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Para o Simon,um sempiterno cavalheiro
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«Clive, meu caro, esta não é uma guerra de cava-
lheiros. Trata-se de uma luta de vida ou de morte.
Estás a lutar pela tua própria existência, contra a ideia
mais diabólica jamais criada pela mente humana:
o nazismo. E, se perderes, não haverá desforra no ano
que vem, nem porventura nos próximos cem anos!»
Coronel Blimp – Vida e MorteMichael Powell e eMeric Pressburguer
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ÍNDICE
Prólogo .................................................................................................. 13 1. O terceiro homem ........................................................................... 17 2. Lógica suja ....................................................................................... 36 3. Foguetórios para Churchill ............................................................. 53 4. Doce Fanny Adams ......................................................................... 71 5. As guerrilhas selvagens de Kent ................................................... 89 6. O inimigo interior ........................................................................... 108 7. A primeira grande explosão ........................................................... 128 8. A escola da morte ............................................................................ 146 9. Os piratas de Gubbins .................................................................... 166 10. Uma explosão mortal ...................................................................... 187 11. Mestres da sabotagem..................................................................... 207 12. Checo-mate ...................................................................................... 222 13. Sabotagem nas montanhas ............................................................ 240 14. Homem de aço ................................................................................ 260 15. No rigor sombrio do inverno .......................................................... 278 16. Entra em cena o Tio Sam................................................................ 298 17. A guerra de Troia de Gubbins ........................................................ 310 18. Combater com ouriços ................................................................... 325 19. Operação Gubbins .......................................................................... 333Epílogo .................................................................................................. 357
Agradecimentos .................................................................................... 371Créditos das ilustrações ........................................................................ 375Notas e fontes ........................................................................................ 377Bibliografia ............................................................................................ 399Índice remissivo .................................................................................... 405
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PRÓLOGO
O MUNDO ESTAVA a ficar louco na primavera de 1939, ou pelo menos
assim parecia a Joan Bright. Vistosa mulher de 29 anos que usava o
cabelo apanhado e um vestido abotoado de cima a baixo, tinha ido para
Londres em busca de trabalho como secretária depois de ter recusado
um emprego na Alemanha como precetora dos filhos de Rudolf Hess,
adjunto do Führer durante o Terceiro Reich.
Quando mencionou a um amigo de longa data a necessidade de
arranjar um emprego, este deu-lhe um estranho conselho. Disse-lhe que
conseguia arranjar-lhe trabalho se ela «aparecesse na estação de metro
de St. James’s Park às 11h00 de um determinado dia usando um cravo
cor-de-rosa». Disse mais: que uma mulher estaria à espera dela e que a
levaria até ao local onde seria entrevistada.
Joan teve dificuldade em acreditar no que o amigo lhe dissera. E, real-
mente, conforme o dia em questão se ia aproximando, mais se ia con-
vencendo de que ele lhe estaria a pregar uma partida. No entanto, nesse
dia, à hora marcada, dirigiu-se para o local do encontro e, efetivamente,
lá estava a misteriosa mulher. Começou por sussurrar-lhe algumas pala-
vras introdutórias e apontou para uma mansão de tijolo vermelho da era
eduardiana situada mais ao longe, indicando ser aquele o edifício em que
a entrevista de trabalho teria lugar.
Joan foi conduzida ao longo de um trajeto circular que levava ao edi-
fício, atravessando um labirinto de ruelas e travessas situadas entre a
Broadway e St. James’s. A sua imaginação fértil foi acionada. Convenceu-
-se de que a mulher havia deliberadamente escolhido aquele trajeto «para
que o percorresse até ao destino sem ser observada»1. Nesse momento,
Joan ainda ignorava tudo sobre o trabalho para o qual ia ser entrevis-
tada, mas tinha grande expetativa num desempenho à altura do desafio.
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Trabalhara já na Chatham House, onde a sua competência e a sua discri-
ção tinham deixado a melhor das impressões entre os colegas.
Só quando estava já a ser levada ao quarto andar da mansão resi-
dencial é que se deu conta de que aquilo não ia ser propriamente uma
entrevista de emprego banal. Foi conduzida até um gabinete com vista
para a Caxton Street e apresentada a um oficial militar que dava pelo
nome de Chidson, «pequeno, ruivo e muito minucioso»2. Este procedeu
a uma apresentação sumária do trabalho em questão e depois fez des-
lizar uma folha de papel pela secretária e disse-lhe que a assinasse. Ela
estava demasiado nervosa para perguntar do que se tratava. Limitou-se
a rabiscar o seu nome na parte inferior da folha e a entregá-la de novo
ao coronel. Enquanto o fazia, apercebeu-se de que tinha acabado de assi-
nar a Lei dos Segredos Oficiais do Reino Unido*.
O coronel Chidson pegou no papel, fixou o seu olhar frio em Joan
e perguntou-lhe se sabia por que razão havia sido levada até à Caxton
Street. Quando ela fez que não com a cabeça, ele disse-lhe que estava a
ser entrevistada para um trabalho de tal modo secreto que seria torturada
se alguma vez viesse a ser capturada pelos alemães.
Joan ficou sem palavras. Tinha tido a expetativa de vir a ser testada pelas
suas capacidades enquanto datilógrafa, estenógrafa e pelo seu talento
para fazer boas chávenas de chá bem forte. No silêncio que se seguiu,
Chidson levantou-se da cadeira, levou Joan até à janela e apontou para
um vulto sombrio parado na esquina entre a Caxton Street e a Broadway.
«Tem estado ali toda a manhã, a vigiar», disse. «Quando sair daqui,
não deixe que ele a veja; vire à esquerda e continue a andar.»3
Não lhe havia ainda sequer sido proposto um emprego, pelo menos
não formalmente, mas eis que a maneira de o coronel se lhe dirigir suge-
ria que Joan já tinha sido contratada. Pediu-lhe que se voltasse a sentar e,
uma vez mais, reiterou que «coisas verdadeiramente terríveis» lhe aconte-
ceriam caso viesse a ser apanhada pelos alemães. Dessa vez, foi bastante
mais claro. «Enfiar-lhe-ão agulhas nas unhas dos pés.»4
Uma parte de si pensava no que lhe estava a acontecer como algo in-
crivelmente aventuroso, algo digno de contar à sua companheira de apar-
tamento, Clodagh Alleyn, mais tarde, ao serão. Mas o coronel permaneceu
* No original, Official Secrets Act.
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frio e pouco amistoso ao longo da entrevista, o que Joan tomou por um
sinal de que estava sem dúvida a falar a sério. Ademais, ela estava perfei-
tamente ciente de que nos jornais e nas rádios não se falava noutra coisa
senão da guerra.
Poucas semanas antes, em 15 de março, Hitler havia marcado pontos
com o seu último golpe, levando as suas tropas de assalto a marchar até
à Boémia e Morávia. Ao fazê-lo, completara a anexação do que anterior-
mente fora a Checoslováquia. Os soldados alemães depararam com tão
pouca resistência que haviam aberto caminho para um Hitler triunfante
que, logo no dia seguinte, avançara até Praga, aí proclamando uma nova
conquista para o Terceiro Reich. Doravante, a Boémia e Morávia tornar-
-se-ia um protetorado alemão, inelutavelmente subjugado à lei de Berlim.
Embora o primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, insistisse
que a anexação de Hitler não era um ato de agressão, muitos havia no
país que sentiam que a sua política de pacificação havia expirado.
Joan contava-se entre os que se sentiam profundamente incomoda-
dos com a situação, preocupada com o facto de a Grã-Bretanha estar a ser
arrastada para um conflito para o qual não estava minimamente prepa-
rada. Mas quando sopesou tudo o que o coronel Chidson lhe tinha dito,
a perspetiva de um trabalho a tempo inteiro e de um salário generoso
fê-la ultrapassar todos os receios relativamente ao futuro. Além do mais,
era nova, não tinha responsabilidades e era livre como um passarinho.
E um emprego fora do normal num lugar incomum podia acrescentar
animação à sua vida. Convenceu-se de que se tratava de um bom desa-
fio e agradeceu ao coronel a que havia julgado ser a oferta de trabalho.
Comprometeu-se a aparecer com pontualidade na manhã seguinte.
Embora jamais o tivesse admitido perante Chidson, sentia-se na ver-
dade bastante entusiasmada com a ideia de ir trabalhar num lugar «em
que a realidade e a ficção se confundiam de modo tão subtilmente indis-
sociável»5. Apesar disso, quando saiu do edifício em direção à Caxton
Street, deu estranhamente consigo a estugar o passo e a empenhar-se em
evitar que o seu olhar se cruzasse com o do homem misterioso que per-
manecia no seu posto na esquina da rua.
Joan teria de esperar mais 24 horas antes de saber o que a sua nova
ocupação implicava. Enquanto isso, pouco mais podia fazer além de pen-
sar sobre a estranha situação em que se encontrava. Sentiu-se dividida
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entre a felicidade de ter um emprego e uma sensação difusa de descon-
forto relativamente ao que esse emprego podia vir a exigir. Era como se
alguém estivesse a conduzi-la para um estranho mundo no qual todos
os padrões comummente aceites tivessem sido subvertidos.
Joan Bright não era a única pessoa a achar que o seu mundo estava virado
do avesso naquela primavera de 1939. A pouco menos de cem quilóme-
tros a norte de Londres, em Bedford, Cecil Clarke, um adepto do cara-
vanismo, estava a fazer reparações na oficina que tinha nas traseiras da
sua casa, situada no número 171 da Tavistock Street, quando a mulher
o chamou para ir atender o telefone. Alguém queria falar com ele.
Clarke pegou no aparelho e deu consigo a ter uma conversa tão estra-
nha quanto inesperada. A pessoa do lado de lá não lhe estava a ligar para
falar sobre caravanas, isso era claro. Tão-pouco queria inquiri-lo sobre
o novo sistema de suspensão com antiderrapagem que ele havia recen-
temente inventado. Clarke tentou obter mais informação por parte de
quem lhe ligava, mas o homem recusou-se a revelar a razão do seu tele-
fonema e foi, como ele próprio admitiu, «muito cauteloso»6 quando Cecil
o questionou sobre a sua identidade. Tudo o que podia dizer-lhe era que
se tinham conhecido um par de anos antes e que no dia seguinte passaria
pela Tavistock Street.
Cecil Clarke pousou o telefone ainda a indagar-se sobre a identidade
do homem que lhe ligara, completamente intrigado relativamente aos
motivos que o haviam levado a telefonar-lhe. Partilhava com Joan Bright
a estranha sensação de que a sua vida estava na iminência de levar uma
considerável e entusiasmante reviravolta.
Nesse ponto, não se enganava. A visita que receberia no dia seguinte
ia mudar a sua vida.
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1.
O TERCEIRO HOMEM
CECIL CLARKE OLHOU para a sua caravana com aquela espécie par-
ticular de carinho que os homens costumam dedicar às suas mulheres.
Poliu-a, demorou-se a acariciá-la e puxou-lhe o lustro à pintura de aspeto
cremoso com generosas quantidades de cera para automóveis da marca
Richfield.
Com mais de quatro metros de altura, ali estava ela, mais alta que
um autocarro londrino de dois andares e com os seus chassis rebaixa-
dos que constituíam uma verdadeira e revolucionária inovação da enge-
nharia. Porém, o maior feito dessa criação de Cecil era o seu interior
luxuoso. Vinha com lavatório, quartos e casa de banho privativa. Tinha
água quente e fria e o seu próprio gerador. Tinha também um bar bem
apetrechado e com boa capacidade de aprovisionamento. Não admira,
pois, que Cecil se lhe referisse como o seu «hotel Pullman da estrada»1.
Havia sido construída na oficina que tinha nas traseiras da sua casa,
em Bedford. Aos fins de semana, atrelava-a ao veículo familiar e fazia
testes de estrada, aventurando-se com ela pelos caminhos rurais da loca-
lidade, enquanto a mulher, Dorothy, se agarrava ao tabliê, e os dois filhos
do casal, John e David, faziam travessuras no banco traseiro.
Os rapazinhos gritavam de alegria quando o pai lhes anunciava que
ia levar a família até ao norte do País de Gales. Havia uns breves momen-
tos de tensão quando se despediam de Bedford: Cecil tinha acrescentado
um novo quarto ao primeiro andar da caravana e o veículo estava agora
tão alto que eram obrigados a deter-se a cada viaduto com que depara-
vam, para verificar se tinha altura suficiente para passarem.
Uma vez na estrada, obstáculos como aqueles deixavam de ser pro-
blema. Cecil tornou-se «bastante blasé» e «limitava-se a avançar e a enfren-
tar sem medos cada viaduto que lhe surgia no caminho — felizmente
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sem quaisquer danos dignos de nota». O facto de os pequenos John e
David estarem manifestamente a divertir-se na parte de cima da cara-
vana, «onde dispunham de uma vista soberba para a paisagem campes-
tre»2, não parecia incomodá-lo minimamente.
Cecil Nobby Clarke tinha criado a sua empresa, a LoLode (Low
Loading Trailer Company), no final da década de 1930, assumindo ele
próprio a função de designer-chefe e contando com a senhora Clarke
como secretária da empresa. Todas as caravanas da LoLode eram equi-
padas com um sistema de suspensão único, que prometia aos passa-
geiros viagens mais suaves do que qualquer outro modelo de caravana
então em uso nas estradas. Era uma promessa que Clarke se orgulhava
de cumprir, atendendo a que era ele o designer, o engenheiro, o arquiteto
e o mecânico.
Clarke tinha uma figura imponente e usava óculos, era um gigante
maciço e gentil, dotado de uma ossatura pesada e de mãos de mecânico.
Metade cientista e metade comediante, havia nele muito mais do que
uma pitada do Professor Branestawm*. Fumador inveterado e fervo-
roso patriota, era visto pelos vizinhos com afeto e um toque de humor:
«A encarnação de um ideal», pensava um deles, «sempre firme no seu
caminho, perseguindo o aperfeiçoamento da sociedade.»3 No caso de
Cecil, o «aperfeiçoamento da sociedade» significava criar caravanas cada
vez mais confortáveis. Esses mesmos vizinhos de Bedford sorriam com
cumplicidade uns para os outros enquanto observavam Nobby a puxar
o lustro à pintura dos seus queridos veículos, ignorando que tinha as
mãos de um mago e os miolos de um génio.
As caravanas não eram a única coisa que fazia o seu coração bater
mais depressa. Enquanto jovem voluntário durante a Primeira Guerra
Mundial, havia chegado a integrar um batalhão pioneiro especializado
em explosivos. Adquiriu assim um gosto precoce por «provocar explo-
sões ruidosas»4 e conquistou uma Cruz Militar por ter contribuído para
a vitória dos Aliados na Batalha de Vittorio Veneto. Muito embora tivesse
sido capaz de fazer a transição para a vida civil com maior facilidade do
* Herói de uma série de livros infantis criados por Norman Hunter. Publicados entre 1933 e 1983, os livros tinham por protagonista o inventor Theophilus Branestawm, o arqué-tipo do cientista maluco, habitualmente descrito como alguém que está sempre absorto nos seus pensamentos. O nome «Branestawm» evoca a palavra brainstorm.
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que muitos dos seus camaradas de armas, havia nele qualquer coisa que
continuava a acalentar o desejo de provocar explosões ruidosas.
No verão de 1937, Clarke havia submetido um anúncio publicitário à
LoLode para que fosse incluído na sua revista preferida, a Caravan and
Trailer. Na descrição do seu veículo, apresentara-o como «uma carrinha
para viver, dotada de três camas e do mais avançado design»5, de tal forma
que até tinha aposentos para os criados na retaguarda. O editor da revista
Caravan and Trailer era um homem chamado Stuart Macrae, um antigo
engenheiro aeronáutico que havia chegado por acaso ao mundo do jor-
nalismo. Intrigado com as imagens da extravagante criação de Clarke,
decidiu ir visitá-lo a Bedford, tirando propositadamente um dia longe do
seu habitual posto de trabalho, para o conhecer.
A primeira impressão foi dececionante. «[Clarke era] um homem
enorme, com um discurso bastante hesitante, que de início me surpreen-
deu pela sua gentileza, mas também pela evidente ausência de uma inte-
ligência superior», disse. Mas cedo se viu obrigado a mudar de opinião.
Clarke tinha um cérebro expansível, que funcionava como um acordeão.
Era alguém que bebia as próprias ideias, misturando-as entre si e depois
expelindo-as na forma de algo mais melodioso. O que a maior parte das
pessoas via como problemas, Clarke via apenas como soluções.
Clarke abriu a porta de acesso ao pátio das traseiras da casa para mos-
trar a Macrae «a sua mais recente criação». Era gigantesca, muito maior
do que parecia nas imagens, mas ao mesmo tempo tinha linhas muito
modernas. Macrae ficou boquiaberto: era como se estivesse a ver «algo
que pertencia ao futuro»6.
Clarke propôs que dessem uma volta pelas estradas rurais que cir-
cundavam Bedford, indo ele próprio ao volante e o seu convidado na cara-
vana. Macrae recostou-se o mais confortavelmente possível aos estofos
Dunlopillo e apanhou alegremente uma bebedeira, graças às várias gar-
rafas do bem aprovisionado bar que foi abrindo. «E como na época não
havia balões para soprar» — tão-pouco qualquer estigma associado ao
álcool durante a condução —, conseguiu conduzir de volta a Londres
sem qualquer receio de vir a ser apanhado pela polícia.
Na manhã seguinte, já de regresso ao trabalho, e ainda sentindo
a cabeça um pouco pesada, escreveu um artigo muito elogioso sobre o
extraordinário protótipo de Clarke. E a história podia ter ficado por aí,
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pois Stuart Macrae pouco depois deixou o seu trabalho na Caravan and
Trailer, aceitando um cargo de editor na Armchair Science.
Todavia, numa manhã da primavera de 1939, a secretária de Macrae
atendeu uma chamada de alguém verdadeiramente misterioso. «Está
um Geoffrey não-sei-das-quantas ao telefone», anunciou: estava a tele-
fonar por causa de um assunto com alguma urgência. Macrae atendeu a
chamada e deu consigo a falar não com alguém chamado Geoffrey, mas
com Millis Jefferis.
Jefferis disse que estava muito interessado em saber mais sobre um
dos temas abordados na última edição da Armchair Science. «O senhor
escreveu um artigo sobre um novo tipo de íman excecionalmente potente.
Preciso imediatamente de toda a informação que possa dar-me sobre
esse íman, por favor.»
Macrae foi surpreendido pelos modos algo impacientes do interlo-
cutor e procurou perceber um pouco melhor o que o levara a telefonar-
-lhe. «Na verdade, é um pouco estranho», concedeu Jefferis. «Não estou
autorizado, neste momento, a dizer-lhe do que se trata.» Propôs-lhe que
se encontrassem para almoçar e que conversassem sobre o assunto com
maior recato.
Quarenta e oito horas mais tarde, Macrae deu consigo no Art Theatre
Club, sentado em frente do mais extraordinário indivíduo que jamais
conhecera. Millis Jefferis «tinha um rosto cuja pele parecia ser de couro,
um tronco em forma de barril e braços que praticamente chegavam ao
chão». Aos olhos perspicazes de Macrae, o homem «parecia um gorila».
Mas quando o gorila abriu a boca, «foi imediatamente claro que possuía
um cérebro que funcionava como um relâmpago».
Jefferis explicou que trabalhava para uma divisão altamente secreta
do Departamento de Guerra* e cuja área de especialidade tinha que ver
com a informação e a investigação. Com a escalada da tensão no plano
internacional, havia-lhe sido entregue a tarefa de identificar armamento
não convencional que pudesse vir a ser necessário no futuro próximo.
O seu interesse pelos ímanes tinha que ver com um tipo revolucio-
nário de mina subaquática que estava a tentar desenvolver. A sua carga
explosiva era revestida por ímanes e equipada com um detonador com
* Antiga designação do atual Ministério da Defesa.
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retardador. A ideia era «prendê-la à parte de baixo da linha do costado
de um navio, com recurso a um mergulhador, e depois explodiria e faria
naufragar o dito navio à hora programada»7.
A necessidade de uma tal arma era bem real e urgente. Menos de
seis meses antes, durante o inverno de 1938, Hitler havia lançado o seu
Plano Z, que representava o fortalecimento imediato e total da Kriegs-
marine*. O plano tinha por objetivo a construção de 8 porta-aviões, 26
navios de guerra e mais de 40 cruzadores, além de 250 submarinos.
A Grã-Bretanha não tinha condições para entrar em tal competição de
armamento naval e era por isso obrigada a encontrar formas mais criati-
vas de reequilibrar a balança. Veteranos do Departamento de Guerra e do
Almirantado decidiram que afundar navios alemães seria mais eficiente
do que mandar construir navios britânicos.
Mas Jefferis enfrentava um problema insuperável. Não conseguia
encontrar ímanes que funcionassem debaixo de água, além de estar
também demasiado ocupado com a construção de um detonador com
retardador seguro. Sem esse equipamento, ele sabia que a sua mina
magnética já parcialmente construída jamais funcionaria.
Depois de um almoço bem regado e concluído com uns balões de
brandy, Macrae precipitou-se a oferecer-se para liderar o projeto. Um dos
seus trabalhos anteriores consistira em desenhar mecanismos para lar-
gar bombas a partir de aviões em voo de baixa altitude. Estava, assim,
mais do que disponível para enfrentar esse novo desafio. Jefferis não
estava à espera da oferta de Macrae, mas aceitou-a com satisfação. Ele
dissera que «Tinha um saco privado, com o qual podia ao menos pagar
as minhas despesas.»8
Só mais tarde nesse dia, já depois de os vapores do brandy se terem
dissipado, é que Macrae começou a sentir-se arrependido da sua deci-
são. Não fazia ideia de como se construía uma mina magnética, nem
tão-pouco tinha uma oficina onde pudesse fazer experiências. Enquanto
pensava na melhor forma de abordar o problema, lembrou-se de repente
de Cecil Clarke, do seu protótipo de caravana e da oficina em Bedford.
Telefonou para a LoLode e, sem revelar quem era nem por que razão
ligava, conseguiu marcar uma reunião. Na manhã seguinte, apareceu no
* Designação da Marinha de Guerra alemã.
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número 171 da Tavistock Street com uma maleta cheia de ímanes e um
pedido de ajuda.
A visita que Stuart Macrae fez a Cecil Clarke ocorreu num momento
perigoso das relações internacionais. Poucos dias depois de Hitler ter
marchado com as suas tropas até à Boémia e Morávia, mandou-as se-
guir para o porto báltico de Memel, na Lituânia. Memel era um enclave
de língua alemã que havia sido separado da Alemanha depois da Primei-
ra Guerra Mundial. Hitler havia incontáveis vezes negado ter planos
para esse porto, mas, logo após o seu triunfo em Praga, pediu a capi-
tulação de Memel. O ministro dos Negócios Estrangeiros da Lituânia
viu-se obrigado a ceder às exigências do Führer; caso contrário, arriscava-
-se a uma invasão militar de escala total. Não tinha outro remédio senão
aceitar.
«Uma suástica enorme e flamejante anunciava ao viajante que o go-
verno de Memel mudara de mãos.» Assim escreveu um jornalista que
arranjou o furo jornalístico da sua vida por acidentalmente estar no porto
de Memel no momento em que as tropas alemãs ali chegaram. «Nas
janelas da vila há velas a tremeluzir e a marcha dos camisas-castanhas*
prosseguiu pela noite dentro.»
Hitler chegou triunfante na manhã seguinte e saudou a esmaga-
dora população alemã de Memel, dando-lhe as boas-vindas à terra-mãe.
Em tom ameaçador, declarou que o Terceiro Reich estava «determinado
a moldar o seu destino com as suas próprias mãos, mesmo que tal não
fosse conveniente a outros»9.
O primeiro-ministro, Neville Chamberlain, continuou a tentar alcan-
çar uma solução pacífica até mesmo depois da anexação ilegal de Memel.
«Não sou hoje mais homem de guerra do que era em setembro», afir-
mou, referindo-se ao Acordo de Munique celebrado no ano anterior e que
havia entregado o território dos Sudetas† a Hitler10. Mas nem todos concor-
davam com a sua política de pacificação e havia já quem se preparasse
* Designação corrente das milícias armadas nazis do destacamento das tropas de assalto Sturmabteilung (SA).
† Designação da região da antiga Checoslováquia habitada por falantes da língua alemã, nos distritos fronteiriços da Boémia e Morávia, e tambén em parte da região da Silésia, antes integradas no Império Austro-Húngaro.
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para levar a cabo uma ação mais contundente. Entre estes, contavam-se
Stuart Macrae e Cecil Clarke.
Clarke estava encantado com a ideia de voltar a encontrar-se com
Macrae, pois os dois homens tinham-se entendido esplendidamente
bem no dia em que se haviam conhecido. Desta feita, Macrae foi con-
vidado a dirigir-se à residência da família Clarke, onde lhe foi oferecida
uma refeição leve. «Empurrando para fora da sala de estar — que tam-
bém servia de escritório para reuniões de trabalho — várias crianças
que lá estavam», escreveu ele mais tarde, «encheu-me de pão e com-
pota, e também de uns pãezinhos doces horrorosos, e depois foi direto
ao assunto.»
Clarke evidenciou o seu entusiasmo típico desde a primeira hora,
informando Macrae de que as armas mais mortíferas podiam ser cons-
truídas a partir das coisas mais simples. Porém, Macrae foi surpreendido
pelo facto de o primeiro fornecedor a visitar ser a loja Woolworth, na
rua principal de Bedford. Aí, compraram umas bacias de estanho muito
grandes e de espessura fina. Seguidamente, visitaram uma loja de ferra-
gens, onde compraram alguns ímanes muito potentes. Após o que leva-
ram tudo até à Tavistock Street, onde Clarke criou «um departamento de
experiências, removendo um carregamento de lixo e mais umas crianças
que estavam em cima de uma bancada».
Clarke abalançou-se à tarefa com indisfarçável prazer. Encomendou
a um latoeiro local um anel de metal entalhado, que podia ser aparafu-
sado na bacia da Woolworth. Quando isto ficou pronto, vazou betume
através do anel, usando-o para fixar os ímanes. A sua ideia era encher
a bacia com gelatina explosiva e depois fixar-lhe uma tampa estanque.
O fator-chave para o sucesso do engenho era a capacidade de criar
uma mina suficientemente leve para ser fixada na parte lateral de um
navio. «Por fim, usando para o enchimento toda a papa de aveia que havia
em casa, em vez do material altamente explosivo, e fazendo o melhor
possível com o manuseamento de pesos e dimensões, várias vezes inun-
dando a casa de banho de Nobby [Clarke], lá conseguimos fazer a coisa
como deve ser.»
Mas uma coisa era desenhar uma arma, outra era pô-la a funcionar.
Clarke e Macrae dirigiram-se aos Banhos Públicos de Bedford e, depois de
explicar ao segurança que estavam a levar a cabo uma investigação militar
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da maior relevância, obtiveram autorização para usar a piscina principal
quando esta estivesse fechada ao público.
Puseram uma enorme chapa de aço na parte mais profunda e depois
amarraram a bacia de estanho soldado comprada na Woolworth ao amplo
estômago de Clarke. «Aparentando estar numa fase muito adiantada de
uma gravidez, faria um vaivém enquanto nadava, tirando o dispositivo
do cinto, virando-o e pousando-o com força na chapa-alvo com grande
perícia.» Funcionou na perfeição. A mina manteve-se agarrada à chapa
de metal de todas as vezes, e ficou estavelmente posicionada.
Faltava só uma coisa. Uma bomba não podia explodir sem um deto-
nador, e, no caso desta arma em particular, o detonador precisava de ser
absolutamente fiável. Se a mina explodisse demasiado cedo, arriscava-se
a matar o mergulhador.
Clarke meteu as mãos ao trabalho para criar um mecanismo de
percussão acionado por mola que ficasse em posição de ser disparado
através de um pélete solúvel. Quando o pélete se dissolvesse na água, o me-
canismo embateria no detonador e provocaria a explosão. Mas encontrar
um pélete apropriado para o efeito demonstrou ser uma tarefa difícil.
Os dois homens experimentaram todo o tipo de pequenos dispositivos,
mas nenhum funcionava de maneira satisfatória. Péletes feitos de pó dis-
solviam-se demasiado depressa. E os que eram demasiado compactos
não chegavam sequer a dissolver-se.
Acabaram por ser os filhos de Clarke a, sem querer, fornecer a solu-
ção para aquele problema. No momento em que Cecil os tirava pela ené-
sima vez de cima da bancada, fez inadvertidamente cair ao chão o seu
saquinho de gomas de anis, e dezenas de bolinhas rolaram pelo chão.
Macrae levou uma delas à boca e começou a brincar com ela com a lín-
gua. Enquanto o fazia, ficou impressionado com a absoluta regularidade
com que ia ficando cada vez mais pequena. Era exatamente aquilo de que
precisava. Clarke carregou os percussores com as bolinhas de anis dos
miúdos perante o olhar zangado do jovem John Clarke. Cada percussor
de mola foi colocado «num dos recipientes de vidro da Woolworth» e
submetido a toda uma série de testes até Clarke conseguir determinar
com rigor o tempo que cada goma levava a dissolver-se11.
«OK, leva 35 minutos», gritou, para que o ouvissem do lado de lá da
sala12. Efetivamente, a bolinha anisada dissolvia-se lentamente ao longo
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de meia hora, após o que o gatilho era subitamente acionado. Não havia
carga explosiva, de modo que os estragos eram confinados ao vidro da
tigela que, invariavelmente, se estilhaçava e caía espalhando-se pelo chão
em mil pedaços. A senhora Clarke passou a tarde toda a varrer fragmen-
tos de vidro.
Os homens estavam encantados com o facto de a ideia ter funciona-
do. «No dia seguinte, as crianças de Bedford não iam ter gomas de anis»,
recordou Macrae. «Pois, para impedir que fôssemos apanhados sem pro-
visões, demos uma volta à vila e comprámos todas as gomas que havia.»
O último problema estava ainda por resolver: encontrar um meio
adequado de conservar em segurança a mina magnética. Era fundamen-
tal que a bolinha anisada ficasse protegida da humidade; caso contrário,
a mina arriscava-se a explodir antes de tempo.
A solução que encontraram foi, uma vez mais, caseira, mas criativa:
envolveram o mecanismo num preservativo e descobriram que consti-
tuía uma barreira perfeitamente impermeável à humidade, expandindo-
-se uniformemente pela totalidade da superfície, inclusive nas dobras
e protuberâncias.
E foi assim que dois cavalheiros de meia-idade deram consigo a per-
correr Bedford de uma ponta à outra, de farmácia em farmácia, com-
prando a totalidade do stock de preservativos, «granjeando uma indevida
reputação de atletas do sexo»13. Macrae não se lembrou de verificar se,
nove meses depois, Bedford havia ou não vivido um breve período de
aumento da taxa de natalidade.
Umas poucas semanas depois do almoço de negócios no Art Theatre
Club, Macrae estava em posição de mostrar a Millis Jefferis o protótipo
de mina magnética que entretanto havia provisoriamente sido batizado
como lapa*. Jefferis reconheceu imediatamente na arma de Cecil Clarke
um trabalho de verdadeira prestidigitação técnica. Por pouco menos de
6 libras (mão de obra incluída), havia produzido um engenho explosivo
que era não apenas leve, mas também fácil de usar e incrivelmente efi-
caz, algo que potencialmente podia alterar o jogo da correlação de forças
em tempo de guerra. Pois se um único mergulhador, equipado com uma
única mina magnética, tinha capacidade para destruir um só navio, era
* Hoje chamada mina Clarke.
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evidente que uma equipa de mergulhadores podia destruir uma frota
inteira. O que realmente fazia do invento uma arma da maior relevância.
Era, além do mais, extremamente versátil. A sua superfície magné-
tica significava que podia ser usada para fazer explodir turbinas, gerado-
res, comboios — na verdade, qualquer coisa feita de metal. Era a arma
perfeita para a sabotagem: pequena, silenciosa e mortífera, e, ainda por
cima, tinha associado aquele toque de malfeitoria que era particular-
mente apelativo a Jefferis.
Cecil Clarke voltou às suas caravanas em Bedford, ignorando o facto
de que homens desconhecidos em gabinetes clandestinos planeavam já
a sua iniciação a um mundo tão secreto que nem a maior parte dos mi-
nistros de Whitehall* imaginava que existia.
Tratava-se do mesmo mundo em que Joan Bright deu consigo a
entrar num idêntico e aparentemente indistinto dia de primavera do ano
de 1939.
No seu primeiro dia de trabalho, Joan Bright entrou na Caxton Street
apenas sabendo que havia sido recrutada por uma organização de tal
forma secreta que arriscava a tortura no caso de vir a ser apanhada pelos
nazis. Pensou, contudo, que as coisas se iriam clarificando uma vez que
estivesse já plenamente instalada no gabinete: todavia, sucedeu o contrá-
rio, e o mistério limitou-se a adensar-se. O edifício estava ainda pratica-
mente deserto quando se apresentou ao serviço, e nem sequer o coronel
Chidson estava presente para a receber. Foi escoltada até ao quarto andar
e foi-lhe dito que esperasse pela chegada dos restantes funcionários.
«Sentei-me no meu novo posto e aproveitei para reparar no que me
rodeava», escreveria mais tarde. Havia uma máquina de escrever Imperial,
uma pequena resma de documentos e um cheiro a tabaco que impreg-
nava tudo. As carpetes, as cortinas e até as madeiras fediam a velhas bea-
tas de cigarros14. Joan deu uma olhadela aos livros nas prateleiras e ficou
surpreendida pelo facto de não terem nada que ver com os livros que habi-
tualmente se podiam encontrar nos serviços governamentais. Ao invés,
* Relativo à Whitehall Street, em Westminster, Londres, antiga morada do palácio real com o mesmo nome, que serve atualmente como centro administrativo do Reino Unido, fazendo esquina com a Downing Street, em cujo famoso número 10 ficam a residência oficial e o gabinete do primeiro-ministro.
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eram obras de Trotsky, panfletos visivelmente manuseados sobre o Sinn
Fein* e vários livros sobre a revolta árabe, incluindo o Revolta no Deserto,
de T.E. Lawrence. Crescentemente perplexa, começou a interrogar-se so-
bre que espaço era aquele a que agora pertencia.
Instantes depois, o seu chefe entrou subitamente no gabinete, che-
gando com a sua maleta, o seu chapéu de feltro e a sua afetação. Lawrence
Grand surgiu-lhe de repente como a pessoa mais excêntrica que alguma
vez havia conhecido. Usava óculos escuros, fumava empunhando uma
longa boquilha e ostentava um cravo vermelho na lapela. Exibia «toda
a parafernália do perito em espionagem da ficção mais popular»15. Até
o modo como usava o cabelo parecia ser parte do papel que desempe-
nhava, estando aquele de tal forma cheio de brilhantina que lembrava
Errol Flynn em O Homem Perfeito. Embora fosse indiscutivelmente alto
e bem-parecido, a jovem mulher não conseguia evitar pensar que, «real-
mente, havia qualquer coisa nele de um pouco louco»16.
Ainda assim, foi ele quem pôs Joan a par de muita coisa, depositando
nela a confiança necessária para lhe confidenciar tudo o que o coronel
Chidson não havia até então sido capaz de lhe revelar. Explicou que
havia sido recrutada para trabalhar num departamento ultrassecreto
do governo britânico, conhecido como Secção D — D de destruição —,
e Grand e o seu pessoal haviam sido incumbidos de conceber uma
forma de guerra totalmente nova. Em caso de conflito com os nazis de
Hitler, um pequeno grupo de agentes especificamente treinados devia
ser enviado para trás das linhas inimigas para encetar, sem demoras,
assassinatos, sabotagens e manobras subversivas.
O trabalho seria supostamente assegurado «por agentes infiltrados,
espiões e sabotadores, os quais, no caso de serem apanhados, não seriam
jamais reconhecidos ou defendidos pelo seu governo». Trabalhariam à
margem da lei, inspirando-se nas táticas usadas na guerrilha armada e
por gangsters como Michael Collins na Irlanda e Al Capone na América.
Ao aceitar integrar a Secção D, estavam na verdade a privar-se de todos
os seus direitos.
O trabalho na Secção D era de natureza marcadamente controversa,
razão pela qual era dirigido pelos Serviços Secretos. Poucos no aparelho
* Movimento político irlandês.
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do governo sabiam da sua existência. O próprio Gabinete do Tesouro
havia sido mantido na ignorância. Grand reiterou o aviso que já havia
sido feito pelo coronel Chidson de que jamais devia fazer a mais pe-
quena confidência a quem quer que fosse.
A Secção D era uma de duas organizações que estavam alojadas
naquele quarteirão da Caxton Street. Trabalhando ao lado da equipa de
Grand estava uma segunda unidade conhecida por MI(R). Tratava-se
de um ramo dos Serviços Secretos militares que, suposta e eufemistica-
mente, lidava com investigação militar.
O chefe da MI(R) era Joe Holland, a quem Joan foi apresentada mais
tarde nessa manhã. Holland impressionou-a quase tanto como Lawrence
Grand, um soldado duro com aspeto atraente e a mente maliciosa de
uma raposa. Tinha granjeado a sua reputação como piloto combaten-
te durante a Primeira Guerra Mundial, quando se pendurava do lado de
fora do cockpit para arremessar granadas de mão contra as trincheiras ale-
mãs que sobrevoava. Apesar de a guerra ter acabado há mais de duas déca-
das, não havia ainda perdido o hábito de lançar projetéis pelos ares.
Muitos visitantes haviam dado consigo na extremidade oposta do ga-
binete a levar com livros e dossiês arremessados por um Holland irado.
Joan não era imune a tais ataques: mais tarde, acabaria a rir com as ami-
gas por causa daquele dia em que, certa manhã, quando mal acabara de
chegar ao escritório, «havia conseguido, graças a um rápido movimento
de abaixamento da cabeça, evitar o impacto provocado por um livro lan-
çado na sua direção».
Mantinha, por isso, um olhar atento e cauteloso relativamente ao
«querido velho Joe» enquanto datilografava as suas cartas, observando-o
a fumar o seu cigarro com afinco, visivelmente fascinada. Parava literal-
mente de respirar, «sustendo o fumo, até que o último sopro da nicotina
aspirada lhe tivesse alcançado as botas». Só quando o seu rosto ficava
intensamente vermelho «é que o expelia com todo o vigor».
Joan teria muito que contar à sua companheira de apartamento
quando voltasse para casa ao fim do dia. Porém, o tema principal dessa
conversa não seria nem Grand nem Holland. Havia um terceiro homem
no gabinete, muito diferente dos outros dois, e que tinha provocado
uma impressão ainda mais intensa em Joan. O seu nome era Colin
Gubbins e, desde o primeiro momento, Joan classificou-o como alguém
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bastante singular — alguém, sentia a jovem mulher, «destinado a uma
carreira excecional»17.
Colin Gubbins era um tipo bem vestido que usava luvas macias de camur-
ça e caminhava com a ajuda de uma bengala com uma pega de prata.
Era «moreno e baixo, as mãos quadradas e as roupas impecáveis»18,
e tinha a sorte de ter o aspeto mais condizente com a indumentária que
imaginar se pudesse: «De constituição pequena e respirando robustez»,
escreveu alguém, «com sobrancelhas proeminentes, olhos penetrantes
e uma voz grave.»19 Algumas pessoas, nos primeiros instantes em que
se cruzavam com ele, ficavam perturbadas pelo brilho intenso dos seus
olhos, que parecia revelar uma natureza implacável. Mas Joan conven-
ceu-se de que esse brilho era mais uma cintilância, que revelava alguma
malícia e uma personalidade jocosa.
À semelhança de Lawrence Grand, Gubbins também usava um
cravo na lapela. Mas a similitude entre os dois homens ficava-se por
aí. Grand falava com grandiloquência, arrastando as palavras, como se
o último trago do conhaque bebido ao almoço o tivesse deixado aos
comandos de um elaborado solilóquio. Gubbins, por contraste, tinha
um discurso sem excessos, um bigode aparado e um modo de ser con-
trolado. Era tão meticuloso no seu trabalho como era miudinho nas
suas maneiras.
«Falava baixo, era enérgico, eficiente e charmoso.» Pelo menos era
assim que Joan o via, enquanto o espiava por detrás da sua máquina de
escrever20. Aparentava ser o cavalheiro perfeito, que comprava os tecidos
para os seus fatos na Solomons e a sua água de Colónia na perfuma-
ria Floris. Mas Joan tinha uma suspeição secreta, que logo sentiu nesse
primeiro dia de trabalho: a de que Colin Gubbins se revelaria um cava-
lheiro cheio de surpresas.
Chegara ao gabinete da Caxton Street há apenas umas poucas sema-
nas e ainda estava a ambientar-se. Aos 42 anos de idade, e dotado de
muita energia, tinha já vivido mais vidas do que a maioria das pessoas.
Nascido em 1897 em Tóquio (o pai trabalhava para a missão diplomática
britânica no Japão), havia sido enviado por via marítima de volta à ilha
de Mull ainda criança e entregue aos cuidados de um verdadeiro clã de
incorrigíveis tias escocesas. Elas tinham-no moldado no que era: duro,
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desembaraçado e de espírito independente. O seu apurado sentido de iro-
nia, deliciosamente malicioso, tornava-o único.
A rainha daquele poleiro da casa da sua infância era a Tia Elsie, uma
extraordinária matriarca com «princípios rígidos» e um orgulho feroz na
sua identidade escocesa. Não permitia que o jovem Colin se sentasse
na sua presença, porque, dizia, era algo «que encorajava a indolência».
Transmitiu-lhe a noção de que a robustez era uma virtude que Deus
entregara somente aos Escoceses.
Killiemore House era uma espécie de presbitério: severo, com cor-
redores gelados e salas parcamente iluminadas. «Dá uma corrida à volta
da casa, se tens frio», era o mantra da Tia Elsie21. Quando o granizo e
a água da chuva gotejavam pelos algerozes da Killiemore House, Colin
enfiava as suas botas encharcadas e dava mais uma volta em torno da
propriedade. Rir era censurado e as brincadeiras dentro de casa eram
estritamente proibidas naquele austero lar da infância de Gubbins. Pois
essas coisas eram, assim lhe havia sido explicado, frívolas. Mais tarde,
fora-lhe dito que a alegria era vista «como uma diversão sem utilidade»
que o afastava «da mais séria tarefa de aprender a abastecer a despensa
e desse modo acrescentar alguma variedade de sabores à papa de aveia e
ao arenque salgado que constituíam a alimentação de base»22.
A figura mais admirável naquela morada sombria era o velho avô
McVean, um ornitólogo que usava kilt e passava a maior parte do seu
tempo a estudar o livro de H.E. Dresser História das Aves da Europa*.
Quando se aventurava até ao exterior, era invariavelmente para desfazer
aos pedaços os pássaros queridos que avistava no céu. Ao final do dia,
à medida que o Sol pálido daquela região serrana ia mergulhando nas
águas geladas do lago Na’Keal, o avô McVean instalava-se no seu cadei-
rão, dali se pronunciando sobre todos os temas do dia.
Em 1913, Gubbins deu um passo decisivo para se evadir alistando-se
na Academia Militar Real, em Woolwich. Deixou uma forte impres-
são nos demais novos recrutas, em parte devido à sua total imprudên-
cia. Com Gubbins, «era tudo ou nada», observou por escrito um dos
seus contemporâneos depois de o ter visto numa competição desportiva.
* O título original é A History of the Birds of Europe, da autoria do ornitologista inglês Henry Eeles Dresser (1838-1915).
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Um outro referiu o seu «temperamento um pouco selvagem e impru-
dente»23. A Academia aceitou-o imediatamente e ele alistou-se como ofi-
cial cadete, alguém destinado a combater em guerras entre cavalheiros.
Os seus camaradas de armas acharam-no «um excelente compa-
nheiro», que demonstrava ter nervos de aço quando lutava contra os ale-
mães. A brigada a que pertencia cedo deu consigo na mira de uma feroz
brigada de artilharia de ataque alemã, que deixou metade dos seus cama-
radas feitos em pedaços. «Gubby» arrastou os companheiros mutilados
para fora das trincheiras lamacentas da Flandres, dessa forma vindo a
ser condecorado com uma Cruz Militar. A Tia Elsie podia finalmente
sentir-se orgulhosa dele.
Seguiu-se um período marcado por «agruras de tal maneira brutais»24,
que a recordação da vida em Killiemore a tornava um aprazível momento.
Gubby adoeceu, foi atingido no pescoço e acabou por apanhar a febre das
trincheiras. Quando finalmente recuperou, já a guerra tinha acabado.
Os amigos chamavam-lhe Whirling Willie, porque tinha a mesma
energia inesgotável da famosa personagem cómica com o mesmo nome.
Uma coisa é certa: Gubbins percorreu sem hesitações o seu próprio
caminho até ao Armistício. Embriagou-se no Savoy e depois emaranhou
por uma das colunas do restaurante acima, provando assim que até os
habitantes das Terras Altas da Escócia eram capazes de se divertir em
ocasiões como aquela. Depois chegou a hora de seguir para a discoteca
Ciro, onde dançou sem parar até ao amanhecer.
A maior parte dos soldados rasos ingleses que tinham sobrevivido
à Frente Ocidental havia visto horrores suficientes para a vida toda.
O mesmo não sucedeu com Gubbins. Passou uns poucos meses des-
preocupados em Londres, período durante o qual se dedicou a levar a
irmã, Mouse, aos espetáculos de revista nas salas da zona de West End.
Mas tinha a guerra no sangue, e queria mais. Depois de uma breve comis-
são de serviço em Murmansk, para conter os bolcheviques de Lenine,
decidiu ir servir na Irlanda.
Essa decisão mudaria para sempre a sua vida. Deu consigo em bata-
lhas de rua a perseguir Michael Collins e os seus comparsas revolu-
cionários do Sinn Fein, num conflito rude, impiedoso e imprevisível.
Gubbins havia tido anteriormente a experiência dura das trinchei-
ras, com os estilhaços das granadas e tudo o mais, mas jamais havia
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experimentado um tipo de guerra assim. Queixou-se aos superiores de
estar a ser «alvejado por detrás de sebes, por homens de chapéu e gabar-
dina à cavalheiro que não lhe davam hipótese de ripostar». Mas esses
homens elegantemente vestidos ensinar-lhe-iam uma lição que não es-
queceria: guerrilheiros armados rudimentarmente podiam causar danos
consideráveis num exército convencional.
Depois de uma comissão de serviço na Índia, Gubbins foi integrado
no Departamento de Guerra do exército britânico em Londres, ali lhe
sendo oferecido um cargo de gabinete na área das informações militares.
Estava ainda no Departamento de Guerra, em 1939: «Uma mão gelada
pegou-me literalmente pelo pescoço e uma voz que eu conhecia disse-
-me: “Tem compromissos para hoje à hora do almoço?”» Era Joe Holland
a convidá-lo para ir comer ao Hotel St. Ermin, na Caxton Street.
Gubbins declinou o convite, explicando que estava quase de saída
para ir assistir às corridas de cavalos do regimento, que tinham lugar
em Sandown. Holland interrompeu-o a meio da frase: «Não, não está»,
disse. «Porque tem de ir almoçar comigo.»
Gubbins deu por si a ser encaminhado para uma suíte privada do
St. Ermin, uma espécie de bar afamado. «Deparei com aquele que era o
meu verdadeiro anfitrião, com ar de quem já lá estava à nossa espera há
um bocado», conta. Tratava-se de Lawrence Grand, da Secção D.
Duas horas mais tarde, quando os homens tomavam já café e brandy,
Gubbins aceitou um novo emprego. Fora convidado a juntar-se à «ala
esquerda», como Holland gostava de descrever o trabalho daquela sec-
ção. A tarefa de Gubbins consistia em preparar uma guerra suja, maquia-
vélica e rigorosamente desprovida de qualquer cavalheirismo contra os
nazis de Hitler.
Quando perguntou onde ficavam os escritórios da «ala esquerda»,
Grand levantou-se da cadeira, foi até ao extremo oposto do quarto de hotel
onde se encontravam e, com um gesto teatral, fez aparecer uma porta
secreta, que abriu25.
«A suíte, na linha da melhor literatura periódica especializada para
rapazes*, tinha uma passagem secreta que comunicava com os gabinetes
* No original, Boy’s Own Paper, uma publicação para rapazes que se publicou na Grã- -Bretanha entre 1879 e 1967.
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da Secção D situados no número 2 da Caxton Street, que ficava ali mes-
mo ao lado.»26
Poucos eram os que, no exército regular, tinham experiência de combate
numa guerra sem regras. A prioridade de Gubbins era justamente a de
preparar um manual de instruções para esse tipo de guerra, pondo por
escrito e de forma sucinta as melhores técnicas para matar, incapacitar
ou mutilar um máximo número de pessoas.
«A minha dificuldade», admitiu posteriormente, «era que, por mais
estranho que pareça, não havia um único livro, em qualquer língua que
fosse, que se debruçasse sobre o tema e pudesse ser encontrado em qual-
quer biblioteca.»27
Gubbins foi obrigado a procurar noutras fontes, encontrando ins-
piração no Sinn Fein e em T.E. Lawrence (da Arábia), bem como em
Al Capone e nos seus gangsters de Chicago. Tinham aterrorizado a
América com os seus ataques-surpresa aos estabelecimentos noturnos,
e as suas submetralhadoras tinham demonstrado ser devastadoramente
eficazes. Gubbins queria que os seus grupos de homens fossem armados
dessa mesma forma. Sentia que toda a arte «da guerrilha armada resi-
dia em surpreender o inimigo onde ele menos esperava, mas sobretudo
onde estivesse mais vulnerável». Os guerrilheiros não deviam pensar
em si mesmos como soldados; antes como gangsters a operar fora da lei,
e a sua tarefa era a de causar «um máximo de estragos num curto espaço
de tempo e desaparecer o mais depressa possível desse sítio». Gubbins
queria que fossem como «uma chaga persistente», uma ferida aberta que
desorientasse, levasse à exaustão e por fim derrotasse o exército regular
de Hitler.
Enquanto começava a preparar o seu manual de instruções, foi defi-
nindo um vasto conjunto de conselhos práticos que abarcavam situa-
ções tão diferentes como o estrangulamento de sentinelas com cordas
de piano, até aos melhores métodos de contaminação dos sistemas de
fornecimento de água com bacilos mortais. Um copo ou dois do agente
biológico certo podiam exterminar uma cidade inteira. Um explosivo
cuidadosamente colocado podia matar centenas de pessoas. Havia tam-
bém dicas úteis sobre temas como, por exemplo, as melhores manei-
ras de destruir fábricas, ou ainda sobre como levar a cabo com sucesso
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emboscadas em comboios. «Não se trata de nos limitarmos a disparar
sobre o comboio», explicou. «Primeiro é preciso fazê-lo descarrilar, e só
depois se matam os sobreviventes.»28
Debaixo de olho estava aquela que constituía a grande oportuni-
dade e que Gubbins já visava: destruir as infraestruturas tão vitais para
a máquina de guerra nazi que podiam mudar completamente a natu-
reza do conflito. Mas Gubbins também sabia que uma tal destruição
só podia ser levada a cabo por especialistas. Requeria os serviços de ho-
mens de fora da estrutura militar, homens que percebiam o funciona-
mento de centrais elétricas e que conheciam a construção de viadutos.
E requeria também armas que ainda não existiam.
Sentada ao fundo do gabinete, Joan sentia-se cada vez mais intrigada
com Gubbins. Sempre que lhe levava o chá da tarde, encontrava-o inva-
riavelmente debruçado sobre a secretária, a desenhar com esmero diagra-
mas de pontes e viadutos. Não eram propriamente desenhos ilustrativos.
Havia neles setas e cruzes que mostravam aos candidatos a sabotadores
o melhor sítio para colocar a gelatina explosiva.
Joan não podia deixar de pensar que a impecável polidez de Gubbins
escondia um espírito bastante mais turbulento. «Tudo nele fazia pressen-
tir que efetivamente quem vê caras não vê corações», achava ela, «alguém
que parecia ter em si tão pouco de aventureiro que levava homens menos
dotados a subestimar os seus dotes de liderança, coragem e integridade.»
Ademais, achava-o estranhamente romântico, de um modo que Law-
rence Grand e Joe Holland não eram. Pois, por baixo do exterior irre-
preensivelmente engomado, ela podia pressentir «um homem de armas,
um veterano, cujos poderes estavam depositados no seu âmago, dentro
de si, tão cintilantes quanto as fogueiras nos recantos montanhosos em tor-
no das quais os seus ancestrais celtas se haviam juntado entre ofensivas».
Joan era bastante perspicaz no que respeitava ao temperamento das
pessoas e havia conseguido captar a essência de Gubbins. Ele era uma
curiosa mistura de prudência escocesa e imprudência juvenil. Datilo-
grafou como lhe competia, na máquina Imperial, os seus textos sobre
a guerra de guerrilha; ele chamou-lhes A Arte da Guerrilha Armada e
O Livro de Bolso do Chefe Guerrilheiro*. Gubbins chamara a atenção para
* No original, The Art of Guerrilla Warfare e The Partisan Leaders’ Handbook.
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a importância de os agentes poderem ter acesso aos manuais o mais
depressa e o mais discretamente possível. Joan tomou assim a decisão de
os mandar publicar em formato de bolso e em papel comestível. Qualquer
um dos manuais podia ser consumido em menos de dois minutos, desde
que engolido com a ajuda de um grande copo de água.
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2.
LÓGICA SUJA
JOAN BRIGHT JÁ TINHA VIVIDO na Argentina, em Espanha e na
Cidade do México, e a experiência de viver no estrangeiro havia-lhe
ensinado algo importante: os Ingleses são um povo que não é capaz de
funcionar sem regras. Formavam filas ordeiras nas paragens de auto-
carro, pediam perdão quando não havia razão para se desculparem.
Para ela, a decência e o jogo limpo eram partes integrantes da identi-
dade britânica.
Com o desporto era mais ou menos a mesma coisa. Nas aldeias de
todo o reino, jovens bem-falantes vestidos de flanela branca passavam
os domingos a jogar críquete, um jogo com tantas regras que realmente
só os Ingleses podiam tornar-se mestres a jogá-lo. Até os desportos mais
violentos, como o boxe, requeriam o uso de um regulamento próprio.
Em 1867, o 9.º marquês de Queensberry (embora dificilmente pudesse
ser considerado um cavalheiro) pusera o seu nome a um conjunto de
regras que asseguravam que os combates de boxe fossem travados num
espírito de decência. A partir desse momento, deixou de ser possível
bater num homem quando este estava caído: tal prática passou a ser con-
siderada desleal.
No final da década de 1930, à medida que a tensão internacional
aumentava, a questão de saber o que era considerado um combate de
cavalheiros tornou-se um tema de aceso debate na página das cartas dos
leitores do The Times. Um certo Dr. L.P. Jacks, de Oxfordshire, abriu as
hostilidades quando escreveu ao editor a expressar a sua convicção de
que apenas a espada «podia servir de arma a um cavalheiro». O seu racio-
cínio era, por excelência, inglês. Atacar alguém com uma espada «era um
modo de dar a essa pessoa a oportunidade de se defender, conferindo
assim à contenda as qualidades de uma modalidade desportiva»1.
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Nem todos concordavam com esse ponto de vista. Escrevendo na sede
do seu clube em St. James’s, o senhor Edward Abraham queria saber
como é que podia ser considerado cavalheirismo «o ato de cortar a veia
jugular de alguém com uma espada»2, mas nada cortês o ato de matar
com uma baioneta. Qual era a opinião do Dr. Jacks relativamente a armas
menos convencionais? O gás mostarda, por exemplo? Seria uma arma
própria de um cavalheiro, ou nem por isso?
Seguiu-se uma discussão tremenda, com a participação de outros lei-
tores na zaragata. Leslie Douglas-Mann confessou que não se preocupava
minimamente com as regras do jogo. Se realmente se queria ganhar —
e ganhar a qualquer custo —, não havia espaço para comportamentos
dignos de cavalheiros. Pistolas, gás ou granadas; o melhor era estar pre-
parado para sujar as mãos. «Um bastão guarnecido com pregos afiados
arremessado contra um rosto», argumentava, «é provavelmente algo tão
desagradável como obrigar alguém a respirar gás asfixiante.»3
O tema deu que falar durante muitas semanas, até que um exas-
perado Dr. Jacks (que fora quem iniciara a discussão) suplicou por um
cessar-fogo sob a forma de um acordo de cavalheiros. «Posso, se me é
permitido, retirar a minha definição inicial, um pouco impetuosa, sobre
a espada como arma de cavalheiros», escreveu, «e defini-la, com maior
prudência, como uma arma menos digna de cavalheiros do que o gás
asfixiante?»4
A questiúncula epistolar não teria tido impacto digno de nota, não fosse
pelo facto de ter levantado uma questão importante. Havia ou não lugar a
regras no jogo da guerra dos tempos modernos?
O tema chegaria a debate na Câmara dos Comuns. A maior parte
dos seus membros aparentava ser intransigentemente conservadora,
pelo menos numa primeira abordagem, e declarava-se vigorosamente
em defesa das regras. Mas um deles permitiu-se discordar. Robert Bower
era o deputado conservador pela região de Cleveland, um membro cujo
comportamento nada cavalheiresco lhe havia já granjeado notoriedade
em Westminster. Dois anos antes, tinha chocado os colegas conserva-
dores pelo uso que fizera de linguagem não parlamentar, insultando
um deputado judeu com uma conversa indecente e de escárnio racista.
O deputado em questão, Emanuel Shinwell, ficou tão indignado que atra-
vessou a assembleia para ir dar um murro a Bower.
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Agora, uma vez mais, Bower preparava-se para fazer a defesa das
suas posições controversas. Declarou-se chocado com o modo como
os colegas de bancada conservadores continuavam a tratar Hitler com
diplomacia, apesar de ele estar a desrespeitar todas as regras interna-
cionalmente consagradas. Defendeu que não havia espaço para o cum-
primento de disposições regulamentares quando se tratava de lidar
com os nazis. «Quando se está a tentar defender a própria vida contra
um inimigo implacável», disse, «não se pode governar pelas regras de
Queensberry.»
Desdenhou a noção desatualizada de fair play dos colegas das banca-
das da frente, afirmando que estes preferiam perder uma guerra «a fazer
algo impróprio de um verdadeiro cavalheiro».
Os colegas de Bower estavam estupefactos com o que acabavam de
ouvir, mas o ilustre deputado pela região de Cleveland ainda não tinha
rematado o seu discurso. Avisou-os de que a Grã-Bretanha estava con-
denada à destruição se se mantivesse agarrada a velhos hábitos. «Temos
de ter um governo que seja capaz de ser implacável, incansável e impie-
doso», declarou. «Em suma, precisamos de mais alguns canalhas neste
governo.»5
A severa educação escocesa de Colin Gubbins havia instilado no seu espí-
rito um forte sentido de moralidade, mas, apesar disso, não se importava
nada de deixar aos outros a tarefa de dirimir, com a própria consciência,
as ideias de bem e de mal associadas à guerra de guerrilha. Gubbins
estava mais preocupado com as potencialidades práticas de uma campa-
nha de guerrilha armada levada a cabo contra a Alemanha nazi.
Era evidente que não podia fazê-lo sozinho. Precisaria de um núcleo
duro de especialistas que pudessem ajudá-lo a planear a melhor forma
de atingir a máquina de guerra nazi de Hitler. Esses especialistas dificil-
mente podiam ser encontrados no exército regular. Gubbins precisava de
indivíduos prontos para desobedecer às regras; cartas fora do baralho e
excêntricos com talento inato para pensar fora da caixa e com um certo
gosto pela transgressão.
Tinha chegado a Caxton Street há pouco mais de um semana quando
viu chegar Millis Jefferis, o oficial com ar de gorila de quem inicialmente
tinha partido a ideia de criar uma mina magnética.
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«Vermelho de rosto, bondoso de coração», pelo menos foi o que Joan
Bright pensou quando foi pela primeira vez apresentada ao imparável
fumador que era Jefferis6. Chegou envolto numa nuvem de fumo, levando
assim ainda mais nicotina para a vida de Joan. Ela olhava-o com espanto
durante os primeiros dias na Caxton Street. Ele era áspero, impaciente e
muito mais direto do que o sempre cortês Gubbins. O seu casaco estava
sempre amarrotado, as suas calças, cheias de vincos: a impressão geral
era a de alguém que nutria o mais completo desdém pela etiqueta mili-
tar. O seu cunhado achava que ele se parecia «mais com um corretor de
apostas de corridas de cavalos» do que com um soldado7. Joan não tinha
tanta certeza disso. Deu uma olhadela às bochechas coradas e declarou
que «ele nunca podia ter pertencido a outro ramo militar que não o do
Real Corpo de Engenharia».
Apesar de ele ter continuado a intimidá-la por muitas semanas, Joan
rapidamente se apercebeu de que havia nele muito mais do típico bulldog
inglês. Era curioso, infinitamente criativo e, o mais impressionante de
tudo, completamente autodidata, «um génio inventivo, os seus sonhos e
pensamentos tomavam sem dificuldade corpo em todo o tipo de máqui-
nas infernais — e, quanto maior fosse a explosão, mais sonora era a sua
imediata gargalhada»8.
O aspeto encanecido do rosto de Jefferis era o resultado da dema-
siada exposição que tivera ao sol de elevada altitude nos Himalaias
indianos. Engenheiro de formação, começara a carreira na complicada
zona da província da Fronteira Noroeste* a trabalhar para o Corpo de
Engenheiros Militares do Exército Indiano. Rapidamente se tornou
evidente que tinha mãos especialmente talentosas para desenhar pon-
tes e viadutos. O Royal Engineers Journal referiu-se-lhe como «um ho-
mem excecional dotado de um génio inventivo raro»9, alguém capaz
de fazer mover impenetráveis ravinas dos Himalaias por via da sua
mistura única de álgebra e imaginação. Os seus subalternos confessa-
ram que nunca tinham conhecido alguém tão orientado para o sucesso.
«As dificuldades existiam apenas para que pudessem ser superadas,
e não havia revés que um pouco de reflexão e determinação não pudes-
sem ultrapassar.»
* Referência ao território da antiga província do Paquistão.
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Jefferis havia passado pela sangrenta campanha de 1922 no Waziristão,
abrindo o seu próprio caminho através de montanhas intransitáveis,
até que criara uma espécie de estrada que ligava as povoações estraté-
gicas de Isha e Razmak. Tratou-se de uma proeza mais notável ainda,
porquanto ele e os empreiteiros afegãos se viam constantemente debai-
xo de fogo, sob a mira de atiradores furtivos. «Aposto que nunca mais te
aparece algo desta envergadura», escreveu o major da sua companhia10.
A sua capacidade de resposta ante a adversidade levá-lo-ia a ser condeco-
rado com uma Cruz Militar. Mais importante ainda: granjeou-lhe uma
experiência direta na guerra de guerrilha.
Colin Gubbins depressa se apercebeu de que a estranha aparência de
Jefferis escondia uma aptidão única, e fora justamente isso o que lhe
valera ao longo da Guerra do Waziristão. As suas pontes flutuantes e as
suas estacas de betão armado eram meras manifestações exteriores de
uma paixão pelas matemáticas aplicadas. Isto porque Jefferis acreditava
que qualquer problema podia ser resolvido pela álgebra — não as equa-
ções algébricas ensinadas nas escolas, mas as equações de superlativa
complexidade. Esta era, efetivamente, a grande descoberta que fizera na
vida: tudo se resumia a uma equação, bastava olhar para as coisas com
alguma atenção para o perceber.
Tinha resolvido a fórmula algébrica que explica de que modo um
albatroz fica a planar sem bater as asas. Imagine-se que até conseguira
encontrar a equação que permitia prever o ponto exato em que um galgo
captura uma lebre, em qualquer terreno de caça, desde que baseando-se
no princípio de que o galgo progride ligeiramente mais depressa do que
a sua presa. Quando Joan lhe foi apresentada, em 1939, estas questões
não pareciam ter qualquer importância. Mas a verdade é que Jefferis fun-
cionava de maneira diferente. Pois se se é capaz de prever quando é que
um galgo apanha uma lebre, então também se pode prever o momento
em que um míssil atinge um avião. E isso fazia toda a diferença, pois
tornava tanto a álgebra como Jefferis decisivamente importantes.
Foi enquanto servia na Fronteira Noroeste que Jefferis sofreu uma
estranha e total conversão. Até esse momento, havia-se limitado a viver,
a respirar e a sonhar com pontes. Mas, enquanto percorria o duro caminho
de volta à vila de Isha, desguarnecido de homens após uma batalha dolorosa,
sentiu-se dominado por um inescapável desejo de as fazer ir pelos ares.
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Os amigos mais próximos haviam reparado na mudança. «Millis
Jefferis tinha agora uma espécie de raiva às pontes», escreveu um obser-
vador, perplexo, «e parecia ansioso por dar cabo delas.» Havia alguma
lógica nesta sua súbita antipatia. A aventura que vivera no Waziristão
tinha-lhe proporcionado a experiência direta e simultânea da impor-
tância estratégica dos caminhos de ferro e das pontes. Se se era capaz
de danificar uma ponte, era-se também capaz de fazer parar um exército
inteiro.
A admissão de Jefferis na Caxton Street viria a constituir um ponto
de viragem na sua vida. Foi-lhe entregue o comando da sua própria pe-
quena unidade, chamada MI(R)c, um corpo de assessoria técnica à equi-
pa de Gubbins, com a missão expressa de «desenhar e produzir armas
especiais destinadas a ser usadas em formas de guerra não convencio-
nais». Eram essas as armas que determinariam o sucesso ou o falhanço
das operações de guerrilha de Gubbins.
Agora, impacientemente sentado à secretária, os seus pensamentos
sombrios podiam transformar-se numa realidade ainda mais sombria.
Os outros espreitavam-no com admiração enquanto rabiscava números,
letras e equações em folhas soltas de papel quadriculado, transformando
com sistematização equações matemáticas complexas em diagramas de
operações de destruição. Quando os cálculos matemáticos estavam ter-
minados, «pegava em enormes blocos de desenho de quarenta centíme-
tros quadrados»11 e começava a fazer planos de pormenor de viadutos
com vista a descobrir a melhor maneira de os reduzir a escombros. Uma
vez concluídos, os seus trabalhos destinavam-se a ser publicados como
suplementos dos folhetos comestíveis de Gubbins.
O título não deixava espaço à imaginação. Como Usar Explosivos de
Alta Potência continha aconselhamento de grande precisão para quem
quisesse fazer explodir uma ponte, um edifício, uma linha de caminho
de ferro ou uma estrada. Estava ilustrado com desenhos de contorno que
mostravam «como introduzir uma dose de gelatina explosiva debaixo de
um tabuleiro de caminho de ferro ou onde esconder uma carga de dina-
mite debaixo de uma ponte»12.
Havia também dicas úteis sobre a melhor maneira de destruir pis-
tões de comboio, danificar agulhas, fazer explodir pilares (aplicar gela-
tina explosiva debaixo de três pilares e não de quatro, pois nesse caso não
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desabariam), e sobre as melhores técnicas de sabotar uma fábrica. Este pe-
queno folheto, quando muito, ligeiramente maior do que um exemplar
da Science Illustrated, foi o primeiro no género jamais editado, o primei-
ro manual da história militar britânica feito para ensinar as melhores
maneiras de causar danos em alvos civis com uma pequena mochila car-
regada de explosivos.
Não satisfeito com a simples prestação de aconselhamento em arma-
mento, Jefferis começou a desenhar e a construir as suas próprias armas.
Cada risadinha largada do lado de lá do gabinete anunciava a conce-
ção de alguma nova arma letal. «Fazer explodir caminhos de ferro era
a sua operação preferida», escreveu um colega, «mas muito próxima na
sua ordem de preferências estava a destruição de pontes de caminho de
ferro.» Jefferis teve especial prazer em criar uma mina cujo detonador
era o próprio comboio. Concebeu também uma engenhosa mina flu-
tuante que se autodetonava quando embatia em pontões.
Nos tempos livres, inventou armadilhas destinadas a causar desa-
gradáveis surpresas a qualquer nazi suficientemente desafortunado para
estar no lugar errado à hora errada. Uma das mais perversas foi aquela
a que inocuamente chamou Interruptor de Segurança*, «que podia ser
ocultado sob um livro ou uma tampa de uma sanita, ou algo desse tipo,
provocando uma explosão quando era levantado». Os homens que não
tinham o hábito de levantar a tampa da sanita haviam por fim arranjado
uma boa desculpa.
Mas o mais diabólico de todos era o muito apropriadamente desig-
nado Castrator, um engenho cuja presença passava totalmente desperce-
bida e que era acionado por uma mola, fazendo exatamente o que o seu
nome anunciava. «Eram sem dúvida uma maneira barata de baixar a
natalidade entre os Alemães», fez notar com ironia Stuart Macrae, «dado
que apenas custavam 2 xelins cada.»13
Todos estes protótipos de bombas tinham de ser testados. Felizmente,
no escritório da Caxton Street havia um esconderijo secreto para explo-
sivos, localizado num armário de artigos de papelaria que era man-
tido fechado. Apenas um homem tinha a chave, um rude habitante de
Cockney, que «habitualmente falava com grande naturalidade naquele
* Release Switch, no original.
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conhecido calão rimado»14. O seu anterior estilo de vida como traficante
de armas e promotor de combates de boxe, acrescentava uma pitada de
ilegalidade às atividades levadas a cabo na Caxon Street.
Algumas das armas maiores criadas por Millis Jefferis eram testa-
das na quinta, em Bedfordshire, que pertencia ao irmão de Cecil Clarke.
Era o lugar ideal para fazer detonar as suas potentes bombas incendiá-
rias. Mas os dias de trabalho eram demasiado curtos para idas constan-
tes ao campo, e por isso Jefferis começou a usar Richmond Park para o
efeito.
Mantendo sempre um olho vigilante nos vagabundos, nos passeado-
res de cães e nos veados do parque, ali detonou quantidades cada vez
maiores de explosivos. Uma mina, cuidadosamente embrulhada em
amonal, causou uma explosão de tal forma grande que lançou pedaços
de terra pelos ares que podiam ser avistados no horizonte de Richmond,
criando «uma cratera deveras impressionante»15.
Uma coisa era construir armas que fossem usadas em ações de guerri-
lha armada, outra completamente diferente era encontrar guerrilheiros
prontos para combater atrás das linhas inimigas. Gubbins não foi total-
mente claro relativamente ao tipo de pessoa que estaria na disposição de
arriscar a própria pele em missões que podiam implicar algum grau
de tortura, caso viessem a ser apanhados (como o coronel Chidson não
se cansava de lembrar).
Em 1939, o exército britânico era uma força voluntária, aumentada
por via do recrutamento; os seus homens estavam parcamente treina-
dos e não eram os mais indicados para o combate de guerrilha armada.
O Corpo Expedicionário Britânico oferecia um recrutamento mais fértil
nessa matéria. Havia sido criado no ano anterior, no dealbar da anexação
da Áustria levada a cabo por Hitler, e alguns dos recrutas tinham dado
provas de um grau de competência perfeitamente razoável. Mas Gubbins
sabia que não podiam dispensar quaisquer recursos humanos naquele
tenso e incerto verão.
Assim, abalançou-se a uma abordagem bastante mais excêntrica
quando se tratava de recrutar homens para o seu exército de guerri-
lha. Decidiu recorrer à rede de velhas escolas públicas, voltando-se para
ex-alunos endurecidos pela prática do râguebi e que tinham passado por
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escolas como a de Eton, Harrow e Winchester. Sentia-se particularmente
orgulhoso por permitir o alistamento dos que haviam deixado precoce-
mente a escola e se tinham tornado exploradores polares, montanheses
e garimpeiros, homens que sabiam bem como sobreviver em ambientes
adversos.
Tinha poucos contactos da sua própria brigada da escola: era uma
realidade que ficava distante da sua infância passada nas Terras Altas
da Escócia. Mas teve a sorte de ser ajudado por alguém proveniente de
uma secção inesperada. O brigadeiro Frederick Beaumont-Nesbitt era
um antigo aluno de Eton com um pedigree impecável, «alto e polido, um
homem de porte ereto e bem-parecido, com um bigode farfalhudo pen-
teado para cima». Oficial dos Grenadier Guards bem relacionado, o briga-
deiro havia sido nomeado chefe da Direção de Informações. Acabara há
pouco tempo de elaborar uma lista de jovens destemidos e empreendedo-
res, antecipando-se ao seu recrutamento na direção que chefiava. Agora,
com a generosidade que lhe era típica, entregava essa lista a Gubbins,
convidando-o a escolher os que lhe parecessem mais adequados.
Os nomes que constavam dessa lista não diziam muito a Gubbins,
e por isso ele pediu ajuda a Joan Bright, atendendo a que ela conhecia
melhor do que ele aquele universo. «Mandaram-me ir ao Departamento
de Guerra para fazer uma primeira seleção», recordou ela mais tarde,
«e depois pediram-me que escolhesse aqueles cujas qualificações pare-
ciam mais apropriadas para uma ação de formação em técnicas de guer-
rilha armada.»16 Havia alguns candidatos de primeira linha na lista de
Beaumont-Nesbitt. Peter Fleming (Eton e Oxford), Douglas Dodds-
-Parker (Winchester e Oxford) e Geoffrey Household (Clifton College e
Oxford) eram três dos seis que Joan selecionou para a sua primeira lista.
Depressa foram seguidos por muitos mais. Todos tinham uma coisa em
comum: havia-lhes sido dada uma educação que, embora dispendiosa,
os tinha endurecido a todos e tornado imunes à adversidade.
Feita a escolha, Joan entregou a lista a Gubbins. Após o que ele ini-
ciou uma volta pelos muitos clubes de cavalheiros de Londres, pois havia
ficado a saber que muitos daqueles homens eram membros do Boodle,
do Brooks ou do White. Um dos seus mais recentes recrutados era Peter
Wilkinson (Rugby e Cambridge), um jovem que havia acabado de se alistar
nos Fuzileiros Reais. Um dia, no final da primavera de 1939, Wilkinson
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estava a almoçar no Clube do Exército e da Marinha quando deu consigo
a conversar com um desconhecido de meia-idade, impecavelmente ves-
tido, bigode aparado e sotaque escocês.
Wilkinson achou a companhia de Gubbins muito agradável. Os dois
homens conversaram durante um longo momento sobre a ocupação
nazi dos Sudetas e depois Gubbins falou do seu desejo de aprender ale-
mão. Wilkinson recomendou-lhe um novo manual que acabara de ser
publicado, As Bases e Noções Fundamentais de Alemão, que ele próprio
usara para obter fluência naquela língua. Gubbins agradeceu-lhe, bebeu
de um só trago o que restava do café e saiu.
Wilkinson só voltou a pensar naquele encontro dois dias mais tarde,
quando recebeu um convite para almoçar num endereço particular
situado numa cavalariça para os lados da Marylebone Road. Havia sido
endereçado pelo mesmo tal Gubbins e atiçou-lhe a curiosidade. O con-
vite conduziu-o à porta dos fundos de uma enorme mansão de estilo
Regency que ficava em frente de Regent’s Park.
As coisas só se tornaram um bocadinho estranhas quando, depois de
convidado a entrar por um serviçal, foi conduzido pelas escadas de serviço
do edifício. Assim deparou consigo «a olhar de frente para o que parecia,
e depois provou efetivamente ser, a cabeça de Paul Robeson, de Epstein».
Pendurada imediatamente mais acima estava «uma magnífica explosion
de couleur que, numa observação mais atenta, demonstrou ser uma pin-
tura de Kokoschka». Só mais tarde viria a descobrir que a mansão per-
tencia à riquíssima família de colecionadores de arte ligados a Edward
Beddington-Behrens.
Não havia tempo para apreciar a arte. Wilkinson foi levado até uma
espaçosa sala de visitas onde encontrou Gubbins à conversa com dois
desconhecidos, um oficial subalterno dos Hussardos e um capitão do
Regimento de Cavalaria do Exército Britânico.
Continuava sem perceber por que razão havia sido convidado e
Gubbins nada fez que o esclarecesse. Os quatro comeram uma deli-
ciosa refeição fria, regada por um Chevalier Montrachet, e terminaram o
repasto com morangos silvestres. Só quando o café chegou, juntamente
com conhaque servido em balões de cristal, é que Gubbins explicou a
razão pela qual os três homens haviam sido convidados. Disse-lhes que,
se a guerra começasse, como tudo indicava, «vastas parcelas da Europa
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seriam invadidas pelos Alemães e que, a acontecer assim, haveria espaço
para atividade de guerrilha por detrás das linhas alemãs».
Confessou ser «um membro do ramo secreto do Departamento
de Guerra» e que procurava criar uma equipa de elite «para a prepa-
rar para a guerra de guerrilha». Não teriam de planear as missões: isso
era incumbência de Gubbins e do seu núcleo duro. Tão-pouco preci-
sariam de se preocupar com o armamento. Esse tipo de assunto seria
tratado por Millis Jefferis. E também não precisavam de se preocupar com
o treino propriamente dito, pois este seria conduzido por um instrutor
especializado, que lhes ensinaria as artes da guerrilha armada. A tarefa
dos homens era estar na linha da frente: seriam largados do lado de lá
das linhas inimigas.
Peter Wilkinson ouviu o que Gubbins tinha para lhe dizer, esvaziou
o balão de conhaque e, sem mais delongas, aceitou participar, muito
embora não fosse por ter algum tipo particular de desejo de se tornar
guerrilheiro. «Pareceu-me que qualquer missão que envolvesse almoços
frios empurrados com Chevalier Montrachet e concluídos com morangos
silvestres merecia ser cuidadosamente ponderada.»17
Os outros dois homens também ficaram seduzidos pelo almoço.
Aceitaram ser levados de volta às instalações da Caxton Street para pode-
rem ser apresentados à equipa que paulatinamente estava a ser reunida.
Foi o princípio de uma vida completamente nova, que prometia aven-
tura, camaradagem e perigo. E que ia começar nesse momento.
Joan Bright não se cansava de se espantar com a energia e o entusiasmo
de Colin Gubbins. Era totalmente dedicado ao seu trabalho e frequen-
temente ficava no escritório até muito para lá da meia-noite. Mas, para
ele, o dia de trabalho era apenas um prelúdio que antecedia o período de
longas horas de festejos pela noite fora, pois Gubbins só respeitava ver-
dadeiramente uma única regra: se se trabalhasse no duro, conquistava-se
o direito de se divertir a sério. Nomeou um dos elementos do seu staff,
H.B. Perks Perkins, para tratar do entretenimento pós-horário de expe-
diente. Foi uma missão que Perks levou muito a sério.
Um dos recém-chegados à Caxton Street mostrava-se surpreendido
com a forma como Gubbins «se deixava levar totalmente pelo ambiente
de festa»18. «Grande boémio, grande mulherengo», lembrou um outro19.
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«Divertia-se até altas horas e sem baixar a guarda, consumindo quanti-
dades de álcool impressionantes antes de se ir deitar às três ou quatro da
manhã.»20 Depois, com a cabeça ainda um pouco dorida, ao romper
da aurora, era chegada a hora de voltar para o escritório.
Joan não conseguia deixar de se questionar se a pobre senhora Gubbins
já havia tido oportunidade de ver o marido em ação. Coisa de que duvi-
dava, especialmente depois de ter sido apresentada a uma tímida e intro-
vertida Nonie. «Ela era, acima de tudo, uma dona de casa», escreveu,
acrescentando que a arte de bem saber gerir uma casa «era uma quali-
dade que a senhora Gubbins havia levado ao limite a partir do momento
em que conhecera o marido»21.
As tensões internacionais foram crescendo durante todo o longo verão
de 1939, levando a um frenesi de atividade na Caxton Street. Gubbins fez
duas viagens, precipitadamente tornadas necessárias, a Varsóvia, para
estabelecer contactos com os serviços de informação da Polónia. Havia
fortes receios de que os Polacos viessem a ser o primeiro alvo de Hitler
se e quando a guerra rebentasse.
Enquanto Gubbins estava fora, Joan fez o seu melhor para acolher
com um mínimo de conforto os novos recrutas. Havia algo de vertigi-
noso no facto de estar rodeada por tantos jovens tão bem-parecidos e tão
janotas. «As nossas instalações junto à estação do metro de St. James’s
ficaram atulhadas de homens e de ideias.» Joan ajudou a organizar cur-
sos básicos de guerrilha armada, com palestras informais de Joe Holland
sobre técnicas de guerra subversiva, transmissões de rádio e resistên-
cia local. O espaço dessas palestras ficava no Caxton Hall, um edifício
que não era propriamente alheio à subversão, atendendo ao facto de no
passado ter sido usado pelo movimento sufragista para acolher o seu
Parlamento de Mulheres. Joan tinha boas razões para o escolher como
local para as palestras, dado que estava ciente de que «as constantes idas
e vindas davam boa cobertura aos pequenos e altamente secretos gru-
pos de homens à paisana»22. Manteve os novos recrutas debaixo de olho,
enquanto estes assistiam às aulas, e sentiu-se confiante de que, a seu
tempo, se tornariam uma força dotada de grande eficácia.
Mas tempo era coisa que não tinham. No sábado, 19 de agosto, Gubbins
recebeu notícias alarmantes vindas do Departamento de Guerra. Os Ser-
viços Secretos britânicos tinham ficado a saber que era intenção de Hitler
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invadir a Polónia antes do fim desse mês. Três dias depois, o mundo
inteiro ficou chocado ao saber que Joachim von Ribbentrop e Vyacheslav
Molotov haviam assinado o Pacto de Não Agressão nazi-soviético. O des-
tino da Polónia parecia agora perfeitamente marcado. Tratava-se segura-
mente e apenas de uma questão de tempo até que Hitler enviasse as suas
tropas ordenando-lhes que atravessassem a fronteira.
Gubbins sabia que tinha de agir — e depressa. Precisava de levar
a sua «ala esquerda» até à Polónia, para que ali pudessem ajudar a orga-
nizar a resistência a quaisquer tropas invasoras do exército alemão.
Era também seu desejo reatar os contactos que havia estabelecido com
oficiais veteranos dos Serviços Secretos da Polónia. Era pena que os seus
guerrilheiros novatos tivessem apenas sido sujeitos a um treino rudi-
mentar e não fizessem por isso grande ideia de como era combater numa
guerra clandestina, e muito menos como formar outros em tal género
de guerra. Mas uma outra viagem até à Polónia haveria pelo menos de
lhes dar uma melhor noção da vontade de resistência dos Polacos.
A rapidez era essencial. Gubbins tinha apenas três dias para formar
a sua equipa e seguir com ela para Varsóvia. Era suposto que os homens
viajassem anonimamente e que a deslocação se mantivesse no maior
secretismo. Era imperativo que os Alemães nada ficassem a saber sobre
o que se estava a preparar.
Entre os que haviam sido escolhidos para integrar a missão contava-
-se Peter Wilkinson, que tomou consciência de que os seus dias passados
a beber Chevalier Montrachet gelado tinham certamente chegado ao fim.
Não sabendo ao certo o que levar consigo para a guerra de guerrilha con-
tra os nazis, procurou aconselhamento com o velho sogro, um veterano
da Primeira Guerra Mundial.
O velhote deu-lhe sem demoras conselho. Alicates de corte de arame,
daqueles de levar para a caça, e uma bússola prismática, essas eram
seguramente duas ferramentas fundamentais. Disse a Peter que fosse
aos grandes armazéns do exército e da marinha que ficavam na Victoria
Street e que comprasse os melhores apetrechos que encontrasse. Peter
assim fez, um tudo-nada intrigado sobre de que modo uma bússola pris-
mática poderia ajudá-lo a derrotar os nazis.
O dia da partida chegou depressa. Joan foi a pé até à Victoria Station
para se despedir deles. «Vinte homens vestidos à civil, com passaportes
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que os identificavam como agentes de segurança, caixeiros-viajantes,
artistas, peritos em agricultura.» Sentiu um arrepio de euforia a percor-
rer-lhe a espinha: «Formavam uma célula secreta e letal, ali a viajar infil-
trados num corpo de marinheiros, soldados e pilotos aviadores.»
Porém, no momento em que lhes entregou os passaportes, ficou cho-
cada ao perceber que na Caxon Street se cometera o primeiro erro funda-
mental: «Era claramente um sinal da nossa falta de preparação naquelas
lides o facto de os números dos passaportes novinhos em folha serem con-
secutivos.»23 Era, de certa forma, como se um grupo escolar estivesse
a ir para a frente de batalha. Em época de guerra, um tal deslize podia
custar-lhes a próprias vidas.
Se a missão começara como uma farsa, depressa se transformou numa
comédia. Peter Wilkinson havia sido avisado relativamente à importân-
cia de viajar sem dar nas vistas. Assim, sentiu-se um pouco desapon-
tado quando se encontrou com os seus colegas de guerrilha na Victoria
Station. Longe de parecerem discretos, era como se estivessem a cami-
nho de um baile de máscaras.
O próprio Gubbins ostentava um chapéu de abas reviradas a toda a
volta, verde-vivo, e levava consigo uma mala diplomática; Hugh Curteis
vestia umas calças de xadrez; Boy Lloyd-Jones havia escolhido disfarçar-
-se usando um fato cinzento listado e um chapéu de coco que já tinha
visto melhores dias. Wilkinson olhou para ele de relance e achou que «se
parecia com um banqueiro em fuga»24. Um outro elemento do grupo,
Tommy Davis, havia feito o esforço de aparecer à civil, mas tinha estra-
gado tudo ao ter decidido usar a gravata do Regimento.
Era tarde demais para mudar de roupa: o comboio estava pronto para
partir em direção a Dover. Enquanto se despedia deles, desejando-lhes
boa sorte, olhou por acaso para o céu e reparou que estavam a ser nesse
momento largados os primeiros balões de barragem, «soldados da frente,
silenciosos e brancos, contra os ataques aéreos»25. Subitamente, sentiu-
-se deprimida. Apesar de ter passado os últimos quatro meses a ajudá-los
a prepararem-se para a guerra, apenas nesse momento a realidade surgiu
impiedosa. Os balões de barragem recordavam-lhe os dias aterradores
da sua infância, durante a Primeira Guerra Mundial.
Gubbins e a equipa fizeram um caminho incrivelmente sinuoso
até à Polónia, de forma que não provocassem a suspeição por parte dos
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alemães. Viajaram de comboio até Marselha, de barco até Alexandria e
depois de avião para Varsóvia. Quando finalmente chegaram à Polónia,
já era demasiado tarde. As tropas alemãs haviam atravessado a fronteira
polaca no primeiro dia de setembro e as primeiras bombas caíam já em
grande quantidade nos céus dos subúrbios de Varsóvia.
Gubbins arranjou maneira de retomar contacto com o brilhante
agente do serviço de informações polaco Stanislav Gano, chefe do
Deuxième Bureau* da Polónia. Além disso, conseguiu marcar reuniões
com membros da recém-criada Resistência polaca. «Foram duas sema-
nas tremendas, numa constante corrida, atravessando noites e dias in-
teiros no interior de carros velozes, percorrendo estradas primitivas, pro-
curando perceber o que estava a acontecer e porquê; voltar sem demoras
para enviar telegramas para Londres e, sempre sem perder a velocidade,
seguir para outro lado qualquer onde supostamente havia que fazer.»26
Não havia tempo para a guerra de guerrilha: à medida que os Alemães
avançavam Polónia adentro, Gubbins tomava consciência da impossibili-
dade de prosseguirem. Deu ordens à equipa para que se separasse e para
que cada um saísse do país por qualquer meio que conseguisse. O pró-
prio Gubbins não perdeu tempo a seguir para sul na companhia de Peter
Wilkinson, que se sentia de certa forma desapontado com a sua primeira
missão de guerrilha. Nem sequer tinha usado o alicate de cortar arame.
Ambos conseguiram chegar sãos e salvos a Bucareste, onde se embria-
garam como se não houvesse amanhã no mal-afamado Colorado Club,
e flirtaram com uma dançarina de bar chamada Mickey Mouse. Wilkinson
reconheceu-a de uma discoteca que havia frequentado em Praga. Quan-
do se apresentou, ela pareceu encantada por voltar a vê-lo e recordou-lhe
a sua interpretação, a altas horas da noite, de I Can’t Give You Anything
But Love, Baby.
Wilkinson e Gubbins acabaram as suas bebidas e cambalearam de-
pois até ao Nippon Club, onde se enfrascaram até cair. Acabaram a noi-
tada na companhia de «duas raparigas muito divertidas e duas garrafas
de espumante» — e tudo isso por menos de uma libra. Aquela era, de
facto, uma curiosa versão da guerra de guerrilha.
* Em francês no original. Designa qualquer departamento de informações secretas do Estado no exterior, evocando a agência militar francesa extinta aquando do Armistício.
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Wilkinson manteve um diário, destinado à sua mãe, que ansiava por
saber se ser um guerrilheiro era tão romântico como parecia. Mas omitiu
a bebida, as mulheres e até os encontros secretos com os funcionários dos
serviços de informações da Polónia. A mãe estava bastante dececionada
e queixou-se de que o seu diário «podia ter sido escrito por um pároco
que estivesse a acompanhar uma festa de solteironas vitorianas»27. Mas
a verdade era diferente. Gubbins e Wilkinson haviam usado bem a sua
viagem para estabelecer ligações vitais com os Serviços Secretos polacos.
Gubbins regressou a Londres em outubro para descobrir que entre-
tanto lhe tinham arranjado uma nova alcunha. Toda a gente no gabinete
o tratava agora por Gubbski, por conta das novas amizades que criara.
Joan questionou-o sobre a sua excursão à Polónia — não apenas a que
realizara mais recentemente, como também as duas outras viagens que ali
fizera anteriormente —, mas Gubbins resistiu a facultar-lhe detalhes.
Na ausência de notícias confirmadas, os boatos começaram a cir-
cular pelo escritório. Havia relatos sobre umas supostas conversações
secretas que Gubbins teria promovido entre agentes polacos e britânicos;
outros asseveravam que tinha havido uma reunião clandestina na flo-
resta de Pyry; e o mais bizarro de todos os boatos revelava que um cava-
lheiro inglês visivelmente disfarçado (e que dava pelo nome de Professor
Sandwich) tinha conseguido formar uma equipa de criptoanalistas britâ-
nicos e polacos.
Joan nunca conseguiria perceber a verdadeira natureza do trabalho
que Gubbins levara a cabo na Polónia; era só mais um mistério, num
escritório cuja raison d’être era o subterfúgio e o engano. Porém, outros
havia que, embora também sem conseguir escavar mais fundo, começa-
ram a suspeitar que o estranho Professor Sandwich — facilitador de tudo
e mais alguma coisa — era, afinal, Gubbins sob disfarce.
Há poucas certezas sobre as três viagens que Gubbins fez à Polónia,
e os dossiês do Professor Sandwich — a existirem — permanecem até
hoje fechados a sete chaves. Mas há uma coisa que não levanta dúvidas: o
muito espalhado boato relativo à reunião na floresta de Pyry confirmou-
-se. O encontro teve efetivamente lugar e acabou com um agente britâ-
nico chamado Wilfred Biffy Dunderdale a receber um volumoso saco de
viagem, de couro. Tinha instruções para o entregar em Londres com a
maior das urgências.
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Quando Biffy espreitou para dentro da mala, descobriu que continha
uma máquina de aspeto estranho feita a partir de rotores, rodas dentadas
e um teclado iluminado. Parecendo um estranho tipo de máquina de
escrever futurista, parecia ser de tal forma valiosa que o próprio chefe
do MI6, Stewart Menzies, apareceu pessoalmente na Victoria Station
para a receber.
Menzies tinha estado a preparar-se para ir a um jantar formal quando
lhe anunciaram a chegada iminente da máquina. Não será, pois, de es-
pantar que a sua chegada ao átrio principal da estação, impecavelmente
trajado «com a roseta da Legião de Honra na lapela»28, tenha causado
alguma agitação.
Tratou-se de uma receção exuberantemente apropriada para uma
encomenda que era considerada de inestimável valia para o esforço de
guerra dos Ingleses. Pois a máquina — surripiada aos nazis e transferida
para a Grã-Bretanha com a ajuda dos contactos polacos de Gubbins —
tinha o nome de Enigma.
O seu destino era Bletchley Park.
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