse sentido os adultos satildeo

compreendidos como indiviacuteduos completos enquanto crianccedilas e adolescentes satildeo

compreendidos e tratados a partir das suas faltas e natildeo a partir das suas capacidades e

potencialidades

Observamos que ao atuar a partir de etapas do desenvolvimento predeterminadas o

discurso juriacutedico trabalha com o dever ser com a norma (Foucault 1988) parte de categorias

ideais sobre o dever ser crianccedila e adolescente consistindo em um discurso normativo e

operacionalizando-se a partir de um saber preacutevio sobre o sujeito adolescente compreendendo

como desviante aquele que escapa a essa norma ideal socialmente construiacuteda (Cerruti e Rosa

2008)

Segundo Jobim e Souza (2010) a perspectiva desenvolvimentista concebe a crianccedila e o

adolescente marcados predominantemente por uma matriz bioloacutegica-evolucionista A ideia de

um aprimoramento linear e contiacutenuo que culmina na maturidade adulta implica em conceber

a passagem da infacircncia agrave vida adulta como um processo padronizado e gradual de socializaccedilatildeo

vindo a transformar o discurso sobre o desenvolvimento na proacutepria natureza da crianccedila e do

adolescente

De acordo com a autora a perspectiva desenvolvimentista pretende-se assim universal

3 A condiccedilatildeo peculiar de desenvolvimento da crianccedila e do adolescente estaacute descrita nos artigos n 3 e n 6 do ECA

(Brasil 1990) Art No 3 - A crianccedila e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes agrave pessoa

humana assegurando-se-lhes por lei ou por outros meios todas as oportunidades e facilidades a fim de lhes

facultar o desenvolvimento fiacutesico mental moral espiritual e social em condiccedilotildees de liberdade e de dignidade

Art No 6 - Na interpretaccedilatildeo desta Lei levar-se-atildeo em conta os fins sociais e a que ela se dirige as exigecircncias do

bem comum os direitos e deveres individuais e coletivos e a condiccedilatildeo peculiar da crianccedila e do adolescente como

pessoas em desenvolvimento

134

desconsiderando os fatores culturais histoacutericos e sociopoliacuteticos que permitem em determinada

eacutepoca uma caracterizaccedilatildeo particular das diferentes fases da vida Esse discurso afirma a

homogeneidade negando a multiplicidade e a diferenccedila afirma uma adolescecircncia uacutenica e ideal

baseada em um modelo eurocecircntrico (Burman 2008) refutando a diversidade de experiecircncias

dos sujeitos as vaacuterias adolescecircncias possiacuteveis e por eles vivenciadas

Nessa leitura o adolescente eacute concebido em fase de desenvolvimento em busca de sua

independecircncia e de construccedilatildeo de uma identidade fixa Os ldquoproblemasrdquo ldquoinsucessosrdquo e

ldquodesviosrdquo enfrentados durante o processo de desenvolvimento satildeo compreendidos como

dificuldades vivenciadas pelo adolescente em sua constituiccedilatildeo ou ainda na sua capacidade no

estabelecimento de laccedilos com os outros sobretudo com os adultos e as instituiccedilotildees que esses

representam Nessa articulaccedilatildeo entre direito e desenvolvimento as crianccedilas e os adolescentes

que natildeo correspondem agraves normas e aos ideais previamente e universalmente determinados satildeo

entendidos como desviantes num processo de patologizaccedilatildeo eou criminalizaccedilatildeo de seus

comportamentos

Partilhamos com Ceciacutelia Coimbra e colaboradoras (2005) que o uso generalizado e

indiscriminado da concepccedilatildeo de adolescecircncia como uma fase universal e a-histoacuterica do

desenvolvimento humano incide sobretudo em discursos e praacuteticas oficiais Desta forma essa

concepccedilatildeo incide principalmente junto a adolescentes submetidos agraves instituiccedilotildees de proteccedilatildeo e

socioeducativas sendo necessaacuteria sua problematizaccedilatildeo sobretudo no contexto do sistema de

Justiccedila e das poliacuteticas puacuteblicas incluindo a de Assistecircncia Social

O discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia ao aliar-se a discursos meacutedico-psiquiaacutetricos

apresenta-se com uma roupagem de cientificidade conferindo-lhe assim maior difusatildeo no

campo social (Cerruti amp Rosa 2008) Essa ampla difusatildeo faz com que essa concepccedilatildeo

desenvolvimentista tambeacutem atravesse o sistema de proteccedilatildeo e os serviccedilos referenciados agraves

poliacuteticas puacuteblicas

Ressaltamos que a concepccedilatildeo desenvolvimentista ao individualizar os ldquoproblemasrdquo e

ldquodesviosrdquo vivenciados pelos adolescentes produz a contenccedilatildeo e o velamento dos conflitos

institucionais e poliacutetico-sociais que subjazem e forjam essas ldquodificuldadesrdquo Notamos assim que

essa concepccedilatildeo se baseia na dicotomia indiviacuteduo-sociedade vindo a produzir a falsa ilusatildeo de

autonomia (Rosa amp Vicentin 2012) Essa noccedilatildeo de autonomia em sua acepccedilatildeo individual e

liberal concebe o sujeito adolescente como independente dos laccedilos com seus semelhantes e o

campo social em que se inscreve opondo-se agrave concepccedilatildeo de autonomia prevista pela poliacutetica

135

de Assistecircncia Social4

Em nossa atuaccedilatildeo propomos entatildeo uma compreensatildeo de sujeito que manteacutem o lugar das

questotildees soacutecio-poliacuteticas no cerne dos processos de subjetivaccedilatildeo contrapondo-se a leituras que

individualizam o sofrimento e responsabilizam exclusivamente o sujeito por ele Assim sob o

aporte da psicanaacutelise salientamos que a constituiccedilatildeo subjetiva longe de ser fruto de um

processo intrapsiacutequico ou predeterminado biologicamente se daacute necessariamente na relaccedilatildeo do

sujeito com seus semelhantes e com o campo social em que se inscreve (Rosa 2012)

Nesta abordagem e em consonacircncia com as diretrizes da poliacutetica puacuteblica de Assistecircncia

Social o sujeito natildeo eacute concebido como unidade isolada e independente mas sim constituiacutedo na

relaccedilatildeo com seus semelhantes e o campo social Este seraacute representado ao longo da vida do

sujeito por diferentes atores No contexto dos serviccedilos socioassistenciais em particular tais

representantes seratildeo os familiares professores profissionais dos serviccedilos socioassistenciais e

intersetoriais operadores do Direito conselheiros tutelares dentre outros Esses representantes

do campo social estatildeo incluiacutedos em uma rede discursiva e libidinal enunciando diversas

narrativas e mensagens que atribuem ao sujeito lugares e posiccedilotildees sociais diferentes (Rosa

2004)

Vejamos entatildeo os efeitos que o trabalho a partir de concepccedilotildees desenvolvimentistas

podem produzir no laccedilo com os adolescentes e como a desconstruccedilatildeo e problematizaccedilatildeo destas

produz efeitos nas praacuteticas profissionais no sentido de contribuir para a consolidaccedilatildeo dos

direitos dos adolescentes Partiremos da discussatildeo de dois casos institucionais os adolescentes

em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto e aqueles em vias de

desacolhimento institucional por maioridade

4 A Pesquisa-intervenccedilatildeo e a construccedilatildeo de um saber coletivo

Frente ao processo de individualizaccedilatildeo e despolitizaccedilatildeo das desproteccedilotildees e violaccedilotildees de

direitos agraves quais os adolescentes estatildeo submetidos seja por fragilidade e ruptura de laccedilos

familiares e comunitaacuterios ou como efeitos de segregaccedilatildeo e isolamento que a atuaccedilatildeo baseada

em concepccedilotildees desenvolvimentistas e individualizantes produzem no cotidiano dos serviccedilos

socioassistenciais propomos em nossas pesquisas a discussatildeo coletiva de casos como forma

4 A poliacutetica socioassistencial introduz uma concepccedilatildeo de autonomia oriunda da Sauacutede Coletiva que consiste em

uma coconstruccedilatildeo (Torres amp Gouveia 2013) Esta concepccedilatildeo inclui um conjunto de fatores como o sujeito sua

histoacuteria e sua rede de relaccedilotildees articulando assim esse conceito aos contextos institucional e poliacutetico-social nos

quais o sujeito estaacute inserido e que o constituem

136

de construir um endereccedilamento das questotildees e dificuldades manifestadas pelo adolescente para

o grupo de profissionais que atuam na proteccedilatildeo de seus direitos

Tratam-se de pesquisas que natildeo se caracterizam entatildeo por uma pesquisa psicanaliacutetica

cliacutenica stricto sensu mas por uma metodologia que se insere no que Rosa (2012) nomeia

psicanaacutelise implicada e que se propotildee estudar o sujeito enredado nos fenocircmenos sociais e

poliacuteticos dando visibilidade natildeo soacute ao adolescente mas tambeacutem aos discursos e natildeo ditos que

se articulam a seus atos e comportamentos concebidos frequentemente como problemas

desvios patologia e violecircncia

Trabalhamos assim com a noccedilatildeo de implicaccedilatildeo (Lourau 1993) que permite pocircr em

anaacutelise o lugar ocupado pelos diversos profissionais no campo sociopoliacutetico bem como aquele

ocupado pelo pesquisador A anaacutelise das implicaccedilotildees pressupotildee assim conceber que as praacuteticas

profissionais incluindo o proacuteprio processo de pesquisa natildeo possui caraacuteter objetivo baseada

numa suposta neutralidade do profissional (ou do pesquisador) mas inclui sua subjetividade

seu desejo O meacutetodo psicanaliacutetico de pesquisa supera assim a dicotomia pesquisador-

pesquisado compreendendo-os como construccedilotildees histoacutericas e natildeo como categorias

transcendentais refutando assim a noccedilatildeo de neutralidade cientiacutefica Observamos tambeacutem que

o meacutetodo de pesquisa psicanaliacutetico supera a dicotomia teoria-praacutetica uma vez que ldquovai do

fenocircmeno ao conceito e constroacutei uma metapsicologia natildeo isolada mas fruto da escuta

psicanaliacutetica que natildeo enfatiza ou prioriza a interpretaccedilatildeo a teoria por si soacute mas integra teoria

praacutetica e pesquisardquo (Rosa 2004 p 341) Ao desfazer essas dicotomias o meacutetodo psicanaliacutetico

revela seu caraacuteter de pesquisa-intervenccedilatildeo

Foi a partir destes pressupostos que nas pesquisas realizamos discussotildees coletivas de

caso Uma das pesquisas foi realizada com profissionais que atuam nos serviccedilos de medidas

socioeducativas em meio aberto e a outra com profissionais dos serviccedilos socioassistenciais e

intersetoriais que compotildeem a rede de um territoacuterio do municiacutepio de Satildeo Paulo

Ao discorrer sobre a construccedilatildeo de casos Viganoacute (2010) ressalta que a construccedilatildeo de

caso visa produzir um saber sobre o discurso e natildeo sobre o sujeito consistindo em construccedilatildeo

que se interroga sobre a posiccedilatildeo do sujeito no laccedilo social Nesse sentido o autor aponta que na

construccedilatildeo do caso existe um questionamento sobre qual a posiccedilatildeo do sujeito no laccedilo com o

Outro possibilitando uma interrogaccedilatildeo dos profissionais sobre o lugar e funccedilatildeo que ocupam

para o sujeito pois promove um corte no saber uma interrogaccedilatildeo das certezas e permite um

questionamento do lugar que eles ocupam no discurso no qual o sujeito estaacute enlaccedilado Eacute

possiacutevel pensar como o sujeito se posiciona no discurso que discurso eacute esse e como atuar de

137

forma a realizar uma rachadura um questionamento deste discurso permitindo ao sujeito a

formulaccedilatildeo de questotildees sobre sua posiccedilatildeo nesse laccedilo

Assim a discussatildeo coletiva de caso permite incidir nos discursos dos profissionais sobre

os adolescentes possibilitando trabalhar os afetos e as fantasias daqueles sobre estes incluindo

os determinantes institucionais e poliacutetico-sociais que subjazem os atos e comportamentos dos

adolescentes Esse dispositivo contribui assim para a problematizaccedilatildeo das relaccedilotildees construiacutedas

entre profissionais e adolescentes e entre estes e os serviccedilos socioassistenciais e os efeitos

subjetivos produzidos nestas relaccedilotildees procurando produzir mudanccedilas de posiccedilatildeo dos

profissionais e por conseguinte dos adolescentes

A construccedilatildeo de espaccedilos coletivos de discussatildeo de caso somente eacute possiacutevel em funccedilatildeo

do posicionamento eacutetico-poliacutetico dos profissionais participantes comprometidos com a oferta

de um outro lugar aos adolescentes que natildeo o de desvio patologia ou violecircncia

Comprometidos tambeacutem com a construccedilatildeo de estrateacutegias efetivas de intervenccedilatildeo junto a eles e

com a sustentaccedilatildeo de espaccedilos democraacuteticos de discussatildeo A sustentaccedilatildeo desse dispositivo natildeo

se daacute sem impasses e dificuldades implicando em uma estrutura complexa lugar de trocas de

relaccedilotildees e de discussotildees muitas vezes marcadas por divergecircncias e contradiccedilotildees Na medida

em que o grupo sustenta contudo as tensotildees suscitadas pelas discussotildees ele se mostra potente

na construccedilatildeo coletiva de um saber singular sobre o adolescente

5 Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto

As medidas socioeducativas satildeo poliacuteticas puacuteblicas destinadas a atender todos aqueles

adolescentes que cometeram um ato infracional ou seja um ato considerado antijuriacutedico e que

apoacutes terem passado por um processo legal com direito a defesa foram sentenciados com uma

das cinco medidas previstas pelo ECA obrigaccedilatildeo de reparar danos prestaccedilatildeo de serviccedilos a

comunidades liberdade assistida semiliberdade e internaccedilatildeo Estas medidas tecircm tanto uma

dimensatildeo punitiva como forma de exercer um controle social atraveacutes da sanccedilatildeo e que visa

responsabilizar o adolescente pela sua accedilatildeo e consequecircncias desta quanto uma dimensatildeo

pedagoacutegica e social uma vez que busca promover a integraccedilatildeo social dos adolescentes atraveacutes

da garantia de seus direitos (Brasil 1990)

Os profissionais que atuam na medida socioeducativa embasam seu trabalho tanto no

ECA (Brasil 1990) quanto no SINASE lei n 12594 (Brasil 2012) que orienta e estabelece

princiacutepios e paracircmetros nacionais para as medidas socioeducativas bem como as

138

responsabilidades dos profissionais e instituiccedilotildees envolvidas na sua execuccedilatildeo Com a

promulgaccedilatildeo desta uacuteltima lei a execuccedilatildeo das medidas socioeducativas em meio aberto passa a

ser efetivamente executadas pelos municiacutepios e fica vinculada tanto ao Sistema Nacional

Socioeducativo (SINASE) quanto ao Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS)

Os teacutecnicos socioeducativos que atuam nos serviccedilos tecircm como funccedilatildeo contribuir para o

acesso do adolescente aos seus direitos para o desenvolvimento de suas potencialidades e para

a introjeccedilatildeo ou a ressignificaccedilatildeo de valores que contribuam para sua integraccedilatildeo social criando

condiccedilotildees para a ruptura da praacutetica do ato infracional observando-se sempre a sua

responsabilizaccedilatildeo Para a realizaccedilatildeo desse trabalho destacam a importacircncia de duas aacutereas

fundamentais a educaccedilatildeo formal e a educaccedilatildeo para o trabalho sendo entatildeo uma poliacutetica que

necessita de articulaccedilatildeo com outras poliacuteticas puacuteblicas como as de sauacutede e de educaccedilatildeo para

efetivar o atendimento ao adolescente (Brasil 2012 2016 Prefeitura de Satildeo Paulo 2016)

O eixo de toda medida socioeducativa eacute o Plano Individual de Atendimento no qual

devem ser descritas todas as atividades a serem realizadas com e pelo adolescente durante a sua

medida bem como os objetivos das mesmas O adolescente deve participar ativamente da

elaboraccedilatildeo e da execuccedilatildeo das atividades a serem realizadas e portanto seus interesses desejos

e opiniotildees devem ser considerados no planejamento das accedilotildees a serem desenvolvidas por ele e

com ele durante a medida Assim direitos como a liberdade a participaccedilatildeo e o protagonismo

aparecem como diretrizes do trabalho socioeducativo (Brasil 2012 2016) Os teacutecnicos sociais

natildeo mais decidem o destino dos adolescentes mas o acompanham e produzem reflexotildees criacuteticas

sobre seus atos sobre seus direitos e portanto tambeacutem sobre sua posiccedilatildeo enquanto sujeito no

laccedilo social

Eacute na medida que conseguem experenciar o lugar de sujeito na relaccedilatildeo com os teacutecnicos

que os adolescentes podem reproduzir essa posiccedilatildeo em suas outras relaccedilotildees consolidando seu

lugar de sujeito e elaborando e enfrentando os conflitos que emergem com esse deslocamento

de posiccedilatildeo de objeto para a posiccedilatildeo de sujeito (Bertol 2019)

Eacute importante ressaltar que na praacutetica a execuccedilatildeo deste Plano Individual de Atendimento

natildeo eacute um processo tatildeo simples pois o adolescente deve conseguir conciliar as escolhas

baseadas em seus interesses aquelas que se mostram como exigecircncias do juiz para sancionar o

cumprimento de sua medida (como as medidas de proteccedilatildeo de escolarizaccedilatildeo e

profissionalizaccedilatildeo) bem como as oportunidades que lhes satildeo possiacuteveis dentro de sua trajetoacuteria

de vida e condiccedilotildees sociais

139

Assim ao nos aproximarmos do cotidiano dos serviccedilos de medidas socioeducativas em

meio aberto encontramos uma realidade de trabalho na qual os profissionais se deparavam com

diferentes impasses na construccedilatildeo e execuccedilatildeo deste Plano Era recorrente a queixa dos teacutecnicos

sobre uma natildeo adesatildeo dos adolescentes agrave medida ou seja de que estes natildeo cumpriam as metas

determinadas em seu Plano Individual de Atendimento (PIA) pois eles natildeo viam perspectiva

no estudo ou entatildeo porque eram ldquopreguiccedilososrdquo natildeo queriam estudar e nem trabalhar Os

profissionais tambeacutem apontavam que muitas vezes o juiz que aplicava a medida

socioeducativa jaacute determinava metas preacutevias que o adolescente deveria cumprir mas que na

visatildeo deles muitas vezes natildeo fazia sentido para a vida dos adolescentes e para operar uma

transformaccedilatildeo na mesma Os PIAs se transformavam entatildeo em um instrumento burocraacutetico no

qual nem a participaccedilatildeo e nem os interesses dos adolescentes eram contemplados E o natildeo

cumprimento destas demandas e de outras normas institucionais era compreendido como natildeo

aderecircncia agrave medida falta de responsabilidade do adolescente e portanto como um fracasso no

seu processo socioeducativo

Quando iniciamos o trabalho de pesquisa junto aos teacutecnicos sociais de um serviccedilo de

medidas socioeducativas em meio aberto da cidade de Satildeo Paulo eles optaram por discutir o

caso de um adolescente que segundo o seu teacutecnico de referecircncia tinha muito potencial mas natildeo

aderia a nenhum encaminhamento realizado pelos profissionais Jaacute estava sendo atendido haacute

dois anos e eles natildeo percebiam nenhuma mudanccedila Quando iniciamos as discussotildees os

teacutecnicos quase natildeo tinham o que dizer sobre o adolescente afirmando que todas as informaccedilotildees

necessaacuterias estavam em sua pasta Eles entendiam que todos os encaminhamentos realizados

tinham fracassado porque o adolescente era desinteressado e apresentava problemas que

excediam as capacidades de atuaccedilatildeo dos profissionais dentro do campo das medidas

socioeducativas O adolescente natildeo se vinculava aos teacutecnicos comparecendo agrave medida de forma

intermitente natildeo aderia ao Plano proposto mas tambeacutem natildeo descumpria o que era solicitado

Ao longo dos encontros para discussatildeo de seu caso a equipe foi se dando conta da

fragmentaccedilatildeo do trabalho realizado junto ao adolescente e de como sentiam-se hiper-

responsabilizados pelo que ocorria com ele Aleacutem disso havia uma percepccedilatildeo homogeneizada

dos adolescentes atendidos pois eles ldquoeram todos iguais com os mesmos problemasrdquo Na

percepccedilatildeo dos teacutecnicos os atos infracionais eram decorrentes das condiccedilotildees materiais e sociais

precaacuterias da falta de estrutura familiar e da apatia dos adolescentes Entretanto eles natildeo

reconheciam em seu trabalho a possibilidade de operar mudanccedilas nestas condiccedilotildees reduzindo

seu trabalho a incorporaccedilatildeo de limites pelo adolescente

140

Havia um saber sobre os comportamentos e as motivaccedilotildees para seus atos infracionais

que se antecipava ao adolescente que assim muitas vezes natildeo era escutado Assim

encaminhavam o adolescente para escola e oportunidades de trabalho poreacutem sem articular com

as singularidades da histoacuteria do adolescente pois natildeo conseguiam escutaacute-las

Esse cenaacuterio foi sendo modificado na medida em que com as discussotildees de caso os

profissionais puderam entrar mais em contato com a histoacuteria do adolescente no serviccedilo e

passaram a questionar o laccedilo que estabeleciam com ele sua dificuldade de escutaacute-lo pela

anguacutestia que o sofrimento contido em sua histoacuteria lhes causava e como isso afastava o

adolescente produzindo uma manutenccedilatildeo de sua desproteccedilatildeo e portanto uma natildeo garantia de

seus direitos

Em um dos encontros nos propusemos a pensar sobre o PIA do adolescente como ele

tinha sido elaborado e as possibilidades de execuccedilatildeo do mesmo Ao realizar uma apropriaccedilatildeo

coletiva das praacuteticas e um questionamento sobre seus processos de trabalho os teacutecnicos

puderam perceber como a ldquovozrdquo do adolescente natildeo aparecia nos registros e como tambeacutem ldquoa

vozrdquo deles muitas vezes natildeo era ouvida natildeo ldquointeressavardquo ao juiz Eles puderam sustentar a

partir de um trabalho de busca e construccedilatildeo de conhecimento compartilhado um

questionamento das accedilotildees realizadas pelos diversos teacutecnicos junto ao adolescente e tambeacutem

produzir interrogaccedilotildees sobre sua histoacuteria no serviccedilo Aos poucos novas informaccedilotildees foram

surgindo bem como recordaccedilotildees sobre aspectos singulares do adolescente que contribuiacuteram

para pensar novos encaminhamentos e accedilotildees em seu processo socioeducativo Com esta

discussatildeo de caso os profissionais repensaram seus processos de trabalho junto ao adolescente

o qual passou a estar mais presente na instituiccedilatildeo conseguiu retornar agrave escola e foi inserido em

um curso de cabeleireiro

6 O desacolhimento institucional por maioridade

Concebido frequentemente como uma sentenccedila juriacutedica ou como simples medida

administrativa ndash referente agrave oferta de vagas no serviccedilo de acolhimento ndash o desacolhimento por

maioridade tende a ser realizado abruptamente e de modo desarticulado dos recursos e

necessidades dos adolescentes natildeo consistindo portanto em um processo Neste cenaacuterio esse

desacolhimento produz como principais efeitos a perda de direitos baacutesicos dos adolescentes na

medida em que natildeo raras vezes permanecem impedidos de acessar as instituiccedilotildees que os

viabilizaram socialmente Os adolescentes permanecem assim frequentemente expostos a

141

situaccedilotildees de desproteccedilatildeo e violecircncia e em alguns casos inclusive de risco de vida Alguns

deles reingressam agraves vezes pouco tempo depois na Proteccedilatildeo Social Especial em funccedilatildeo de

situaccedilotildees de grave desproteccedilatildeo Observamos assim que neste contexto a violecircncia reincide de

modo silencioso contudo natildeo menos mortificante e desta vez perpetrada pelo Estado

(Ferreira 2017)

Apesar dos discursos hegemocircnicos sobre a importacircncia do direito agrave convivecircncia familiar

e comunitaacuteria e sobre a excepcionalidade e a provisoriedade da medida de acolhimento

institucional5 o desacolhimento por maioridade apresenta-se como destino para 338 dos

acolhidos (Assis amp Farias 2013) sendo a terceira causa mais comum de desligamento

Diante da insuficiecircncia de diretrizes concepccedilotildees e estrateacutegias da poliacutetica

socioassistencial que possam nortear os profissionais e tomados por sentimentos de forte

anguacutestia e impotecircncia estes tendem a silenciar os desafios presentes no desacolhimento por

maioridade e seus efeitos destacando-se a (re)produccedilatildeo de situaccedilotildees de desproteccedilatildeo e violecircncia

durante esse processo (Ferreira 2017)

Ali onde encontramos frequentemente silecircncio e anguacutestia procuramos ofertar aos

profissionais envolvidos um espaccedilo para a palavra a partir da constituiccedilatildeo de grupo de caraacuteter

intersetorial composto por profissionais da rede de um territoacuterio do municiacutepio de Satildeo Paulo6

Nos encontros inicias do grupo parte dos profissionais compartilharam certo

estranhamento com o proacuteprio dispositivo coletivo e o objetivo proposto Com exceccedilatildeo dos

profissionais dos SAICAs do poder judiciaacuterio e das Repuacuteblicas Jovens os demais mostravam-

se distantes da temaacutetica do desacolhimento por maioridade tendo dificuldade inclusive de

compreenderem os motivos que justificavam a discussatildeo desse tema em rede Parte dos

5 Art 92 - As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional deveratildeo adotar os

seguintes princiacutepios I- preservaccedilatildeo dos viacutenculos familiares e promoccedilatildeo da reintegraccedilatildeo familiar II- integraccedilatildeo

em famiacutelia substituta quando esgotados os recursos de manutenccedilatildeo na famiacutelia natural ou extensa III- atendimento

personalizado e em pequenos grupos IV- desenvolvimento de atividades em regime de coeducaccedilatildeo V- natildeo

desmembramento de grupos de irmatildeos VI- evitar sempre que possiacutevel a transferecircncia para outras entidades de

crianccedilas e adolescentes abrigados VII- participaccedilatildeo na vida da comunidade local VIII- preparaccedilatildeo gradativa para

o desligamento IX- participaccedilatildeo de pessoas da comunidade no processo educativo (Brasil 1990)

Art 101 - Verificada qualquer das hipoacuteteses previstas no art 98 a autoridade competente poderaacute determinar

dentre outras as seguintes medidas I- encaminhamento aos pais ou responsaacutevel mediante termo de

responsabilidade II- orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III- matriacutecula e frequecircncia obrigatoacuterias

em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV- inclusatildeo em serviccedilos e programas oficiais ou comunitaacuterios

de proteccedilatildeo apoio e promoccedilatildeo da famiacutelia da crianccedila e do adolescente V- requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico

psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI- inclusatildeo em programa oficial ou

comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII- acolhimento institucional VIII-

inclusatildeo em programa de acolhimento familiar IX- colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta (Brasil 1990) 6 Participou da coordenaccedilatildeo do grupo o pesquisador Gabriel Bartolomeu cujo mestrado defendido em 2017 no

Programa de Psicologia Cliacutenica da USP debruccedilou-se sobre o papel do psicanalista na poliacutetica puacuteblica de

Assistecircncia Social

142

profissionais dizia entatildeo que os adolescentes ao completarem a maioridade ldquoseguem sua vidardquo

ldquoacabam resolvendo a vida deles sozinhosrdquo (SAICA 10o Encontro)

As dificuldades presentes no desacolhimento por maioridade eram reduzidas a

caracteriacutesticas individuais dos adolescentes e mais particularmente a supostas falhas deacuteficits e

desvios deles Como apontam as noccedilotildees que circularam no grupo que compreendiam o

adolescente como ldquoimaturordquo ldquoacomodadordquo ldquofracassadordquo ldquofraacutegil psiacutequica ou subjetivamenterdquo

ldquonatildeo- resilienterdquo ldquopouco autocircnomordquo

Os desafios restringiam-se agrave possibilidade do adolescente ldquoaprender a fazer as coisas

sozinhordquo ldquoa manter-se sozinhordquo O grupo parecia considerar o adolescente a partir de um ideal

(ou suposto ideal) distanciando-se de sua singularidade O adolescente deveria assim ldquoestar

pronto aos 18 anosrdquo e o alcance da maioridade representava momento de suposta aquisiccedilatildeo da

ldquomaturidade adultardquo e da condiccedilatildeo de ldquoindiviacuteduordquo daquele que prescinde dos laccedilos com seus

semelhantes e o campo social Nesse momento inicial mostrava-se hegemocircnica a concepccedilatildeo

de adolescecircncia baseada na dicotomia indiviacuteduo e sociedade produzindo a crenccedila de que eacute

possiacutevel ao adolescente autoengendrar-se e criando a ilusatildeo de que ele pode prescindir do

investimento de seus semelhantes e do campo social no qual estaacute inserido

Foi entatildeo escolhido para discussatildeo em grupo e pelo proacuteprio grupo o caso Paulo7

adolescente que parecia pelo menos em um primeiro momento aproximar-se desse ideal de

adolescecircncia Ele completou a maioridade em dezembro de 2015 e foi desacolhido em marccedilo

de 2016 durante a realizaccedilatildeo do grupo Paulo permaneceu institucionalizado por 11 anos

Quando da escolha de seu caso para discussatildeo em grupo Paulo havia completado o

Ensino Meacutedio e diversos cursos profissionalizantes bem como participado de Programa Jovem

Aprendiz e efetivado na empresa A respeito do seu processo de desacolhimento e sobretudo a

partir de uma perspectiva material-financeira os profissionais diretamente envolvidos pareciam

acreditar que o seu desacolhimento ldquodaria muito certordquo Paulo contudo natildeo se reconhecia

nesse ideal de adolescecircncia que forja a maacutexima de que ele deve ldquoestar pronto aos 18 anosrdquo e

solicitava explicitamente acompanhamento das equipes profissionais

Pra me ajudar natildeo sei No maacuteximo me dando apoio no maacuteximo mesmo Como se tivesse

um ombro amigo vamos se dizer assim Esse eacute um apoio que eu vou precisar pra conseguir

colocar minha vida laacute fora pra tirar a minha vida que estaacute aqui no abrigo e conseguir colocar

ela laacute fora Esse seria o apoio que eu ia precisar

O adolescente parecia assim compreender que o desacolhimento requer a continuidade

7 Nome fictiacutecio de modo a preservar a identidade do adolescente participante

143

de um trabalho no territoacuterio na comunidade natildeo coincidindo com sua saiacuteda da instituiccedilatildeo e

natildeo se restringindo a um trabalho intramuros (do SAICA) Paulo parecia contudo solicitar algo

que natildeo consistia pelo menos formalmente em atribuiccedilatildeo dos serviccedilos representados no grupo

de modo que a discussatildeo sobre a continuidade de um trabalho no territoacuterio que implicava o

exerciacutecio de um trabalho articulado e em rede demandou significativas discussotildees em grupo e

representou em alguns momentos divergecircncias e conflitos entre os diversos serviccedilos E a

respeito deste processo de desacolhimento os profissionais mencionaram

O SAICA sempre ajuda esses adolescentes mas essa natildeo eacute responsabilidade do abrigo pois o

processo eacute arquivado na Vara da Infacircncia e Juventude Esses adolescentes acabam resolvendo

a vida deles sozinhos (SAICA Encontro 10)

Por exemplo se hoje tem o desacolhimento de uma adolescente fechadinho redondinho foi

desacolhido por maioridade e tudo e se de repente natildeo deu certo fugiu do roteiro natildeo eacute por

isso que soacute agora eu vou referenciar esse caso no NPJ Porque antes que tudo tava redondinho

natildeo precisava referenciar Existem casos assim tambeacutem (NPJ Entrevista)

Os serviccedilos pareceriam mostrar-se assim fechados em si mesmos fechados em sua

expertise naquilo que jaacute sabiam ou reconheciam saber fazer E o grupo viu-se diante de um

impasse ou os serviccedilos seguem fechados em sua expertise concebendo o desacolhimento por

maioridade como uma sentenccedila juriacutedica ou simples medida administrativa e a despeito das

desproteccedilotildees produzidas ou ao escutar e acolher o sofrimento de Paulo constroem um Projeto

para o adolescente que leve em consideraccedilatildeo a complexidade de sua condiccedilatildeo singular e em

detrimento do ideal de adolescecircncia almejado

A partir da escuta do adolescente e do reconhecimento de seu sofrimento o grupo

passou a ser considerando um dispositivo puacutebico e coletivo do territoacuterio e comprometido com

a construccedilatildeo de um Projeto de desacolhimento para Paulo Esse posicionamento permitiu ao

grupo tomar novos rumos ampliando e adensando as discussotildees coletivas Se notaacutevamos antes

a prevalecircncia do discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia as discussotildees em grupo contribuiacuteram

para que este avanccedilasse na compreensatildeo do desacolhimento por maioridade como demanda

referente a um determinado seguimento da populaccedilatildeo de adolescentes em detrimento de

compreendecirc-lo como expressatildeo do fracasso de casos individuais Esse processo de

desacolhimento passou a ser compreendido como demanda coletiva do territoacuterio (mas natildeo

restrita a esse) e portanto como responsabilidade do Estado e objeto de discussatildeo e intervenccedilatildeo

da poliacutetica puacuteblica

Como resultados da pesquisa-intervenccedilatildeo destacamos a realizaccedilatildeo de um trabalho

articulado e em rede a construccedilatildeo de discurso institucional que permitiu incluir esses

adolescentes na poliacutetica socioassistencial e a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de trabalho pactuadas

144

entre os serviccedilos socioassistenciais que permitiram operar o desacolhimento por maioridade de

modo articulado agrave condiccedilatildeo singular do adolescente

Consideraccedilotildees finais

Observamos em nossas praacuteticas profissionais e de pesquisa que a concepccedilatildeo

desenvolvimentista de adolescecircncia permanece largamente naturalizada nos discursos e praacuteticas

dos serviccedilos socioassistenciais em razatildeo sobretudo de sua ampla difusatildeo no campo social Esse

fenocircmeno natildeo eacute casual na medida em que permite circunscrever os conflitos e tensotildees

institucionais e sociopoliacuteticos ao sujeito adolescente individualizando-os (Matheus 2010) Em

detrimento do reconhecimento dessas tensotildees e conflitos estabelece-se uma relaccedilatildeo causal que

os justifica pelas transformaccedilotildees bioloacutegicas sofridas pelo adolescente esvaziando o debate

sobre os contextos institucionais histoacutericos e sociais que os produziram

Ao natildeo reconhecer estas tensotildees e conflitos sociais construiacutedos historicamente e

individualizar os problemas vividos pelos adolescentes os profissionais contribuem para a

desproteccedilatildeo e por vezes para a violaccedilatildeo dos direitos dos adolescentes na medida em que natildeo

basta o encaminhamento do adolescente a um serviccedilo pois antes eacute preciso construir a noccedilatildeo de

pertencimento para que ele possa se sentir no direito de usufruir dos direitos e bens que satildeo

produzidos socialmente e que possa se perceber tambeacutem contribuindo para essa produccedilatildeo

Dada a tradiccedilatildeo autoritaacuteria e tutelar do Paiacutes no campo da proteccedilatildeo da infacircncia e

juventude percebemos que muitas vezes eles satildeo subjugados como objetos de proteccedilatildeo e de

intervenccedilatildeo produzindo uma desqualificaccedilatildeo de sua fala e uma identificaccedilatildeo ao lugar de objeto

na relaccedilatildeo com o outro Portanto a garantia de direitos implica tambeacutem um trabalho junto aos

serviccedilos que asseguram direitos como educaccedilatildeo e sauacutede desconstruindo discursos que

objetificam patologizam e criminalizam os adolescentes

Como efeito essa concepccedilatildeo constitui-se como instrumento poliacutetico que permite aos

atores sociais a perpetuaccedilatildeo de uma sobreimplicaccedilatildeo definida em oposiccedilatildeo agrave anaacutelise de suas

implicaccedilotildees bem como a destituiccedilatildeo do discurso adolescente de sentido e valor restringindo

seus efeitos no campo social em que se inscreve Quando impossibilitados de realizarem a

anaacutelise de suas implicaccedilotildees os diversos atores da rede territorial tendem a tomar em anaacutelise um

uacutenico elemento um uacutenico objeto a saber o proacuteprio adolescente seus comportamentos e atos

frequentemente concebidos a partir da noccedilatildeo de indiviacuteduo que forja o discurso

desenvolvimentista sobre a adolescecircncia Outros elementos natildeo satildeo considerados de modo que

145

os saberes e as praacuteticas dos serviccedilos natildeo satildeo colocados em anaacutelise

Quando os atos e comportamentos dos adolescentes satildeo compreendidas

individualmente e portanto como responsabilidade exclusiva de cada adolescente produz-se

como efeito a cisatildeo e a fragmentaccedilatildeo da compreensatildeo sobre o trabalho realizado junto a ele e

sua famiacutelia Diante da impossibilidade de construir um saber sobre o adolescente considerando

sua singularidade em alguns casos atocircnitos os profissionais seguem testemunhas da

desarticulaccedilatildeo de seu proacuteprio trabalho junto a ele trabalho este realizado arduamente e agraves

vezes durante um longo periacuteodo

Diante da fragmentaccedilatildeo do trabalho das equipes profissionais propomos por meio de

nossas pesquisas-intervenccedilatildeo restituir a dimensatildeo de processualidade que permeia o trabalho

dos profissionais procurando pocircr em anaacutelise suas muacuteltiplas dimensotildees Para tanto faz-se

necessaacuteria a desconstruccedilatildeo dos discursos instituiacutedos sobre a adolescecircncia e sobre os

adolescentes procurando nos manter atentas agrave potecircncia instituinte e agraves forccedilas que impedem sua

emergecircncia Compreendemos que eacute neste embate entre os movimentos instituiacutedo e instituinte

que a construccedilatildeo do conhecimento em sua dimensatildeo coletiva se faz

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Capiacutetulo 8

Jovens da escola Nazareacute Flor experiecircncias de vida no assentamento

Maceioacute litoral do Cearaacute1

Denise Zakabi

Maria Luisa Sandoval Schmidt

Introduccedilatildeo

A Psicologia tem se debruccedilado nos uacuteltimos anos ao estudo das ruralidades no que se

denomina Psicologia Rural Diferentemente de outras aacutereas de conhecimento dentro das

Humanidades a Psicologia tem se dedicado mais fortemente agraves questotildees urbanas Apesar de

ser uma questatildeo pensada desde 1925 com a publicaccedilatildeo de James Williams nos Estados Unidos

de Our rural heritage The social psychology of rural development e em 1973 com a

publicaccedilatildeo de Erich Fromm e Michael Macooby no Meacutexico de Socioanaacutelisis del campesino

mexicano segundo Landini (2015) apenas nos anos 2000 essa questatildeo comeccedilou a ser mais

debatida em congressos e conjuntos de publicaccedilotildees Optou-se por utilizar neste trabalho o

termo Psicologia Rural por ser um termo comumente utilizado na Ameacuterica Latina Espera-se

que este trabalho possa contribuir para a construccedilatildeo deste campo de conhecimento

Segundo Weil (19492001) desde o seacuteculo XIV os camponeses sofrem mais que os

operaacuterios pois estes quando passavam feacuterias nos vilarejos contavam vantagens sobre a

superioridade de se viver na cidade

No seacuteculo XIV os camponeses eram de muito longe os mais desgraccedilados Mas mesmo quando

satildeo materialmente mais felizes - e quando eacute o caso eles natildeo se datildeo muito conta disso porque

os operaacuterios que vecircm passar no vilarejo alguns dias de feacuterias sucumbem agrave tentaccedilatildeo da

fanfarronice - estatildeo sempre atormentados pelo sentimento de que tudo acontece nas cidades e

que eles estatildeo out of it

Evidentemente esse estado de espiacuterito eacute agravado pela instalaccedilatildeo nos vilarejos de TSF

[Telefonia sem fio raacutedio - N T] de cinemas e pela circulaccedilatildeo de jornais como Confidences e

Marie Claire perto dos quais a cocaiacutena eacute um produto sem perigo

Sendo essa a situaccedilatildeo eacute preciso primeiro inventar e aplicar alguma coisa que decirc doravante aos

camponeses o sentimento de que estatildeo in it (Weil 19492001 p 75)

1 Este capiacutetulo eacute baseado na tese de doutorado intitulada ldquoJovens assentados histoacuterias de vida e projetos de futuro

em um assentamento no litoral do Cearaacuterdquo apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

na aacuterea Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano de autoria de Denise Zakabi orientada pela Profordf Drordf

Maria Luisa Sandoval Schmidt

149

Candido (1975) considerava que a urbanizaccedilatildeo do campo se processaria como um

ldquovasto traumatismo cultural e social em que a fome e a anomia continuaratildeo a rondar o seu

velho conhecidordquo (p 225) caso natildeo houvesse um planejamento racional como a reforma

agraacuteria de forma que possibilitasse ao caipira ter condiccedilotildees de se ajustar a novas instituiccedilotildees

que impotildeem valores teacutecnicas e padrotildees culturais urbanos Assim essa obra apesar de ter sido

publicada no ano de 1975 levanta uma questatildeo brasileira ainda atual e natildeo resolvida que tem

sido discutida e enfrentada pelos movimentos sociais principalmente pelo Movimento Sem-

Terra (MST) e que tem tido avanccedilos e recuos a depender das gestotildees governamentais mais ou

menos abertas ao diaacutelogo

Esta pesquisa visou contribuir com os conhecimentos sobre a Psicologia relacionada agraves

ruralidades a partir das experiecircncias de juventudes em um assentamento que seraacute detalhado

adiante na parte de meacutetodo deste capiacutetulo Buscou ainda fornecer subsiacutedios para se refletir

sobre poliacuteticas puacuteblicas para jovens do campo

A partir dos anos 2000 propulsionadas pela maior presenccedila de jovens dentro de

organizaccedilotildees poliacuteticas e culturais foram criadas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para juventude

principalmente entre 2005 e 2015 eacutepoca dos Governos Lula e Dilma segundo Castro (2016)

Essa mudanccedila de paradigma de poliacuteticas puacuteblicas possibilita a concepccedilatildeo de jovens agentes no

processo de construccedilatildeo participativa de poliacuteticas puacuteblicas e natildeo apenas passivos de um Estado

provedor Ao analisar os dez anos dos governos Lula e Dilma Castro (2016) destaca que o

marco legal foi o maior avanccedilo no entanto a institucionalidade e as accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas

natildeo se consolidaram como poliacuteticas de Estado A autora observa que pode haver uma

fragilizaccedilatildeo dessas iniciativas para a juventude pelo ldquogolpe parlamentar que interrompeu o

Governo Dilmardquo (Castro 2016 p 195) E aqui eacute possiacutevel acrescentar que os governos

seguintes Temer e Bolsonaro satildeo marcados por accedilotildees governamentais fascistas que ameaccedilam

criminalizar os movimentos sociais derrubar a democracia e impedir o exerciacutecio dos direitos

humanos

1 Relaccedilotildees de poder

Moradores e moradoras da comunidade estudada podem ser discriminados(as) pela

desvalorizaccedilatildeo que haacute na sociedade sobre quem tem um modo de vida ligado agraves ruralidades

Tambeacutem podem ser discriminados(as) por terem baixa renda pela cor de sua pele negra e por

150

natildeo se enquadrarem nos papeacuteis associados agraves relaccedilotildees de gecircnero Satildeo situaccedilotildees que remetem

ao processo de humilhaccedilatildeo social

O latim ensina que a palavra humilhar (humiliare) eacute formada pelo radical huacutemus e que quer

dizer terra solo humilhar eacute pocircr em terra pocircr para baixo Humilhado eacute quem estaacute no chatildeo

abaixo Soberbo superbus eacute quem estaacute acima brotou por cima fora da terra e por cima dos

outros (Gonccedilalves Filho 2005 p 32)

A humilhaccedilatildeo social eacute fenocircmeno que se caracteriza por sentimentos de anguacutestia que satildeo

sentidos subjetivamente desencadeados pelas relaccedilotildees intersubjetivas e por condiccedilotildees sociais

Relaciona-se com aspectos poliacuteticos sociais e relaccedilotildees de poder desiguais como raccedila etnia

condiccedilotildees sociais gecircnero orientaccedilatildeo sexual e o que eacute especialmente importante para este

estudo relaciona-se com a condiccedilatildeo deter um modo de vida rural ou urbano

Em psicanaacutelise o nome para afetos inominaacuteveis eacute sempre o mesmo anguacutestia o mais

desqualificado dos afetos moeda dos afetos traumaacuteticos O mais abstrato e o mais humano dos

afetos a anguacutestia ndash tal como Laplanche (1987) natildeo cansa de demonstrar ndash representa sempre a

ressonacircncia em noacutes mecaniacutesmica de um enigma intersubjetivo (Gonccedilalves Filho 1998a p 48)

A humilhaccedilatildeo social eacute um fenocircmeno sofrido por um grupo silenciado dentro dos

processos decisoacuterios coletivos impedido de sua accedilatildeo poliacutetica

Como maneira de lidar com situaccedilotildees cotidianas de humilhaccedilatildeo e a anguacutestia advinda

delas as pessoas podem se valer de formas taacuteticas Segundo Certeau (19902013) a taacutetica difere

da estrateacutegia a estrateacutegia eacute a accedilatildeo de quem tem domiacutenio social relaciona-se com as elites ou

usando o termo de Freire (1982) com o opressor representados natildeo por indiviacuteduos e sim por

grupos poliacuteticos e instituiccedilotildees

Chamo de estrateacutegia o caacutelculo (ou a manipulaccedilatildeo) das relaccedilotildees de forccedilas que se torna possiacutevel

a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa um exeacutercito uma

cidade uma instituiccedilatildeo cientiacutefica) pode ser isolado A estrateacutegia postula um lugar suscetiacutevel de

ser circunscrito como algo proacuteprio e ser a base de onde se podem gerir as relaccedilotildees com uma

exterioridade de alvos ou ameaccedilas (os clientes ou os concorrentes os inimigos o campo em

torno da cidade os objetivos e objetos da pesquisa etc) (Certeau 19902013 p 93 itaacutelicos do

original)

A taacutetica se relacionaria ao fraco ou usando novamente termo de Freire (1982) ao

oprimido

a accedilatildeo calculada que eacute determinada pela ausecircncia de um proacuteprio Entatildeo nenhuma delimitaccedilatildeo

de fora lhe fornece a condiccedilatildeo de autonomia A taacutetica natildeo tem por lugar senatildeo o do outro E por

isso deve jogar com o terreno que lhe eacute imposto tal como o organiza a lei de uma forccedila estranha

Aproveita as ldquoocasiotildeesrdquo e delas depende sem base para estocar benefiacutecios aumentar a

propriedade e prever saiacutedas O que ela ganha natildeo se conserva Em suma a taacutetica eacute a arte do

fraco (Certeau 19902013 pp 94-95)

Certeau (19902013) elaborou esses conceitos a partir do pressuposto de que as pessoas

natildeo recebem passivamente informaccedilotildees e experiecircncias sem apropriar-se delas de alguma

151

maneira possiacutevel para sua sobrevivecircncia e usufruto Sua equipe realizou estudos a partir dessa

compreensatildeo por exemplo com pessoas da cultura popular em Pernambuco as quais se

apropriaram da religiosidade trazida pelo branco europeu e veneravam Frei Damiatildeo um santo

a favor das pessoas locais e dos mais pobres Esse autor faz o mesmo questionamento sobre a

suposta passividade dos meios de comunicaccedilatildeo atuais por exemplo como os telespectadores

recebem os conteuacutedos passados pela televisatildeo

Apesar da anaacutelise de Certeau (19902013) remeter agrave relaccedilatildeo entre opressor e oprimido

analisada por Freire (1982) este uacuteltimo ampliando sua esfera considera que esta situaccedilatildeo

somente pode ser superada atraveacutes da libertaccedilatildeo do oprimido por meio de uma transformaccedilatildeo

social a qual passa por um processo de conscientizaccedilatildeo e se concretiza atraveacutes de uma accedilatildeo

Daiacute a necessidade que se impotildee de superar a situaccedilatildeo opressora Isto implica no reconhecimento

criacutetico na ldquorazatildeordquo desta situaccedilatildeo para que atraveacutes de uma accedilatildeo transformadora que incida socircbre

ela se instaure uma outra que possibilite aquela busca do ser mais (Freire 1982 p 35)

Pessoas que moram em contextos rurais podem agir taticamente diante do pouco

investimento de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para os(as) pequenos(as) produtores(as) e a

agricultura familiar em busca de frestas nas quais possam se beneficiar dentro de condiccedilotildees

que lhes sejam desfavoraacuteveis No caso particular do assentamento aqui estudado seus(suas)

moradores(as) podem agir taticamente diante de situaccedilotildees sobre as quais tecircm pouco ou nenhum

poder de decisatildeo e planejamento por exemplo as lutas travadas em torno da implantaccedilatildeo da

induacutestria eoacutelica a grilagem de terras a valorizaccedilatildeo da produccedilatildeo em massa o pouco

investimento de governos em relaccedilatildeo agrave infraestrutura local Da mesma maneira em conflitos

internos entre as proacuteprias pessoas do assentamento nos quais haja desigualdade de poder

grupos com menor poder podem agir taticamente e grupos com maior poder estrategicamente

a depender de como a relaccedilatildeo de poder se compotildee por exemplo mulheres em relaccedilatildeo a homens

jovens em relaccedilatildeo a adultos(as) funcionaacuterios(as) em relaccedilatildeo a diretores(as) da escola

diretores(as) da escola em relaccedilatildeo a membros da Secretaria de Educaccedilatildeo Assim como o

processo de humilhaccedilatildeo social eacute realizado por um grupo sobre outro sua forma de superaccedilatildeo

tambeacutem eacute coletiva e aqui se destaca o apoio de movimentos sociais cujas reivindicaccedilotildees

favorecem a conquista de poliacuteticas puacuteblicas para os(as) assentados(as) de maneira geral e para

este assentamento de maneira particular

2 Meacutetodo

152

21 Local de estudo

O assentamento Maceioacute localiza-se na planiacutecie litoracircnea oeste do Cearaacute em Itapipoca

a cerca de 60 quilocircmetros da sede central Sua populaccedilatildeo eacute estimada em mil famiacutelias Essas

comunidades trabalham com agricultura pecuaacuteria pesca e confecccedilatildeo de renda todos de base

familiar (Assentamento Maceioacute 2013) Este assentamento foi formado nos anos 80 quando a

terra foi registrada pelo Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (Incra)

Durante o periacuteodo em que se conviveu dentro do assentamento quando se conversava

com jovens e velhos(as) estes(as) falavam que moravam na terra haacute vaacuterias geraccedilotildees contaram

que se tornaram serviccedilais de uma famiacutelia que se dizia dona da terra por um processo de

grilagem devido agrave ingenuidade e agrave falta de acesso aos mecanismos da justiccedila Graccedilas agrave

mobilizaccedilatildeo engendrada de trabalhadores(as) locais com apoio das Comunidades Eclesiais de

Base (CEBs) conquistaram a posiccedilatildeo de assentados(as)

Atualmente os(as) moradores(as) da comunidade continuam ldquona lutardquo contra outros

grupos interessados em usufruir da terra por se tratar de uma comunidade litoracircnea haacute

interesses de grandes empreendedores(as) da agricultura voltada para monocultura como a

produccedilatildeo de camaratildeo e coco da induacutestria do turismo e da induacutestria eoacutelica Haacute divisatildeo entre

os(as) moradores(as) ldquoa favor da lutardquo para manter a terra para uso exclusivo de seus(suas)

moradores(as) locais e aqueles(as) que satildeo ldquocontra a lutardquo e defendem esses(as) grandes

empreendedores(as) pois consideram que trariam benefiacutecios por meio do desenvolvimento da

regiatildeo alguns(mas) inclusive jaacute trabalham para eles(as) em trabalhos subalternos Os(as)

moradores(as) ldquoa favor da lutardquo se mobilizam para impedir o avanccedilo desses(as) grandes

empreendedores(as) Nos anos 90 solicitaram auxiacutelio do MST o qual contribuiu para preservar

a aacuterea de praia para usufruto de seus(suas) moradores(as) atraveacutes da construccedilatildeo de um

acampamento As famiacutelias militantes se revezam para ocupar o acampamento Pela chegada do

MST ter sido tardia em relaccedilatildeo a sua longa histoacuteria de luta satildeo poucos(as) os(as) moradores(as)

que simpatizam ou militam no movimento diferentemente de outros assentamentos

conquistados atraveacutes da luta do proacuteprio MST Mesmo assim com a sua mobilizaccedilatildeo

conseguiram que fosse construiacuteda a escola de ensino meacutedio do campo com recursos federais

de maneira que a comunidade escolhesse o nome e o local em 2010 A escola manteacutem ateacute hoje

o apoio pedagoacutegico do MST

A partir de visitas iniciais a esse assentamento e observando a relaccedilatildeo dos(as) jovens

com os(as) mais velhos(as) a luta o contexto do turismo e do modo de vida rural campesino

e litoracircneo surgiram os seguintes questionamentos quais satildeo as histoacuterias de vida e os projetos

153

de futuro dos(as) jovens desse assentamento e de comunidades ao redor Qual eacute a sua relaccedilatildeo

com as instituiccedilotildees com destaque para a escola onde passam a maior parte do dia Como eacute a

ligaccedilatildeo dos(as) jovens com as lutas engendradas pela comunidade Para responder a essas

questotildees foi realizado um processo de observaccedilatildeo participante que seraacute descrito a seguir

22 Observaccedilatildeo participante

Schmidt (2008) considera o trabalho de campo ldquoum espaccedilo comum entre pesquisadores

e aqueles outros que se deseja conhecer espaccedilo em que uns e outros se tornam mutuamente

inteligiacuteveisrdquo (p 394)

Segundo Silva (2006) a partir dos anos 60 antropoacutelogos(as) passaram a questionar a

condiccedilatildeo de neutralidade do(a) pesquisador(a) e o contexto de pesquisa como a condiccedilatildeo de

classe gecircnero etnia e formas de inserccedilatildeo dos(as) antropoacutelogos(as) Esse movimento teve iniacutecio

quando os paiacuteses dos continentes mais estudados Aacutefrica e Aacutesia passaram a reivindicar

autonomia por meio de movimentos de independecircncia Para este estudo considera-se que essas

reflexotildees podem contribuir para inserccedilatildeo de psicoacutelogos(as) pesquisadores(as) em estudos com

inspiraccedilatildeo etnograacutefica

Realizou-se observaccedilatildeo participante de vivecircncias cotidianas comunitaacuterias e escolares

principalmente na Escola do Campo de Ensino Meacutedio local onde os(as) jovens passam a maior

parte do tempo Tambeacutem foram acompanhados alguns eventos da comunidade como reuniatildeo

no acampamento na cozinha coletiva evento de Paacutescoa Regata e farinhada A Regata eacute uma

corrida entre jangadas e a farinhada a feitura de feacutecula de mandioca chamada tambeacutem de

polvilho doce ou ldquogomardquo como eacute conhecida no Cearaacute Esse processo de observaccedilatildeo

participante durou cerca de quatro anos entre 2013 e 2016

No primeiro ano foram realizadas visitas esporaacutedicas cerca de cinco para escrever o

projeto que deu origem a esta pesquisa Nos dois anos seguintes foram realizadas visitas

semanais para conhecer a comunidade nas quais se passava dois dias por semana vivenciando

o cotidiano da escola e agrave noite convivendo com pessoas da comunidade Jaacute no uacuteltimo ano

foram realizadas outras visitas esporaacutedicas agraves escolas e se participou de alguns eventos

comunitaacuterios Foi mantido um diaacuterio de campo com relatos dessas essas vivecircncias e para

manter o sigilo sobre as falas usam-se aqui nomes fictiacutecios

23 Entrevistas

154

Foram realizadas entrevistas com jovens seis garotas e quatro garotos de diversas

comunidades do assentamento e ao redor da Escola de Ensino Meacutedio do campo Esses(as)

jovens eram estudantes ou funcionaacuterios(as) da escola com os quais se conviveu durante a

observaccedilatildeo participante Buscou-se atraveacutes dessas entrevistas conhecer a diversidade de

vivecircncias dentro do assentamento e em comunidades ao redor e aprofundar temas conversados

informalmente Seguiu-se um roteiro de entrevistas dividido em cinco etapas caracterizaccedilatildeo

dos entrevistados presente passado futuro e reflexotildees sobre melhorias para comunidade

Durante as entrevistas Schmidt (2008) considera fundamental o interesse e o ldquorespeito

genuiacutenos do pesquisador pelos sentidos e significados que seu interlocutor atribui aos

fenocircmenos estudados e da focalizaccedilatildeo do processo de pesquisa como produtor de

conhecimentordquo (p 394) Da convivecircncia entre o(a) entrevistado(a) e o(a) entrevistador(a) pode

surgir um sentimento de gratidatildeo do(a) ouvinte pelo que aprendeu e do(a) narrador(a) por ter

sua experiecircncia valorizada

As entrevistas duraram cerca de uma hora cada Quase todas as entrevistas foram

realizadas em salas na escola do campo exceto a de Hellen que foi realizada em Fortaleza

local onde morava no momento da entrevista

Segue abaixo um quadro (Quadro 1) com o perfil dos(as) jovens entrevistados(as)

Quadro 1 ndash Caracteriacutesticas dos jovens entrevistados

Nome Idade Sexo Ensino Meacutedio Religiatildeo Cor de pele

Beatriz 19 F Terminou Catoacutelica Negra

Francisco 20 M Terminou Catoacutelica Parda

Aldo 17 M Terceiro ano Catoacutelica Morena

Hellen 18 F Terceiro ano Catoacutelica Morena Clara

Loira 19 F Terceiro ano Catoacutelica Morena

Izabel 18 F Terceiro ano Evangeacutelica (Universal) Parda

BMJ 19 M Terminou Catoacutelica Negra

Davi 17 M Segundo ano Catoacutelica Morena

Tereza 16 F Segundo ano Testemunha de Jeovaacute Preta

Adriana 15 F Primeiro ano Catoacutelica Parda

Entre as caracteriacutesticas do Quadro 1 destacam-se Beatriz e BMJ ligado ao MST

uacutenicos(as) entrevistados(as) a se denominarem negros Beatriz corrigiu sua cor de pele na

155

segunda parte da entrevista o que justificou por ter participado de uma formaccedilatildeo na qual a

afirmaccedilatildeo da identidade negra era reforccedilada e as caracteriacutesticas ldquomorenardquo ou ldquopardardquo foram

criticadas

Beatriz Eu fui representar a escola do campo em um seminaacuterio de artes e cultura Aiacute uma mulher

que tava dando a oficina disse que eacute racismo chamar as pessoas de Morena porque a cor de pele

eacute negra natildeo existe uma cor morena A cor eacute negra Aiacute por isso eu sou negra (Trecho de entrevista

com Beatriz)

Esta mudanccedila de opiniatildeo demonstra a importacircncia de formaccedilotildees para construccedilatildeo e

fortalecimento da consciecircncia negra

Apesar de esta pesquisa ter passado por tracircmites burocraacuteticos relacionados ao Comitecirc

de Eacutetica em Pesquisa (Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade

de Satildeo Paulo ndash CAAE 36349614200005561) e terem sido apresentados termos de

assentimento e consentimento para jovens entrevistados(as) conversas informais se tornaram

mais interessantes tanto em termos de conteuacutedo para pesquisa como forma de deixar os(as)

colaboradores(as) mais agrave vontade para aleacutem de ldquoparticipar de uma pesquisardquo poderem se

expressar e se sentir acolhidos(as) em algum sofrimento o que faz problematizar os limites dos

instrumentos instituiacutedos pelos Comitecircs e questionar afinal o que eacute a Eacutetica em Pesquisa

3 Resultados e discussatildeo

Seratildeo apresentados a seguir os principais resultados desta pesquisa que podem

colaborar para a reflexatildeo sobre Psicologia e Poliacuteticas Puacuteblicas relacionadas agrave juventude aos

povos do campo e do litoral e particularmente aos(agraves) jovens assentados(as) A ecircnfase deste

capiacutetulo estaacute nas poliacuteticas relacionadas agrave educaccedilatildeo cultura e moradia que podem ser refletidas

a partir das vivecircncias dos(as) jovens na escola do campo mencionada

Essa escola do campo foi construiacuteda pelo governo estadual com recursos do governo

federal por reivindicaccedilatildeo da comunidade com apoio do MST em 2010 conforme mencionado

no meacutetodo deste capiacutetulo Os proacuteprios membros do assentamento escolheram seu nome Maria

Nazareacute de Souza em homenagem a uma militante da luta pela terra e por direitos sociais

Seus(suas) moradores(as) tiveram prioridade para nela trabalhar e ela se localiza dentro do

proacuteprio assentamento Maceioacute na comunidade Jacareacute distrito de Baleia O MST manteacutem a

coordenaccedilatildeo pedagoacutegica O faacutecil acesso agrave educaccedilatildeo formal eacute um diferencial em relaccedilatildeo a outros

assentamentos e eacute um fator de permanecircncia de jovens no campo Os(as) jovens assentados(as)

156

geralmente tecircm oportunidade apenas de cursar o fundamental pela dificuldade de acesso agraves

escolas de Ensino Meacutedio segundo Castro (2009)

A escola possui doze turmas sendo quatro de cada ano do ensino meacutedio Em 2018

contava com 476 estudantes 31 educadores(as) e 14 funcionaacuterios(as) Apresentava boa

estrutura fiacutesica sala de informaacutetica quadra coberta sala de viacutedeo de grecircmio com raacutedio

instrumentos musicais biblioteca laboratoacuterio de biologia e quiacutemica bem equipado com

microscoacutepios e outros materiais Haacute um espaccedilo de horta que denominaram de ldquomandalardquo em

volta de uma cisterna feita com aacutegua da chuva

A escola apresentava diferenciais em relaccedilatildeo agraves escolas tradicionais a abertura que tem

para discussotildees sobre problemas da atualidade disparadas por membros de Organizaccedilotildees Natildeo

Governamentais (ONGs) movimentos sociais e religiosos ou pelo proacuteprio corpo docente da

escola como por exemplo sobre a Copa do Mundo no Brasil e sobre a produccedilatildeo de energia

eoacutelica Aleacutem disso a escola do campo se diferencia da teacutecnica agriacutecola pela formaccedilatildeo dos(as)

educadores(as) engenheiros(as) agrocircnomos(as) que ministravam a disciplina de Organizaccedilatildeo

do Trabalho e Teacutecnicas Produtivas Nessa disciplina o ensino eacute biodinacircmico em que satildeo

ensinadas teacutecnicas de plantio sem o uso de agrotoacutexico com defensivos caseiros e naturais

atraveacutes do manejo da forma de plantar podar em harmonia com o periacuteodo da lua Durante as

entrevistas alguns(mas) jovens referiram ter levado para suas casas o conhecimento da escola

para seus familiares que trabalhavam na roccedila Havia jovens que eram considerados

ldquobagunceirosrdquo em todas as disciplinas exceto as de praacuteticas do campo quando eram

extremamente soliacutecitos Alguns(mas) estudantes relataram ser as aulas de que mais gostavam

Outro diferencial eacute o incentivo para que o(a) jovem conheccedila a histoacuteria da sua proacutepria

comunidade Foi mencionado nas entrevistas um trabalho solicitado pela escola aos(agraves) jovens

para que entrevistassem os(as) mais velhos(as) para conhecer o motivo do nome da comunidade

onde vivem

Aleacutem dessas singularidades que possibilitavam uma formaccedilatildeo criacutetica politizada e ligada

agrave agroecologia havia uma seacuterie de conflitos interpessoais aos quais se teve acesso durante o

processo de observaccedilatildeo participante

Os membros da escola gostariam que seu ensino fosse diferente daquele das escolas

tradicionais e de instituiccedilotildees capitalistas Havia por exemplo questionamento sobre a

instalaccedilatildeo de uma sirene para avisar sobre o horaacuterio pois remetia ao ritmo industrial alienante

Buscava-se um processo pedagoacutegico que promovesse a autonomia dos estudantes desejo

157

expresso por fotos e frases de Paulo Freire nas paredes da escola Foi possiacutevel o contato com

tensotildees entre autoridade e autoritarismo dentro das diversas instacircncias de poder principalmente

pela dificuldade em estabelecer processos democraacuteticos dentro da escola situaccedilatildeo que remetia

ao sistema capitalista no qual a escola estava inserida e demonstrava os limites da proacutepria

organizaccedilatildeo escolar

Os(as) funcionaacuterios(as) se ressentiam por terem sido membros da luta e atuarem em

funccedilotildees subalternas com menor poder de decisatildeo e menores salaacuterios refletindo a desigualdade

de classes da sociedade Havia em contraposiccedilatildeo uma valorizaccedilatildeo de quem tinha formaccedilatildeo

para ser educador(a) ou membro da coordenaccedilatildeo em sua maioria pessoas que natildeo eram da

comunidade Os(as) funcionaacuterios(as) dividiam-se entre mulheres que cozinhavam lavavam a

louccedila e organizavam o estoque de comida e homens que eram responsaacuteveis pela seguranccedila e

limpeza da escola Uma funcionaacuteria que atuava como porta-voz dos(as) funcionaacuterios(as) falou

que exerciam funccedilotildees subalternas por terem se dedicado mais agrave luta do que agrave proacutepria formaccedilatildeo

diferentemente de alguns membros da comunidade que puderam se tornar educadores(as)

Ouviu-se criacutetica de funcionaacuterios(as) e de educadores(as) quanto ao fato de os(as)

funcionaacuterios(as) soacute serem chamados(as) para debate para resolver problemas em relaccedilatildeo aos(agraves)

estudantes ou aos membros da comunidade Em um dia de observaccedilatildeo particularmente

conflituoso uma funcionaacuteria disse que uma das pesquisadoras autora deste estudo deveria apoacutes

a pesquisa permanecer na escola para reconstruiacute-la

Os(as) educadores(as) por outro lado reclamavam que o serviccedilo dos funcionaacuterios natildeo

era como o de outras escolas estes(as) natildeo serviam cafeacute para os(as) educadores(as) natildeo

limpavam sua sala natildeo cuidavam das hortas da escola

Os(as) funcionaacuterios(as) agem a partir de uma organizaccedilatildeo dos espaccedilos das atividades e

das possibilidades de participaccedilatildeo determinada por educadores(as) e direccedilatildeo Podem agir

taticamente no sentido de Certeau (19902013) como forma de recusa agrave subalternidade por

exemplo deixar de servir cafeacute e limpar as salas de educadores(as)

Membros da coordenaccedilatildeo por sua vez tinham dificuldade em exercer a lideranccedila sendo

chamados em alguns momentos de ldquoautoritaacuteriosrdquo ldquocom dificuldades de ouvirrdquo

Os(as) estudantes demonstravam insatisfaccedilatildeo de maneiras diversas atraveacutes de atos de

vandalismo ou de reivindicaccedilotildees verbais Alguns estudantes tinham o haacutebito de jogar restos de

alimentos ao longo dos bancos da quadra da escola aleacutem de deixar espalhados pratos canecas

e talheres o que exigia que os(as) funcionaacuterios(as) sempre limpassem o local

158

O(a) representante de classe foi descrito(a) por um dos estudantes entrevistados como

um vigiador de ldquobons comportamentosrdquo dentro de sala de aula e natildeo como um representante do

interesse dos estudantes Um ponto que chama a atenccedilatildeo eacute que os jovens considerados

ldquobagunceirosrdquo com quem se conversou tinham um discurso no qual se mostravam bastante

responsaacuteveis em relaccedilatildeo agrave famiacutelia aos projetos de futuro relacionados ao trabalho e uma visatildeo

politizada em relaccedilatildeo ao local e agrave comunidade onde moravam

Ocorreram dois fatos transgressores na escola os quais se destacam aqui O primeiro

aconteceu quando uma comissatildeo de estudantes foi entregar sua lista de demandas aos(agraves)

educadores(as) da escola

Nesse dia de reuniatildeo um educador apresentou uma pauta de reivindicaccedilotildees dos(as)

representantes dos(as) estudantes falando de maneira jocosa perguntavam por que natildeo podiam

acessar o Facebook e a internet e os(as) educadores(as) podiam fazer os dois por que natildeo

podiam ir de calccedila rasgada para escola qual a formaccedilatildeo de alguns educadores(as) citaram a de

Inglecircs que natildeo havia terminado a graduaccedilatildeo e o de Sociologia e Filosofia que era formado em

Geografia Reclamaram que alguns(mas) educadores(as) abordavam estudantes de forma

abusiva Por fim os estudantes reivindicavam participar da proacutexima reuniatildeo de educadores(as)

na semana seguinte (Trecho de diaacuterio de campo)

Nota-se nessas reivindicaccedilotildees o desejo dos(as) estudantes de terem os mesmos direitos

que os(as) educadores(as) por exemplo ao usar a internet e natildeo usar a chamada ldquofardardquo no

Cearaacute ou uniforme escolar em Satildeo Paulo Os(as) educadores(as) da escola tinham uma posiccedilatildeo

duacutebia em relaccedilatildeo a essas iniciativas ofereciam espaccedilo para esses questionamentos ao lerem

suas reivindicaccedilotildees ao mesmo tempo em que as reprimiam fazendo piadas e desvalorizando-

as talvez para natildeo se confrontar com o desconforto causado pelo questionamento de sua

autoridade e por terem de ouvir criacuteticas

O segundo fato transgressor observado foi o de trecircs jovens expulsos da escola por terem

explodido bombas dentro dela Para essa expulsatildeo houve uma reuniatildeo conjunta entre

funcionaacuterios(as) e educadores(as) Para um dos jovens particularmente a expulsatildeo da escola

foi uma decisatildeo difiacutecil para a direccedilatildeo por ter crescido ldquono meio da lutardquo entre assembleias

Descreve-se abaixo conversa com este jovem quando jaacute havia se mudado para a sede do

municiacutepio para dar continuidade aos estudos

Quando se lembrava da experiecircncia de ter explodido a bomba na escola seus olhos brilhavam

e um sorriso se abria em seus laacutebios dizia ser um sentimento de poder e prazer que tinha Mas

se mostrava arrependido pelo que havia acontecido principalmente pela consequecircncia que teve

em sua vida pois natildeo queria ter se afastado do assentamento tampouco ter saiacutedo da escola do

campo Passou a valorizar mais a vida no assentamento depois dessa experiecircncia achava a sede

do municiacutepio barulhenta e reclamava do grande fluxo de carros Considerava que na escola da

sede do municiacutepio faltava luta era voltada somente para o Enem Achava que a escola do campo

propiciava uma formaccedilatildeo que ia aleacutem do curriacuteculo O ato de soltar a bomba na escola dentro

dos banheiros tinha o objetivo de ldquobotar o terrorrdquo Natildeo imaginava que poderia ser expulso por

159

isso poreacutem acha que o lado bom foi ter se afastado dos outros estudantes que considerava

ldquobagunceirosrdquo com quem natildeo tinha mais contato Tinha planos de estudar Agronomia e voltar

agrave escola do campo como professor como tantas pessoas da comunidade almejavam que ele se

tornasse Continuava a frequentar o curso de Residecircncia Agraacuteria que havia iniciado pela escola

do campo cujas aulas ocorrem em vaacuterias escolas do campo do Cearaacute Depois tive oportunidade

de encontraacute-lo durante a Regata do assentamento Disse-me que morava novamente no

assentamento estava fazendo um curso de Agroecologia pela UFC com recursos do Incra

Poreacutem o Incra natildeo financiava mais o curso e estava quase fechando Planejava fazer faculdade

de Matemaacutetica (Trecho de diaacuterio de campo)

A leitura de Winnicott (19631983) pode ajudar a compreender o que aconteceu na

escola haacute uma comunicaccedilatildeo que apesar de barulhenta explosiva eacute silenciosa natildeo fala

diretamente e pode expressar a relaccedilatildeo entre estudantes e escola Assim como a bomba

explodida na escola a imagem metafoacuterica trazida pela funcionaacuteria como porta-voz - de a escola

destruiacuteda poder ser reconstruiacuteda por uma das autoras deste estudo considerada ldquoespecialistardquo -

eacute uma manifestaccedilatildeo que expressa insatisfaccedilotildees com a forma como se configuram as relaccedilotildees

dentro da escola pelas dificuldades para se efetivar como um espaccedilo democraacutetico refletindo a

violecircncia nas relaccedilotildees pelo silenciamento de alguns membros nos processos decisoacuterios

Apesar de o processo de eleiccedilatildeo na escola ser democraacutetico as relaccedilotildees entre membros

da coordenaccedilatildeo educadores(as) funcionaacuterios(as) e estudantes era hierarquizada e os papeacuteis

cristalizados e riacutegidos A desigualdade gerava conflitos pelo ressentimento em natildeo haver

horizontalidade nas relaccedilotildees e valorizaccedilatildeo das diversas opiniotildees A efetividade da construccedilatildeo

de espaccedilos democraacuteticos eacute difiacutecil onde cada um(a) possa ser ouvido(a) e respeitado(a) em

condiccedilotildees iguais de diaacutelogo resguardadas suas diferenccedilas A educaccedilatildeo como praacutetica

libertadora na qual haacute diaacutelogo entre educadores(as) e educandos(as) de maneira que ambos(as)

sejam ouvidos(as) e respeitados(as) em seus anseios e esperanccedilas eacute um desafio a ser superado

de uma tradiccedilatildeo opressora de educaccedilatildeo a qual Freire (1982) nomeou de ldquoeducaccedilatildeo bancaacuteriardquo

Enquanto na praacutetica ldquobancaacuteriardquo da educaccedilatildeo antidialoacutegica por essecircncia por isto natildeo

comunicativa o educador deposita no educando o conteuacutedo programaacutetico da educaccedilatildeo que ele

mesmo elabora ou elaboram para ele na praacutetica problematizadora dialoacutegica por excelecircncia ecircste

conteuacutedo que jamais eacute ldquodepositadordquo se organiza e se constitui na visatildeo do mundo dos

educandos em que se encontram seus ldquotemas geradoresrdquo (Freire 1982 p 120)

A dificuldade de construir espaccedilos democraacuteticos ocorre em outros grupos e instituiccedilotildees

da sociedade que buscam superar relaccedilotildees hieraacuterquicas e almejam a igualdade Eacute um horizonte

a ser buscado dentro de uma sociedade capitalista dividida em classes sociais Paul Singer

(2002) analisa grupos que realizam atividades de economia solidaacuteria o que soacute eacute possiacutevel

segundo o autor quando as relaccedilotildees natildeo satildeo competitivas O autor analisa as dificuldades

encontradas por esses grupos em se autogerirem e tomarem decisotildees coletivas de forma

cooperativa e democraacutetica por exemplo o esforccedilo adicional dos trabalhadores em se preocupar

160

com as proacuteprias tarefas e os problemas gerais da empresa envolver-se em conflitos participar

de reuniotildees cansativas o que pode levar os soacutecios a preferirem dar um voto de confianccedila agrave

direccedilatildeo para que decida em lugar deles Ainda segundo o autor essa dificuldade pode estar

associada agrave insuficiente formaccedilatildeo democraacutetica dos soacutecios desde a infacircncia e ele cita como

exemplos a famiacutelia patriarcal e a escola Por fim o mesmo autor considera que entre as

empresas solidaacuterias a autogestatildeo se pratica mais autenticamente quando seus(uas) soacutecios(as)

se envolvem em lutas emancipatoacuterias e satildeo militantes sindicais poliacuteticos(as) e religiosos(as)

Castro (2009) menciona a dificuldade de adultos valorizarem as opiniotildees dos(as) jovens

em espaccedilos de decisatildeo em outros assentamentos e eventos sobre juventudes rurais A autora

associa essa desvalorizaccedilatildeo das opiniotildees dos(as) jovens mesmo jovens lideranccedilas reconhecidas

nacionalmente agrave reproduccedilatildeo da hierarquia presente nas relaccedilotildees familiares dentro dos espaccedilos

de decisatildeo e agrave falta de confianccedila nos(as) jovens rurais por sua associaccedilatildeo ao desinteresse pelo

meio rural e agrave atraccedilatildeo pela cidade

Observou-se em momentos decisoacuterios nos quais havia jovens presentes como em

assembleias no acampamento da praia e durante a farinhada no silecircncio destes(as) Os(as)

jovens ficavam apenas observando como se ficarem calados(as) fosse sua forma de respeitar

os(as) adultos que falavam Foi uma diferenccedila apenas geracional observada natildeo relativa ao

gecircnero porque havia participaccedilatildeo tanto de homens como de mulheres lideranccedilas locais

diferente do que foi observado em outros assentamentos do Sertatildeo Cearense nos quais a

predominacircncia da participaccedilatildeo era masculina (Pereira Cavalcante amp Oliveira 2014)

Os(as) jovens deste estudo natildeo participam de formas mais tradicionais de luta das quais

os mais velhos participam e se ressentem da pouca participaccedilatildeo dos(as) jovens como as

assembleias realizadas no acampamento e em outros espaccedilos comunitaacuterios mas satildeo

mobilizados(as) e mobilizadores(as) pelo teatro construiacutedo juntamente com membros de uma

congregaccedilatildeo religiosa catoacutelica e pelos atos puacuteblicos como as audiecircncias nessas uacuteltimas

principalmente quando mobilizados(as) pela escola do campo Aleacutem disso outro espaccedilo de

mobilizaccedilatildeo que pode ter discussotildees poliacuteticas referentes a problemas comunitaacuterios eacute o grupo

de jovens das igrejas

Destacam-se na fala mencionada do jovem expulso da escola e na de outras e outros

jovens com quem se teve oportunidade de conversar os diferenciais mencionados desta escola

a oportunidade para um ensino refletido com ldquolutardquo e poliacutetica de forma que os(as) jovens e

seus(suas) funcionaacuterios(as) problematizem a sociedade e a proacutepria metodologia da escola

161

Contraposta a relaccedilotildees mercantilizadas encontram-se relaccedilotildees de amizade trocas

muacutetuas por generosidade e hospitalidade as quais satildeo necessaacuterias para sobrevivecircncia do grupo

Comumente moradores(as) do assentamento falavam que laacute era um local em que jamais faltaria

comida e hospedagem do que sentiam muito orgulho contrastado ao que observavam nas

grandes cidades em que essa camaradagem natildeo acontecia

O que eacute associado ao campo pode ser valorizado ou desvalorizado de acordo com os

encontros com pessoas que podem potencializar ou despotencializar esse reconhecimento

Em uma das visitas agrave escola estudantes e educadores(as) se preparavam para Mostra de Artes

em comemoraccedilatildeo ao aniversaacuterio de 25 anos do MST no Cearaacute para a qual vi a preparaccedilatildeo

dos(as) estudantes com acompanhamento dos(as) educadores(as) Observei as tentativas de

negociaccedilatildeo de educadores(as) em relaccedilatildeo a muacutesicas a serem danccediladas pelos(as) jovens uma

muacutesica de axeacute com apelo eroacutetico e outra muacutesica gospel ambas sem ligaccedilatildeo com o tema da

Mostra Alguns(mas) estudantes se dedicaram a danccedilar Luiz Gonzaga o que se aproximava

mais da regiatildeo embora natildeo fosse uma muacutesica do local e eu jaacute havia tido oportunidade de

observar apresentaccedilotildees de coco muacutesica enraizada por esse povo litoracircneo cujo ritmo parece

estar dentro de seus corpos danccedilantes desde crianccedilas Tambeacutem natildeo houve recitaccedilatildeo de cordeacuteis

que escrevem com tanta facilidade como quando vi durante apresentaccedilatildeo de seminaacuterio de

estudantes sobre temas que chamam de transversais no caso temas da atualidade relevantes

para a sociedade por exemplo gravidez natildeo-planejada prevenccedilatildeo agraves IST Copa do Mundo e

energia eoacutelica A educadora Clarice me chamou a atenccedilatildeo para umas pinturas realizadas por

estudantes as quais eram identificadas com seus nomes e seacuteries e tambeacutem para um conjunto de

camisetas com a mensagem ldquoMST 25 anosrdquo bordadas agrave renda com o rendado tiacutepico da regiatildeo

as quais natildeo estavam assinadas como se o bordado natildeo fosse elevado agrave arte digno de ser

reconhecidamente identificado como uma pintura (Trecho de diaacuterio de campo)

O que eacute manifestaccedilatildeo de arte local a muacutesica o cordel o bordado por ser tatildeo comum

para seu cotidiano e realizada com tanta naturalidade natildeo foi valorizada nesse momento

Atribui-se essa desvalorizaccedilatildeo agrave humilhaccedilatildeo social ao que eacute reproduzido e valorizado pela

miacutedia e aos valores eurocecircntricos associados aos grandes centros urbanos caracterizados por

uma elite branca Essa desvalorizaccedilatildeo de um aspecto cultural intriacutenseco da comunidade indica

que o sentimento de humilhaccedilatildeo social eacute vivenciado e reproduzido dentro da proacutepria

comunidade o que denota a importacircncia da escola do campo para problematizar essa questatildeo

Um jovem foi avisar para uma educadora que precisaria se ausentar por participar da farinhada

processo de produzir farinha de tapioca a partir da mandioca em um tom de voz inaudiacutevel tanto

para ela como para mim Esta educadora entatildeo me explicou que os jovens quando entram na

escola sentem-se envergonhados em participar da farinhada mas ela me garantia ao terceiro

ano jaacute se sentiam orgulhosos De fato alguns(mas) jovens com quem conversei do segundo e

terceiro ano realmente se sentiam orgulhosos(as) por fazerem parte do assentamento e

sonhavam em continuar laacute na terra onde nasceram (Trecho de diaacuterio de campo)

Foram observadas diferenccedilas entre os(as) jovens entrevistados(as) das comunidades que

pertencem ao assentamento e da comunidade fora do assentamento Os terrenos das

comunidades do assentamento foram adquiridos por meio da mobilizaccedilatildeo da comunidade jaacute

162

residente e trabalhadora no local motivada pelas Comunidades Eclesiais de Base conforme jaacute

mencionado Os terrenos fora do assentamento foram adquiridos atraveacutes de compra Os(as)

jovens da comunidade do assentamento relatam maior uniatildeo das pessoas da comunidade em

casos de necessidade Um contraste ilustrativo dessa mobilizaccedilatildeo estaacute nas descriccedilotildees sobre as

farinhadas e os mutirotildees de Francisco do assentamento e de Aldo de uma comunidade vizinha

com diferenccedilas entre mobilizaccedilotildees comunitaacuterias conjuntas por trocas de serviccedilos e por serviccedilo

prestado por dinheiro

Francisco Cada famiacutelia tem a sua [farinhada] mas existe o haacutebito de Chama ldquotroca de diardquo

Quando eacute a farinhada da minha famiacutelia aquelas pessoas vecircm trabalhar e quando eacute a farinhada

de uma pessoa que trabalha na minha farinhada aiacute a pessoa da minha famiacutelia vai ajudar entatildeo

sempre haacute essa troca Algumas outras atividades por exemplo trabalhos da comunidade

algum mutiratildeo que deve ser feito na comunidade Foi realizada uma barragem no riacho entatildeo

foi o assunto trabalhado tambeacutem por um grupo chamado Terccedilo dos Homens e pelo conselho

tambeacutem (Trecho de entrevista com Francisco)

Aldo Por exemplo eu tenho uma roccedila aiacute eu quero fazer a farinhada aiacute eu chamo as pessoas

que eu quero pra trabalhar pra mim Eu posso chamar quem eu quiser soacute que paga neacute (Trecho

de entrevista com Aldo)

Os(as) jovens do assentamento tambeacutem relataram maior mobilizaccedilatildeo contra a entrada

de grandes empresas de turismo e de outros empreendimentos quando natildeo haacute gestatildeo

comunitaacuteria como as induacutestrias eoacutelicas diferentemente de comunidades fora do assentamento

nas quais haacute a entrada das eoacutelicas e cujos terrenos tecircm sido vendidos para construccedilatildeo de casas

e hoteacuteis para turismo havendo grande fluxo de turistas durante as altas temporadas Aldo

jovem morador de uma comunidade vizinha que estaacute sofrendo o impacto de uma recente

implantaccedilatildeo da induacutestria eoacutelica considera que as consequecircncias dessa implantaccedilatildeo podem

ldquodestruirrdquo seu sonho de ser agricultor Segundo Bosi (2003) a separaccedilatildeo entre trabalho e

relaccedilotildees comunitaacuterias pode ser uma causa de desenraizamento ldquoEntre os mais fortes motivos

desenraizadores estaacute a separaccedilatildeo entre a formaccedilatildeo pessoal biograacutefica mesmo e a natureza da

tarefa entre a vida no trabalho e a vida familiar de vizinhanccedila e cidadaniardquo (Bosi 2003 p

181)

Candido (1975) observou essas formas de solidariedade manifestas atraveacutes do trabalho

coletivo como o mutiratildeo para atividades agriacutecolas as quais eram essenciais para se conseguir

realizar a colheita e caracterizava o modo de vida do paulista caipira permeado pelo aspecto

moral religioso pela satisfaccedilatildeo em ajudar ao proacuteximo acompanhado de refeiccedilotildees e finalizado

com uma festa para alegrar o cotidiano Esse autor concluiu que os pequenos lavradores embora

arrastados para o acircmbito da economia capitalista e para a esfera da influecircncia das cidades

procuram ajustar-se ao que o autor chama de ldquomiacutenimo inevitaacutevel de civilizaccedilatildeordquo (p 218) ldquoA

163

conservaccedilatildeo de traccedilos aparece pois como fator de defesa grupal e cultural representando o

aspecto de permanecircncia A incorporaccedilatildeo dos novos traccedilos representa a mudanccedilardquo (p 219) Aqui

nesta pesquisa se poderia pensar que esses traccedilos de permanecircncia de ruralidades podem

contribuir para o enraizamento e para o sentimento de pertencimento que os(as) jovens tecircm pela

comunidade Segundo Weil (19492001) o enraizamento eacute uma das necessidades mais

importantes do ser humano

O enraizamento eacute talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana

Um ser humano tem raiz por sua participaccedilatildeo real ativa e natural da existecircncia de uma

coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos de futuro

Participaccedilatildeo natural ou seja ocasionada automaticamente pelo lugar nascimento profissatildeo

meio (Weil 19492001 p 43)

Destaca-se a construccedilatildeo de um pensamento criacutetico atraveacutes de encontros na escola do

campo e eventos dos quais os(as) jovens participam Os(as) colaboradores(as) Aldo e Izabel

moram na mesma comunidade vizinha ao assentamento a qual natildeo tem uniatildeo comunitaacuteria

tendo sentimentos isolados familiares de raiva impotecircncia e revolta contra a implantaccedilatildeo da

induacutestria eoacutelica A segregaccedilatildeo comunitaacuteria ameaccedila os modos de vida tradicionais e no caso a

possibilidade de continuar a morar no local como fala Izabel Seus moradores tecircm buscado

superar o isolamento ao se inteirar sobre as respostas que outras comunidades tecircm tomado de

forma a atuar com apoio coletivo por exemplo atraveacutes de audiecircncias puacuteblicas e seminaacuterios

promovidos por uma ONG que atua na regiatildeo visando agrave conscientizaccedilatildeo sobre as ameaccedilas aos

povos do mar e buscando informaccedilotildees na escola do campo e de grupos religiosos

Nas vivecircncias dos(as) jovens da escola do campo a continuidade dos estudos apoacutes o

Ensino Meacutedio foi considerada importante possivelmente pelo incentivo da proacutepria escola Um

dificultador para continuidade dos estudos mencionado foi ter de morar em outra cidade

Ao ocupar um lugar instaacutevel de poder a partir do qual seja possiacutevel planejar e controlar

o futuro uma das colaboradoras Beatriz age taticamente pensando somente no presente sem

pensar no futuro conforme definiccedilatildeo de taacutetica de Certeau (19902013)

Mesmo quando pensam em se formar em outras cidades e atuar em aacutereas diferentes de

seus pais pensam no retorno e na possiacutevel contribuiccedilatildeo que poderatildeo trazer para sua

comunidade a qual consideram extensatildeo de sua casa no sentido que Gonccedilalves Filho (1998b)

traz

A casa humana recolhe uma coleccedilatildeo de objetos que nos ligam ao passado da famiacutelia satildeo

retratos panos livros algum adorno moacuteveis muitas vezes recebidos dos pais dos avoacutes objetos

que carregam histoacuterias e fazem com que o morador se enraize mais aleacutem da natureza tambeacutem

no mundo dos seus ancestrais ligando o homem a outros homens que o precederam e que o

164

abrigaram Estar em casa eacute estar nos outros eacute estar em si mesmo estando nos outros (Gonccedilalves

Filho 1998b p 3)

Segundo revisatildeo bibliograacutefica realizada por Castro (2016) pesquisas recentes tinham

evidenciado movimentos de permanecircncia e de migraccedilatildeo de retorno de jovens do campo

brasileiro o que foi associado agraves poliacuteticas puacuteblicas criadas a partir dos anos 2000 A migraccedilatildeo

pode ser compreendida como circulaccedilatildeo fenocircmeno complexo ancorado em diversos motivos

como dar continuidade aos estudos atuar em trabalhos temporaacuterios e aproveitar formas de lazer

Nesta pesquisa foi perguntado aos(agraves) jovens sobre o que imaginavam que poderia

melhorar dentro da comunidade Foi mencionada a estrutura dos pequenos negoacutecios locais de

forma a aumentar os ganhos financeiros e gerar mais empregos Por exemplo uma das jovens

colaboradoras Beatriz mencionou a necessidade de haver condiccedilotildees estruturais para que se

possa realizar a pesca artesanal e o plantio do caju em relaccedilatildeo direta com o consumidor

Consideraccedilotildees finais

A maioria dos(as) jovens com os quais se conviveu apresenta forte ligaccedilatildeo com o local

onde mora pela convivecircncia com seus familiares vizinhos(as) e a organizaccedilatildeo do cotidiano

permeada pela religiosidade Mantecircm haacutebitos ligados agraves ruralidades como plantaccedilotildees pesca e

a farinhada Os(as) jovens querem se manter no local onde estatildeo e quando se imaginam no

futuro almejam ter outros modos de vida trabalhar em profissotildees diferentes dos seus pais ter

mais estudos e maior renda

Essa ligaccedilatildeo com o local onde moram e com seus(suas) moradores(as) natildeo se realiza

sem contradiccedilotildees e tensionamentos entre geraccedilotildees principalmente pelas relaccedilotildees de poder

estabelecidas Na escola do campo particularmente essas relaccedilotildees eram demonstradas pelos

conflitos entre o corpo docente membros da direccedilatildeo funcionaacuterios(as) e estudantes os quais

expressavam as limitaccedilotildees da organizaccedilatildeo hieraacuterquica escolar Trata-se de relaccedilotildees complexas

ser morador(a) e militante da comunidade e exercer funccedilotildees subalternas dentro da escola

quando se lutou tanto para natildeo ser subalterno(a) Haacute dificuldades para que todos(as) tenham

direito agrave expressatildeo de forma igual de maneira democraacutetica em uma educaccedilatildeo libertadora na

qual cada um possa ser respeitado em sua singularidade dentro de uma sociedade de classes

na qual quem tem maior possibilidade de formaccedilatildeo eacute mais valorizado e os(as) jovens satildeo pouco

ouvidos(as) em seus anseios Observa-se que essa dificuldade para construccedilatildeo de espaccedilos

democraacuteticos tambeacutem foi analisada por Paul Singer (2002) em grupos que realizam atividades

165

de economia solidaacuteria Eacute um horizonte a ser buscado dentro de uma sociedade capitalista

dividida em classes sociais

Destaca-se que a existecircncia dessa escola dentro do assentamento eacute fruto de uma luta da

proacutepria comunidade juntamente com o MST o que favorece que seus jovens possam manter

os estudos ateacute o Ensino Meacutedio o que eacute um diferencial em relaccedilatildeo a outros assentamentos Sua

formaccedilatildeo possibilita a construccedilatildeo de um pensamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave sociedade atraveacutes de

problematizaccedilotildees de temas poliacuteticos atuais e a valorizaccedilatildeo de aspectos da sua proacutepria cultura

como conhecer o histoacuterico da comunidade realizar bordados e cordeacuteis Esses aspectos da

cultura costumam ser desvalorizados pelos(as) proacuteprios(as) jovens o que expressa a situaccedilatildeo

de humilhaccedilatildeo social de quem mora no campo e nas aacutereas marginalizadas em relaccedilatildeo aos

grandes centros localizados principalmente no eixo Rio-Satildeo Paulo Essa escola do campo

portanto tem possibilitado a construccedilatildeo de respostas coletivas agrave situaccedilatildeo de humilhaccedilatildeo social

sofrida pelos jovens ampliando seus horizontes para aleacutem dos padrotildees hegemocircnicos de uma

elite branca e urbana

Assim finaliza-se este capiacutetulo registrando-se a importacircncia de poliacuteticas puacuteblicas

voltadas para as pessoas do campo particularmente a juventude no caso especiacutefico deste

assentamento para enriquecer sua formaccedilatildeo profissional e poliacutetica essas poliacuteticas favoreceram

que jovens almejassem cursar o ensino superior de maneira a contribuir com seus

conhecimentos para o assentamento Aleacutem disso analisando-se as restriccedilotildees existentes

destaca-se a necessidade de que haja maior investimento puacuteblico para que os(as) jovens possam

ter garantidos direitos baacutesicos como sauacutede e um trabalho com dignidade

Esta pesquisa apresentou possibilidades de uma comunidade com uma organizaccedilatildeo

coletiva que diante dos conflitos e dificuldades enfrentados luta para superar a desigualdade e

as injusticcedilas inerentes ao capitalismo Essa comunidade resistiu agrave implantaccedilatildeo da induacutestria de

energia eoacutelica construiu a Escola de Ensino Meacutedio do campo Nazareacute Flor com recursos do

governo federal dentro do proacuteprio assentamento com profissionais preferencialmente da

proacutepria comunidade Essas conquistas satildeo inspiraccedilatildeo para todas e todos noacutes especialmente

neste momento poliacutetico difiacutecil para o paiacutes

Vejam bem caros ouvintes

Como termino a histoacuteria

Natildeo haacute conquista sem luta

Natildeo haacute luta sem vitoacuteria

Natildeo haacute guerra sem batalha

Agraves vezes a mente falha

Mas guarde isso na memoacuteria

Maria da Paz militante do Assentamento Maceioacute (Santos [sd])

166

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168

Capiacutetulo 9

O Programa Mais Educaccedilatildeo e a produccedilatildeo de uma subjetividade aprendiz

Patriacutecia Peixoto Zapletal

Adriana Marcondes Machado

Introduccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre psicologia e educaccedilatildeo tem tomado o cotidiano escolar como objeto de

anaacutelise e de praacutetica dos psicoacutelogos Os discursos das poliacuteticas puacuteblicas constitutivos desse

cotidiano tendem a efeitos de naturalizaccedilatildeo sobre os atores do mundo escolar quando

desconsideram as formas de governo presentes nos processos de subjetivaccedilatildeo

Este texto1 daacute relevo agraves concepccedilotildees presentes na formulaccedilatildeo do Programa Mais

Educaccedilatildeo (Brasil 2010) com vistas a interrogar o lugar de uma estrateacutegia recente de ampliaccedilatildeo

da jornada das escolas puacuteblicas brasileiras Partimos da premissa trazida por autores inscritos

no campo dos estudos foucaultianos em educaccedilatildeo de que haveria um espraiamento de

processos de pedagogizaccedilatildeo da vida na contemporaneidade (Aquino 2013 Ball 2013 Simons

amp Masschelein 2011) que se referem a uma forma de gestatildeo social apoiada no discurso de

defesa de uma aprendizagem ininterrupta que instiga um intenso autogoverno dos cidadatildeos

Tomando como alvo analiacutetico o Programa Mais Educaccedilatildeo ndash uma difundida estrateacutegia

indutora de ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos estudantes das escolas puacuteblicas brasileiras

seja nas escolas seja em atividades escolares promovida pelo Governo Federal de 2007 a 2016

ndash este trabalho problematiza discursos referentes a esse Programa A partir do aporte teoacuterico

de Foucault (2004 2008a 2008b) especialmente de um de seus operadores analiacuteticos ndash a

governamentalidade ndash compreende-se que governar se refere a um continuum que se estende

do governo poliacutetico ateacute as formas de autorregulaccedilatildeo Faz parte da estrateacutegia neoliberal de

governo o desenvolvimento de teacutecnicas indiretas para controlar os indiviacuteduos tornando-os

responsaacuteveis pelos riscos sociais Por meio da anaacutelise dos documentos oficiais que materializam

e regulamentam o Programa Mais Educaccedilatildeo e de entrevistas com equipes teacutecnicas responsaacuteveis

1 Essa discussatildeo estaacute presente na dissertaccedilatildeo de mestrado de Patriacutecia Peixoto Zapletal intitulada Ampliaccedilatildeo da

jornada escolar mais aprendizagem de quecirc defendida em fevereiro de 2017 na Faculdade de Educaccedilatildeo da

Universidade de Satildeo Paulo sob orientaccedilatildeo da profa Dra Adriana Marcondes Machado (professora do Instituto

de Psicologia da USP Departamento da Aprendizagem Desenvolvimento e Personalidade ndash PSA)

169

pela sua implantaccedilatildeo tanto no niacutevel do municiacutepio e do estado de Satildeo Paulo quanto no federal

este texto tem como objetivo investigar como tal forma de governo estaacute presente no Programa

Percebe-se que a noccedilatildeo de governamentalidade tomada neste trabalho como ferramenta

analiacutetica auxilia na compreensatildeo da racionalidade governamentalizadora operada por meio de

praacuteticas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar dos alunos da rede puacuteblica brasileira como o Programa

Mais Educaccedilatildeo campo de investigaccedilatildeo deste estudo

1 O cenaacuterio do alargamento das funccedilotildees da instituiccedilatildeo escolar na contemporaneidade

Amplas reformas educacionais foram realizadas pelo governo brasileiro a partir dos

anos 1990 Elas abrangeram distintas dimensotildees do sistema de ensino legislaccedilatildeo

planejamento gestatildeo educacional financiamento curriacuteculo e formaccedilatildeo de professores (Noma

2010) e foram influenciadas por agecircncias multilaterais como Banco Mundial (BM)

Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura (Unesco) Organizaccedilatildeo

para a Cooperaccedilatildeo e Desenvolvimento Econocircmico (OCDE) Programa das Naccedilotildees Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD) entre outras (Shiroma Campos amp Garcia 2005) Essas reformas

fariam parte de um movimento internacional que segundo Noma (2010) propotildee a diminuiccedilatildeo

das desigualdades sociais nacionais e internacionais pelas vias educacionais

Os inuacutemeros projetos elaborados pelas mais variadas instituiccedilotildees organizaccedilotildees natildeo

governamentais secretarias de governo e sociedade civil de que a escola puacuteblica brasileira tem

sido alvo na atualidade parecem destacar o fortalecimento dessa instituiccedilatildeo como um loacutecus

privilegiado para o gerenciamento do risco social (Klaus 2009)

Os estudos de Saraiva (2013) tambeacutem apontam nessa direccedilatildeo ao mostrar que a

Educaccedilatildeo Baacutesica no Brasil vem sendo convocada a participar dos novos modos de lidar com o

risco demandados pela racionalidade poliacutetica atual A autora afirma que as teacutecnicas de

gerenciamento de riscos das populaccedilotildees vecircm sendo deslocadas para o gerenciamento privado

de risco que traz o imperativo de que cada um cuide de si e a responsabilizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

por todo tipo de risco Nessa matriz de inteligibilidade as intervenccedilotildees deixariam de ser sobre

os indiviacuteduos ou sobre o meio onde a populaccedilatildeo vive mas sobre as subjetividades Dessa forma

os esforccedilos seriam concentrados ldquonatildeo em accedilotildees de proteccedilatildeo da populaccedilatildeo mas em accedilotildees

educacionais utilizando para isso principalmente a miacutedia e as escolasrdquo (Saraiva 2013 p 171

grifos nossos)

170

As escolas estariam sendo instadas a alargarem suas funccedilotildees no sentido de assumirem a

tarefa de desenvolver competecircncias para tornar os alunos gestores privados dos seus riscos e

eventualmente dos riscos de sua famiacutelia e comunidade Para a autora isso pode ser evidenciado

na ecircnfase que vem sendo dada ao papel da escola para trabalhar no curriacuteculo temaacuteticas como

ldquoeducaccedilatildeo sexual educaccedilatildeo alimentar educaccedilatildeo em sauacutede educaccedilatildeo para o

empreendedorismo educaccedilatildeo financeira educaccedilatildeo para o tracircnsitordquo (Saraiva 2013 p 171)

Os novos contornos que a instituiccedilatildeo escola vem assumindo tambeacutem podem ser

constatados a partir do acompanhamento nos uacuteltimos anos dos deslocamentos dos discursos

sobre poliacutetica educacional presentes em publicaccedilotildees de organismos nacionais e internacionais

Shiroma Campos e Garcia (2005) ressaltam que a literatura derivada de pesquisas comparativas

sobre poliacutetica educacional indica uma crescente hegemonia discursiva das poliacuteticas

educacionais em niacutevel mundial Os autores a partir do acompanhamento sistemaacutetico de

publicaccedilotildees nacionais e internacionais nos uacuteltimos anos evidenciaram que no iniacutecio dos anos

1990 predominavam nos discursos de poliacutetica educacional argumentos a favor da ldquoqualidade

competitividade produtividade eficiecircncia e eficaacuteciardquo (Shiroma et al 2005 p 428) Esses

argumentos teriam sido deslocados para uma face mais humanitaacuteria evidenciada numa

crescente ecircnfase sobre os conceitos de ldquojusticcedila equidade coesatildeo social inclusatildeo

empowerment oportunidade e seguranccedilardquo (Shiroma et al 2005 p 428)

Vocaacutebulos como monitorar gerenciar e avaliar tiacutepicos do mundo dos negoacutecios e cada

vez mais presentes nos documentos oficiais das reformas educacionais tambeacutem evidenciam

para os autores que paulatinamente os problemas educacionais passam a ser explicitados

como problemas de gestatildeo da educaccedilatildeo ou seja de maacute administraccedilatildeo (Shiroma et al 2005)

Essa forma de compreender os problemas educacionais como problemas de

gerenciamento tambeacutem parece contribuir para que a ampliaccedilatildeo da jornada escolar e das funccedilotildees

da escola ocorra Eacute frequente no cenaacuterio educacional brasileiro os governos enfatizarem a

necessidade de uma nova gestatildeo escolar ou seja uma gestatildeo compartilhada indicando a

importacircncia da participaccedilatildeo da comunidade Essa nova forma de gerenciamento compartilhado

da educaccedilatildeo a partir da participaccedilatildeo da sociedade civil faz emergir variados projetos que

teriam a escola como um local oacutetimo para pocirc-los em praacutetica decorrendo daiacute como tambeacutem

percebe Klaus (2009) um alargamento das funccedilotildees dessa instituiccedilatildeo

Na deacutecada de 1990 assistiu-se no Brasil conforme relembra Krawczyk (2014) agrave

pressatildeo de organismos internacionais e do Executivo nacional para que o empresariado

brasileiro assumisse poliacuteticas sociais a fim de se responsabilizar pelo bem-estar da populaccedilatildeo

171

entre essas poliacuteticas o Programa Comunidade Solidaacuteria presidido pela entatildeo primeira-dama

Ruth Cardoso funcionou como ponta de lanccedila Esse programa teve como objetivo otimizar o

gerenciamento de um conjunto de programas sociais por meio da participaccedilatildeo da sociedade

civil no combate agrave pobreza Assim conforme assinala Krawczyk (2014) figuras juriacutedicas da

sociedade civil na prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos comeccedilam a surgir e por meio de parcerias

complementam o orccedilamento puacuteblico

Variados programas e projetos educacionais atualmente elaborados pelos governos

municipal estadual e federal brasileiros tambeacutem tecircm sido operacionalizados por meio de

parcerias com organizaccedilotildees natildeo governamentais (ONGs) instituiccedilotildees da sociedade civil e

empresas evidenciando a desestatizaccedilatildeo da educaccedilatildeo e o deslocamento da ecircnfase de uma

dimensatildeo puacuteblica estatal para a dimensatildeo puacuteblica natildeo estatal

Nota-se juntamente com Popkewitz (2001) o quanto sedutora a noccedilatildeo de parceria tem

se tornado e que esta conforme explicita o autor seria um dos temas redentores da

contemporaneidade Essa noccedilatildeo aparece como uma forma de renovaccedilatildeo do bem-estar social por

meio de accedilotildees civis em que os que estariam diretamente envolvidos com problemas locais

poderiam agir efetivamente No entanto Popkewitz (2001) ressalta que a ideia de parceria e de

participaccedilatildeo da comunidade natildeo pode ser pensada como puro princiacutepio abstrato apartado das

praacuteticas sociais Os discursos presentes nas reformas educacionais atuais que clamam por

mudanccedilas na gestatildeo escolar e primam por uma nova democratizaccedilatildeo da escola estariam

articulados com praacuteticas que produzem sujeitos com habilidades particulares pragmaacuteticos

empreendedores reflexivos autocircnomos e aprendizes permanentes que buscam realizar a si

mesmos por meio de suas escolhas

A partir do exposto evidencia-se que as recentes reconfiguraccedilotildees pelas quais a escola

puacuteblica brasileira vem passando a partir de alguns fenocircmenos interligados tais como loacutegica da

empresa desestatizaccedilatildeo da educaccedilatildeo parcerias e privatizaccedilatildeo do risco social acontecem num

momento histoacuterico em que se opera nos termos de Foucault (2008a 2008b) o neoliberalismo

como racionalidade governamental Essa forma de liberalismo vem sendo ressignificada desde

a deacutecada de 1980 e apresenta mudanccedilas em relaccedilatildeo ao liberalismo concebido no seacuteculo XVIII

(Saraiva amp Veiga-Neto 2009)

Na esteira de Foucault Saraiva e Veiga-Neto (2009) assinalam um dos deslocamentos

marcantes e que interessa ressaltar para este estudo entre o liberalismo e o neoliberalismo

Segundo os autores no liberalismo a liberdade de mercado era entendida como algo natural

ou seja a regulaccedilatildeo do mercado e do proacuteprio Estado seria determinada pelo livre mercado Jaacute

172

na governamentalidade neoliberal cujo princiacutepio de inteligibilidade eacute a maximizaccedilatildeo da

competiccedilatildeo haacute intervenccedilatildeo do Estado para prover condiccedilotildees miacutenimas para que todos possam

entrar no jogo do mercado ou ainda para ldquoproduzir liberdade para que todos possam estar no

jogo econocircmicordquo (Saraiva amp Veiga-Neto 2009 p 189)

Para garantir que todos possam se manter no jogo neoliberal Lopes (2013) afirma que

seria necessaacuterio educar a populaccedilatildeo para que esta possa integrar essa nova forma de vida ldquoque

exige de cada indiviacuteduo dedicaccedilatildeo e constante busca de formaccedilatildeo para poder empreender-serdquo

(Lopes 2013 p 296) Na perspectiva de Lopes (2013) as muitas estrateacutegias de governamento

que satildeo vistas hoje em operaccedilatildeo sobre a populaccedilatildeo em especial sobre aqueles segmentos

considerados de risco seriam investimentos que nas palavras da autora primam ldquotanto pelas

accedilotildees de proteccedilatildeo social quanto pelas accedilotildees de autogovernogovernamentordquo (Lopes 2013 p

296)

Percebe-se portanto que eacute no contexto dessa maneira de investir sobre as condiccedilotildees de

vida da populaccedilatildeo que precisam ser compreendidas as variadas estrateacutegias utilizadas pelos

paiacuteses a fim de reordenar as poliacuteticas educacionais para atender as populaccedilotildees denominadas

em situaccedilatildeo de vulnerabilidade e risco social Entre essas estrateacutegias estariam o aumento da

escolarizaccedilatildeo obrigatoacuteria e a ampliaccedilatildeo da jornada escolar que conforme destaca Perrude

(2013) vecircm sendo no Brasil ldquorecomendadas pelos oacutergatildeos puacuteblicos normatizadas pela

legislaccedilatildeo discutidas nas produccedilotildees acadecircmicas e tambeacutem sugeridas e apontadas como praacuteticas

pedagoacutegicas lsquoinovadorasrsquordquo (Perrude 2013 p 29)

Os debates em torno das propostas de escolas puacuteblicas de tempo integral reanimam-se

no Brasil ao longo dos anos 20002 e elas satildeo apontadas como instrumento indispensaacutevel para a

qualidade educacional Ao percorrer a legislaccedilatildeo3 que ampara a ampliaccedilatildeo da jornada escolar

evidencia-se a intenccedilatildeo do governo de expansatildeo das escolas de tempo integral com atenccedilatildeo

especial agraves ldquocamadas sociais mais necessitadasrdquo (Brasil 2001)

Uma das propostas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar que ganhou espaccedilo nos uacuteltimos anos

nas escolas puacuteblicas brasileiras eacute o Programa Mais Educaccedilatildeo Esse Programa incidiu no acircmbito

do Ensino Fundamental como um modelo de extensatildeo da jornada escolar e das funccedilotildees

2 Ainda que a defesa da escola puacuteblica de tempo integral tenha sido feita por Aniacutesio Teixeira na deacutecada de 1930

a expansatildeo das propostas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar ocorreria apoacutes a promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e

Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) em 1996 3 Menezes (2009) e Coelho e Menezes (2007) apresentam detalhada anaacutelise sobre o que dizem os documentos

legais apoacutes a Constituiccedilatildeo de 1988 acerca do tempo na escola e dos avanccedilos normativos em relaccedilatildeo ao Ensino

Fundamental em tempo integral no ordenamento constitucional

173

escolares pelo Paiacutes Por meio dos nuacutemeros do Censo Escolar4 (2010 2011 2012 2013 2014

2015) eacute possiacutevel acompanhar o aumento de alunos no ensino de tempo integral e o impacto do

Programa na expansatildeo dessas experiecircncias5

2 Poliacuteticas de inclusatildeo nos governos FHC e Lula e o investimento em mais educaccedilatildeo

A emergecircncia do movimento de inclusatildeo escolar no Brasil eacute evidenciada por Lopes e

Rech (2013) na deacutecada de 1990 quando a palavra inclusatildeo passou a ser utilizada de maneira

sutil em materiais e programas elaborados pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) As propostas

de inclusatildeo empreendidas pelo Paiacutes que era entatildeo presidido por Fernando Henrique Cardoso

(FHC) viriam ao encontro das metas estabelecidas pela Conferecircncia Mundial sobre Educaccedilatildeo

para Todos realizada na Tailacircndia em 1990 e pela Conferecircncia Mundial em Educaccedilatildeo

Especial ocorrida em Salamanca na Espanha em 1994

Com a necessidade de educar a todos as estrateacutegias criadas no decorrer dos governos

de FHC a fim de promover a inclusatildeo escolar ganhariam diferentes espaccedilos ultrapassando o

acircmbito escolar Lopes e Rech (2013) apontam que foram criados variados programas sociais

assistenciais que vinculavam o envio e a manutenccedilatildeo das crianccedilas em idade escolar obrigatoacuteria

ao recebimento de bolsas Entre os mais difundidos no periacuteodo destaca-se o Programa Bolsa

Escola6 O governo FHC teria encontrado conforme afirmam as autoras um meio de modificar

consideravelmente os iacutendices de evasatildeo e repetecircncia escolar ao recompensar as famiacutelias que

mantivessem seus filhos na escola

A instituiccedilatildeo de outros programas de transferecircncia monetaacuteria ndash aleacutem do Programa Bolsa

Escola ndash tais como o Programa de Erradicaccedilatildeo do Trabalho Infantil (Peti) o Bolsa-

Alimentaccedilatildeo e o Auxiacutelio-Gaacutes e o uso da educaccedilatildeo puacuteblica para viabilizar a implantaccedilatildeo e

4 O Censo Escolar eacute um levantamento de dados estatiacutestico-educacionais de acircmbito nacional realizado todos os

anos e coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Aniacutesio Teixeira (Inep) Ele eacute feito

com a colaboraccedilatildeo das secretarias estaduais e municipais de Educaccedilatildeo e com a participaccedilatildeo de todas as escolas

puacuteblicas e privadas do Paiacutes Trata-se do principal instrumento de coleta de informaccedilotildees da Educaccedilatildeo Baacutesica

coletando dados sobre estabelecimentos matriacuteculas funccedilotildees docentes movimento e rendimento escolar Dados

recuperados de httpportalinepgovbrbasica-censo 5 No site do Inep encontra-se a informaccedilatildeo sobre os dados do censo de 2014 em notiacutecia de 11 de fevereiro de

2015 em que o presidente do Instituto evidencia que ldquoA expansatildeo da educaccedilatildeo integral eacute fruto do programa Mais

Educaccedilatildeo desenvolvido pelo MEC por meio do qual satildeo transferidos recursos agraves escolas para manter os alunos

em jornada estendidardquo Dados recuperados de httpportalinepgovbrvisualizar-asset_publisher6AhJcontent

matriculas-em-educacao-integral-apresentam-crescimento-de-41-2redirect=http3a2f2fportalinepgovbr

2f 6 Iniciado em 2001 eram consideradas elegiacuteveis famiacutelias com renda mensal per capita correspondente a meio

salaacuterio miacutenimo que tivessem entre seus membros crianccedilas em idade escolar (6 a 15 anos) Era feito o pagamento

da bolsa de R$ 1500 (valor da eacutepoca) por filho que frequentasse pelo menos 85 das aulas (limitado ao maacuteximo

de trecircs filhos) (Ferro 2007)

174

controle desses programas ocuparam o papel central na abordagem do combate agrave pobreza

adotada no governo Fernando Henrique Cardoso (Algebaile 2009) Esses programas sofreriam

modificaccedilotildees ao longo das duas gestotildees de FHC (19951998 e 19992002) e a partir de 2001

segundo Algebaile (2009) mostraram-se como o eixo da accedilatildeo do Governo Federal no campo

social

A dificuldade de listar com precisatildeo os programas e as accedilotildees daquilo que seria chamado

de reforma educacional praticada durante as gestotildees de Fernando Henrique Cardoso eacute tambeacutem

percebida por Algebaile (2009) ao esclarecer que ela resulta

em primeiro lugar da profusatildeo de ldquoaccedilotildeesrdquo de diferentes portes ldquolanccediladasrdquo sem suficientemente

explicaccedilotildees a respeito de seu efetivo alcance e importacircncia no interior da reforma Em

segundo lugar devido agrave absoluta (e intencional) confusatildeo que caracterizou o processo de

lanccedilamento e implantaccedilatildeo dessas accedilotildees devido agrave expediccedilatildeo de muitas e contraditoacuterias peccedilas

normativas agraves mudanccedilas de nomes dos programas e agrave inclusatildeo de uma mesma accedilatildeo em diversos

programas tornando difiacutecil identificar sua origem definir seus contornos e rastrear seus

desdobramentos (Algebaile 2009 p 271)

Dando continuidade agraves poliacuteticas de inclusatildeo iniciadas no governo FHC ndash que

associariam educaccedilatildeo e assistecircncia social ndash o governo de Luiacutes Inaacutecio ldquoLulardquo da Silva (2003-

2010) embora com concepccedilotildees de governo distintas manteve e ampliou as poliacuteticas e os

programas criados por seu antecessor Lopes e Rech (2013) destacam que os programas criados

no governo Lula aleacutem de terem mantido o caraacuteter assistencialista e neoliberal dos programas

do governo FHC teriam acentuado as accedilotildees de assistecircncia e voluntariado A busca pelo Estado

de investimentos da inciativa privada para as camadas mais pobres da populaccedilatildeo realccedilaria

ainda ldquouma articulaccedilatildeo simbioacutetica entre Estado e mercadordquo (Lopes amp Rech 2013 p 216)

A possiacutevel proximidade em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas de inclusatildeo dos governos FHC e Lula

pode ser explicada pela consonacircncia com certas poliacuteticas mundiais e tambeacutem conforme

sublinham Lopes e Rech (2013) pela constataccedilatildeo de que ambos os governos teriam trabalhado

para inscrever o Brasil entre aqueles paiacuteses em condiccedilotildees de se desenvolver Qualquer governo

que estivesse agrave frente do paiacutes com esse objetivo ldquoseria avaliado pela disposiccedilatildeo mundial de

fazer da educaccedilatildeo uma das maiores tecnologias para a governamentalidaderdquo (Lopes amp Rech

2013 p 216)

Portanto eacute no contexto dos investimentos governamentais no campo da educaccedilatildeo e da

assistecircncia social que o Programa federal Mais Educaccedilatildeo foi criado no iniacutecio da segunda gestatildeo

do governo Lula e continuou sendo desenvolvido no governo Dilma Rousseff (2011-2014) O

segundo governo Lula (2007-2010) foi marcado pela criaccedilatildeo de uma diversidade de programas

175

educacionais que teriam como bandeira a educaccedilatildeo de qualidade com o fim de permitir a

inserccedilatildeo do paiacutes na economia mundial

O lanccedilamento feito pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) do Plano de Desenvolvimento

da Educaccedilatildeo (PDE)7 (Brasil 2007) no ano de 2007 demonstra a ampliaccedilatildeo do nuacutemero de accedilotildees

educacionais Esse Plano foi criado com o intuito de enfrentar o problema da qualidade do

ensino ministrado nas escolas de Educaccedilatildeo Baacutesica do Paiacutes Na sua origem o PDE agregou 30

accedilotildees que cobrem a Educaccedilatildeo Baacutesica e Superior e as modalidades de ensino Educaccedilatildeo de

Jovens e Adultos Educaccedilatildeo Especial e Educaccedilatildeo Profissional e Tecnoloacutegica

Compreendido por Saviani (2009) como um ldquogrande guarda-chuvardquo (Saviani 2009 p

5) o Plano de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (PDE) (Brasil 2007) abriga quase todos os

programas em desenvolvimento pelo MEC O Plano surgiu na circunstacircncia do lanccedilamento do

Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC)8 desenvolvido pelo Governo Federal Cada

ministeacuterio foi solicitado a indicar accedilotildees que se enquadrariam no referido Programa O

Ministeacuterio da Educaccedilatildeo lanccedilou entatildeo o Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb)9

e a ele atrelou diversas accedilotildees que jaacute se encontravam na pauta do MEC (Saviani 2009)

Incluso no PDE (Brasil 2007) como um programa do eixo da Educaccedilatildeo Baacutesica o

Programa Mais Educaccedilatildeo10 foi regulamentado pelo Decreto nordm 7083 de 27 de janeiro de 2010

com a finalidade de ldquocontribuir para a melhoria da aprendizagem por meio da ampliaccedilatildeo do

tempo de permanecircncia de crianccedilas adolescentes e jovens matriculados em escola puacuteblica

mediante oferta de educaccedilatildeo baacutesica em tempo integralrdquo (Brasil 2010)

Embora o Programa tenha sido lanccedilado em 2007 a ampliaccedilatildeo da jornada escolar jaacute era

prevista no art 34 da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (Lei nordm 939496) (Brasil

1996) que determina a progressiva ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos alunos na escola

7 O dispositivo legal que potildee em vigecircncia o Plano eacute o Decreto nordm 6094 de 24 de abril de 2007 ndash promulgado na

proacutepria data do lanccedilamento do PDE ndash que institui o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educaccedilatildeo (Saviani

2009) 8 Criado em 2007 o Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) promoveu a retomada do planejamento e

execuccedilatildeo de grandes obras de infraestrutura social urbana logiacutestica e energeacutetica do paiacutes Informaccedilotildees recuperadas

de httpwwwpacgovbrsobre-o-pac 9 O Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) foi criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos

e Pesquisas Educacionais Aniacutesio Teixeira (Inep) Foi formulado para medir a qualidade do aprendizado nacional

e estabelecer metas para a melhoria do ensino O Ideb eacute uma combinaccedilatildeo de percentuais de aprovaccedilatildeo com

proficiecircncia em liacutengua portuguesa e matemaacutetica As meacutedias de desempenho utilizadas satildeo as da Prova Brasil para

escolas e municiacutepios e do Sistema de Avaliaccedilatildeo da Educaccedilatildeo Baacutesica (Saeb) para os estados e o Paiacutes realizados

a cada dois anos As metas estabelecidas pelo Ideb satildeo diferenciadas para cada escola e rede de ensino com o

objetivo uacutenico de alcanccedilar seis pontos ateacute 2022 meacutedia correspondente ao sistema educacional dos paiacuteses

desenvolvidos Informaccedilotildees recuperadas de httpportalmecgovbrindexphpItemid=336 10 O Programa Mais Educaccedilatildeo foi instituiacutedo por meio da Portaria Interministerial nordm 17 em 2007 envolvendo os

seguintes Ministeacuterios Educaccedilatildeo Cultura Esporte e Desenvolvimento Social e Combate agrave Fome

176

e no Plano Nacional de Educaccedilatildeo (PNE) 2001-2010 O novo Plano Nacional de Educaccedilatildeo 2014-

2024 reafirma a intenccedilatildeo do Estado de ampliaccedilatildeo da jornada escolar e apresenta ainda uma

meta especiacutefica que trata da oferta da educaccedilatildeo em tempo integral ldquoOferecer educaccedilatildeo em

tempo integral em no miacutenimo 50 (cinquenta por cento) das escolas puacuteblicas de forma a

atender pelo menos 25 (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educaccedilatildeo baacutesicardquo

(Brasil 2014)

Inicialmente o Programa Mais Educaccedilatildeo atuou nas capitais nas regiotildees metropolitanas

e em territoacuterios de vulnerabilidade social Em 2012 as escolas do campo foram incluiacutedas E a

partir de 2013 escolas localizadas em todos os municiacutepios do Paiacutes que tecircm um baixo Iacutendice de

Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) ndash aleacutem de outros criteacuterios estabelecidos a cada

ano11 ndash foram consideradas elegiacuteveis para participar do Programa12 O Programa se fez presente

em todos estados brasileiros e no Distrito Federal em 2014 e a evoluccedilatildeo do nuacutemero de escolas

participantes foi crescente de 2008 a 201413

Concebido com o intuito de promover uma ldquoaccedilatildeo intersetorial entre as poliacuteticas puacuteblicas

educacionais e sociaisrdquo (Brasil 2014 p 4) os documentos oficiais normativos do Programa

Mais Educaccedilatildeo evidenciam que para enfrentar a situaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade e risco a que

estatildeo submetidas parcelas consideraacuteveis de crianccedilas adolescentes e jovens e suas famiacuteliasrdquo

(Brasil 2007) a escola deve cumprir o desafio de proteger e educar e para isso ldquoa escola puacuteblica

passa a incorporar um conjunto de responsabilidades que natildeo eram vistas como tipicamente

escolares mas que se natildeo estiverem garantidas podem inviabilizar o trabalho pedagoacutegicordquo

(Brasil 2009a p 17)

Ampliando as funccedilotildees da escola o Programa reconhece que as tarefas dos educadores

seratildeo consequentemente alargadas e defende a necessidade de uma ldquoconsistente valorizaccedilatildeo

11 Os dados utilizados na pesquisa foram aqueles disponibilizados ateacute o ano de 2014 pois natildeo foi possiacutevel ter

acesso aos dados do Programa referentes aos anos de 2015 e 2016 12 Em 2014 para as escolas urbanas os criteacuterios de seleccedilatildeo foram 1) Escolas contempladas nos anos anteriores

2) Escolas estaduais municipais eou distrital que foram contempladas com o PDEEscola e que possuam o Ideb

abaixo ou igual a 35 nos anos iniciais eou finais Ideb anos iniciais lt 46 e Ideb anos finais lt 39 3) Escolas

localizadas em todos os municiacutepios do Paiacutes 4) Escolas com iacutendices igual ou superior a 50 de estudantes

participantes do Programa Bolsa Famiacutelia (Brasil 2014) 13 Solicitamos ao coordenador do Programa Mais Educaccedilatildeo no niacutevel federal em julho de 2016 os dados das

escolas participantes do Programa em 2015 mas natildeo obtivemos resposta Ao longo de 2015 o Programa sofreu

com os ajustes fiscais realizados pelo Governo Federal ainda na gestatildeo de Dilma Rousseff Muitas das escolas

que em 2015 se beneficiavam da iniciativa do Mais Educaccedilatildeo tiveram os repasses das verbas referentes a 2014

e 2015 atrasados inviabilizando a continuidade das atividades em diversas escolas pelo Brasil Em 2016 a

expansatildeo do Programa continuou bastante afetada Apoacutes o impeachment da presidente eleita e a entrada do novo

governo o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo encerrou apoacutes nove anos de funcionamento as atividades do Mais Educaccedilatildeo

apresentando entre outros argumentos o fato de que o Paiacutes natildeo alcanccedilou as metas delineadas pelo Iacutendice de

Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) para o Ensino Fundamental entre os anos de 2013 e 2015

177

profissional [dos trabalhadores em educaccedilatildeo] a ser garantida pelos gestores puacuteblicos de modo

a permitir a dedicaccedilatildeo exclusiva e qualificada agrave educaccedilatildeordquo (Brasil 2009a p 39) Entretanto o

Programa parece ter como principal aposta para lidar com esse novo contexto o fomento de

uma outra postura profissional dos educadores que poderia ser adquirida por meio de mais

formaccedilatildeo uma formaccedilatildeo permanente

aos educadores tambeacutem vecircm sendo conferidas tarefas que natildeo lhes competiam haacute algum tempo

atraacutes o que tensiona ainda mais a fraacutegil relaccedilatildeo que se estabelece entre esses profissionais e a

escola como a encontramos hoje Esse conjunto de elementos desafia a uma nova postura

profissional que deve ser construiacuteda por meio de processos formativos permanentes (Brasil

2009a p 17 grifo nossos)

A construccedilatildeo de processos formativos permanentes como forma de solucionar o

acuacutemulo de tarefas de que os educadores tecircm sido encarregados demonstra que o Estado tem

transformado discussotildees poliacuteticas e econocircmicas desafiadoras em problemas relacionados com

a necessidade de mais aprendizagem Ou ainda revelam a forccedila do dispositivo de

aprendizagem (Simons amp Masschelein 2008) no presente que induz a compreensatildeo de

problemas econocircmicos a partir de uma loacutegica educacional Em outras palavras problemas

econocircmicos resultariam de uma falta de investimento em processos de aprendizagem

Em 2014 foram ofertadas para as escolas urbanas por meio do Mais Educaccedilatildeo

atividades distribuiacutedas em sete campos de conhecimento 1) Acompanhamento Pedagoacutegico 2)

Comunicaccedilatildeo Uso de Miacutedias e Cultura Digital e Tecnoloacutegica 3) Cultura Artes e Educaccedilatildeo

Patrimonial 4) Educaccedilatildeo Ambiental Desenvolvimento Sustentaacutevel e Economia Solidaacuteria e

CriativaEducaccedilatildeo Econocircmica (Educaccedilatildeo Financeira e Fiscal) 5) Esporte e Lazer 6) Educaccedilatildeo

em Direitos Humanos 7) Promoccedilatildeo da Sauacutede O Programa sugere que as atividades sejam

realizadas por monitores voluntaacuterios (estudantes em processo de formaccedilatildeo docente estudantes

do Ensino Meacutedio e de Educaccedilatildeo de Jovens a Adultos e pessoas da comunidade local) e

coordenadas por um professor vinculado agrave escola denominado Professor Comunitaacuterio

Percebe-se que ao aderir agrave loacutegica do voluntariado na prestaccedilatildeo dos serviccedilos na escola

o Estado natildeo apenas se exime de arcar com as despesas financeiras desses serviccedilos mas tambeacutem

dispensa a necessidade de serviccedilos especializados A participaccedilatildeo de diferentes atores que

seriam corresponsaacuteveis pela efetivaccedilatildeo do Programa mostra o estiacutemulo a uma cidadania ativa

de que nos falam Simons e Masschelein (2008) Ser cidadatildeo nesse contexto significaria

assumir o compromisso de colaborar com a oferta e manutenccedilatildeo de accedilotildees na escola ndash e de

maneira mais ampla envolvendo-o na resoluccedilatildeo de problemas presentes em sua localidade e na

sociedade de modo a produzir uma cidadania responsaacutevel

178

Os estudos de governamentalidade conforme aponta Lemke (2001) mostram que as

formas neoliberais de governo natildeo levam simplesmente a uma reduccedilatildeo do Estado O Estado

no neoliberalismo assume outras tarefas aleacutem de desenvolver teacutecnicas indiretas para controlar

os indiviacuteduos A reduccedilatildeo nos serviccedilos do Estado estaria associada a um chamado crescente para

a responsabilidade pessoal e o cuidado de si Em outras palavras a responsabilidade ndash no caso

das escolas puacuteblicas pela manutenccedilatildeo das unidades de ensino ndash passa a ser de indiviacuteduos ativos

solucionadores de problemas de modo que nas aacutereas sociais ela se torna uma questatildeo de

provisatildeo pessoal

Por meio da noccedilatildeo de governamentalidade a retirada do Estado presente na agenda

neoliberal pode ser decifrada como uma teacutecnica de governo (Lemke 2001) Assim as reduccedilotildees

nas formas de intervenccedilatildeo do Estado estariam menos relacionadas com a perda por parte do

Estado do poder de regulaccedilatildeo e controle e mais com uma reorganizaccedilatildeo das teacutecnicas de

governo Trata-se de uma mudanccedila da competecircncia regulatoacuteria do Estado para indiviacuteduos

racionais e responsaacuteveis encorajando-os a darem agraves suas vidas uma forma empresarial

especiacutefica

3 A trilogia do Programa Mais Educaccedilatildeo

A perspectiva de educaccedilatildeo integral agrave qual o Mais Educaccedilatildeo se refere eacute especialmente

explicitada em trecircs cadernos produzidos pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo que compotildeem a Seacuterie

Mais Educaccedilatildeo Esses cadernos expotildeem a concepccedilatildeo teoacuterica do Programa e propotildeem-se agrave

ldquoconstruccedilatildeo de um paradigma contemporacircneo de Educaccedilatildeo Integralrdquo (Brasil 2009a p 7) Os

trecircs cadernos14 tecircm objetivos e processos de elaboraccedilatildeo diferentes Publicados no mesmo ano

(2009) natildeo formam uma sequecircncia mas um conjunto complementar que visa a ldquocontribuir para

a conceituaccedilatildeo a operacionalizaccedilatildeo e a implementaccedilatildeo do Programa Mais Educaccedilatildeordquo (Brasil

2009a p 6)

14 O primeiro caderno Educaccedilatildeo Integral (Brasil 2009a) ndash texto referecircncia para o debate nacional ndash foi produzido

por um grupo de trabalho convocado pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e eacute uma produccedilatildeo coletiva que envolveu a

participaccedilatildeo de 29 colaboradores de 17 instituiccedilotildees sociais entre gestores e educadores municipais estaduais e

federais representantes de vaacuterias organizaccedilotildees aleacutem de professores universitaacuterios de cinco universidades puacuteblicas

federais e organizaccedilotildees natildeo governamentais O segundo caderno intitula-se Gestatildeo Intersetorial no Territoacuterio

(Brasil 2009b) e foi elaborado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educaccedilatildeo e Accedilatildeo Comunitaacuteria (Cenpec)

uma organizaccedilatildeo da sociedade civil sem fins lucrativos com sede em Satildeo Paulo (capital) Jaacute a publicaccedilatildeo Rede de

Saberes Mais Educaccedilatildeo (Brasil 2009c) cujo subtiacutetulo eacute pressupostos para projetos pedagoacutegicos de educaccedilatildeo

integral foi elaborada por um uacutenico autor com a colaboraccedilatildeo da Casa das Artes uma organizaccedilatildeo da sociedade

civil sem fins lucrativos com sede no Rio de Janeiro (capital) e da Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Recife

179

Com o objetivo de compreender o funcionamento do Mais Educaccedilatildeo produziu-se um

material subsidiado na anaacutelise dos trecircs cadernos e em entrevistas feitas para pesquisa de

mestrado (Zepletal 2017) com quatro gestores do Programa um gestor municipal e outro

estadual de Satildeo Paulo e dois gestores federais Os entrevistados foram escolhidos em razatildeo do

conhecimento que tecircm do Programa e por sua imersatildeo no contexto de sua estruturaccedilatildeo e

implantaccedilatildeo As entrevistas foram realizadas em Satildeo Paulo (capital) e Brasiacutelia em janeiro e

fevereiro de 2015 Utilizou-se um roteiro semiestruturado em torno dos seguintes toacutepicos o

papel da ampliaccedilatildeo da jornada escolar de tempo integral o porquecirc do atual investimento do

Governo Federal na ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos alunos nas escolasatividades

escolares e os desafios encontrados na implantaccedilatildeo do Programa As entrevistas foram

transcritas e enviadas aos entrevistados assim como o texto escrito a partir delas Os

entrevistados tambeacutem assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido em que

concordaram em participar como voluntaacuterios da pesquisa15 O material transcrito tornou-se

documento de estudo em nosso trabalho Algumas precauccedilotildees em relaccedilatildeo ao modo de operar

com os discursos com os quais se entrou em contato durante a pesquisa foram tomadas

Partindo de um horizonte no qual as verdades satildeo produzidas pelos discursos e operando

a partir do referencial teoacuterico foucaultiano (Foucault 2005) teve-se como premissa o esforccedilo

para natildeo retratar os sujeitos entrevistados como homogecircneos e a-histoacutericos tampouco

consideraacute-los como fonte original de suas falas ndash uma vez que estas participam de uma rede

discursiva que lhes permite dizer o que dizem do modo como dizem Nesse sentido os modos

de pensar e agir presentes no campo de investigaccedilatildeo natildeo satildeo tratados como fenocircmenos que natildeo

deveriam acontecer A esse respeito Machado (2011) lembra que aquilo que comumente

nomeamos como uma forma equivocada de agir e pensar porta uma positividade pois afirma

uma maneira de ver o mundo sendo portanto efeito de um processo de produccedilatildeo carregando

um sentido engendrado em um campo em que se embatem muacuteltiplas forccedilas

Por meio da anaacutelise dos cadernos e das entrevistas pudemos depreender alguns

enunciados recorrentes que parecem legitimar o Programa Com o propoacutesito de identificar e

analisar tais enunciados foram destacadas trecircs categorias denominadas de (1) escola e vida

(2) diaacutelogo com a comunidade e (3) gestatildeo intersetorial

15 As entrevistas realizadas com os gestores foram feitas a partir da assinatura do termo de consentimento livre e

esclarecido mas natildeo passou pelo Comitecirc de Eacutetica pois a Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade de Satildeo Paulo

(USP) natildeo requer passar nesse comitecirc quando se trata de entrevistas

180

31 Escola e vida

Entre as principais orientaccedilotildees do Mais Educaccedilatildeo encontram-se os discursos que

enfatizam a necessidade de uma reaproximaccedilatildeo entre escola e vida embora natildeo seja explicitado

qual o entendimento sobre essa noccedilatildeo Infere-se que a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre escola e

vida seria aleacutem da ampliaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos de educaccedilatildeo a ideia de uma escola que

funcionasse como uma ldquocomunidade de aprendizagemrdquo (Brasil 2009a p 31) onde diferentes

atores constroem um projeto educativo e cultural e reconhecem que

todos os espaccedilos satildeo educadores ndash toda a comunidade e a cidade com seus museus igrejas

monumentos locais como ruas e praccedilas lojas e diferentes locaccedilotildees ndash cabendo agrave escola articular

projetos comuns para sua utilizaccedilatildeo e fruiccedilatildeo considerando espaccedilos tempos sujeitos e objetos

do conhecimento (Brasil 2009a p 35)

Nota-se aqui a articulaccedilatildeo dos discursos do Programa com a proposta internacional de

cidade educadora Conforme afirma o Programa a educaccedilatildeo ldquonatildeo se realiza somente na escola

mas em todo um territoacuterio e deve expressar um projeto comunitaacuterio A cidade eacute compreendida

como educadora como territoacuterio pleno de experiecircncias de vida e instigador de interpretaccedilatildeo e

transformaccedilatildeordquo (Brasil 2009c p 31)

O coordenador do Mais Educaccedilatildeo no niacutevel municipal de Satildeo Paulo corrobora essa ideia

ao apontar que a possibilidade do uso de outros espaccedilos educativos presentes na comunidade

local em que as escolas estatildeo inseridas propiciaria uma via para que as atividades diversificadas

ofertadas fugissem do ldquomais do mesmordquo

A presenccedila ndash tanto nos documentos analisados que normatizam o Programa Mais

Educaccedilatildeo como nas entrevistas com os gestores do Programa ndash da ideia notavelmente repetida

de que ldquotodos os espaccedilos satildeo educadoresrdquo chama atenccedilatildeo Essa ideia remete agrave constataccedilatildeo jaacute

apontada por alguns autores de que estariacuteamos vivendo numa sociedade que pretende assegurar

que todos os tempos e espaccedilos sejam pedagogizados uma sociedade ldquototalmente

pedagogizadardquo (Ball 2013) Tal sociedade instiga a compreender a vida como podendo ser

medida e racionalizada como resultado de escolhas feitas ou a serem feitas As praacuteticas

contemporacircneas de subjetivaccedilatildeo alerta Rose (2001) produzem um ser com um projeto de

identidade e de estilo de vida e que entende que a vida tem sentido se construiacuteda como resultado

de escolha pessoal

A ideia de que por meio do Mais Educaccedilatildeo e das diversas atividades ofertadas pelo

Programa aos alunos eles poderiam ter maior possibilidade de fazer escolhas e por

conseguinte teriam maior liberdade individual eacute bastante presente nos cadernos analisados e

181

nos discursos sobre os possiacuteveis efeitos do Programa Tal ideia remete a uma noccedilatildeo de liberdade

compreendida como soberania de uma vontade ou escolha pessoal

No entanto ao pensar a noccedilatildeo de liberdade nas coordenadas da governamentalidade

esta lembra Aquino (2013) natildeo pode ser confundida com uma liberdade intimizada como

empresariamento de si ou como autorregulatoacuteria pois o exerciacutecio da liberdade natildeo se opotildee ao

poder mas a liberdade joga ldquocom o poder na proacutepria superfiacutecie dos acontecimentos cotidianosrdquo

(Aquino 2013 p 207)

32 Diaacutelogo com a comunidade

A segunda categoria de anaacutelise que se destaca a partir da leitura dos documentos que

normatizam o Programa e das entrevistas realizadas eacute designada aqui de diaacutelogo com a

comunidade Satildeo recorrentes nos cadernos analisados discursos que afirmam a necessidade de

se enfrentar a distacircncia que caracterizaria as relaccedilotildees entre escola e comunidade na atualidade

a fim de ampliar a dimensatildeo das experiecircncias educadoras Para o Programa a fragilidade do

diaacutelogo entre escola e comunidade seria o elemento responsaacutevel por uma seacuterie de efeitos

perniciosos tais como ldquo(hellip) a rebeldia frente agraves normas escolares os altos iacutendices de fracasso

escolar pichaccedilotildees e depredaccedilotildees de preacutedios escolares atitudes desrespeitosas no conviacutevio

escolar e a apatia dos alunosrdquo (Brasil 2009a p 34)

O Programa advoga que as escolas que mais avanccedilaram no diaacutelogo com a comunidade

ldquoforam as que atingiram os resultados acadecircmicos mais positivosrdquo (Brasil 2009c p 16)

Observa-se portanto uma grande aposta do Programa nas possibilidades de troca e diaacutelogo

entre escolas e comunidade e na entrada nas escolas daquilo que o Mais Educaccedilatildeo chama de

ldquosaberes comunitaacuteriosrdquo como perspectiva de mudanccedila das experiecircncias educadoras ateacute entatildeo

oferecidas

Essa ideia eacute tambeacutem evidenciada na fala do coordenador federal do Programa que

ressalta que a possibilidade de trazer ldquoo campo dos saberes comunitaacuteriosrdquo para o interior das

escolas eacute algo bastante significativo O coordenador compreende que natildeo seraacute possiacutevel avanccedilar

com a promoccedilatildeo da educaccedilatildeo integral no Paiacutes sem o uso de monitores Ele explica sua posiccedilatildeo

dizendo

182

sem monitores acho que natildeo daacute natildeo acho que natildeo seria bom primeiro por uma questatildeo

porque acho que os meninos precisam mesmo de outros saberes e segundo porque tem uma

questatildeo financeira e tambeacutem com o nuacutemero de professores que se tecircm hoje natildeo daacute16

A responsabilizaccedilatildeo da comunidade pela eficiecircncia das escolas eacute destacada tanto na fala

dos gestores do Programa quanto nos cadernos analisados A insuficiecircncia de recursos puacuteblicos

(humanos e financeiros) para atender as demandas das escolascomunidade conforme apontado

pelo coordenador do Programa e a escolha da utilizaccedilatildeo de monitores voluntaacuterios para dar

conta de tal situaccedilatildeo denotam que caberia agraves escolascomunidade localmente inventar a

superaccedilatildeo de seus problemas

Para o Mais Educaccedilatildeo o desafio de construccedilatildeo daquilo que o Programa chama de uma

educaccedilatildeo integral aumenta

se pensarmos que cada escola e cada comunidade mesmo que com aportes de programas de

governo satildeo responsaacuteveis pela superaccedilatildeo de seus proacuteprios limites vividos porque satildeo elas que

os conhecem e que podem reinventaacute-los O desafio do programa portanto eacute estruturar-se sobre

uma base capaz de permitir que os diversos projetos de educaccedilatildeo integral sejam territorializados

e nasccedilam em resposta a cada realidade (Brasil 2009c p 89 grifos nossos)

A partir do exposto pode-se compreender melhor o porquecirc de o Programa enfatizar seu

caraacuteter de estrateacutegia indutora da ampliaccedilatildeo da jornada escolar nos estados e municiacutepios O

Estado portanto natildeo seria mais o agente principaluacutenico da accedilatildeo puacuteblica ldquomas espera-se que

cumpra sua missatildeo de intelligentsia do fazer puacuteblico e em consequecircncia exerccedila papel indutor

e articulador de esforccedilos governamentais e societaacuterios em torno de prioridades da poliacutetica

puacuteblicardquo (Brasil 2009a p 44)

Entende-se assim que os desafios relacionados agrave garantia da qualidade de

aprendizagem propiciada pelas escolas puacuteblicas estariam especialmente relacionados agrave gestatildeo

dos sistemas educativos Essa ideia remete ao terceiro e uacuteltimo enunciado que parece legitimar

o Programa Mais Educaccedilatildeo presente nas entrevistas realizadas e nos cadernos analisados

gestatildeo intersetorial

33 Gestatildeo intersetorial

O termo intersetorialidade eacute bastante utilizado pelo Programa e expresso como

ldquocaracteriacutestica de uma nova geraccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas que orientam a formulaccedilatildeo de uma

proposta de Educaccedilatildeo Integralrdquo (Brasil 2009a p 43) Esse novo tipo de poliacutetica puacuteblica

16 Entrevista realizada no dia 3 de fevereiro de 2015 em Brasiacutelia [material transcrito]

183

impotildee-se como necessidade e tarefa que se devem ao reconhecimento da desarticulaccedilatildeo

institucional e da pulverizaccedilatildeo na oferta das poliacuteticas sociais mas tambeacutem ao passo seguinte

desse reconhecimento para articular os componentes materiais e ideais que qualifiquem essas

poliacuteticas (Brasil 2009a p 43)

Dito de outro modo a intersetorialidade se materializa no cotidiano da gestatildeo agrave medida que

consegue criar consenso em torno de uma meta com a qual todos possam em alguma medida

comprometer-se (Brasil 2009b p 25)

A analista do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo que coordena o Mais Educaccedilatildeo em niacutevel federal

aponta que hoje existe uma intencionalidade expliacutecita da gestatildeo puacuteblica em parar de atribuir

inuacutemeras funccedilotildees agraves escolas Segundo a analista a noccedilatildeo de intersetorialidade ou de poliacuteticas

puacuteblicas intersetoriais que ldquorequer que diferentes setores se comuniquem para que as

demandas puacuteblicas sejam canalizadas de um modo mais racionalrdquo17 joga um importante papel

na diminuiccedilatildeo da atribuiccedilatildeo de funccedilotildees de diferentes naturezas agraves escolas

Para o Programa outro requisito considerado indispensaacutevel para a boa gestatildeo das

unidades escolares refere-se ao papel da democratizaccedilatildeo da gestatildeo Esta eacute considerada um

indicador de qualidade da educaccedilatildeo

enfatizando que em muitos estados e municiacutepios ou mesmo comunidades com menor

financiamento puacuteblico as escolas que adotaram a gestatildeo democraacutetica e mantecircm projetos

pedagoacutegicos bem elaborados tecircm se destacado nas avaliaccedilotildees institucionais e no IDEB como

prova de que a participaccedilatildeo social se constitui um oacutetimo meacutetodo de avaliaccedilatildeo e de fiscalizaccedilatildeo

do desempenho escolar e que a eficiecircncia gestora natildeo se limita agrave racionalidade e agrave

potencializaccedilatildeo dos recursos financeiros e administrativos Os sistemas de ensino poderatildeo

ampliar a praacutetica da gestatildeo democraacutetica ao promover a participaccedilatildeo social nos Conselhos de

Educaccedilatildeo (Estaduais e Municipais) bem como realizar eleiccedilatildeo para diretores de escola

observadas as prerrogativas de autonomia administrativa (Brasil 2009a p 41)

Nota-se por meio da leitura dos cadernos do Programa e das falas dos gestores

entrevistados o lugar de destaque ocupado pelo tema da gestatildeo da escola

Um dos aspectos considerados desafiadores para o bom funcionamento do Programa

assinalados pelo coordenador de educaccedilatildeo integral da Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do

Ministeacuterio da Educaccedilatildeo diz respeito agrave necessidade de maior formaccedilatildeo dos profissionais da

educaccedilatildeo em geral em especial dos gestores para que possam lidar com a complexidade atual

da gestatildeo das escolas Essa ideia eacute corroborada na entrevista com a coordenadora estadual de

Satildeo Paulo do Mais Educaccedilatildeo ao afirmar a necessidade de uma maior capacitaccedilatildeo dos gestores

escolares para aprimorar a relaccedilatildeo escola e comunidade e para que os gestores possam lidar

com o grande volume de contas que precisam administrar Com a entrada nas escolas de muitos

17 Entrevista realizada no dia 3 de fevereiro de 2015 em Brasiacutelia [material transcrito]

184

outros Programas interligados ao Mais Educaccedilatildeo cabe aos diretores escolares administrarem a

prestaccedilatildeo de um nuacutemero extenso de contas

A recorrecircncia nas falas sobre o Programa que assinalam a necessidade de processos

formativos permanentes da gestatildeo escolar indica que os desafios enfrentados pelas escolas

puacuteblicas estariam prioritariamente relacionados a aspectos de gestatildeo Essa forma de

compreender as dificuldades das escolas parece estar alinhada com um aumento da

responsabilizaccedilatildeo individual dos gestores pela eficiecircncia das escolas e ainda com uma reduccedilatildeo

de questotildees poliacuteticas e econocircmicas complexas que perpassam as escolas puacuteblicas na atualidade

tais como a insuficiecircncia de recursos puacuteblicos para atender as demandas das

escolascomunidades

Percebe-se portanto a necessidade de se examinar com cautela os discursos que

apontam a necessidade de tal formaccedilatildeo permanente dos gestores escolares uma vez que tendem

a ter como efeito a culpabilizaccedilatildeo dos gestores por situaccedilotildees que ultrapassam em grande medida

sua possibilidade de atuaccedilatildeo

Consideraccedilotildees finais

Em uacuteltima anaacutelise o que as leituras dos documentos que normatizam o Programa Mais

Educaccedilatildeo e as entrevistas com seus gestores permitem inferir eacute que a entrada de programas

como o Mais Educaccedilatildeo nas escolas puacuteblicas brasileiras para aleacutem da evidente ampliaccedilatildeo do

caraacuteter de proteccedilatildeo integral das crianccedilas parece indicar mudanccedilas de concepccedilotildees sobre o que

seriam a aprendizagem e o tempo escolar Observa-se a presenccedila de uma noccedilatildeo de

aprendizagem escolar que estaria muito mais relacionada com o aprender a ser algo ndash um

aprendiz ao longo da vida ndash do que com o estudar ou praticar algo e uma noccedilatildeo de tempo

escolar como tempo produtivo tempo ocupado tempo para aprender Essa noccedilatildeo de

aprendizagem remete agrave constataccedilatildeo de que o conceito de aprendizagem no presente seria uma

forccedila crucial de governo de noacutes mesmos

Nota-se por fim juntamente com Magnus Dahlstedt e Mekonnen Tesfahuney (2010)

que os discursos de uma aprendizagem ao longo da vida trazem um apelo universal que os torna

aparentemente apoliacuteticos parecendo natildeo pertencer a um tempo nem lugar especiacuteficos No

entanto escondem uma natureza altamente poliacutetica e efetiva para produzir modos de viver em

que o aprender eacute uma norma Tais discursos satildeo portanto centrais para entender as

185

racionalidades governamentais neoliberais em que o Estado se inscreve nas accedilotildees dos sujeitos

ao investir para que os sujeitos faccedilam suas proacuteprias escolhas

Esse artigo ao enfatizar alguns elementos presentes nos cadernos do Programa Mais

Educaccedilatildeo e nas falas de alguns de seus gestores deu relevo agrave necessidade de se considerar que

ideias e termos como escolha pessoal participaccedilatildeo da comunidade e gestatildeo democraacutetica

precisam ser analisados em suas relaccedilotildees com as formas de governar e os processos de

pedagogizaccedilatildeo da vida Do contraacuterio as questotildees da escolha e da participaccedilatildeo tornam-se

abstratas pois abstraiacutedas de suas condiccedilotildees de existecircncia O agenciamento singular em cada

unidade escolar com a implementaccedilatildeo do Programa Mais Educaccedilatildeo se daacute na complexidade do

cotidiano e dependeraacute das compreensotildees locais da forma como ocorrem os atravessamentos

dos discursos oficiais e das condiccedilotildees concretas de cada realidade Ao nos debruccedilarmos sobre

discursos presentes em materiais e falas oficiais operamos um recorte em nossa anaacutelise que

considera esses discursos como forccedilas intensas na construccedilatildeo cotidiana das praacuteticas referentes

ao Programa e portanto de suas condiccedilotildees de existecircncia

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Dissertaccedilatildeo de Mestrado Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

189

Capiacutetulo 10

Poliacuteticas Puacuteblicas de Orientaccedilatildeo Profissional uma anaacutelise

socioconstrucionista sobre a construccedilatildeo do Projeto de Vida no Programa

Ensino Integral (PEI)

Omar Calazans Nogueira Pereira

Marcelo Afonso Ribeiro

Introduccedilatildeo

Na deacutecada de 1970 o ensino teacutecnico tornou-se compulsoacuterio para todos que

completavam o ciclo escolar e atividades de Orientaccedilatildeo Profissional (OP) estavam previstas na

legislaccedilatildeo e implementadas em alguns estados Houve entatildeo uma seacuterie de pesquisas sobre

estas poliacuteticas puacuteblicas de OP dentre as quais ressaltamos os trabalhos de Baptista (1984)

Carvalho (1985) e Lobo (2005) que investigaram o Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP)

no Estado de Satildeo Paulo

No entanto desde o encerramento destas poliacuteticas puacuteblicas nos anos 1980 ocorreram

somente pesquisas pontuais sobre poliacuteticas puacuteblicas em OP Temos como exemplo o trabalho

de Silva (2010) que investigou como as escolas puacuteblicas de Ensino Meacutedio auxiliam os alunos

na construccedilatildeo de projetos profissionais e discutiu caminhos para um programa de poliacutetica

puacuteblica em OP Tambeacutem haacute a pesquisa de Munhoz (2010) que sugere subsiacutedios para a

elaboraccedilatildeo de programas de OP no contexto educacional brasileiro

Em termos mundiais haacute vaacuterios modelos de programas de OP em escolas vinculados agraves

poliacuteticas puacuteblicas como a Ativaccedilatildeo do Desenvolvimento Vocacional e Pessoal (ADVP)

(Pelletier Noiseux amp Bujold 1982) e a proposta de Educaccedilatildeo para a Carreira (Hoyt 1987)

mas no sistema educacional brasileiro e na legislaccedilatildeo nunca houve nada sistematizado e

implementado semelhante agraves propostas citadas segundo Munhoz (2010) e Silva (2010)

Recentemente com a ampliaccedilatildeo do ensino integral puacuteblico e as reformas no sistema

educacional novas poliacuteticas puacuteblicas de educaccedilatildeo e trabalho estatildeo sendo implementadas

trazendo consigo a ecircnfase no aluno e na construccedilatildeo de seu projeto de vida Por exemplo no

Estado de Satildeo Paulo a partir de 2020 com base no modelo de ensino existente nas escolas do

190

Programa Ensino Integral (PEI) a disciplina Projeto de Vida estaraacute presente em todas as escolas

puacuteblicas estaduais de Ensino Meacutedio

O presente capiacutetulo eacute baseado em pesquisa de Mestrado desenvolvida no periacuteodo de

2017 a 2019 que visou compreender teoacuterico-metodoloacutegica e ideologicamente a proposta da

disciplina ldquoProjeto de Vidardquo nas escolas do PEI do Estado de Satildeo Paulo a partir do

construcionismo social e analisar se essa proposta seria uma poliacutetica puacuteblica de OP1 Com base

no construcionismo social principalmente a partir das contribuiccedilotildees de Blustein (2011) e

McNamee (2012) e por meio de uma metodologia qualitativa narrativa foi realizada uma

anaacutelise de conteuacutedo dos discursos sociais e narrativas pessoais produzidos em documentos

escolares e nos grupos focais com professores e alunos de duas escolas da Regiatildeo Metropolitana

de Satildeo Paulo

1 A orientaccedilatildeo profissional (OP) na legislaccedilatildeo educacional brasileira e em programas

educacionais paulistas

11 A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educaccedilatildeo de 1971 e o Programa de Informaccedilatildeo

Profissional (PIP)

Em meio ao golpe militar 1964 a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo de 1971 ndash LDB

nordm 569271 em substituiccedilatildeo agrave LDB nordm 402461 reformulou o 2ordm Grau tornando-o

profissionalizante (Brasil 1971) ou seja todos os alunos formados no Ensino Meacutedio saiacuteram

obrigatoriamente habilitados para o exerciacutecio de uma atividade profissional Havia uma pressatildeo

popular por mais vagas nas universidades e essa reformulaccedilatildeo do ensino teria sido uma forma

de conter essa demanda pois uma vez adquirida uma profissatildeo ao teacutermino da escola a pessoa

desistiria de ingressar no Ensino Superior (Romanelli 1986)

Esta nova LDB estabeleceu a orientaccedilatildeo vocacional tanto para o 1ordm Grau quanto para o

2ordm grau ldquoseraacute instituiacuteda obrigatoriamente a Orientaccedilatildeo Educacional incluindo aconselhamento

vocacional em cooperaccedilatildeo com os professores a famiacutelia e a comunidaderdquo (Brasil 1971 art

10) Na anaacutelise de Pimenta (1981) a praacutetica da OP na escola acabou reduzida agrave informaccedilatildeo

profissional devido a impossibilidade de testes psicoloacutegicos serem aplicados pelos orientadores

1 Pereira O C N (2019) A construccedilatildeo do projeto de vida no Programa Ensino Integral (PEI) uma anaacutelise na

perspectiva da Orientaccedilatildeo Profissional (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Instituto de Psicologia Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo Agecircncia de fomento Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES)

191

educacionais em funccedilatildeo da regulamentaccedilatildeo da profissatildeo de psicoacutelogo no Brasil pela Lei nordm

411962 (Brasil 1962) e a determinaccedilatildeo na mesma lei de que somente psicoacutelogos poderiam

usar testes psicoloacutegicos

Pouco tempo depois 1968 a profissatildeo do orientador educacional foi prevista pela Lei

nordm 556464 (Brasil 1968) e regulamentada pelo Decreto nordm 7284673 (Brasil 1973) Neste

decreto seriam atribuiccedilotildees privativas do orientador educacional coordenar a orientaccedilatildeo

vocacional do aluno assim como o processo de sondagem de interesses aptidotildees e habilidades

e o processo de informaccedilatildeo profissional Neste momento houve uma ruptura na qual os

pedagogos tornaram-se os detentores dos processos de OP nas escolas enquanto que os

psicoacutelogos afastados das escolas tornaram-se os detentores das ferramentas (Uvaldo amp Silva

2010)

Por conta de problemas na implementaccedilatildeo do ensino profissionalizante proposto pela

LDB 569271 houve em 1975 uma mudanccedila em seu formato tornando sua duraccedilatildeo mais breve

(Baptista 1984 Silva 2010) Dois anos depois o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) propocircs a

disciplina Orientaccedilatildeo Ocupacional no primeiro ano do Ensino Meacutedio Ministrada pelo

orientador educacional a disciplina visaria auxiliar os alunos na escolha entre as diferentes

ocupaccedilotildees dentro de determinada habilitaccedilatildeo (Brasil 1977) No Estado de Satildeo Paulo a

disciplina recebeu o nome de Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP)

O Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP) consistiu em uma disciplina oferecida aos

alunos do primeiro ano do 2ordm grau das escolas puacuteblicas O objetivo era dar informaccedilotildees e

subsiacutedios aos alunos para realizar a escolha por uma das trecircs opccedilotildees de habilitaccedilatildeo baacutesica O

primeiro ano era comum a todas habilitaccedilotildees sendo que nos dois anos seguintes os alunos

deveriam cursar disciplinas referentes agrave habilitaccedilatildeo escolhida (Silva 2010)

Em relaccedilatildeo ao documento ldquoProgramas de Informaccedilatildeo Profissionalrdquo publicado pela

Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagoacutegicas (CENP) estabelecendo os objetivos do PIP e

seu conteuacutedo programaacutetico Silva (2010) constata a concepccedilatildeo presente no documento de que

os alunos tecircm uma imagem errada das profissotildees que deveria ser corrigida pela disciplina por

meio de oferta de informaccedilatildeo profissional qualificada e Lobo (2005) destaca a ausecircncia de

conteuacutedos especiacuteficos sobre o conhecimento do aluno a respeito de si mesmo ou seja

autoconhecimento natildeo aparece como um tema especiacutefico

192

Para Baptista (1984) a contestaccedilatildeo da Lei 569271 (Brasil 1971) por parte da

comunidade escolar estendeu-se ao PIP contaminando a experiecircncia do programa Aleacutem disso

para Baptista (1984) outros fatores que contribuiacuteram para o fracasso do PIP foram

bull Falta de treinamento para professores que se mostraram despreparados

bull Falta de material didaacutetico e bibliograacutefico adequado para utilizaccedilatildeo

bull Desinteresse dos alunos que criticavam a maacute conduccedilatildeo das aulas e do desenvolvimento das

atividades

Baptista (1984) ainda traz outros dois motivos como a ausecircncia de discussatildeo sobre o

contexto socioeconocircmico e poliacutetico do trabalho e a imposiccedilatildeo do programa aos agentes

educativos que natildeo puderam debatecirc-lo Para Silva (2010 p 41) ldquoo contexto poliacutetico do periacuteodo

foi um dos principais motivos de fracasso da disciplinardquo

Somado a isso estavam ausentes no PIP dois pontos importantes na criaccedilatildeo de um

programa direcionado para o atendimento de um grande nuacutemero de pessoas apresentaccedilatildeo de

uma proposta teoacuterica clara como embasamento e consideraccedilatildeo de fatores regionais na sua

elaboraccedilatildeo (Silva 2010) Segundo o autor em programas de OP eacute importante adequar a

proposta agrave comunidade considerando os recursos disponiacuteveis na escola Igualmente uma

proposta tatildeo ampla deve possuir uma clara fundamentaccedilatildeo teoacuterica que propicie a formaccedilatildeo das

pessoas envolvidas e instrumentalize o trabalho No Estado de Satildeo Paulo a experiecircncia do PIP

esteve em vigecircncia ateacute 1982 (Baptista 1984 Carvalho 1985 Lobo 2005)

12 A Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional de 1996 e a Reforma do Ensino Meacutedio

ndash Lei no 134152017

A partir do final da deacutecada de 1970 o Brasil comeccedilou a passar por um processo de

abertura poliacutetica e nesse contexto o Governo Federal continuava lidando com o fracasso da

profissionalizaccedilatildeo compulsoacuteria (Palma Filho 2010) Em 1982 eacute promulgada a Lei nordm 704482

que alterou os dispositivos da Lei nordm 569271 retirando a profissionalizaccedilatildeo do ensino do 2ordm

grau (Brasil 1982) Assim voltam a ser opcionais as habilitaccedilotildees profissionais de niacutevel teacutecnico

Vale mencionar que mesmo com a Lei nordm 704482 natildeo foi alterado o Art 10ordm da LDB de 1971

que instituiacutea a obrigatoriedade da orientaccedilatildeo educacional e do aconselhamento vocacional

Praticamente sem alteraccedilotildees significativas a legislaccedilatildeo educacional se manteve ateacute

1996 ocasiatildeo da promulgaccedilatildeo da Lei nordm 939496 (Brasil 1996) Apesar de referecircncias sobre a

questatildeo do trabalho ao longo do texto eacute retirada a menccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo educacional assim

como qualquer menccedilatildeo direta agrave OPvocacional Entretanto a Lei nordm 939496 manteacutem a

193

possibilidade das escolas terem uma parte diversificada nos curriacuteculos de 1ordm e 2ordm graus aleacutem da

base nacional comum o que permitiu a inserccedilatildeo de disciplinas de OP ou semelhantes na grade

curricular em algumas escolas principalmente particulares

Mais recentemente a Medida Provisoacuteria no 7462016 (Brasil 2016b) posteriormente

convertida na Lei no 134152017 (Brasil 2017a) tambeacutem conhecida como Reforma do Ensino

Meacutedio propocircs uma seacuterie de alteraccedilotildees da legislaccedilatildeo anterior Segundo o MEC a Reforma do

Ensino Meacutedio teria por objetivo entre outros tornar o curriacuteculo mais atrativo tornando-o mais

flexiacutevel (Brasil 2016a) O Ensino Meacutedio possuiacutea ldquoum curriacuteculo extenso superficial e

fragmentado que natildeo dialoga com a juventude com o setor produtivo tampouco com as

demandas do seacuteculo XXIrdquo (Brasil 2016a)

Dentre algumas modificaccedilotildees da Lei no 134152017 (Brasil 2017a) somente o ensino

de portuguecircs e matemaacutetica se mantiveram como obrigatoacuterios nos trecircs anos do Ensino Meacutedio O

curriacuteculo deste niacutevel de ensino passa a ser composto por aleacutem da Base Nacional Comum

Curricular (BNCC) itineraacuterios formativos que deveratildeo ser organizados na oferta dos seguintes

arranjos linguagens e suas tecnologias matemaacutetica e suas tecnologias ciecircncias da natureza e

suas tecnologias ciecircncias humanas e sociais aplicadas formaccedilatildeo teacutecnica e profissional (Brasil

2017a)

Sfredo e Silva (2016) apontam que as reformas do Ensino Meacutedio nos uacuteltimos dez anos

anunciam uma aproximaccedilatildeo do processo de escolarizaccedilatildeo com os princiacutepios e leis do mercado

sendo o valor do conhecimento definido pelo potencial de empregabilidade que pode garantir

ao sujeito Segundo os autores o ldquoconhecimento natildeo pode ser esvaziado de seu potencial de

intervenccedilatildeo poliacutetica e socialrdquo (Sfredo amp Silva 2016 p 891) Nesse sentido seria necessaacuterio o

estabelecimento de uma criacutetica agraves reformas educacionais que vinculam ldquoa educaccedilatildeo a ganhos

econocircmicos e ao mesmo tempo responsabiliza o indiviacuteduo por seu sucesso ou fracassordquo

(Sfredo amp Silva 2016 p 893)

Ainda de acordo com a Lei no 134152017 ldquoos curriacuteculos do ensino meacutedio deveratildeo

considerar a formaccedilatildeo integral do aluno de maneira a adotar um trabalho voltado para a

construccedilatildeo de seu projeto de vida e para sua formaccedilatildeo nos aspectos fiacutesicos cognitivos e

socioemocionaisrdquo (Brasil 2017a art 35-A sect7) A escola por sua vez deve ldquoorientar os alunos

no processo de escolha das aacutereas de conhecimento ou de atuaccedilatildeo profissionalrdquo (Brasil 2017a

art 36 sect12) Especificamente sobre a escolha dos itineraacuterios formativos seraacute decidido pelos

sistemas estaduais de ensino quando o aluno faraacute essa escolha pois a parte diversificada do

194

curriacuteculo poderaacute iniciar por exemplo tanto no primeiro quanto no segundo ano do Ensino

Meacutedio (Brasil 2017b)

Atualmente a expressatildeo ldquoprojeto de vidardquo tem sido utilizada com frequecircncia e natildeo haacute

uma definiccedilatildeo clara sobre qual o significado dessa expressatildeo conforme aponta Bock (2018) O

autor assinala que haacute definiccedilotildees que trazem o projeto de vida como uma accedilatildeo individual

desconsiderando a realidade econocircmica social e poliacutetica na qual as pessoas vivem Nestas

definiccedilotildees a pessoa eacute a responsaacutevel pelo seu caminho e posiccedilatildeo na sociedade Ao mesmo

tempo existem concepccedilotildees mais criacuteticas de projeto de vida que colocam a meritocracia em

discussatildeo e que incluem projetos coletivos junto aos pessoais atraveacutes da compreensatildeo da

realidade social econocircmica e poliacutetica aleacutem da histoacuteria de vida e familiar da pessoa

O termo ldquoProjeto de Vidardquo tambeacutem estaacute presente na Base Nacional Comum Curricular

(BNCC) que define o conjunto orgacircnico e progressivo de aprendizagens essenciais que os

alunos devem desenvolver ao longo da Educaccedilatildeo Baacutesica (Brasil 2017c) Estas aprendizagens

asseguram ao estudante o desenvolvimento de dez competecircncias gerais No documento

competecircncia eacute definida como ldquoa mobilizaccedilatildeo de conhecimentos (conceitos e procedimentos)

habilidades (praacuteticas cognitivas e socioemocionais) atitudes e valores para resolver demandas

complexas da vida cotidiana do pleno exerciacutecio da cidadania e do mundo do trabalhordquo (Brasil

2017c p 8) Na BNCC dentre as dez competecircncias gerais temos como uma das competecircncias

gerais da Educaccedilatildeo Baacutesica

Valorizar a diversidade de saberes e vivecircncias culturais e apropriar-se de conhecimentos e

experiecircncias que lhe possibilitem entender as relaccedilotildees proacuteprias do mundo do trabalho e fazer

escolhas alinhadas ao exerciacutecio da cidadania e ao seu projeto de vida com liberdade autonomia

consciecircncia criacutetica e responsabilidade (Brasil 2017c p 9)

Para Ferreti e Silva (2017 p 398) a BNCC quando discute as finalidades do Ensino

Meacutedio possui uma inspiraccedilatildeo gramsciana mas ao mesmo tempo em caraacuteter hiacutebrido apresenta

proposiccedilotildees da ldquoperspectiva do desenvolvimento de competecircncias e do individualismordquo Para

Carvalho e Santos (2016 p 790) a loacutegica das competecircncias nos leva a validar ldquoa falsa ideia de

que as desigualdades sociais satildeo problemas individuais de sujeitos que natildeo foram

suficientemente competentes para se qualificarrdquo

13 O Programa Ensino Integral (PEI) e novos programas no Estado de Satildeo Paulo

No Estado de Satildeo Paulo o PEI foi implantado em 2012 atendendo inicialmente o Ensino

Meacutedio sendo posteriormente estendido para o Ensino Fundamental O PEI foi criado tendo

195

como base o modelo da Escola da Escolha desenvolvido e implementado em 2004 no Ginaacutesio

Pernambucano pelo Instituto de Corresponsabilidade pela Educaccedilatildeo (ICE) e posteriormente

implementado em 17 estados brasileiros

O modelo pedagoacutegico do PEI prevecirc a matriz curricular com uma parte diversificada

que inclui no Ensino Meacutedio as disciplinas Liacutengua Estrangeira Moderna Praacutetica de Ciecircncias

Orientaccedilatildeo de Estudos Projeto de Vida Mundo do Trabalho Preparaccedilatildeo Acadecircmica e

Disciplinas Eletivas (Satildeo Paulo 2014b) Todas as escolas integrantes do programa funcionam

em periacuteodo integral com uma jornada de oito horas diaacuterias e os professores trabalham em

Regime de Dedicaccedilatildeo Plena e Integral (RDPI) de 40 horas semanais (Satildeo Paulo 2012)

A construccedilatildeo do Projeto de Vida mais do que uma disciplina eacute principalmente o eixo

estruturante do PEI O Projeto de Vida ldquoeacute o foco para o qual devem convergir todas as accedilotildees

educativas sendo construiacutedo a partir do provimento da excelecircncia acadecircmica da formaccedilatildeo para

valores e da formaccedilatildeo para o mundo produtivordquo (Satildeo Paulo 2014a p 23) A realizaccedilatildeo do

Projeto de Vida pressupotildee interaccedilatildeo com o Protagonismo Juvenil enquanto princiacutepio premissa

e metodologia (Satildeo Paulo 2014a)

A partir de 2020 atraveacutes do Programa Inovaccedilatildeo Educaccedilatildeo foram anunciadas pelo

Governo do Estado de Satildeo Paulo mudanccedilas na matriz curricular das escolas puacuteblicas Por

exemplo haveraacute uma aula a mais por dia e seratildeo introduzidas novas disciplinas no curriacuteculo

Projeto de Vida Eletivas e Tecnologia Mais especificamente haveraacute por semana duas aulas de

Projeto de Vida duas aulas de Eletivas e uma de Tecnologia ao longo dos trecircs anos do Ensino

Meacutedio (Satildeo Paulo 2019)

A ideia deste novo programa eacute ampliar para a rede as experiecircncias ocorridas nas escolas

do PEI e assim como ocorre neste modelo professores de diferentes aacutereas poderatildeo ministrar

as novas disciplinas Aleacutem disso tambeacutem foi anunciado o ldquoPrograma Seguranccedila nas Escolasrdquo

no qual dentre outras medidas haveraacute a implantaccedilatildeo de equipes de psicoacutelogos e assistentes

sociais nas diretorias de ensino para realizar atividades como a formaccedilatildeo de profissionais e o

ldquodesenvolvimento de habilidades socioemocionais aliadas ao curriacuteculo escolarrdquo (Satildeo Paulo

2019 p 35)

Para a anaacutelise do PEI como uacuteltimo modelo proposto de poliacutetica puacuteblica que auxiliaria

nas questotildees de OP a ser estudado no presente capiacutetulo seraacute utilizada uma proposta

socioconstrucionista (Blustein 2011 McNamee 2012) apresentada a seguir

196

2 Uma proposta socioconstrucionista de anaacutelise para a orientaccedilatildeo profissional (OP)

A perspectiva socioconstrucionista eacute multifacetada e se constitui numa rede de propostas

de anaacutelise de fenocircmenos psicossociais ou seja que acontecem na relaccedilatildeo entre pessoas e

contextos e partem de alguns princiacutepios gerais

Visa compreender a realidade de forma dinacircmica sem partir de pressupostos

predeterminados por isso eacute baseada numa ontologia relacional pois postula que o

conhecimento e a realidade satildeo produzidos em relaccedilatildeo (Blustein 2011 McNamee 2012) Neste

sentido preconiza a existecircncia de muacuteltiplas visotildees de mundo (narrativas) que podem ser

intercambiadas e gerar padrotildees (discursos) sempre a partir da visatildeo da indissociabilidade entre

as dimensotildees subjetiva e social nomeada de psicossocial (Ribeiro 2017)

Assim a realidade seria sempre um discurso sobre a realidade produzido

intersubjetivamente e que visa cristalizar posicionamentos coletivos (macronarrativas) atraveacutes

da produccedilatildeo de significados As narrativas seriam produccedilotildees singulares (micronarrativas) que

visam interpelar e desconstruir os discursos atraveacutes da produccedilatildeo de sentidos As praacuteticas e

processos sociais como as poliacuteticas puacuteblicas por exemplo satildeo produccedilotildees discursivas

coconstruiacutedas na teia de relaccedilotildees psicossociais definindo transitoriamente quais seriam os

discursos e significados norteadores de dada praacutetica social em determinado contexto e em

determinado momento soacutecio-histoacuterico Esta loacutegica possibilita a anaacutelise dos discursos sociais

que fundamentam dada praacutetica social como eacute o caso do programa PEI aqui estudado

Especificamente no campo da OP a perspectiva construcionista auxilia a pensar a

construccedilatildeo das trajetoacuterias e projetos de vida de trabalho bem como analisar praacuteticas como a

disciplina de Projeto de Vida entendidos como discursos intersubjetivamente gerados na

relaccedilatildeo entre significados e sentidos produzidos pela accedilatildeo de muacuteltiplos atores sociais entre

eles gestores puacuteblicos legisladores professores e alunos (Ribeiro 2014)

3 Objetivo

Esta pesquisa teve por objetivo compreender teoacuterico-metodoloacutegica e ideologicamente a

proposta da disciplina Projeto de Vida nas escolas do Programa Ensino Integral (PEI) do Estado

de Satildeo Paulo a partir da perspectiva do construcionismo social

Enquanto objetivos especiacuteficos buscou-se

a) Compreender como ocorre a construccedilatildeo do projeto de vida na disciplina

197

b) Identificar qual eacute o papel do professor na construccedilatildeo do projeto de vida na disciplina

e qual eacute a preparaccedilatildeo ou a formaccedilatildeo que recebe para ministraacute-la

c) Depreender a relevacircncia do protagonismo juvenil na construccedilatildeo do projeto de vida

d) Verificar se a disciplina Projeto de Vida pode ser entendida como uma poliacutetica

puacuteblica de Orientaccedilatildeo Profissional (OP) na grade curricular

4 Metodologia

A pesquisa qualitativa pode ser definida como ldquoum conjunto de praacuteticas materiais e

interpretativas que datildeo visibilidade ao mundordquo (Denzin amp Lincoln 2006 p 17) Para Morrow

(2007) os meacutetodos qualitativos satildeo eficazes em examinar processos e apropriados em

responder perguntas sobre o ldquocomordquo e o ldquoporquecircrdquo os fenocircmenos psicossociais ocorrem Essas

metodologias podem ser usadas para explorar variaacuteveis que natildeo satildeo facilmente identificaacuteveis

ou que ainda natildeo foram identificadas assim como investigar temas pelos quais ainda natildeo

existem pesquisas ou existem poucas (Morrow 2007)

Nesta pesquisa foi utilizada uma metodologia qualitativa narrativa (Polkinghorne

1988) Um dos objetivos do processo de pesquisa eacute restaurar a agecircncia para o autor da narrativa

(Parker 2005 p 72) pois a agecircncia foi retirada das pessoas ao serem tratadas como objeto de

pesquisa Voltar a ser sujeito na narrativa implica uma relaccedilatildeo com um tempo e um contexto

social ou seja a histoacuteria deve ser contada dentro de um determinado quadro temporal (Parker

2005) Da mesma forma de acordo com Parker (2005) uma narrativa eacute sempre tambeacutem uma

narrativa cultural

41 Seleccedilatildeo das escolas para a realizaccedilatildeo do trabalho de campo (anaacutelise documental e grupos

focais)

Foram procuradas duas escolas que estivessem localizadas em regiotildees distintas na

Regiatildeo Metropolitana de Satildeo Paulo denominadas para esta pesquisa de Escola A e Escola B

com base em criteacuterios socioeconocircmicos ou seja uma escola que atendesse alunos de classe

meacutedia e outra escola que tivesse mais alunos de classe baixa

A Escola A estaacute localizada na cidade de Guarulhos em um bairro comercial A escola

possui cerca de 600 alunos divididos em 18 turmas Conta com cerca 36 professores sendo que

13 ministram a disciplina Projeto de Vida Segundo dados sociodemograacuteficos coletados pela

198

proacutepria escola cerca de 80 dos alunos satildeo de classe meacutedia e 25 moram no proacuteprio bairro

A escola havia entrado no PEI haacute quase trecircs anos na eacutepoca da realizaccedilatildeo da pesquisa

Por seu lado a Escola B estaacute localizada na cidade de Satildeo Paulo proacutexima agrave regiatildeo de

Guaianases no extremo leste do municiacutepio O bairro eacute considerado um ldquobairro dormitoacuteriordquo

Cerca de 80 dos alunos moram no proacuteprio bairro e a renda salarial de seus responsaacuteveis legais

varia entre um a trecircs salaacuterios miacutenimos portanto podendo ser considerados de classe baixa A

escola possui cerca de 110 alunos distribuiacutedos em sete turmas Possui 15 professores sendo que

trecircs destes ministram a disciplina Projeto de Vida A escola havia entrado no PEI haacute menos de

um ano do momento da realizaccedilatildeo da pesquisa

42 Contato com as escolas

O contato com a Escola A foi realizado em um primeiro momento atraveacutes de um

professor de Projeto de Vida da instituiccedilatildeo que havia procurado anteriormente o Serviccedilo de

Orientaccedilatildeo Profissional do Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (SOP-IPUSP)

Por sua vez o contato com a Escola B foi realizado por telefone cujo nuacutemero estaacute disponiacutevel

na internet A pesquisa foi realizada na Escola A no mecircs de abril de 2018 e na Escola B nos

meses de agosto e setembro de 2018

43 Cuidados eacuteticos e autorizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa

Como cuidados eacuteticos foram assinados pelos diretores das escolas um termo de

autorizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa assim como foi entregue para professores e pais um

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) Para alunos foi entregue um Termo de

Assentimento

44 Seleccedilatildeo dos documentos escolares para serem analisados

Foram analisadas as apostilas das disciplinas de Projeto de Vida Preparaccedilatildeo Acadecircmica

e Mundo do Trabalho que satildeo padronizadas para toda as escolas do PEI A princiacutepio foi

pensado em ser analisado tambeacutem o Projeto Poliacutetico-Pedagoacutegico de cada escola Entretanto

durante a pesquisa atraveacutes do contato com a direccedilatildeo da escola e dos grupos focais realizados

com professores foi constatado que esse documento natildeo orienta as praacuteticas da escola da mesma

forma que os documentos do PEI

199

45 Seleccedilatildeo dos participantes e realizaccedilatildeo dos grupos focais

Dois grupos de participantes foram recrutados para a presente pesquisa alunos do

terceiro ano Ensino Meacutedio de escolas do PEI e professores de escolas que estavam

desenvolvendo o PEI e que ministrassem a disciplina de Projeto de Vida ndash alvo da anaacutelise da

presente pesquisa Com base nas propostas de Carlini-Cotrim (1996) e Millward (2010) foram

realizados dois grupos focais especiacuteficos um com alunos e outro com professores

Para a realizaccedilatildeo dos grupos focais com alunos nas escolas selecionadas o pesquisador

entrou em cada turma de terceiro ano do Ensino Meacutedio para convidaacute-los a participar da

pesquisa Foi realizado um uacutenico grupo focal com alunos em cada escola contendo 11

participantes na Escola A e 9 na Escola B No total apresentaram uma idade meacutedia de 17 anos

sendo 70 do sexo feminino e 30 do masculino

Em relaccedilatildeo aos grupos com professores todos os professores de Projeto de Vida das

escolas selecionadas foram convidados pelo pesquisador sendo que todos aceitaram o convite

Foi realizado um uacutenico grupo focal com professores em cada escola contendo 13 participantes

na Escola A e trecircs na Escola B No total 81 dos professores eram do sexo feminino e 19

do sexo masculino apresentando uma idade meacutedia de 46 anos As formaccedilotildees universitaacuterias dos

professores eram nos cursos de Ciecircncias Bioloacutegicas Ciecircncias Sociais Educaccedilatildeo Artiacutestica

Educaccedilatildeo Fiacutesica Filosofia Histoacuteria Letras Matemaacutetica Pedagogia e Psicologia

46 Anaacutelise documental e anaacutelise dos grupos focais

Foi realizada uma anaacutelise de conteuacutedo dos discursos sociais e das narrativas pessoais

produzidos em documentos escolares e nos grupos focais com base em Bardin (1977)

Inspirada no socioconstrucionismo esta pesquisa tem como princiacutepio uma ontologia relacional

na qual a realidade eacute intersubjetivamente construiacuteda Narrativas e discursos produzidos e

articulados nas relaccedilotildees satildeo o foco da investigaccedilatildeo que tem a hermenecircutica diatoacutepica como

principal estrateacutegia para a interpretaccedilatildeo de significados sobre os fenocircmenos psicossociais e que

adota o diaacutelogo democraacutetico como sua perspectiva eacutetico-poliacutetica Na hermenecircutica diatoacutepica a

produccedilatildeo de sentidos se daacute na relaccedilatildeo entre todos (pesquisadores e participantes no presente

caso) e o conhecimento especiacutefico de cada um eacute levado em conta para a anaacutelise final (Ribeiro

2017) Foi realizada a leitura dos documentos escolares selecionados e das transcriccedilotildees dos

200

grupos focais Em seguida foram elaborados dois eixos de anaacutelise das produccedilotildees discursivas

teoacuterico-metodoloacutegico e ideoloacutegico

5 Anaacutelise dos resultados

51 Eixo Teoacuterico-Metodoloacutegico

Na perspectiva socioconstrucionista de OP as ideias de projeto de vida e plano de accedilatildeo

estatildeo presentes envolvendo processos contiacutenuos de escolhas (Ribeiro 2011) Projeto de vida

como narrativa abrange a compreensatildeo de eventos passados da vida das pessoas e o

planejamento de accedilotildees futuras Assim estaacute proacuteximo ao realizado na disciplina Projeto de Vida

na qual satildeo trabalhados o autoconhecimento a identidade e os valores pessoais

conhecer a si e conhecer os outros De onde vocecirc veio quem eacute vocecirc (Professor da Escola

B)

Por sua vez o plano de accedilatildeo no trabalho enquanto dimensatildeo operativa e instrumental

do projeto de vida de trabalho pode ser definido como um conjunto de accedilotildees para atingir um

fim (Ribeiro 2011) Vemos na disciplina Projeto de Vida o estabelecimento de um objetivo a

ser alcanccedilado e o planejamento para atingiacute-lo

Eacute tudo o que a gente quer alcanccedilar e como a gente vai fazer para alcanccedilar o objetivo (Aluna da

Escola B)

Neste sentido podemos afirmar que a disciplina Projeto de Vida tem todas as

caracteriacutesticas necessaacuterias para ser definida como accedilatildeo de OP apesar dos documentos oficiais

natildeo utilizarem esta nomeaccedilatildeo Inclusive o termo ldquoProjeto de vidardquo pode ser traduzido para a

liacutengua inglesa como ldquolife designrdquo que eacute uma das propostas contemporacircneas fundamentadas no

construcionismo social do campo da OP (Savickas et al 2009)

A disciplina Projeto de Vida pode ser entendida como accedilatildeo da OP primeiramente por

visar a construccedilatildeo de um projeto de vida principalmente focado no projeto de vida de trabalho

embora natildeo preconize este objetivo central em suas diretrizes

A disciplina Projeto de Vida visa no seu final o mercado de trabalho esta eacute a essecircncia da

disciplina natildeo satildeo apenas os seus sonhos diversos (Professor da Escola A)

E em segundo lugar por guardar semelhanccedilas com modelos tradicionais de OP como

o modelo da Ativaccedilatildeo do Desenvolvimento Vocacional e Pessoal (ADVP Pelletier Noiseux

amp Bujold 1982) ao se focar em situaccedilotildees de aprendizagem predefinidas e investir no

desenvolvimento sociocognitivo para planejamento do futuro bem como com a proposta de

201

Educaccedilatildeo para a Carreira (Hoyt 1987) Deve-se salientar que nenhuma dessas duas tradicionais

propostas do campo da OP satildeo citadas como referecircncia para a disciplina nem que ela seria uma

estrateacutegia de OP

Em comparaccedilatildeo ao Programa Informaccedilatildeo Profissional (PIP) antiga poliacutetica puacuteblica de

OP do Estado de Satildeo Paulo o PEI apresenta avanccedilos por trazer aleacutem da questatildeo da informaccedilatildeo

profissional o desenvolvimento do autoconhecimento e da construccedilatildeo do futuro via projetos

Ainda o PEI apresenta uma proposta de OP integrada ao projeto da escola que tem como eixo

estruturante a construccedilatildeo do projeto de vida do aluno Nesse aspecto tambeacutem estaacute aleacutem do

antigo PIP cuja disciplina estava desarticulada com o restante do projeto poliacutetico-pedagoacutegico

da escola

Tanto no PIP quanto no PEI o professor possui um papel central nas praacuteticas de OP que

satildeo desenvolvidas e historicamente sabe-se que um dos motivos do fracasso do PIP foi a falta

de treinamento especializado para os professores (Baptista 1984 Carvalho 1985 Silva 2010)

No PEI os professores relatam que recebem uma formaccedilatildeo precaacuteria para ministrar a disciplina

Projeto de Vida sendo realizada principalmente entre eles proacuteprios nas reuniotildees de

alinhamento e no dia a dia da sala de aula

no primeiro ano noacutes natildeo tivemos formaccedilatildeo absolutamente nenhuma (Professora da Escola A)

Nossa maior formaccedilatildeo eacute entre noacutes mesmos (Professor da Escola B)

Pessente (2016 p 61) traz o relato de professores do PEI afirmando que os processos

formativos mais uacuteteis foram aqueles oferecidos na proacutepria escola e na troca entre os colegas

configurando-se como um ldquoprocesso de formaccedilatildeo coletivordquo e realizado na praacutetica com base na

experiecircncia de cada um

Uma formaccedilatildeo de professores especiacutefica e sistemaacutetica se faz necessaacuteria aos professores

da disciplina Projeto de Vida Eacute um risco considerar que somente sua experiecircncia profissional

e pessoal seratildeo suficientes para desempenhar seu papel Essa formaccedilatildeo ou a precariedade desta

tambeacutem influencia em como os professores entendem as diretrizes da disciplina e como

adequam e criam as atividades para serem dadas em sala de aula

52 Eixo Ideoloacutegico

As produccedilotildees narrativas de alunos e professores reproduzem o discurso empresarial no

qual destacam-se deste leacutexico algumas palavras-chave como competiccedilatildeo metas pressatildeo

competecircncia

202

eu tenho que ser melhor que todo mundo nessa sala para eu conseguir alcanccedilar meu objetivo

(Aluna da Escola A)

Nos documentos do PEI o desenvolvimento de competecircncias surge com destaque nas

produccedilotildees discursivas Para Baptista (2015) enquanto haacute nos documentos norteadores do PEI

a sugestatildeo de uma educaccedilatildeo focada no ser humano um modelo empresarial eacute a base da gestatildeo

da escola atraveacutes da cobranccedila de metas e resultados fundamentados no que a loacutegica empresarial

preconiza como metas e resultados relevantes independentemente da realidade na qual a escola

estaacute inserida Para alcanccedilar esse resultado e reconhecimento os alunos devem concorrer com

os demais candidatos ateacute mesmo da proacutepria escola por vagas no Ensino Superior A base

ideoloacutegica desta competiccedilatildeo eacute a meritocracia neoliberal

vocecirc se vecirc forccedilado a entrar a passar para falar eu consegui eu sou bom o suficiente eles

potildeem vocecirc numa posiccedilatildeo de ou vocecirc eacute ou vocecirc eacute (Aluna da Escola A)

No acircmbito do trabalho o discurso neoliberal enfatiza a responsabilidade de cada pessoa

por seus resultados de carreira ao inveacutes de uma responsabilizaccedilatildeo da sociedade ou

organizacional (Roper Ganesh amp Inkson 2010) A desigualdade social eacute colocada como um

ldquoinfeliz resultado de um mundo globalizado tecnologicamente avanccedilado e competitivo que

pode ser superado pelas pessoas atraveacutes da determinaccedilatildeo pessoal da inovaccedilatildeo e do trabalho

durordquo (Irving 2010 p 59)

Exemplos desse discurso estatildeo presentes nas atividades do caderno do professor no qual

satildeo apresentadas histoacuterias de brasileiros que obtiveram sucesso na vida graccedilas ao seu esforccedilo

pessoal Por sua vez o protagonismo juvenil surge reforccedilando a responsabilizaccedilatildeo do aluno

pela concretizaccedilatildeo do seu projeto de vida Nos documentos do programa haacute uma naturalizaccedilatildeo

da atual estrutura sociolaboral O mundo de trabalho jaacute estaacute dado e o sucesso eacute pessoal e

individualizado baseado na loacutegica empresarial vigente do que eacute ter sucesso

Hoje eacute aquele negoacutecio ou vocecirc eacute patratildeo ou vocecirc eacute peatildeo (Aluna da Escola A)

Entretanto estes discursos hegemocircnicos satildeo parciais Haacute uma divergecircncia entre as

produccedilotildees discursivas sociais e as narrativas de professores e alunos Inclusive haacute diversidade

entre as proacuteprias narrativas de professores e alunos pois enquanto alguns reproduzem o

discurso meritocraacutetico neoliberal outros o questionam

ldquoEntatildeo estuda que vocecirc vai conseguirrdquo mas nem sempre vocecirc consegue A realidade eacute essa e

ela bate na porta (Aluna da Escola A)

Tem vaacuterias pessoas que satildeo felizes tecircm sucesso e que natildeo tecircm necessariamente uma faculdade

(Professora da Escola B)

203

Segundo Blustein (2011) McNamee (2012) e Ribeiro (2014 2017) com base no

construcionismo social esta divergecircncia caracteriza a construccedilatildeo ontoloacutegica relacional na qual

uma realidade natildeo eacute reproduzida mas coconstruiacuteda na relaccedilatildeo entre os atores narrativas e

discursos envolvidos No presente caso o discurso do PEI focado na loacutegica neoliberal e as

narrativas accedilotildees e reflexotildees dos professores e alunos baseada em suas realidades de vida

O discurso social predominante no PEI eacute a valorizaccedilatildeo do Ensino Superior a formaccedilatildeo

universitaacuteria como objetivo do Projeto de Vida Quando este objetivo se encontra

descontextualizado um modelo de sucesso pode se tornar um modelo de fracasso Estabelecer

como o uacutenico caminho para todos os alunos a formaccedilatildeo universitaacuteria considerando que natildeo haacute

vagas suficientes neste niacutevel de ensino tornaraacute esses alunos exemplos de fracasso e geraraacute mais

frustraccedilatildeo Contudo foi possiacutevel encontrar nas narrativas de professores e alunos divergecircncias

em relaccedilatildeo ao discurso social predominante no programa nas quais outros tipos de projetos

tambeacutem satildeo valorizados reforccedilando a ideia de que a realidade eacute coconstruiacuteda (Ribeiro 2014

Savickas et al 2009)

De forma alguma se trata por exemplo de deixar de estimular ou encorajar os alunos

O que se propotildee eacute estimular o aluno a ter maiores aspiraccedilotildees sem no entanto desvalorizar ou

menosprezar os projetos que natildeo passem pela escolha de uma universidade Os professores

devem ter o cuidado de levar em conta o contexto do aluno motivando-o sem ultrapassar o

limite de impor um modelo de sucesso que natildeo eacute dele Projetos como a escolha de um curso

teacutecnico ou a constituiccedilatildeo de uma famiacutelia ao final do Ensino Meacutedio devem ser respeitados e

legitimados

Um uacuteltimo aspecto a ser destacado refere-se agraves produccedilotildees discursivas em torno do

mundo do trabalho que eacute apresentado enquanto uma realidade natural Natildeo eacute realizada no PEI

uma discussatildeo sobre as representaccedilotildees sociais das carreiras sobre o contexto histoacuterico-poliacutetico

do trabalho ou sobre a interseccionalidade entre classe social gecircnero e raccedila no mundo do

trabalho

Criacuteticas semelhantes foram realizadas ao Programa Informaccedilatildeo Profissional (PIP) por

Baptista (1984) e ao modelo da Educaccedilatildeo para a Carreira por Irving (2010) Para Irving (2018)

as discussotildees sobre carreira deveriam dar suporte a muacuteltiplas maneiras de ser e participar no

mundo assim como possibilitar aos estudantes uma exploraccedilatildeo sobre caminhos coletivos nos

quais podem influenciar e impactar seu contexto poliacutetico econocircmico e social

204

Consideraccedilotildees finais

Teoacuterica e metodologicamente a disciplina de Projeto de vida se assemelha a modelos

tradicionais do campo da OP e pode ser considerada uma poliacutetica puacuteblica de OP apesar de natildeo

ser assim nomeada e de natildeo oferecer treinamento adequado aos professores responsaacuteveis pela

disciplina E ideologicamente a disciplina carrega o discurso neoliberal do esforccedilo individual

e da alta qualificaccedilatildeo como uacutenicos caminhos para o sucesso na vida de trabalho apesar de

narrativas singulares de professores e alunos problematizarem esta visatildeo

No Brasil natildeo haacute uma norma que regulamente a profissatildeo de orientador profissional

podendo ser encontrados neste campo de atuaccedilatildeo diferentes profissionais como psicoacutelogos

administradores pedagogos licenciados (professores) etc Assim como na deacutecada de 1970 na

qual os professores tiveram destaque atraveacutes de disciplinas de orientaccedilatildeo na grade curricular

com a atual Reforma do Ensino Meacutedio os professores voltam a ser os principais agentes da OP

No caso do Estado de Satildeo Paulo isso jaacute acontece no PEI e seraacute ampliado com o Programa Inova

Educaccedilatildeo

Considerando as reformas curriculares e a inserccedilatildeo da OP nestas poliacuteticas educacionais

atraveacutes de termos como Projeto de Vida faz-se relevante que a OP enquanto aacuterea deva se

preparar para os modelos pedagoacutegicos jaacute existentes e para as praacuteticas que seratildeo implementadas

Principalmente que seja oferecida formaccedilatildeo adequada para os professores e para os demais

educadores no desenvolvimento destes modelos de OP utilizados como poliacutetica puacuteblica de

educaccedilatildeo e trabalho

Para que esse diaacutelogo entre OP e educaccedilatildeo seja estabelecido haacute alguns caminhos que

podem ser apontados como a criaccedilatildeo ou o aprimoramento de espaccedilos de formaccedilatildeo em OP para

educadores seja em cursos de graduaccedilatildeo poacutes-graduaccedilatildeo ou eventos cientiacuteficos

No Estado de Satildeo Paulo a futura inserccedilatildeo de psicoacutelogos nas diretorias de ensino mesmo

que a princiacutepio seja para fazer parte de um programa voltado para a seguranccedila nas escolas abre

como possibilidade a atuaccedilatildeo direta nas poliacuteticas puacuteblicas educacionais As diretorias de ensino

enquanto intermediaacuterias entre a Secretaria da Educaccedilatildeo do Estado de Satildeo Paulo (SEESP) e a

direccedilatildeo de cada escola tecircm como algumas de suas atribuiccedilotildees implementar programas de

formaccedilatildeo continuada a docentes aleacutem de supervisionar e acompanhar o funcionamento das

escolas Neste aspecto faraacute sentido se o psicoacutelogo na Diretoria de Ensino trabalhar em conjunto

com a Equipe de Supervisatildeo de Ensino (ESE) e o Nuacutecleo Pedagoacutegico (NPE) mais

especificamente com os Professores Coordenadores do Nuacutecleo Pedagoacutegico (PCNPs)

205

Sobre a atuaccedilatildeo do psicoacutelogo-orientador profissional na formaccedilatildeo de educadores seja

nas diretorias de ensino ou em outros espaccedilos eacute possiacutevel antecipar como principal desafio a

preparaccedilatildeo enquanto educador e psicoacutelogo escolar Reafirmarmos o apontamento de Uvaldo

Garcia Munhoz e Teixeira (2012) sobre a necessidade de se incluir na formaccedilatildeo dos

orientadores profissionais conhecimentos sobre o funcionamento do sistema educacional

brasileiro dos processos de aprendizagem e das linhas pedagoacutegicas

O olhar da psicologia social nas poliacuteticas puacuteblicas como no caso de poliacuteticas

educacionais auxilia a pensar psicossocialmente os fenocircmenos e ampliar as possibilidades de

construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de programas gerais e de metodologias focadas na relaccedilatildeo pessoa e

contexto social Como principais limitaccedilotildees do estudo podemos citar a regionalizaccedilatildeo da

pesquisa concentrada na cidade de Satildeo Paulo uma anaacutelise que natildeo focou as questotildees da

interseccionalidade de gecircnero raccedilaetnia e classe e a falta de estudos sobre a mesma temaacutetica

ainda recente para uma melhor validaccedilatildeo intersubjetiva da pesquisa

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210

Capiacutetulo 11

A tessitura de redes de diaacutelogo e de participaccedilatildeo de crianccedilas no cuidado

hospitalar pediaacutetrico

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo

Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Adriana Marcondes Machado

Introduccedilatildeo

Este capiacutetulo tem como propoacutesito ensejar a construccedilatildeo de uma composiccedilatildeo que

estabeleccedila entrelaccedilamentos entre a infacircncia a psicologia e as poliacuteticas puacuteblicas destinadas agraves

crianccedilas Para tanto entrevistas com crianccedilas hospitalizadas na enfermaria pediaacutetrica de um

hospital puacuteblico do municiacutepio de CuiabaacuteMT produzidas no acircmbito de uma pesquisa de

mestrado (Assunccedilatildeo 2018) foram revisitadas com o intuito de mobilizar reflexotildees que

desvelassem os modos de inscriccedilatildeo e as redes de significaccedilotildees partilhados por 26 crianccedilas-

usuaacuterias frente agraves praacuteticas de cuidado em sauacutede a elas dirigidas

Na medida em que a investigaccedilatildeo apresentada assumiu o delineamento de uma

abordagem de pesquisa com crianccedilas enfatizou-se uma modalidade de escuta atenta ao

pertencimento e agrave inserccedilatildeo social de uma categoria geracional que dispotildee de estatuto social e

poliacutetico especiacuteficos e que mobiliza processos de inserccedilatildeo social fundados por esta condiccedilatildeo de

existecircncia Para tanto orientou-se pelos contornos da pesquisa do tipo etnograacutefica tal como

sintetiza Andreacute (2003) apoiada pelo emprego de entrevistas de observaccedilatildeo participante e de

anaacutelise documental A presente discussatildeo edificaraacute como recorte os conteuacutedos engendrados

particularmente pelas entrevistas com as crianccedilas hospitalizadas

Diante das conjecturas analiacuteticas empreendidas elucidou-se que as participantes ao

expressarem seus processos de elaboraccedilatildeo e partilha acerca de suas experiecircncias de

hospitalizaccedilatildeo anunciaram tambeacutem por intermeacutedio deste exerciacutecio de enunciaccedilatildeo os

atravessamentos suscitados pelos arranjos institucionais de organizaccedilatildeo e gestatildeo dos serviccedilos

de assistecircncia em sauacutede exprimindo as formas pelas quais interpretavam e imprimiam sentidos

agraves praacuteticas de cuidado ofertadas pelas equipes de sauacutede que compunham a instituiccedilatildeo enfocada

211

Os conteuacutedos explicitados pelas crianccedilas permitiram depreender que o agenciamento de

encontros intergeracionais menos hierarquizados em um contexto puacuteblico de sauacutede pediaacutetrica

pode adquirir o potencial de configurar-se enquanto fecundo dispositivo de participaccedilatildeo social

e de produccedilatildeo de visibilidade ciacutevica da infacircncia sinalizando possibilidades de inserccedilatildeo capazes

de oportunizar a elevaccedilatildeo do grau democraacutetico de tais instituiccedilotildees

Em atenccedilatildeo a isso pondera-se que o universo de relaccedilotildees sociais forjado no acircmbito dos

equipamentos puacuteblicos de sauacutede extrapola as fronteiras circunscritas agraves suas respectivas funccedilotildees

sociais de oferta de serviccedilos e estrateacutegias amalgamadas por percursos de atenccedilatildeo em sauacutede

assentados na prevenccedilatildeo promoccedilatildeo tratamento e reabilitaccedilatildeo traspondo-se a uma esfera que

considera a perspectiva do desenvolvimento dos sujeitos Neste sentido ao consolidar-se a

partir do marco constitucional do direito agrave sauacutede o acesso agraves instituiccedilotildees puacuteblicas se configura

enquanto componente da complexa rede de relaccedilotildees biopsicossociais que concorre para os

processos de constituiccedilatildeo dosas usuaacuteriosas notabilizando a dimensatildeo educativa poliacutetica e

cidadatilde que as encerram ao mobilizarem processos de participaccedilatildeo e inscriccedilatildeo no interior da

rede assistencial do Sistema Uacutenico de Sauacutede

Para a construccedilatildeo do itineraacuterio teoacuterico e analiacutetico ora proposto delineou-se a elaboraccedilatildeo

de subtemas que perpassaram a discussatildeo em torno do estatuto social da infacircncia em diaacutelogo

com a teoria histoacuterico-cultural o destaque das disposiccedilotildees sobre sauacutede da crianccedila a partir de

poliacuteticas e resoluccedilotildees especiacuteficas eleitas com o propoacutesito de explicitar os princiacutepios e diretrizes

que preconizam as crianccedilas-usuaacuterias como copartiacutecipes nos processos de gestatildeo produccedilatildeo

tratamento e avaliaccedilatildeo em sauacutede a contextualizaccedilatildeo da pesquisa de mestrado cujos dados foram

emprestados a anaacutelise das entrevistas com as crianccedilas hospitalizadas e as consideraccedilotildees finais

desta discussatildeo

1 O estatuto social das crianccedilas em diaacutelogo com a teoria histoacuterico-cultural e a sociologia

da infacircncia

Os conhecimentos partilhados sobre a infacircncia bem como acerca de seu potencial de

participaccedilatildeo social e poliacutetica satildeo engendrados por processos histoacutericos e sociais de construccedilatildeo

fundados por referecircncias e paradigmas distintos e coexistentes que disputam sua constituiccedilatildeo

Neste aspecto dedica-se agrave exploraccedilatildeo das formulaccedilotildees tencionadas pela teoria histoacuterico-

cultural de Vygotsky (2000a 2000b) e a sociologia da infacircncia (Sarmento 2007 Ferreira

212

2010) que colaborem para a compreensatildeo deste quadro conceitual e histoacuterico que participa da

constituiccedilatildeo do estatuto social da infacircncia

Em uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo de desenvolvimento segundo a qual a teoria

histoacuterico-cultural estabeleceu seus alicerces Vygotsky (2000a) enfatizou a necessidade de

combater as formulaccedilotildees que postulassem pela permanecircncia de um vestiacutegio oculto de

ldquopreformismordquo em torno das apreciaccedilotildees acerca do desenvolvimento infantil

O referido pressuposto ancora-se sob um paradigma vigente de maneira velada no

pensamento social e cientiacutefico que considera que a crianccedila se diferenciaria dosas adultosas

exclusivamente pelos contornos e proporccedilotildees fiacutesicas Esta imagem culturalmente eleita

adquiriu eficaacutecia e reverberaccedilatildeo social com o propoacutesito de tecer explicaccedilotildees aos fenocircmenos

pertinentes ao desenvolvimento infantil tendo sido a crianccedila usualmente simbolizada pela

designaccedilatildeo de adulto em miniatura (Vygotsky 2000a)

As teorias ldquopreformistasrdquo ampararam-se pela concepccedilatildeo de que o desenvolvimento se

estabelece sob condiccedilotildees simplesmente quantitativas cuja ldquosementerdquo do humano carrega

consigo todas as estruturas e particularidades de um organismo jaacute formado e maduro (Vygotsky

2000a)

As teorias psicoloacutegicas dedicadas agrave gecircnese do desenvolvimento infantil bem como a

proacutepria praacutetica psicoloacutegica empenham-se no esforccedilo de reiterar que tal fenocircmeno encerra

processos que superam a noccedilatildeo elementar de transformaccedilotildees quantitativas evidenciando que

os meacutetodos essencialmente comparativos entre adultosas e crianccedilas produzem saberes e teorias

que ocasionam a reduccedilatildeo da infacircncia aos aspectos contrastantes de sua situaccedilatildeo de

desenvolvimento em relaccedilatildeo agrave doa adultoa (Vygotsky 2000a) Neste campo desvelam-se

enfoques investigativos teoacutericos e praacuteticos que nada revelam acerca dos traccedilos da condiccedilatildeo

humana da infacircncia em estaacutegio singular de desenvolvimento e aprendizagem

Diante dessas consideraccedilotildees sublinha-se que tais discursos construiacutedos ao longo da

histoacuteria incorrem em impactos psicossociais que adquirem o potencial de produzir efeitos de

invisibilizaccedilatildeo da infacircncia concorrendo para a constituiccedilatildeo de seu estatuto social A

constituiccedilatildeo simboacutelica desta categoria geracional mediante as condiccedilotildees enfatizadas encontra-

se inscrita nas redes de significados socialmente elaboradas que a partir dos processos de

interpretaccedilatildeo da realidade orientam praacuteticas e discursos que circunscrevem a infacircncia e as

crianccedilas

213

As investigaccedilotildees desenvolvidas na seara da sociologia da infacircncia discorrem acerca do

processo de ocultamento da complexidade social da categoria geracional infacircncia gerando

impactos a respeito do que se sabe sobre as infacircncias e crianccedilas posto que ldquonuma ciecircncia que

tem sido predominantemente produzida a partir de uma perspectiva adultocentrada as

vivecircncias culturas e representaccedilotildees das crianccedilas escapam-se ao conhecimento que delas temosrdquo

(Sarmento 2007 p 26)

O campo das imagens sociais sobre a infacircncia se traduz por um expressivo significado

social que incorre na produccedilatildeo de seu estatuto social o qual se revela na esfera da justificaccedilatildeo

das praacuteticas dosas adultos em relaccedilatildeo agraves crianccedilas sobretudo objetivada pela prescriccedilatildeo e pela

invisibilidade de sua potecircncia social cultural poliacutetica e ciacutevica na medida em que eacute considerada

sob a eacutegide da marca da negatividade e da ausecircncia (Sarmento 2007)

Os argumentos expostos contribuem para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese de que tais

concepccedilotildees fortalecem os discursos mais estaacuteveis e tradicionais antagocircnicos ao paradigma

preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas pertinentes ao setor sauacutede acerca da infacircncia que

privilegiam as orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas que legitimam a condiccedilatildeo de cidadania destes

sujeitos

Contrapondo-se agrave concepccedilatildeo de que o desenvolvimento cultural seria uma continuaccedilatildeo

direta do desenvolvimento natural da crianccedila Vygotsky (2000b) propotildee que

[hellip] quando a crianccedila se insere na cultura natildeo apenas apreende algo natildeo apenas assimila e se

enriquece com o que estaacute fora dela [crianccedila] mas a proacutepria cultura reelabora profundamente a

composiccedilatildeo natural do comportamento da crianccedila e fornece uma orientaccedilatildeo completamente

nova a todo o curso de seu desenvolvimento (Vygotsky 2000b p 305 traduccedilatildeo nossa) 1

Assim notabiliza-se que aleacutem de enfatizar o caraacuteter dialeacutetico do desenvolvimento

cultural da crianccedila Vygotsky (2000b) anuncia que a mesma tambeacutem contribui para a

reelaboraccedilatildeo da composiccedilatildeo cultural ressaltando a participaccedilatildeo da crianccedila na cultura e na

histoacuteria

Acerca do exposto salienta-se que as crianccedilas enquanto dotadas de capacidade de

negociaccedilatildeo de gerir e reinterpretar a composiccedilatildeo social e cultural em seus proacuteprios termos a

partir das relaccedilotildees intra e intergeracionais negociam e produzem sentidos que se desvelam

ancorados em criteacuterios e referecircncias que se distinguem daquelas dosas adultosas mas que natildeo

por isso as destituem do exerciacutecio de seus respectivas papeis como atoresatrizes sociais

1 [] ldquocuando el nintildeo se adentra en la cultura no soacutelo toma algo de ella no soacutelo asimila y se enriquece con lo que

estaacute fuera de eacutel sino que la propria cultura reelabora en profundidad la composicioacuten natural de su conducta y da

una orientacioacuten completamente nueva a todo el curso de su desarrollordquo (Vygotsky 2000b p 305)

214

(Ferreira 2010) A presente contribuiccedilatildeo assume portanto como patente o exerciacutecio de

encontro com a alteridade objetivada pela crianccedila convocando para a criaccedilatildeo e o tensionamento

de estrateacutegias que reivindiquem a validade de seus modos de compor e se inscrever nos

diferentes contextos de existecircncia com vistas agrave superaccedilatildeo do estatuto social que as confere o

semblante de negatividade e de ausecircncia ao interpor obstaacuteculos para o reconhecimento de sua

condiccedilatildeo de cidadania e da legitimidade de sua participaccedilatildeo social nos diferentes cenaacuterios Um

dos desafios do mundo adulto passa a ser neste acircmbito acessar aquilo que as crianccedilas vivem e

pensam no cotidiano das praacuteticas sociais a elas endereccediladas

A partir das consideraccedilotildees enfocadas acerca das crianccedilas dedica-se agrave explanaccedilatildeo de

suas interlocuccedilotildees com as poliacuteticas puacuteblicas a fim de avanccedilar na composiccedilatildeo da presente

construccedilatildeo argumentativa

2 Notas sobre as poliacuteticas de atenccedilatildeo em sauacutede e a infacircncia

No final do seacuteculo XX sob pressotildees dos movimentos populares de redemocratizaccedilatildeo

do paiacutes assim como da Reforma Sanitaacuteria Brasileira2 foi promulgada em 1988 a Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica Federativa do Brasil que preconizou a sauacutede como um direito social fundamental

de todosas osas cidadatildeoscidadatildes e dever a ser garantido pelo Estado instituindo o Sistema

Uacutenico de Sauacutede (SUS) Para regulamentaacute-lo foi estabelecida uma legislaccedilatildeo especiacutefica que natildeo

se resumiu apenas aos limites do SUS mas a diversos aspectos da sauacutede da populaccedilatildeo de

maneira geral intitulada lei orgacircnica da sauacutede (Lei ndeg 8080 de 19 de setembro de 1990) Esta

foi complementada pela lei que dispotildee sobre a participaccedilatildeo e o controle social do SUS (Lei nordm

8142 de 28 de dezembro de 1990) (Paim 2009)

No que se refere agraves poliacuteticas de sauacutede direcionadas agrave infacircncia apoacutes a instituiccedilatildeo do SUS

pela Constituiccedilatildeo de 1988 foi sancionado o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Lei nordm 8069

de 13 de julho de 1990) que instituiu a proteccedilatildeo integral e resolveu questotildees que perpassavam

a atenccedilatildeo em sauacutede desta populaccedilatildeo como por exemplo os direitos do neonato as obrigaccedilotildees

hospitalares e dosas profissionais de sauacutede o direito agrave permanecircncia em tempo integral do pai

2 O movimento da Reforma Sanitaacuteria Brasileira tambeacutem conhecido como RSB originou-se na segunda metade

da deacutecada de 1970 com a finalidade de defender a democratizaccedilatildeo da sauacutede e o processo de reestruturaccedilatildeo de seu

sistema de serviccedilos Foi protagonizado por membros de vaacuterios segmentos sociais e populares como estudantes

sociedade civil pesquisadoresas profissionais de sauacutede bem como membros de entidades comunitaacuterias

profissionais e sindicais Um importante marco deste movimento foi a 8ordf Conferecircncia Nacional de Sauacutede em 1986

na qual foram debatidas as proposiccedilotildees sociais que fariam parte da RSB sendo o relatoacuterio final desta reuniatildeo

utilizado como base para a elaboraccedilatildeo da seccedilatildeo ldquoDa Sauacutederdquo da Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 (Paim 2009)

215

da matildee ou doa responsaacutevel legal em regime intensivo enfermarias e demais setores de atenccedilatildeo

pediaacutetrica e neonatal (Brasil 1990)

Posteriormente foi aprovada a Resoluccedilatildeo nordm 41 (de 13 de outubro de 1995) do Conselho

Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente (CONANDA) fundamentada no texto

formulado pela Sociedade Brasileira de Pediatria Neste documento instituiu-se dimensotildees natildeo

antes abarcadas pela lei anterior enfatizando a importacircncia de a perspectiva da crianccedila ser

levada em conta apontando a necessidade de ela ser escutada e instruiacuteda em seus processos de

adoecimento e tratamento em sauacutede (Brasil 2004)

Apesar da promulgaccedilatildeo da sauacutede como um direito e de sua regulamentaccedilatildeo enquanto

serviccedilo puacuteblico de atenccedilatildeo e de cuidado ainda assim persistiram problemaacuteticas relacionadas agrave

qualidade da gestatildeo e dos serviccedilos prestados ao sofrimento dosas trabalhadoresas e

usuaacuteriosas a ampliaccedilatildeo do acesso dentre outras Nesse sentido a emergecircncia do tema da

humanizaccedilatildeo foi anunciada na 11ordf Conferecircncia Nacional de Sauacutede no ano de 2000 sendo

reconhecida como um dos principais desafios que permeavam o SUS suscitando sua necessaacuteria

abordagem como parte da pauta e da agenda do setor sauacutede na qualidade de uma estrateacutegia para

o enfrentamento das questotildees salientadas (Pasche 2013)

Para sua instituiccedilatildeo seria preciso constituir o sentido de humanizaccedilatildeo a ser elencado a

direccedilatildeo eacutetico-poliacutetica a ser legitimada e tomada como base para a constituiccedilatildeo deste paradigma

de cuidado e de gestatildeo em sauacutede O valor de humanizaccedilatildeo tencionado pressupunha a inserccedilatildeo

das diferentes pessoas nos processos de gestatildeo e de cuidado colocando-as em diaacutelogo para o

exerciacutecio de relaccedilotildees mais democraacuteticas (Pasche 2013)

Diante dessas problemaacuteticas sob tensionamentos populares e sindicais o Ministeacuterio da

Sauacutede regulamentou o Programa Nacional de Humanizaccedilatildeo da Assistecircncia Hospitalar

(PNHAH) a partir de um projeto apresentado no ano de 2000 Este visava difundir accedilotildees e

propostas de humanizaccedilatildeo ao atendimento puacuteblico em sauacutede nos hospitais preconizando a

transformaccedilatildeo da cultura de atendimento existente de seus modos de cuidar e do modelo de

atenccedilatildeo principalmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre profissionais de sauacutede e

usuaacuteriosas entre osas proacutepriosas profissionais e entre o hospital e a comunidade (Brasil

2001)

Posteriormente compreendeu-se que para sua consolidaccedilatildeo nas instituiccedilotildees

hospitalares era necessaacuterio que este programa fosse pensado para toda a rede do sistema de

sauacutede Segundo Rios (2009) em 2003 o programa foi revisto e incorporado como um

216

aprimoramento ao SUS como um todo sendo lanccedilado como poliacutetica puacuteblica com a

denominaccedilatildeo de Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (PNH)

A PNH dos serviccedilos de sauacutede atribuiu destaque agraves relaccedilotildees estabelecidas entre os

sujeitos agraves atitudes e praacuteticas sociais que circunscrevem seus modos de cuidar e gerir em

direccedilatildeo ao reposicionamento destes diante dos modos de ldquofazerrdquo sauacutede Este modelo preconiza

como imprescindiacuteveis os processos de negociaccedilatildeo coletiva suscitando a corresponsabilidade

a autonomia e a participaccedilatildeo dosas diferentes atoresatrizes sociais para a reconstruccedilatildeo das

relaccedilotildees de saber de poder e de afeto a partir de orientaccedilotildees princiacutepios e meacutetodos eacutetico-

poliacuteticos que privilegiam o exerciacutecio da inclusatildeo e do diaacutelogo (Pasche 2013)

A PNH orienta-se segundo os princiacutepios da transversalidade da indissociabilidade entre

atenccedilatildeo e gestatildeo e do protagonismo corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos

O primeiro pressupotildee que a humanizaccedilatildeo deve estar presente e inserida em todos os programas

estrateacutegias e poliacuteticas que fazem parte do SUS atravessando as diversas accedilotildees instacircncias e

relaccedilotildees entre os diferentes sujeitos ampliando a comunicaccedilatildeo entre estes O segundo

estabelece que a atenccedilatildeo e a gestatildeo compotildeem uma unidade e por isso devem ser

compreendidas como interdependentes e complementares natildeo podendo ser tomadas

separadamente nos processos de produccedilatildeo de sauacutede O terceiro consolida que a atenccedilatildeo o

cuidado e a gestatildeo precisam ser compartilhados entre equipes de sauacutede usuaacuteriosas redes

sociofamiliares e comunidades reconhecendo a cidadania a legitimidade de participaccedilatildeo e a

contribuiccedilatildeo destes para a construccedilatildeo de modos coletivos de gerir e cuidar (Brasil 2013)

As diretrizes da PNH retomadas por Santos Filho (2013) foram a cogestatildeo a diretriz

de acolhimento ambiecircncia e cliacutenica ampliada a diretriz da defesa dos direitos dosas

usuaacuteriosas e a diretriz de valorizaccedilatildeo do trabalho e dosas trabalhadoresas da sauacutede

Em continuidade a este processo histoacuterico de promulgaccedilatildeo de poliacuteticas enfatiza-se a

instituiccedilatildeo da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Crianccedila (PNAISC)

implementada por intermeacutedio da Portaria nordm 1130 de 5 de agosto de 2015 do Ministeacuterio da

Sauacutede no acircmbito do Sistema Uacutenico de Sauacutede Esta poliacutetica encontra-se fundada por princiacutepios

diretrizes e eixos estrateacutegicos que se estruturam com o objetivo de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo da

sauacutede da crianccedila e do aleitamento materno da gestaccedilatildeo aos nove anos de idade por intermeacutedio

de uma rede de accedilotildees de cuidado integral que coadune para a atenccedilatildeo agrave primeira infacircncia e agraves

populaccedilotildees vulneraacuteveis Este delineamento aspira como propoacutesito alccedilar a reduccedilatildeo da

morbimortalidade bem como ensejar condiccedilotildees dignas ao desenvolvimento e agrave existecircncia

humanos (Brasil 2018)

217

Os princiacutepios que orientam a PNAISC alicerccedilam-se sob o direito agrave vida e agrave sauacutede agrave

prioridade absoluta da crianccedila ao acesso universal agrave sauacutede no interior da rede assistencial agrave

integralidade do cuidado agrave equidade em sauacutede a um ambiente facilitador agrave vida agrave humanizaccedilatildeo

da atenccedilatildeo e agrave gestatildeo participativa e ao controle social Em relaccedilatildeo agraves diretrizes cuja

observacircncia se estabelece como necessaacuteria para a elaboraccedilatildeo dos programas e accedilotildees em sauacutede

desta populaccedilatildeo estas especificam-se a partir dos indicadores de gestatildeo interfederativa das

accedilotildees de sauacutede da crianccedila de organizaccedilatildeo das accedilotildees e dos serviccedilos na rede de atenccedilatildeo na

promoccedilatildeo da sauacutede no fomento agrave autonomia do cuidado e da corresponsabilidade da famiacutelia

na qualificaccedilatildeo da forccedila de trabalho do SUS no planejamento e desenvolvimento das accedilotildees no

incentivo agrave pesquisa e agrave produccedilatildeo de conhecimento no monitoramento e avaliaccedilatildeo e na

intersetorialidade (Brasil 2018) Neste campo notabiliza-se que a PNAISC enquanto uma

poliacutetica puacuteblica pertinente ao setor sauacutede fundamenta-se segundo o marco constitucional do

SUS e por conseguinte sob os princiacutepios e diretrizes da PNH

As accedilotildees estrateacutegicas da PNAISC por sua vez organizam-se a partir de sete eixos a

saber atenccedilatildeo humanizada e qualificada agrave gestaccedilatildeo ao parto ao nascimento e ao receacutem-

nascido aleitamento materno e alimentaccedilatildeo complementar saudaacutevel promoccedilatildeo e

acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento integral atenccedilatildeo integral agraves crianccedilas

com agravos prevalentes na infacircncia e com doenccedilas crocircnicas atenccedilatildeo integral agrave crianccedila em

situaccedilatildeo de violecircncias prevenccedilatildeo de acidentes e promoccedilatildeo da cultura de paz atenccedilatildeo agrave sauacutede

de crianccedilas com deficiecircncia ou em situaccedilotildees especiacuteficas e de vulnerabilidade vigilacircncia e

prevenccedilatildeo do oacutebito infantil fetal e materno (Brasil 2018)

Em suma a presente discussatildeo permite compreender que as poliacuteticas puacuteblicas em sauacutede

desenvolvidas no Brasil no final do seacuteculo XX e iniacutecio do XXI foram impulsionadas

principalmente pelos movimentos sociais e poliacuteticos Em consonacircncia os direitos civis da

infacircncia e da adolescecircncia tambeacutem foram debatidos e sancionados mobilizando-se a elaboraccedilatildeo

de poliacuteticas resoluccedilotildees eou claacuteusulas destinadas agrave sauacutede desta populaccedilatildeo

Com a emergecircncia da PNH chama-se a atenccedilatildeo para o desenvolvimento de um

paradigma em sauacutede que recobra o proacuteprio marco constitucional preconizado pelo Sistema

Uacutenico de Sauacutede enfatizado diante das problemaacuteticas que persistiam neste setor e sustentado

pela urgecircncia no estabelecimento de relaccedilotildees mais democraacuteticas entre os diferentes sujeitos

implicados no processo de atenccedilatildeo e de cuidado Apesar de natildeo realizar menccedilotildees particulares agrave

infacircncia e adolescecircncia sob o uso da terminologia de usuaacuteriosas crianccedilas adolescentes

adultosas e idososas tecircm sido entendidosas no bojo da PNH como sujeitos e agentes dos

218

processos de atenccedilatildeo e gestatildeo em sauacutede segundo as orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas de inclusatildeo

diaacutelogo protagonismo autonomia e corresponsabilidade Na PNAISC por sua vez essas

concepccedilotildees foram reiteradas mais frequentemente atreladas agraves famiacutelias como por vezes

tambeacutem dirigidas agraves crianccedilas-usuaacuterias enfocadas por esta poliacutetica contudo sem pormenorizar

sua aplicabilidade e efeitos

Diante do exposto eacute importante salientar que como categorias geracionais especiacuteficas

a infacircncia e a adolescecircncia possuem especificidades sociais histoacutericas e culturais atribuindo-

lhes marcas sociais que as diferenciam dosas adultosas e que precisam ser pensadas a partir

da complexidade que as encerram

A eacutetica que permeia a proacutepria poliacutetica de humanizaccedilatildeo e o marco constitucional do SUS

permite que coletivamente sejam propostas e efetuadas transformaccedilotildees dos arranjos que

constituem as relaccedilotildees de saber poder e afeto Nesse sentido a inclusatildeo de meacutetodos

dispositivos e experiecircncias que preconizem a crianccedila como copartiacutecipe e protagonista nas

diversas facetas do setor sauacutede podem se consolidar como medidas que contribuam para que

estas poliacuteticas promovam e potencializem a participaccedilatildeo das crianccedilas e dosas adolescentes

hospitalizadosas nos processos de produccedilatildeo de sauacutede

Diante do exposto a articulaccedilatildeo entre infacircncia e poliacuteticas puacuteblicas ora proposta

organiza-se em torno da premissa de que os espaccedilos puacuteblicos adquirem o potencial de se

configurar enquanto fecundos dispositivos de participaccedilatildeo social e de cidadania Os processos

coletivos de trabalho e de gestatildeo podem neste sentido intensificar as forccedilas democraacuteticas em

tais instituiccedilotildees especialmente quando pautados por encontros menos hierarquizados cuja

negociaccedilatildeo intergeracional seja tomada como princiacutepio prioritaacuterio

Mediante esta formulaccedilatildeo revela-se a importacircncia de que as instituiccedilotildees puacuteblicas de

sauacutede e de educaccedilatildeo sejam constituiacutedas e designadas segundo diretrizes que engendrem

estruturas de oportunidade de desenvolvimento e aprendizagem que conformem com

orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas mais democraacuteticas e dialoacutegicas preconizando processos de

implicaccedilatildeo e pertenccedila que sustentem a expressatildeo de atoresatrizes sociais autocircnomosas e

participativosas

Nesta amplitude a instituiccedilatildeo de sauacutede mais do que um loacutecus de produccedilatildeo de saberes

sobre o corpo e de reestabelecimento da sauacutede anuncia-se enquanto um contexto permeado por

redes de significados que concorrem para o processo de constituiccedilatildeo dos sujeitos Esta

modulaccedilatildeo sinaliza a existecircncia de processos de desenvolvimento forjados pelas relaccedilotildees

219

intersubjetivas desveladas nos espaccedilos de sauacutede notabilizando-se sua dimensatildeo educativa

poliacutetica e cidadatilde

A inserccedilatildeo neste cenaacuterio abrangeria neste aspecto a organizaccedilatildeo de ferramentas e

estrateacutegias que encorajassem o exerciacutecio da condiccedilatildeo de cidadania de categorias geracionais

especiacuteficas mobilizando processos de participaccedilatildeo no interior da rede assistencial do SUS em

interlocuccedilatildeo com as praacuteticas discursos e saberes sociais historicamente forjados sobre a

infacircncia e sobre o potencial de participaccedilatildeo desta nos serviccedilos de sauacutede

Neste sentido os modos possiacuteveis de encontro entre a psicologia a educaccedilatildeo sauacutede e

poliacuteticas puacuteblicas encontram-se amparados sobre a premissa de que as instituiccedilotildees destinadas agrave

infacircncia se tornam capazes de ensejar possibilidades de apreensatildeo de conhecimentos por

intermeacutedio de aprendizagens sociais desenroladas em seu acircmago Estas por sua vez demandam

a inscriccedilatildeo de brechas institucionais que disputem o campo de uma organizaccedilatildeo hospitalar

predominantemente centrada na loacutegica adulta e biomeacutedica em direccedilatildeo agrave ampliaccedilatildeo dos direitos

da infacircncia e adolescecircncia hospitalizadas sobretudo ao preconizar meios para a sua participaccedilatildeo

e protagonismo nos processos de produccedilatildeo de sauacutede que se materializam na gestatildeo nas praacuteticas

de cuidado e nas poliacuteticas que regulamentam os serviccedilos

3 A contextualizaccedilatildeo da pesquisa

A pesquisa de mestrado cujos dados foram revisitados para a construccedilatildeo da presente

discussatildeo intitula-se ldquoRepresentaccedilotildees sociais sobre profissionais de sauacutede segundo crianccedilas

implicaccedilotildees identitaacuterias no contexto da hospitalizaccedilatildeo pediaacutetricardquo Esta investigaccedilatildeo foi

desenvolvida no acircmbito do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Universidade Federal

de Mato Grosso (PPGE UFMT) no acircmbito do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infacircncia

(GPPIN) sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Este estudo notabilizou como objeto de investigaccedilatildeo as representaccedilotildees sociais de

crianccedilas hospitalizadas sobre osas profissionais de sauacutede vinculados ao tratamento destas

explorando-se a partir do recorte proposto as implicaccedilotildees desta rede de significaccedilotildees aos

processos de representaccedilatildeo de si das participantes O aporte teoacuterico da pesquisa explicitada

compreendeu originalmente o diaacutelogo entre a teoria das representaccedilotildees sociais em uma

abordagem ontogeneacutetica e a teoria histoacuterico-cultural

O cenaacuterio em que a pesquisa foi construiacuteda circunscreveu a enfermaria pediaacutetrica de um

hospital puacuteblico pertencente agrave rede assistencial do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) do municiacutepio

220

de Cuiabaacute (MT) Esta trajetoacuteria se constituiu ao longo de trecircs meses e congregou em seu

conjunto a participaccedilatildeo de vinte e seis crianccedilas hospitalizadas com idades entre sete e doze

anos por intermeacutedio do assentimento destas e o consentimento escrito dosas respectivosas

acompanhantes apoacutes elucidados os procedimentos e objetivos investigativos

O itineraacuterio que sustentou o processo de produccedilatildeo de dados alicerccedilou-se sob os

contornos da abordagem do tipo etnograacutefica (Andreacute 2003) e considerou a adoccedilatildeo dos

procedimentos de entrevistas observaccedilatildeo participante e anaacutelise de documentos Como exposto

privilegiou-se para a construccedilatildeo deste capiacutetulo as informaccedilotildees produzidas a partir da realizaccedilatildeo

de entrevistas com as crianccedilas participantes

Ao dedicar-se agrave abordagem de pesquisa com crianccedilas procedeu-se com a elaboraccedilatildeo de

adequaccedilotildees metodoloacutegicas que permitissem o encontro com as crianccedilas participantes assumido

enquanto diaacutelogo intergeracional Esta construccedilatildeo foi norteada pela adaptaccedilatildeo e refinamento

dos procedimentos para que adquirissem o potencial de propiciar a escuta e o registro da

pluralidade de expressotildees das crianccedilas tomadas como interlocutoras legiacutetimas em

contraposiccedilatildeo agraves tendecircncias dos estudos que consideram exclusivamente os sentidos partilhados

pelosas respondentes adultosas ao interessarem-se pelas experiecircncias das crianccedilas sob a

responsabilidade daquelesas

Neste sentido especificamente no que tange agraves entrevistas ponderou-se como

pertinente a elaboraccedilatildeo de um roteiro luacutedico3 segundo a proposiccedilatildeo de rearranjos ao

procedimento de entrevista ao ser esboccedilado a partir do delineamento de uma brincadeira eou

jogo mediado pela pesquisadora na qual as crianccedilas foram convidadas agrave construccedilatildeo de desenhos

e narrativas apreciados como ferramentas compatiacuteveis com a expressividade e enunciaccedilatildeo das

significaccedilotildees que compartilham acerca das intervenccedilotildees de sauacutede objetivadas pelas praacuteticas

dosas profissionais implicadosas no tratamento destas

Os materiais elaborados a partir do roteiro luacutedico foram organizados em diferentes

etapas em decorrecircncia da multiplicidade da natureza de suas produccedilotildees a saber metaacuteforas e

metoniacutemias narrativas descriccedilotildees de experiecircncias e desenhos Neste sentido estabelece-se

como objeto da discussatildeo ora apresentada a explanaccedilatildeo proveniente da anaacutelise das respostas agrave

questatildeo 1 e das questotildees 4 a 104 do roteiro luacutedico processadas pelo programa computacional

IRAMUTEQ (Camargo amp Justo 2013 2014)

3 Este instrumento foi denominado ldquoQuem cuida de mim no hospitalrdquo 4 Demonstrativo de questotildees do roteiro luacutedico elencadas na presente ocasiatildeo Questatildeo 1 Quem vocecirc desenhou e

como essa pessoa cuida de vocecirc no hospital Questatildeo 4 Imagine que uma crianccedila que nunca ficou hospitalizada

221

Com o propoacutesito de explicitar a natureza da composiccedilatildeo das questotildees do roteiro luacutedico

salientadas discorre-se que na ocasiatildeo de seu empreendimento a crianccedila foi convidada a criar

a partir da realizaccedilatildeo de desenhos sua proacutepria equipe de sauacutede podendo incluir nesta as

distintas categorias profissionais e funccedilotildees conforme a perspectiva da participante Apoacutes o

desenho a crianccedila foi estimulada a identificar para a pesquisadora as pessoas desenhadas nos

cartotildees e explicar como cada uma delas realizava a funccedilatildeo de cuidado intra-hospitalar Neste

enquadramento as transcriccedilotildees agraves respostas agrave questatildeo 1 compuseram o corpus textual

processado pelo software de maneira que os desenhos propriamente ditos natildeo seratildeo enfocados

na presente discussatildeo mas somente as descriccedilotildees destes

O segundo momento ora enfocado para a anaacutelise exprime os conteuacutedos abarcados pelas

questotildees 4 e 5 do roteiro luacutedico cujas participantes foram apresentadas a uma situaccedilatildeo

imaginaacuteria para que como em uma brincadeira de faz-de-conta explicaria para uma crianccedila

hipoteticamente receacutem-chegada quais pessoas seriam responsaacuteveis pelas praacuteticas de cuidado e

como essa abordagem era empreendida Apoacutes esse momento eram incentivadas a atribuir um

tiacutetulo agrave narrativa elaborada

As questotildees 6 e 7 seguintes foram dedicadas a estimular que a crianccedila discorresse acerca

das fontes informacionais que as permitiram acessar os conhecimentos descritos pela narrativa

bem como explicitar os conteuacutedos que consideravam importantes dentre aqueles experienciados

no cenaacuterio hospitalar os quais sustentaram o desenvolvimento da narrativa anteriormente

construiacuteda com o propoacutesito de identificar a dimensatildeo expressiva destas vivecircncias segundo a

focalizaccedilatildeo das crianccedilas

No que concerne agraves questotildees de 8 a 10 estas foram configuradas segundo o propoacutesito

de explorar os processos identitaacuterios em termos psicossociais subjacentes agrave experiecircncia de

hospitalizaccedilatildeo atravessadas pelas praacuteticas em sauacutede empreendidas pela equipe desvelando as

implicaccedilotildees do outro aos processos de constituiccedilatildeo do sentimento de identidade e de pertenccedila

das participantes Mediante a transcriccedilatildeo destes conteuacutedos elaborados pelas crianccedilas e

mobilizados a partir das questotildees elucidadas procedeu-se com o procedimento de

processamento destas informaccedilotildees sob o apoio do programa computacional IRAMUTEQ que

estaacute chegando agora no hospital e natildeo conhece quem cuidaraacute dela [hellip] Como vocecirc que jaacute estaacute mais experiente

com o que acontece no hospital explicaria para essa crianccedila quem cuidaraacute dela no hospital e o que cada um faraacute

com ela Questatildeo 5 Que nome vocecirc daria para essa histoacuteria que vocecirc acabou de contar Questatildeo 6 Como vocecirc

ficou sabendo de tudo isso que acabou de contar Questatildeo 7 O que foi importante aqui no hospital que fez com

que vocecirc aprendesse tudo isso que acaba de contar Questatildeo 8 Como era vocecirc antes e depois de ter ficado no

hospital Questatildeo 9 O que vocecirc aprendeu sobre vocecirc a partir da experiecircncia de hospitalizaccedilatildeo Questatildeo 10

Agora uma uacuteltima pergunta como vocecirc chegou ao hospital e o que aconteceu que vocecirc teve que vir (Assunccedilatildeo

2018)

222

resultou na identificaccedilatildeo de cinco classes que se demonstraram estaacuteveis Diante do exposto

delimitou-se que as anaacutelises tecidas neste trabalho enfocariam particularmente os materiais

textuais classificados no interior da Classe 4 que representou 2325 da totalidade do corpus

original

4 As praacuteticas de cuidado em sauacutede pediaacutetrica segundo crianccedilas hospitalizadas

O conjunto de excertos produzidos pelas crianccedilas e congregados nesta classe

tangenciou mais especificamente o universo dos sentidos atribuiacutedos agraves relaccedilotildees de cuidado

tendo sido elencadas suas faces desejaacuteveis e natildeo desejaacuteveis de pessoalidade e impessoalidade

Neste sentido o narrar e o desenhar podem ser compreendidos como recursos que sintetizaram

os processos de classificaccedilatildeo e nomeaccedilatildeo das crianccedilas engendrando exerciacutecios de seleccedilatildeo de

conteuacutedos e afetos sobre os sujeitos focalizados e suas accedilotildees resgatados pela vivecircncia da

crianccedila diante deste universo de cuidado que permeia o quem desempenha e o como eacute percebido

Ah ela quando eu tava com dor ela foi ver eu como que tava meu coraccedilatildeozinho e ela foi laacute na

sala na hora que eu tava laacute mediu pressatildeo um monte de coisa Fez bastante coisa pra mim Ela

olhou meu coraccedilatildeo viu como tava a pressatildeo e viu se eu tava com febre A meacutedica Ela eacute daqui

de cima mesmo da pediatria (Flor5 10 anos)

A de pressatildeo Escreve a de pressatildeo Ela mede nossa pressatildeo se estaacute alta ou baixa Soacute Eu vou

desenhar vocecirc Porque sim vocecirc eacute legal Eu posso desenhar vocecirc Eu natildeo sei o que desenho

mais Eu jaacute desenhei a de agulha a de pressatildeo Eacute Como eacute esse assim que a gente coloca assim

e fica medindo assim Eacute Eacute de pressatildeo quase neacute Termocircmetro Mas eacute a mesma pessoa que

cuida da pressatildeo Acho que natildeo Mas taacute bom soacute esses desenhos (Raissa 9 anos)

Vem ver se eu tocirc com febre Ela coloca aquele negocinho no meu sovaco pra ver se eu tocirc com

febre Ela tem vez que troca o meu curativo Tava esquecendo Eacute que ela eacute a mulher que passa

e vem ver a minha pressatildeo ver se eu tocirc com febre e troca meu curativo (Rafael 12 anos)

Vou fazer o doutor cardiologista Primeiro o cabelo O olho grande ele Esse aqui saiu melhor

O cardiologista De vez em quando ele passa aqui para olhar como eacute que o braccedilo estaacute

melhorando (Gabriel 10 anos)

Agora soacute falta desenhar os meninos no hospital Eu vou desenhar ela arrumando o soro Sabe o

que que eacute isso Eacute um hospital Mas eacute tipo uma casa (Beatriz 7 anos)

Ela eacute da equipe do Superman Ela levanta minha camisa e coloca aquele negoacutecio de axila

Como que eacute o nome Eacute O trermocircmeto Aiacute quando ela natildeo acha no meu braccedilo ela coloca na

minha axila (Lilo 10 anos)

O instrumento de pesquisa possibilitou uma dinacircmica que encorajou processos

reflexivos acerca de elementos jaacute naturalizados pela crianccedila desencadeados pela produccedilatildeo de

certo estranhamento em relaccedilatildeo a tais conteuacutedos principalmente aqueles motivados pela

5 Os nomes informados ao longo deste relatoacuterio de pesquisa satildeo fictiacutecios e foram eleitos pelas proacuteprias crianccedilas

hospitalizadas participantes do estudo ao final da realizaccedilatildeo de cada entrevista

223

formulaccedilatildeo de uma questatildeo com resposta aparentemente oacutebvia no contexto de inserccedilatildeo dosas

participantes

Os excertos elucidaram que as crianccedilas percebem a existecircncia de pessoas que

desempenham o ofiacutecio do cuidado bem como as atividades que estas realizam para fazecirc-lo

poreacutem nessa classe os sujeitos da accedilatildeo dos segmentos de texto muitas vezes apresentaram-se

nomeados de maneira vaga eou geneacuterica apesar da existecircncia de detalhamento em relaccedilatildeo agraves

praacuteticas de sauacutede explorando inclusive seu aparato instrumental

As narrativas estatildeo imbricadas em uma dimensatildeo afetiva que demonstra as formas pelas

quais as experiecircncias relatadas foram vivenciadas pelas crianccedilas Esse fenocircmeno explicitou os

processos de atribuiccedilatildeo de sentido a um universo de accedilotildees desconhecidas declaradas a partir

de recursos e nomenclaturas familiares como em ldquoEla eacute da equipe do Supermanrdquo ldquoE um

hospital Mas eacute tipo uma casardquo que conferiram menores niacuteveis de estranhamento e

possibilitaram uma descriccedilatildeo ancorada agraves categorias que lhes eram comuns

Na medida em que elaboraram seus discursos por intermeacutedio de uma fala dirigida para

si mesmosas como em um exerciacutecio de autorregulaccedilatildeo que osas apoiaram na produccedilatildeo de um

saber as crianccedilas explicitaram a descriccedilatildeo de um modelo de cuidado marcado por uma

conotaccedilatildeo operacional dessa praacutetica revelando seus modos de accedilatildeo protocolares

Se uma crianccedila chegasse falaria que ela ia apertar neacute nossa matildeo pra saber se taacute com febre se

natildeo coloca um trermocircmeto de axila de baixo do suvaco [hellip] Eacute do mesmo jeito Eacute o mesmo

jeito de medir tambeacutem Eles mandam a mesma coisa neacute Fazer Pra ver apertar o braccedilo pra

saber se taacute com febre se natildeo colocar o trermocircmeto de axila [hellip] Natildeo eu natildeo fiquei sabendo

eu descobri que ela fazia assim comigo Ah eu tava de boa neacute achei que ningueacutem ia cuidar de

mim [Risos] Soacute vinha com trermocircmeto assim pra conferir colocar e ver se eu tava com febre

ou natildeo Aiacute eu tava aqui deitado de repente chega ela Aiacute ela foi e fez do mesmo jeito aiacute veio

essa outra aiacute que eu desenhei e fez do mesmo jeito Aiacute eu descobri aiacute eu jaacute sabia que vinha outra

e ia fazer Aiacute eu gostei dessa daqui (Lilo 10 anos)

Tem um monte de Eacute um monte de doutora que vem aqui aplicar Uma hora vem uma outra

hora vem outra No total que vem aplicar eacute umas trecircs Acho que eacute por causa do turno neacute Vou

desenhar o doutor O doutor laacute o cabelo dele eacute liso (Gabriel II 10 anos)

Aqui eacute aquela ldquoAnnyrdquo E daqui mesmo Agora lembrei o nome Ela cuida da mesma coisa da

ldquoLuisardquo ela vem para caacute para ver se eu estou com febre e ver minha pressatildeo (Rafael 12 anos)6

A accedilatildeo descritiva da crianccedila avanccedilou na compreensatildeo da dinacircmica de cuidado

ensejando a formulaccedilatildeo de hipoacuteteses que referendam a existecircncia de um script de praacuteticas em

sauacutede seguido pelosas profissionais Os discursos revelaram um modo de operar a promoccedilatildeo

do cuidado que implica a repeticcedilatildeo de um ldquomesmo jeitordquo ou a execuccedilatildeo de uma ldquomesma coisardquo

6 Os nomes dosas profissionais de sauacutede apresentados ao longo do relatoacuterio de pesquisa satildeo fictiacutecios e foram

escolhidos pela proacutepria pesquisadora

224

cuja realizaccedilatildeo eacute intercalada entre membros da equipe ldquouma hora vem uma outra hora vem

outrardquo que por conseguinte satildeo distribuiacutedosas sob o regime de ldquoturnosrdquo

Os participantes enunciaram ainda a existecircncia de uma instacircncia reguladora destas

atividades ao mencionar que ldquoEles mandam a mesma coisa neacute Fazerrdquo (Lilo 10 anos) bem

como apresentaram o senso de existecircncia de uma organizaccedilatildeo hieraacuterquica entre as categorias

profissionais existentes na cena hospitalar A assertiva demonstra proximidade entre as ideias

elaboradas pelas crianccedilas e as normativas que regulamentam de modo sistemaacutetico e

padronizado as accedilotildees teacutecnico-assistenciais em sauacutede frequentemente objetivadas pelos

protocolos operacionais padratildeo

O processo de discorrer sobre esse conhecimento social aparenta alicerccedilar-se sobretudo

pela exposiccedilatildeo de circunstacircncias marcadas pelos domiacutenios da percepccedilatildeo da concretude e a partir

da experiecircncia corporal que resultou das accedilotildees de cuidado empreendidas as quais a crianccedila foi

depositaacuteria delineando-se como um sujeito que recebeu a accedilatildeo do outro As vivecircncias

fornecidas pelas relaccedilotildees intersubjetivas foram utilizadas como suporte para a apreensatildeo de

conhecimentos sociais e para o desenvolvimento de importantes conceitos que tangenciaram a

hospitalizaccedilatildeo explorando noccedilotildees sobre a organizaccedilatildeo dos serviccedilos as praacuteticas de atenccedilatildeo em

sauacutede suas ferramentas e quem as realiza

Ela eacute enfermeira aqui Sabe sempre tem a melhor laacute que fica eu acho que ela eacute a enfermeira

Ah eu natildeo sei eacute a que fica responsaacutevel pelo plantatildeo sei laacute eu natildeo sei o nome (Moana 12

anos)

Vou desenhar ela carregando agulha Taacute estranho Eacute aquilo que coloca Eacute a seringa neacute Que

segura assim e a gente vai puxando pra passar tudo Seraacute que eu desenho um kit e outro Na

outra matildeo dela um kit Um kit assim de primeiros socorros (Raissa 9 anos)

Ficou estranho neacute O negoacutecio A que mede pressatildeo com aquele negoacutecio que aperta tudo Com

o negoacutecio que aperta o pulso assim [hellip] Esse daqui eacute aquilo que faz assim pra colocar no braccedilo

Aiacute coloca no braccedilo e essa daqui eacute a parte que zera Aiacute aqui coloca o braccedilo aiacute vai taacute uns

coraccedilatildeozinho assim Aiacute o papelzinho e aiacute esse eacute a pulseira (Raissa 9 anos)

Essa construccedilatildeo dialoacutegica resulta em aprendizagens sociais que possibilitam que as

crianccedilas se aproximem e muitas vezes passem a operar segundo o significado de certos

constructos aplicando com sentido terminologias teacutecnicas pertencentes agrave rede de conteuacutedos que

permeiam o acircmbito hospitalar Esses termos passam a ser tambeacutem partilhados entre e pelas

crianccedilas que os adotam como descritores da realidade ao empregaacute-los durante os processos

comunicacionais entre pares e com os adultos conferindo compreensatildeo e uso aos mesmos

Ao utilizar esse repertoacuterio de conceitos a crianccedila se dedica a um processo de

significaccedilatildeo do real a partir de suas proacuteprias produccedilotildees alavancando anaacutelises de suas

experiecircncias e dos produtos culturais que elabora sustentados pelos marcadores sociais que

225

acessa exprimindo pelos desenhos e narrativas as formas pelas quais interpreta e imprime

sentidos agraves particularidades da realidade social Nesse escopo descreve qualifica e se coloca

afetivamente implicada nos conteuacutedos que formula revelando as dimensotildees vivenciais e

reflexivas de suas construccedilotildees como nos segmentos que se seguem

Esqueci como eacute o cabelo dela Deve ser assim neacute Eu tocirc desenhando ela mais bonita porque

eu gosto mais eacute dela daqui do hospital A doutora a doutora natildeo a enfermeira Ela cuida assim

bem ela natildeo natildeo briga natildeo manda eu ir dormir toda hora quando taacute ficando tarde e ela eacute

boazinha A gente pediu pra ela deixar jogar no play aiacute ela falou que podia soacute que tava muito

tarde jaacute se tivesse pedido antes ela deixava mas era meia noite Aiacute ela eacute boazinha Eu gosto

dela (Moana 12 anos)

Essa doutora aqui de vez em quando ela vem aqui me perguntar se eu preciso de alguma coisa

Natildeo vem aqui de vez em quando natildeo Ela soacute veio aqui soacute fazer uma visita veio soacute ver se tava

precisando de alguma coisa Ela falou que se precisasse de alguma coisa ela tava ali na na

frente Falei nada natildeo a matildee que conversou com ela Falou taacute bom Ela veio aqui falar que se

precisar de alguma coisa eacute soacute falar com ela Acho que ela tava de feacuterias e ela chegou Disse que

se precisar de alguma coisa eacute soacute falar com ela Primeira vez que eu vejo ela Eacute bem prestativa

ela Chegou de feacuterias natildeo tinha nada pra fazer e veio aqui avisar que se precisasse de ajuda

alguma coisa assim ela tava disponiacutevel (Gabriel II 10 anos)

[hellip] nas horas que eu falava que eu tava com muita dor muito coccedilando ela me dava remeacutedio

na hora que eu precisava Ela ficava mais perto de mim Ficava olhando ela perguntava se eu

tinha dor aiacute eu falava agraves vezes que sim agraves vezes que natildeo mas ela cuidou muito bem de mim

Ah ela eacute meacutedica laacute de baixo Da sala amarela (Flor 10 anos)

Fui aprendendo com a meacutedica que ela falou um monte de coisas pra mim ldquoNatildeo precisa ter

medo Beatriz quando for furar vocecirc natildeo precisa ter medo natildeo precisa olharrdquo E quando o tio

falou ldquoVocecirc soacute vai taacute dormindo vocecirc natildeo vai sentir nadardquo E eu falei ldquoNem senti nadardquo Na

cirurgia (Beatriz 7 anos)

Os coraccedilotildees satildeo pra elas ficar feliz Tavam tristes Agora a que veio aqui ficou alegre neacute por

causa dos coraccedilotildees (Batman 12 anos)

Os recortes discursivos explicitam que a seleccedilatildeo e a organizaccedilatildeo dos conteuacutedos

expressos acerca dosas profissionais de sauacutede foram anunciadas segundo as implicaccedilotildees

afetivas engendradas nas interaccedilotildees que circunscrevem a hospitalizaccedilatildeo Os exemplos

ilustrados tangenciam diferentes modulaccedilotildees sobre esse campo elucidando perspectivas de

atenccedilatildeo em sauacutede que demonstram as accedilotildees que agradam as crianccedilas e que segundo elas satildeo

desejaacuteveis de se receber eou partilhar exprimidas principalmente pelo uso das colocaccedilotildees

gostar cuidar natildeo brigar natildeo mandar deixar falar poder pedir vir perguntar fazer

precisar estar ser dizer chegar avisar ajudar dar ficar olhar aprender De alguma

maneira as conotaccedilotildees que essas palavras traduzem se ramificam de uma faceta de cuidado

ancorada a uma eacutetica de proximidade diaacutelogo e disponibilidade para o outro

Tais processos de negociaccedilatildeo alicerccedilados pela relaccedilatildeo indissociaacutevel entre a concretude

e a forma com que satildeo vivenciadas pela crianccedila resultam tambeacutem na atribuiccedilatildeo de sentidos agraves

226

experiecircncias que desvelam um aspecto desagradaacutevel e natildeo desejaacutevel da dinacircmica de promoccedilatildeo

de sauacutede conferindo modulaccedilotildees agraves conotaccedilotildees de cuidado apresentadas anteriormente

Ela cuida mal porque era Minha veia tava doendo neacute daiacute era pra ela olhar e arrumar certinho

neacute aiacute ela foi e puxou tudo de uma vez assim e ficou doendo o meu braccedilo Porque uma outra

enfermeira ela conseguiu arrumar ela olhou e arrumou certinho a veia E ela puxou de uma

vez A outra arruma certinho na veia de volta [hellip] Acho importante que ela natildeo cuidou de mim

Ela podia ter machucado o meu braccedilo Eacute que ela puxou de uma vez o negoacutecio Ateacute a matildee falou

assim ldquoVai com cuidado soacute daacute uma olhada vecirc se taacute fora da veiardquo e ela foi puxando assim e eu

falei ldquoAi meus pelinhosrdquo Bem assim e ela puxou de uma vez assim e arrancou tudo Nesse

braccedilo aqui (Moana 12 anos)

Eacute chato levar injeccedilatildeo para tirar sangue Tirei duas vezes ontem Esse aqui foi hoje esse daqui

foi ontem Esse foi com borboletinha E esse aqui natildeo Prefiro sem borboleta Porque agulha

com borboleta demora pra pegar sangue E a sem vai puxando assim eacute rapidatildeo Quando foi a

da borboletinha eu soacute dei um grito Sem borboletinha natildeo precisou gritar (Raissa 9 anos)

A que tira sangue eacute maacute ela eacute muito maacute Soube porque eu vi elas fazendo em mim Ainda mais

essa daqui que tira sangue que eacute muito chata Machuca muito o braccedilo ontem eu tive que dormir

com o braccedilo assim oacute (Raissa 9 anos)

Esse aqui eu jaacute tomei doze Soacute nessa veia Eu tomei um grandatildeo daqueles grandatildeo Eu conto

Mas claro Pra ver se natildeo passou da hora Matildee vai ter que chamar a mulher Taacute pingando aqui

Aiacute depois vai ter que lavar Lavar doacutei eu que natildeo falava nada Doacutei Lava com aacutegua A veia

enche Manda essa mulher aiacute lavar matildee Eu natildeo vou falar que doacutei Ah aiacute vatildeo querer trocar de

veia Eu natildeo quero Ela troca de veia e eu natildeo quero (Batman 12 anos)

Ateacute gelou aqui agora ateacute gelou Acho que apertou tanto Sai ateacute o couro Esparadrapo puxa

cabelo (Batman 12 anos)

Os trechos salientados transmitem em seus conteuacutedos descritivos a compreensatildeo de que

as crianccedilas nomeiam a presenccedila de uma dimensatildeo do cuidado que eacute qualificada como adversa

e hostil que pode ser acentuada pela postura e a conduta adotadas pelosas profissionais quando

a accedilatildeo eacute desempenhada eou pela maneira com que eacute percebida pela crianccedila que a recebe

As accedilotildees desagradaacuteveis e repelidas recordam modalidades de intervenccedilotildees que satildeo

antagocircnicas agraves associadas ao que osas participantes classificam como desejaacuteveis e positivas

pormenorizando-as com o suporte de verbos como puxar machucar arrancar levar tirar

demorar pegar gritar fazer tomar lavar doer encher trocar apertar sair O emprego

dessas terminologias denota a percepccedilatildeo das accedilotildees de cuidado como incisivas abruptas

dolorosas e invasivas distintas daquelas caracteriacutesticas nomeadas pelas crianccedilas ao discorrer

sobre episoacutedios identificados pelos sentidos de proximidade diaacutelogo e disponibilidade

A conjuntura analiacutetica empreendida pelos segmentos de texto apresentados permite

formular a hipoacutetese da existecircncia de uma importante fonte de informaccedilatildeo que decorre

diretamente da experiecircncia corporal delineada pelas praacuteticas de sauacutede atitudes e prescriccedilotildees

que incidem sobre o corpo da crianccedila configurando as relaccedilotildees de instruccedilatildeo face a face eou

anocircnimas Essa ordem de saberes se constitui como fonte por protagonizar processos

227

comunicacionais que operam sob a eacutegide das relaccedilotildees mediatizadas pelo corpo ao fornecer o

escopo para a transmissatildeo de conhecimentos sociais sendo as accedilotildees que lhes satildeo dirigidas

significadas pela crianccedila a partir de diferentes conotaccedilotildees que oscilam desde as entendidas

como agradaacuteveis e desejaacuteveis ateacute aquelas nomeadas como hostis e adversas

Consideraccedilotildees finais

Diante do propoacutesito de revisitar o recorte dos conteuacutedos gerados no acircmbito da pesquisa

de mestrado anunciada buscou-se estabelecer entrelaccedilamentos entre infacircncia psicologia e

poliacuteticas puacuteblicas destinadas agraves crianccedilas mais especificamente as poliacuteticas e resoluccedilotildees

salientadas ao longo deste capiacutetulo

Os conteuacutedos elaborados pelas crianccedilas anunciaram os modos pelos quais elas

nomeavam e descreviam as praacuteticas de cuidado em sauacutede empreendidas pela equipe de sauacutede

desvelando suas ancoragens agraves normas rotinas institucionais e aos processos de gestatildeo e

organizaccedilatildeo dos serviccedilos que traduzem em seu conjunto os itineraacuterios de apropriaccedilatildeo e

implementaccedilatildeo dos princiacutepios diretrizes e eixos de atuaccedilatildeo recomendados pelas poliacuteticas

puacuteblicas pertinentes ao equipamento hospitalar pediaacutetrico e agrave populaccedilatildeo atendida

Neste sentido os processos de enunciaccedilatildeo engendrados situaram-se inscritos pelos

arranjos que constituiacuteram as relaccedilotildees de saber poder e afeto que permitiram acessar como osas

participantes perspectivaram as accedilotildees assistenciais em sauacutede a eleselas endereccediladosas

declarando as possibilidades que dispunham de participaccedilatildeo nos processos de cuidado em sauacutede

intra-hospitalares

Em correlaccedilatildeo aos pressupostos salientados pelas poliacuteticas e resoluccedilotildees tomadas para a

presente discussatildeo identifica-se que os equipamentos e dispositivos de sauacutede satildeo fundados por

princiacutepios e diretrizes que visam a elevaccedilatildeo do grau democraacutetico da rede assistencial do SUS

em que as crianccedilas sob a eacutegide da terminologia de usuaacuterias tambeacutem se encontram abarcadas

Apesar do exposto notabiliza-se que o estatuto social e poliacutetico da infacircncia ao situaacute-la a partir

dos marcadores da negatividade e da ausecircncia inscrevem-na a condiccedilatildeo de incapacidade de

exerciacutecio de sua condiccedilatildeo de participaccedilatildeo e de cidadania no interior da instituiccedilatildeo enfocada

privilegiadamente pautada pelas perspectivas adultas e biomeacutedicas de gestatildeo e produccedilatildeo de

sauacutede

Assim reafirma-se que frente agraves particularidades sociais histoacutericas e poliacuteticas que

permeiam a infacircncia desvela-se como patente a inclusatildeo e a partilha de meacutetodos dispositivos

228

e experiecircncias que inscrevam a crianccedila como protagonista e copartiacutecipe das accedilotildees de cuidado

em sauacutede com o propoacutesito de convocar a dimensatildeo educativa poliacutetica e cidadatilde que as

instituiccedilotildees de sauacutede puacuteblicas mobilizam e conduzir a tessitura de redes de diaacutelogo e

participaccedilatildeo no que tange agrave atuaccedilatildeo da infacircncia nestes contextos

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Visor Dis S A

230

Capiacutetulo 12

Psicologia Social e Poliacuteticas Puacuteblicas em diaacutelogo com sauacutede e educaccedilatildeo

questotildees de gecircnero sauacutede mental justiccedila violecircncia e permanecircncia

estudantil

Mariana Fagundes de Almeida Rivera

Tatiana Alves Romatildeo

Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim

Fernanda Lyrio Heinzelmann

Kate Delfini Santos

Paula Rosana Cavalcante

Ianni Regia Scarcelli

Introduccedilatildeo

A partir de pesquisas desenvolvidas no LAPSO - Laboratoacuterio de Estudos em Psicanaacutelise

e Psicologia Social do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (IP-USP) que primam pela diversidade metodoloacutegica

busca-se neste capiacutetulo apresentar algumas pesquisas em desenvolvimento1 na linha de

pesquisa ldquoSauacutede direitos humanos e poliacuteticas na interface com a Psicologia Socialrdquo A seguir

procura-se discutir a partir delas possibilidades de interlocuccedilatildeo entre a psicologia social e

poliacuteticas puacuteblicas em setores como sauacutede e educaccedilatildeo e na interface com gecircnero sauacutede mental

justiccedila violecircncia e permanecircncia estudantil Os estudos do LAPSO fundamentam-se em

pressupostos que consideram dimensotildees intrapsiacutequicas intersubjetivas e trans-subjetivas na

especificidade dos processos psiacutequicos dos grupos e instituiccedilotildees e no contexto da poliacutetica A

referida linha de pesquisa objetiva investigar processos psicossociais que ocorrem em campos

de relevacircncia na vida social contemporacircnea como as poliacuteticas puacuteblicas de caraacuteter intersetorial2

Apoiando-se em autores do campo da psicologia social em particular Enrique Pichon-

Riviegravere busca-se de modo geral indagar sobre quais contribuiccedilotildees de saberes psi podem trazer

1 As pesquisas satildeo orientadas pela Professora Ianni Scarcelli 2 A polissemia do tema que envolve intersetorialidade tem sido bastante discutida Em uma perspectiva

operacional de acordo com Akerman de Saacute Moyses Rezende amp Rocha (2014) poderia ser definida como um

modo de gestatildeo que se desenvolve em processo sistemaacutetico de articulaccedilatildeo planejamento e cooperaccedilatildeo entre os

distintos setores da sociedade e entre as diversas poliacuteticas puacuteblicas de modo a atuar sobre determinantes sociais

231

agrave discussatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Tambeacutem se aborda como esses saberes podem ser ampliados

pela participaccedilatildeo nesse debate e quais ressonacircncias da e sobre a Psicologia Outra questatildeo

relaciona-se agrave intenccedilatildeo de compreender os efeitos das poliacuteticas puacuteblicas sobre vidas das pessoas

e tipos de lacunas que se estabelecem entre os acircmbitos poliacutetico-juriacutedico e teacutecnico-assistencial

quando estaacute em questatildeo a implementaccedilatildeo de novos programas e poliacuteticas (Scarcelli 2017)

As pesquisas que apresentamos se debruccedilam em questotildees de gecircnero sauacutede mental

violecircncia justiccedila permanecircncia estudantil relacionadas agraves poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede e

educaccedilatildeo no contexto brasileiro Aleacutem disso possuem diferentes caminhos metodoloacutegicos ndash

como observaccedilatildeo e registro em diaacuterios de campo narrativas entrevistas e sociodrama ndash e satildeo

pautadas por uma concepccedilatildeo de sujeito compreendido como ser histoacuterico e socialmente

determinado em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica entre mundos interno e externo (Pichon-Riviegravere 2005) de

tal modo que projetos poliacuteticos ressoam na constituiccedilatildeo psiacutequica dos sujeitos Refletem assim

sobre possibilidades de uma psicologia social imbricada na relaccedilatildeo dialeacutetica entre sociedade e

produccedilatildeo de saberes buscando pautar o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas comprometidas

com diferentes necessidades sociais

Eacute importante ressaltar que no contexto do vasto campo da psicologia social

caracterizado pela pluralidade e multiplicidade de abordagens teoacutericas a perspectiva

pichoniana concebe uma interciecircncia com metodologia interdisciplinar ou seja o lsquohomem-em-

situaccedilatildeorsquo como objeto das vaacuterias ciecircncias suscetiacutevel de uma abordagem pluridimensional

Segundo o proacuteprio Pichon-Riviegravere (2005) seu pensamento estaacute sistematizado num conjunto de

conceitos gerais e teoacutericos referidos a um setor do real e a um determinado universo do

discurso que permitem uma aproximaccedilatildeo instrumental a um objeto particular concreto Esses

conceitos segundo Quiroga (2009) buscam dar conta de uma realidade para guiar uma accedilatildeo

sobre ela

Tais referecircncias tecircm nos guiado e se mostrado relevantes no diaacutelogo com o campo das

poliacuteticas puacuteblicas com os setores das poliacuteticas sociais como a sauacutede e abordagens psicoloacutegicas

em meio a outros modos diversos e tambeacutem potentes de buscar aproximaccedilatildeo entre esses campos

(Scarcelli 2017)

1 As pesquisas

As pesquisas apresentadas sinteticamente a partir de seus objetivos e caminhos

seguidos e agrupadas neste texto segundo as questotildees que abordam situam-se no acircmbito de

232

Mestrado e Doutorado no Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social do IP-USP

11 Gecircnero

Duas pesquisas desenvolvidas uma em niacutevel de Doutorado e outra de Mestrado

partiram de uma concepccedilatildeo na qual gecircnero eacute relacional e poliacutetico como defende Joan Scott

(1995) Donna Haraway (2004) por sua vez afirma que gecircnero seria um conceito desenvolvido

para contestar a naturalizaccedilatildeo da diferenccedila sexual de modo que os feminismos buscam explicar

e transformar sistemas histoacutericos nos quais ldquohomensrdquo e ldquomulheresrdquo satildeo socialmente

constituiacutedos e posicionados em relaccedilotildees de hierarquia Nesta mesma perspectiva Judith Butler

(2008) propotildee repensar categorias de identidade no contexto de uma assimetria radical do

gecircnero A autora problematiza a proacutepria construccedilatildeo dos corpos como gendrados pautada numa

inteligibilidade cultural diretamente associada agrave matriz heterossexual e agrave praacutetica compulsoacuteria

da heterossexualidade que naturaliza corpos gecircneros e desejos Corpos inteligiacuteveis possuiriam

um sexo estaacutevel expresso por um gecircnero estaacutevel que eacute definido oposicional e

hierarquicamente por meio da praacutetica compulsoacuteria da heterossexualidade (Butler 2008 p

216)

A pesquisa de Doutorado Transmasculinidades no Sistema Puacuteblico de Sauacutede

experiecircncias dos usuaacuterios3 investiga experiecircncias de transiccedilatildeo de gecircnero em sistemas puacuteblicos

de sauacutede no Brasil e em Portugal Para tal a partir de entrevistas realizadas com de homens

trans4 que utilizaram o Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) no Brasil ou o Sistema Nacional de

Sauacutede (SNS) em Portugal Entrevistando interlocutores nos dois paiacuteses busca compreender

como suas experiecircncias podem contribuir agrave proposiccedilatildeo e reformulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas

Foram realizadas quatro entrevistas de caraacuteter exploratoacuterio duas em Portugal e duas no

Brasil com homens trans atendidos no processo de transiccedilatildeo de gecircnero no sistema de sauacutede

puacuteblica no seu paiacutes Nestas entrevistas os toacutepicos abordados partiram da percepccedilatildeo dos proacuteprios

interlocutores sobre efeitos da transiccedilatildeo em curso em suas vidas aleacutem de investigar o acesso

destes e os caminhos que percorreram dentro do sistema de sauacutede bem como suas concepccedilotildees

de gecircnero

Aleacutem das entrevistas textos das poliacuteticas puacuteblicas brasileiras como o da Poliacutetica

3 Conduzida por Fernanda Lyrio Heinzelmann 4 Conforme a definiccedilatildeo de Jaqueline de Jesus (2013) pessoas trans satildeo aquelas que natildeo se identificam com o

gecircnero que lhes foi atribuiacutedo ao nascimento ou socialmente Para a pesquisa em questatildeo satildeo homens trans os que

natildeo se identificam com o gecircnero feminino que lhes foi atribuiacutedo ao nascimento ou socialmente

233

Nacional de Sauacutede Integral LGBT (Leacutesbicas Gays Bissexuais Travestis e Transexuais) de

2011 e o da Portaria nordm 2803 de 19 de novembro de 2013 do Ministeacuterio da Sauacutede que

redefine e amplia o Processo Transexualizador no SUS satildeo analisados nesta pesquisa visando

problematizar possiacuteveis discrepacircncias entre proposiccedilotildees teoacutericas por parte do Estado e o que na

praacutetica eacute vivenciado pelos usuaacuterios do sistema O texto da lei de identidade de gecircnero

portuguesa Lei nordm 382018 tambeacutem eacute estudado (Portugal 2018) A partir da discussatildeo dos

dados levantados almeja-se traccedilar um panorama do que existe em termos de cuidado para estes

homens e tambeacutem pensar sobre a relaccedilatildeo existente entre estes cuidados e suas demandas

A pesquisa de Mestrado intitulada ldquoDiscussotildees de gecircnero nas praacuteticas de sauacutede no

contexto da Atenccedilatildeo Baacutesica do SUSrdquo5 analisa como se manifestam questotildees de gecircnero na

Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS bem como suas implicaccedilotildees nas praacuteticas de sauacutede do ponto de vista

do cuidado das relaccedilotildees concepccedilotildees e poliacuteticas puacuteblicas Para tanto a poacutes-graduanda

permaneceu por cinco meses em uma unidade baacutesica de sauacutede de uma grande cidade da regiatildeo

sudeste brasileira Atendimentos grupos reuniotildees e discussotildees de casos foram observados e

registrados em caderno de campo

A Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS foi considerada como campo privilegiado por se tratar da

ldquoporta de entradardquo do sistema de sauacutede tanto responsaacutevel por cuidar de grande parte dos

problemas de sauacutede da populaccedilatildeo quanto capaz de organizar o fluxo de atendimento para os

niacuteveis mais complexos de atenccedilatildeo agrave sauacutede Dessa forma nas unidades baacutesicas profissionais

acolhem diariamente diferentes situaccedilotildees e demandas de sauacutede que estatildeo mutuamente

relacionadas ao contexto de vida das pessoas e agraves dimensotildees estruturais da sociedade como a

patriarcal Entende-se conforme Avtar Brah (2006) que as relaccedilotildees patriarcais satildeo como uma

ldquoforma especiacutefica de relaccedilatildeo de gecircnero em que as mulheres estatildeo numa posiccedilatildeo subordinadardquo

(Brah 2006 p 351)

A partir de concepccedilotildees feministas de gecircnero segundo as quais diferentes instituiccedilotildees e

praacuteticas sociais satildeo constituiacutedas pelos gecircneros e constituintes dos gecircneros (Louro 1997)

compreende-se que haacute uma iacutentima relaccedilatildeo entre gecircnero e praacuteticas de sauacutede que pode ser

analisada Por essa anaacutelise tem sido possiacutevel refletir sobre a cotidianidade dos serviccedilos de

sauacutede sobretudo a respeito das poliacuteticas puacuteblicas do campo visando desenvolvecirc-las em um

sentido mais comprometido com o combate agraves desigualdades de gecircnero

5 Conduzida por Mariana Fagundes de Almeida Rivera

234

12 Violecircncia

Tambeacutem posicionada no acircmbito da Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS encontra-se uma pesquisa

de Doutorado que aborda a Poliacutetica de Enfrentamento e Prevenccedilatildeo de Violecircncia na aacuterea da

Sauacutede do municiacutepio de Satildeo Paulo6 objetivando identificar e compreender quais as

possibilidades e desafios que os Nuacutecleos de Prevenccedilatildeo de Violecircncia (NPV) possuem para lidar

com as situaccedilotildees de violecircncia que se apresentam no dia a dia seja no niacutevel da prevenccedilatildeo ou da

intervenccedilatildeo nas Unidades Baacutesicas de Sauacutede (UBS)

Em 2002 a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) reconheceu a violecircncia como um

problema de sauacutede puacuteblica e divulgou o ldquoRelatoacuterio Mundial sobre Violecircncia e Sauacutederdquo (Krug

Dahlberg Mercy Zwi amp Lozano 2002) No Brasil apesar de desde a deacutecada de 1980 esses

eventos constituiacuterem a segunda causa de oacutebito no perfil da mortalidade geral somente em 2001

foi instituiacuteda por meio da Portaria nordm 737GM do Ministeacuterio da Sauacutede a ldquoPoliacutetica Nacional de

Reduccedilatildeo da Morbimortalidade por Acidentes e Violecircnciasrdquo (PNRMAV) em que foram

estabelecidas diretrizes e responsabilidades institucionais de cada ente da Federaccedilatildeo Na cidade

de Satildeo Paulo destaca-se a Portaria nordm 13002015SMSG que institui Nuacutecleos de Prevenccedilatildeo da

Violecircncia (NPV) nos estabelecimentos de sauacutede do municiacutepio ou seja equipes de referecircncia

das Unidades de Sauacutede responsaacuteveis pela ldquoorganizaccedilatildeo do cuidado e articulaccedilatildeo das accedilotildees a

serem desencadeadas para a superaccedilatildeo da violecircncia e promoccedilatildeo da cultura de pazrdquo (Prefeitura

de Satildeo Paulo 2015)

Minayo (2005) fala sobre a complexidade do tema e afirma que as causas devem ser

analisadas a partir de componentes soacutecio-histoacutericos econocircmicos culturais e subjetivos

Ressalta que no caso do Brasil questotildees estruturais que cronificam a fome a miseacuteria e as

desigualdades sociais de gecircnero de etnia e mantecircm o domiacutenio adultocecircntrico sobre crianccedilas e

adolescentes relacionam-se diretamente com os atos violentos que se revelam no dia-a-dia

Em sua obra ldquoSobre a Violecircnciardquo Marilena Chauiacute (2017) destaca a questatildeo do

autoritarismo da sociedade brasileira que naturalizou a violecircncia que se apresenta sobretudo

de maneira velada estruturada a partir de relaccedilotildees familiares de classes dominantes com

predomiacutenio do espaccedilo privado sobre o puacuteblico em que os benefiacutecios concedidos a uma minoria

satildeo percebidos como naturais

Para alcanccedilar o objetivo da pesquisa foram realizadas oito entrevistas abertas com

pessoas que trabalham nos NPVs e trecircs entrevistas com gestoras e gestores da aacuterea teacutecnica de

6 Conduzida por Kate Delfini Santos

235

Atenccedilatildeo Integral da Pessoa em Situaccedilatildeo de Violecircncia sendo uma no niacutevel da supervisatildeo de

sauacutede outra na coordenadoria aleacutem da responsaacutevel pela aacuterea na Secretaria Municipal de Sauacutede

Tambeacutem foi realizada uma anaacutelise da Poliacutetica Nacional de Reduccedilatildeo da Morbidade sobre

Violecircncia e Sauacutede e da Linha de Cuidado para Atenccedilatildeo Integral da Pessoa em Situaccedilatildeo de

Violecircncia

13 Sauacutede Mental e Justiccedila

Duas pesquisas em niacutevel de Doutorado abordam a Sauacutede Mental na interface com a

Justiccedila Uma delas intitulada ldquoSauacutede Mental e Defensoria Puacuteblica buscando caminhos para

praacuteticas de cuidado no Sistema de (in)Justiccedilardquo7 trata de demandas relacionadas ao campo da

Sauacutede Mental e como estas se apresentam e se cruzam com instituiccedilotildees juriacutedicas a partir da

perspectiva da Defensoria Puacuteblica do Estado de Satildeo Paulo Objetiva levantar e compartilhar

possibilidades para efetivaccedilatildeo de praacuteticas de cuidado e garantia de direitos das ldquopessoas com

transtornos mentaisrdquo8 e de suas famiacutelias as quais tecircm suas histoacuterias acompanhadas pelo Sistema

de Justiccedila Partindo de narrativas registradas no diaacuterio de campo da pesquisadora ndash que eacute

tambeacutem psicoacuteloga da Defensoria Puacuteblica e estaacute imersa cotidianamente em seu campo de

pesquisa ndash foram analisados alguns casos processos judiciais fluxos intra-institucionais e

intersetoriais intervenccedilotildees e projetos articulando as anaacutelises das praacuteticas com legislaccedilotildees

normativas dados e bibliografia que versa sobre o tema

Frequentemente nas Defensorias Puacuteblicas chegam pedidos de internaccedilatildeo

involuntaacuteriacompulsoacuteria para pessoas com transtorno mental eou que fazem uso problemaacutetico

de drogas geralmente a pedido de familiares Tambeacutem se observa a interface com a Sauacutede

Mental quando pessoas procuram a instituiccedilatildeo com discursos confusos ou ideias aparentemente

delirantespersecutoacuterias eou vivendo situaccedilotildees de violecircncianegligecircncia nas accedilotildees de

destituiccedilatildeo do poder familiar de mulheres pobres com transtorno mental eou que fazem uso

problemaacutetico de drogas por exemplo em casos em que medidas de seguranccedila determinam a

internaccedilatildeo de pessoas em Hospitais de Custoacutedia e Tratamento Psiquiaacutetrico (HCTP)

Demandas relacionadas ao campo da Sauacutede Mental satildeo encontradas no Sistema de

7 Conduzida por Paula Rosana Cavalcante 8 Os termos ldquotranstorno mentalrdquo e ldquopessoas com transtorno mentalrdquo foram designados pelos diagnoacutesticos meacutedicos

ou pelo modo estas pessoas ou situaccedilotildees foram historicamente denominadas na sociedade Aqui satildeo utilizadas para

circunscrever o fenocircmeno social mas natildeo sem fazer a criacutetica a estes roacutetulos e o significado destes Entende-se que

se trata de uma construccedilatildeo social que denominou certas caracteriacutesticas ou comportamentos como ldquodesviordquo

ldquodoenccedilardquo ou ldquoanormalidaderdquo portanto algo indesejado a ser corrigido ou controlado

236

Justiccedila haacute muito tempo Observa-se que historicamente estes casos em geral eram atendidos

de maneira segmentada e estigmatizante com praacuteticas de segregaccedilatildeo contenccedilatildeo e violecircncia

(Dotto Endo Sposito amp Endo 2012)

Neste contexto apesar da cultura ainda repressora e estigmatizante do campo do direito

identificam-se algumas praacuteticas alinhadas com os princiacutepios da Luta Antimanicomial

(Amarante 2008) tais como accedilotildees de qualificaccedilatildeo ao atendimento ndash na perspectiva do cuidado

ndash accedilotildees de articulaccedilatildeo com outras poliacuteticas puacuteblicas e equipamentos construccedilatildeo de termos de

cooperaccedilatildeo e accedilotildees civis puacuteblicas para implementaccedilatildeo e fortalecimento da Rede de Atenccedilatildeo

Psicossocial projetos de capacitaccedilatildeo e de educaccedilatildeo em direitos O papel de profissionais da

psicologia tem sido fundamental neste processo buscando novos e alternativos caminhos neste

campo preocupando-se com a escuta qualificada e a autonomia de usuaacuterias e usuaacuterios atuando

no fortalecimento dos laccedilos sociais e familiares bem como visando potencializar as conexotildees

entre as poliacuteticas puacuteblicas fomentando intervenccedilotildees para que a Defensoria Puacuteblica integre

tambeacutem esta Rede

Outra pesquisa de Doutorado em curso que compotildee o cenaacuterio de interface entre

poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede mental e o campo do Sistema de Justiccedila sobretudo o campo de

garantia de direitos eacute o estudo de uma poacutes-graduanda9 que tambeacutem eacute trabalhadora do

Ministeacuterio Puacuteblico de Satildeo Paulo (MPSP) o qual a exemplo da Defensoria Puacuteblica compotildee o

Sistema de Justiccedila brasileiro e que a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 tem como funccedilatildeo

ldquoa defesa da ordem juriacutedica do regime democraacutetico e dos interesses sociais e individuais

indisponiacuteveisrdquo (Brasil 1988 art 127) Na perspectiva institucional o MPSP inclui accedilotildees que

se direcionam para a efetivaccedilatildeo do projeto societaacuterio democraacutetico atuando tambeacutem no

monitoramento e na avaliaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas assim podendo contar com apoio de

equipes teacutecnicas proacuteprias (eg Goulart 2016) Neste contexto no estado de Satildeo Paulo foi

criado um Nuacutecleo de Assessoria Teacutecnica Psicossocial (NAT) em 2012 em cujo contexto o

trabalho da pesquisadora estaacute inserido

Entre 2012 e 2018 portanto a pesquisadora teve acesso por meio de visitas

institucionais a serviccedilos previstos na Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental Tambeacutem adentrou

outras unidades natildeo configuradas nesta poliacutetica como Instituiccedilotildees de Longa Permanecircncia para

Idosos (ILPI) previstas na poliacutetica de Assistecircncia Social Comunidades Terapecircuticas que

recebem casos sem conexatildeo com o perfil de uso de aacutelcool e outras drogas cliacutenicas particulares

9 Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim

237

serviccedilos sem oficializaccedilatildeo de funcionamento (entendidos como ilegais) deparando-se com

discursos e praacuteticas ainda de caraacuteter manicomial Neste sentido a pesquisa por meio de

narrativas da trabalhadora revela situaccedilotildees de persistentes internaccedilotildees em situaccedilotildees natildeo

parametrizadas que vatildeo no sentido oposto aos contextos da Luta Antimanicomial e de poliacuteticas

de Atenccedilatildeo em Sauacutede Mental que permitem refletir sobre o processo de Reforma Psiquiaacutetrica

frente a avanccedilos retrocessos e sentidos do termo manicomial como ldquometaacutefora de relaccedilotildees de

violecircncia e discriminaccedilatildeo geradoras de exclusatildeo socialrdquo (Scarcelli 1998 p 1)

14 Permanecircncia Estudantil

No campo das poliacuteticas puacuteblicas voltadas agrave educaccedilatildeo superior a pesquisa de Doutorado

ldquoEncontros e desencontros entre o saber popular e o conhecimento acadecircmicordquo10 procura

compreender o percurso das comunidades que adentram a universidade puacuteblica gratuita aleacutem

de analisar papeacuteis que os grupos sociais possuem na permanecircncia de estudantes cotistas Trata-

se de uma pesquisa-accedilatildeo de natureza qualitativa A anaacutelise documental (2000 a 2016) permite

compreender que um conjunto de poliacuteticas puacuteblicas construiu uma expansatildeo da rede de

universidades federais para aleacutem da ampliaccedilatildeo de vagas pautando o desenvolvimento de

territoacuterios (Programa de Aceleraccedilatildeo de Crescimento) e a inclusatildeo de maiorias e minorias sociais

(Brasil 2012)11

Na tese propotildee-se o termo ldquoUniversidades Suleadasrdquo12 para nomear algumas

universidades puacuteblicas federais que surgiram em um movimento de expansatildeo destas

universidades com um projeto poliacutetico-pedagoacutegico pautado num ideaacuterio contra hegemocircnico e

na praacutexis da emancipaccedilatildeo social

Ainda para o caso brasileiro cabe considerar a recente configuraccedilatildeo de novas universidades

puacuteblicas que buscam outro modelo de universidade contra a loacutegica hegemocircnica ainda que

dentro da oficialidade estatal Alguns desses exemplos satildeo a Universidade Federal da Integraccedilatildeo

Latino-Americana (Unila) a Universidade Federal da Integraccedilatildeo Internacional da Lusofonia

Afro-Brasileira (Unilab) a Universidade Federal do Sul da Bahia e a Universidade Federal da

Fronteira Sul (UFFS) esta que inclusive se autodefine como uma universidade popular em

seus documentos de fundaccedilatildeo Sobre essas universidades e o processo de expansatildeo do sistema

puacuteblico brasileiro temos trabalhos de produccedilatildeo recente baseados em pesquisas em andamento

10 Conduzida por Tatiana Alves Romatildeo 11 A Lei nordm 12711 de 29 de agosto de 2012 (Nova Lei de Cotas) conjuga criteacuterios de cotas raciais e de cotas

sociais que altera a questatildeo do acesso agrave educaccedilatildeo superior federal por um mecanismo que ao direcionar o bem

puacuteblico aos menos privilegiados efetivam uma forma de desenvolvimento social de uma maioria historicamente

excluiacuteda de acesso agrave educaccedilatildeo superior (Lei nordm 12711 2012) 12 O termo Universidade Suleada tem em Paulo Freire uma de suas inspiraccedilotildees Freire chama atenccedilatildeo para os

aspectos ideoloacutegicos do termo ldquonortearrdquo e usa a expressatildeo ldquosulearrdquo para referir-se agrave oacutetica do sul agrave construccedilatildeo de

paradigmas alternativos e agrave reinvenccedilatildeo da emancipaccedilatildeo social (Cf Dicionaacuterio Paulo Freire 2008)

238

no projeto Observatoacuterio da Universidade Popular no Brasil (Morris 2016 p 117)

Com base no cenaacuterio apresentado elege-se a Universidade Federal do Sul da Bahia

inaugurada em 2014 para a conduccedilatildeo da pesquisa Esta Universidade pratica uma poliacutetica de

cotas que privilegia indiacutegenas aldeadaos quilombolas e campesinaos do Movimento Sem

Terra

2 Caminhos da investigaccedilatildeo procedimentos e instrumentos utilizados nas pesquisas de

campo

Como jaacute referido haacute uma ampla diversidade metodoloacutegica no campo da Psicologia

Social Tendo meacutetodo como ldquocaminho do pensamentordquo (Minayo 2014) ilustra-se aqui o

desenvolvimento e a construccedilatildeo de possiacuteveis trajetos de investigaccedilatildeo que permitam

compreender efeitos das poliacuteticas puacuteblicas sobre as vidas das pessoas A definiccedilatildeo de desenho

metodoloacutegico bem como a escolha de procedimentos e instrumentos utilizados eacute pautada tanto

pelo campo da pesquisa quanto pelo referencial teoacuterico guiotildees estes que permitem um rigor

que valide os saberes gerados pelas investigaccedilotildees e o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas

comprometidas com diversas necessidades sociais

Diferentes instrumentos e procedimentos foram utilizados nas pesquisas apresentadas

entrevistas narrativas observaccedilatildeo diaacuterio de campo e sociodrama se constituiacuteram como

possibilidades viaacuteveis nas investigaccedilotildees e satildeo apresentados como forma de dar visibilidade a

essas propostas no campo da Psicologia Social

21 Observaccedilatildeo e diaacuterio de campo

As Ciecircncias Sociais haacute muito se utilizam da observaccedilatildeo participante e da etnografia para

a realizaccedilatildeo de pesquisas nas quais se busca conhecer uma realidade diversa daquela da pessoa

que a conduz Nestes trabalhos o uso de diaacuterio de campo ou caderno de campo se fez

fundamental uma vez que nele foram registradas caracteriacutesticas da cultura da realidade do

ldquocampordquo que se punham a conhecer A Psicologia Social pocircde ao longo do tempo se debruccedilar

sobre essas contribuiccedilotildees e tambeacutem se utilizar delas

Comprometidas com uma criacutetica agrave construccedilatildeo do conhecimento positivista e agrave

hegemonia do saber cientiacutefico as pesquisas que se utilizaram desses caminhos metodoloacutegicos

objetivaram ultrapassar a falsa dicotomia entre o pesquisador e o objeto da pesquisa A

ldquopesquisa de campordquo no contexto do grupo de pesquisa aqui mencionado no entanto se realiza

239

menos proacutexima agrave etnografia e mais proacutexima de um ldquose deixar levarrdquo Scarcelli (2012) em sua

pesquisa de Doutorado demonstrou como eacute possiacutevel se apoiar nas ideias pichonianas para

produzir uma investigaccedilatildeo de campo que permita encontros e conversas com o intuito de se

aproximar de uma realidade desconhecida ou conhecer algum aspecto dela em particular

A partir das ideias de Pichon-Riviegravere (2005) eacute possiacutevel acessar processos

intersubjetivos realizando tambeacutem uma constante anaacutelise do mundo interno por quem

investiga Como o autor propotildee deve-se atentar a duas dimensotildees de fenocircmenos presentes neste

processo o observaacutevel (expliacutecito) e as fantasias inconscientes (impliacutecito) As observaccedilotildees em

uma pesquisa de campo que adote esse modo de investigaccedilatildeo entatildeo servem para se questionar

o que se processa no sujeito e nos arranjos e rearranjos grupais Para Pichon

todo processo impliacutecito manifesta-se dentro do campo de observaccedilatildeo pelo surgimento de uma

qualidade nova nesse campo a qual seraacute denominada emergente O emergente destaca-se como

conceito por representar a articulaccedilatildeo possiacutevel entre os acircmbitos da intra e intersubjetividade

(Scarcelli 2002 p 102)

O conceito de emergente representa a articulaccedilatildeo possiacutevel entre os acircmbitos da intra e

intersubjetividade do mundo interno e mundo externo expressa-se por um conjunto de

fantasias inconscientes explicitadas atraveacutes do processo de atribuiccedilatildeo e assunccedilatildeo de papeacuteis

(Pichon-Riviegravere 2005) Trata-se de uma formulaccedilatildeo relacionada agravequele que pode ser

considerado um dos pilares da teoria pichoniana o conceito de porta-voz Porta-voz de um

grupo eacute aquele que em um determinado momento denuncia o acontecer grupal as fantasias

que o movem as ansiedades e necessidades do grupo Natildeo fala por si soacute mas por todo o grupo

pois eacute no porta-voz que se conjugam a verticalidade e horizontalidade grupais (Scarcelli 2012)

Nesse sentido o sujeito porta-voz eacute veiacuteculo de uma qualidade emergente que remete agrave

a dimensatildeo impliacutecita das relaccedilotildees estruturantes do grupo estabelecidas entre seus integrantes

O emergente representa uma nova situaccedilatildeo grupal sendo porta-voz quem explicita as fantasias

inconscientes do grupo (Pichon-Riviegravere 2005) A investigaccedilatildeo feita a partir do grupo indaga o

interjogo entre o intra e o intersubjetivo (mundo interno e mundo externo) considerando-se

entre outros aspectos uma observaccedilatildeo dos modos de interaccedilatildeo simultaneamente agrave formulaccedilatildeo

de hipoacuteteses provisoacuterias acerca dos processos envolvidos nesse interjogo

Na pesquisa que aborda gecircnero realizada na UBS adotou-se a ldquoobservaccedilatildeordquo das

atividades realizadas na e pela instituiccedilatildeo sendo o diaacuterio de campo instrumento primordial para

seu objetivo Neste diaacuterio registravam-se acontecimentos presenciados em campo encontros e

desencontros aquilo que se mostrava significativo para a pesquisa e ao mesmo tempo

sensaccedilotildees ideias vivecircncias internas da proacutepria pesquisadora em campo como frequentemente

240

se faz o observador de grupos operativos tal como teorizado por Pichon-Riviegravere (2005) Para

este autor o mundo interno representa um conjunto de relaccedilotildees sociais internalizadas que

passam do que estaacute fora (mundo externo) para o grupo interno (mundo interno) que se

encontram em permanente interaccedilatildeo Essas relaccedilotildees apresentam-se como objeto da Psicologia

Social da Praacutexis que tem como instrumentos privilegiado de investigaccedilatildeo o grupo que foi

denominado de operativo no qual se investiga o interjogo entre a dimensatildeo psicossocial e a

dimensatildeo sociodinacircmica (Scarcelli 2017) a ldquoobservaccedilatildeo das formas de interaccedilatildeo dos

mecanismos de adjudicaccedilatildeo e assunccedilatildeo de papeacuteisrdquo (Pichon-Riviegravere 2005 p 238) ou das

ldquoformas de interaccedilatildeo que nos conduzem a estabelecer hipoacuteteses acerca de seus determinantesrdquo

(Lema 2008 p 107) Nesse sentido

ter o grupo operativo como instrumento de investigaccedilatildeo natildeo significa constituir um grupo assim

formalizado ou investigar um grupo constituiacutedo a partir do que propotildee a teacutecnica Em outros

termos do grupo operativo decorre um conjunto de conceitos que orientam nosso olhar quando

examinamos situaccedilotildees de maneira geral (Scarcelli 2017 p 192)

Desse modo o diaacuterio de campo tudo incluiacutea informaccedilotildees sobre o local e as pessoas

datas e horaacuterios ocorridos contatos acordos e combinados bem como questotildees subjetivas

reflexotildees acerca do tema da pesquisa e diaacutelogos com leituras que a pesquisadora jaacute havia feito

Todo esse registro formou um diaacuterio de campo de uma experiecircncia vivida

corporalmente nas relaccedilotildees entre pessoas ndash e natildeo com o ldquoobjetordquo de pesquisa ndash assim como

de uma experiecircncia vivida na instituiccedilatildeo com sua (des)organizaccedilatildeo hierarquia cultura e

histoacuteria Portanto os escritos no diaacuterio de campo natildeo representam a realidade externa mas uma

construccedilatildeo na qual a proacutepria pesquisadora participa jaacute que o que eacute selecionado para registro

passa por sua atenccedilatildeo interpretaccedilatildeo vida interna que pode ser teorizada a partir de uma teoria

de grupos concebida no acircmbito da Psicologia Social da Praacutexis (Kazi 2006)

22 Entrevistas

A entrevista como recurso metodoloacutegico eacute entendida acima de tudo como conversa

entre duas ou vaacuterias pessoas interlocutoras tendo como finalidade fornecer informaccedilotildees

pertinentes sobre um objeto de pesquisa (Minayo 2014) Traz informaccedilotildees dos proacuteprios

sujeitos a partir de sua maneira individual de sentir e compreender sua realidade revela crenccedilas

valores condutas maneiras de atuar Bleger (1998) afirma que o campo da entrevista eacute

dinacircmico sendo necessaacuterio considerar (a) quem conduz a entrevista considerando aspectos de

identificaccedilatildeo e contratransferecircncia etc (b) quem eacute a pessoa entrevistada incluindo aqui os

aspectos transferenciais suas defesas e ansiedades etc (c) a relaccedilatildeo interpessoal onde

241

circulam as ansiedades o processo de comunicaccedilatildeo (projeccedilatildeo introjeccedilatildeo identificaccedilatildeo) etc

Isso quer dizer que ateacute pelas condiccedilotildees em que as entrevistas ocorrem devem ser considerados

tanto aspectos formais e objetivos quanto a subjetividade envolvida nesse encontro

Entrevistas foram realizadas nas pesquisas desenvolvidas por este grupo de autoras e

elas aconteciam frequentemente na perspectiva do ldquose deixar levarrdquo que pode se encaminhar agrave

modalidade de encontro previamente marcado e orientado por questotildees previamente definidas

A pesquisa que abordou questotildees de gecircnero em Portugal e no Brasil simultaneamente

encaminhou-se com entrevistas que almejaram obter relatos pessoais a partir de respostas dadas

pelos interlocutores Inicialmente foram propostas entrevistas abertas com toacutepicos sugeridos

e listados num roteiro natildeo riacutegido Ao longo do trabalho foram feitos ajustes para incluir

particularidades natildeo pensadas originalmente a exemplo da existecircncia de uma lei de identidade

de gecircnero no contexto portuguecircs Deste modo em Portugal foi necessaacuterio elaborar um roteiro

de perguntas que partiram de um questionaacuterio semiestruturado enquanto no Brasil as

entrevistas permaneceram abertas tendo como elemento disparador uma uacutenica pergunta Ainda

que no primeiro caso nem todos os toacutepicos listados no roteiro preacutevio tenham sido abordados

as ausecircncias destes tambeacutem puderam fornecer dados relacionadas a relevacircncia de tais questotildees

para cada interlocutor

23 Narrativas

Conforme exposto no toacutepico anterior algumas das pesquisas aqui descritas utilizam

narrativas a partir do resgate de registros em diaacuterio de campo das pesquisadoras que satildeo

tambeacutem trabalhadoras em seu campo de pesquisa Esta escolha se deu fundamentada no

entendimento de que poderaacute ser um modo coerente de acolher diversas formas de manifestaccedilatildeo

das questotildees de sauacutede mental e de como estas se apresentam nas instituiccedilotildees juriacutedicas ou ainda

em relaccedilatildeo a oacutergatildeos que representam direitos e portanto justiccedila Deste modo procura-se

retratar resgatar recolher visibilizar atraveacutes de narrativas os atendimentos visitas reuniotildees

diaacutelogos e demais procedimentos que compotildeem o cotidiano das pesquisadoras A pesquisa

narrativa eacute um instrumento criativo e inovador jaacute consagrado pela Organizaccedilatildeo Mundial de

Sauacutede (OMS)

Em 2003 o Escritoacuterio Regional para a Europa da Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede criou um

serviccedilo de informaccedilatildeo puacuteblica denominado HEN ndash Health Evidence Network Baseado em

ldquoevidecircncias sintetizadasrdquo propotildee ldquoopccedilotildees poliacuteticasrdquo para o desenvolvimento de futuras

recomendaccedilotildees na tomada de decisotildees em sauacutede Entre as sugestotildees figuraram uso de

novos tipos de evidecircncia pesquisa qualitativa e narrativa ampliaccedilatildeo de disciplinas acadecircmicas

242

relacionadas a contextos culturais (Nunes 2018 p 307 grifo nosso)

Este relatoacuterio com recomendaccedilotildees da OMS observa que abordagens altamente

estruturadas minimizam a importacircncia da leitura e da interaccedilatildeo dialoacutegica entre a literatura e a

pesquisadora a continuidade interpretativa e o questionamento a avaliaccedilatildeo criacutetica e a

criatividade o desenvolvimento da argumentaccedilatildeo e da escrita ndash atividades altamente

intelectuais e criativas que buscam originalidade ao inveacutes de replicabilidade Desse modo uma

narrativa seria um relato com um comeccedilo uma sequecircncia de eventos que se desenrolam e um

final A narrativa coloca personagens eventos accedilotildees e contexto juntos para dar sentido a eles

(Nunes 2018)

Segundo esta anaacutelise as histoacuterias satildeo subjetivas e intersubjetivas incorporadas em

praacuteticas institucionais e sociais e convencem natildeo pela sua verdade objetiva mas por sua

semelhanccedila com a vida real e o impacto sobre o leitor ou ouvinte O foco da pesquisa narrativa

estaria em produzir o que nomeia de ldquointerpretaccedilatildeo convincenterdquo destacando que

confiabilidade plausibilidade e criticidade ndash reflexividade questionamento e interpretaccedilotildees

alternativas ndash satildeo fundamentais (Nunes 2018)

O documento tambeacutem aponta que ldquopesquisas narrativas bem conduzidas e analisadas

podem complementar estudos randomizados estudos observacionais e dados coletados

rotineiramente de vaacuterios tiposrdquo (Nunes 2018 p 309) Satildeo recomendados como procedimentos

para garantir criteacuterios cientiacuteficos agrave pesquisa coletar vaacuterias histoacuterias sobre o mesmo assunto

relacionar a histoacuteria a outras fontes como dados biomeacutedicos e estar atenta aos deveres eacuteticos

de honestidade e confidencialidade Desta forma o conteuacutedo das narrativas pode ser o material

disparador para um encontro com o campo de interesse do estudo ilustrando dinacircmicas

(institucionais interpessoais interinstitucionais) relaccedilotildees discursos diaacutelogos accedilotildees

intervenccedilotildees dentre outras descriccedilotildees elementos que podem ser analisados em conjunto com

outras fontes de dados tais como legislaccedilatildeo normativas estatiacutesticas bibliografia e outras

pesquisas

Por fim se por um lado a narrativa eacute considerada como elemento inovador haacute que se

ponderar sobre a criticidade direcionada a esta concepccedilatildeo de fazer e compreender a ciecircncia

desde os trabalhos de Walter Benjamin (1985) e Hannah Arendt (2016) A funccedilatildeo poliacutetica de

narrar eacute resgatada na pesquisa ao se buscar o sentido desta accedilatildeo na composiccedilatildeo da mesma e a

partir dela deixar vir agrave cena aquilo que estava fora do discurso oficial de sucesso da histoacuteria

neste caso para compor o cenaacuterio dos avanccedilos da sauacutede mental no Brasil que como temos

visto vem sendo desconstruiacuteda atualmente sem representaccedilatildeo de resistecircncias que efetivem

243

barras no desmonte

Agraves pesquisas portanto interessam contar dos processos a fim de compor contextos de

estudos quantitativos e outros qualitativos e tambeacutem promover reflexatildeo sobre os restos que

ficam de fora do discurso apenas dos avanccedilos e conquistas para partilhar de experiecircncias no

campo de interface da justiccedila e sauacutede que recolham as contradiccedilotildees e incongruecircncias da

realidade (Critelli 2012) Ficaria a cargo do narrador a transmissatildeo natildeo oficial ou dominante

pois eacute dela que a tradiccedilatildeo natildeo recorda (Gagnebin 2006) e assim do lugar de trabalhadoras do

sistema de justiccedila buscamos narrar o que testemunhamos deste lugar

Assim dialoga-se com Pichon partindo de conceitos que foram trazidos e trabalhados

anteriormente Se quem eacute porta-voz denuncia o acontecer grupal entende-se que as narradoras

tambeacutem promovem esse dizer das realidades nos contextos da interface justiccedila e sauacutede como

accedilatildeo de denuacutencia de um acontecer grupal tendo as realidades narradas surgindo como

emergente de um movimento pela sauacutede mental ndash que compotildee o contexto do direito da poliacutetica

e dos aspectos sociais

24 Sociodrama

O sociodrama eacute um instrumento metodoloacutegico da socionomia que ao ser utilizado como

meacutetodo de pesquisa interventiva permite estabelecer uma relaccedilatildeo dialeacutetica e dialoacutegica com seus

participantes Nesta concepccedilatildeo metodoloacutegica para se manter a coerecircncia com o referencial

filosoacutefico e teoacuterico os sujeitos satildeo convidados a ocupar o papel de co-pesquisadoras ou co-

pesquisadores a respeito da temaacutetica investigada

Moreno13 (1975) introduz o sociodrama como meacutetodo de accedilatildeo na abordagem dos

problemas antropoloacutegicos e culturais

O Conceito subjacente nessa abordagem eacute o reconhecimento de que o homem eacute um inteacuterprete

de papeacuteis que todo e qualquer indiviacuteduo se caracteriza por um certo repertoacuterio de papeacuteis que

dominam o seu comportamento e que toda e qualquer cultura eacute caracterizada por um certo

conjunto de papeacuteis que ela impotildee Para o estudo das inter-relaccedilotildees culturais o procedimento

sociodramaacutetico eacute idealmente adequado especialmente quando duas culturas coexistem em

proximidade fiacutesica e seus membros se encontram respectivamente num processo contiacutenuo de

13 Eacute importante destacar que Jacob Levy Moreno (1892-1974) trouxe agrave teoria do papel no campo da Psicologia e

na criaccedilatildeo do psicodrama quando procurava descrever os processos psiacutequicos que ocorriam neste meacutetodo nascido

do Teatro do Improviso E se ele trouxe contribuiccedilotildees importantes para a Psicologia eacute George Mead quem vai

desenvolver a noccedilatildeo de papel no acircmbito da Psicologia Social e explicar muitos aspectos da vida social por meio

do estudo dos papeacuteis Para ele na mente de cada um de noacutes natildeo soacute assumimos nosso papel como fazemos isso

tambeacutem em relaccedilatildeo ao papel do outro assumindo o papel social de um grupo organizado E foi no estudo de Mead

que Pichon buscou subsiacutedios para a construccedilatildeo de sua Psicologia social histoacuterica e concreta (Scarcelli 2017)

244

interaccedilatildeo e permuta de valores (Moreno 1975 p 413)

Convidou-se agrave vivecircncia de um ato sociodramaacutetico membros dos grupos que constituem

a instituiccedilatildeo os quais vestidos de seus papeacuteis sociais e do papel de co-pesquisadoras e co-

pesquisadores satildeo conduzidos em dramatizaccedilotildees de cenas eleitas e criadas pelo proacuteprio grupo

No sociodrama o grupo eacute ao mesmo tempo autor e ator das histoacuterias representadas

3 Anaacutelise

As pesquisas que apresentamos trazem diferentes questotildees e colocam reflexotildees de

dimensotildees de ordens diversas A partir de uma perspectiva pichoniana quando se tem o grupo

operativo como instrumento de investigaccedilatildeo sempre satildeo analisadas trecircs dimensotildees que natildeo se

separam mas satildeo consideradas como recortes metodoloacutegicos a psicossocial que analisa a parte

do sujeito que se dirige aos diferentes membros que o rodeiam a sociodinacircmica que aborda

diversas tensotildees existentes entre todos os membros que configuram a estrutura do grupo e a

institucional que consiste na investigaccedilatildeo dos grandes grupos (estrutura origem composiccedilatildeo

histoacuteria economia poliacutetica ideologia etc) (Pichon-Riviegravere 2005) Elas representam trecircs

direccedilotildees de anaacutelise na investigaccedilatildeo social e perpassam a discussatildeo desenvolvida nas pesquisas

aqui apresentadas que dialogam com o esquema conceitual referencial e operativo (ECRO) da

formulaccedilatildeo teoacuterica de Pichon-Riviegravere (Scarcelli 2017) Contudo a discussatildeo acerca da

dimensatildeo institucional natildeo tem sido suficientemente desenvolvida em estudos que priorizam a

abordagem psicoloacutegica para se refletir sobre as poliacuteticas puacuteblicas e praacuteticas institucionais

Baseadas nesta hipoacutetese e com o intuito de examinar com mais cuidado tal dimensatildeo

nas pesquisas e no caraacuteter social que elas tecircm lanccedilamos matildeo de outro recorte metodoloacutegico

sugerido por Scarcelli (2017) a partir do diaacutelogo feito com a teoria pichoniana mas que natildeo se

restringe a ela Tal proposta possibilita a identificaccedilatildeo de camadas relacionais que interrogam

questotildees e agregam conhecimento agrave dimensatildeo institucional e sua relaccedilatildeo intriacutenseca com as

dimensotildees psicossocial e sociodinacircmica quando estamos por exemplo diante das poliacuteticas

puacuteblicas e as praacuteticas que delas decorrem14

De acordo com esse recorte compreendem-se quatro acircmbitos distintos O poliacutetico-

juriacutedico refere-se agraves leis normas diretrizes e programas governamentais decorrentes de

definiccedilotildees poliacuteticas o social-cultural aos grupos e sujeitos suas necessidades e demandas no

14 Considerando os limites deste texto natildeo seraacute apresentado com mais detalhes o modo de fazer tal anaacutelise

Discussatildeo mais detalhada encontra-se em Scarcelli (2017)

245

contexto da implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo das poliacuteticas o teoacuterico-conceitual aos fundamentos

teoacutericos e filosoacuteficos assim como as concepccedilotildees que sustentam as praacuteticas leis diretrizes

poliacuteticas e programas e por fim o teacutecnico-assistencial que se refere aos modos de criaccedilatildeo

implantaccedilatildeo implementaccedilatildeo e desenvolvimento de praacuteticas leis diretrizes poliacuteticas e

programas (Scarcelli 2017)

Os acircmbitos estatildeo sempre interligados apoiando a investigaccedilatildeo de problemas que se

encontram na esfera das poliacuteticas puacuteblicas (por exemplo) e podendo ser utilizados como lentes

para adentrar o campo de pesquisa e refletir experiecircncias que satildeo mobilizadas tambeacutem na pessoa

que conduz a pesquisa Neste sentido os acircmbitos pensados como recorte metodoloacutegico

auxiliam o enquadre15 e o desenvolvimento da pesquisa considerando que a experiecircncia de

quem pesquisa estaacute implicada no processo de pesquisar

Os trabalhos das pesquisadoras deste capiacutetulo por exemplo se referem aos setores da

sauacutede e educaccedilatildeo e podem assim indagar sobre diferentes situaccedilotildees que se relacionam aos

acircmbitos propostos no recorte apresentado no campo das poliacuteticas puacuteblicas levantando questotildees

diversas Quais as leis e diretrizes que sustentam os setores da educaccedilatildeo e sauacutede no paiacutes Quais

poliacuteticas governamentais subsidiam as praacuteticas encontradas nas diferentes instituiccedilotildees

estudadas

E como satildeo concretizadas as praacuteticas no cotidiano das instituiccedilotildees que estatildeo prescritas

nas leis e diretrizes que as sustentam Estatildeo alinhadas ou em desalinho com tais poliacuteticas

Como concretizar em praacuteticas o que estaacute sendo proposto legalmente

Quem satildeo os grupos de pessoas que produzem tais praacuteticas Quais seus modos de

expressatildeo seus contextos de vida Mas aleacutem disso quais sujeitos que constituiacuteram as leis e

diretrizes poliacuteticas estudadas Como se organizaram e como realizaram esse trabalho

Haacute concepccedilotildees e referenciais teoacutericos e filosoacuteficos que orientam as praacuteticas nessas

instituiccedilotildees entatildeo quais satildeo eles E quais princiacutepios baseiam a construccedilatildeo das leis diretrizes

e programas que se relacionam a essas praacuteticas Qual a visatildeo de mundo e interesses dos sujeitos

que participaram desse processo

Como proposta de compreensatildeo dos focos que cada acircmbito pode motivar as perguntas

acima referem-se respectivamente aos acircmbitos poliacutetico-juriacutedico teacutecnico-assistencial social-

15 Joseacute Bleger (1984) disciacutepulo de Pichon-Riviegravere propotildee a concepccedilatildeo de enquadre para se aproximar de um

fenocircmeno do qual se toma uma parte de suas relaccedilotildees delimitando o que estaacute presente implicitamente em todas

as indagaccedilotildees cientiacuteficas ou natildeo De acordo com o autor enquadre satildeo as constantes dentro das quais acontece o

processo operando como um organizador psiacutequico Se por um lado o enquadre eacute imprescindiacutevel tambeacutem eacute

essencial que se tenha a criticidade quanto agrave caracteriacutestica de mobilidade do campo)

246

cultural e teoacuterico-conceitual ndash lembrando que satildeo camadas imbricadas podendo ser utilizadas

como recortes metodoloacutegicos que auxiliem na apreensatildeo da realidade sem ignorar suas relaccedilotildees

Uma busca estaacute em indagar sobre as lacunas entre os acircmbitos poliacutetico-juriacutedico e teacutecnico-

assistencial (Scarcelli 2011 2017) O que estaacute proposto em diretrizes leis e programas eacute de

fato concretizado no cotidiano das praacuteticas nas instituiccedilotildees Em muitos aspectos e

circunstacircncias como aqueles captados pelas pesquisas aqui apresentadas pode-se afirmar que

natildeo Mas isso jaacute eacute sentido e conhecido pelos diferentes atores dessas instituiccedilotildees O que se

torna interessante eacute conhecer como isso se daacute e quais as consequecircncias dessa discrepacircncia

tarefa que se torna facilitada pelo uso do recorte metodoloacutegico

Conflitos contradiccedilotildees e ambiguidades que se expressam entre o que se propotildee e o que

se estabelece (Scarcelli 2017) podem assim ser conhecidos Isso se expressou nos objetivos

e no desenvolvimento dos trabalhos das poacutes-graduandas que aqui escrevem

Um exemplo foi a adaptaccedilatildeo do formato das entrevistas de uma das pesquisas bem

como a inclusatildeo de alguns temas inicialmente desconsiderados A necessidade de se discutir

discrepacircncias entre os contextos portuguecircs e brasileiro possibilitou um olhar sobre questotildees

estruturais pautadas no poacutes-colonialismo (Brah 2006) Neste ponto pesaram natildeo apenas as

diferenccedilas entre os dois paiacuteses mas tambeacutem o fato de a pesquisadora em questatildeo ser brasileira

e ter se mostrado preponderante ao realizar a investigaccedilatildeo em Portugal

Jaacute no acircmbito da justiccedila em interface com a execuccedilatildeo da poliacutetica de sauacutede as

contradiccedilotildees satildeo inerentes e revelam campos de disputas diversas inclusive ideoloacutegicas

permitindo que as praacuteticas visualizem diferentes interaccedilotildees possiacuteveis que fogem agraves

regulamentaccedilotildees pactuadas na estrutura legal democraacutetica ndash esta inclusive se consolida em

nuances tambeacutem mais ou menos democraacuteticas como temos presenciado na histoacuteria da aacuterdua

construccedilatildeo da democracia no Brasil ingrediente fundamental ao lanccedilar-se em pesquisas do

universo das poliacuteticas puacuteblicas Os proacuteprios oacutergatildeos de defesa e garantia de direitos acabam por

apresentar diferentes posturas e condutas apesar da lei escrita e pactuada como unidade de

direccedilatildeo pois os inter-jogos vivos no campo social impactam nos movimentos diaacuterios e

institucionais

Nos serviccedilos de sauacutede em contexto nas diversas pesquisas presentes neste capiacutetulo a

diversidade de acesso e atendimento bem como as resoluccedilotildees cotidianas para conflitos e

desafios que se apresentam narram sobre as particularidades que inundam os processos de

relaccedilotildees cotidianas que estatildeo em jogo na execuccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede que satildeo reveladas por

247

meio de diferentes meios de instrumentais metodoloacutegicos e compotildeem o cenaacuterio das pesquisas

Tal configuraccedilatildeo tambeacutem eacute percebida no campo da execuccedilatildeo da poliacutetica de educaccedilatildeo

Consideraccedilotildees finais

O conhecimento que adveacutem das indagaccedilotildees por meio da proposta de recorte

metodoloacutegico dos acircmbitos assim como da proposta em realizar uma criacutetica da vida cotidiana16

pode trazer reflexotildees sobre a construccedilatildeo e implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Desnaturalizar

discriminar analisar desconstruir estereoacutetipos pode ser potente para se questionar sobre quais

instituiccedilotildees e praacuteticas estatildeo sendo produzidas nesta sociedade desigual ndash afinal de que tratam

as poliacuteticas puacuteblicas no Brasil na constante tensatildeo entre a diminuiccedilatildeo da desigualdade social e

na manutenccedilatildeo de um estado de desigualdade harmocircnico

As contribuiccedilotildees da Psicologia Social nesse sentido se referem agrave possibilidade de natildeo

perder de vista a dimensatildeo do sujeito psiacutequico e social Eacute por meio por exemplo das sensaccedilotildees

de impotecircncia de anguacutestia e sofrimento dos sujeitos envolvidos nos processos investigados que

se pode indagar a respeito da dimensatildeo social e institucional que compotildee a formulaccedilatildeo e

implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Se a violecircncia a injusticcedila o manicocircmio o sexismo o

racismo a falta de pertencimento se desvelam nas relaccedilotildees constituiacutedas nos cotidianos da

execuccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas a Psicologia Social nos convida a adentrar este campo com a

ciecircncia do tamanho de sua complexidade bem como da ausecircncia da ineacutercia e da insuficiecircncia

dos pactos convocando a compreensatildeo destes inter-jogos campo-pesquisa poliacutetica puacuteblica-

execuccedilatildeo lei-praacutetica serviccedilo-profissional e pessoa-pessoa

Referecircncias

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16 A psicologia social formulada por Pichon estaacute inscrita em uma criacutetica da vida cotidiana porque aborda o sujeito

imerso em suas relaccedilotildees sociais nas condiccedilotildees concretas de existecircncia ou seja aos modos de produccedilatildeo e

reproduccedilatildeo da existecircncia material de inserccedilatildeo dos sujeitos no processo produtivo Mas na cotidianidade os fatos

satildeo aceitos de forma naturalizada autoevidente sem ao menos serem questionados ou verificados pois eles satildeo

significados como o real por excelecircncia O sistema de representaccedilotildees sociais (ideologias) encobre e distorce o

cotidiano enquanto oculta a essecircncia da vida cotidiana segundo interesses dos setores hegemocircnicos da sociedade

as ideologias tecircm caraacuteter de classe social Sendo assim a reflexatildeo psicoloacutegica deve incluir indagaccedilotildees frente agrave

complexidade das relaccedilotildees que determinam as tramas vinculares e constituiccedilatildeo subjetiva e satildeo por elas

determinadas pois a vida cotidiana reivindica uma criacutetica uma atitude analiacutetica que faccedila frente agrave consciecircncia

ingecircnua indagando as leis que regem a configuraccedilatildeo do sujeito (interjogo necessidadessatisfaccedilatildeo) e as

modalidades de resposta social em cada formaccedilatildeo social concretardquo (Scarcelli 2017 p 217)

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Capiacutetulo 13

Algumas contribuiccedilotildees da Psicologia para o campo da Sauacutede do

Trabalhador

Heloiacutesa Aparecida de Souza

Johanna Garrido Pinzoacuten

Marcia Hespanhol Bernardo

Mariana Pereira da Silva

Introduccedilatildeo

O movimento de reforma sanitaacuteria brasileira e os movimentos operaacuterios que tiveram

seu auge na deacutecada de 1980 ndash periacuteodo de abertura poliacutetica apoacutes 21 anos de ditadura militar ndash

foram essenciais para a elaboraccedilatildeo do capiacutetulo sobre Sauacutede na Constituiccedilatildeo Federal de 1988

que indicou a criaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) Inserido nesse contexto o campo da

Sauacutede do Trabalhador (ST) colaborou com o avanccedilo nas poliacuteticas puacuteblicas de proteccedilatildeo aos

direitos dos trabalhadores Trata-se de um campo composto por saberes teoacutericos e praacuteticos

interdisciplinares ndash incluindo o saber dos trabalhadores ndash que fundamentados nas formulaccedilotildees

da Sauacutede Coletiva e da Medicina Social Latino-americana buscaram superar os limites

epistemoloacutegicos da Medicina do Trabalho e da Sauacutede Ocupacional que eram exercidas nas

empresas (Lacaz 1996) Desse modo seu loacutecus de atuaccedilatildeo foi a sauacutede puacuteblica abrangendo natildeo

apenas o atendimento agravequeles que se acidentam ou adoecem no trabalho mas tambeacutem a

promoccedilatildeo da sauacutede e intervenccedilotildees nos locais de trabalho visando agrave prevenccedilatildeo de acidentes e de

adoecimento dos trabalhadores

Todavia manter e ampliar a atenccedilatildeo agrave sauacutede dos trabalhadores no SUS tem sido um

desafio permanente Se o proacuteprio SUS sempre foi objeto de disputa por empresas privadas de

sauacutede a atuaccedilatildeo da Sauacutede do Trabalhador enfrenta uma seacuterie de obstaacuteculos que impedem sua

plena execuccedilatildeo Como todas as poliacuteticas puacuteblicas a ST eacute proveniente de um conflituoso e

intenso emaranhado de relaccedilotildees sociais econocircmicas e poliacuteticas e de acordo com Di Giovanni

(2009) sua manutenccedilatildeo depende da garantia de direitos agrave dignidade e agrave cidadania e das

articulaccedilotildees organizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees populares

252

Os desafios satildeo ainda mais graves na atualidade brasileira com as aceleradas perdas dos

ainda incipientes direitos conquistados no campo do trabalho Nesse sentido diversos projetos

desfavoraacuteveis aos trabalhadores foram apresentados aos Poderes Executivo e Legislativo

alguns jaacute aprovados e outros em discussatildeo no momento da escrita deste capiacutetulo Entre eles

estaacute a polecircmica ldquoreforma da previdecircnciardquo a Lei 134672017 que alterou a Consolidaccedilatildeo das

Leis do Trabalho (Brasil 2017a) e leis como a 134292017 que possibilita a terceirizaccedilatildeo de

qualquer tipo de atividade (Brasil 2017b)

Lacaz (2019) discute os retrocessos desse conjunto de leis e suas consequecircncias para as

conquistas no acircmbito da sauacutede dos trabalhadores Segundo o autor aleacutem de contribuir com o

aumento do desemprego e do trabalho precaacuterio tais alteraccedilotildees legais provocam mais acidentes

e incapacidades geram maior desgaste da sauacutede fiacutesica e mental dos trabalhadores e

concomitantemente levam ao desmonte das poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede

As caracteriacutesticas do atual contexto brasileiro estabelecidas dentro das margens do

capitalismo global satildeo levadas em conta pela Psicologia Social do Trabalho (Coutinho

Bernardo amp Sato 2017) que assume uma postura criacutetica ao modelo social de trabalho vigente

na atualidade Os profissionais e pesquisadores circunscritos nesse enfoque ndash no qual se incluem

as autoras deste artigo ndash estudam e discutem as implicaccedilotildees poliacuteticas e sociais da relaccedilatildeo

indiviacuteduo-trabalho no contexto social bem como promovem accedilotildees partindo do pressuposto de

que as relaccedilotildees de trabalho satildeo permeadas por assimetrias de poder (Coutinho Bernardo amp

Sato 2017) Portanto sua atuaccedilatildeo ndash em intervenccedilotildees ou em pesquisas ndash inclui uma anaacutelise

abrangente das contradiccedilotildees do trabalho dentro das condiccedilotildees decorrentes de seus processos de

produccedilatildeo particulares Ela tambeacutem valoriza os aspectos subjetivos a partir da perspectiva dos

proacuteprios trabalhadores e assim diferencia-se da relaccedilatildeo que a tradicional Psicologia

Organizacional estabelece com o trabalho (Bernardo Oliveira Souza amp Sousa 2017)

Na sauacutede puacuteblica desse modo as praacuteticas e as pesquisas em Psicologia precisam

abranger prevenccedilatildeo promoccedilatildeo e intervenccedilatildeo na sauacutede integral dos trabalhadores mediante a

problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o adoecimento do trabalhador e sua atividade laboral assim

como a conscientizaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees de trabalho nas quais se encontram Suas

contribuiccedilotildees abrangem os mais diversos niacuteveis do sistema de sauacutede que vatildeo da participaccedilatildeo

em equipes responsaacuteveis pela proacutepria formulaccedilatildeo das poliacuteticas ao atendimento direto a

trabalhadores adoecidos pelo trabalho Deve-se ressaltar que ao longo da histoacuteria no Brasil a

Psicologia com o vieacutes criacutetico com atuaccedilotildees e investigaccedilotildees que valorizavam o diaacutelogo com os

movimentos sociais a classe trabalhadora e os diversos serviccedilos puacuteblicos forneceu importantes

253

contribuiccedilotildees para a constituiccedilatildeo e implementaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas em Sauacutede do

Trabalhador

Considerando os pressupostos dessa exposiccedilatildeo inicial o presente capiacutetulo tem o

objetivo de refletir sobre as contribuiccedilotildees e desafios da participaccedilatildeo da Psicologia nas poliacuteticas

puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador Para isso parte das discussotildees e pesquisas realizadas pelo

grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que desde o ano

de 2009 tem se dedicado agrave anaacutelise das situaccedilotildees de trabalho e sua relaccedilatildeo com a sauacutede dos

trabalhadores em especial a sauacutede mental

Para abordar esse tema comeccedilaremos apresentando algumas reflexotildees sobre as

caracteriacutesticas do trabalho no contexto atual e suas repercussotildees para os trabalhadores

especialmente no que se refere agrave sauacutede que entendemos ser fundamental para a discussatildeo das

poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador e das contribuiccedilotildees da Psicologia agrave temaacutetica

Depois dessas reflexotildees introdutoacuterias seratildeo apresentadas algumas pesquisas de poacutes-graduaccedilatildeo

em Psicologia que colaboram com a construccedilatildeo de conhecimento na aacuterea da sauacutede coletiva e

na atuaccedilatildeo profissional do psicoacutelogo em prol dos direitos dos trabalhadores

1 Reflexotildees sobre as caracteriacutesticas do trabalho no contexto atual e suas consequecircncias

para os trabalhadores

Iniciamos lembrando que o trabalho possui um significado maior do que o ato de exercer

uma atividade ou de vender a forccedila de trabalho por uma remuneraccedilatildeo Existe tambeacutem uma

representaccedilatildeo social do trabalho como fator de integraccedilatildeo reconhecimento e cooperaccedilatildeo

Segundo Antunes (1998) ldquoO ato de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana realiza-se pelo

trabalho E a partir do trabalho em sua cotidianidade que o homem torna-se ser social

distinguindo-se de todas as formas natildeo humanasrdquo (Antunes 1998 p 121) Todavia sob o

capitalismo em vez de favorecer a humanizaccedilatildeo e a socializaccedilatildeo com frequecircncia ele se torna

nocivo aos trabalhadores

A busca inerente ao capitalismo pela maior acumulaccedilatildeo do lucro leva agrave intensificaccedilatildeo

do trabalho e consequentemente agrave fragilizaccedilatildeo da sauacutede dos trabalhadores Aspectos relativos

agrave organizaccedilatildeo do trabalho tais como a carga e o ritmo do trabalho o conteuacutedo das tarefas a

duraccedilatildeo da jornada a hierarquizaccedilatildeo estabelecida o trabalho em turnos e o controle na

produccedilatildeo desencadeiam desgastes fiacutesicos e psiacutequicos dos trabalhadores o que favorece o

sofrimento e os processos de adoecimento

254

Nesse sentido Lacaz (2007) faz referecircncia ao ldquoprocesso de trabalhordquo no qual se

inscrevem as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo estabelecidas a fim de ressaltar a determinaccedilatildeo

social e histoacuterica na compreensatildeo das relaccedilotildees trabalho e sauacutede-doenccedila O autor afirma

Importa entatildeo desvendar a nocividade do processo de trabalho sob o capitalismo e suas

implicaccedilotildees alienaccedilatildeo sobrecarga eou subcarga pela interaccedilatildeo dinacircmica de ldquocargasrdquo sobre os

corpos que trabalham conformado um nexo biopsiacutequico que expressa o desgaste impeditivo da

fluiccedilatildeo das potencialidades e da criatividade (Lacaz 2007 p 759-760)

O capitalismo tem sua trajetoacuteria marcada por diversos periacuteodos de expansatildeo e retraccedilatildeo

aleacutem de transformaccedilotildees na organizaccedilatildeo do trabalho e consequentemente dos trabalhadores

Uma das caracteriacutesticas mais significativas na contemporaneidade diz respeito agrave instauraccedilatildeo de

um modo de produccedilatildeo conhecido como ldquoregime de acumulaccedilatildeo flexiacutevelrdquo (Harvey 2011) O

aumento da competiccedilatildeo internacional em um periacuteodo de mudanccedilas e incertezas obrigou os

Estados capitalistas a favorecerem o ambiente dos negoacutecios facilitando e motivando a

introduccedilatildeo de novas alternativas de produccedilatildeo caracterizadas por uma maior flexibilidade dos

mercados pela mobilidade geograacutefica e pelo estabelecimento de raacutepidas mudanccedilas nas praacuteticas

de consumo (Antunes 1998 Bauman 1999) Ante essas imposiccedilotildees o regime de acumulaccedilatildeo

flexiacutevel tambeacutem introduz alteraccedilotildees significativas nos modelos da organizaccedilatildeo do trabalho e

nas relaccedilotildees trabalhistas com a finalidade (e a necessidade) de conter a forccedila dos trabalhadores

Isso configurou um novo contexto nas relaccedilotildees de trabalho no qual prevaleceu uma

caracteriacutestica em particular que se pode denominar flexibilidade laboral (Antunes 2005

Harvey 2011)

Essas transformaccedilotildees implicaram expressiva reduccedilatildeo do nuacutemero de trabalhadores

formais em empresas em paralelo agrave crescente ampliaccedilatildeo da informalidade e do desemprego Do

mesmo modo conveacutem destacar que as transformaccedilotildees ocorridas incluem desregulamentaccedilatildeo

terceirizaccedilatildeo e precarizaccedilatildeo do trabalho Um exemplo recente eacute o crescimento vertiginoso de

formas de trabalho relacionadas ao uso de tecnologias que vecircm sendo denominadas de

ldquouberizaccedilatildeordquo (Abiacutelio 2017) as quais oferecem situaccedilatildeo desprotegida insegura e muitas vezes

degradante ao trabalhador

Tal contexto impotildee grandes desafios aos trabalhadores tais como o cumprimento das

diversas exigecircncias cotidianas o envolvimento com a concorrecircncia do mercado a

aprendizagem constante das novas tecnologias o saber agir diante de um contexto em frequente

transformaccedilatildeo e vivecircncia de incerteza com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo de trabalho Desse modo a sauacutede

mental dos trabalhadores tambeacutem sofre um processo de desgaste

255

Franco Druck e Seligmann-Silva (2010) mencionam a identificaccedilatildeo de um conjunto de

transtornos mentais associados a condiccedilotildees precaacuterias de trabalho entre os quais se encontram

estresse depressatildeo esgotamento profissional (Burnout) estresse poacutes-traumaacutetico (TEPT) e a

dependecircncia de bebidas alcooacutelicas e a outras substacircncias psicoativas O psiquiatra francecircs Louis

Le Guillant (2006) foi um dos pioneiros nos estudos sobre a influecircncia do trabalho no

adoecimento mental Seu estudo sobre as telefonistas realizado na deacutecada de 1950 evidenciou

os efeitos nocivos para a sauacutede da intensificaccedilatildeo do trabalho e do controle exercido pelo poder

hieraacuterquico O autor expotildee que a organizaccedilatildeo do trabalho eacute a responsaacutevel por constrangimentos

pressotildees ou imposiccedilotildees que desorganizam o equiliacutebrio psicofisioloacutegico e mental dos

trabalhadores (Le Guillant 2006) A esse respeito Sato e Bernardo (2005) acrescentam que os

problemas reconhecidos por Le Guillant natildeo soacute continuam se reproduzindo na atualidade como

tambeacutem se ampliam com a intensificaccedilatildeo do trabalho e a sofisticaccedilatildeo do controle possibilitada

pelos avanccedilos tecnoloacutegicos

Assim ao abordar as grandes transformaccedilotildees sofridas pelo trabalho observa-se que

aleacutem de acentuarem ainda mais as desigualdades e a injusticcedila social presentes em nossa

sociedade trazem outras formas de sofrimento e adoecimento mais complexas e sutis

sobretudo do ponto de vista da sauacutede mental relacionada ao trabalho Vale enfatizar ainda que

tal quadro natildeo afeta apenas os trabalhadores formais do setor privado Os efeitos atingem toda

a classe-que-vive-do-trabalho (Antunes 1998) que abarca inclusive aqueles que natildeo

conseguem trabalho Daiacute a importacircncia de poliacuteticas puacuteblicas direcionadas agrave sauacutede dos

trabalhadores e do compromisso da Psicologia com tais poliacuteticas

2 Poliacuteticas Puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador Breve apanhado histoacuterico e contribuiccedilotildees

da Psicologia

A Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Trabalhador e da Trabalhadora tem como principais

objetivos o fortalecimento da Vigilacircncia em Sauacutede do Trabalhador a promoccedilatildeo de ambientes e

processos de trabalhos saudaacuteveis a garantia de integralidade na atenccedilatildeo agrave sauacutede dos

trabalhadores a ampliaccedilatildeo do entendimento de que a sauacutede do trabalhador deve ser concebida

como uma accedilatildeo transversal a incorporaccedilatildeo da categoria trabalho como determinante do

processo sauacutede-doenccedila dos indiviacuteduos e da coletividade a garantia de que a identificaccedilatildeo da

situaccedilatildeo do trabalho dos usuaacuterios seja considerada nas accedilotildees e serviccedilos de sauacutede assegurando

desse modo maior qualidade da atenccedilatildeo agrave sauacutede dos trabalhadores usuaacuterios do SUS (Brasil

2012)

256

Apesar de amplas e promissoras tal poliacutetica permanece cercada de fragilidades e como

discutido anteriormente sofre intensas ameaccedilas na atualidade Ela eacute oriunda de um longo

processo de organizaccedilatildeo e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores que comeccedilou a ser debatida de

forma mais estruturada na deacutecada de 1980 com forte influecircncia da Medicina Social Latino-

americana e do Movimento Operaacuterio Italiano Configura-se assim como uma das importantes

conquistas sociais presentes na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 (Lacaz 2007)

As raiacutezes das poliacuteticas puacuteblicas em ST satildeo criacuteticas e engajadas com os interesses e

participaccedilatildeo da classe trabalhadora Costa Lacaz Jackson Filho e Vilela (2013) afirmam que

se trata de um campo interdisciplinar plurinstitucional integrado agrave Sauacutede Coletiva e voltado

para a promoccedilatildeo prevenccedilatildeo e a assistecircncia aos trabalhadores privilegiando o seu protagonismo

e compreendendo a sauacutede-doenccedila como processo dinacircmico histoacuterico coletivo e com possiacuteveis

relaccedilotildees com o trabalho

A efetiva implantaccedilatildeo da ST no acircmbito da sauacutede puacuteblica ganhou relevacircncia na deacutecada

de 1990 quando a Lei Orgacircnica da Sauacutede regulamentou o SUS destacando accedilotildees de vigilacircncia

e atenccedilatildeo agraves condiccedilotildees de trabalho e seus impactos na sauacutede dos trabalhadores (Brasil 1990)

Posteriormente foram instituiacutedos os Centros de Referecircncia em Sauacutede do Trabalhador

(CERESTs) Sato Lacaz e Bernardo (2006) afirmam que no processo da reforma sanitaacuteria

ocorrida no Brasil na deacutecada de 1980 a Psicologia contribuiu para a efetivaccedilatildeo da Sauacutede do

Trabalhador colaborando por exemplo com a elaboraccedilatildeo de diretrizes com o

desenvolvimento de novas propostas de atendimento psicossocial (Sato Arauacutejo Udihara

Franco Nicotera Daldon Settimi e Silvestre 1993) e de accedilotildees de vigilacircncia em sauacutede (Sato amp

Bernardo 1995)

Segundo o documento produzido pelo Centro de Referecircncia Teacutecnica em Psicologia e

Poliacuteticas Puacuteblicas (Conselho Federal de Psicologia 2008) os psicoacutelogos que atuam na Sauacutede

do Trabalhador satildeo convidados a contribuir com a reflexatildeo sobre as vivecircncias desencadeadas

pelos aspectos da organizaccedilatildeo dos processos e das situaccedilotildees de trabalho existentes na

atualidade e a compreender as possiacuteveis repercussotildees desses elementos sobre a sauacutede dos

trabalhadores O documento destaca a importacircncia do psicoacutelogo na defesa da sauacutede dos

trabalhadores ao afirmar que no ldquoacircmbito do SUS o campo da sauacutede mental e trabalho encontra

nos psicoacutelogos importante base teacutecnica de sustentaccedilatildeordquo (Conselho Federal de Psicologia 2008

p 23) e ressalta a contribuiccedilatildeo da Psicologia na compreensatildeo da subjetividade do trabalhador

das vivecircncias de sofrimento no trabalho e das patologias provocadas ou agravadas pelo trabalho

257

A diferenccedila do olhar do psicoacutelogo em relaccedilatildeo a outros profissionais da sauacutede em nossa

concepccedilatildeo eacute que esse profissional recebe uma formaccedilatildeo que indiferente da perspectiva teoacuterica

prioriza a atenccedilatildeo agrave subjetividade e esse enfoque eacute essencial quando o assunto eacute a sauacutede mental

A Psicologia pode contribuir tambeacutem para a compreensatildeo dos sentidos atribuiacutedos ao trabalho

na atualidade para a anaacutelise das dinacircmicas intersubjetivas que ocorrem nos ambientes do

trabalho para o entendimento das defesas psiacutequicas adotadas pelos trabalhadores entre outras

articulaccedilotildees possiacuteveis de se estabelecer entre a atividade e o sujeito trabalhador Contudo essa

atenccedilatildeo agrave subjetividade por parte do psicoacutelogo natildeo pode se dar de forma individualizante e

descontextualizada Apesar de haver um leque de possibilidades natildeo eacute possiacutevel indicar uma

receita preacute-estabelecida para os fazeres do psicoacutelogo do sistema puacuteblico de sauacutede na defesa da

sauacutede mental dos trabalhadores

O principal aspecto que pode ser destacado na pesquisa e na praacutetica psicoloacutegica em

Sauacutede do Trabalhador eacute o compromisso com os interesses da classe trabalhadora e o

cumprimento do coacutedigo de eacutetica da profissatildeo que sintetiza as accedilotildees dos profissionais de forma

a atender as demandas sociais e valorizar a dignidade humana Vale lembrar alguns dos

princiacutepios fundamentais do coacutedigo de conduta eacutetica

I O psicoacutelogo basearaacute o seu trabalho no respeito e na promoccedilatildeo da liberdade da dignidade da

igualdade e da integridade do ser humano apoiado nos valores que embasam a Declaraccedilatildeo

Universal dos Direitos Humanos

II O psicoacutelogo trabalharaacute visando promover a sauacutede e a qualidade de vida das pessoas e das

coletividades e contribuiraacute para a eliminaccedilatildeo de quaisquer formas de negligecircncia discriminaccedilatildeo

exploraccedilatildeo violecircncia crueldade e opressatildeo

III O psicoacutelogo atuaraacute com responsabilidade social analisando criacutetica e historicamente a

realidade poliacutetica econocircmica social e cultural (Conselho Federal de Psicologia 2005 p 07)

Natildeo eacute simples manter esse compromisso em um cenaacuterio de banalizaccedilatildeo das injusticcedilas

sociais e de ataques aos direitos dos indiviacuteduos Sem duacutevida as profundas mudanccedilas nas

relaccedilotildees de trabalho das uacuteltimas deacutecadas e o alarmante crescimento do desgaste mental dos

trabalhadores apresentam novos e maiores desafios aos psicoacutelogos em especial aos que estatildeo

inseridos na Sauacutede Puacuteblica Todavia como destaca Parker (2014) os inuacutemeros embates sociais

apresentados agrave Psicologia na atualidade natildeo podem ser considerados de forma negativa e sim

devem ser encarados como sinais de forccedila ao proporcionarem a possibilidade de accedilotildees que

promovam a transcendecircncia dos pensamentos cristalizados por meio de praacuteticas experiecircncias

e teacutecnicas que contribuam com o rompimento da alienaccedilatildeo da populaccedilatildeo almejando a

emancipaccedilatildeo do ser humano

Ao escrever sobre a atuaccedilatildeo da Psicologia na sociedade latino-americana em sua

claacutessica obra ldquoO papel do psicoacutelogordquo Martiacuten-Baroacute (1996) tambeacutem eacute enfaacutetico ao afirmar que o

258

objetivo da praacutetica desse profissional em qualquer aacuterea deve ser em primeiro lugar o de

colaborar com o processo de conscientizaccedilatildeo da populaccedilatildeo Em outro momento ao falar

especificamente do trabalho o autor destaca a importacircncia de os psicoacutelogos verem os

trabalhadores natildeo como ldquoobjetos mas como sujeitos sociaisrdquo (Martiacuten-Baroacute 2014 p 621) e

especificamente com relaccedilatildeo agrave sauacutede mental dos trabalhadores afirma que esse conceito deve

ser revisto ldquoagrave luz da totalidade poliacutetica e natildeo de uma consideraccedilatildeo puramente individualista e

tecnocraacuteticardquo (Martiacuten-Baroacute 2014 p 621) Desse modo o saber do psicoacutelogo deve estar

a serviccedilo da construccedilatildeo de uma sociedade em que o bem-estar dos menos natildeo se faccedila sobre o

mal estar dos mais em que a realizaccedilatildeo de alguns natildeo requeira a negaccedilatildeo dos outros em que o

interesse de poucos natildeo exija desumanizaccedilatildeo de todos (Martiacuten-Baroacute 1996 p 23)

Reiteramos que uma forma de se alcanccedilar essa atuaccedilatildeo comprometida eacute por meio do

investimento na formaccedilatildeo criacutetica incentivando a reflexatildeo sobre a realidade social desde a

graduaccedilatildeo dos novos profissionais mantendo-a na formaccedilatildeo permanente Aleacutem disso os

pressupostos do campo da Sauacutede do Trabalhador precisam ser amplamente divulgados entre os

profissionais de sauacutede incluindo os psicoacutelogos

Considerando essa realidade apresentamos a seguir pesquisas realizadas pelo grupo

ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que buscaram analisar

diferentes situaccedilotildees de trabalho e sua relaccedilatildeo com a sauacutede dos trabalhadores Entendemos que

essa apresentaccedilatildeo possibilita o compartilhamento de compreensotildees e atuaccedilotildees criacuteticas de

psicoacutelogos em interface com as Poliacuteticas Puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador

3 Pesquisas de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia ndash Grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual

Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo

Os estudos realizados no Grupo de Pesquisa aqui apresentado se centraram

principalmente na construccedilatildeo de conhecimento nas aacutereas da Psicologia Social e da Sauacutede do

Trabalhador e na investigaccedilatildeo da atuaccedilatildeo profissional do psicoacutelogo em prol dos direitos e da

sauacutede dos trabalhadores em diversos segmentos da sociedade Essas pesquisas partiram de uma

releitura teoacuterica e metodoloacutegica da praacutetica da busca pela ampliaccedilatildeo dos conhecimentos sobre

a relaccedilatildeo entre sauacutede e trabalho e da necessidade de privilegiar o olhar e a participaccedilatildeo dos

trabalhadores bem como o reconhecimento de sua subjetividade nos diversos contextos de

trabalho implicando portanto um olhar criacutetico sobre os aspectos micro e macrossociais que

configuram o mundo do trabalho Mesmo que muitas delas natildeo tenham focalizado

259

especificamente as poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador entendemos que o

conhecimento construiacutedo colabora para o desenvolvimento desse campo

Com meacutetodos qualitativos1 baseadas no enfoque da Psicologia Social do Trabalho

(Coutinho Bernardo amp Sato 2017) e na compreensatildeo do Desgaste Mental (Seligmann-Silva

2011) foram desenvolvidas 40 pesquisas2 entre pesquisas-docente doutorados mestrados e

iniciaccedilotildees cientiacuteficas que deram origem a diversos artigos trabalhos completos capiacutetulos de

livros e outras produccedilotildees Abaixo apresentamos um quadro com as pesquisas realizadas pelo

grupo

Quadro 1 ndash Trabalhos produzidos pelo Grupo de Pesquisa ao longo de seu desenvolvimento

Ord Tiacutetulo da pesquisa Ano Modalidade Pesquisador(a)

1 Possibilidades de enfrentamento do desgaste

mental relacionado ao trabalho no acircmbito

das poliacuteticas puacuteblicas

2016-

2019

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)3

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Joyce Cristina Rodrigues Samuel de Medeiros Barreto

Rocircmulo Lopes da Silva

2 Relaccedilatildeo entre sauacutede mental e trabalho uma

anaacutelise das concepccedilotildees de profissionais de

sauacutede puacuteblica e de sindicalistas

2014-

2016

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Natasha Contro de Souza Fernando Garcia Silva

Edna Regina Verri Thiago Girardi de Andrade Mariana Pereira da Silva

3 A relaccedilatildeo entre psicologia e trabalho no

contexto contemporacircneo 2012-

2015

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Ramon Arauacutejo Silva Paulo Canheti Bertoni

Pedro Henrique Bedin Affonso Marcela Spinardi Cintra

Faacutebio Frazatto Verde

4

O capitalismo organizacional em

universidades e hospitais puacuteblicos no

contexto brasileiro

2009-

2012

Pesquisa docente

com participaccedilatildeo

de alunos de

Iniciaccedilatildeo

Cientiacutefica (IC)

Marcia Hespanhol Bernardo

(coord) Estudantes de IC

Faacutebio Frazatto Verde Ana Carolina Florence Barros Pedro Henrique Bedin Affonso

1 As opccedilotildees metodoloacutegicas variaram de acordo com o contexto e o objetivo da pesquisa Assim realizou-se

etnografias entrevistas abertas pesquisas-intervenccedilatildeo anaacutelise de histoacuterias de vida entre outras 2 As pesquisas foram desenvolvidas no programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Psicologia da PUC-

Campinas ao longo dos anos de 2009 a 2018 e foram orientadas pela professora doutora Marcia Hespanhol

Bernardo 3 Cada uma das pesquisas-docente envolveu tambeacutem diversos trabalhos de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica totalizando 17

260

5 Sauacutede Mental Relacionada ao Trabalho na

rede puacuteblica de sauacutede brasileira concepccedilotildees

e atuaccedilotildees transformadoras 2017 Doutorado Heloisa Aparecida de Souza

6 Vivecircncias de trabalhadores da sauacutede frente agrave

loacutegica capitalista um estudo da atenccedilatildeo

baacutesica na Colocircmbia e no Brasil 2016 Doutorado Johanna Garrido Pinzoacuten

7 Quantas vidas vive um trabalhador

Trabalho e cultura popular 2016 Doutorado Sandra Bull

8 Sem-terra com terra contradiccedilotildees e

potencialidades na organizaccedilatildeo social e

produtiva de assentamentos rurais 2016 Doutorado Caroline Cristiane de Sousa

9 O sonho que se tornou pesadelo a vivecircncia

de um grupo de trabalhadores da induacutestria

automobiliacutestica 2018 Mestrado Mariana Pereira da Silva

10 Caiu no meu iacutentimo repercussotildees dos

acidentes de trabalho na vida dos

trabalhadores 2018 Mestrado Juliana Lopes da Silva

11 Campo abstrato para um destino concreto O

fazer do psicoacutelogo como perito na justiccedila do

trabalho 2018 Mestrado Natasha Contro de Souza

12 Possibilidades de interface entre a atuaccedilatildeo

do psicoacutelogo na Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS e a

Psicologia Social 2017 Mestrado Marcela Spinardi Cintra

13

Vivecircncias de imigrantes latino-americanos

na Regiatildeo Metropolitana de Campinas

estudo de casos pela perspectiva da

Psicologia Social

2017 Mestrado Maria Manuela C Manaia

14 O poder de agir de trabalhadoras da

Assistecircncia Social no contexto neoliberal 2015 Mestrado Fabiano Galbiatti

15 A sauacutede mental e a (re)organizaccedilatildeo do

trabalho docente trabalho coletivo e poder

de agir 2015 Mestrado Eduardo Alessandro Kawamura

16 Vida de caminhoneiro sofrimento e paixatildeo 2015 Mestrado Ramon Arauacutejo Silva

17 O processo de consciecircncia em um

movimento de trabalhadores na luta pela

sauacutede 2013 Mestrado Daniel Luca Dassan da Silva

18 Humilhaccedilatildeo social no trabalho o caso das

advogadas negras 2013 Mestrado Rosana Antoniaci Platero

19 Representaccedilotildees Sociais de Trabalhadores

Acidentados sobre o retorno ao trabalho 2012 Mestrado Luciana de Souza Garbin

20 Os Desafios do Trabalho na Vida Cotidiana

de Mulheres Transexuais 2012 Mestrado Heloisa Aparecida de Souza

21 Trabalho e Sofrimento as narrativas de

alguns psicanalistas 2011 Mestrado Francisco Capoulade Nogueira

22

Relaccedilotildees cotidianas contradiccedilotildees e

articulaccedilotildees entre movimentos sociais um

estudo sobre a Flaskocirc e a Vila Operaacuteria e

Popular

2011 Mestrado Caroline Cristiane de Sousa

261

23 Histoacuterias de trabalho e outras histoacuterias no

trecho 2010 Mestrado Sandra Bull

Tais pesquisas revelam que existem inuacutemeras possibilidades de atuaccedilatildeo da Psicologia

em interface com o tema da sauacutede do trabalhador Diante da atual ameaccedila de desmonte do

sistema puacuteblico de sauacutede e de intensificaccedilatildeo da precarizaccedilatildeo social e do trabalho esses estudos

evidenciam a necessidade de conhecer a realidade dos trabalhadores de compreender com

clareza a relaccedilatildeo entre trabalho e adoecimento e de incentivar praacuteticas que busquem a promoccedilatildeo

da sauacutede integral da populaccedilatildeo

De forma geral as pesquisas buscaram o acesso ao cotidiano de trabalho por meio do

olhar dos proacuteprios trabalhadores pois satildeo eles os que vivenciam diariamente o trabalho em seus

muacuteltiplos processos O entendimento dos trabalhadores enquanto protagonistas tem como

principal referecircncia o Movimento Operaacuterio Italiano (Oddone Marri Gloria Briante Chiatella

amp Re 1986) Nessa perspectiva compreende-se que satildeo os trabalhadores que vivenciam o

trabalho e portanto seu conhecimento deve ter tanto valor quanto o conhecimento teacutecnico dos

profissionais de sauacutede Os psicoacutelogos pesquisadores assim valorizam e acessam as histoacuterias

dos participantes por meio de seus relatos e compartilhamento de experiecircncias de suas

realidades

Tendo entatildeo como principal foco a vivecircncia dos trabalhadores e sua relaccedilatildeo com a

sauacutede as pesquisas citadas no Quadro 1 focalizaram diversas situaccedilotildees e contextos Buumlll (2010)

por exemplo analisou a vivecircncia de trabalho de pessoas em situaccedilatildeo de rua e Sousa (2016) a

de moradores de assentamentos populares Pessoas viacutetimas de preconceitos e exclusatildeo social

no acircmbito do trabalho tambeacutem foram foco de investigaccedilotildees como as mulheres transexuais

(Souza 2012) e as advogadas negras (Platero 2013) bem como foram analisadas as

perspectivas de importantes atores sociais no campo da Sauacutede do Trabalhador como operadores

de Direito (Souza 2018) e psicanalistas (Nogueira 2011) Houve ainda pesquisas sobre as

repercussotildees de acidentes de trabalho na vida dos trabalhadores (Silva 2018 Garbiacuten 2012)

condiccedilotildees de trabalho de motoristas caminhoneiros (Silva 2015) imigrantes (Manaia 2017)

educadores (Kawamura 2015) e relaccedilatildeo entre cultura popular e trabalho (Buumlll 2016) Esses

exemplos demonstram como pesquisas com o olhar da Psicologia Social do Trabalho podem

auxiliar na compreensatildeo das muacuteltiplas realidades laborais oferecendo subsiacutedios para o

desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador

262

Considerando os limites deste capiacutetulo apresentaremos aqui com mais profundidade

trecircs dessas pesquisas por considerar que oferecem contribuiccedilotildees mais especiacuteficas agraves poliacuteticas

puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador A primeira focaliza diferentes sistemas de sauacutede na Ameacuterica

Latina (Garrido-Pinzoacuten 2016) outra relata uma intervenccedilatildeo-pesquisa grupal com trabalhadores

de uma induacutestria automobiliacutestica que manifestavam adoecimento fiacutesico e mental (Silva 2018)

e a terceira visou agrave anaacutelise das concepccedilotildees e as accedilotildees de trabalhadores do Sistema Uacutenico de

Sauacutede (SUS) no enfrentamento dos agravos agrave sauacutede mental do trabalhador (Souza 2017)

Apesar de partirem dos mesmos pressupostos trata-se de pesquisas com estruturas

meacutetodos e objetivos bastante distintos que datildeo luz a diferentes nuances da relaccedilatildeo entre

trabalho e sauacutede Por isso natildeo buscamos apresentaacute-las de forma homogecircnea e sim nos

empenhamos para trazer os aspectos mais relevantes de cada uma respeitando sua proacutepria

estrutura de modo a mostrar a riqueza de possibilidades de pesquisa criacuteticas em Psicologia

Social do Trabalho no campo das poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador

31 Vivecircncias de trabalhadores da sauacutede frente agrave loacutegica capitalista um estudo da Atenccedilatildeo

Baacutesica na Colocircmbia e no Brasil (Garrido-Pinzoacuten 2016)

A primeira pesquisa a ser apresentada realizada no periacuteodo de 2012 a 2016 teve como

objetivo principal compreender as vivecircncias de trabalhadores da Atenccedilatildeo Baacutesica dos Sistemas

Puacuteblicos de Sauacutede da Colocircmbia e do Brasil frente agrave loacutegica capitalista mediante a estrateacutegia

metodoloacutegica de entrevistas reflexivas em profundidade Sendo a pesquisadora uma

colombiana radicada no Brasil ela teve interesse em estudar esses contextos de trabalho no

setor da sauacutede puacuteblica nos dois paiacuteses buscando identificar possiacuteveis similaridades eou

diferenccedilas entre os cenaacuterios antagocircnicos o sistema colombiano criado nas esferas

governamentais com uma marcada influecircncia privatista jaacute haacute trecircs deacutecadas e o sistema

brasileiro uma importante conquista dos movimentos sociais que vem sofrendo ataques

visando seu desmonte na esfera puacuteblica

Um dos pressupostos centrais foi que o conhecimento das vivecircncias dos servidores

puacuteblicos da sauacutede nos dois contextos poderia ajudar cada uma das partes a melhorar a

compreensatildeo de sua proacutepria realidade e provavelmente definir novas perspectivas para lidar

com os efeitos negativos da precarizaccedilatildeo e flexibilizaccedilatildeo laboral A experiecircncia do sistema de

sauacutede da Colocircmbia foi considerada uma referecircncia para a anaacutelise das repercussotildees da ideologia

neoliberal nos trabalhadores do SUS

263

Nesse sentido o estudo destacou que as caracteriacutesticas dos modelos de gerenciamento

flexiacutevel tecircm sido introduzidas no setor puacuteblico nas uacuteltimas deacutecadas em diversos paiacuteses

determinando os dispositivos de regulaccedilatildeo social das relaccedilotildees de trabalho em funccedilatildeo da loacutegica

da economia de mercado sem levar em consideraccedilatildeo a qualidade dos serviccedilos prestados e a

sauacutede dos trabalhadores Trata-se daquilo que Blanch-Ribas (2007) denomina ldquocapitalismo

organizacionalrdquo Nesse contexto os funcionaacuterios puacuteblicos passam a ser submetidos a uma nova

forma de organizaccedilatildeo do trabalho muito similar agrave do setor privado com aumento da carga e do

ritmo de trabalho o qual eacute medido pela quantidade de serviccedilos prestados Em meio a esse

quadro de intensificaccedilatildeo da produccedilatildeo e redirecionamento do sentido do trabalho aparecem

tensotildees psicossociais em niacutevel individual e institucional (Gaulejac 2007) Eacute preciso pontuar

que em sistemas de sauacutede embasados em diretrizes neoliberais como o da Colocircmbia a ecircnfase

na produtividade conduz necessariamente agrave adoccedilatildeo de novas formas de organizaccedilatildeo do

trabalho nas quais prevalece o individualismo a competiccedilatildeo o estabelecimento de metas de

produccedilatildeo e o excessivo controle do gasto que satildeo caracteriacutesticas de empresas privadas em

detrimento das necessidades da populaccedilatildeo atendida

A pesquisa tambeacutem revelou que em ambos os paiacuteses as principais vivecircncias dos

profissionais da sauacutede determinadas pela loacutegica neoliberal estatildeo relacionadas com as

transformaccedilotildees introduzidas nas condiccedilotildees relaccedilotildees e organizaccedilatildeo do trabalho No contexto

colombiano estudado a origem das problemaacuteticas centrais apresentadas pelos entrevistados foi

identificada no processo de transiccedilatildeo induzido pela reforma realizada em 1993 que constituiu

seu atual sistema de sauacutede Essas problemaacuteticas se traduzem essencialmente na deterioraccedilatildeo

das relaccedilotildees com os usuaacuterios bem como na configuraccedilatildeo das equipes de trabalho marcadas

pelo contraste entre pessoas com diferentes viacutenculos empregatiacutecios Esta uacuteltima condiccedilatildeo

empecilho para a coesatildeo dos grupos de trabalho tambeacutem eacute observada no contexto brasileiro

pesquisado como produto da terceirizaccedilatildeo que parece ter se tornado um efetivo mecanismo

para enfraquecer o SUS facilitar seu desmonte e colocaacute-lo no mesmo caminho atualmente

percorrido pelo sistema de sauacutede colombiano

Ainda foi encontrado que nos dois cenaacuterios estudados tal panorama de precariedade do

trabalho permeado pela instabilidade intensificaccedilatildeo e sobrecarga laboral pela reduccedilatildeo de

salaacuterios dentre outros fatores tem ocasionado graves consequecircncias para a vida e a sauacutede dos

trabalhadores que se refletem na falta de reconhecimento social na deterioraccedilatildeo da eacutetica e da

moral e nas restriccedilotildees para a construccedilatildeo de um projeto de vida e na degradaccedilatildeo de sua sauacutede

fiacutesica e mental Assim queixas de estresse esgotamento fiacutesico e mental depressatildeo fadiga e

264

irritabilidade decorrentes da precarizaccedilatildeo das condiccedilotildees de trabalho foram comuns entre os

entrevistados

As abruptas mudanccedilas vivenciadas pelos trabalhadores dos dois contextos

indiscutivelmente atingiram a sua subjetividade Assim seus efeitos negativos incidiram na

sua identidade como profissionais da sauacutede na relaccedilatildeo com seu trabalho nos espaccedilos fora do

trabalho nos acircmbitos pessoal e familiar bem como na sua sauacutede fiacutesica e mental Como visto

comumente a desregulamentaccedilatildeo e flexibilizaccedilatildeo laboral estatildeo intimamente atreladas agrave

precarizaccedilatildeo do trabalho Essas deficientes relaccedilotildees e condiccedilotildees de trabalho vividas constituem

um desencadeante do desgaste mental (Seligmann-Silva 2011) A inseguranccedila incerteza

instabilidade e fragilidade que vivencia grande parte dos trabalhadores geraram um sentimento

de desrespeito a sua dignidade em detrimento de sua identidade de trabalhadores da sauacutede

Assim foi possiacutevel identificar o impacto na subjetividade dos trabalhadores das complexas

caracteriacutesticas das formas de organizaccedilatildeo do trabalho que integram o setor da sauacutede nos

contextos pesquisados impacto este que pode deflagrar processos de sofrimento e adoecimento

mental marcantes

E importante destacar que esses aspectos mencionados se revelam como uma

manifestaccedilatildeo de que em um sistema de sauacutede privatizado eacute praticamente inviaacutevel desenvolver

uma poliacutetica de Sauacutede do Trabalhador tornando-se um verdadeiro desafio a proteccedilatildeo da

dignidade dos direitos e da sauacutede dos trabalhadores Desse modo essa pesquisa evidencia os

graves riscos para a ST no Brasil no contexto atual incluindo suas consequecircncias para os

trabalhadores responsaacuteveis pelo desenvolvimento das poliacuteticas de sauacutede puacuteblica

32 O sonho que se tornou pesadelo a vivecircncia de um grupo de trabalhadores da induacutestria

automobiliacutestica (Silva 2018)

O segundo estudo a ser focalizado eacute o de Silva (2018) que teve uma configuraccedilatildeo

bastante diferente daquela apresentada no item 31 Ele se constituiu como uma intervenccedilatildeo-

pesquisa com um grupo de trabalhadores da induacutestria automobiliacutestica que apresentavam queixas

de adoecimento fiacutesico e mental relacionado ao trabalho Tal estudo foi realizado no periacuteodo de

2017 a 2018 no Centro de Referecircncia em Sauacutede do Trabalhador (CEREST) de Campinas - SP

e desde o princiacutepio esteve imerso em algumas dificuldades como por exemplo relacionadas

agrave ausecircncia de um psicoacutelogo no serviccedilo em questatildeo De acordo com Keppler e Yamamoto (2016)

a presenccedila de um psicoacutelogo natildeo eacute obrigatoacuteria nos CERESTs muito embora seja extremamente

265

necessaacuteria jaacute que as demandas de sauacutede-adoecimento relacionadas ao trabalho aumentam a

cada dia e apontam para a importacircncia desse profissional na rede puacuteblica especificamente nos

centros de referecircncia voltados ao atendimento em sauacutede e trabalho

A pesquisa se iniciou a partir de uma demanda presente no CEREST a respeito de

trabalhadores com queixas de adoecimento fiacutesico (LERDORT) e mental (depressatildeo ansiedade

e processos de desgaste) que invadiram outras esferas da vida que natildeo soacute a do trabalho Frente

a isso teve como objetivo promover uma intervenccedilatildeo em um grupo de reflexatildeo sobre trabalho

e sauacutede e analisar o processo de adoecimento vivenciado pelos trabalhadores participantes A

estrateacutegia de intervenccedilatildeo grupal foi utilizada por Sato et al (1993) haacute mais de 20 anos e

conforme afirmam O grupo facilita a construccedilatildeo de estrateacutegias individuais e coletivas no

sentido de melhorar a qualidade de vida requerendo tais estrateacutegias a adoccedilatildeo de uma postura

ativa diante da situaccedilatildeo (Sato et al 1993 p 49) Esse tipo de intervenccedilatildeo portanto valorizaria

o enfrentamento coletivo e pode gerar uniatildeo e solidariedade entre os membros

O grupo contou com a participaccedilatildeo de 14 trabalhadores de uma induacutestria automobiliacutestica

da regiatildeo e foi acompanhado por membros da equipe multidisciplinar do CEREST e pela

psicoacuteloga pesquisadora Ao todo houve 11 encontros ao longo de seis meses cuja principal

estrateacutegia metodoloacutegica foi rodas de conversa para compartilhamento de experiecircncias

Utilizaram-se tambeacutem materialidades mediadoras que se configuraram como disparadoras de

discussatildeo como filmes charges imagens muacutesicas entre outras Os temas discutidos com os

participantes foram por exemplo o trabalho no capitalismo o discurso flexiacutevel a

culpabilizaccedilatildeo dos trabalhadores pelo adoecimento suas histoacuterias de vida novos projetos e

planos futuros a uniatildeo e solidariedade entre os trabalhadores entre outros

De forma geral as informaccedilotildees compartilhadas mostraram que inicialmente os

trabalhadores almejavam muito ingressar na empresa e ao conseguirem sentiam ter realizado

um sonho Ao longo do tempo poreacutem o sonho acabou tornando-se pesadelo jaacute que eles

passaram a vivenciar muacuteltiplas formas de violecircncia psicoloacutegica como asseacutedio moral e

organizacional aleacutem de cobranccedilas e pressotildees por produtividade e rapidez o que acabava

favorecendo o desenvolvimento de lesotildees fiacutesicas Consequentemente o sofrimento e

adoecimento mental foram se intensificando pois os lesionados eram tambeacutem excluiacutedos

humilhados e reinseridos ao trabalho em funccedilotildees incompatiacuteveis

Os resultados foram analisados com base em referecircncias da Psicologia Social do

Trabalho e em Paulo Freire e Martiacuten-Baroacute autores engajados com a transformaccedilatildeo social e

entendimento do ser humano como ser histoacuterico dialeacutetico e natildeo naturalizante Silva (2018)

266

evidenciou o caraacuteter eacutetico poliacutetico da Psicologia enquanto ciecircncia com potencial transformador

que por meio da sensibilizaccedilatildeo e conscientizaccedilatildeo dos oprimidos pode evidenciar contradiccedilotildees

e fazer com que os trabalhadores percebam suas condiccedilotildees e lutem por uma realidade mais justa

e igualitaacuteria Freire (2014) afirma que quando o homem se daacute conta de sua construccedilatildeo histoacuteria

ele percebe que muitas vezes seus problemas satildeo compartilhados e natildeo individuais Durante o

grupo foi possiacutevel discutir tais noccedilotildees e auxiliar os participantes a amenizar a culpa que

carregavam por terem adoecido devido ao trabalho impulsionando-os a tomar as reacutedeas de suas

vidas e de suas histoacuterias

Tal pesquisa assim colaborou para o desenvolvimento de meacutetodos de atenccedilatildeo a

trabalhadores adoecidos pelo trabalho que vatildeo aleacutem do atendimento cliacutenico tradicional

individualizante

33 Sauacutede Mental Relacionada ao Trabalho na rede puacuteblica de sauacutede brasileira concepccedilotildees

e atuaccedilotildees transformadoras (Souza 2017)

Tendo em vista a evidente relaccedilatildeo entre as situaccedilotildees de trabalho existente na atualidade

e o processo de adoecimento mental dos trabalhadores essa terceira pesquisa realizada no

periacuteodo de 2013 a 2017 teve como objetivo identificar e analisar praacutexis consideradas exitosas

realizadas por profissionais da aacuterea da sauacutede puacuteblica que compreendem a complexidade

presente no processo de sauacutede-adoecimento mental O estudo remeteu agrave importacircncia da praacutetica

interdisciplinar e em rede no SUS e revelou que os diversos profissionais de sauacutede podem ter

atuaccedilotildees que vatildeo do atendimento aos trabalhadores jaacute adoecidos a propostas de promoccedilatildeo de

sauacutede psiacutequica nos ambientes de trabalho sendo sensiacuteveis agrave relaccedilatildeo entre sauacutede mental e

trabalho e demonstrando comprometimento eacutetico e poliacutetico

Por meio de entrevistas abertas com nove trabalhadores do SUS de diferentes categorias

profissionais (Psicologia Terapia Ocupacional Fisioterapia Medicina Enfermagem) que

tinham uma histoacuteria de envolvimento com a sauacutede dos trabalhadores buscou-se compreender

suas praacuteticas na Atenccedilatildeo Baacutesica em Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e em CERESTs

de diversas cidades do Estado de Satildeo Paulo

Os resultados da pesquisa demonstraram que por possuiacuterem uma compreensatildeo criacutetica

da realidade os participantes distanciavam-se de posturas fatalistas individualizantes e que

naturalizam as condiccedilotildees de trabalho Buscavam realizar accedilotildees que estimulam a resistecircncia dos

trabalhadores percebendo-os como protagonistas no enfrentamento do adoecimento mental

267

relacionado ao trabalho Para isso assim como realizado por Silva (2018) promoviam grupos

psicossociais visando favorecer o fortalecimento dos trabalhadores Tambeacutem incentivavam a

formaccedilatildeo e participaccedilatildeo de associaccedilotildees para reivindicar direitos e estimulavam a organizaccedilatildeo

coletiva dos trabalhadores como a participaccedilatildeo em sindicatos e em modelos alternativos de

organizaccedilatildeo do trabalho tais como autogestatildeo e cooperativas Aleacutem dessas praacuteticas realizavam

Vigilacircncia em Sauacutede do Trabalhador que eacute um instrumento essencial para prevenir o

adoecimento e promover a sauacutede nos locais de trabalho (Brasil 2010) e Apoio matricial (Santos

amp Lacaz 2012) buscando irradiar na rede de sauacutede a conscientizaccedilatildeo sobre as possiacuteveis

relaccedilotildees do trabalho com o adoecimento mental

Tais posturas revelam que apesar das inuacutemeras contradiccedilotildees existentes na sauacutede puacuteblica

brasileira encontramos profissionais com diferentes formaccedilotildees que partem de uma ampla

compreensatildeo do contexto social e de trabalho para o entendimento do processo sauacutede-

adoecimento mental dos trabalhadores Vale destacar que embora a maioria natildeo tenha

apresentado referenciais teoacutericos que embasam suas praacuteticas fica evidente seu entendimento

da historicidade e da dialeacutetica que define as relaccedilotildees sociais (Freire 2014)

Diante dos atuais desafios especialmente no que se refere ao desenvolvimento de

praacuteticas natildeo hegemocircnicas em sauacutede eacute necessaacuterio compartilhar praacuteticas consideradas exitosas

que respeitem e promovam os direitos dos trabalhadores no acircmbito da sauacutede puacuteblica Os

diversos atores sociais inclusive a Psicologia enquanto ciecircncia e profissatildeo precisam assumir

uma postura que considere as caracteriacutesticas da atual realidade social econocircmica e poliacutetica da

sociedade brasileira agindo de forma comprometida com a populaccedilatildeo menos favorecida

defendendo e colaborando com o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas que visem agrave sauacutede

integral dos trabalhadores

A compreensatildeo das praacuteticas contra-hegemocircnicas desses profissionais em um contexto

de constantes ataques agraves poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede tambeacutem evidencia que natildeo eacute exclusividade

da Psicologia o olhar para os processos de sofrimento e adoecimento mental sobretudo quando

estatildeo relacionados ao trabalho demonstrando a importacircncia da atuaccedilatildeo interdisciplinar que

busque compreender e prevenir o adoecimento mental relacionado ao trabalho Nesse sentido

as praacuteticas profissionais apresentadas na pesquisa podem colaborar para o desenvolvimento e

aprimoramento de diferentes formas de atuaccedilatildeo no acircmbito da Sauacutede do Trabalhador no SUS

que considerem o conhecimento dos trabalhadores e favoreccedilam seu protagonismo

268

Consideraccedilotildees finais

Neste capiacutetulo buscamos discutir possiacuteveis contribuiccedilotildees da perspectiva da Psicologia

Social do Trabalho no acircmbito das poliacuteticas puacuteblicas em Sauacutede do Trabalhador a partir da

apresentaccedilatildeo de algumas pesquisas que tecircm em comum o olhar criacutetico para o contexto social

que envolve as relaccedilotildees de trabalho e buscam o fortalecimento da classendashque-vive-do-trabalho

(Antunes 1998)

Vale dizer que diante da realidade atual de ataque agraves poliacuteticas puacuteblicas e aos direitos

dos trabalhadores eacute necessaacuterio reinventar e fortalecer as organizaccedilotildees coletivas para resistecircncia

e enfrentamento de tal situaccedilatildeo Tendo em vista o compromisso eacutetico poliacutetico da Psicologia

enquanto ciecircncia e profissatildeo faz-se necessaacuterio atuar de forma contextualizada e engajada com

a realidade em seus muacuteltiplos acircmbitos como social poliacutetico e econocircmico defendendo as

poliacuteticas puacuteblicas que visem agrave sauacutede e dignidade dos trabalhadores em geral E essa eacute uma

caracteriacutestica das pesquisas apresentadas aqui

Finalizamos lembrando Martiacuten-Baroacute (1996) que afirma que natildeo eacute possiacutevel fazer

Psicologia de forma comprometida sem assumir uma responsabilidade histoacuterica que tenta

transformar as condiccedilotildees dos oprimidos para que eles estejam conscientes recuperem a

memoacuteria histoacuterica de suas condiccedilotildees e possam transformaacute-las O quefazer do psicoacutelogo

portanto eacute auxiliar as pessoas a superar a alienaccedilatildeo e mudar suas realidades em prol da

libertaccedilatildeo Entendemos que as pesquisas apresentadas neste capiacutetulo buscaram modestamente

contribuir com uma accedilatildeo contextualizada que a Psicologia pode ter com a Sauacutede do Trabalhador

e com a Sauacutede Puacuteblica trazendo reflexotildees criacuteticas para o enfrentamento e transformaccedilatildeo da

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273

Capiacutetulo 14

Mulheres e Mineraccedilatildeo contribuiccedilotildees da Psicologia Social no campo das

poliacuteticas puacuteblicas

Paula Sassaki Coelho

Introduccedilatildeo

A procura por mineacuterios tem apresentado um recente crescimento no mercado

internacional com velocidade e quantidades expressivas Segundo Bruno Milanez (2012) este

crescimento estaacute associado principalmente agrave alta demanda no mercado mundial agrave reduccedilatildeo das

melhores fontes de mineacuterios e agrave possibilidade de escassez a meacutedio prazo O aumento da

demanda global tanto se daacute pela necessidade dos paiacuteses mais industrializados quanto pelo

aumento da procura de paiacuteses emergentes Neste contexto a grande mineraccedilatildeo tem ganhado

proporccedilotildees significativas e importacircncia na economia nacional no uacuteltimo periacuteodo Mais

recentemente como documentado por Mansur e colaboradores (2016) de 2003 a 2013 ficou

marcado um periacuteodo chamado de boom da mineraccedilatildeo no qual o Brasil exerceu papel

representativo enquanto fornecedor de mineacuterios com crescimento de 630 nas exportaccedilotildees

para o mercado global (passando de U$38 bilhotildees para U$196 bilhotildees) Com destaque ao

mineacuterio de ferro nas exportaccedilotildees nacionais que em 2011 representou 70 das exportaccedilotildees

minerais Em 2013 o Brasil era responsaacutevel por 143 da exportaccedilatildeo de ferro no mundo (o

segundo lugar entre cinco principais paiacuteses fornecedores do mineacuterio) Eacute exatamente neste

periacuteodo de boom da mineraccedilatildeo que o empreendimento Minas-Rio se instalou em Conceiccedilatildeo do

Mato Dentro

Conceiccedilatildeo do Mato Dentro eacute hoje um municiacutepio com cerca de 18 mil habitantes

localizado na Serra do Espinhaccedilo a pouco mais de 160km de Belo Horizonte1 Com alto perfil

turiacutestico a ldquocapital mineira do ecoturismordquo comporta cachoeiras e vegetaccedilatildeo exuberantes

dentre elas o cartatildeo postal da regiatildeo que eacute a Cachoeira do Tabuleiro Aleacutem disso a regiatildeo

tambeacutem conta com siacutetios arqueoloacutegicos importantes Antes da chegada da grande mineraccedilatildeo a

cidade tinha como atividade econocircmica importante a agricultura familiar (caracteriacutestica da

1 Dados extraiacutedos do portal ldquoCidadesrdquo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) Recuperado de

httpscidadesibgegovbr Acesso em 9 de julho de 2019

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regiatildeo) e caminhava para a consolidaccedilatildeo do turismo enquanto uma de suas principais atividades

econocircmicas Em 2005 poucos anos antes da chegada do Minas-Rio apoacutes uma seacuterie de

articulaccedilotildees regionais a cidade foi declarada como integrante da Reserva da Biosfera da Serra

do Espinhaccedilo (RBSE) pela Unesco (Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura) considerada enquanto patrimocircnio da humanidade (Cidade e Alteridade 2015

Conceiccedilatildeo do Mato Dentro 2019)

O complexo Minas-Rio inicialmente concebido pelo empresaacuterio Eike Batista foi

comprado pela Anglo American (uma das maiores empresas mineradoras do mundo) em 2009

Dentre outras coisas o empreendimento compreende o maior mineroduto do mundo (com mais

de 500km de extensatildeo ligando Conceiccedilatildeo do Mato Dentro ao Porto do Accedilu no Rio de Janeiro

cruzando cerca de 32 cidades) sua lavra principal eacute uma das maiores do Brasil e impacta uma

aacuterea de 6125 hectares conta com duas barragens de rejeitos (uma que impactaraacute uma aacuterea de

875 hectares e capacidade de receber 370 milhotildees de m3 de rejeitos) uma linha de energia uma

adutora independente de aacutegua entre outras instalaccedilotildees A totalidade deste complexo minerador

expressa indubitavelmente as dimensotildees que a grande mineraccedilatildeo tem assumido nacionalmente

(SISEMA 2008 Ferreira Rocha 2015)

Essa recente e volumosa exportaccedilatildeo mineral alimenta uma relaccedilatildeo de dependecircncia

econocircmica do paiacutes e das regiotildees diretamente envolvidas em relaccedilatildeo ao setor E seu modelo de

atuaccedilatildeo explicita o lugar atual do Brasil no sistema capitalista O notaacutevel aumento da extraccedilatildeo

estaacute relacionado natildeo apenas ao aumento do volume e velocidade de extraccedilatildeo mas tambeacutem agrave

diversificaccedilatildeo de mineacuterios extraiacutedos nos uacuteltimos anos Algo que implica necessariamente um

aumento do nuacutemero e do tamanho das aacutereas de mineraccedilatildeo assim como do tamanho e volume

de suas barragens e dos recursos hiacutedricos energeacuteticos e fundiaacuterios Essa necessidade do

mercado de volumosa extraccedilatildeo em tempo acelerado para acompanhar as altas de preccedilos no

mercado internacional somada agrave financeirizaccedilatildeo do mesmo e ao enorme investimento de

capital fazem com que as mineradoras exerccedilam forte pressatildeo para aprovaccedilatildeo de seus processos

de licenciamento ambientais e licitaccedilotildees de implementaccedilatildeo e expansatildeo Isto dificulta os

processos de avaliaccedilatildeo e reduccedilatildeo do enorme desgaste ambiental e social Dentre os desgastes

podemos citar as cataacutestrofes de rompimentos de barragens com as quais a sociedade brasileira

tem tido que lidar nos uacuteltimos anos De acordo com Santos e Wanderley (2016) apenas no

estado de Minas Gerais no periacuteodo de 1986 a 2015 foram oito rompimentos de barragens de

mineraccedilatildeo em seis municiacutepios distintos (dois rompimentos em Itabirito dois em Miraiacute e um

episoacutedio em cada um dos municiacutepios de Nova Lima Congonhas Itabira e Mariana) A estes

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episoacutedios eacute preciso somar ainda o rompimento ocorrido em Brumadinho de responsabilidade

da Vale SA em 25 de janeiro de 2019 que teve mais de 300 viacutetimas fatais e atingiu toda a

bacia do rio Paraopeba

Outro grande entrave para o fortalecimento do modelo primaacuterio-exportador ao qual a

mineraccedilatildeo se integra eacute a desindustrializaccedilatildeo e a dependecircncia da exportaccedilatildeo de produtos com

baixa tecnologia e baixo valor agregado tornando nossa economia mais suscetiacutevel agrave

volatilidade e agraves pressotildees do mercado externo de commodities A opccedilatildeo pela desindustrializaccedilatildeo

aumenta nossa dependecircncia em relaccedilatildeo ao capital internacional uma vez que os preccedilos satildeo

determinados por ele Desta forma a pressatildeo sobre as decisotildees locais torna-se direta e

extremamente intensa numa correlaccedilatildeo de forccedilas desigual que garante que as decisotildees locais

sejam altamente determinadas pelo mercado internacional de mineacuterios sem a consideraccedilatildeo dos

planos e necessidades das populaccedilotildees diretamente atingidas pela exploraccedilatildeo primaacuterio-

exportadora Esta dependecircncia por sua vez nos leva agrave flexibilizaccedilatildeo das exigecircncias sociais e

ambientais aprofundando os impactos negativos da mineraccedilatildeo Esta relaccedilatildeo pode ser chamada

de mineacuterio-dependecircncia (T Coelho 2014)

A partir das contradiccedilotildees embates que este modelo de mineraccedilatildeo vem alimentando no

paiacutes surgiu o Movimento pela Soberania Nacional na Mineraccedilatildeo (MAM) Trata-se de um

movimento social recente e de acircmbito nacional que nasceu a partir da necessidade de enfrentar

denunciar e transformar o modelo de exploraccedilatildeo mineral vigente no Brasil Um de seus

objetivos eacute popularizar as decisotildees tomadas neste campo em prol da soberania popular na

mineraccedilatildeo Em consonacircncia com outras organizaccedilotildees do campo da esquerda e outros

movimentos sociais o MAM se oficializou enquanto tal no ano de 2012 Atualmente ele

compotildee o Comitecirc Nacional de Defesa dos Territoacuterios Frente agrave Mineraccedilatildeo e faz parte das

organizaccedilotildees integrantes da Via Campesina da comissatildeo organizadora do Encontro Continental

contra a Mineraccedilatildeo e pela Soberania Popular assim como tem participado de encontros em

outros paiacuteses da Ameacuterica Latina e da Aacutefrica em torno do tema da mineraccedilatildeo (MAM 2015) Eacute

importante destacar que a aproximaccedilatildeo com Conceiccedilatildeo do Mato Dentro que possibilitou este

trabalho foi viabilizada a partir da parceria com representantes do MAM

O eixo central dos debates propostos pelo MAM estaacute voltado ao modelo de mineraccedilatildeo

Neste sentido este capiacutetulo tambeacutem se debruccedilaraacute sobre alguns pontos relacionados agraves poliacuteticas

puacuteblicas que regulam ou deveriam regular a atividade mineradora no paiacutes pensando em

possiacuteveis contribuiccedilotildees da Psicologia Social Vale destacar que parto de relatos feitos por

mulheres de comunidades diretamente atingidas para problematizar algumas dimensotildees dos

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impactos gerados Abrir um debate sobre os modos de minerar quais os retornos para as

comunidades atingidas determinaccedilatildeo de lugares (a serem minerados e a natildeo serem) e ritmos

poliacuteticas compensatoacuterias caacutelculo e utilizaccedilatildeo da Compensaccedilatildeo Financeira pela Exploraccedilatildeo de

Recursos Minerais (CFEM) dentre outros Estes satildeo temas essenciais que precisam ser

decididos pelo conjunto da sociedade brasileira e natildeo apenas segundo as exigecircncias do mercado

internacional ou das empresas mineradoras

1 Enfoque de gecircnero

A escolha pelo enfoque de gecircnero fundamenta-se na crescente importacircncia do

Feminismo e das mobilizaccedilotildees de mulheres no Brasil e no mundo Tal questatildeo se mostrou

relevante desde as primeiras aproximaccedilotildees com Conceiccedilatildeo do Mato Dentro a partir do relato

do protagonismo das mulheres nos processos de resistecircncia e mobilizaccedilatildeo popular frente ao

modelo de exploraccedilatildeo e destruiccedilatildeo relacionado ao complexo Minas-Rio Vale destacar que a

mobilizaccedilatildeo popular caminha diretamente com a luta por direitos humanos e pela consolidaccedilatildeo

entre outras coisas de poliacuteticas puacuteblicas mais justas do ponto de vista social

Parto da perspectiva de Maria Ameacutelia Telles (1999) e de outras feministas do campo

marxista que entendem o Feminismo enquanto uma corrente filosoacutefica e principalmente um

movimento social e poliacutetico que estaacute voltado agraves relaccedilotildees de opressatildeo e exploraccedilatildeo vividas pelas

mulheres E como movimento social natildeo apenas analisa mas tambeacutem se esforccedila em alterar

estas relaccedilotildees Neste mesmo sentido gecircnero tambeacutem eacute entendido como conceito que nasce da

inquietaccedilatildeo dos movimentos feministas e que possui cunho poliacutetico para aleacutem de apenas um

sentido analiacutetico (Piscitelli 2001)

Donna Haraway (2004) afirma que a conceituaccedilatildeo de gecircnero (termo anglo-saxatildeo

originado no poacutes-segunda guerra pelos movimentos feministas) surge bastante apoiado nas

formulaccedilotildees de Simone de Beauvoir (19492016) como uma maneira de contraposiccedilatildeo a

leituras deterministas e biologizantes Beauvoir consagra as diferenccedilas entre homens e mulheres

enquanto circunstanciadas por fatores sociais e natildeo necessariamente bioloacutegicos (apesar de

existirem distinccedilotildees bioloacutegicas entre os sexos natildeo satildeo estas que justificam as hierarquias

sociais) Sendo assim busco um entendimento de gecircnero que visa superar possiacuteveis

naturalizaccedilotildees para analisar as relaccedilotildees de poder que satildeo fundantes de nossa sociedade

assumindo um posicionamento histoacuterico e poliacutetico aliado a transformaccedilatildeo social

277

A mineraccedilatildeo eacute historicamente associada a uma atividade de cunho masculino e a

invisibilizaccedilatildeo das mulheres neste campo eacute algo marcante O trabalho nas minas eacute associado a

caracteriacutesticas tidas como ldquomasculinasrdquo como um trabalho ldquobrutordquo que prescinde de forccedila e

resistecircncia fiacutesica sob duras condiccedilotildees agraves quais natildeo se adaptariam as mulheres Esta concepccedilatildeo

eacute contraditoacuteria ao que acontece na realidade uma vez que agraves mulheres satildeo destinados

historicamente os postos e atividades de trabalho mais precarizados sob condiccedilotildees muitas vezes

mais arriscadas insalubres e mal remuneradas As mulheres foram marcadamente

marginalizadas na mineraccedilatildeo por meio de trabalhos informais como por exemplo nas minas

de carvatildeo mineral como ldquoescolhedeirasrdquo ou em trabalhos essenciais agrave atividade mineradora

mas que natildeo satildeo reconhecidos tal como no caso das mulheres na Boliacutevia que carregam aacutegua

na mineraccedilatildeo do ouro ou ainda quando assumem a figura de matildees viuacutevas e esposas satildeo

fundamentais para a manutenccedilatildeo da vida e do trabalho reprodutivo tatildeo necessaacuterio agraves famiacutelias

que dependem da mineraccedilatildeo e fundamentais tambeacutem na organizaccedilatildeo e luta por melhores

condiccedilotildees de vida e trabalho como um todo

Ainda hoje nas empresas mineradoras apesar do crescimento de postos ocupados por

mulheres elas frequentemente assumem cargos que correspondem a um grau de formaccedilatildeo

profissional inferior ao delas em cargos fora de sua especializaccedilatildeo e de menor possibilidade de

crescimento profissional E de maneira geral elas foram e continuam sendo marginalizadas

tambeacutem por meios simboacutelicos por meio de histoacuterias crenccedilas e lendas em torno do feminino

em vaacuterios lugares do mundo o associando ao ldquomal agourordquo (Castilho amp Castro 2005 Quirino

2015)

Eacute portanto por conta desses elementos que a escolha de investigar impactos da grande

mineraccedilatildeo em uma regiatildeo de Minas Gerais se deu a partir dos relatos de mulheres e em especial

de mulheres apontadas enquanto lideranccedilas uma escolha contraacuteria ao silenciamento histoacuterico

e agrave falta de registros e sistematizaccedilotildees a respeito do lugar das mulheres na mineraccedilatildeo e ao

mesmo tempo de destacar a importacircncia e protagonismo delas nos processos de resistecircncia e

mobilizaccedilatildeo populares

2 Objetivos e delineamento metodoloacutegico

Neste capiacutetulo busco relacionar os impactos da mineraccedilatildeo aos debates acerca de

poliacuteticas puacuteblicas relacionadas e possiacuteveis contribuiccedilotildees da psicologia partindo de um territoacuterio

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determinado sob a perspectiva de mulheres em torno dos efeitos deste modelo de exploraccedilatildeo

valorizando a mobilizaccedilatildeo e resistecircncia popular com apoio do MAM

Deste modo pretendo tambeacutem contribuir com a ampliaccedilatildeo e difusatildeo das discussotildees a

respeito da grande mineraccedilatildeo no Brasil e seu modelo de desenvolvimento dar enfoque a

processos de resistecircncia popular considerando a contribuiccedilatildeo do MAM elaborar reflexotildees

sobre os impactos da mineraccedilatildeo de difiacutecil mensuraccedilatildeo (como o aumento da preocupaccedilatildeo

ansiedade vivecircncia de inseguranccedila e medo gerados pela mineraccedilatildeo) possibilitar uma maior

visibilidade dos pontos de vista das mulheres em uma aacuterea marcadamente considerada

masculina

Os relatos que seratildeo trazidos neste trabalho satildeo recortes oriundos de uma pesquisa de

mestrado realizada na regiatildeo de Conceiccedilatildeo do Mato Dentro (P Coelho 2019) Durante a

pesquisa foram realizadas visitas agraves casas das mulheres apontadas enquanto figuras de

referecircncia e lideranccedilas locais em comunidades distintas Durante todas as idas agrave Conceiccedilatildeo e

em especial nas visitas domiciliares foram feitas conversas no sentido dado por Gonccedilalves

Filho (2003) enquanto histoacuterias que satildeo contadas diferentemente de caracterizaccedilatildeo ou acuacutemulo

de informaccedilotildees

Foram tambeacutem realizados encontros de debate e formaccedilatildeo sobre gecircnero e mineraccedilatildeo

uma primeira formaccedilatildeo de um dia um encontro de mulheres da regiatildeo de trecircs dias e uma

exposiccedilatildeo realizada no centro de Conceiccedilatildeo com os paineacuteis de Arpilleras confeccionados pelas

mulheres2 As mulheres se reuniram por comunidade e ao final da duraccedilatildeo da pesquisa foi

organizada uma exposiccedilatildeo dos mesmos em uma casa de cultura na regiatildeo urbana de Conceiccedilatildeo

do Mato Dentro como maneira de abrir o diaacutelogo a respeito da mineraccedilatildeo

Tudo o que era vivido e observado em Conceiccedilatildeo foi registrado em Diaacuterios de Campo

e foram gravadas apenas algumas conversas com as mulheres nas uacuteltimas idas de acordo com

a confianccedila e conforto delas em relaccedilatildeo a serem gravadas Foram ofertados e explicados Termos

de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a pesquisa e seus objetivos foram expostos

conversados e acordados em diversos momentos Ao final do trabalho foi decidido junto agraves

mulheres a criaccedilatildeo de nomes fictiacutecios para proteccedilatildeo de suas identidades

O delineamento metodoloacutegico seguiu pressupostos da pesquisa participante partindo do

princiacutepio de realidade social enquanto totalidade complexa e dialeacutetica A metodologia se alinha

tambeacutem agrave pesquisa participante por considerar uma posiccedilatildeo ativa das pessoas agraves quais a

2 Mais informaccedilotildees em Zaliasnik (2010)

279

pesquisa se volta levando em consideraccedilatildeo sua historicidade e se propondo a construiacute-la de

modo conjunto assim como de colocar a pesquisa tambeacutem a serviccedilo das pessoas envolvidas

Outro aspecto importante eacute o de explicitar os vieses teoacutericos utilizados posicionando-me eacutetica

e politicamente com interesse especialmente voltado aos processos de transformaccedilatildeo social

Parti do pressuposto de que a pesquisa eacute um processo que unifica investigaccedilatildeo accedilatildeo social e

educaccedilatildeo em um movimento uacutenico e constante (Brandatildeo amp Borges 2007 Freire 1985)

Como forma de anaacutelise dos resultados foi realizada triangulaccedilatildeo dos dados a fim de

garantir a sua validade interna Para tanto foi realizado estudo (leitura atenta e repetida) e

organizaccedilatildeo de todo o material produzido nas idas a Conceiccedilatildeo de modo interrogativo e

procurando ligaccedilatildeo entre eles e seguindo de relaccedilotildees com as teorias e a literatura cientiacutefica

levantada Este procedimento se pauta em uma trajetoacuteria de construccedilatildeo de conhecimento que

parte de um grupo especiacutefico mas que tem em vista tambeacutem seu conjunto social mais amplo e

o momento histoacuterico vivido E entende o ato de pesquisar e construir conhecimento enquanto

um ato humano e natildeo puramente tecnicista (Minayo 2010)

3 Efeitos da mineraccedilatildeo sob a perspectiva de mulheres atingidas

Inicialmente vale a pena destacar alguns dos elementos principais que surgiram a partir

dos relatos das mulheres em torno dos efeitos da mineraccedilatildeo e que podem ser de maior interesse

ao debate sobre as poliacuteticas puacuteblicas e possiacuteveis contribuiccedilotildees da Psicologia Social muito a

atenccedilatildeo Como a mineraccedilatildeo industrial faz uso extensivo de aacutegua na extraccedilatildeo dos mineacuterios e no

caso de Conceiccedilatildeo no transporte da popa de ferro por meio do mineroduto a escassez de aacutegua

em lugares que sempre tiveram suas fontes naturais garantidas era algo narrado de maneira

constante

Como as comunidades vivem da agricultura familiar como principal ou uma das

principais atividades econocircmicas a escassez de aacutegua das nascentes significa um impacto

profundo em seus modos de vida E a maior parte das comunidades tinham de enfrentar a falta

de aacutegua potaacutevel apoacutes a chegada da grande mineraccedilatildeo tendo que muitas vezes buscar aacutegua em

baldes e recipientes em lugares vizinhos Mesmo as comunidades que recebiam caminhotildees-

pipa da Prefeitura ou da empresa (de acordo com a avaliaccedilatildeo da responsabilidade ou natildeo da

mineradora sobre a escassez de aacutegua) o recebiam de maneira ineficiente apenas em alguns

dias da semana e com frequentes ausecircncias natildeo comunicadas de fornecimento (por motivo de

chuva e dificuldade de acesso dos caminhotildees nas estradas de terra entre outras)

280

A poluiccedilatildeo da aacutegua e do ar era tambeacutem relatada de maneira frequente e estava sempre

relacionada a uma queda na qualidade de vida de maneira geral e a efeitos deleteacuterios agrave sauacutede

Segundo autoras como Almeida (1999) a poluiccedilatildeo atmosfeacuterica gerada pela grande mineraccedilatildeo

pode gerar efeitos variados desde incocircmodos e irritaccedilatildeo ateacute a morte Um levantamento

realizado pela Diversus (2012) constatou aumento no nuacutemero de queixas de sauacutede relacionados

a poeira e poluiccedilatildeo do ar e da aacutegua nas aacutereas atingidas pela Empresa Anglo American na regiatildeo

de Conceiccedilatildeo do Mato Dentro

A questatildeo hiacutedrica e de poluiccedilatildeo interferem portanto na atividade produtiva das

famiacutelias aleacutem de acarretar prejuiacutezos agrave sauacutede e na queda da qualidade de vida de maneira ampla

e diversa A realocaccedilatildeo de comunidades causada pela mineraccedilatildeo traz consigo tambeacutem a

mudanccedila de haacutebitos e de sociabilidade Dissolvendo as comunidades e distanciando familiares

que acabam se mudando de maneira dispersa e sem respaldo teacutecnico para continuar sua

produccedilatildeo agriacutecola ou para desenvolver outra fonte de renda

Outra questatildeo bastante preponderante e que tem forte relaccedilatildeo com possiacuteveis

contribuiccedilotildees da Psicologia eacute a vivecircncia constante da sensaccedilatildeo de medo Medo de um possiacutevel

rompimento das barragens (real tendo em vista o modelo de produccedilatildeo mineral e dos

rompimentos proacuteximos e recentes em Mariana e Brumadinho) medo em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees

de vida futura (para elas e para as geraccedilotildees posteriores) medo diante das alteraccedilotildees do modo

de vida ndash como por exemplo maior circulaccedilatildeo de pessoas desconhecidas aumento dos casos

de violecircncia em geral mas tambeacutem contra as mulheres3 aumento da circulaccedilatildeo de carros e

caminhotildees nas estradas e maior risco de atropelamentos entre outros Eram constantes e

marcantes os relatos sobre a perda do sono da tranquilidade e dos planos futuros

A seguir destaco trechos das falas de algumas das mulheres em relaccedilatildeo ao sentimento

de medo e agrave perda dos planos futuros O primeiro relato eacute de Helenira que teve de sair de sua

comunidade para morar em uma casa de aluguel social pago pela mineradora na aacuterea urbana

devido agraves rachaduras em sua casa iniciadas apoacutes a instalaccedilatildeo do mineroduto

Helenira Para falar a verdade Paulinha eu perdi ateacute o amor que eu tinha ali na minha casa

Tem hora que daacute um sentimento ruim sabe

Paula uhum

Helenira Que a gente tinha tanto projeto tanta coisa E acabou tudo

Paula e foi uma coisa que interrompeu neacute

Helenira Interrompeu tudo

3 De acordo com Zouri et al (2014) houve aumento geral nos casos de violecircncia nuacutemero de crimes ocorridos por

ano de assaltos com porte de arma de venda e traacutefico de substacircncias iliacutecitas e de casos de violecircncia contra mulher

Apenas para elucidar de 2010 a 2013 o nuacutemero de denuacutencias de violecircncia contra mulher mais do que dobrou

281

Em outro momento sobre sua condiccedilatildeo provisoacuteria de aluguel social haacute mais de dois

anos no periacuteodo da entrevista uma vez que a famiacutelia ainda natildeo havia sido devidamente

ressarcida ou realocada

Helenira Tem meses que natildeo vejo assim eles [se referindo a representantes da Anglo American]

para conversar mesmo sobre o nosso caso Ixi para falar a verdade acho que jaacute tem um ano jaacute

isso Eles renovam o contrato laacute da casa E eu natildeo sei Eu sei que eles renovam de seis em seis

meses Tipo assim vence se renovaram em abril vence em outubro Quando vai chegando

outubro eu e Carlos jaacute ficamos loucos E agora Seraacute que jaacute renovou Seraacute que noacutes vamos ficar

Seraacute que vamos sair Seraacute que noacutes vamos voltar Entatildeo assim isso vai acabando com a gente

por dentro

Paula Porque eacute soacute incerteza neacute

Helenira Ansiedade E incerteza Aiacute vocecirc vai falar que eles estatildeo violando o nosso direito e

eles dizem que natildeo E isso natildeo eacute violaccedilatildeo de direito natildeo (pausa) Teve eacutepocas da gente ficar

assim doido Parece que fica doido da cabeccedila com essas coisas

No trecho acima fica evidente a maneira como algumas decisotildees foram tomadas por

parte da Anglo American e a posiccedilatildeo de incerteza diante da qual se encontra Helenira e sua

famiacutelia Ela destaca a dimensatildeo de violaccedilatildeo de direito no que diz respeito agrave questatildeo da

inseguranccedila e dificuldade de fazer planos para o futuro e relata como isto afeta sua sauacutede mental

de modo mais geral As rachaduras em sua casa que surgiram a partir dos tremores apoacutes a

implantaccedilatildeo do mineroduto natildeo foram reconhecidas pela empresa enquanto efeito do mesmo

e por isso a famiacutelia encontrava-se em situaccedilatildeo indefinida Natildeo retornaram agrave casa por medo de

acidente mas tambeacutem natildeo receberam indenizaccedilatildeo para poder ter condiccedilatildeo de se instalar em

outro local E permaneciam em aluguel social fora de sua comunidade sem seus meios de

subsistecircncia antigos e sem uma devolutiva definitiva com a possibilidade de recomeccedilar em

outro lugar No periacuteodo em que a pesquisa se encerrou Helenira e Carlos estavam

desempregados e impedidos de dar continuidade a suas ocupaccedilotildees anteriores

Mesmo em casos em que houve compra dos terrenos o processo de adaptaccedilatildeo tambeacutem

teve suas dificuldades Luiza conta sobre a realocaccedilatildeo da famiacutelia de um de seus irmatildeos

Luiza me diz que no mesmo mecircs em que a famiacutelia do irmatildeo mudou de casa e saiu da roccedila que

tinham o irmatildeo tomou veneno Quando pergunto ela diz que ele nunca havia tentado suiciacutedio

antes Nesta primeira ocasiatildeo anos atraacutes logo apoacutes a mudanccedila da famiacutelia da comunidade para

a cidade a dosagem de veneno natildeo tinha sido suficiente para tirar-lhe a vida Luiza conta que

este irmatildeo tambeacutem ldquocomeccedilou a beber depois que se mudourdquo se referindo a um uso abusivo de

aacutelcool E conta que ele assim como ela sentia falta da ldquoirmandaderdquo e que queria ldquoviver como

antesrdquo ldquoA gente era tudo unido sabe Era um na casa do outro semprerdquo As relaccedilotildees familiares

tambeacutem geravam relaccedilotildees de trabalho mesmo que temporaacuterios E quando o irmatildeo se mudou

para a cidade perdeu sua irmandade e tambeacutem seus locais e rede de trabalhos Luiza conta que

com o dinheiro que receberam para a realocaccedilatildeo compraram uma casa (que precisava de

reforma) na aacuterea urbana e o dinheiro restante foi muito pouco para que a famiacutelia pudesse se

reestabelecer E completa ldquonatildeo foi soacute esse irmatildeo natildeo todos os que foram para a cidade estatildeo

282

num desespero soacuterdquo Luiza conta com tristeza do suiciacutedio deste irmatildeo por enforcamento e do

choque de toda a famiacutelia com o ocorrido E completa com preocupaccedilatildeo ldquoe agora o meu sobrinho

diz que quer morrer no mesmo lugar que o pairdquo (Trecho de Diaacuterio de Campo)

Tanto os relatos de Helenira quanto de Luiza evidenciam as mudanccedilas abruptas no modo

de vida e a necessidade de acompanhamento e avaliaccedilatildeo multiprofissional nos casos de

realocamento de famiacutelias e comunidades como o acompanhamento de sauacutede social e teacutecnico

para manutenccedilatildeo ou alteraccedilatildeo da atividade de renda principal da famiacutelia de maneira que todos

esses elementos sejam considerados nas negociaccedilotildees com as mineradoras

A seguir outro trecho de Luiza moradora de uma das comunidades que estaacute a cerca de

um quilocircmetro apenas da barragem de rejeitos sobre a vivecircncia do medo de um possiacutevel

rompimento de barragem

ldquoComo eacute que a gente dorme agora em eacutepoca de chuva A gente natildeo dorme natildeordquo E eu pensava

em eacutepoca de chuva por quecirc Era de medo de romper a barragem Enquanto falaacutevamos sobre

isso durante a confecccedilatildeo dos paineacuteis percebo que todas ali presentes conviviam com essa

possibilidade Todas jaacute tinham imaginado como seria se a barragem rompesse se daria tempo

de se salvar o que fariam onde se abrigariam com suas famiacutelias (talvez a igreja natildeo fosse

atingida pela lama) Aleacutem da preocupaccedilatildeo com o restante da comunidade E sua tranquilidade e

noites de sono ocupadas do perigo real Tatildeo real quanto Bento Rodrigues (Trecho de Diaacuterio de

Campo)

Junto agrave exposiccedilatildeo dos paineacuteis de Arpilleras havia tambeacutem alguns textos produzidos

pelas mulheres no intuito de apresentar suas comunidades Destaco trechos de um deles que

dimensiona explicitamente o sentimento de inseguranccedila e incerteza em relaccedilatildeo ao futuro

Comunidade Aacutegua Quente

Um vilarejo pequenino mas com grandes histoacuterias Pessoas simples de boas memoacuterias

Um passado de lindas recordaccedilotildees Um futuro indeciso Onde vemos somente tristeza e dor

Uma bomba rio acima Prestes a detonar

E mais uma vez a comunidade se pergunta ateacute quando iremos viver e chorar

Queremos paz em outro lugar

Queremos dormir

E poder acordar

Sonhar e realizar

Ver nossos filhos crescerem

E com tranquilidade viver

Peccedilo a Deus pra nos iluminar

E ao lado em letras coloridas e destacadas ldquopedimos socorro queremos viverrdquo

Eacute um desafio dimensionar e de alguma maneira incluir as preocupaccedilotildees os medos a

ansiedade as alteraccedilotildees na tranquilidade e no sono das pessoas dentro do conjunto de impactos

gerados pela mineraccedilatildeo Assim como de pensar maneiras de compensar minimizar e proteger

283

as comunidades atingidas Mas esta eacute uma dimensatildeo importante sobre a qual a Psicologia pode

trazer significativas contribuiccedilotildees

Martiacuten-Baroacute (1984) por exemplo afirma que a deterioraccedilatildeo profunda das relaccedilotildees e

convivecircncias sociais jaacute eacute por si soacute um grave transtorno social E em relaccedilatildeo ao contexto de

guerra ao qual o autor se voltou ele afirma que este grande transtorno social eacute gerado na medida

em que as pessoas perdem a qualidade de amar de trabalhar juntas e perdem possibilidades de

afirmar sua identidade peculiaridades e de ter voz para contar e afirmar sua histoacuteria e de seu

povo Natildeo podemos fazer um paralelo direto entre guerra e situaccedilatildeo de mineraccedilatildeo mas satildeo

profundas e abruptas as alteraccedilotildees das relaccedilotildees sociais e suas configuraccedilotildees de trabalho

conjunto e de poderem afirmar sua identidade e sua histoacuteria Diversas praacuteticas de vida trabalho

e de conviacutevio social foram amplamente atingidas e algumas delas desfeitas e este grande efeito

social tem tambeacutem repercussotildees no niacutevel individual

Conceituar e investigar estes tipos de impactos juntamente ao debate mais geral sobre

modelos de mineraccedilatildeo pode trazer contribuiccedilotildees relacionadas agraves poliacuteticas puacuteblicas e do

reconhecimento de direitos Como uma forma de vislumbrar meios de proteccedilatildeo e compensaccedilatildeo

agraves pessoas diretamente atingidas e como um elemento de debate e reflexatildeo junto agrave sociedade

em relaccedilatildeo aos impactos da grande mineraccedilatildeo Ter uma imagem mais fidedigna e completa do

conjunto de impactos gerados pelo modelo de exploraccedilatildeo da grande mineraccedilatildeo eacute essencial para

problematizaacute-lo e para podermos propor outras formas de regular a atividade mineradora

Vale destacar contudo outro papel fundamental dessas mulheres para aleacutem de pessoas

que notam e sofrem uma ampla gama de impactos da mineraccedilatildeo Elas assumem tambeacutem papeacuteis

centrais enquanto referecircncias e lideranccedilas comunitaacuterias em todos os processos de mobilizaccedilatildeo

que passaram a se dar a partir da implantaccedilatildeo do empreendimento Minas-Rio como

protagonizando falas importantes em audiecircncias puacuteblicas variadas (com oacutergatildeos puacuteblicos

variados e com a empresa) em assembleias e reuniotildees das comunidades como representantes

das comunidades nos variados processos de negociaccedilatildeo recebendo as visitas de representantes

de oacutergatildeos governamentais como Ministeacuterio Puacuteblico IBAMA entre outros em entrevistas com

fins midiaacuteticos ou com fins de pesquisa acadecircmica em atividades organizadas junto ao MAM

entre outros

O fato delas serem impactadas em acircmbitos diversos e em grande proporccedilatildeo tambeacutem as

fazia ter dimensatildeo dos impactos e da necessidade de lutar por suas vidas e de suas famiacutelias e

comunidades A presenccedila do MAM tambeacutem foi muito importante no fortalecimento desse

284

protagonismo e na ampliaccedilatildeo do debate e resistecircncia acerca da mineraccedilatildeo e seus impactos

(Coelho 2019)

4 Poliacuteticas Puacuteblicas e contribuiccedilotildees da Psicologia

Por mais insuficientes e excludentes que muitas vezes os programas sociais e as

plataformas governamentais possam ser (sobretudo quando se trata do atendimento agraves parcelas

mais excluiacutedas e exploradas da sociedade) natildeo se pode ignorar a necessidade de conquistas e

vitoacuterias que sejam asseguradas materialmente como programas de sauacutede reforma agraacuteria

assistecircncia social educaccedilatildeo moradia melhoria do transporte puacuteblico direitos trabalhistas

entre outras Todos esses avanccedilos satildeo fruto da luta histoacuterica da classe trabalhadora e de suas

histoacuterias de conquistas e resistecircncias E todas passam pela luta por garantia de programas

governamentais que englobem um conjunto de poliacuteticas puacuteblicas que atendam com qualidade

as necessidades e reivindicaccedilotildees da classe No entanto parece vaacutelido questionar como algumas

destas poliacuteticas impactam as vidas da populaccedilatildeo de acordo com o modo como elas estatildeo

planejadas investidas e implementadas Pensando neste aspecto este eacute um campo que pode

tanto atender agraves camadas mais exploradas garantindo o acesso a direitos quanto pode

contribuir na manutenccedilatildeo da exploraccedilatildeo e da dependecircncia

O campo das poliacuteticas puacuteblicas eacute portanto uma aacuterea de interesse dinacircmica e em

constante disputa sob qual se debruccedilam e atuam diversas praacuteticas e saberes como o direito a

sociologia a economia e tambeacutem a psicologia Sinteticamente uma poliacutetica puacuteblica pode ser

definida enquanto um programa de accedilatildeo governamental em um setor da sociedade ou um espaccedilo

geograacutefico especiacutefico (Muller 2002) Segundo Lahera (2003) poliacuteticas puacuteblicas correspondem

a maneiras especiacuteficas de dar respostas a questotildees puacuteblicas e estaacute necessariamente conectada

ao campo mais geral da poliacutetica como um todo De acordo com Muller (2002) a anaacutelise das

poliacuteticas puacuteblicas pode ser considerada como uma disciplina cientiacutefica recente de natureza

necessariamente multidisciplinar e que carece de maior atenccedilatildeo e dedicaccedilatildeo de maneira geral

uma vez que as sociedades contemporacircneas satildeo altamente reguladas pelo Estado e o grande

aumento e complexificaccedilatildeo de intervenccedilotildees estatais eacute um dos principais fenocircmenos sociais do

seacuteculo XX

Cabe destacar que este trabalho natildeo pretende se estender no amplo debate sobre as

poliacuteticas puacuteblicas mas sim se voltar a alguns aspectos referentes agrave grande mineraccedilatildeo e agraves

contribuiccedilotildees da Psicologia Social Diante dos enormes impactos que a mineraccedilatildeo industrial

285

gera e dos altos riscos de cataacutestrofes como os rompimentos de barragens e dos casos de

contaminaccedilatildeo (por exemplo os vazamentos como os gerados pela Hydro no Paraacute e pela Anglo

American em Minas Gerais) todo o seu modelo de atuaccedilatildeo precisa ser debatido com o conjunto

da sociedade brasileira e natildeo apenas pelas empresas privadas e oacutergatildeos governamentais Os

desastres soacutecio-ambientais infelizmente tecircm sido frequentes e de grande magnitude no

panorama da mineraccedilatildeo no paiacutes e satildeo um risco real uma vez que estatildeo diretamente relacionados

ao modo de minerar

Eacute preciso salientar o vieacutes sobre os desastres enquanto acontecimentos criacuteticos que

evidenciam ou potencializam as injusticcedilas e discrepacircncias sociais vividas cotidianamente E

que explicitam as diferenccedilas de sobrevivecircncia e de recuperaccedilatildeo de boas condiccedilotildees de vida

trabalho sauacutede e moradia havendo diferenccedila de tratamento quando as pessoas atingidas satildeo

ricas e quando satildeo pobres Desta forma a vulnerabilidade estaacute mais ligada ao contexto social

do que a fatores de risco externos Mesmo o tratamento que se daacute aos desastres se faz distinto

de acordo com a origem de classe Natildeo sendo os desastres portanto meramente circunstanciais

e originaacuterios apenas de fatores externos ao contexto social (Valencio 2009 Marchezini 2009)

No caso da mineraccedilatildeo fica evidente o modelo destrutivo que seu modo produtivo vem

acarretando

Aleacutem dos desastres de rompimento de barragem casos de crimes sociais e ambientais

a mineraccedilatildeo usa extensivos recursos hiacutedricos e fundiaacuterios de maneira que se faz fundamental

que a sociedade brasileira comece a determinar como seraacute nossa mineraccedilatildeo em que aacutereas elas

aconteceratildeo ou natildeo (estabelecendo por exemplo aacutereas livres de mineraccedilatildeo) em que ritmo a

extraccedilatildeo se daraacute como seraacute calculada e destinada a CFEM e de que maneira ela pode ser

investido nas regiotildees diretamente atingidas que tipo de apoio (financeiro e teacutecnico) e por

quanto tempo devem receber esse apoio as famiacutelias que sejam realocadas em funccedilatildeo da

mineraccedilatildeo estabelecer comprometimento das empresas com um fundo ligado a um

planejamento social e econocircmico da regiatildeo para quando a atividade mineradora se encerrar

(uma vez que a extraccedilatildeo se daacute por tempo determinado e a mineacuterio-dependecircncia impede ou

enfraquece outras possiacuteveis atividades econocircmicas) necessitamos de investimento em oacutergatildeos

de monitoramento soacutecio-ambiental assim como pesquisas cientiacuteficas entre outras (MAM

2015 Mansur et al 2016 Milanez 2012)

A partir dos relatos e dados em relaccedilatildeo ao sofrimento e aumento dos casos de violecircncia

tambeacutem seria importante que poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede e de proteccedilatildeo social fossem

fortalecidas eou implementadas como medida compensatoacuteria das empresas Assim como

286

subsiacutedios ao Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) no que diz respeito ao tratamento e prevenccedilatildeo das

enfermidades relacionadas agrave mineraccedilatildeo causadas pela poluiccedilatildeo da aacutegua do ar entre outros

efeitos (Almeida 1999) Deveria haver um planejamento de medidas protetivas e

compensatoacuterias no que diz respeito aos principais agravos causados pelos impactos da grande

mineraccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave sauacutede poluiccedilatildeo e desgaste ambiental crescimento da violecircncia e

reestruturaccedilatildeo econocircmica da regiatildeo que levasse em consideraccedilatildeo as caracteriacutesticas de cada

territoacuterio e que fosse de responsabilidade das empresas repassar verbas e do poder puacuteblico

implementar sob o acompanhamento de espaccedilos de poder popular consultando moradores e

famiacutelias da regiatildeo

Outra dimensatildeo que merece medidas e cuidados especiacuteficos satildeo as poliacuteticas voltadas agrave

proteccedilatildeo das mulheres Os relatos colhidos assim como os dados apontados (Zouri etal 2005

Coelho 2019) demonstram a necessidade de poliacuteticas amplas de proteccedilatildeo agrave mulher tendo em

vista tambeacutem sua posiccedilatildeo de menor acesso aos postos de trabalho na mineraccedilatildeo e em piores

condiccedilotildees de ascensatildeo de carreira (Quirino 2015) Para as mulheres a garantia de poliacuteticas

puacuteblicas de educaccedilatildeo e sauacutede gerais as beneficiaria tambeacutem indiretamente devido a seu lugar

social de cuidadora da famiacutelia e de responsaacutevel pelo cuidado e educaccedilatildeo das crianccedilas E para

aleacutem disso programas voltados especificamente a elas no que diz respeito ao combate agrave

violecircncia contra a mulher sauacutede mental e programas de geraccedilatildeo de renda e formaccedilatildeo

profissional seriam de profunda importacircncia em contextos de aacutereas de mineraccedilatildeo

De modo geral seria fundamental o planejamento de programas de curto meacutedio e longo

prazo para fortalecimento das famiacutelias atingidas e para a cobertura das diversas dimensotildees

sociais ambientais e da sauacutede que satildeo afetadas pelos impactos da mineraccedilatildeo Aleacutem disso as

localidades que ainda natildeo estatildeo sob accedilatildeo da mineraccedilatildeo mas que satildeo aacutereas em potencial

tambeacutem precisariam estar cientes dos impactos concretos e subjetivos (como preocupaccedilotildees

sentimento de inseguranccedila e medo vivenciados pelas famiacutelias) em regiotildees onde a grande

mineraccedilatildeo jaacute estaacute instalada Eacute preciso que a ideia de progresso propagandeada pela grande

mineraccedilatildeo possa ser problematizada e esclarecida junto ao conjunto social mais amplo para

que seja possiacutevel um debate seacuterio com medidas protetivas e compensatoacuterias consistentes

Outra contribuiccedilatildeo da Psicologia aleacutem de destacar os elementos relacionados agrave sauacutede

mental e os sentimentos de medo e inseguranccedila seria reiterar a dimensatildeo de pertenccedila social e

de considerar modos de vida das comunidades atingidas Assim como frisar a importacircncia de

que as negociaccedilotildees com as comunidades sejam feitas de maneira coletiva Uma vez que

individualmente as famiacutelias tecircm menores chances de ter seus direitos garantidos assim como

287

correm maior risco de ter seus viacutenculos comunitaacuterios fragilizados e ateacute desfeitos (nos casos de

remoccedilatildeo de comunidades isto fica ainda mais evidente) como foi relatado pelas mulheres em

Conceiccedilatildeo do Mato Dentro Por isso eacute importante reforccedilar o caraacuteter de identidade das famiacutelias

e comunidades para aleacutem do valor econocircmico das terras ou das medidas pois haacute que se levar

em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo de pertenccedila das famiacutelias e evidenciar tambeacutem as alteraccedilotildees e sua

sociabilidade Assim como propor um acompanhamento social e teacutecnico (com programas que

abarquem as dimensotildees de sauacutede sociais e de suporte econocircmico) das famiacutelias durante e apoacutes

a chegada das mineradoras

Consideraccedilotildees finais

De maneira geral a grande mineraccedilatildeo pode ser considerada um retrato rico no que diz

respeito ao modo de operar explorar e acumular do capitalismo e de nossa posiccedilatildeo de

dependecircncia dentro dele Por isso seu estudo pode refletir questotildees que estatildeo na ordem do dia

Os mineacuterios satildeo finitos e os impactos de sua extraccedilatildeo nos tecircm custado caro Fica expliacutecita a

necessidade de debate da sociedade brasileira em torno do modelo de mineraccedilatildeo que queremos

Modelo este que se apoiaraacute em programas de poliacuteticas puacuteblicas que possam assegurar

delimitaccedilatildeo de aacutereas livres de mineraccedilatildeo assim como de ritmos de extraccedilatildeo condiccedilotildees de

realocamento de comunidades poliacuteticas regulatoacuterias medidas compensatoacuterias programas de

desenvolvimento alternativo com fundo de planejamento e investimentos em outras atividades

econocircmicas jaacute que a mineraccedilatildeo tem accedilatildeo datada melhor dimensionamento dos impactos sociais

e ambientais seguranccedila hiacutedrica de modo amplo entre outras Neste sentido a Psicologia Social

pode contribuir ajudando a pautar e reforccedilar de maneira multidisciplinar a necessidade de

negociaccedilatildeo e consideraccedilatildeo das comunidades de suas identidades e histoacuterias de seu direito agrave

qualidade de vida e a ter planos e perspectivas de futuro com mais seguranccedila e dignidade

Dentro de um processo que leve em consideraccedilatildeo aspectos que natildeo satildeo apenas econocircmicos

mas estatildeo relacionados tambeacutem agrave qualidade de vida sauacutede mental identidade formaccedilatildeo

comunitaacuteria entre outros

Aleacutem disto fica evidente a riqueza de destacar pontos de vistas usualmente silenciados

como de pessoas atingidas diretamente pela mineraccedilatildeo e mais especificamente mulheres Em

um campo visto como masculino onde as mulheres foram historicamente invizibilizadas notar

suas perspectivas e sua participaccedilatildeo social eacute um ato necessaacuterio e que merece desdobramentos e

maiores aprofundamentos Para que seja possiacutevel destacar sua importacircncia e atuaccedilatildeo mas

288

tambeacutem exigir programas e poliacuteticas especiacuteficas de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo sociais e de sauacutede para

este grupo social especiacutefico uma vez que atingido de maneiras profundas e tatildeo variadas

Fica evidente portanto a necessidade de ampliar o debate sobre os modos de minerar

e para isso esse debate natildeo pode se restringir aos oacutergatildeos governamentais ou agraves empresas pois

necessita abarcar a maior parcela da sociedade brasileira possiacutevel Contando com pesquisas

cientiacuteficas (e investimentos) melhores condiccedilotildees para a regulamentaccedilatildeo ambiental e social

pelos oacutergatildeos puacuteblicos responsaacuteveis contar com a participaccedilatildeo de movimentos sociais assim

como das comunidades diretamente atingidas e com o conjunto da sociedade brasileira como

um todo jaacute que eacute uma atividade de enormes repercussotildees Natildeo podemos mais assistir a

cataacutestrofes como as ocorridas em Mariana e Brumadinho (ambas envolvendo a privatizada Vale

SA) sem termos propostas de mineraccedilatildeo mais seguras que levem em consideraccedilatildeo o conjunto

de elementos ambientais sociais econocircmicos e subjetivos que estatildeo em questatildeo E que

considerem nossa soberania e o tipo de desenvolvimento que a sociedade brasileira almeja

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291

Sobre asos autorases

Adriana Marcondes Machado

Professora do Departamento da Aprendizagem do Desenvolvimento e da Personalidade do

Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia

pela USP Fez Mestrado e Doutorado em Psicologia Social na mesma Universidade Trabalhou

como psicoacuteloga no Serviccedilo de Psicologia Escolar do IPUSP

Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim

Doutoranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

(IPUSP) Graduada em Psicologia possui especializaccedilatildeo em ldquoPraacuteticas Psicoloacutegicas em

Instituiccedilotildeesrdquo e Licenciatura pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) Pesquisa sobre Sauacutede

Mental em interface com Direitos Humanos Atualmente eacute psicoacuteloga no Ministeacuterio Puacuteblico de

SP

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo

Doutoranda do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento

Humano da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Graduada em Psicologia pela Universidade

Federal de Mato Grosso (UFMT) Mestre em Educaccedilatildeo pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Educaccedilatildeo no acircmbito do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infacircncia (GPPIN UFMT)

Andrielly Darcanchy de Toledo

Mestranda em Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Psicoacuteloga formada pela mesma Universidade Atua em Serviccedilos de Acolhimento Institucional

para Crianccedilas e Adolescentes (SAICA) de administraccedilatildeo direta da Prefeitura Municipal de

Osasco no estado de Satildeo Paulo Colaborou com a implementaccedilatildeo e acompanhamento do

Programa Laccedilos e iniciou a implementaccedilatildeo de Serviccedilo de Acolhimento em Famiacutelias

Acolhedoras

Beatriz Saks Hahne

Mestre e Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade

de Satildeo Paulo (USP) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Satildeo Paulo (PUC-SP) Atua com juventude em contextos de violecircncia especificamente

adolescentes autores de ato infracional e em cumprimento de medidas socioeducativas

Camila Trindade

Doutoranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringaacute (UEM) Graduada em

Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) Mestra em Psicologia pela

292

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Pesquisadora integrante do Nuacutecleo de Estudos

do Trabalho e Constituiccedilatildeo do Sujeito (NETCOSUFSC)

Carolina Esmanhoto Bertol

Doutora em Psicologia Social pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Integrante do

Laboratoacuterio Psicanaacutelise Sociedade e Poliacutetica do Programa de Psicologia Cliacutenica do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) e do Nuacutecleo de Loacutegicas Institucionais e

Coletivas da PUC-SP Atua como supervisora cliacutenico-institucional e em processos de formaccedilatildeo

de equipes que atuam nos serviccedilos da Poliacutetica de Assistecircncia Social

Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Psicoacuteloga Doutora em Psicologia da Educaccedilatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo

Paulo (PUC-SP) Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo

em Educaccedilatildeo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) onde coordena o Grupo de

Pesquisa em Psicologia da Infacircncia (GPPINUFMT) Pesquisadora do Centro Internacional de

Estudos em Representaccedilotildees Sociais e Subjetividade - Educaccedilatildeo (CIERS-Ed)

Denise Zakabi

Possui mestrado em Ciecircncias pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de

Medicina da Universidade de Satildeo Paulo (USP) e doutorado em Psicologia Escolar e do

Desenvolvimento Humano no Instituto de Psicologia da mesma Universidade Graduou-se em

Psicologia pela USP

Fernanda Lyrio Heinzelmann

Doutoranda no programa de poacutes-graduaccedilatildeo de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da

Universidade de Satildeo Paulo (USP) Tecnoacuteloga em Moda e Estilo pela Universidade de Caxias

do Sul (UCS) Especialista em Criaccedilatildeo de Imagem de Moda e Styling pelo SENAC-SP e Mestra

em Psicologia pela Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Pesquisa a temaacutetica

de gecircnero com enfoque em transgeneridade e poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede

Heloiacutesa Aparecida de Souza

Docente da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas (PUC-Campinas) e membro da

Associaccedilatildeo Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) Psicoacuteloga e Doutora em Psicologia

como Profissatildeo e Ciecircncia pela PUC-Campinas

Henrique Araujo Aragusuku

Doutorando e Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo

Paulo Especialista em Psicologia Poliacutetica pela Escola de Artes Ciecircncias e Humanidades da

293

USP Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso Eacute membro do

Nuacutecleo de Pesquisas em Psicologia Poliacutetica e Movimentos Sociais (NUPMOS) da Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

Ianni Regia Scarcelli

Professora Associada do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Orienta Doutorado e Mestrado em Psicologia

Social aleacutem de Mestrado Profissional no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Formaccedilatildeo

Interdisciplinar em Sauacutede Possui Livre Docecircncia Doutorado e Mestrado em Psicologia Social

pela USP Psicoacuteloga graduada pela mesma Universidade

Izabela Penha Silva

Mestranda em psicologia pela Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) Especialista em

Abordagem Sistecircmica no Atendimento a Casal e Famiacutelia pelo Centro Universitaacuterio de

Araraquara (UNIARA) Psicoacuteloga graduada pelo Instituto de Psicologia da UFU

Johanna Garrido Pinzoacuten

Docente da Fundaccedilatildeo Hermiacutenio Ometto Psicoacuteloga pela Universidade Pontifiacutecia Bolivariana e

Doutora em Psicologia como Profissatildeo e Ciecircncia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Campinas (PUC-Campinas)

Joseacute Fernando Andrade Costa

Professor da aacuterea de Psicologia no Departamento de Ciecircncias Humanas e Filosofia da

Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Mestre e doutorando em Psicologia Social

pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo Eacute membro do Grupo de Pesquisa

ldquoPsicologia e Teoria Criacuteticardquo (UEFS) e do Laboratoacuterio Interinstitucional de Estudos sobre

Intersubjetividade Criacutetica Social Direitos Humanos (INCIDIR)

Kate Delfini Santos

Doutoranda no programa de poacutes-graduaccedilatildeo de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da

Universidade de Satildeo Paulo (USP) Mestre em Psicologia Cliacutenica pela mesma Universidade

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie Atuou como pesquisadora

do Nuacutecleo de Estudos da Violecircncia da Universidade de Satildeo Paulo (NEVUSP) e atualmente eacute

psicoacuteloga cliacutenica em um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infanto-juvenil (CAPS-IJ)

Liandra Savanhago

Psicoacuteloga do Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) Pesquisadora integrante do

Nuacutecleo de Estudos do Trabalho e Constituiccedilatildeo do Sujeito (NETCOSUFSC) Possui graduaccedilatildeo

em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Mestra em Psicologia na

294

aacuterea de Psicologia Social e Cultura (UFSC) Especialista em Sauacutede Coletiva com ecircnfase na

temaacutetica sobre violecircncia de gecircnero (UFSC)

Marcelo Afonso Ribeiro

Professor Livre Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (PST-IPUSP)

Marcia Hespanhol Bernardo

Doutora em Psicologia Social pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) trabalhou como psicoacuteloga

na sauacutede mental e na sauacutede do trabalhador no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) e foi professora

do programa de poacutes-graduaccedilatildeo da Pontifiacutecia UC-Campinas durante 10 anos Atualmente estaacute

aposentada e colabora como professora e coorientadora no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em

Psicologia Social na USP

Maria Chalfin Coutinho

Professora Titular Aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Docente do

PPGPUFSC Possui graduaccedilatildeo em Psicologia e mestrado em Educaccedilatildeo pela UFRGS Doutora

em Ciecircncias Sociais pela UNICAMP Realizou estudos poacutes-doutorais junto ao Programa de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social da USP Coordena o Nuacutecleo de Estudos Trabalho e

Constituiccedilatildeo do Sujeito (NETCOS UFSC)

Maria Fernanda Aguilar Lara

Mestranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo

Possui experiecircncia na Assistecircncia Social atraveacutes da atuaccedilatildeo como psicoacuteloga no SUAS de 2016

a 2018 Atualmente eacute membro do grupo de pesquisa ldquoA governanccedila multiniacutevel da poliacutetica de

assistecircncia socialrdquo vinculado ao Centro de Estudos da Metroacutepole (CEM-USP) e do

Laboratoacuterio de Estudos e Pesquisas em Trabalho Movimentos Sociais e Poliacuteticas Sociais

(TRAMPOS) do IPUSP

Maria Luisa Sandoval Schmidt

Professora Titular do departamento de Psicologia da Aprendizagem do Desenvolvimento e da

Personalidade da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia pela

mesma instituiccedilatildeo Mestre e Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano

pela USP Tambeacutem eacute livre-docente pela mesma instituiccedilatildeo

Mariana Belluzzi Ferreira

Mestre em Psicologia Social pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

Membro do Laboratoacuterio Psicanaacutelise Poliacutetica e Sociedade do Programa de Psicologia Cliacutenica

do Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Atua como supervisora cliacutenico-

295

institucional e em processos formativos junto agraves equipes dos serviccedilos referenciados agrave poliacutetica

puacuteblica de Assistecircncia Social

Mariana Fagundes de Almeida Rivera

Mestranda no programa de poacutes-graduaccedilatildeo de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da

Universidade de Satildeo Paulo (PST-IPUSP) pesquisando a temaacutetica de gecircnero e sauacutede Psicoacuteloga

formada pelo IPUSP Atende tambeacutem em consultoacuterio particular Jaacute foi psicoacuteloga em equipe

NASF (Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia) no SUS e em Serviccedilo de Medidas Socioeducativas

em Meio Aberto no SUAS

Mariana Pereira da Silva

Psicoacuteloga cliacutenica e Mestre em Psicologia como Profissatildeo e Ciecircncia pela Pontifiacutecia Universidade

Catoacutelica de Campinas (PUC-Campinas) Possui graduaccedilatildeo em Psicologia pela mesma

Universidade

Mariana Prioli Cordeiro

Professora Doutora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) Eacute Mestre e Doutora em Psicologia Social pela

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) e poacutes-doutora na mesma aacuterea pelo

Instituto de Psicologia da USP Desenvolve estudos sobre poliacuteticas sociais enfocando a

inserccedilatildeo da Psicologia no Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS)

Omar Calazans Nogueira Pereira

Psicoacutelogo escolar na Diretoria de Ensino da Regiatildeo de Suzano por meio da Fundaccedilatildeo Faculdade

de Medicina Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo

Paulo (IPUSP) Psicoacutelogo e licenciado em Psicologia pelo IPUSP com aperfeiccediloamento em

Orientaccedilatildeo Profissional e de Carreira pelo IPUSP

Patriacutecia Peixoto Zapletal

Pedagoga formada pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) e mestre em

Educaccedilatildeo pela Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Paula Rosana Cavalcante

Mestre e Doutoranda em Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo

Paulo (USP) Graduada em Psicologia pela mesma Universidade e especialista em Psicologia

Juriacutedica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) Psicoacuteloga da Defensoria Puacuteblica do Estado

de Satildeo Paulo desde 2010

296

Paula Sassaki Coelho

Mestre em Psicologia Social pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) com especializaccedilatildeo latu

sensu em Educaccedilatildeo do Campo e Agroecologia pela mesma Universidade Possui graduaccedilatildeo em

Psicologia pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Tem experiecircncia profissional

na aacuterea de Psicologia com ecircnfase em Sauacutede Mental na Atenccedilatildeo Baacutesica no Sistema Uacutenico de

Sauacutede (SUS)

Renata Fabiana Pegoraro

Poacutes-Doutoranda em Psicologia Social pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

(PUC-SP) Doutora e mestre em Psicologia pela Universidade de Satildeo Paulo ndash Campus Ribeiratildeo

Especialista em Sauacutede Coletiva pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCAR) Docente

do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Psicologia do Instituto de Psicologia da

Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU)

Rodolfo Luis Almeida Maia

Atualmente eacute mestrando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (USP) e

estuda os espaccedilos institucionalizados de Controle Social do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) a

partir das experiecircncias com a Comissatildeo de Moradores do Jardim Brasiacutelia e Vitoacuteria-reacutegia

Psicoacutelogo e bacharel em Psicologia formado pela mesma Universidade Desenvolveu um

projeto de iniciaccedilatildeo cientiacutefica sobre a atuaccedilatildeo de psicoacutelogas(os) do Sistema Uacutenico de

Assistecircncia Social (SUAS) no tema das relaccedilotildees eacutetnico-raciais

Tatiana Alves Romatildeo

Psicoacuteloga Psicodramatista e Socionomista Mestre em Educaccedilatildeo e doutoranda no Instituto de

Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (IP-USP) Eacute membro de dois grupos de pesquisa no

Brasil o Grupo de Pesquisa ldquoPoliacuteticas de Educaccedilatildeo Superiorrdquo sediado no PPGE-Uninove e o

ldquoLaboratoacuterio de Psicanaacutelise e Psicologia Socialrdquo (LAPSO-USP)

Tielly Rosado Maders

Mestra e Doutoranda em Psicologia pela UFSC Graduada em Psicologia pela Universidade

Franciscana (UFN) Especialista em Poliacuteticas Puacuteblicas para igualdade na Ameacuterica Latina pelo

Conselho Latinoamericano de Ciecircncias Sociais (CLACSO-Argentina) Pesquisadora integrante

do Nuacutecleo de Estudos do Trabalho e Constituiccedilatildeo do Sujeito e do Nuacutecleo de Estudos e Pesquisa

em Serviccedilo Social e Organizaccedilatildeo Popular

297

Pareceristas

Agradecemos a todasos aquelases que contribuiacuteram para o aprimoramento dos capiacutetulos

desta coletacircnea emitindo pareceres

Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo

Beatriz Besen de Oliveira

Beatriz Saks Hahne

Cintia Helena Bulgarelli Freitas

Daniel Augusto de Andrade Pinheiro

Denise Zakabi

Felipe Cazeiro

Fernanda Lyrio Heinzelmann

Flaacutevia de Mendonccedila Ribeiro

Gabriela Milareacute Camargo

Henrique Araujo Aragusuku

Joseacute Fernando Andrade Costa

Laura Vilela e Souza

Liandra Savanhago

Luciana Alonso

Maria Fernanda Aguilar Lara

Mariana Belluzzi Ferreira

Mariana Fagundes de Almeida Rivera

Mariana Prioli Cordeiro

Naiana Marinho Gonccedilalves

Omar Calazans Nogueira Pereira

Rociacuteo Bravo Shuntildea

Rodolfo Luis Almeida Maia

Ruzia Chaouchar dos Santos

Sirlene Lopes de Miranda

Thiago Sousa Felix

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