paisagens sonoras, trilhas musicais - retratos sonoros do brasil

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Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil Soundscapes, soundtracks: Brazilian sound portraits Heloísa de A. Duarte Valente UMC; PPGMUS-ECA-USP, São Paulo [email protected] ;[email protected] RESUMO O presente texto parte dos pressupostos de que: 1) a música é componente de relevo da paisagem sonora (SCHAFER, 2001); da mesma maneira, a paisagem sonora interfere nos processos perceptivos e na formação do gosto estético; 2) a música veiculada pela mídia é construto da vida cotidiana, pois a própria música engendra modelos e formas de comportamento. Tendo como referência essas premissas, este texto analisa peças de repertório musical que, de certa maneira, representam o Brasil, ao longo de seus governos e governantes. Tomo, para este ensaio, a paisagem sonora do período relativo ao final do século XX, em que governaram os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Acredito que traços particulares presentes na canção midiática formam uma rede de signos (às vezes discretos) que acabam por imprimir, indelevelmente, à cultura de origem, uma feição muito particular. Ocorre que, até o momento presente, estes signos não demonstram terem sido objeto de análises mais detalhadas. Um estudo desses elementos poderá contribuir para compreender melhor a dinâmica social das culturas, pela figura de seus governantes e governos, para além do que nos vem sendo oferecido, de forma estereotipada e simplista. Palavras-chave: paisagem sonora no Brasil; música popular e memória musical; canção e semiótica musical.

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Paisagens Sonoras, Trilhas Musicais - Retratos Sonoros Do Brasil

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Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil Soundscapes, soundtracks: Brazilian sound portraits Helosa de A. Duarte ValenteUMC; PPGMUS-ECA-USP, So Paulo [email protected];[email protected] RS!"#O presente texto parte dos pressupostos de que: 1) a msica componente derelevodapaisagemsonora(SCHAFER, 2001);damesmamaneira, apaisagemsonora interfere nos processos perceptivos e na formao do gosto esttico; 2) amsica veiculada pela mdia construto da vida cotidiana, pois a prpria msicaengendramodelos e formas de comportamento. Tendo comoreferncia essaspremissas, este texto analisa peas de repertrio musical que, de certa maneira,representam o Brasil, ao longo de seus governos e governantes. Tomo, para esteensaio, apaisagemsonoradoperodorelativoaofinal dosculoXX, emquegovernaram os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Incio Lula da Silva.Acredito que traos particulares presentes na cano miditica formam uma redede signos (s vezes discretos) que acabam por imprimir, indelevelmente, culturade origem, uma feio muito particular. Ocorre que, at o momento presente, estessignos no demonstram terem sido objeto de anlises mais detalhadas. Um estudodesses elementos poder contribuir para compreender melhor a dinmica social dasculturas, pela figura de seus governantes e governos, para alm do que nos vemsendo oferecido, de forma estereotipada e simplista.Pala$ras%cha$e: paisagem sonora no Brasil; msica popular e memria musical;cano e semitica musical.ABS&RA'&This paper departs from the following assumptions 1) music is a prominent part ofthesoundscape(SCHAFER, 2001) andlikewise, thesoundscapeinterfereswithcompositional processes and the development of the aesthetical taste, 2) pieces ofmusic broadcasted in the media are constituents of everyday life, since music itselfproduces habits and models of behavior. Referring to these suppositions, this textintendstoanalyzesomepiecesof musical repertoirewhichinacertainextentrepresents Brazil as a country, through their governments and presidents. For thispurpose, I will analyze the soundscape of the period concerning the late twentiethcentury,whenFernandoHenriqueCardosoandLuiz IncioLuladaSilvawerepresidents. I believethat particular featuresinmediasongsmight engender anetwork of signs (sometimes discreet ones) which could stamp its marks in culturein a very special way. It should be stressed that such approach seems not to havebeen subject of careful study. An analysis of these discrete elements couldcontribute to understandhowsocial dynamics of cultures occurs, beyond thestereotyped and naive approaches.(e)*ords: soundscapeinBrazil; popular songs andmusical memory; song andmusical semiotics. +. !m Brasil ,ue se conhece pelos ou$idosAntes deiniciar estaexposio, cabemencionar aorigemdetal preocupaoinvestigativa. Este texto parte de umensaio longo cujo tema envolve aspaisagenssonorasnoBrasil, tendocomobaseas"trilhassonoras"implantadaspelos governos e respectivos governantes. A motivao que me levou a escrev-lodeu-se de modo quase acidental h vrios anos, quando assisti a uma entrevista aocrtico musicalNelson Motta,pela televiso. Ao comentar sobre o panorama dasmsicas no Brasil, Motta aventouuma hiptese muito instigante: governos egovernantes tm uma trilha musical que os identifica e caracteriza; mais que isso,osgnerosmusicaisimprimemumamarcaindelvel, inconfundvel. Sugeriaquemodas e modismos musicais surgiam ao sabor do ambiente sociopoltico. Seguindotal raciocnio, Fernando Collor, presidente de ento, coadunava-se com ossertanejos; do mesmo modo que Jos Sarney corresponderia lambada e,Juscelino Kubitschek, Bossa Nova. Seguiram-se outros exemplos. Memorizeiasconsideraes docrticoepassei arefletir sobre oassunto. (infelizmente, asrefernciasentrevistaseperderam...)Acuriosidademeatiou, levando-meaestabelecer uma srie de paralelos e a tomar notas esparsas. Devo, pois, a NelsonMotta, "mote" inicial para este exerccio de "clariaudincia"1 que aqui segue.Acredito que o tema merea especial ateno e, de pronto, ressalto a suaimportncia: as mdias pontuam praticamente todas as atividades da vida cotidiana,em quantidade e extenso cada vez mais abrangente. Dentre todas elas, a msica -sobretudo sob a modalidade "cano"- parece onipresente nas linguagensaudiovisuais, quer como trilha sonora, quer como msica de fundo(jinglespublicitrios, tema de abertura de peas deteledramaturgia,noticirios, leitmotiven depersonagens nas telenovelas etc.); navidacomezinha,amsica"infiltra-se"noterritriodavidantimaepessoal (ou,mesmo o "invade") atravs dos toques de telefone, games, alm da j conhecida epolmica msica-ambiente (Muzak). Essa existncia se verifica tanto no ambientedomstico, quantonosespaospblicoseinstitucionais. Postoisso, nopareceexageradoafirmar queos signos musicais representametestemunhamoseutempo e o tempo ao qual fazem referncia.Raciocinando dessa maneira, a analogia proposta por Nelson Motta est longe deconstituir uma prtica retrica, de exibicionismo do seu conhecimento sobrerepertrios musicais; ao contrrio, trata-se, antes de tudo, de um convite (e umaprovocao) ao leitor curioso para deixar-se enveredar por um campo ainda poucoexplorado nos estudos acadmicos - o mundo que se faz conhecer pelos ouvidos(VALENTE, 2002). O conjunto de obras (e as variaes da paisagem sonora, emsuas vrias circunstncias) no apenas constroem a imagem do governante, desdea sua candidatura, at a tomada de poder, mas tambm, emcerta medida,identificamprogramasdegoverno, aolongodoseumandato. Acomposiodaimagem (sonora), por intermdio de peas musicais, estabelece formas ativas decomunicao entre sistemas, orientao ideolgica de governo, governantes egovernados. Tal como a"trilhasonora" de umaextensa peadedramaturgia,atrilhasonoradosgovernospeemcenaastramasdavidaemsociedade, emmomentos de jbilo e conflito; aceitao e recusa; concordncia e repdio; guerrae paz, amor e dio... Ocorre que esta comunicao se faz, em larga medida, demaneiraintuitiva:oscdigosexistem, sendogeralmentedecifradosdemaneiraespontnea. Emoutraspalavras, pareceexistir umaformacorrespondentenasdiversasconfiguraesdas paisagens sonoras mximapopular "ohbitofazomonge". O que no se verifica a formulao sistemtica a ser aplicadaconvencionalmente. Este ensaio tem a pretenso de dar incio a essa empreitada.Para tanto, levar em conta, alguns pressupostos: 1) a msica componente deincontestvel importncianapaisagemsonora2 (SCHAFER, 2001);esta, por suavez, interfere nos processos comunicacionais, na recepo (uma vez que modifica asensibilidade da escuta); 2) a paisagem sonora capaz de engendrar modelos eformas de ouvir, pensar e compor msica; 3) em decorrncia do item 2), infere-seque a msica veiculada pelas mdias construto no apenas do mercadofonogrficoeseus mandatrios, mas tambmresultadeumaincorporaodehbitos deescutadesenvolvidos ecristalizados navidacotidiana, pelaprpriarepetio contnua na escuta de determinado repertrio (voluntariamente, ou no).Tendo apresentado estas premissas iniciais, passo a alguns conceitos de base. -. Retratos sonoros: . procura de uma conceitua/0o pr1priaAntes de proceder a uma anlise das obras que identificam, rotulam,salientam,maculam, exaltam - ou at mesmo depem- governantes e respectivosgovernos, cabe fazer duas observaes iniciais. Aprimeiradelas refere-se aoconceito de "paisagem sonora" (adaptao do neologismo soundscape), criado pelocompositor e R. Murray SCHAFER (2001). Para o compositor canadense, os estudosda paisagem sonora envolvem um campo interdisciplinar de pesquisas referentes aoambiente acstico, no importando sua natureza. So paisagens sonoras assituaes e circunstncias em que os eventos sonoros se desenrolam no tempo eno espao, incluindo-se prprias transfiguraes de ummesmo ambiente: apaisagem sonora de um mesmo espao fsico se transfigura ao longo das horas dodia, das estaes do ano; o transcorrer dos sculos tambm imprime variaes. Arigor, a paisagem sonora tende a ser mais barulhenta nas grandes cidades, devido auma maior ocorrncia de eventos sonoros simultneos, sejam eles motivados porpessoas ou outras fontes. Acrescente-se que a evoluo tecnolgica vem trazendoum aumento progressivo na quantidade de objetos produtores de rudos,congestionando a paisagem sonora. Os sons naturais -sobretudo animais-tornaram-se raros ou menos frequentes.Outro marco conceitual a destacar a msica que aqui ser analisada. Posto que agrande maioria das obras musicais que fazem referncia mais ou menos direta agovernantes, governos e populao se do por variantes da forma cano, necessrio, antes de prosseguir, estabelecer uma distino entre as denominaes"cano popular" e "cano das mdias". Parto do pressuposto de que o conceito decano popular impreciso, podendo-seestender auma gama diversa deobras(NEDER, 2010)3. Muito embora parea um conceito autorreferente, talvez at peloseu uso trivial pelo senso comum, no h um consenso, uma definio clara sobre oque se denomina cano popular (GONZLEZ, 2001). De maneira precria,conceitua-se como uma pea musical, composta sobre texto verbal, difundida pelosdiversos meios de comunicao. Tal definio, levada ao extremo pode encampardesdeacanotradicional, deorigemantiga, atariadepera, adequadatransmisso por alto-falantes. Dada essa fragilidade conceitual, opto peladenominao canodasmdias (VALENTE, 2003):acanoconcebidaparaserveiculada pelas mdias (inicialmente, sonoras, sucedida pelas audiovisuais),acolhendo as normas e possibilidades tecnolgicas disponveis; ou, ainda, a canoque, mesmo oriunda de outro contexto (rias de pera romntica, cantigasfolclricas, tradicionais e outras compostas para se executar ao vivo e semaparatos) tenha-se adaptado aos padres da cano concebida para o disco, tendoseus parmetros (durao, variao de intensidade e andamento, instrumentaoetc.) controlveis segundo outros referenciais alheios ao projeto do compositor e,noraro,oprpriointrprete. Aindaqueamaioriadascanesmiditicasnoresulte da leitura de uma partitura pr-existente (convencional, em pentagrama oumesmo por cifras), no se excluem dessa categoria aquelas que tiverem, em suabase, o suporte escrito. A cano miditica deve ser composta, executada,difundidaedesfrutadatendoemcontaosrecursosoferecidospeloconjuntodetcnicas e estticas do som (e/ou do audiovisual) vigente. Este compsito tcnica-estticaestar, porsuavez,submetidoaoutroscondicionantes, comoaesferapoltico-econmica(das gravadoras e, por extenso, detodas as empresas dacomunicao), orientaes ideolgicas diversas, de maneira mais ou menossignificativa (instituies de poder como estado, religio). Na maioria das vezes, acano miditica , em sua essncia, pensada como mercadoria ou, pelo menos,tende a converter-se numa4. Essa orientao no impede que a composio resultenuma obra de razovel complexidade formal. Ocorre, ainda que algumas canes seconsagremnogostopopular,apontode se transformaremem"monumentossonoros histricos", quer um sob o aspecto musical ou de outra natureza. Aqui seagrupam as obras que ganharam destaque em razo de suas qualidades formais(vide os clssicos Aquarela do Brasil, Carinhoso, Desafinado... quanto aquelas quesetornarammemriaemvirtudejustamentedaimagemnegativaquefincaram(Florentina de Jesus, Uma vida s). A cano das mdias terna performance5 (ZUMTHOR, 1997) oseumodelo principal, que englobar umamplo leque de elementos caractersticos e diferenciais.Uma terceira observao toca ao termo performance. Para alm das acepes maisconhecidas ("execuo", "interpretao", "desempenho" etc.) o vocbulo deve aquiser compreendidocomoumconceitoestabelecidopeloeruditoPaul ZUMTHOR(1997), queodefinecomoumaaocomplexa, queenvolvemltiplosfatores:emissor, receptor, circunstncias que envolvem o processo comunicativo. No casoda msica, a performance no se restringe ao do (execuo) do instrumentista, interpretao (do ator, poeta, cantor). Por fim, cabe frisar que o vocbulo "mdia"no se limita ao sentido conferido pelo senso comum (grande imprensa, publicidadeetc.), mas o prprio aparato capaz de, ele prprio, engendrar processoscomunicativos (SANTAELLA, 1996). 2. Re3er4ncias te1rico%metodol1gicasAntesdedescreverosprocedimentosterico-metodolgicosqueorientaram estapesquisa,algumasobservaes iniciais precisamserfeitas.Deincio, fato quetratardaproduomusical daltimadcadado segundomilnioincumbnciaespinhosa, por vrias razes: dentre elas, a prpria proximidade temporal impede odistanciamento adequado do observador, impossibilitando-o de efetuar uma anliseprecisa dos signos que de fato hajam-se fixado como memria musical, ou cultural.Deoutraparte, humanotvel escassezdefontesdecunhocrtico, sobreaproduo musical do perodo relativo aos ltimos vinte anos, quando a abordagemse faz a partir da linguagem musical6. Enumerar gneros e tendncias musicais pelasua importncia , igualmente, problemticoface multiplicidade de critriospossveis7.Sobretudo, o que se aponta aqui como mais frgil consiste na comparao quasedireta de elementos aparentemente incomparveis e distantes entre si: repertriosmusicais, presidentes e as respectivas paisagens sonoras de governo. Asvinculaes parecem muito abruptas e a empreitada corre o risco de no passar deuma sequncia de metforas... Ocorre que as metforas so abstraes deelementos sensveis capturados da realidade. (Todavia, no costumam ser adotadaspara embasar teses acadmicas....). Esse terreno pantanoso no me intimidou delevar adianteesseexercciodeclariaudincia: aabordagemsemiticapermiteestabelecer interfaces entre linguagens diversas, de maneira pertinente. Para tanto,existem as teorias que orientam a anlise. Se elas no do conta do objeto emestudo, conforme o esperado, criam-se outros instrumentos subsidirios, quevenham a atender s necessidades da pesquisa. Meu histrico como semioticistame levou a dar muita importncia ao detalhe, ao "pequeno", ao "desimportante",nos diversos temas que estudo. Acredito que discernir o cdigo musical, em seuselementos mais sutis, habilidade essencial para decifrar informaes sonoras noperceptveisemumaprimeiraescuta. Oestudo,apartir de elementosdiscretos(pequenas variaesde andamento, de pronncia ou sotaque, modos de ataqueetc.), verificveisnaobramusical, podercontribuir,aindaquemodestamente,paracompreender melhor adinmicasocial das culturas, paraalmdoquefornecido, deformaestereotipadaesimplriapor alguns manuais eobras dedivulgao. Nocasodesteensaio, proponhoumatentativadeestudar avidasociopolticaatravsdosgovernanteseorientaesideolgicas, atravsdasuamsica.Tendo dito isso, proponho-me esboar uma rpida analogia entre governantes e asrespectivas "trilhas sonoras", no Brasil, na passagem dos sculos XX para o XXI.Mais precisamente, tomarei comorefernciaoperododos governos FernandoHenriqueCardosoeLuiz IncioLuladaSilva. Oscritriosqueembasamestaseleo encontram-se nas seguintes particularidades:1)Trata-sedeumperodoqueoferecematerial empricoquepodeser captadoatravs das histrias de vida e experincias pessoais, de faixas etrias diversas);2) em termos sociopolticos, trata-se de um perodo em que os presidentes eleitos,granjeiam uma expressiva representatividade, graas ao expressivo montante devotos diretos obtidos - o que, de algum modo, leva a crer que as manifestaespopulares possam ser entendidas como espontneas8;3)tantoFernandoHenriqueCardoso,comoLusIncioLuladaSilvatmpodercarismtico, sendo admirados por uma ampla parcela da populao do pas. Sendodessa maneira, os atributos que inevitavelmente se agregam sua imagemacarretam, inevitavelmente, em repercusses junto opinio pblica. Nesse ponto, importante recordar que, as diferenas ideolgicas e de programa de governo noisola um do outro: num passado de luta pela democracia, ambos compartilhavamideias e aes conjuntas;4) o perodo de governo de ambos os presidentes, em dois mandatos, coincide como vertiginoso desenvolvimento das mdias digitais que, muito rapidamentedesdobraram-seemoutrastecnologias, pleiteandonovasformasdeusoe, emconsequncia disso, criando de novos hbitos perceptivos;5)ostemposdops-modernismoacentuaramasfissurasdospilaresqueantessustentavam categorias definidas, tais como "local", "global", "identidade","nacional" (etc.); em contrapartida, passaram a mesclar-se elementos pertencentesarepertriosdiferentes, oriundosdetemposeespaos, aprincpiodspares:opassado revisitado, agregando-lhe qualificativos como vintage, retr, dentreoutros qualificativos (na verdade, uma fetichizao da histria).Postoestequadrodereferncia, esclareoque, almdasfontesbibliogrficas,apoio-meemoutrosdocumentos, taiscomoanotaesdiversassobreeventos,notcias na imprensa, folhetos de divulgao publicitria, filmes ejingles dascampanhas polticas etc.. Para a anlise dos materiais, adoto a metodologiaproposta por Christian MARCADET, estudioso das canes (2007). Importantes so,ainda, os depoimentos e memrias sobre fatos presenciados por testemunhasauditivas, de vrias faixas etrias. Neste ponto, a prtica de exerccios de"clariaudincia" (SCHAFER, 2001) estimulaodepoentearecuperar importantesmemrias de acontecimentos ocorridos em carter individual ou coletivamente, emque a msica figure como elemento-chave. A maioria desse repertrio musicalcomposta por canes das mdias (VALENTE, 2003).Porfim, enfatizo:Aindaqueasconsideraesfinaispermaneamcarregadasdeelementosdesubjetividade, nodeixamdeserresultadodereflexesprprias,frutodedebatesdequetenhoparticipado, aolongodosltimosanos9;outrasideiasforamcompartilhadas,debatidas,commeusalunosdeps-graduao,nocurso que ministro, desde 2006, !"sica e Cultura das !dias10. Em assim sendo,aquilo que ora que apresento , inevitavelmente, uma reelaborao dessasformulaes. E um ensaio - no sentido literal: impossibilitada de decantar todos osdados subjetivos, adoto uma metodologia pouco convencional, no mbito dosusuais protocolos acadmicos - o que no significa num descuido na verificao daautenticidade e confiabilidade das fontes consultadas. 5. 'an/0o, mdiaemem1ria: A6trilhasonora6do3inal dos+788, de 9H' a :ulaOgigantescoespaoterritorial brasileiro-tambmsonoro-cobertopor umamplo repertrio de canes que, em grande monta, habitam a paisagem sonoracomo memria social, seja ela implantada pela prpria comunidade, seja atravs deiniciativas pessoais. Mas tambm as gravadoras, atravs de seus mecanismos derepetioexaustoacabampor fixar umgostoesttico. Adespeitodesuaexistncia efmera, o hit parade engendrado pode vir a desempenhar papelimportante, medida que, de algummodo, a cano de sucesso estabeleceparadigmas que permitem identificar (sonoramente) o tempo-espao de refernciade seus consumidores: Isso se explica medida que os traos particularespresentesnacanomiditicaformamumarededesignos(svezesdiscretos)que, ao fim e ao cabo, imprimem indelevelmente, cultura de origem, uma feiomuito particular do esprito do seu tempo11.Ohbito de estabelecer paralelos entre modas, modismos e acontecimentosmemorveisbastantecomum, especialmentequandoasrelaessedoporintermdiodeumvnculoafetivo, emalgumainstncia. Assim, sofacilmenterecordadas as canes que marcam experincias individuais marcantes, bem comoaquelasqueserelacionamaacontecimentoscoletivos:sooshinoscompostosparaosdiversoscertamesesportivos(olimpadas, copasdomundodefutebol),vitrias eleitorais e polticas, rituais e festejos religiosos, cerimnias diversas(coroaes, funerais etc.) A associao entre governos de estado e gnerosmusicais ocorre de maneira pontual. Neste territrio a correspondncia mostra-seainda pouco frequente, muito embora o senso comum a faa, de maneira empricae ldica. Nas consideraes que seguem, procurarei esboar as linhas iniciais paraum estudo de tais relaes, atravs da anlise de elementos da paisagem sonora emusical. Limitar-me-ei a apresentar uma lista inicial de obras, autores e intrpretesque marcaram presena na paisagem sonora, fixando as "trilhas sonoras" (quasesempre, representadas por canes) que se tornaramcones dos governosFernando Henrique Cardoso (1994-2002) e Lus Incio Lula da Silva (2003-2010).Examinando a paisagem sonora -e, particularmente, musical- do Brasil do perodoque sucedeuas "diretas-j", verificamos acontinuidade de algumas modas etendncias musicais j iniciadas durante o governo Jos Sarney e que mantiveramsua presena no perodo Fernando Collor e Itamar Franco: o caso da lambada,da a#$ music, da msica sertaneja. O repertrio musical da ltima dcada dos 1900seriaalimentadodeoutrasmsicas, taiscomoopagode, oforruniversitrio,o rap, o fun% carioca, alm do denominado "sertanejo romntico". O solo sobre oqual esterepertrioseassentaria:ogovernoFernandoHenriqueCardoso, logoalcunhado imediatamente FHC, pela mdia impressa. Se, a princpio possa parecerestranha a associao entre uma produo inicialmente voltada s camadas menosfavorecidas economicamente e um intelectual oriundo da elite intelectual burguesa- importante ressaltar,logodeincio, o panorama que pautou o seu governo.Antes mesmo da tomada de posse, o prestigiado presidente j gozava de prestgiointernacional, devido a sua carreira acadmica bem-sucedida. Por essa poca, j seestabeleciam, poucoapouco, redes detelevisopor assinatura, comoaMTV,destinada msica jovem (pop, entenda-se). Tambm se ampliava a comunicaociberntica, o que propiciou a oferta crescente de servios e produtos culturais & lacarte12, no geral, peas de entretenimento: longas-metragens "enlatados", sries,variedades e noticirios. Nesse cenrio o Brasil passa a consumir o popinternacional pelateleviso(grunge, 'ritpop... (irvana eseulder Kurt Cobain,Pixies, Red Hot Chili Peppers, REM, Metallica, Guns 'n Roses) ao mesmo tempo emque exporta o heav) metal supranacional que canta emingls - do grupoSepultura.Noterrenodaproduolocal, algumastendnciasforamsurgindoeganharamfora,pelomenosat ofinal do sculo XX.Dentreeles,destacam-seopagode(especialmente, o "pagode romntico"), o forr universitrio, o rap, o funk - paracitar alguns. Trata-se, nos dois primeiros casos, de mutaes de gneros originriosde dcadas passadas, que foram devidamente desbastados de elementoscaractersticosformaiseacrescidosdeoutros, tpicosdaestticamiditicaemvigor. Tais procedimentos visavam atender ao protocolo mercadolgico, acrescidosdo inevitvele imprescindvelidioleto pop-eletrnico. Isto quer dizer que, via deregra, modalidades regionais, de grande popularidade, como o forr, deixaram deser ouvidos na sua verso original (sanfona, zabumba e tringulo) e no seu espaosingular: ao ar livre, sem o apoio de tecnologias de amplificao ou de reproduo.Para ser aceito como "moderno" - consumvel, entenda-se...- teve de se adaptaraos moldes da msica pop e sua esttica: "eletrificado*, com a adoo do "teclado",bateria(eletrnica) tornou-seareceitabsicaparaosucessodaverso"forruniversitrio". Muito distante do Trio Nordestino, ou o antolgico Luiz Gonzaga, estaverso equivocadamente afiliada msica de rai+ (autntica), para ser tocada emespaos abertos, no escapa do padro esttico ditado pelas majors: sosequncias de um mesmo repertrio feito para animar festinhas de pessoas cujosouvidos ficam satisfeitos com altos decibis de excitao, para se "curtir" num salofechado e climatizado. A semelhana entre as canes e os vrios grupos que oexecutam tal que se faz necessrio, no transcorrer da msica, seja anunciado onomedointrprete13: Falamansa, MastruzcomLeite, LimocomMel eoutrosnomes atrelados a combinaes culinrias geralmente sinalizam os protagonistasdesse tipo de repertrio. Tal verso "movente" (VALENTE, 2003)14 do forr atestacomoaalteraodepoucos elementos da performance implicamemdiferentesformas de recepo e fruio15.O pagode de rai+, na sua origem, deriva-se do samba, na dcada de 1940. Tem suacontinuidade com nomes como Almir Guinto, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal,JovelinaProlaNegraeNei Lopes. Em1990, conheceriaaversocriadapelasgravadoras, que vendeu milhares de discos16. A lista de "pagodeiros" grande: Da!elhor ,ualidade, Dudu Nobre, -#altassam'a, .rupo !olejo, /s 0ravessos, 12 praContrariar,(egritude3"nior. Aquise introduzem os instrumentoseletrnicosnopelos timbres novos, pelos rudos delinguagem, mas tosimplesmentecomoverso de baixo oramentoque substituio naipede cordas. Desenvolve-se umasonoridade sem respirao, tnus earticulao precisa dos modos de ataque doinstrumentista, queseesvaemnas notas dosominfinitodosintetizador- quesomente se extingue com a interrupo da energia eltrica... ;. !ma playlist da $irada do segundo mil4nioO panorama musical dos ltimos anos do sculo XX amplo e conta com nomes dedestaquenosmaisdiferentesgneroseformasdeexpresso, algunsdelesdecarreira longeva. Encabeam essa lista inicial os nomes j consagrados na canobrasileira (comumente denominada MPB),oriundosdesdeaBossaNova(talocaso do epgono Joo Gilberto) e aqueles que, ingressados na mdia, quando daparticipao em festivais de msica acabaram acariciados pela intelligentsia . Aquise encontramChico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandr, emgrande medidacompondo canes crticas ( de protesto), os militantes de movimentos culturais(sobretudo a Tropiclia): Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa. Mais voltados aogosto popular, o rock deu audi'ilidade a artistas que teriamcarreira longa eprolfica, como a sempre enfant terri'le Rita Lee e ao comedido Roberto Carlos (emsua fase inicial de carreira).Ossertanejosteriamlongosdiasdeestradaealto-falantes-sobretudoporqueinsistentemente rememorados em novela de grande audincia17 e representam umavolumosa parcela da populao. No ser por acaso que vrios dos jingles polticoselegero as baladas sertanejas para veicular suas mensagens. Chitozinho eXoror, Zez de Camargo e Luciano, Rio Negro e Solimes, Leonardo, Daniel (estesmais voltados a um sertanejo romntico, sobretudo aps a morte dos seus pares dedupla Leandro e Joo Paulo, respectivamente), Roberta Miranda, Sula Miranda soalguns dos nomes que permanecero, ininterruptamente, durante o perodo. Outrasgeraes surgiriam e algumas preexistentes passariam por mudanascontundentes. o caso dos ex-mirins Sandy e Jnior, que dariam adeus infncia,mudando radicalmente o seu repertrio. Sandy se casa e tentar passar a imagemde cantora madura, voltada a um repertrio mais refinado e escolarizado18.A despeito de um congestionamento, na paisagem sonora, da entoao"choramingosa", dosmontonosviolinos"deplstico", dosapelospoucosutisanatomiadocorpohumano(particularmentespartespudendasfemininas), osgneros de origem regional ainda conseguiriam seguir seu caminho. Para alm dosj consagrados Dominguinhos,Renato Borghetti(Borghettinho) e outros msicosque h dcadas se dedicam preservao e renovao da msica regional, outrosnomes, tais como o gacho Vitor Ramil, Mestre Ambrsio, Cascabulho, ChicoScienceeNaoZumbi constamentreosmsicosquedesenvolvemtrabalhoapartir de elementos extrados da cultura popular e do folclore. Antnio Nbrega vaimais longe: inicialmente, violinista erudito, integrante do movimento ArmorialdeArianoSuassuna, parteembuscadesualinguagemprpria. Almdecriador,desenvolve importante trabalho educativo no Brincante, na capital paulista.A paisagem sonora do perodo abrigaria, tambm o universo %itsch e o humor; oescrnio e a pardia. Aqui se renem casos particulares, tal como o veterano daJovem-Guarda Reginaldo Rossi19, migrado para o "cafona", faz companhia aocearense Falco. Ocorre que Falco que faz do "brega" sua bandeira esttica, pelovis pardico, com bastante competncia: a persona que criou pratica um contrastejustapondo palavras de baixo calo, a desafinao proposital a umarranjoinstrumental muito bem elaborado, com recursos de estdio de alto padro. Tangosetragdias, doextremosul dopas, jcrnaexistnciadeumpas fictcio,a 1'4rnia -comalgumas semelhanas"casuais" comoBrasil... OsKraunusePletskaia - na verdade, personagens criados pelos gachos Hique Gmez e NicoNicolaiewsky - se valem de uma atmosfera "kitsch-trgica", desenvolvida a partir derepertrioscomoosdeVicenteCelestino,AlvarengaeRanchinho,passandoporJimmy Hendrix e outros mais.No campo da msica voltada ao experimentalismo, Maurcio Pereira e AndrAbujamra desenvolvemtrabalhos individuais, aps a dissoluo do grupo OsMulheres Negras a "menor 'ig 'and do mundo*, no dizer de seus fundadores. TomZ, Jorge Mautner esto entre os nomes que vm contribuindo num campo maisexperimental da msica. Zeca Baleiro, Chico Csar, Otto so outros msicos fora dosudeste que tm oferecido um repertrio diferenciado, com um grau deoriginalidade a se considerar. Tambm cabe ressaltar que, da vertente por onde alinguagem musical busca novas direes, sobressaem nomes como os"cantautores* ZliaDuncan, AdrianaCalcanhoto, LeilaPinheiro, Zizi Possi, VniaBastos, Na Ozzetti, Luiz Melodia, Jos Miguel Wisnik, Luiz Tatit.Igualmente as religies descobririam que a msica tem o poder de angariar fiis...e mais fundos que os dzimos dos cultos. Muitos sacerdotes e sacerdotisasconverteram-se em pop stars, comparveis aos dolos de rock, tanto nasua performance, quanto nas suas estratgias de ao. Detentores de concessesde estao de rdio e televiso gravamseus discos, logo transmitidos pelossatlites, retroalimentando, assim, a indstria da f com fartura de anunciantes ealtos ndices de audincia. Emtermos musicais, contudo, no importamasdiferenas decredo; tampoucoas formas depersuasodos fieis: evanglicos,catlicos, gospel, na verdade, no se deixamfurtar ao inevitvel modelo popconvencional, servindo-se de todos os gneros em voga no momento. Somente ocontedo das letras se mantm, com menes religiosas, especialmente passagensou ensinamentos da Bblia. Padre Marcelo Rossi, da Renovao Carismtica(catlica) vendeu milhes de discos no final do sculo XX e serviu de prottipo aoutros padres-cantores-danarinos, ensinando o caminho das pedras paralocupletar os cofres da Igreja.Mantm-se comonome importante no casting dasgravadoras, no obstante a derrocada da indstria fonogrfica20.Por fim, mantm seus postos os consagrados nichos de consumo: os romnticos dehvriosanos(Daniel, Leonardo, RobertoCarlos, FbioJr.)edcadas(AngelaMaria, CaubyPeixoto);osroqueiros: 3ota,uest, 1%an%, CharlieBro5n3r., AnaCarolina, Pitty,almdosveteranosNandoReiseRitaLee21 .Eteremostambmos rappersDJ Dolores (Hlder Arago), que j acompanhou os internacionais Bjork,Mobby, Cold Play, Pavilho 9, Gabriel o Pensador, Marcelo D2, Rappin Hood, FacoCentral, DJ Patife. Em nmero crescente surgir o fun%, em diversas ramificaes("batido", "proibido"). mundo>noticias>J,/;E7N77I8-;ON5,JJ8.ilPePQofiPAnnanPtocamPjuntosPnaP/(RPpelaPpa+.html. Acesso: 30 jun. 2012.27 Sobre o evento, consulte-se a descrio do projeto na pgina do Ministrio da Cultura (Minc) em:http://www.cultura.gov.br/site/2005/03/17/brasil-na-franca-2/.28 Lula aclamado em show de msica brasileira na Bastilha. In Uol: ltimas Notcias. Disponvel em :http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2005/07/13/ult34u130304.jhtm(13/07/2005). Acesso: 30 jun 2012.29 Alis, esta ideia aparece no prprio logotipo do governo, onde a palavra Brasil aparece em letras de cores e estampas diferentes, tal como um bordado feito de retalhos. Como aposto, segue a frase "um pas de todos".30 Referncia aos cruzeiros temticos, no qual Roberto Carlos o convidado de honra. Devido ao sucesso, o evento vem se repetindo anualmente, no vero, com sada do porto de Santos, com durao de trs dias. Recebido em: 16/06/2012 Aprovado em: 04/01/2013 Helosa de A. Duarte Valente Pesquisadora do CNPq, Doutora em Comunicaoe Semitica (PUC-SP), com estgio junto Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais (EHESS, Paris), e ps-doutoramento junto ao Dept. de Cinema, Rdio e Televiso da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (CTR- ECA-USP). autora de Os cantos da voz: entre o rudo e o silncio (So Paulo: Annablume, 1999) e As vozes da cano na mdia (Via Lettera/FAPESP, 2003); e organizadora de diversas obras na rea interdisciplinar de msica e comunicao. fundadora Centro de Estudos em Msica e Mdia - MusiMid e idealizadora e responsvel pelos Encontros de Msica e Mdia (desde 2005). Atua como pesquisadora e docente junto ao Programa de Ps-Graduao em Msica ECA-USP eno Mestrado em Polticas Pblicas da Universidade de Mogi das Cruzes.