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25 1 SOBRE O MINISTÉRIO PÚBLICO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO SEU REGIME CONSTITUCIONAL E SEU PODER DE INVESTIGAÇÃO EM MATÉRIA CRIMINAL 1 Clèmerson Merlin Clève 2 SUMÁRIO: I - REGIME CONSTITUCIONAL; 1. INTRODUÇÃO; 2. O MINISTÉRIO PÚBLICO NO QUADRO DA ORGANIZAÇÃO DOS PODERES; 3. OS PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO; 4. ÓRGÃOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO; 5. AS GA- RANTIAS DE INDEPENDÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO; 5.1. AS GARANTIAS INSTITUCIONAIS; 5.2. GARANTIAS FUNCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO; 6. FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO; II – MINISTÉRIO PÚBLICO E INVESTIGA- ÇÃO CRIMINAL; 1. INTRODUÇÃO; 2. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL; 3. UMA QUESTÃO DE COOPERAÇÃO PERMANENTE E COMPARTILHAMENTO EVENTUAL; 3.1. INVESTIGAÇÃO E ACUSAÇÃO NO JUIZADO DE INSTRUÇÃO; 3.2. INVESTIGAÇÃO E ACUSAÇÃO NO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO; 4. COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL E MINISTÉRIO PÚBLICO; 5. AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: LEGITIMIDADE DO PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO; 6. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL, MINISTÉRIO PÚBLICO E DEVIDO PROCESSO LEGAL; 7. CONCLUSÃO ; 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. I - REGIME CONSTITUCIONAL 1. INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 trouxe um capítulo próprio dedicado às fun- ções essenciais à justiça, ali incluindo quatro espécies de advocacia. 3 Referiu-se 1 A primeira parte deste texto deriva de exposição apresentada no V Congresso Jurídico Brasil-Alemanha, realizado em Curitiba/PR, nos dias 22 e 23 de outubro de 1992 e foi publicada, originalmente, no Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, NDJ, n. 1, 1993. Também houve publicação na Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 692, p. 21-30. A segunda parte provém de parecer elaborado a pedido da Associação Na- cional dos Procuradores da República e está publicado, com as devidas atualizações, no livro Soluções Práticas de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 2. 2 Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante do Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e do Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Atualmente é sócio fundador do escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados. 3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Constituição e Revisão: temas de direito político e constitucional. Rio de Janeiro, Forense, 1992. p. 241. Cf. também MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Ministério Público: deveres constitucionais da instituição face a situações de insegurança pré-crítica. In: Revista de Direito constitucional e internacional, n. 30, jan./mar. 2002, p. 79-80. Livro 1.indb 25 23/03/2015 23:07:19

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    SoBrE o miNiSTrio PBLiCo: CoNSiDErAES ACErCA Do SEu rEgimE CoNSTiTuCioNAL E SEu

    PoDEr DE iNvESTigAo Em mATriA CrimiNAL1

    Clmerson Merlin Clve2

    SUMRIO: I - REGIME CONSTITUCIONAL; 1. INTRODUO; 2. O MINISTRIO PBLICO NO QUADRO DA ORGANIZAO DOS PODERES; 3. OS PRINCPIOS INSTITUCIONAIS DO MINISTRIO PBLICO; 4. RGOS DO MINISTRIO PBLICO; 5. AS GA-

    RANTIAS DE INDEPENDNCIA DO MINISTRIO PBLICO; 5.1. AS GARANTIAS INSTITUCIONAIS; 5.2. GARANTIAS FUNCIONAIS

    DO MINISTRIO PBLICO; 6. FUNES INSTITUCIONAIS DO MINISTRIO PBLICO; II MINISTRIO PBLICO E INVESTIGA-

    O CRIMINAL; 1. INTRODUO; 2. INTERPRETAO CONSTITUCIONAL; 3. UMA QUESTO DE COOPERAO PERMANENTE

    E COMPARTILHAMENTO EVENTUAL; 3.1. INVESTIGAO E ACUSAO NO JUIZADO DE INSTRUO; 3.2. INVESTIGAO E

    ACUSAO NO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO; 4. COMPETNCIA CONSTITUCIONAL E MINISTRIO PBLICO; 5.

    AUTORIZAO CONSTITUCIONAL: LEGITIMIDADE DO PODER INVESTIGATRIO DO MINISTRIO PBLICO; 6. INVESTIGAO

    CRIMINAL, MINISTRIO PBLICO E DEVIDO PROCESSO LEGAL; 7. CONCLUSO ; 8. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.

    I - REGIME CONSTITUCIONAL

    1. INTRODUO

    A Constituio Federal de 1988 trouxe um captulo prprio dedicado s fun-es essenciais justia, ali incluindo quatro espcies de advocacia.3 Referiu-se

    1 A primeira parte deste texto deriva de exposio apresentada no V Congresso Jurdico Brasil-Alemanha, realizado em Curitiba/PR, nos dias 22 e 23 de outubro de 1992 e foi publicada, originalmente, no Boletim de Direito Administrativo, So Paulo, NDJ, n. 1, 1993. Tambm houve publicao na Revista dos Tribunais, So Paulo, n. 692, p. 21-30. A segunda parte provm de parecer elaborado a pedido da Associao Na-cional dos Procuradores da Repblica e est publicado, com as devidas atualizaes, no livro Solues Prticas de Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 2.

    2 Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paran. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitrio Autnomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante do Mster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e do Doctorado en Ciencias Jurdicas y Polticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Ps-graduado em Direito Pblico pela Universit Catholique de Louvain Blgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Lder do NINC Ncleo de Investigaes Constitucionais em Teorias da Justia, Democracia e Interveno da UFPR. Foi Procurador do Estado do Paran e Procurador da Repblica. Atualmente scio fundador do escritrio Clmerson Merlin Clve Advogados Associados.

    3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Constituio e Reviso: temas de direito poltico e constitucional. Rio de Janeiro, Forense, 1992. p. 241. Cf. tambm MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Ministrio Pblico: deveres constitucionais da instituio face a situaes de insegurana pr-crtica. In: Revista de Direito constitucional e internacional, n. 30, jan./mar. 2002, p. 79-80.

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    (i) advocacia da sociedade (trata-se de verdadeira magistratura outorgada ao Ministrio Pblico), (ii) advocacia dos necessitados, conferindo o seu exerc-cio Defensoria Pblica, (iii) advocacia do Estado,4 responsvel pela represen-tao judicial e extrajudicial, inclusive a consultoria e assessoramento jurdico do Poder Executivo, exercida pela Advocacia-Geral da Unio, no mbito fede-ral,5 e pelas Procuradorias dos Estados no mbito das Coletividades Federadas, compreendido o Distrito Federal. Finalmente tratou (iv) da advocacia privada, tocada no apenas por profissionais liberais, mas tambm por advogados assa-lariados, ligados a determinadas empresas ou escritrios.

    Apenas a primeira espcie de advocacia ser discutida nesta oportunidade.6

    O Ministrio Pblico recebeu, da nova Constituio, um regime particu-lar.7 Trata-se, na primeira parte do presente texto, de indicar as linhas mestras de sua disciplina constitucional, levando em conta alguns dispositivos da Lei 8.625/1993 que instituiu a Lei Orgnica Nacional do Ministrio Pblico e dis-ps sobre normas gerais para a organizao do Ministrio Pblico dos Estados e a Lei Complementar 75/1993 que trata da organizao, das atribuies e do estatuto do Ministrio Pblico da Unio. A segunda parte do estudo cuida do poder de investigao da instituio ministerial em matria criminal.

    2. O MINISTRIO PBLICO NO QUADRO DA ORGANIZAO DOS PODERES

    Qual a posio institucional do Ministrio Pblico? Tem-se verificado rela-tiva dificuldade na definio da posio da instituio no quadro constitucio-nal da organizao dos poderes. A Constituio de 1824 nem mesmo fazia re-

    4 Advocacia que recebeu a denominao de Advocacia Pblica pela Emenda Constitucional 19/1998.

    5 Ressalvada a execuo da dvida ativa de natureza tributria, em que a representao da Unio cabe Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, nos termos do 3, do art. 131, da CF.

    6 Sobre as funes do Ministrio Pblico na Constituio de 1988, conferir, especialmente: FILOMENO, Jos Geraldo Brito. O Ministrio Pblico como guardio da cidadania. In: Revista da Faculdade de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas. So Paulo, n. 14, jan./jun. 1996, p. 113-133; BURLE FILHO, Jos Emmanuel. O Ministrio Pblico e sua posio constitucional. In: Justitia. So Paulo, v. 146, abr./jun. 1989, p. 85-89; MAZZILLI, Hugo Nigro. Notas sobre a sindicalizao de membros do Ministrio Pblico. In: Justitia. So Paulo, v. 147, jul./set. 1989, p. 60-63; MAZILLI, Hugo Nigro. Questes atuais de Ministrio Pblico. In: Revista dos Tribunais. n. 698, dez. 1993, p. 31-37; MORAES, Alexandre de. Garantias do Minis-trio Pblico em defesa da sociedade. In: Justitia, So Paulo, v. 174, abr. jun. 1996, p. 88-94; MACHADO, Carlos Augusto Alcntara. Apontamentos sobre o regime jurdico-constitucional do Ministrio Pblico e da Advocacia Pblica: uma anlise comparativa. In: Revista brasileira de direito pblico, v. 1, n. 2, jul./set. 2003, p. 17-24; GARCIA, Emerson. Ministrio Pblico: organizao, atribuies e regime jurdico. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. VASCONCELOS, Clever Rodolfo Carvalho. Ministrio Pblico na Consti-tuio Federal. So Paulo: Atlas, 2009.

    7 Cf. SAUWEN FILHO, Joo Francisco. Ministrio Pblico Brasileiro e o Estado democrtico de Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1998; MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso Justia e o Ministrio Pblico. So Paulo: Sarai-va, 1998; LOPES, Jlio Aurlio Vianna. O novo Ministrio Pblico Brasileiro. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2000.

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    ferncia ao Ministrio Pblico. No art. 48, fazia vaga meno ao Procurador da Coroa e Soberania Nacional, ao qual incumbia proceder acusao no juzo dos crimes. A Constituio de 1891 se referia apenas ao Procurador Geral da Repblica, que seria um Ministro do Supremo Tribunal Federal indicado pelo Presidente da Repblica. A Carta Constitucional de 1934 foi a primeira a tratar de modo mais consistente do Ministrio Pblico, incluindo-o entre os rgos de cooperao nas atividades governamentais (artigos. 95 a 98). A Constituio de 1946 devolveu a dignidade instituio, aps o desastrado tratamento conce-dido pela Carta de 1937. A Constituio de 1967 incluiu o Ministrio Pblico no captulo dedicado ao Poder Judicirio. A Emenda 1 de 1969 preferiu inclu-lo no captulo do Poder Executivo. A Constituio de 1988 foi a que mais avanou no processo de institucionalizao do Ministrio Pblico.8

    Discute-se a sua posio no quadro de poderes definido pela Constituio. Para alguns, o Ministrio Pblico constitui verdadeiro quarto poder.9 Para ou-tros, ele continua vinculado estrutura do Poder Executivo, embora com auto-nomia. Finalmente, ltima corrente sustenta que referida instituio constitui rgo dotado de autonomia, participante do sistema de freios e contrapesos estabelecido pelo Constituinte, sem integrar, entretanto, o territrio de nenhum dos poderes (Executivo, Legislativo e Judicirio).

    O ltimo entendimento o melhor. Com efeito, o Ministrio Pblico participa do sistema de freios e contrapesos, dispondo, por isso, de autonomia, inclusive financeira, mas sem constituir quarto poder. , antes, um rgo constitucional autnomo participante da arquitetnica constitucional da definio de poderes e contrapoderes.

    Os Tribunais de Contas dispem de condio anloga. Embora dotados igualmente de independncia e autonomia, integrando formalmente o captu-lo do Poder Legislativo,10 tambm referidas Cortes, pelo papel que assumem e

    8 Cf. COELHO, Inocncio Mrtires. O Ministrio Pblico na organizao constitucional brasileira. In: Revista de Informao Legislativa, n. 84, 1984, p. 167.

    9 Cf. VALLADO, Alfredo. Ministrio Pblico: quarto poder do Estado, e outros estudos jurdicos. Rio de Ja-neiro: Freitas Bastos, 1973. Pertinente a crtica de Hugo Nigro Mazzilli sobre a tese: (...) a diviso tripar-tite do Poder antes poltica e pragmtica que cientfica. Pouca ou nenhuma importncia teria colocar o Ministrio Pblico dentro de qualquer Poder do Estado, ou at utopicamente erigi-lo a um quarto Poder, como props Alfredo Vallado, a fim de que, s por isso, se lhe pretendesse conferir independncia. Esta no decorrer basicamente da colocao do Ministrio Pblico neste ou naquele ttulo ou captulo da Constituio, nem de denomin-lo Poder de Estado autnomo ou no; antes, primordialmente, depende-r das garantias e instrumentos de atuao conferidos instituio e a seus membros. E, naturalmente, dos homens que a integrem. (MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurdico do Ministrio Pblico. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 2001. p. 139).

    10 Outrossim, a evidncia de que o Tribunal de Contas remanesce, por tradio histrica, formalmente inserido no Poder Legislativo, como rgo auxiliar, no basta para caracterizar-lhe a natureza, funes, atos e atividades como congressionais, parlamentares ou legislativos, sob aspecto material. Ao contrrio, a taxinomia orgnica do Tribunal de Contas no Poder Legislativo no afeta de modo algum a essncia

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    pelas garantias institucionais e funcionais que lhe foram deferidas pelo Cons-tituinte, participam da dinmica dos freios e contrapesos arranjados na arqui-tetnica dos rgos constitucionais, alguns deles apresentando-se com status de Poderes, outros atuando na condio de simples, embora imprescindveis, rgos constitucionais autnomos.

    O fato de o Ministrio Pblico ser tratado em captulo separado da Consti-tuio no suficiente para justificar a elevao da instituio categoria de quarto poder. Se assim fosse, a Advocacia Geral da Unio e a Defensoria Pblica deixariam de integrar o territrio do Poder Executivo, j que, como o Minist-rio Pblico, apresentam-se como funes essenciais justia, disciplinadas pelo Constituinte em lugar comum.11

    Para evitar tais discusses, poderia o Constituinte, como sugere Hugo Nigro Mazzilli, ter colocado o Ministrio Pblico, lado a lado com o Tribunal de Con-tas, entre os rgos de fiscalizao e controle das atividades governamentais ou, como j o fizera a Constituio de 1934, entre os rgos de cooperao nas atividades governamentais.12

    3. OS PRINCPIOS INSTITUCIONAIS DO MINISTRIO PBLICO

    Definiu o Constituinte, no art. 127, que o Ministrio Pblico instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defe-sa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individu-ais indisponveis. Isto no significa que sem a presena do Ministrio Pblico no h jurisdio. Evidente que h. O Ministrio Pblico no atua em todas as questes submetidas apreciao judicial. Atua apenas e, nesta hiptese, necessariamente, nas questes que envolvam interesse pblico.13 Interesse p-blico definido seja em face da natureza da lide, seja da natureza das partes ou

    materialmente administrativa de sua natureza, funes, atos e atividades. Com efeito, o Tribunal de Con-tas aplica a lei de ofcio, precisamente como o faz a Administrao Pblica. Alis, no Brasil, Tribunal de Contas consiste em parcela especializada da Administrao Pblica, no aspecto substancial. (GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho. Regime jurdico dos Tribunais de Contas. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992. p. 186).

    11 Conferir: CARMO, Glauber S. Tatagiba do. A defesa da constituio pelos poderes constitudos e o Minis-trio Pblico. In: Revista de Direito constitucional e Internacional. So Paulo, n. 36, jul./set. de 2001, p. 215 e ss.

    12 MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurdico do Ministrio Pblico. p. 139-140.13 Sobre o conceito atual de interesse pblico, conferir: BARBOSA MOREIRA, Jos Carlos. Aes coletivas

    na Constituio Federal de 1988. In: Revista de Processo. Ano 16, janeiro-maro de 1991, n. 61, p. 193; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ao Civil Pblica. 12. ed. So Paulo: RT, 2011; MAZZILLI, Hugo Nigro. Processo Civil e Interesse Pblico. In: SALLES, Carlos Alberto de (Org.). Processo Civil e Interesse Pblico: o processo como instrumento de defesa social. So Paulo: RT, 2003; VENTURI, Elton. Processo Civil Cole-tivo. So Paulo: Malheiros Editores, 2007; ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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    de uma delas. Por outro lado, o Ministrio Pblico no atua apenas onde se ma-nifeste por ocasio da prestao jurisdicional. O parquet atua sem a presena do Estado-Juiz, quando, por exemplo, zela pelo exerccio regular dos rgos da Administrao, instaura inquritos civis, requisita diligncias, apresenta Reco-mendaes ou promove a defesa de direitos por meios de TACs Termos de Ajustamento de Conduta.14 Nestas hipteses, como natural, sua atuao pres-cinde da atividade jurisdicional.

    O Ministrio Pblico assume singular importncia com a Constituio Fe-deral de 1988. Basta a leitura dos artigos 127, 128 e, especialmente, 129 da Lei Fundamental para compreender a extremada significao das atribuies a ele deferidas.

    Segundo o art. 127, 1 da CF, so princpios institucionais do Ministrio Pblico a unidade, a indivisibilidade e a independncia funcional. A distino entre unidade e indivisibilidade no simples. Por isso, necessrio afirmar que o Ministrio Pblico uno e indivisvel, para depois afirmar que sua atua-o se manifesta com independncia funcional. A independncia funcional do Ministrio Pblico constitui uma das dimenses de sua autonomia. Os seus r-gos, ou seja, os agentes ministeriais, os magistrados do parquet, atuam com in-dependncia. Exercem suas atribuies em sintonia com o seu convencimento pessoal. A manifestao processual do rgo do parquet, portanto, decorrer de sua convico, no podendo receber ordens de seus superiores para agir deste ou daquele modo.

    Nos termos da Constituio, o Ministrio Pblico uno porque constitui um s rgo sob nica direo; indivisvel porque seus membros no se vinculam aos processos em que atuam, podendo ser substitudos uns pelos outros e in-dependente porque a livre convico de seus membros substancia garantia da livre atuao da instituio. Logo, do ponto de vista funcional, a rigor no h hierarquia entre os membros do parquet.

    4. RGOS DO MINISTRIO PBLICO

    Nos termos do art. 128 da Constituio da Repblica, o Ministrio Pblico abrange o (i) Ministrio Pblico da Unio, que compreende o Ministrio Pblico Federal, o Ministrio Pblico do Trabalho, o Ministrio Pblico Militar e o Mi-nistrio Pblico do Distrito Federal e Territrios e (ii) os Ministrios Pblicos

    14 Sobre os Termos de Ajustamento de Conduta consultar a seguinte legislao: Lei 8.069/90 (Estatuto da Criana e do Adolescente); Lei 8.078/90 (Cdigo de Defesa do Consumidor) e Lei 7.347/85 (Lei da Ao Civil Pblica), e as seguintes obras: MAZZILI, Hugo Nigro. O Inqurito Civil: investigaes do Ministrio Pblico, compromissos de ajustamento e audincias pblicas. 3. ed. So Paulo: Saraiva, 2008; MAZZILI, Hugo Nigro. Compromisso de ajustamento de conduta: evoluo, fragilidades e atuao do Ministrio Pblico. In: Revista de Direito Ambiental. So Paulo, RT, vol. 41, 2006.

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    dos Estados. O art. 130 faz meno ao Ministrio Pblico junto aos Tribunais de Contas, e o art. 130-A, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004, trata do Conselho Nacional do Ministrio Pblico.

    O Constituinte manteve as vrias carreiras que integram o Ministrio P-blico da Unio, tendo perdido tima oportunidade para unific-las. Manteve, inclusive, entre as carreiras componentes do Ministrio Pblico da Unio, o Mi-nistrio Pblico do Distrito Federal e Territrios, quando poderia t-lo transfe-rido para o Distrito Federal.

    O mesmo ocorre com a previso do art. 130 da Constituio Federal envol-vendo o Ministrio Pblico junto ao Tribunal de Contas. Trata-se de uma nova carreira? Ou o dispositivo constitucional providencia mera descrio de outra atribuio a ser exercida pelos prprios membros do Ministrio Pblico da Unio ou dos Estados? Tem-se aqui matria que o Constituinte de 1988 poderia ter resolvido de modo mais claro.15

    5. AS GARANTIAS DE INDEPENDNCIA DO MINISTRIO PBLICOA autonomia do Ministrio Pblico protegida por um feixe de garantias

    constitucionais, basicamente de duas ordens: as institucionais e as funcionais. As primeiras incidem sobre a instituio, cuidando dos meios necessrios para o bom exerccio dos seus cometimentos constitucionais. As outras incidem sobre os membros do parquet, assegurando a sua atuao com independncia funcional.

    5.1. AS GARANTIAS INSTITUCIONAISNos termos do art. 127, 2, da CF, assegurada autonomia funcional e

    administrativa ao Ministrio Pblico. Disso, podem ser extradas algumas con-sequncias. Como salientado, os rgos do MP atuam livremente. instituio conferido o poder de auto-administrao, ou seja, como o Poder Judicirio, o Ministrio Pblico dispe de servios auxiliares, cuja organizao e funciona-mento so disciplinados pela lei. Neste ponto, portanto, independe o parquet da boa vontade do Executivo. E mais, dispondo de servios auxiliares, compete ao prprio Ministrio Pblico prover os cargos respectivos, mediante concurso pblico para os cargos efetivos ou simples nomeao na hiptese de cargos de provimento comissionado. Alis, ao Ministrio Pblico cumpre prover os cargos

    15 A Lei 8.443/1992, que dispe sobre a Lei Orgnica do Tribunal de Contas da Unio, disciplina em seus artigos 80 a 84 a carreira do Ministrio Pblico junto ao Tribunal como sendo distinta da instituio ministerial prevista no art. 128 da Constituio de 1988. Impugnados, tais dispositivos foram declarados constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 789-1/DF), sob o fundamento de que os ramos do Ministrio Pblico da Unio esto taxativamente inscritos no rol do art. 128, inciso I, da Constituio, razo pela qual o Ministrio Pblico junto ao Tribunal de Contas no o integra. Em outras decises, o STF pacificou seu entendimento de que tambm os Ministrios Pblicos junto aos Tribunais de Contas estaduais so carreiras distintas dos Ministrios Pblicos estaduais, por fora da extenso obrigatria do art. 75 da Constituio de 1988 aos Estados (ADI 892-7/RS).

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    da carreira, aps a realizao de concurso pblico de provas e ttulos, assegu-rada a participao da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realizao (art. 129, 3, da CF). A nomeao dos aprovados independe da atuao do Chefe do Poder Executivo.

    Conta, ainda, o Ministrio Pblico com autonomia financeira. A instituio possui dotao oramentria prpria que deve ser entregue em duodcimos at o dia vinte de cada ms, incluindo-se os crditos especiais e suplementares (art. 168 da CF). Como ocorre com o Poder Judicirio, incumbe ao Ministrio Pblico, conforme o art. 127, 3, elaborar sua proposta oramentria, embora dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes oramentrias.

    Como corolrio de sua autonomia, o Ministrio Pblico detm o poder de iniciativa legislativa. Maneja seu poder de iniciativa para propor ao Legislativo a criao e a extino de seus cargos e servios auxiliares, a poltica remune-ratria e os planos de carreira (art. 127, 2, da CF). Logo, ostenta poder de iniciativa para propor a fixao e a majorao dos vencimentos dos cargos exer-cidos pelos seus membros ou daqueles integrantes dos seus servios auxilia-res. Dispe, por outro lado, de iniciativa concorrente para apresentar projetos cuidando da Lei Orgnica do Ministrio Pblico da Unio e da Lei Orgnica do Ministrio Pblico dos Estados (art. 128, 5, da CF). A Lei Nacional, que esta-belece as normas gerais para a organizao do Ministrio Pblico dos Estados, do Distrito Federal e dos Territrios, de iniciativa privativa do Presidente da Repblica (art. 61, 1, II, d, da CF).

    O arcabouo institucional do MP garantido, tambm, na Lei Fundamental do Pas, em face (i) da proibio de disciplina da carreira, de sua organizao ou das garantias de seus membros por meio de medida provisria e de lei de-legada (art. 62, 1, I, c e art. 68, 1, I, da CF) e (ii) da tipificao como crime de responsabilidade dos atentados contra o livre exerccio do parquet (art. 85, II, da CF).

    Embora a funo ministerial tenha alcanado nova dignidade com a Consti-tuio de 1988, a instituio no conta com o poder de autogoverno. Entende-se por autogoverno o poder conferido a determinado rgo (Judicirio, por exem-plo) ou Coletividade (Estados-membros e Municpios, tambm) de escolherem seus prprios dirigentes. Ora, cabe aos eleitorados estaduais ou municipais es-colherem seus governantes. Aos prprios Tribunais (sejam eles integrantes do Judicirio ou no, como o caso do Tribunal de Contas) cabe eleger seus dirigen-tes. Os Presidentes dos Tribunais brasileiros no so, portanto, escolhidos por autoridades exteriores ao Judicirio, como ocorre, por exemplo, com a Suprema Corte Americana.16 Em relao ao Ministrio Pblico, o Constituinte no foi to longe. No conferiu aos membros do parquet poder para escolherem os seus

    16 RODRIGUES, Leda Boechat. A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1992.

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    dirigentes. Mas a forma de investidura dos Procuradores Gerais (da Unio) ou de Justia (nos Estados) representou significativo avano. Antes da Constituio de 1988, os cargos de Procurador Geral (do MPU ou do MP dos Estados) eram de provimento em comisso, razo pela qual podiam os Chefes do Poder Execu-tivo (Federal ou Estaduais) livremente nome-los e demiti-los. A Constituio alterou radicalmente a sistemtica. O Procurador Geral da Repblica (Chefe do Ministrio Pblico da Unio) nomeado, agora, dentre os integrantes da carrei-ra, pelo Presidente da Repblica, aps a aprovao de seu nome pela manifesta-o da maioria absoluta do Senado Federal (art. 128, 1, da CF). A nomeao implica o exerccio de um mandato (rectius: exerccio de cargo a prazo certo) de dois anos. Os Procuradores Gerais de Justia (Chefes dos Ministrios Pblicos locais), por seu turno, sero nomeados pelo Chefe do Poder Executivo, dentre os indicados em lista trplice formada pelos prprios Ministrios Pblicos dos Es-tados e do Distrito Federal e Territrios, e composta unicamente por integran-tes da carreira (art. 128, 3).17 A destituio do Procurador Geral da Repblica, por iniciativa do Presidente da Repblica, depende de prvia autorizao do Senado Federal, pelo voto da maioria absoluta de seus membros (art. 128, 2, da CF). J a destituio dos Procuradores Gerais dos Ministrios Pblicos locais poder se dar por deliberao da maioria absoluta do Poder Legislativo local (art. 128, 4, da CF). A Constituio, quando se refere ao mandato do Procura-dor Geral da Repblica, permite a reconduo; quando trata dos Procuradores Gerais de Justia, referindo-se mesma hiptese, faz uso da seguinte locuo: permitida uma reconduo. O modo como o Constituinte tratou a matria su-gere que, no mbito federal, admite-se mais de uma reconduo, enquanto no mbito local apenas uma reconduo est autorizada.

    No se chegar, aqui, ao ponto de se sugerir a atribuio de verdadeiro au-togoverno ao Ministrio Pblico. A existncia de mecanismos de participao dos demais poderes na escolha do chefe da instituio representa importante mecanismo integrante do sistema de freios e contrapesos. Todavia, no se en-tende a razo da diferena entre os sistemas federal e estadual para a escolha do Procurador Geral: - lista trplice no mbito estadual, sem participao do Le-gislativo, e participao do Legislativo (Senado) no mbito Federal, sem a pr-via elaborao de lista trplice (pelo Ministrio Pblico). Talvez fosse o caso de se somarem os dois modelos. Em todos os casos, previso de lista trplice com aprovao pelo Legislativo (Senado ou Assemblia Legislativa) do nome indi-cado pelo Chefe do Poder Executivo (Presidente da Repblica ou Governador de Estado). Alis, a Constituio do Estado do Paran caminhava nesse sentido, quando dispunha que (art. 116):

    17 Cf. O artigo do presente livro A Constituio e os Requisitos para a investidura do Chefe do Ministrio Pblico nos Estados. Em sentido diverso: GUIMARES, Rodrigo Rgnier Chemim. Controle externo da atividade policial pelo Ministrio Pblico. Curitiba: Juru, 2004. p. 45.

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    O Ministrio Pblico tem por chefe o Procurador Geral de Justia, nomea-do pelo Governador do Estado, aps aprovao da Assemblia Legislativa, dentre os integrantes da carreira, indicados em lista trplice elaborada, na forma da lei, por todos os seus membros, para mandato de dois anos, per-mitida uma reconduo, em que se observar o mesmo processo.

    O Constituinte paranaense (i) previu a manifestao da Assemblia Legis-lativa no apenas no caso de destituio, como tambm por ocasio da escolha do Procurador Geral de Justia; (ii) determinou que, para a formao da lista trplice, participaro todos os membros do Ministrio Pblico e no apenas os integrantes de rgo composto por membros em final de carreira e (iii), por fim, permitiu a reconduo, desde que observado o mesmo processo (lista trplice, aprovao pelo Legislativo e nomeao pelo Executivo). 18

    Previso como esta deveria constar da Constituio Federal para disciplinar o processo de escolha e nomeao do Procurador Geral da Repblica e dos Pro-curadores Gerais de Justia. Lamentavelmente, no este o entendimento do Supremo Tribunal Federal.

    Outra questo que merece, neste campo, definio constitucional est re-lacionada com a carreira de onde o Presidente da Repblica escolher o Pro-curador Geral da Repblica. O Constituinte (art. 128, 1) determinou que o Procurador Geral da Repblica ser nomeado pelo Presidente da Repblica dentre integrantes da carreira. Utiliza a expresso no singular. Todavia, o Pro-curador Geral da Repblica chefe do Ministrio Pblico da Unio, integrado por diferentes carreiras (Ministrio Pblico Federal, Ministrio Pblico do Tra-balho, Ministrio Pblico Militar e Ministrio Pblico do Distrito Federal e dos Territrios). A qual das carreiras se refere o Constituinte? A todas? Certamente no, tanto que no falou em carreiras, mas sim em carreira. Parece que se refe-riu apenas carreira do Ministrio Pblico Federal. Por duas razes. Primeiro porque o Chefe do Ministrio Pblico Federal, integrado pelos Procuradores da Repblica, tambm o Chefe do Ministrio Pblico da Unio. No seria poss-vel atribuir a chefia do MPF a um integrante de outra carreira do MPU. Depois

    18 Cf. ADInMC 2.319-PR: Por aparente ofensa ao art. 128, 3, da CF (Os Ministrios Pblicos dos Estados e do Distrito Federal e Territrios formaro lista trplice dentre integrantes da carreira, na forma da lei respectiva, para escolha de seu Procurador-Geral, que ser nomeado pelo Chefe do Poder Executivo, para mandato de dois anos, permitida uma reconduo.), o Tribunal, julgando medida cautelar em ao direta ajuizada pelo Partido Social Liberal - PSL, deferiu a suspenso cautelar de eficcia de expresso contida na Constituio do Estado do Paran e de dispositivos da Lei Complementar n. 85/1999, do mes-mo Estado, que condicionam a nomeao do Procurador-Geral de Justia do Estado prvia aprovao de seu nome pelo Poder Legislativo estadual (expresso aps a aprovao da Assemblia Legislativa, constante do caput do art. 166 da Constituio do Estado do Paran; o 1 do art. 10, os 2 e 3 do art. 16 e, ainda, no mesmo artigo, a expresso submetendo-o aprovao pela Assemblia Legislativa, todos da Lei Complementar Estadual 85/99). Precedentes citados: ADInMC 1.228-AP (DJU de 2.6.95) e ADInMC 1.506-SE (DJU de 21.11.96). ADInMC 2.319-PR, rel. Min. Moreira Alves, 1.8.2001. ADI-2319). Informativo STF 235.

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    porque o chefe do MPU o Procurador Geral da Repblica. Ora, a nica carreira integrada por procuradores da repblica o Ministrio Pblico Federal. A logi-cidade dessa concluso importa, todavia, certa injustia. Ou seja, os membros das demais carreiras do MPU, salvo a do MPF, no podero exercer o cargo de Procurador Geral da Repblica. Est-se aqui em face de distoro decorrente da no unificao das carreiras no mbito do Ministrio Pblico da Unio.

    Mas ela no nica. Veja-se o caso do Ministrio Pblico do Distrito Federal e Territrios. O Constituinte conferiu autonomia poltica para o Distrito Federal. Inclusive competncia legislativa, exercitvel pela Cmara Distrital. O regime constitucional do Distrito Federal anlogo ao dos Estados. Dispe, tambm, de capacidade de autogoverno, autoadministrao, competncia legislativa e auto-nomia financeira. Ento o que justifica a manuteno do Ministrio Pblico do Distrito Federal no mbito da Unio? Ora, as funes do Ministrio Pblico junto aos Territrios (hoje inexistentes no Brasil, embora com possibilidade constitu-cional de criao) poderiam perfeitamente ficar a cargo do Ministrio Pblico Federal. O Distrito Federal, prope-se, deveria ser competente para organizar e manter essa importante instituio. O tratamento dispensado pelo Constituinte na situao pode autorizar a emergncia de alguma confuso. Deveras, a carrei-ra integra o MPU. A chefia do MPU exercida pelo Procurador Geral da Repbli-ca. Mas, a Constituio prev, no art. 128, 4, a existncia de um Procurador Geral de Justia do Distrito Federal, escolhido pelo Chefe do Executivo (Presi-dente da Repblica) e destituvel. Nos termos do art. 156, 2, da Lei Comple-mentar 75/1993, a destituio d-se por deliberao da maioria absoluta do Senado Federal, mediante representao do Presidente da Repblica.

    Porm, as complicaes vo alm. O Ministrio Pblico do Distrito Federal e dos Territrios a nica carreira integrante do MPU, na qual o Constituinte previu a existncia de Procurador Geral. Basta isso para a criao de situaes paradoxais. O Procurador Geral da Repblica o Chefe do Ministrio Pblico da Unio, mas no o chefe de uma das carreiras integrantes do MPU, a menos que se trate de um Chefia, neste caso, de carter meramente formal. Por outro lado, se o Procurador Geral da Repblica o Chefe do MPU, ento as demais carreiras integrantes da instituio, salvo o MPDF, em face de expressa previso consti-tucional, em princpio, no contam com Procuradores Gerais. No entanto, a le-gislao infraconstitucional contempla a existncia dessas autoridades. Quanto aos Procuradores Gerais nas carreiras, conquanto no estejam previstos na Lei Fundamental a sua previso por legislao infraconstitucional, ante a inexis-tncia de vedao, no contraria a vontade do Constituinte. Nesta medida, a Lei Complementar 75/1993 trata, expressamente, da nomeao, pelo Procurador Geral da Repblica, de Procuradores Gerais escolhidos entre os seus integran-tes, para as carreiras integrantes do MPU (art. 26, IV).

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    Essas questes, que muitas vezes trazem alguma perplexidade, poderiam muito bem ser resolvidas mediante a singela medida de unificao das carreiras integrantes do MPU, exceto a do MPDF, pelo motivo antes apresentado.

    5.2. GARANTIAS FUNCIONAIS DO MINISTRIO PBLICO

    As garantias funcionais do Ministrio Pblico so de duas ordens: ou so de independncia ou so de imparcialidade.19

    Com a nova Constituio, os membros do MP alcanaram um estatuto simi-lar ao consagrado magistratura judicial. Os rgos do parquet adquirem a vi-taliciedade, aps dois anos de exerccio, no podendo perder o cargo seno por sentena judicial transitada em julgado (art. 128, 5, I, letra a). So, ademais, inamovveis, salvo por motivo de interesse pblico, mediante deciso do rgo colegial competente do Ministrio Pblico, por voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa (art. 128, 5, I, letra b).20 Conquistaram, ademais, como a magistratura (art. 95, III), a irredutibilidade de subsdios (art. 128, 5, I, letra c).21

    Antes da Emenda Constitucional 19/1998, que transformou a irredutibi-lidade de vencimentos em irredutibilidade de subsdios, o Supremo Tribunal Federal decidiu quanto aos juzes que a garantia constitucional protegia toda a remunerao, e no apenas o padro bsico, contra a manifestao de reduo nominal sem, no entanto, implicar, em caso de defasagem, no automtico rea-juste remuneratrio. Diante do entendimento, perfeitamente aplicvel situ-ao dos membros do Ministrio Pblico, observa-se que a alterao operada pela Emenda 19/1998 inseriu excees ao princpio da irredutibilidade de sub-sdios, dentre elas, o teto referente ao subsdio mensal, includas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, em espcie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.22 Em economias inflacionrias, como a existente no Brasil nas 19 SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 601-

    602.

    20 Antes da Emenda Constitucional 45/2004, era exigido voto de dois teros dos membros do rgo cole-giado respectivo do Ministrio Pblico para se excetuar a garantia da inamovibilidade. Em consonncia com a redao primitiva do art. 128, 5, I, b, da Constituio de 1988, a Lei Complementar 75/1993 disps, em seu art. 17, II, que os membros do Ministrio Pblico da Unio so inamovveis, salvo por motivo de interesse pblico, mediante deciso do Conselho Superior, por voto de dois teros de seus membros. A norma infraconstitucional deve ser interpretada de acordo com a nova disposio constitu-cional.

    21 Antes da Emenda constitucional 19/1998, era garantida a irredutibilidade de vencimentos, prerrogativa, alis, de todos os trabalhadores nos termos dos arts. 7, VI e 37, XV, da Constituio de 1988. interes-sante notar que a Lei Complementar 75/1993 no contempla sequer a irredutibilidade de vencimentos, eis que, o dispositivo respectivo foi vetado. 22 Art. 129, I, c, de acordo com a EC 19/1998: irredutibilidade de subsdio, fixado na forma do art. 39, 4, e ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 150, II, 153, III, 153, 2, I.

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    dcadas de 1980 e 1990, basta que o Legislador (o Congresso) ou o Executivo (por meio do direito de veto) deixe de atualizar, por alguns meses, o padro re-muneratrio da magistratura ou do Ministrio Pblico para que tais instituies possam ficar de algum modo vulnerveis.

    Os membros do Ministrio Pblico, antes da Constituio de 1988, salvo em alguns Estados, por fora de dispositivo constitucional estadual, no eram vita-lcios, mas meramente (aps os dois anos do estgio probatrio) estveis.

    Tem-se interpretado que a inamovibilidade d-se no cargo. Da as designa-es determinadas pelos Procuradores Gerais poderem constituir mecanismo de afastamento da incidncia da garantia constitucional. Um promotor inamo-vvel, exercente de cargo nesta ou naquela Comarca, designado para atender rgo ou promotoria especial onde no contar com referida garantia, podendo ser afastado a qualquer tempo. Parece que a nica interpretao ajustada ao princpio constitucional a que resulta na inamovibilidade em qualquer rgo onde atue o agente ministerial. Nesta medida, as designaes para os rgos especiais do Ministrio Pblico devem ser, paulatinamente, substitudas pelas remoes e promoes, criando-se, em consequncia, cargos em nmero sufi-ciente para a atuao desses rgos.

    As garantias funcionais do Ministrio Pblico se completam com a previso de foro por prerrogativa de funo. Ficou constitucionalmente estabelecido que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, nas infraes penais comuns, ao Procurador-Geral da Repblica (art. 102, I, b), e ao Senado Federal julg-lo nos crimes de responsabilidade (art. 52, II). Ao Su-perior Tribunal de Justia compete processar e julgar nos crimes comuns e de responsabilidade, originariamente, os membros do Ministrio Pblico da Unio que oficiem perante Tribunais (art. 105, I, a, da CF) e aos Tribunais Regionais Federais, processar e julgar, originariamente, os membros do Ministrio Pblico da Unio, ressalvada a competncia da Justia Eleitoral e a do Superior Tribu-nal de Justia (art. 108, I, a, da CF). Quanto aos membros do Ministrio Pblico estadual, sero julgados, nos crimes comuns e de responsabilidade, pelos res-pectivos Tribunais de Justia, ressalvada a competncia da Justia Eleitoral (art. 96, III, da CF).

    As garantias de imparcialidade do Ministrio Pblico (o parquet, segundo a tradio do direito brasileiro, parte imparcial), como as da magistratura judi-cial, manifestam-se por meio das vedaes constitucionalmente impostas aos membros da carreira.

    Aos juzes, a Lei Fundamental da Repblica (art. 95, pargrafo nico) veda (i) o exerccio, ainda que em disponibilidade, de outro cargo ou funo, salvo uma de magistrio; (ii) o recebimento, a qualquer ttulo ou pretexto, de custas ou participao em processo; (iii) a dedicao atividade poltico-partidria;

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    (iv) receber, a qualquer ttulo ou pretexto, auxlio ou contribuies de pessoas fsicas, entidades pblicas ou privadas, ressalvadas as excees previstas em lei; e (v) exercer a advocacia no juzo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos trs anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exonera-o. Sobre os membros do parquet, incidem as seguintes vedaes (art. 128, 5 II, da CF): (i) receber, a qualquer ttulo e sob qualquer pretexto, honorrios, percentagens ou custas processuais; (ii) exercer a advocacia; (iii) participar de sociedade comercial, na forma da lei; (iv) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra funo pblica, salvo uma de magistrio; (v) exercer ativida-de poltico-partidria e (vi) receber, a qualquer ttulo ou pretexto, auxlio ou contribuies de pessoas fsicas, entidades pblicas ou privadas, ressalvadas as excees previstas em lei.

    A proibio da advocacia privada apanhou, com a promulgao da vigente Lei Fundamental, apenas os integrantes do Ministrio Pblico da Unio. Desde antes da Constituio, em face de legislao infraconstitucional, agentes do par-quet estadual j estavam proibidos de advogar. Com efeito, a proibio veio em boa hora, j que, efetivamente, h verdadeira incompatibilidade entre as duas atividades: a advocacia privada e a advocacia da sociedade.

    Quanto atividade poltico-partidria que, em casos excepcionais definidos pelo legislador ordinrio, era permitida, o Constituinte optou, mais tarde, pela proibio, adotando posio j defendida em edio anterior desta obra.23 To-me-se como exemplo o episdio do Presdio Carandiru no Estado de So Paulo no ano de 1992. Tanto o Governador do Estado como o Secretrio de Segurana Pblica eram membros do parquet estadual. Basta esse fato para dificultar instituio a consecuo de uma de suas funes institucionais, especialmente a definida no art. 129, II, da CF: zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Pblicos e dos servios de relevncia pblica aos direitos assegurados nesta Constituio, promovendo as medidas necessrias sua garantia.

    Ora, quando os membros do Ministrio Pblico abandonam as suas funes institucionais para exercerem cargos polticos eletivos ou comissionados, atu-ando prximos ao poder, seja no Legislativo ou no Executivo, h o comprometi-mento da instituio como um todo. Isso ocorre, especialmente, quando o n-mero de promotores exercentes de cargos pblicos comissionados, de primeiro

    23 Antes da Emenda Constitucional 45/2004, eram ressalvados da vedao de exerccio de atividade polti-co-partidria por membros do Ministrio Pblico os casos expressamente permitidos em lei. A Lei Com-plementar 75/1993 dispe no art. 237, V que vedado exercer atividade poltico-partidria, ressalvada a filiao e o direito de afastar-se para exercer cargo eletivo ou a ele concorrer. O autor, na primeira edio de seu Temas de Direito Constitucional, defendeu o seguinte: Quanto ao exerccio de atividade poltico--partidria que, em casos excepcionais a serem definidos pelo legislador ordinrio, pode ser permitido, melhor seria que o Constituinte definisse, de uma vez por todas, como fez com os juzes, a proibio. CLVE, Clmerson Merlin. Temas de Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). So Paulo: Editora Acadmica, 1993. p. 114.

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    ou de segundo escales, considervel. Em casos como esse, a independncia e, mais do que isso, a credibilidade da instituio sofrem percalos.24

    Muitos estranham a existncia de Procuradores da Repblica que advogam ou de Promotores de Justia exercendo cargo comissionado na Administrao Pblica direta ou indireta, inclusive o de Secretrio de Estado. Aqui, encontra-se um dos srios problemas que afligem o direito constitucional brasileiro, ou seja, a previso, pela Constituio, de disposies constitucionais transitrias que afastam a incidncia das normas gerais introduzidas pelo Constituinte.

    A Constituio Federal permitiu que os membros do Ministrio Pblico pu-dessem optar pelo regime anterior, assim que fosse aprovada a respectiva lei complementar. Esta opo foi realizada, no mbito do MPU, por ocasio da pro-mulgao da Lei Complementar 75, de 1993, que disps sobre a sua organiza-o, atribuies e estatuto. Nesse caso, no adquiriro a vitaliciedade (salvo a existncia de norma constitucional estadual anterior em sentido contrrio) ou

    24 De acordo com o Conselho Nacional do Ministrio Pblico, nos termos da Resoluo 5, de 20 de maro de 2006: Art. 1. Esto proibidos de exercer atividade poltico-partidria os membros do Ministrio Pblico que ingressaram na carreira aps a publicao da Emenda 45/2004. Art. 2. Os membros do Ministrio Pblico esto proibidos de exercer qualquer outra funo pblica, salvo uma de magistrio. Pargrafo nico. A vedao no alcana os que integravam o Parquet em 5 de outubro de 1988 e que tenham ma-nifestado a opo pelo regime anterior. Art. 3. O inciso IX do artigo 129 da Constituio no autoriza o afastamento de membros do Ministrio Pblico para exerccio de outra funo pblica, seno o exerccio da prpria funo institucional, e nessa perspectiva devem ser interpretados os artigos 10, inciso IX, c, da Lei n. 8.625/93, e 6., 1. e 2., da Lei Complementar n. 75/93. Art. 4. O artigo 44, pargrafo nico, da Lei n. 8.625/93 no autoriza o afastamento para o exerccio de outra funo, vedado constitucionalmen-te. Pargrafo nico. As leis orgnicas estaduais que autorizam o afastamento de membros do Ministrio Pblico para ocuparem cargos, empregos ou funes pblicas contrariam expressa disposio consti-tucional, o que desautoriza sua aplicao, conforme reiteradas decises do Supremo Tribunal Federal. Veja-se jurisprudncia no mesmo sentido: RE 597994/PA Rel. Min. Ellen Gracie: RECURSO EXTRAOR-DINRIO. ELEITORAL. MEMBRO DO MINISTRIO PBLICO. RECANDIDATURA. DIREITO ADQUIRIDO. DIREITO ATUAL. AUSNCIA DE REGRA DE TRANSIO. PRECEITOS CONSTITUCIONAIS. ARTIGOS 14, 5 E 128, 5, II, e DA CONSTITUIO DO BRASIL. AUSNCIA DE CONTRADIO. SITUAO PECULIAR A CONFIGURAR EXCEO. EXCEO CAPTURADA PELO ORDENAMENTO JURDICO. INTERPRETAO DA CONSTITUIO NO SEU TODO. No h, efetivamente, direito adquirido do membro do Ministrio Pblico a candidatar-se ao exerccio de novo mandado poltico. O que socorre a recorrente o direito, atual --- no adquirido no passado, mas atual --- a concorrer a nova eleio e ser reeleita, afirmado pelo artigo 14, 5, da Constituio do Brasil. No h contradio entre os preceitos contidos no 5 do artigo 14 e no artigo 128, 5, II, e, da Constituio do Brasil. A interpretao do direito, e da Constituio, no se reduz a singelo exerccio de leitura dos seus textos, compreendendo processo de contnua adaptao realidade e seus conflitos. A ausncia de regras de transio para disciplinar situaes fticas no abrangidas por emenda constitucional demanda a anlise de cada caso concreto luz do direito enquanto totalidade. A exceo o caso que no cabe no mbito de normalidade abrangido pela norma geral. Ela est no direito, ainda que no se encontre nos textos normativos de direito positivo. Ao Judicirio, sempre que necessrio, incumbe decidir regulando tambm essas situaes de exceo. Ao faz-lo no se afasta do ordenamento. Recurso extraordinrio a que se d provimento. MS 26595 / DF Rel. Min. Crmen Lcia: MANDADO DE SEGURANA. RESOLUO N. 5/2006 DO CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO: EXERCCIO DE CARGO DE DIRETOR DE PLANEJAMENTO, ADMINISTRAO E LOGSTICA DO IBAMA POR PROMO-TOR DE JUSTIA. IMPOSSIBILIDADE DE MEMBRO DO MINISTRIO PBLICO QUE INGRESSOU NA INS-TITUIO APS A PROMULGAO DA CONSTITUIO DE 1988 EXERCER CARGO OU FUNO PBLICA EM RGO DIVERSO DA ORGANIZAO DO MINISTRIO PBLICO. VEDAO DO ART. 128, 5, INC. II, ALNEA D, DA CONSTITUIO DA REPBLICA. PRECEDENTES. SEGURANA DENEGADA..

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    a inamovibilidade. Mas, por outro lado, no sero alcanados pelas vedaes previstas na nova Constituio. Por essa razo, os agentes que entraram em exerccio antes da promulgao da Carta de 1988 podero optar pelo regime an-terior. Em face do disposto no art. 29, 3, do ADCT, h, temporariamente, dois regimes jurdicos distintos informando o estatuto dos agentes ministeriais.25

    Em relao ao Ministrio Pblico da Unio, como j afirmado, a questo se complica um pouco mais. Porque os agentes do MP dos Estados j estavam proibidos de exercer a advocacia privada. Os membros do Ministrio Pblico da Unio, todavia, no.

    A Procuradoria da Repblica, antes da Constituio de 1988, exercia, a um tempo, as funes de Advocacia da Unio (representao judicial e extra-judi-cial) e de Ministrio Pblico Federal (atuante junto Justia Federal). A Consti-tuio criou a Advocacia Geral da Unio (art. 131) e vedou ao Ministrio Pbli-co o exerccio da representao judicial e da consultoria jurdica de entidades pblicas (art. 129, IX, da CF). Todavia, deferiu Procuradoria da Repblica (art. 29, caput, do ADCT) o exerccio da representao judicial da Unio enquanto no aprovadas as leis complementares relativas ao Ministrio Pblico e Advo-cacia Geral da Unio. Por isso, embora transitoriamente, aps a promulgao da vigente Constituio, por quatro anos continuou a Procuradoria da Repblica a exercer a advocacia em favor da Unio (neste caso auxiliada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, nas questes de natureza fiscal, segundo autoriza o art. 29, 5 do ADCT). Facultou-se, ademais, em face da peculiar situao da Procuradoria da Repblica, aos procuradores em atividade na data da promul-gao da Constituio, o direito de optar entre as carreiras do Ministrio Pbli-co Federal e da Advocacia-Geral da Unio (art. 29, 2, do ADCT). Alm disso, foi promulgada a lei complementar disciplinadora da carreira da Advocacia-Geral da Unio (Lei Complementar 73/1993).

    A Emenda Constitucional 45/2004 instituiu os rgos destinados ao exerccio de controle da atuao administrativa e financeira do Poder Judicirio e do Minis-trio Pblico. O Conselho Nacional do Ministrio Pblico rgo colegial nacio-nal, composto por oito membros do Ministrio Pblico, dois do Poder Judicirio, dois da advocacia e dois da sociedade escolhidos pelo Poder Legislativo (art. 130-

    25 Fruto de poderoso lobby, tal dispositivo transitrio, visando a acomodar situaes e interesses particu-lares, acabou desnaturando em grande parte o perfil constitucional que fora reservado dentre os dispo-sitivos permanentes que se referem ao Ministrio Pblico. A uma, porque os membros do Ministrio P-blico Federal que j advogam podero continuar a faz-lo; a duas, porque o afastamento da carreira, para atividades poltico-partidrias ou para cargos administrativos, poder continuar a ser utilizado quase que irrestritamente, como se ver, por quem se encontre nas condies de exercer a opo de que cuida o dispositivo transitrio; a trs, porque criar dois quadros paralelos dentro de cada Ministrio Pblico, com garantias, vantagens e vedaes dspares; assim, dentro do campo de garantias, vantagens e veda-es do regime anterior, por certo se poder at cogitar de opo pelo antigo tratamento remuneratrio, bem como ausncia do teto estipulado no art. 17 do ADCT. (MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurdico do Ministrio Pblico. p. 379).

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    A). Embora tenha por funo precpua zelar pela autonomia funcional e adminis-trativa do Ministrio Pblico, podendo, inclusive, expedir atos regulamentares no mbito de sua competncia, ou recomendar providncias, h vozes na doutrina defendendo tratar-se de criao atentatria s prerrogativas ministeriais.26

    6. FUNES INSTITUCIONAIS DO MINISTRIO PBLICO

    So funes institucionais do Ministrio Pblico nos termos do art. 129 da Constituio: (i) promover, privativamente, a ao penal pblica, na forma da lei; (ii) zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Pblicos e dos servios de rele-vncia pblica aos direitos assegurados na Constituio, promovendo as medi-das necessrias para sua garantia; (iii) promover o inqurito civil e a ao civil pblica, para a proteo do patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;27 (iv) promover a ao de inconstituciona-lidade ou representao para fins de interveno da Unio e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituio; (v) defender judicialmente os direitos e in-teresses das populaes indgenas; (vi) expedir notificaes nos procedimentos administrativos de sua competncia, requisitando informaes e documentos para instru-los, na forma da lei complementar respectiva; (vii) exercer o con-trole externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; (viii) requisitar diligncias investigatrias e a instaurao de inqurito policial, indicados os fundamentos jurdicos de suas manifestaes processuais; (ix) exercer outras funes que lhe forem conferidas, desde que compatveis com sua finalidade,28 sendo-lhe vedada a representao judicial e a consultoria jurdica de entidades pblicas.

    O dispositivo deve ser somado ao constante do art. 103, 1, da CF, que determinou a audincia do Procurador-Geral da Repblica em todos os feitos de competncia do Supremo Tribunal Federal.

    26 A EC 45/04 estabeleceu, no art. 130-A, o Conselho Nacional do Ministrio Pblico, cujo funcionamento dever observar todas as garantias e funes institucionais e dos membros do Parquet, impedindo a inge-rncia dos demais poderes de Estado em seu funcionamento, pois a Carta Magna caracterizou a Instituio como rgo autnomo e independente, e destinou-a ao exerccio de importante misso de verdadeiro fiscal da perpetuidade da federao, da Separao dos Poderes, da legalidade e moralidade pblica, do regime democrtico e dos direitos e garantias individuais. O desrespeito a essa consagrao constitucional ao Mi-nistrio Pblico caracterizar, conforme verificado no item anterior, a deformao da vontade soberana do poder constituinte, e, consequentemente, a eroso da prpria conscincia constitucional. (MORAES, Ale-xandre de. Constituio do Brasil interpretada. 5. ed. So Paulo: Atlas, 2005. p. 1706).

    27 Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juzo meio ambiente, consumidor e patri-mnio cultural. 25. ed. So Paulo: Saraiva, 2012; NERY JNIOR, Nelson. O Ministrio Pblico e as aes coletivas. In: MILAR, Edis. (Org.). Ao Civil Pblica: lei 7.347/85 - reminiscncias e reflexes aps dez anos de aplicao. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

    28 Questo muito debatida atualmente diz respeito possibilidade de membros do Ministrio Pblico pra-ticarem diretamente atos de investigao criminal. Sobre o assunto, conferir a segunda parte do presente estudo.

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    sobre o ministrio pblico: consideraes acerca do seu regime constitucional e seu poder...

    Da leitura das disposies acima referidas, depreende-se a importncia do Ministrio Pblico na Constituio de 1988. Titular exclusivo da ao penal p-blica, fiscal da ordem jurdica e defensor do regime democrtico,29 do cidado (ombudsman),30 dos interesses das populaes indgenas, do meio ambiente,31 do patrimnio pblico e social e dos interesses difusos e coletivos em geral, alcanou a instituio um papel de relevo no quadro da organizao do Estado brasileiro.32

    O que foi at aqui considerado suficiente para demonstrar que, salvo as questes de menor importncia indicadas no decorrer do texto, a disciplina constitucional do Ministrio Pblico bastante satisfatria, guardando compa-tibilidade com a singular importncia que a instituio adquiriu no contexto da organizao poltica nacional.

    II MINISTRIO PBLICO E INVESTIGAO CRIMINAL

    1. INTRODUO

    Discute-se a propsito da legitimidade do exerccio, por membros do Minis-trio Pblico, de atividades de investigao dirigidas apurao de infraes criminais. 33

    29 Cf. COMPARATO, Fbio Konder. O Ministrio Pblico na defesa dos direitos econmicos, sociais e cul-turais. In: GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Srgio Srvulo da (coord.). Estudos de direito constitucional em homenagem a Jos Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 244-260.

    30 Cf. LOPES, Jlio Aurlio Vianna. O novo Ministrio Pblico Brasileiro. p. 160 e ss.; COSTA, Paula Bajer Fernandes Martins da. Sobre a importncia do Poder Judicirio na configurao do sistema da separao de poderes instaurado no Brasil aps a Constituio de 1988. In: Revista de direito constitucional e inter-nacional. So Paulo, n. 30, jan./mar. 2000, p. 250.

    31 Cf. MILAR, dis; MAZZILLI, Hugo Nigro; FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo. O Ministrio P-blico e a questo ambiental na constituio. In: Justitia, n. 131-A, Ministrio Pblico do Estado de So Paulo, 1985, p. 45.

    32 Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Ministrio Pblico: deveres constitucionais da instituio face a situaes de insegurana pr-crtica. p. 79-82.

    33 Cf. BARROSO, Lus Roberto. Investigao pelo Ministrio Pblico. Argumentos contrrios e a favor. A sntese possvel e necessria. In: Revista Brasileira de Direito Pblico, Belo Horizonte, v. 7, n.7, p. 213-227, 2004; STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituio: a legitimidade da funo investiga-tria do Ministrio Pblico. Rio de Janeiro: Forense, 2003; LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigao preliminar no processo penal. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; GUIMARES, Rodrigo Rgnier Chemim. Controle externo da atividade policial pelo Ministrio Pblico; ROXIN, Claus. Posicin jurdica y tareas futuras del Ministerio Pblico. In: MAIER, Julio B. J. El Ministerio Pblico en el Processo Penal. Buenos Aires: Ad hoc s.r.l., 2000. p. 37-57; MESQUITA, Paulo D. Notas sobre inqurito penal, polcias e Estado de Direito Democrtico (suscitadas por uma proposta de lei dita de organizao de investigao criminal). In: Revista do Ministrio Pblico, Lisboa, abr./jun. 2000, p. 137-149; CHOUKR, Fauzi Hassan. Relacionamento entre o Ministrio Pblico e a Polcia Judiciria no Processo Penal Acusatrio. In: Revista Atualidades e Tendncias, So Paulo: Universo do Direito, So Paulo, 2001; MOREIRA, Rmulo de Andra-de. Ministrio Pblico e Poder Investigatrio Criminal. In: Revista do Ministrio Pblico, n. 1, jan. 1999.

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