p155 - os escravos de nowhere - kurt mahr

93
OS ESCRAVOS DE NOWHERE Autor KURT MAHR Tradução RICHARD PAUL NETO Digitalização VITÓRIO (P- 155)

Upload: cristina-santos

Post on 08-Nov-2015

217 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

ficção científica

TRANSCRIPT

OS ESCRAVOS DE NOWHEREAutorKURT MAHRTraduoRICHARD PAUL NETODigitalizaoVITRIORevisoARLINDO_SAN

Transformaram-se em criminosos, porque sua arte mdica falhou...

O ano 2.326 do calendrio terrano comeou. Grandes modificaes se verificaram na parte da Via Lctea explorada pelos terranos, depois dos acontecimentos relatados no volume 149.

O Imprio Solar deixou de existir em 1o de janeiro de 2.115, data em que Atlan renunciou ao ttulo de Imperador de rcon. Em lugar desses dois reinos surgiu o Imprio Unido, governado por Perry Rhodan, na qualidade de Grande Administrador. Atlan exerce as funes de Chefe da USO, cujos especialistas formam uma espcie de corpo de bombeiros da Galxia.

Sempre que surgem problemas ou perigos que no so de mbito puramente planetrio, estendendo seus efeitos a toda a Galxia, a USO, criada e dirigida pelo Lorde-Almirante Atlan, entra em ao.

A fuga precipitada do Ser espiritual do planeta artificial Peregrino e a disseminao da vida eterna multiplicada por vinte e cinco, sob a forma de ativadores celulares, criaram o tumulto entre todos os povos da Via Lctea. As espaonaves vo de um planeta a outro.

Em geral as pessoas bem-sucedidas na busca da imortalidade relativa so os tripulantes das naves terranas. E desta vez no uma nave da Frota Solar, mas um veculo espacial particular, que capta os inconfundveis sinais de um ativador celular...

A pista leva os ocupantes da nave a tornarem-se Os Escravos de Nowhere.

= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = =Marr Toss, Bran Cathay e Bakter Brown Ex-oficiais da Frota Solar.

Garika e Hayda Duas moas que acreditam que devem odiar todos os seres humanos.

Lemmy Pert Que domina os doentes...

Gerpo-Kha Chefe de uma estao experimental secreta.

Kappak Agente dos aras.

Atlan O imortal, que vai verificar pessoalmente o que est acontecendo, quando a Frota recebe o sinal CQD.

PrefcioA busca da Pedra Filosofal, da essncia da vida ou, na expresso dos filsofos de Panderon, do caminho de fuga vinculao no-causal da existncia est em pleno andamento. Nenhuma riqueza material jamais conseguiu provocar uma atividade to febril, em um grupo de seres inteligentes como os vinte e cinco ativadores celulares. Trata-se de aparelhos que prolongam ao infinito a vida de quem os usa, e que o Ser de Peregrino espalhou pela Galxia, antes de sair de cena.

Seres pertencentes a todas as raas, espaonaves de todos os tipos percorrem as vias de navegao galctica e outras rotas, penetrando nas profundezas do espao desconhecido. Receptores dotados de todos os mecanismos imaginveis foram ajustados para a faixa de hiperfreqncia, em que se far ouvir a to ansiosamente esperada srie de impulsos breve-breve-longo-breve-breve, sempre que o aparelho receptor se aproximar a determinada distncia do lugar onde est escondido um ativador.

Da busca participam terranos e arcnidas, saltadores e acnidas, swoons e aras. So criminosos e pessoas honradas, homens decentes e indecentes. A nsia de alcanar a vida eterna no recua diante de nada e, para as pessoas honradas e decentes, torna-se mais difcil fazer jus boa fama de que gozam, quando constatam que algum chegou alguns dias, horas ou mesmo minutos antes deles.

At parece uma piada da Histria Csmica, mas o fato que nenhum fator fez avanar mais rapidamente a explorao dos espaos estelares desconhecidos que a febre de que foram atacadas as inteligncias da Via Lctea, quando tiveram conhecimento dos ativadores celulares espalhados pela Galxia.

1

Atrs de Marr Toss, a figura grosseira da Nova Brisbane erguia-se at a altura de trinta metros. Marr estava parado entre duas das amplas superfcies estabilizadoras de que a nave precisava quando percorria as atmosferas mais ou menos densas dos planetas. Por isso, a viso de Marr estava impedida tanto para a esquerda como para a direita. Em compensao, via acima de sua cabea o azul desbotado de um cu estranho e, frente, a alguma distncia, os contornos de uma cidade de cuja existncia o catlogo galctico das civilizaes no tomava conhecimento.

Entre ele e a cidade havia algumas pessoas, mais precisamente, trs. Eram humanides. Marr seria capaz de acreditar que fossem acnidas ou arcnidas, se os tivesse encontrado em outro lugar. O aspecto de duas dessas pessoas era bastante relaxado. As vestes pareciam ter sido talhadas de farrapos. Um deles caminhava com o auxlio de uma espcie de muleta primitiva, enquanto o outro exibia um hematoma verde-amarelado do lado direito da face. Por enquanto Marr no podia formar uma imagem precisa da terceira pessoa. Saiu de trs dos estabilizadores e viu que era uma mulher, ainda jovem. As vestes coloridas que usava pretendiam fazer as vezes de um uniforme.

De forma alguma Marr Toss teve a impresso de que o comit de recepo representasse uma ameaa. Mas o simples fato de que um comit desses existia num mundo que, segundo os catlogos, era desabitado e inexplorado, deixou-o desconfiado. Manteve a mo direita na altura do cinto e mostrava, a quem quisesse ver, que o polegar se encontrava a apenas cinco centmetros da coronha de sua arma de impulsos.

Agora, que as duas aletas de popa no impediam mais sua viso, Marr viu que a ampla rea gramada, em que a Nova Brisbane pousara, jazia calma e silenciosa sob os raios do mortio sol vermelho. Alm das trs criaturas esquisitas que se encontravam sua frente, no apareceu nenhum habitante desse mundo. A moa, que se mantinha a alguns metros dos dois doentes, estava encostada a um veculo parecido com um turbocarro antiquado. Provavelmente era isso mesmo. Ao verem que a nave se preparava para pousar, deviam ter vindo na cidade com aquilo.

Marr saiu andando. Como a gravitao fosse de apenas 0,89 G, seus passos foram um pouco grandes, mas conseguiu manter o equilbrio. Desde o incio deixou perfeitamente claro com quem desejava falar. Olhando para alm dos dois esfarrapados, fitava a moa. Quando Marr se aproximou, os dois homens afastaram-se, assustados, diante de seu vulto alto e espadado. Parou a dois metros da moa, fez uma ligeira mesura e disse:

Bom dia. Sinto-me muito feliz em ver uma... uma senhora por aqui.

Falou em intercosmo, que era a lngua na qual costumavam comunicar-se as raas de astronautas da Galxia.

A moa empertigou-se.

Ol, grandalho respondeu. No sei por quanto tempo se sentir feliz. Acontece que sou a polcia daqui.

Sou Marr Toss, do planeta Terra disse Marr. Quem dera que em toda parte a polcia fosse assim.

A moa tinha o tamanho que se espera ver numa moa. O uniforme fora feito por um alfaiate que no entendia nada do seu ofcio, mas isso no perturbava a impresso geral.

Tenente Garika de Nowhere disse ela, com a voz grave.

Marr deu uma risada.

Deveriam ter-nos avisado. Garika ficou zangada.

No temos transmissores! exclamou. Parece que o senhor gosta de divertir-se nossa custa, no mesmo?

Marr ergueu as mos.

Devagar, moa disse para tranqiliz-la. Nem desconfivamos de que...

No desconfiavam de qu!? gritou a moa. Ningum desconfia de nada. Joopa, Trepik, vamos trabalhar.

Marr virou-se. No deveria ter feito isso. Durante o movimento, um brao ligeiro estendeu-se em direo ao seu cinto. Antes que pudesse fazer qualquer coisa para impedir, a moa tirou-lhe a arma.

Vamos com calma! advertiu.

Os dois homens esfarrapados, que acabavam de ser chamados pelo nome de Joopa e Trepik, aproximaram-se.

O que que eles querem comigo? perguntou Marr.

Querem dar-lhe uma bofetada respondeu Garika, que se encontrava atrs dele.

Joopa e Trepik j se encontravam junto a Marr. Pelo que este pde ver, no usavam armas. Numa deciso rpida, Marr virou novamente a cabea de maneira a encarar a moa.

Entrego-me espontaneamente disse. Segure estes gorilas.

Que nada respondeu Garika, com um olhar chamejante. O senhor ser preso como manda o figurino.

Marr ouviu um chiado em cima de sua cabea e levou uma pancada no crnio. Curvou-se e procurou segurar-se em Garika. Mas esta empurrou-o com o joelho. Tombou. Alguma coisa pesada caiu violentamente em suas costas! Um dos dois homens esmurrava seu crnio...

Marr Toss comeou a sentir raiva. Ergueu-se subitamente sobre os joelhos. O esfarrapado que estivera sentado em suas costas foi atirado para longe. Marr levantou-se. Joopa ou Trepik estava sua frente. Apoiava-se sobre a perna sadia enquanto uma das mos brandia a muleta. Marr aparou o golpe, arrancou a muleta da mo do homem e bateu com ela em seu brao. O esfarrapado soltou um grito e saiu correndo.

O homem que estivera sentado nas costas de Marr no mais se interessou pelo prosseguimento da luta. Praguejou fortemente e correu aos tropeos atrs do companheiro.

Garika estava radiante.

Gostei de ver disse, dirigindo-se a Marr. Hoje em dia difcil encontrar algum que saiba lutar de verdade.

Marr mediu-a com os olhos.

A senhora uma bela polcia ironizou. Acho que sua tarefa consiste unicamente em fazer com que as pessoas batam umas nas outras, no mesmo?

Garika fez um gesto negativo.

Engano seu. Minha tarefa tambm consiste em prender o senhor e os outros tripulantes e lev-los cidade.

A expresso de seu rosto modificou-se de um instante para outro. A boca transformou-se num trao e as sobrancelhas subiram alguns milmetros. Os olhos pareciam ter escurecido um pouco. Marr sentiu-se fascinado diante da surpreendente mudana.

Chame os outros tripulantes! ordenou Garika.

Marr ainda no conseguiu levar o caso a srio. Levantou o brao esquerdo e falou em ingls para dentro do pequeno aparelho que trazia no pulso:

Ei, Bran, Bakter. Travem a nave e saiam. A situao por aqui est muito engraada.

A voz aguda de Bran respondeu:

Tem certeza, Marr? A arma que aponta para voc e o rosto da jovem me metem medo.

Marr deu uma risada.

No tenha medo. Venham logo.

Est bem respondeu Bakter, resmunguento como sempre. Mas quero que voc lhe diga que se no tiver bons modos levar um aperto...

Marr desligou e fitou a moa.

Acho que a senhora no entendeu o que acabo de...

No respondeu a moa em tom spero. Nem estou interessada.

Marr olhou para a arma. Era um tipo pesado. Apesar disso Garika a segurava firmemente, sem tremer.

Escute principiou. A senhora no pode...

Cale a boca! Quando quiser que o senhor me diga alguma coisa, avisarei.

Mar Toss calou-se. Estava perplexo. Aos poucos comeou a desconfiar de que aquilo talvez no fosse to engraado como supusera. Bran Cathay e Bakter Brown desceram pela rampa da nave. Bran caminhava ao modo apressado e nervoso que lhe era habitual, e que, de forma alguma, combinava com seu corpo atarracado, com o rosto vivo, com os olhos inteligentes e com a cabeleira loura. Bran no era muito alto, mas via-se a fora que estava encerrada em seu corpo.

Bakter Brown era bem diferente. Alto e magro, contemplava o mundo com uma expresso sombria. Os cabelos que lhe caam pela testa, at o nariz, constituam uma das suas caractersticas.

Bran bancava o chefe. Caminhou rapidamente em direo a Marr e moa, mas pareceu um tanto desconfiado. De repente Marr teve a impresso de que, se no agisse logo, nunca mais conseguiria salvar a situao. Quis dar um grito de alerta para Bran, mas Garika logo percebeu sua inteno. Cutucou-o fortemente com o cano da arma.

Silncio! chiou. Quem fala aqui sou eu.

Agiu com muita habilidade. Bran e Bakter no poderiam ter percebido o incidente. No se podia dizer que estivesse totalmente desprevenidos, mas o fato que no tiveram a necessria cautela e aproximaram-se o suficiente para que Garika os pudesse atingir perfeitamente, com a arma que trazia na mo.

Parem! ordenou com voz dura e penetrante. Soltem os cintos e deixem-nos cair.

Bakter fechou os olhos, pois no queria ver o resto do jogo pavoroso. Bran deu um passo indignado para a frente. No mesmo instante, um tiro de radiaes penetrou no cho bem sua frente, espalhando pedras incandescentes.

No faa isso! disse Garika, com a maior tranqilidade.

O resto foi fcil. At mesmo uma criana compreenderia que todas as vantagens estavam do lado da moa. Bran e Bakter soltaram os cintos e deixaram-nos cair juntamente com as armas. Garika chamou seus dois ajudantes esfarrapados, que saram de trs da nave, local onde se esconderam. Pegaram os cintos e entraram no turbocarro. Garika mandou que os prisioneiros tambm entrassem. Sentou-se junto direo. Enquanto o veculo arrancava com um ligeiro zumbido dos turbo-propulsores, Joopa e Trepik seguravam as armas de que acabavam de apoderar-se e cuidavam para que os terranos no fizessem nenhuma tolice.

Marr Toss no conseguia livrar-se da impresso de que cometera uma idiotice.

* * *

Vista de perto, a cidade era muito menos impressionante do que do local em que pousara a Nova Brisbane. Quase se poderia dizer que a nica coisa que realmente impressionava era o fato de que, em pleno sculo vinte e quatro do calendrio terrano, ainda existia, num mundo que s podia ser alcanado por meio das conquistas da civilizao moderna, um conglomerado de feira arquitetnica e falta de higiene como aquele.

Evidentemente as ruas s haviam sido abertas depois de construdas as casas dos nativos. No havia calamento ou outro tipo de pavimento. Uma confuso de trilhas serpeava entre as casas construdas ao acaso. As prprias casas eram uma coisa impressionante. Em sua construo haviam sido utilizadas todas as espcies de materiais, desde as superfolhas de plstico de computadores positrnicos ultramodernos at as folhas finssimas e que estavam impressas as edies interestelares dos jornais. O nico aspecto favorvel das construes era o fato de serem bastante prticas...

O trfego nas ruas era principalmente de pedestres. Todos pareciam ter algum defeito fsico.

Marr viu gente cega, sem braos ou pernas, alguns que cambaleavam e gritavam e muita gente com pstulas. Sempre que Garika se aproximava com o turbocarro, eles paravam, sacudiam as muletas ou outros objetos que traziam nas mos e comeavam a gritar. Uns gritavam de entusiasmo, conforme constatou Marr Toss na passagem, e outros de raiva. Ao que parecia, o poder representado pelo uniforme de Garika provocava sentimentos divergentes.

Marr descobriu alguns no-humanides entre os transeuntes. Havia criaturas esfricas de Kolaal seres cinza-azulados, feitos de uma substncia carnosa balofa que se mantinham num movimento ininterrupto. Viu uma poro de bastes deslizantes. Eram seres em forma de estaca vindos de Akkadia, que tinham na parte inferior do corpo milhares de rgos de locomoo em forma de grossos fios e pareciam planar junto ao solo. Havia ainda seres de outras raas, dos quais Marr nunca ouvira falar.

De vez em quando pessoas que usavam o mesmo uniforme de Garika apareciam na beira da rua. Marr s viu duas mulheres. Ao contrrio dos outros habitantes do planeta, caminhavam bem eretos, no tinham manchas no rosto e pareciam sadios. Geralmente cumprimentavam Garika com gestos ligeiros. Alguns estavam to absortos em observar alguma briga que nem notavam a passagem do turbocarro.

Marr Toss teve certeza de uma coisa: a polcia da cidade no fora criada para manter a ordem. S o diabo sabia qual seria sua tarefa.

Ao lembrar-se de que procurara encontrar dados sobre o grande sol vermelho e seu sistema planetrio, em todos os catlogos existentes a bordo da Nova Brisbane, Marr sacudiu a cabea. Nas respectivas coordenadas, apenas fora feita uma anotao: o astro central do sistema era uma estrela Z-5, que possua cinco planetas. No havia outras informaes sobre o sistema.

Concluiu que no catlogo havia um lapso... Por ali havia humanos! Pelo tamanho a cidade parecia ter de trinta a cinqenta mil habitantes. Como e para que haviam chegado at aqui? E o que faziam neste planeta?

De repente Marr teve uma idia. Como que ele, Bran e Bakter haviam vindo parar ali? O que vieram fazer? A explicao era simples. Marr Toss, Bran Cathay e Bakter Brown eram ex-oficiais da Frota Imperial. Graas ao seu amplo relacionamento haviam conseguido, depois de terem dado baixa do servio ativo, adquirir uma pequena espaonave em condies bastante favorveis. Ainda chegaram em tempo para participar, com alguma chance de sucesso, da caada geral aos ativadores celulares, da busca da vida eterna. Batizaram sua nave com o nome Nova Brisbane e iniciaram sua viagem pelo espao. Estavam vagando h alguns meses, sem rumo, j que os ativadores celulares haviam sido espalhados sem um esquema definido. Um belo dia ouviram a seqncia de impulsos em seus receptores: breve-breve-longo-breve-breve. Fizeram a determinao goniomtrica da posio do transmissor e foram parar no lugar em que se encontravam. Esperavam pousar num mundo desabitado. No entanto, o lugar estava repleto de seres de vrias raas. Ao que parecia, no se costumava demonstrar muita boa vontade para com os recm-chegados. Ser que isso acontecia por causa do ativador? Teriam todos esses seres vindo para procurar o aparelho?

Marr logo abandonou a idia. Muitas das casas eram bem mais velhas que todo esse movimento originalizado pela busca da vida eterna. O mundo em que se encontravam fora colonizado muito antes que a Galxia tivesse conhecimento da fuga do Ser de Peregrino.

Garika mencionara um nome! Como costumava ser chamado este mundo? Marr refletiu por algum tempo e lembrou-se.

Nowhere!, concluiu mentalmente. Essa gente no parece ser muito otimista.* * *

Marr viu que na cidade havia alguns edifcios de boa altura. Ficavam na rea central e, ao que parecia, haviam sido construdos todos ao mesmo tempo e segundo um modelo uniforme. Estavam dispostos em torno de um quadrado de cerca de cem metros de lado. Nos fundos dos edifcios devia haver uma rea interna, que no se via do lado de fora. Os edifcios tinham trs andares. Na opinio de Marr abrigavam os servios administrativos.

Garika parou frente de um desses edifcios. Desceu e, por meio de gestos eloqentes, ordenou aos prisioneiros que tambm descessem. Apontou o cano da arma para a porta central do edifcio. Marr hesitou antes de obedecer. Bran e Bakter mantiveram-se logo atrs dele.

Voc nos meteu numa boa cochichou Bran.

Sei disso respondeu Marr, em voz baixa. No acreditava que a moa estivesse falando srio. Temos de encontrar um meio de sair daqui. Vamos aproveitar qualquer oportunidade que se oferea. Se conseguirmos pr as mos numa arma, poderemos enfrentar essa gente.

Antes que Marr atingisse a porta, esta abriu-se. Duas pessoas de armas apontadas mantinham-se na sombra da entrada. Uma dessas pessoas era uma mulher. Marr fitou-a. Tinha uns trinta ou quarenta anos. No era muito bonita, mas interessante. Parecia nem enxergar Marr e seus acompanhantes. Olhou para o lugar em que estava Garika. Esta ergueu a mo livre e fez um sinal.

Estamos de volta! exclamou. E conseguimos uma boa presa.

Marr no viu mais nada. Algum agarrou-o pelo ombro e arrastou-o para dentro do edifcio.

De ambos os lados havia portas abertas.

Joopa, Trepik e mais dois outros obrigaram-nos a passar por uma dessas portas. Entraram num recinto de cinco por sete metros. O sol espalhava uma luz mortia, depois de atravessar uma janela incrivelmente suja. Logo abaixo da janela havia uma espcie de balco, junto parede. Atrs desse balco estavam sentados trs homens. O balco e as peas sobre as quais os homens estavam sentados formavam o nico mobilirio. Nem sequer havia uma lmpada.

A porta fechou-se ruidosamente. Marr virou a cabea e viu que Garika tambm havia entrado. Procurou encontrar seu olhar. Garika fitou-o por uma frao de segundo, mas logo olhou intensamente para o balco.

A audincia est aberta! disse um dos homens que se encontravam atrs do balco.

Marr examinou-o. Era difcil calcular sua idade. Era terrano ou arcnida. As pessoas que se encontravam em torno eram baixas e gordas.

Lanthanon, concluiu Marr, o cadinho das raas galcticas, o centro de recrutamento da organizao policial interestelar!Os dois homens que se encontravam ali provavelmente tinham sangue saltador, arcnida, acnida, ara e terrano em propores idnticas.

No h dvida quanto matria de fato continuou a ranger a voz do arco-terrano. Os acusados pousaram ilegalmente neste mundo. Segundo o artigo 15, inciso quatro, da Constituio, este delito punido com a privao da liberdade at a morte, ou melhor, at a soluo final. Alm disso, o veculo dos acusados ser confiscado pelo Estado. A audincia est encerrada.

Foi o julgamento sumrio mais rpido de que j ouvi falar, constatou Marr, mentalmente.

Avanou em direo ao balco. Como Joopa no quisesse sair do seu caminho, empurrou-o com o ombro. Parou frente do balco. O homem que se encontrava no centro estava a menos de metro e meio de distncia.

Que audincia foi essa? perguntou Marr.

O arco-terrano parecia irritado. As sobrancelhas contraram-se sob a testa baixa.

Foi uma audincia do Supremo Tribunal de Nowhere respondeu o homem sua frente.

Ah, ? Onde est meu defensor?

No existe nenhum defensor.

Quer dizer que sua opinio a nica que vale, no ?

O homem de cabelos grisalhos e sobrancelhas hirsutas fez que sim.

Perfeitamente confirmou. Minha opinio e a dos meus pares.

Com um gesto ligeiro apontou para a esquerda e a direita.

Sua legislao considera a Declarao dos Direitos dos Seres, promulgada pela Aliana Galctica h...

S quando isso nos convm respondeu o grisalho, com a maior tranqilidade. No presente caso, achamos recomendvel restringir sua liberdade pessoal e confiscar a nave em que vieram. Na verdade, no estamos muito interessados em que os senhores sejam livres ou no. O fato que precisamos de sua nave e queremos ter certeza de que no nos causaro problemas.

De repente uma centelha surgiu na mente de Marr. Refletiu por alguns segundos sobre a idia que acabara de ter.

Os senhores foram largados aqui, no mesmo? perguntou. E no lhes deixaram nenhum veculo. Apenas lhes forneceram algumas ferramentas antiquadas, para garantir sua sobrevivncia, mas no lhes deram nenhuma espaonave que lhes permitisse sair de Nowhere.

mais ou menos isso confessou o arco-terrano.

Por que recorrem a esses mtodos para conseguir uma nave? Por que no procuram chegar a um entendimento conosco e...

O grisalho inclinou-se para a frente.

Escute a! disse em tom irritado. Deixem que ns mesmos pensemos quando preciso. Temos nossos mtodos. O senhor s tem direito de ouvir e obedecer.

Voltou a endireitar o corpo e gritou:

Levem-nos!

Marr Toss resolveu que, dali em diante, levaria as coisas a srio. Virou-se. Joopa e Trepik aproximaram-se. Um dos homens que os recebera na entrada do edifcio afastou-se, a fim de ter uma boa viso da cena. As duas mulheres mantinham-se encostadas parede e desempenhavam apenas o papel de espectadoras.

Eles precisam da nave, pensou Marr. Ns tambm precisamos. Mas se no conseguirmos fugir, ento...Nesse instante Trepik fez uma tolice. Colocou-se frente de Marr de tal forma, que o terrano ficou protegido contra as armas das outras pessoas que se encontravam presentes. Para um homem forte, isso no seria um erro imperdovel. Acontece que os movimentos de Trepik eram embaraados pela muleta. Mantinha a arma apontada para Marr, mas este sabia como domin-lo.

Fez de conta que tropeou. Falando por entre os dentes, disse alguma coisa que parecia ser uma praga, mas que na realidade soava como quem diz: Ateno!Durante a queda avanou rapidamente a perna esquerda e afastou a muleta de Trepik, que dobrou os joelhos. Marr levantou-se num instante. Quando estava novamente de p, segurava a arma de Trepik. Bran e Bakter tambm se haviam mexido. Assustados com o grito de Trepik, Joopa e o terceiro homem esqueceram por um segundo as cautelas que deveriam tomar. Bakter correu para o terceiro homem e tomou-lhe a arma. Bran cuidou de Joopa, empurrando-o de encontro ao balco. Segurou-o pelo ombro e fez girar seu corpo. Num movimento muito rpido pegou a arma com a mo esquerda, enquanto com a direita dava um soco em Joopa.

Com um olhar instantneo Marr controlou a situao. As duas mulheres continuavam imveis.

Vamos sair daqui! disse, ofegante. Bakter foi o primeiro a chegar porta.

Marr viu-o mexer na fechadura.

Arrombe-a! disse.

Bakter recuou dois passos e esteve a ponto de investir com o corpo contra a porta. De repente um lampejo ofuscante cruzou o campo de viso de Marr. Bakter caiu ao cho. Marr fechou os olhos.

Chega! rangeu a voz do arco-terrano. Larguem as armas!

Marr ouviu um zumbido nos ouvidos. Fora tudo muito rpido. Teve de refletir para compreender o que acontecera. No se lembrara dos trs juzes. Acreditara que no estivessem armados. Como pudera ser to estpido! Um deles acabara de matar Bakter.

Marr abriu os dedos e deixou cair a arma. Virou-se. Ningum o impediu de caminhar pesadamente em direo ao balco. Quando chegou l, estacou exatamente no mesmo lugar em que parar antes.

Foi o senhor que o matou? perguntou, dirigindo-se ao grisalho.

Marr fitou o homem como se quisesse hipnotiz-lo. O grisalho no fez o menor movimento.

Qual seu nome? perguntou Marr.

O arco-terrano movimentou-se. Empurrou a mo que segurava a arma at a borda do balco e inclinou-se para a frente. Comeou a gritar para Marr:

Meu nome Lemmy Pert! Matei seu companheiro porque vocs precisam saber que ns mandamos em Nowhere. Entendido? s isso, seu terrano fanfarro? Ou quer saber mais alguma coisa?

Marr conseguiu manter-se bem calmo. Recuou um passo.

s, Lemmy... Preste ateno, Lemmy! Olhe! No mexa na arma, pois no vou fazer-lhe nada.

Levantou a mo direita para que o grisalho visse o vistoso anel que trazia no dedo mdio.

Voc queria uma nave, no mesmo, Lemmy? Voc sabe perfeitamente que nossa nave pode transportar no mximo umas cinco ou seis pessoas. Quer dizer que voc fugiria com alguns amigos, abandonando os outros. Seus planos eram estes, no eram, Lemmy?

Abriu os dedos e colocou o polegar sobre a superfcie sextavada do anel.

Seus planos vo desmanchar-se, Lemmy. Preste ateno!

Os olhos do arco-terrano acompanharam todos os movimentos dos dedos de Marr. Com uma expresso de perplexidade fitou a mo de Marr, que pairava imvel. A unha do polegar embranqueceu sob o efeito da presso exercida sobre o anel.

As janelas tilintaram. Lemmy estremeceu. Ouviu-se um trovejar. O cho comeou a tremer. O rudo cresceu e terminou num forte estrondo.

Marr baixou a mo.

Foi sua nave, Lemmy disse em tom tranqilo. Ficou sem propulsor, e aquilo que sobrou do casco no lhe servir para muita coisa.

Lemmy Pert empalideceu. Continuava sentado atrs do balco. Estava muito espantado, paralisado. Depois de algum tempo soltou um suspiro. Pareceu animar-se de novo. Num movimento lento, como se a arma fosse muito pesada, levantou a mo.

Voc vai pagar pelo que fez, terrano! cochichou lentamente, como se estivesse falando uma lngua estranha.

Marr viu a abertura afunilada do cano da arma.

Pare!

O grito ressoou pelo recinto. O cano da arma desviou-se para o lado. Marr j no podia ver a abertura afunilada. Levantou os olhos. O homem gordo que se encontrava direita de Lemmy levantou-se de um salto.

Guarde isso, Lemmy! disse num chiado.

Lemmy parecia estupefato. Apesar disso baixou a arma, fazendo com que desaparecesse atrs do balco.

Voc sabe perfeitamente por que estou dizendo isso, Lemmy! esbravejou o homem gordo. Os trs terranos que entraram aqui so os primeiros homens que vieram a este planeta, nos ltimos vinte ou vinte e cinco anos. No temos mais escravos. Os homens que vez por outra so condenados a penas privativas de liberdade j no interessam aos cidados. O que mais precisamos de sangue novo. E voc quer mat-los...? O que pensa que diro as pessoas que se encontram l fora?

Fez um gesto violento em direo janela.

Ao que parecia, Lemmy Pert estava com uma resposta spera na ponta da lngua, mas no ltimo instante resolveu aceitar a sugesto.

Acho que voc tem razo disse. Leve-os.

Um momento! protestou Marr. Ouvi falar em escravos. isso que vem a ser a pena privativa da liberdade?

Um sorriso odiento surgiu no rosto de Lemmy Pert.

Isso mesmo. Sabe a quem dei vocs?

No. Diga quem , Lemmy.

A Garika.

Marr assustou-se. Pelo que vira e pelas experincias que fizera com essa mulher, esta no seria uma dona muito complacente. Virou-se. Garika estava parada junto parede, com a arma apontada.

Marr acenou a cabea em direo ao homem gordo que lhe salvara a vida.

Seus motivos talvez no tenham sido muito humanitrios, Kappak disse com a voz tranqila. Apesar disso fico-lhe agradecido.

Depois disso virou ligeiramente a cabea e fitou Lemmy Pert bem nos olhos. No se apressou e obrigou o grisalho a retribuir seu olhar.

Finalmente disse:

Oportunamente voltaremos a conversar, Lemmy... sobre Bakter!

2

Joopa e Trepik tiraram de algum lugar fitas de plstico azul. Marr e Bran foram obrigados a coloc-las nos braos. Garika dignou-se a ligar pessoalmente essas faixas manga do seu uniforme por meio de um pequeno aparelho que, segundo parecia, sempre portava. No havia como soltar as faixas. O nico meio de livrar-se delas seria tirar a parte superior do uniforme.

O carro em que tinham vindo parecia pertencer a Garika. Ao menos esta mandou que voltassem a entrar nele, mantendo uma vigilncia rigorosa sobre os prisioneiros. Pediu para que a outra mulher uniformizada que se encontrava ali tambm entrasse, e ps o veculo em movimento. Marr resolveu gravar o caminho na memria para que, se necessrio, pudesse orientar-se na cidade. Mas mal o carro se ps em movimento, aconteceu alguma coisa que lhe fez esquecer seus planos...

As pessoas que se encontravam na rua viram as faixas azuis em seus braos. Marr j chegara concluso de que estas eram o marco caracterstico dos escravos, mas no contava com a reao que viu nos transeuntes. As pessoas paravam. Seus rostos exprimiam uma enorme surpresa. Por alguns segundos pareciam imobilizadas, mas depois disso agitavam os braos e punham-se a gritar. A novidade espalhou-se com a velocidade do vento.

Escravos! Temos dois escravos!

Marr no compreendeu o motivo daquele nervosismo. Devia haver alguma coisa na vida dos escravos de que nem desconfiava. E, a concluir pelas experincias j feitas, devia ser uma coisa nada agradvel. Inclinou-se para a frente a fim de perguntar a Garika, mas esta parecia julg-lo indigno de uma resposta. Fez como se no o tivesse ouvido. Marr desistiu.

Parece que as coisas no esto nada boas observou Bran, em tom nervoso. Por que esto to contentes?

Marr manteve-se calado. A multido que se comprimia beira do passeio tornava-se cada vez mais compacta. A gritaria aumentou.

Garika seguia calmamente seu caminho pelas ruas angulosas da estranha cidade, como se no tivesse nada a ver com o tumulto. Finalmente parou frente de uma construo, que parecia mais slida e conservada que as que Marr havia visto antes.

A outra mulher saltou do carro antes que Garika parasse de vez. A massa de curiosos comprimiu-se atrs dela. A moa barrou-lhes o caminho. Segurava uma pequena arma e, quando a apontou para as fileiras das pessoas que gritavam ininterruptamente, a marcha deteve-se de repente. O barulho diminuiu e Marr ouviu a moa gritar:

Vo para casa! Temos dois escravos novos e agiremos com eles conforme manda a lei! Para trs!

Fez um disparo de advertncia por cima da multido. Os que se encontravam na frente viraram-se e bateram em retirada. A multido dissolveu-se. Dali a alguns minutos, a rua ficou vazia.

Desam do carro! ordenou a voz grave de Garika.

Marr saltou.

Que lei esta? perguntou. Garika no respondeu.

Caminhe minha frente!

Marr ficou parado. Sabia que Garika no o mataria. Pretendia fazer com ele e com Bran uma coisa to importante, que at levara Lemmy Pert a dominar o impulso de mat-lo...

Pouco me importa o que a senhora esteja pensando resmungou Marr, em tom zangado. S sairei daqui quando souber o que h por trs disso.

Garika estava parada s suas costas. Ele no podia ver o que ela estava fazendo. Entesou o corpo, espera de um tiro. Mas Garika no atirou. Marr ouviu os passos leves com que se aproximou dele. Fitou-a de frente. Em seus olhos havia uma raiva incontida.

O senhor meu escravo! chiou, furiosa. S fale quando eu mandar. Antes disso, no. Muito menos pode ter o atrevimento de querer obrigar-me a dizer alguma coisa. Entendido? Vamos logo! Ande!

Marr hesitou um pouco, mas acabou fazendo o que a mulher queria. Foi caminhando em direo entrada. Bran Cathay mantinha-se a seu lado. Naturalmente a construo no possua porta automtica, do tipo que se abre quando algum chega perto. O grupo parou. A acompanhante de Garika cuidou dos escravos, enquanto esta abria a porta.

Passe diretamente ordenou a moa. Saia pela porta dos fundos e v ao ptio.

Atrs da porta havia um corredor largo. De ambos os lados, havia brechas irregulares nas paredes. Ao passar, Marr viu vrias salas que o deixaram espantado pelas instalaes ricas e pelo bom gosto da decorao. Ficou pensando sobre Garika, enquanto Bran Cathay, que caminhava sua frente, sacudia a fechadura automtica da porta dos fundos, tentando abri-la.

Admitindo que a casa tivesse sido construda por Garika, naturalmente com o auxlio de algum, e fosse mantida em condies por ela, e ainda admitindo que a decorao das diversas peas, especialmente a idia bsica de sua decorao, tambm vinha dela, se poderia concluir que Garika era uma moa decidida e obstinada. Mas, por outro lado, no deixava de ser uma pessoa normal e tratvel. Por que se teria transformado na pessoa dura e cnica que passara a ser?

Finalmente Bran conseguiu abrir a porta. Saram para um ptio quadrado, cercado pela casa e por trs trechos de muro de mais de dois metros de altura. O cho era liso e vazio. No se via nenhum objeto no ptio, nenhuma indicao da finalidade que preenchia.

Continuem! ordenou Garika. Para a parede oposta.

Marr e Bran obedeceram. Tiveram de virar-se e viram Garika parada na porta, com a arma na mo.

Vocs ficaro aqui at que chegue a hora disse a moa. Recebero alimento duas vezes por dia. No pensem em fugir.

Levantou a mo e apontou com a arma para as cumeadas do muro.

A tecnologia de Nowhere no muito avanada, mas capaz de instalar uma rede de alta-tenso. Alm disso solicitei proteo policial. No ficarei s na minha casa. Fiquem quietos, e nada lhes acontecer. As noites so quentes; vocs no sentiro frio.

Por um instante deu mostras de ser uma jovem perfeitamente normal. Mas, de repente, pareceu lembrar-se do papel que devia desempenhar, e acrescentou:

Pelo menos at que chegue a hora... Bateu ruidosamente a porta.

Marr sentou no cho.

Bem examinadas as coisas disse os resultados que alcanamos em Nowhere no so muito brilhantes. Para dizer a verdade, apenas localizamos Nowhere e pousamos no planeta; de resto, no conseguimos absolutamente nada.

Bran Cathay estava encostado ao muro, perto dele.

Alm disso afirmou talvez teria sido melhor se tivssemos ficado em casa. Nesse caso pelo menos ainda teramos o dinheiro gasto com a Nova Brisbane.

Pois bem disse Marr. isso a. Ficamos sem nave e fomos privados da liberdade de ir e vir. E temos pela frente alguma coisa da qual, por enquanto, s sabemos que no ser nada agradvel. S nos resta encontrar um meio de produzir uma modificao radical na situao.

Bran fitou os muros com uma expresso de desconfiana.

Vamos fazer um reconhecimento do terreno sugeriu.

* * *

Minutos depois, chegaram concluso de que havia quatro perguntas que tinham de ser respondidas o quando antes. E uma dessas quatro perguntas tinha prioridade absoluta sobre as outras: O que os habitantes de Nowhere pretendiam fazer com eles?

As outras perguntas eram as seguintes:

Como surgira a civilizao artificial de Nowhere? Onde estava o ativador celular, cujos sinais haviam seguido? E finalmente: Como fariam para sair de Nowhere?

Chegaram, ainda, concluso de que seria intil tentar a fuga. O que os assustava no era tanto a rede de alta-tenso e as outras precaues que Garika poderia ter tomado, mas antes o fato de que eram escravos, e que os habitantes de Nowhere s Deus sabia por qu jamais deixavam ou deixariam escapar um escravo.

Havia outro modo de modificar a situao, se bem que as possibilidades de xito eram bastante restritas. Marr Toss constatou que as chances chegavam a ser miserveis. Mas sempre era prefervel assumir logo um risco a manterem-se inativos, espera de que fizessem o que tinham em mente, porque, depois disso, provavelmente no teriam mais a menor liberdade de ao.

O plano era simples. Procurariam dominar Garika, para obrig-la a ajud-los a fugir em segurana ou conceder-lhes o status de cidados livres. Alm disso pretendiam formular algumas perguntas a Garika, a fim de adquirir a certeza sobre certas coisas que permaneciam bastante obscuras.

Provavelmente, ao dizer que no ficaria s, Garika no cometera nenhum exagero.

Restava saber quantos guardas teria consigo. Alm disso precisariam saber onde ficava o gerador de alta-tenso que forneceria a energia para a rede. Uma coisa era certa: o nico caminho de fuga, que oferecia alguma possibilidade de xito, era por cima do muro. Se tentassem abrir a fechadura da porta, fariam muito barulho. No possuam ferramentas que lhes permitissem abrir uma fechadura trancada, enquanto estavam em condies de neutralizar o perigo representado por uma rede de alta-tenso. Alm disso, o fato de que ningum contaria com a possibilidade deles tentarem a fuga por cima do muro tambm representava uma vantagem. Para os habitantes de Nowhere, uma barreira formada por uma srie de fios de alta-tenso representava uma coisa totalmente confivel. Se Garika mantinha guardas no local, estes ficariam de olho na porta dos fundos.

Talvez o gerador tivesse sido colocado num lugar que Garika ou os guardas vigiavam ininterruptamente. O corte da corrente no deixaria de ser notado. Restava saber se a reao seria muito rpida. Se ligassem imediatamente a falta da corrente com uma tentativa de fuga, a situao poderia tornar-se crtica. Nesse caso no haveria tempo de penetrar na casa, usando a porta da frente, que no costumava ser trancada.

Era um risco que tinham de assumir. No havia outra alternativa.

Antes de tentar a fuga, teriam de fazer alguns preparativos. Resolveram esperar at que escurecesse. A parede dos fundos da casa no possua nenhuma abertura, com exceo da porta compacta. Mas Marr no acreditava que Garika no tivesse nenhuma possibilidade de observar o ptio. Talvez houvesse uma viseira escondida no telhado, ou uma teleobjetiva.

Deram aos seus rostos a expresso de quem est conformado com o destino, e esperaram que o dia chegasse ao fim.

Depois de algumas horas que pareciam no querer terminar nunca, o sol vermelho desapareceu atrs do muro.

* * *

Tiraram as blusas do uniforme e estavam fazendo o possvel para soltar as trilhas dos botes. Cada uma delas era formada por uma fita de plstico reforada por fios metlicos, soldadas aos fortes botes atravs do tecido do uniforme. Era fcil tirar a trilha propriamente dita, mas a retirada dos fios metlicos era mais trabalhosa do que Marr supusera. As blusas estavam perto deles, para que pudessem vesti-las num instante, caso surgisse um rudo junto porta. Garika ainda no lhes havia mandado nenhum alimento. Marr e Bran agiram assim recordando-se que ela poderia cumprir a promessa, mandando algum alimento, e ento a tentativa de fuga seria descoberta.

Levaram duas horas para desprender os fios metlicos e uni-los, formando um s cabo. Tinham necessidade premente de realizar tal trabalho. Ao pensar na possibilidade de o mesmo esquentar e queimar-se antes de provocar maiores danos nos fios de alta-tenso, Marr no se sentiu nada vontade. Precisariam de mais um fio, porm as trilhas dos botes no possuam outros. Todo o metal fora utilizado no fio maior que acabavam de formar. Seu comprimento bastava para cobrir a distncia do cho at o topo do muro e ultrapass-lo. Talvez o gerador fosse de um tipo constitudo exclusivamente para produzir uma tenso muito elevada, possuindo uma capacidade reduzida...

Vamos logo! O que est esperando? perguntou Bran, impaciente.

Marr reprimiu o medo, olhou cuidadosamente para cima, pesou o cabo na mo, e arremessou-o na direo do topo do muro. Viu-o baixar por sobre o paredo luz difusa das estrelas. Soltou-o e esperou. Manteve os olhos semicerrados, para no ser ofuscado quando o metal entrasse em incandescncia. Mas no aconteceu nada. Uma das pontas do fio estava pousada no topo do muro. Face rigidez do metal, o fio formava um arco por cima do paredo, sem toc-lo. Marr no sabia qual era o obstculo que o prendia. Mas tinha certeza de que no estava havendo contato.

Abaixou-se e juntou um pouco de areia. Atirou-a para o alto. Alguns gros atingiram o cabo e fizeram-no balanar. Marr repetiu a tentativa. Bran ajudou. O cabo comeou a descrever movimentos pendulares, como se estivesse sendo atingido por uma forte ventania. Finalmente Marr conseguiu atingi-lo, fazendo com que o arco causado pela rigidez do material virasse para baixo. Caiu sobre a borda do muro. No mesmo instante, um fogo de artifcio comeou a chiar. Fagulhas choveram sobre os dois homens. Marr estendeu os braos e, assim que o fogo de artifcio se apagou, deu um salto atltico, agarrou a borda do muro e puxou-se para cima.

O cabo continuava no mesmo lugar. Tocava o muro em vrios lugares, enquanto a outra ponta estava presa a uma confuso de fios que, at poucos segundos antes, fora a rede de alta-tenso de Garika. Os fios no desprendiam mais nenhuma fagulha. Estava tudo quieto. O equipamento fora desligado ou danificado...

Marr ajudou Bran a subir. Com alguns pontaps removeram a confuso de fios. O topo do muro tinha cerca de dois metros de largura. Era muita coisa para um simples muro de quintal. Os fios de alta-tenso no revelavam uma tcnica muito avanada, mas haviam sido dispostos de tal maneira, que qualquer pessoa que tentasse fugir forosamente entraria em contato com os mesmos.

Marr rastejou at a borda do muro e espiou para a semi-escurido. No ouviu nenhum rudo. No havia o menor indcio de que Garika tivesse postado guardas em torno do muro. Marr saltou do muro e esperou alguns segundos. Como tudo continuasse em silncio, Bran seguiu-o. Foram avanando junto parede da casa, at chegarem ao canto atrs do qual ficava a porta da frente. Bran apontou para uma sombra que estava parada frente da casa.

E o carro cochichou. Ser que no deveramos peg-lo?

Marr teve suas dvidas. De posse de um turbocarro, poderiam chegar rapidamente a um ponto bem distante da cidade. Era possvel que os habitantes de outras cidades fossem mais amistosos. Acontecia que um turbocarro dependia de combustvel. Conforme haviam observado antes do pouso, grandes extenses de Nowhere estavam cobertas de matas. Sem armas e combustvel estariam praticamente perdidos. No se sabia que tipos de animais existiam nas selvas do planeta.

No, Bran respondeu Marr. Isso no nos levaria muito longe.

Avanaram silenciosamente at a porta. Marr constatou que, conforme esperara, no estava trancada. Girou o boto e abriu uma fresta. Uma luz mortia caa no corredor. Marr ouviu vozes pouco distintas.

Entrou rapidamente. Bran seguiu-o. Voltou a fechar cuidadosamente a porta. No houve o menor rudo. Marr no demorou a orientar-se na casa. Havia pelo menos trs pessoas que conversavam nas peas dos fundos. Marr reconheceu a voz grave de Garika, a voz cristalina de sua companheira e a fala de um homem.

Enquanto Marr avanava cuidadosamente pelo corredor, Bran permaneceu junto porta. Parou junto abertura pela qual estava saindo a luz. Orientou-se pelo som sobre a situao no interior do recinto. O homem devia estar bem perto dele. As duas mulheres provavelmente estavam sentadas ou de p junto parede oposta. Agindo com a maior cautela, Marr comeou a avanar a cabea. Depois de algum tempo conseguiu ver o que havia no interior do recinto.

No se enganara. O homem estava a menos de um metro, de costas para o corredor. Encobria a amiga de Garika. A prpria Garika estava acomodada numa confortvel poltrona. Segurava um copo e no dava a menor ateno ao visitante. Olhava para o cho. Marr sentiu-se muito satisfeito por isso.

O homem que se encontrava sua frente parecia ser muito robusto. Marr no poderia arriscar uma luta. No era que temesse o resultado. Estava em condies de enfrentar o adversrio. Mas, antes que conseguisse domin-lo, Garika e a outra moa pegariam em armas. Seria o fim.

Marr procurou localizar as pistolas. No as viu. O homem que se encontrava sua frente no parecia estar armado. Marr no se sentiu muito vontade. Era possvel que Garika tivesse guardado sua arma do outro lado da poltrona. Em vez de entregar-se, inclinaria o corpo para o lado, pegaria a pistola e o mataria. No poderia tirar os olhos dela.

Ouviu o homem dizer:

Com essa teimosia, vocs no iro muito longe. Os habitantes desta cidade tm o direito de ser bem tratados. O que...

Garika interrompeu-o sem levantar os olhos.

Unimo-nos s foras policiais. s o que fazemos nesta cidade. Viemos para Nowhere contra a vontade e ningum poder obrigar-nos a ver nos habitantes da cidade outra coisa do que realmente so: pessoas doentes, aleijadas, malucas.

No seja to arrogante, minha filha! respondeu o homem em tom exaltado. Nossa situao no melhor que a sua. Tambm no viemos para c de livre e espontnea vontade. Vocs sabem o que aconteceu. Estamos...

E da? Quer que sinta pena de vocs? perguntou Garika, em tom de deboche. V embora, Fordan, voc um chato.

Marr no queria ouvir mais nada.

Deu um passo rpido e silencioso e colocou-se logo atrs do homem de ombros largos, que estava levantando os braos e cerrando os punhos. Antes que Fordan tivesse tempo de responder s palavras de Garika, Marr ergueu ambos os braos e o golpeou bem embaixo do queixo. Fordan soltou um ligeiro suspiro e caiu pesadamente ao cho.

Marr no perdeu tempo com ele. Passou por cima do homem inconsciente e penetrou na ampla sala. S parou quando se encontrava a apenas trs passos de Garika e da outra moa. Podia ficar de olho nelas e cair sobre qualquer uma que quisesse pegar uma arma escondida.

A moa sua esquerda fitou-o, estupefata.

Garika apenas avanou um pouco em sua poltrona e fitou Marr com os olhos semicerrados.

Silncio! ordenou Marr. Ningum lhes far nada.

Sem tirar os olhos de Garika, ps as mos no tecido do estofamento e arrancou alguns pedaos. No levou mais de um minuto para amarrar a moa rgida de pavor, de tal forma que ela no poderia pegar numa arma.

Onde est seu amigo? perguntou Garika, de repente.

Estava completamente recuperada da surpresa. Marr fitou-a. Estava fascinado.

Preferiu ficar no ptio mentiu, no as fitando. No teve coragem para escalar o muro.

Garika tirou uma das mos do copo e fez um gesto de desprezo.

Ento tambm um desses tipos disse em tom de deboche. O que pretende fazer, garoto?

Quero saber que tolice essa que pretendem fazer conosco. Quando descobrir, provavelmente desaparecerei o quanto antes. Para isso preciso do seu auxlio.

Garika acenou com a cabea. Aquilo parecia diverti-la.

Como pode ter certeza de que no recusarei esse auxlio?

Marr sorriu.

Na minha terra comeou os homens tm muitas possibilidades de obrigar uma mulher rebelde a fazer o que querem. Especialmente quando se trata de uma mulher como voc.

Garika soltou um suspiro.

Que mundo esse? Vai levar-me para l?

A inteligncia de Marr deu o alarma. Ser que Garika no tinha outra coisa a fazer, seno entreter-se com uma conversa zombeteira com um escravo? Quais seriam suas intenes? Ser que apenas queria ganhar tempo?

Marr olhou em torno.

H mais algum na casa? Garika abanou a cabea.

Ningum. S Fordan, Hayda e eu.

Onde esto as armas?

Garika tomou um gole e fitou-o por cima do copo. Havia uma expresso irnica em seus olhos azuis.

Antes que eu lhe revele isso, voc ter de dar prova de que suas intenes so honestas respondeu e descansou o copo com um gesto violento sobre a mesinha sua direita.

Marr aproximou-se dela.

Escute a, moa! A situao no to alegre como voc acredita. O cho est quente embaixo dos meus ps... Quero ir embora. Quero sair desta cidade e de Nowhere. Preciso de armas, mantimentos e combustvel para abastecer seu carro. Se no conseguir tudo isso dentro de uma hora, voc vai ter uma surpresa.

Mal concluiu, ouviu um leve chiado. Esteve a ponto de virar-se para descobrir a causa do rudo, mas lembrou-se de que possivelmente era exatamente isso que Garika queria, para poder pegar sua arma.

Levante-se! gritou para a moa. Garika viu que estava falando srio.

Obedeceu. Marr segurou-a pelo ombro e manteve-a afastada. Comeou a virar a cabea. O chiado vinha de um lugar prximo porta. Marr descobriu um bocal achatado no ngulo formado pela parede e pelo teto. Teve a impresso de que desse bocal saa uma tnue neblina azulada, que se tornava invisvel assim que se misturava com o ar. Um perfume inebriante comeou a encher o recinto.

Desligue isso! ordenou. Que neblina essa? Algum gs narcotizante?

um gs dos nervos disse Garika, rindo. No posso desligar isso. Dentro de alguns segundos, voc estar deitado no cho, completamente imvel. O gs no afetar Hayda nem a mim. Assim que tivermos arejado o quarto, chamaremos a polcia e lhe entregaremos o presente. Fordan dever ser expulso. Ser bem feito. Voc voltar ao ptio onde est seu amigo. No acha que fui muito esperta?

As idias de Marr comearam a confundir-se. Os contornos dos objetos que o cercavam tornaram-se menos ntidos. O belo rosto de Garika alargava e encompridava a intervalos regulares, como se fosse de borracha. Marr sentiu que as foras o abandonavam.

Bran! gritou o mais alto que pde. Bran... prenda a respirao e venha!

Depois disso soltou o ombro de Garika e caiu. Estava inconsciente.

* * *

Quando recuperou os sentidos, constatou que estava deitado numa cama que, tanto em tamanho como em beleza, deixava para trs tudo que j havia visto. Virou a cabea e viu Bran Cathay sentado a seu lado. O queixo de Bran apontou para o outro lado da cama. Marr fez um grande esforo e virou a cabea. Viu Garika.

Ergueu-se.

Devagar recomendou Bran. Voc recebeu uma boa dose.

Marr sacudiu a cabea, como se isso pudesse livr-lo da dor.

O que houve? perguntou.

Essa criatura encantadora disse Bran, fazendo um gesto na direo de Garika instalou um tanque de gs dos nervos embaixo de seu quarto. Esse gs pode sair pelo pequeno bocal que voc deve ter visto. O engenho que aciona o dispositivo est embutido naquela mesinha. Naturalmente invisvel. Basta descansar o copo com certa violncia sobre essa mesinha, para que a instalao entre em funcionamento. Quando cheguei na sala, havia um copo sobre a mesinha. Pois bem. No consegui prender o ar por mais de um minuto. Mas, nesse minuto, quebrei a janela e cuidei da moa. Acho que no fui muito delicado. O fato que ela desligou o gs. Depois disso levamos voc para a cama. Garika arranjou-me uma arma, para que pudesse sentir-me como dono da situao. Fez isso de livre e espontnea vontade. A outra moa, cujo nome Hayda, est na porta da frente. Assim que recebermos alguma visita, dar o alarma. Por enquanto s.

Marr fez um gesto de agradecimento. No se haviam dado ao trabalho de tirar suas roupas. Fez uma tentativa de pr as pernas para fora da cama. Conseguiu, apesar dos espasmos de dores lancinantes que por pouco no o fazem desmaiar de novo. S agora notou que pela cortina que cobria a janela penetrava a luz do dia. Devia ter ficado inconsciente pelo menos durante cinco horas.

Virou-se e fitou Garika. No era mais a mesma que trazia na lembrana. Estava mudada. Seu rosto exprimia medo. Os grandes olhos azuis pareciam desorientados e intimidados. Marr sentiu que Garika no representava mais nenhum perigo.

Agora voc vai contar uma histria longa e minuciosa, no mesmo? perguntou.

A moa fez que sim.

Quem sabe se alm da histria voc no nos quer oferecer um pouco de comida e bebida? sugeriu Marr.

Garika concordou.

Alis, o que houve com Fordan?

Ora, ele est bem guardado. No est to bem-disposto quanto voc. Levar mais algumas horas para recuperar os sentidos. Quando acordar, perceber que no pode fazer nenhum movimento. Gastamos pelo menos vinte metros de corda para amarr-lo informou Bran com um sorriso.

Garika contornou a cama. Quando ia passar por Marr, este segurou-a pelo ombro.

Fordan dever ser revezado? perguntou. Quando ser?

Ao meio-dia respondeu a moa.

Est bem. At l precisaremos encontrar uma sada...

* * *

Garika mostrou que tambm era muito hbil no preparo de alimentos. Serviu-os na mesma sala em que, na noite anterior, Marr havia golpeado Fordan. Hayda abandonou o posto e tomou parte no lanche. Pela primeira vez Marr teve tempo para examin-la mais detidamente. Hayda era mais baixa que Garika e tinha cabelos escuros. Sua pele era amorenada. Tinha olhos castanhos. Eram grandes e ovais, e via-se neles um pouco de tristeza. Era estranho que uma moa como esta pudesse ser policial em Nowhere. Mas, no fundo, a situao de Garika no era menos estranha.

Agora gostaria de ouvi-la falar disse Marr, depois de ter engolido o ltimo pedao de sanduche e se ter recostado confortavelmente em sua poltrona. Por exemplo: h quanto tempo existe a colnia de Nowhere?

H cerca de dois mil anos respondeu Garika, prontamente. Foi criada pelos aras. Todos sabem que eles se intitulam como mdicos galcticos. Praticamente so um povo de biomdicos. Seus conhecimentos sobre os segredos da vida superam os dos mdicos de todas as outras raas reunidas. E sabem que so exclusivamente seus conhecimentos avanados que lhes garantem o lugar que ocupam. Mas, alm dos segredos, tm uma reputao a guardar. a reputao de que conseguem curar qualquer doena e de que qualquer doente que se confie a um ara est salvo... em troca de polpudos honorrios, naturalmente.

Garika fez uma ligeira pausa e tomou um gole.

Os aras podem ser geniais prosseguiu mas sua fama exagerada. Existem doenas que nem mesmo eles conseguem curar. E um paciente insatisfeito representa um perigo para a reputao do mdico. Os aras nunca foram muito escrupulosos na escolha dos meios de que lanam mo. Sempre que sua habilidade mdica no bem-sucedida, o doente levado para Nowhere, quer ele queira, quer no. Os aras esforam-se para pintar, em cores brilhantes, que a permanncia em Nowhere tal qual viver num paraso inigualvel, no muito povoado, um verdadeiro jardim, e por a a fora. Se nem assim o doente concorda com a remoo, aplicam-lhe determinado medicamento, e quando acorda est em Nowhere. O senhor j viu como este lugar. A populao de quarenta mil pessoas, e todas elas residem nesta cidade imunda, qual do o nome de Hopthah.

O qu?! exclamou Bran. Este buraco a nica cidade de Nowhere?

Garika confirmou com um gesto e prosseguiu:

Os aras tomam certas providncias para evitar que os habitantes do planeta morram de fome ou em virtude dos ataques dos animais selvagens. Trazem equipamentos obsoletos, como, por exemplo, os turbocarros, que tm pelo menos cento e cinqenta anos. De vez em quando chega uma remessa de mantimentos. Mas, em geral, os habitantes tm de providenciar seu sustento. Todos eles so doentes, sem nenhuma exceo, pois, do contrrio, no estariam aqui. Imagine que tipo de sociedade formamos. O homem menos doente tira do mais doente aquilo de que precisa. H dois mil anos j eram assim, e acho que nunca mudar.

Mudar, sim! disse, Bran, em tom resoluto. Mudar assim que tivermos informado o Governo do Imprio sobre o estado de coisas reinante por aqui.

Garika fez um gesto de desnimo.

Deixe-me concluir gritou. Em Nowhere existe uma espcie de constituio. Lemmy Pert exerce as funes de presidente, juiz supremo e legislador. Foi ele que organizou a fora policial. As atribuies da mesma consistem unicamente em evitar que surjam partidos, pois isso representaria o caos. Nowhere no tem possibilidades para abastecer todas as pessoas que vivem aqui. As colheitas escassas produzidas pelos doentes no bastam. Por isso mesmo as pessoas que chegam ao planeta costumam ser transformadas em escravos, que tm de lutar para conquistar a liberdade.

Bran empalideceu.

No... no possvel! gaguejou, apavorado. Em pleno sculo vinte e quatro.

possvel, sim disse Hayda. Isso acontece hoje em dia, em Nowhere.

A exposio de Garika j chegara ao fim. Marr Toss reclinou-se profundamente na poltrona e fitou-a de lado.

No s isso, no mesmo? perguntou, depois de alguns minutos de silncio.

A moa estremeceu.

, sim respondeu Garika, perturbada. No h mais nada a contar.

Marr sacudiu a cabea.

Voc no disse uma palavra a seu respeito. Como veio parar em Nowhere? Afinal, voc no est doente. Ou est?

No! exclamou Garika. No estou doente, e Hayda tambm no est.

mentira! respondeu Marr, em tom spero. Vocs esto doentes. Sofrem de antropofobia. Odeiam os homens. Quem sabe se no participaram da experincia de Lysias? Naquele tempo no deviam ter mais de dez anos. Ento, o que diz?

Garika baixou a cabea. Hayda fitou Marr com os olhos arregalados.

Estive... estive em Lysias, sim disse em tom deprimido. Meus pais estavam presentes quando um governo irresponsvel procurou descobrir o que aconteceria com duzentos mil colonos que habitassem um planeta coberto de selvas, se de repente ficassem privados de toda e qualquer comunicao com o resto do mundo. Estava...

Calma, minha filha interrompeu Marr. Aquilo foi um projeto da comunidade dos saltadores. Eles procuraram apoio para o projeto em tudo quanto foi mundo. Queriam descobrir, por assim dizer, se a pessoa que nunca nadou aprende a nadar, se algum a atira numa gua profunda. No caso tratava-se de um grupo de colonos, e a gua foi substituda por um planeta selvagem. Lembro-me perfeitamente que o Governo do Imprio se ops constante e insistentemente contra o projeto.

No culpo o Governo do Imprio disse Hayda em tom exaltado. Culpo o governo dos patriarcas saltadores que permitiram a execuo de um projeto como este. Durante um ano e meio, o crime e a doena grassaram no planeta. Tivemos de lutar durante um ano e meio, at que aparecessem algumas naves terranas que nos resgataram. Durante esse tempo acumulamos tamanho dio e repugnncia contra tudo e todos, que no conseguimos conviver mais com outras pessoas. Meus pais no viveram mais por muito tempo, mas eu tive de conformar-me com este tipo de vida. Pedi auxlio aos aras. Dei-lhes tudo que possua. At eles falharam. Fui trazida para Nowhere. Em comparao com Lysias, isto aqui um paraso, se bem que no o lugar ideal para aprender a amar o prximo.

Acho que j estou compreendendo sua situao disse Marr, em voz baixa. Mas acredito que haveria outra sada. Voc no precisaria acompanhar as tendncias de Nowhere.

Depois ergueu a cabea num movimento rpido e disparou uma pergunta:

E com voc, Garika, como foi? Garika fitou-o com uma expresso distrada.

Pakko... respondeu com a voz apagada. Uma equipe de engenheiros terranos... Fui a nica mulher... Servi de assessora, secretria e moa para o que desse e viesse.

De repente ela adquiriu vida, mas parecia ser uma vivacidade perigosa.

J ouviu falar em Pakko? indagou em voz zangada, dirigindo-se a Marr. Cinco bilhes de habitantes. Noventa e nove por cento so descendentes dos arcnidas imigrados h dez mil anos. Pelos nossos padres so selvagens. Uma evoluo regressiva os fez retornar s condies de vida primitivas. Usam a plvora para atirar e seus nicos veculos so carros puxados por animais semelhantes aos cavalos, chamados de tarpais. No tinham a menor idia do que os engenheiros pretendiam fazer por l. E nem poderiam saber o que vem a ser uma central de hiper-rdio.

Pakko era o planeta ideal, pois ficava quase exatamente no ponto de interseco de oito rotas de navegao interestelar. Os pakkos no tinham a menor idia do que vem a ser uma nave interestelar. Mataram os engenheiros. Quanto a mim, fui caada. Fiquei prisioneira deles durante algumas semanas.De repente seus olhos encheram-se de lgrimas.

Depois de cinco semanas consegui fugir. Alcancei nossa nave e transmiti um pedido de socorro. Dali a algumas horas chegou um cruzador terrano que me salvou. Depois disso, Pakko recebeu a visita de uma expedio punitiva. Os assassinos dos engenheiros foram processados e ficaram presos. Mas quem iria importar-se comigo?

Durante alguns minutos o silncio reinou no grande recinto. Depois o prprio Marr resolveu concluir a histria.

Voc procurou os aras, que nem Hayda. Como estes no conseguissem cur-la, veio parar em Nowhere.

Esperou que Garika fizesse um sinal de assentimento.

Quem conseguiu convenc-la a trabalhar como espi dos aras em Nowhere? perguntou.

3

Garika soltou um grito e encolheu-se em sua poltrona. Hayda permaneceu em silncio. Bran sacudiu a cabea, como se quisesse livrar-se de um inseto que o estivesse incomodando.

Santo Deus! Quem foi que lhe deu essa idia? perguntou ela, depois de algum tempo.

Isto no nenhum absurdo respondeu Marr. D uma olhada nesse ptio. Foi construdo para servir de priso. Em nenhum outro lugar de Nowhere, voc encontrar algum ptio como este. Ningum se daria ao trabalho de cercar a rea dos fundos de uma casa com um muro. Ainda mais com um muro de dois metros de espessura, em cuja parte superior pode ser colocada uma fiao, que d a impresso de que os habitantes de Hopthah conseguiram constru-lo com os recursos de sua tecnologia atrasada. Fizeram tudo para no provocar suspeitas.

Bem objetou Bran. Mas s o muro...

No s o muro. Em algum lugar de Nowhere existe um ativador celular. Segundo as leis de probabilidade, os aras devem ter sido os primeiros a ter conhecimento do fato. Devem contar com a possibilidade de que um verdadeiro aluvio de pessoas aparea em Nowhere, para procurar o aparelho. Segundo as previses, essas pessoas deveriam vir ss ou em pequenos grupos, at que a Frota do Imprio Unido tivesse conhecimento do fato. Pois bem. Nada os impede de irem pegando as pessoas que forem chegando, e coloc-las fora de ao.

Que motivo teriam eles para agir assim? Por que no pegam o ativador e vo embora?

Talvez no seja to fcil chegar a ele ponderou Marr. Quem sabe o aparelho est simplesmente escondido no meio do capim, espera de que aparea algum que o pegue?...

Bran refletiu um pouco.

Bem disse depois de algum tempo. Talvez seja assim. E depois? Percebo que voc tem outro argumento.

Marr apontou para a parede.

O gs dos nervos disse. Num planeta que nem consegue alimentar quarenta mil habitantes no pode existir uma substncia como esta, a no ser que os aras a tragam. No verdade, Garika?

Garika fez que sim.

No sei bem o que vem a ser um ativador celular, e muito menos sei se em Nowhere existe um aparelho desse tipo disse a moa. O fato que os aras me incumbiram de observar os estranhos e interrog-los. Esperam que nos prximos dias ou semanas cheguem muitas espaonaves a Nowhere. Alm disso supem que as pessoas que chegarem primeiro talvez tenham conhecimento do deslocamento de maiores contingentes das frotas em direo a Nowhere. E nisso que esto interessados. Os aras no tm motivo para preocupar-se com os primeiros desconhecidos que chegarem aqui. Afinal, Lemmy Pert costuma condenar os recm-chegados escravido, e quando estes lutam para conquistar a liberdade, so mortos. Mas existe o perigo de que um deles fuja antes da hora. O muro com os fios de alta-tenso deveria proteg-los contra esse perigo.

Quer dizer que Lemmy sabe que em Nowhere existe uma base dos aras?

No; no sabe de nada. Deve haver gente que est informada sobre a presena dos aras. Mas no sei quem so. Afinal, algum deve ter dado ordens para construir este muro. Os aras me informaram sobre o plano de construir o muro. Na manh do dia seguinte apareceu um grupo de homens, vindos da cidade, e ps-se a trabalhar. Falei com esses homens. No tinham a menor idia sobre a finalidade do muro. No conheciam a pessoa que lhes dera ordens para fazer a construo. No me interessei mais por isso.

Garika no demorou a explicar o resto. No tinha a menor idia sobre a situao da base dos aras. Recebia suas ordens atravs de um pequeno receptor de ondas curtas que, segundo parecia, s funcionava numa freqncia. No soubera da existncia dos aras em Nowhere, at que algumas semanas atrs um dos seus ex-mdicos aparecera no meio da noite e a obrigara a engajar-se no servio. Os atos praticados com Marr Toss e Bran Cathay representavam o incio de sua execuo. No comeo no vira nisso nada que a repugnasse, e aceitara a oferta porque esta lhe trazia uma srie de vantagens. O mesmo desconhecido que mandara construir o muro fabricara h pouco tempo, por sugesto de Garika, os mveis que embelezavam a casa. Entregara os desenhos ao encarregado dos trabalhos e, poucos dias depois, recebeu aquilo que desejava. Depois da visita noturna no vira mais o menor sinal dos aras.

O misterioso desconhecido que se mantinha numa posio discreta atiou a curiosidade de Marr. Este ps-se a refletir, para encontrar um meio de descobrir sua identidade. Finalmente lembrou-se de que faltava pouco para o meio-dia, e de que Hopthah se transformaria num lugar muito perigoso para eles, quando Fordan contasse sua histria e revelasse a Lemmy Pert os acontecimentos que se haviam desenrolado na casa de Garika.

Antes que Fordan fosse revezado, teriam de abandonar a cidade. Marr no tinha nenhum plano sobre o que fariam depois. Por enquanto o importante era afastar-se a uma boa distncia de Hopthah, a fim de fugir da morte organizada que lhes estaria reservada na qualidade de combatentes pela liberdade. Depois veriam o resto.

Garika e Hayda mostraram-se dispostas a fugir com os dois homens. Garika tentaria obter de Lemmy Pert uma quantidade maior de combustvel. Estava confiante de conseguir convenc-lo a ceder-lhe a mesma. Por vrias vezes realizara expedies exploradoras, e nessas oportunidades sempre conseguira uma quantidade adicional de combustvel.

No tiveram a menor dvida em permitir que Garika se afastasse com o carro. Depois do que acontecera j no acreditavam que a jovem criasse problemas. Garika demorou cerca de uma hora. Quando voltou, havia vrios lates de combustvel no carro. Pelos clculos de Hayda e Garika, esse combustvel devia ser suficiente para percorrer um trecho de pelo menos mil e quinhentos quilmetros. Garika informou-os de que Lemmy perguntara pelos escravos. Provavelmente estava preocupado com a luta de libertao que se seguiria. Pedira moa que tivesse cuidado para que os prisioneiros no escapassem. Bakter Brown j havia sido sepultado.

Os preparativos para a fuga foram tomados s pressas. O equipamento mais importante era o pequeno receptor de ondas curtas atravs do qual os aras se comunicavam com Garika. Marr pediu a Bran que retirasse cuidadosamente o revestimento do aparelho e revistasse seu interior, procura de eventuais microespies. Talvez tivessem de construir outro receptor e realizar a determinao goniomtrica, a fim de localizar a base dos aras.

Marr Toss j compreendera que o destino de qualquer fuga sensata s poderia ser este. Os aras de Nowhere mantinham contato com outros aras. A nica esperana de sair de Nowhere seria numa espaonave dessa raa.

Quando o pequeno grupo estava pronto para partir j eram quinze para o meio-dia. Cada membro do grupo possua sua arma, e a de Fordan foi carregada para servir de reserva.

Garika colocou o carro bem na frente da porta da rua, para que pudessem embarcar rapidamente e sem despertar suspeitas. Marr resolvera que no incio tomaria a direo norte. Antes do pouso observara que era o nico lugar em que havia montanhas. Num planeta coberto por selvas e de grandes oceanos, as reas montanhosas, onde o clima era mais suave e o perigo das febres era menor, costumavam ser escolhidas para a construo das bases de uma raa inteligente.

Marr sentou-se junto direo. Nunca pilotara um turbocarro. Mas era fcil lidar com o mesmo, e Marr acreditava que seria um bom motorista. Bran Cathay e as moas colocaram a bagagem no carro, enquanto Marr ficou de guarda, para ver se aparecia alguma visita inesperada. Por um instante teve de abandonar o posto. Foi quando Garika e Hayda j haviam embarcado e Bran teve de mudar um dos lates de combustvel, para ter um lugar onde sentar. Marr levantou-se e ajudou-o. O lato era pesado. Quando concluram o servio, os dois estavam banhados em suor. Bran saltou para dentro do carro e espremeu-se num lugar de meio metro de largura, que ficava ao lado de Marr. Este ligou o motor e observou a rua...

Outro turbocarro dobrou e veio em direo casa de Garika. Era um veculo aberto. No banco traseiro estavam sentados trs homens que envergavam uniformes coloridos, outro homem estava na direo e ao lado deste ia Lemmy Pert!

Marr Toss no teve alternativa. A nica rea livre era a que o separava da rua. Se quisesse escapar, teria de ir ao encontro de Lemmy e passar por este. Sua nica vantagem consistia no fato de que Lemmy no esperava os acontecimentos que se seguiriam. Olhou em sua direo. Marr notou a expresso de espanto em seu rosto. Ainda no compreendera muito bem a nova situao.

Marr acelerou. O carro deu um salto para a frente. A turbina uivante impeliu-o. Marr quase no deu ateno direo. Ficou de olho em Lemmy Pert e os homens que o acompanhavam.

Naquela altura, Lemmy j havia compreendido que a situao no era a que esperava. Fez um movimento to rpido que ningum o julgaria capaz. Atirou-se para o lado e abrigou-se atrs da chapa da carroaria de seu carro. O motorista freou de repente.

Atirem! gritou Marr.

Dali a uma frao de segundo seu carro estava lado a lado com o outro veculo. Marr ouviu o chiado furioso das armas de radiaes e com o canto dos olhos viu uma luz fulgurante. Alguns homens soltaram gritos de pavor e outra turbina emitiu um som cantante.

O carro disparou pela rua. A viso estava desimpedida de ambos os lados. Um disparo passou bem acima da cabea de Marr. Este dobrou para a esquerda. O veculo rangeu e cavou a terra ao entrar na curva. Um esguicho de sujeira levantou-se.

Alguns curiosos fugiram aos gritos. Enquanto atingia a potncia mxima, a turbina zumbia. O carro percorreu a rua a uma velocidade incrvel, derrapou perigosamente ao passar entre duas casas arruinadas e deixou a cidade para trs.

A rua terminava juntamente com a cidade. Seguiu-se uma rea coberta de capim, que permanecia no mesmo estado em que fora criada pela natureza. Marr teve de reduzir a velocidade, mas os perseguidores seriam obrigados a fazer a mesma coisa. Felizmente o veculo estava em condies de enfrentar o terreno difcil.

Marr olhou para trs. No viu nenhum veculo os perseguindo. Garika e Hayda travaram as armas e voltaram a coloc-las nos bolsos. Bran manteve a arma engatilhada. Fitou Marr de lado e disse:

Foi por pouco, meu caro. Marr confirmou com um gesto.

Ainda haveremos de escapar por pouco de outras situaes, Bran. Lemmy no pode dar-se ao luxo de nos perder. H anos no tm vindo novos escravos. Tem de apresentar ao pblico de Hopthah uma guerra de libertao travada por atores completamente diferentes, pois, do contrrio, perder o cargo. Est atrs de ns. No tenha a menor dvida quanto a isso.

Nas horas que se seguiram, no se tinha a impresso de que a previso de Marr se cumpriria. Perderam de vista a cidade.

Se que Lemmy Pert realmente pretendia recapturar os escravos fugidos, estava seguindo um plano totalmente diverso do que Marr Toss imaginara.

Foi Marr quem primeiro teve esta idia, que lhe causou uma sensao bastante desagradvel. Bem que gostaria de saber qual era o truque de Lemmy. Mas, por mais que forasse a mente, no descobriu.

* * *

Quando atingiram a floresta, j era meio-dia. Parecia que as montanhas ainda no estavam muito prximas. Pelos clculos de Marr a distncia era de setenta ou oitenta quilmetros. A extenso de terra, entre eles e as montanhas, estava coberta por uma mata fechada.

Ainda no se via o menor sinal de que estivessem sendo perseguidos. Marr chegou concluso de que no valeria a pena ficar olhando para trs. Tinha certeza de que Lemmy Pert pretendia armar-lhes uma cilada. Seu golpe viria de surpresa, no momento em que menos esperavam.

Descansaram um pouco e penetraram na floresta. Bran Cathay sentou-se no assento do motorista, que ficava em cima do revestimento da turbina. Sua arma funcionava quase ininterruptamente. Abriu ao mximo o feixe de raios e queimou uma vereda em meio vegetao. A fumaa movia-se preguiosamente em meio ao ar e envolvia o carro. O mau cheiro exalado pelas plantas queimadas irritava o nariz e os olhos. Muitas vezes a vista de Marr no alcanava mais de trs metros.

Pelos clculos de Marr, teriam de passar uma noite na floresta. Ningum agentaria mais de trs horas ou trs horas e meia naquela fumaa impregnada de dixido de carbono.

Depois de terem avanado penosamente durante trinta minutos, Bran teve de constatar que a floresta no era to inofensiva como parecera at ento. A fumaa no estava muito densa. Bran e Marr viram ao mesmo tempo uma coisa branco-acinzentada precipitar-se da folhagem das rvores. Parecia uma cobra e um tentculo ao mesmo tempo. Bran atirou-se para o lado e desceu de cima da turbina. Marr levantou-se de um salto e atirou por cima do pra-brisa contra a coisa repugnante que se contorcia no lugar em que pouco antes estivera Bran. Acertou. Ouviu-se um uivo estridente nas copas das rvores. Marr viu de relance uma massa do tamanho de uma copa de rvore fazendo movimentos convulsivos. O tentculo desapareceu. O zumbido da turbina misturou-se ao farfalhar e aos estalos produzidos pelo terrvel atacante, que se afastava em meio folhagem.

Depois disso Bran ficou no interior do carro. De p ao lado de Marr, cuidava da pilotagem. O incidente no se repetiu. Mas, ao pensar na noite que se aproximava, Marr ficou preocupado.

Garika mantinha seu pequeno receptor constantemente ao alcance da mo. Esperava a qualquer minuto um chamado dos aras. Mas estes no davam sinal de presena, tal qual os perseguidores. Marr j no sabia o que pensar, mas de repente Bran lhe deu uma idia.

Em Hopthah existe uma pessoa afirmou que est to bem informada sobre a presena dos aras quanto Garika. Quer dizer retificou existe pelo menos uma pessoa. Talvez seja um dos membros do grupo de Lemmy Pert. E perfeitamente possvel que essa pessoa tenha constatado que nos encontramos na rota exata que leva base dos aras. O que faria essa pessoa num caso destes?

Provavelmente deixaria que os aras tomassem conta de ns conjeturou Marr. No se daria ao trabalho estafante de caar-nos na selva, pois acreditaria que, de qualquer maneira, cairamos nas mos dos aras.

Desde que consiga convencer Lemmy de que seu ponto de vista correto completou Bran. Afinal, quem manda Lemmy.

Marr meneou a cabea.

Alis, no h nenhum motivo para que Lemmy no seja informado. No pode tornar-se perigoso para os aras. Por outro lado, estes podem us-lo para influenciar a poltica da cidade de Hopthah, caso isso venha a tornar-se necessrio. No acredito que Lemmy tenha sido mantido na ignorncia em virtude de uma poltica bem definida. Apenas no havia necessidade de que fosse informado.

Bran no formulou nenhuma objeo.

Com isso, a soluo torna-se muito mais simples respondeu. Lemmy sabe que acabaremos caindo nas mos dos aras. Por que iria expor-se a todas essas canseiras?

Isso tambm explica por que Garika no est recebendo nenhum chamado acrescentou Marr. Os aras foram informados e esto nossa espera.

Bran confirmou com um gesto.

As perspectivas no so nada agradveis queixou-se Hayda. Por que no nos desviamos para escapar dos aras?

Marr fez um gesto negativo.

No isso que queremos observou. Precisamos encontrar os aras, mesmo que corramos o risco de, antes disso, sermos descobertos e presos por eles.

* * *

Apesar de tudo fizeram uma tentativa de desviar-se. No pretendiam escapar aos aras, mas queriam saber por que Lemmy Pert tinha tanta certeza de que no conseguiriam fugir. No demoraram a descobrir. Depois de terem percorrido dois quilmetros na direo oeste, atingiram uma rea pantanosa, que era impraticvel para o carro. A leste, tambm havia uma rea pantanosa, a menos de um quilmetro da rota que estavam percorrendo. No era uma rea to difcil como a situada a oeste. Mas, em compensao, era seguida por uma ampla superfcie de gua, formada por um lago ou um grande rio, que representava um obstculo intransponvel para o turbocarro. Encontravam-se numa faixa de terra seca de pelo menos trs quilmetros de largura, que se estendia para norte, em direo s montanhas. Atrs deles, Lemmy e seus homens haviam bloqueado a rea, enquanto frente deles os aras os esperavam.

Quando no me deixam nenhuma liberdade de deciso, no fico nada contente, disse Bran, em tom contrariado.

Puseram o veculo em movimento, mas j no se apressaram tanto.

Marr concebeu um plano. Assim que se tivessem aproximado bastante das montanhas, abandonariam o carro. A marcha no seria muito confortvel, mas em compensao teriam uma relativa segurana. Havia uma coisa de que podiam ter certeza: os aras estariam sua espera na beira da floresta.

Face a isso, Marr determinou que parassem trs horas antes do ocaso. Juntamente com Bran, abriu com os longos faces que pertenciam ao equipamento do veculo um caminho pelo qual Garika conduzia o carro. Foram avanando at um lugar situado a cerca de um quilmetro do ponto em que Bran disparara o ltimo tiro, produzindo uma nuvem de fumaa cinza-azulada que ainda continuava ali. Usaram outra vez os faces para abrir uma clareira circular de aproximadamente oito metros de dimetro. Pegaram os arbustos, galhos e trepadeiras vitimados por seus esforos e construram uma espcie de barreira em torno da clareira. No valia muito como fortificao, mas qualquer animal que pretendesse atac-los ficaria preso por alguns segundos, durante os quais constituiria um bom alvo para suas armas.

Ningum teve apetite, mas Marr insistiu em que comessem alguma coisa. Distribuiu as sentinelas. No queria que as moas ficassem a ss na escurido, e por isso mandou que ele e Garika formassem um grupo, enquanto Bran e Hayda constituam um segundo grupo. Esses grupos atuariam por perodos de quatro horas. Dessa forma teriam certeza de obterem pelo menos uma quantidade razovel de sono...

O sol continuava a espalhar a claridade diurna. Marr acabara de concluir seus preparativos, e logo constatou que seriam inteis.

* * *

Oua! cochichou Bran de repente e cutucou Marr.

Marr tambm ouvira o rudo. Parecia que algum estava chamando.

Prenderam a respirao e puseram-se a escutar. Passaram-se alguns segundos at que voltaram a ouvir o rudo. Vinha de oeste. A vegetao densa abafava o som, mas Marr tinha certeza de que se tratava de uma voz articulada.

O pntano! cochichou. Algum caiu no pntano!

Marr levantou-se. A voz voltou a fazer-se ouvir. Desta vez era mais forte. Parecia um grito de terror e angstia.

Vou dar uma olhada disse.

Irei com voc respondeu Bran. Marr protestou. Pelo menos um homem teria de ficar no acampamento. Escolheu Garika para acompanh-lo. Abriu caminho com o faco e conseguiu avanar mais depressa do que imaginara. Ainda se ouvia a voz, mas a mesma j estava diminuindo. A pessoa que corria perigo fosse ela quem fosse estava prxima ao fim.

Marr teve a impresso de que a mata se tornava cada vez menos espessa. A cada segundo que passava, conseguiam avanar mais rapidamente. O cho apresentava-se em ligeiro declive. Marr estava convencido de que o perigo que ameaava o desconhecido provinha do pntano. Quando passou entre dois arbustos de cerca de dois metros de altura e viu o que acontecera na pequena clareira alongada de cho firme que se estendia sua frente, estacou surpreso...

Uma coisa estranha, de cor marrom-acinzentada, rolava pelo cho. Parecia uma cobra peluda com seis salincias em forma de pernas, trs de cada lado. No se via nenhuma cabea, mas ainda se ouviam os sons queixosos emitidos com nitidez, como se fossem palavras de alguma lngua estranha.

A coisa tremia e contorcia-se em espasmos. Rolou um pedao, deu um salto e voltou a cair. Emitia constantemente os sons estranhos que Marr acreditava serem palavras. Os gritos tornaram-se cada vez mais baixos, e os movimentos foram ficando mais lentos. Marr ainda no sabia o que pensar. De repente o estranho ser ficou deitado, completamente imvel, como se estivesse morto ou inconsciente.

Marr examinou-o atentamente. Teve a impresso de reconhecer minsculas aberturas, que formavam olhos e os contornos de uma boca, escondidas sob os plos espessos. No se conseguia identificar os ombros, o pescoo, a cabea... A parte dianteira do corpo era praticamente inarticulada.

Notou que, ao deparar-se com o estranho quadro, Garika se agarrara a ele, assustada. Segurava seu brao esquerdo e fitava o animal peludo com os olhos arregalados.

O que ser que aconteceu com ele? cochichou.

Marr fez um gesto de indiferena.

Estava doente; apenas isso. Talvez tenha comido algo venenoso e morreu.

Garika soltou seu brao e avanou cautelosamente em direo ao corpo imvel do animal. Marr no a impediu. Aquela criatura peluda nunca mais se tornaria perigosa.

De repente Garika comeou a rir.

O que houve? perguntou Marr, estupefato.

Ora, Marr... disse a moa, sem parar de rir. No sei o que , mas acho isto to engraado.

Marr ficou preocupado. Foi caminhando na direo da moa. Era estranho que, depois de alguns minutos de medo e de nervosismo, aquela moa comeasse a rir de repente. Talvez sua mente no estivesse funcionando bem. Tudo indicava que realmente era assim, pois a moa continuava parada e ria gostosamente. Mas, medida que Marr se aproximava dela, suas preocupaes foram diminuindo. Quando se encontrava bem perto da jovem e pousou as mos em seus ombros, tambm comeou a rir. Era bem verdade que, num canto de sua mente, surgiu a idia de que no sabia por que estava rindo. Mas isso no importava! Era to bom rir e ser alegre!

Venha! exclamou Garika, exaltada. Vamos olhar de perto.

Referia-se ao animal. J no sentia nem um pouco de medo. Avanou despreocupadamente em direo ao ser peludo e abaixou-se para levant-lo.

Foi ento que aconteceu.

Marr viu-a estremecer como se uma coisa invisvel a tivesse golpeado. O grito penetrante da moa doeu em seus ouvidos. Quis correr em seu auxlio, mas a estranha alegria que sentia parecia um vu que cobria sua mente. Quando compreendeu que a situao era sria, Garika j se contorcia no cho, tal qual o animal fizera pouco antes.

Com um salto gigantesco, Marr colocou-se perto dela. Durante o salto, o objeto invisvel atingiu-o com uma tremenda fora. Soltou um grito, mas no perdeu os sentidos. Garika estava quase inconsciente e choramingava de dor. Estava deitada perto dele. Marr mal conseguia mexer-se, mas tinha de ajudar a moa...

As ondas de dor lancinante percorriam seu corpo com a violncia de descargas eltricas. Os msculos estendiam-se e contraam-se sob os efeitos dos impulsos narcotizantes. Marr levantou o brao direito para pegar Garika. Um golpe atingiu-o no ombro e ps em ao contra a sua vontade a musculatura do brao. Sua prpria mo atingiu-o no rosto como se fosse um ser estranho. A pele parecia arder. Mas o choque que se seguiu ajudou-o. Por uma frao de segundo, seus msculos se entesaram quase at o ponto de ruptura. Seus olhos se anuviaram sob os efeitos da dor. Quando recuperou os sentidos, estava deitado ao lado de Garika. O movimento inconsciente fizera seu corpo descrever um giro em torno do prprio eixo.

Segurou as costas do uniforme colorido da moa. Crispou as mos com tamanha fora que mesmo os impulsos dolorosos no poderiam desprend-las. Cerrou os dentes com tanta fora, chegando a sentir o sabor desagradvel do sangue. Reprimiu o estado de inconscincia que queria domin-lo. Os golpes continuavam a atingi-lo com a mesma violncia, insuflando ondas de dor em seu corpo. Acontece que entre os golpes havia uma pausa de meio segundo e, nessas pausas, Marr puxava o corpo da moa por alguns milmetros.

Sua mente ainda estava funcionando. Sabia que o animal fora vitimado pelo mesmo fenmeno que o estava atingindo, juntamente com Garika. Fosse o que fosse, estava ali h bastante tempo; no aparecera h poucos instantes. Se conseguisse arrastar-se juntamente com a moa at o lugar em que haviam estado de p, ficariam a salvo.

A idia conferiu-lhe a fora do desespero. Seguiu-se um golpe que moveu seus msculos na direo desejada. Bastaria girar o corpo mais uma vez, arrastar Garika, e estariam livres.

Marr caiu de bruos, com o rosto colado ao capim mido.

Fez um grande esforo e conseguiu virar a cabea. Viu Garika deitada a seu lado. Estava com os olhos fechados, mas sua respirao era regular. A luta com o invisvel deixara-a inconsciente. Satisfeito, Marr deixou pender a cabea e entregou-se ao torpor agradvel que ia tomando conta de seu corpo.

Dois pontos teriam de ser esclarecidos. A irrupo de alegria sem motivo, qual os dois se haviam entregue, devia ter sido causada por um fator externo. Ainda havia a coisa invisvel que desferira golpes mortferos contra o animal, contra Garika e contra ele mesmo. O que seria? Algum ser invisvel ao olho humano? Marr j andara bastante pelo espao e sabia que essas coisas existem. Mas abandonou a idia. Se fosse um ser vivo empenhado em provocar dores em outros seres ou at mat-los, no permaneceria no mesmo lugar, deixando suas vtimas em paz assim que se tivessem afastado a uma distncia de dois metros. A coisa que se encontrava ali Marr no conseguiu imaginar seu nome era estacionaria. Era uma coisa construda por algum. Talvez fosse uma armadilha!...

Lembrou-se dos aras. Nunca ouvira falar em qualquer campo energtico que agisse sobre o sistema nervoso, a no ser os campos alternados de alta freqncia produzidos pelas radiaes mecano-hipnticas. Se existisse um campo desse tipo, os aras seriam os primeiros a manipul-lo. A rea de estudos mais importante da Bioqumica era o sistema nervoso das criaturas orgnicas, especialmente a dos seres inteligentes. medida que refletia sobre o assunto, mas se firmava a certeza de que os aras tinham algo a ver com aquele fenmeno.

Se fosse um campo de choque, devia haver um gerador por perto. Os campos desse tipo eram to complicados que no podiam ser transmitidos a grande distncia por meio de um projetor. E devia haver uma explicao para o fato de o campo ter sido instalado justamente ali. Sem dvida, o campo no tinha a menor relao com os acontecimentos que se desenrolavam em Hopthah e sua finalidade no consistia em capturar escravos fugidos. Afinal, a probabilidade de que o turbocarro dos fugitivos fosse passar justamente nesse local era extremamente reduzida. Quem sabe se os aras no tinham colocado o animal por ali para que ele atrasse os fugitivos com seus gritos semelhantes aos de um homem? No... isso seria muito complicado. Os aras descobririam um meio mais simples de capturar os fugitivos. O que estava acontecendo ali no tinha a menor relao com a fuga dos escravos de Lopthah nem com a equipe de captura de Lemmy.

De repente Marr ficou muito curioso, e a curiosidade restituiu-lhe parte das foras perdidas. Conseguiu erguer o corpo e olhou em torno.

No demorou em encontrar aquilo que queria. Mas no teve muito tempo para alegrar-se. No momento em que pretendia pr-se de p, Hayda e Bran saram da mata. E Bran gritava em tom exaltado:

Os aras esto chamando! O receptor deu o sinal!...

4

Bran no viu o animal e nem se impressionou com o fato de Garika estar inconsciente. Correu para junto de Marr e agachou-se a seu lado.

A recepo bastante estranha disse, ofegante, e entregou o pequeno receptor a Marr. H uma tremenda distoro. No se entende uma nica palavra. Parece duas pessoas conversando. Tenho a impresso de que a mensagem nem se destina a Garika.

Esteve a ponto de dizer mais alguma coisa, mas nesse instante o receptor voltou a fazer-se ouvir: um chiado e uma srie de arranhes, seguidos pelos sons deformados de uma voz humana. Marr no entendeu nada.

Era claro que Bran tinha razo. Os aras no estavam falando com Garika. A faixa de ondas abrangida pelo receptor era bastante ampla. Captava freqncias muito mais elevadas ou mais baixas que aquelas para as quais fora construdo. Ao que