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Astréia Soares Para sueco ver: uma reflexão sobre a cooperação sueca em Moçambique (1975 a 2004) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) Rio de Janeiro, junho de 2006

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Astréia Soares

Para sueco ver: uma reflexão sobre a cooperação sueca em

Moçambique (1975 a 2004)

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS)

Rio de Janeiro, junho de 2006

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Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS)

Para sueco ver: uma reflexão sobre a cooperação sueca em

Moçambique (1975 a 2004)

Astréia Soares

Programa de Pós-graduação em Antropologia e Sociologia

Nível do trabalho: doutorado

Área: Sociologia

Orientador: Professor Doutor Peter H. Fry

Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do título de doutor em Ciências Humanas (Sociologia)

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS)

Rio de Janeiro, junho de 2006

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Soares, Astréia

Para sueco ver: uma reflexão sobre a cooperação sueca em Moçambique (1975 a 2004) / Astréia Soares. – 2006.

240 f., enc. : il. ; 30 cm.

Orientador : Prof. Dr. Peter H. Fry

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais.

Bibliografia: f. 233-240.

1. Relações internacionais 2. Desenvolvimento 3. Suécia – Moçambique I. Título

CDU: 327 (485/679)

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Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia

Tese intitulada Para sueco ver: uma reflexão sobre a cooperação sueca em Moçambique (1975 a 2004), de autoria de Astréia Soares, e apresentada à banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

Prof. Dr. Peter H. Fry – IFCS/UFRJ (Orientador)

Prof. Dr. Carlos Aurélio Pimenta de Faria – PUC - Minas

Profa. Glaucia Villas Bôas – IFCS/UFRJ

Profa. Dra. Ivonne Maggie – IFCS/UFRJ

Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz – UNICAMP

Profa. Dra. Elsje Maria Lagrou

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Rio de Janeiro, junho de 2006

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Para Lars Hallén

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AGRADECIMENTOS

Durante o período do doutorado mereci diferentes tipos de ajuda que quero agradecer. Ao

Peter Fry, pela orientação, por ter sido sempre muito compreensivo e principalmente por

ter atraído minha atenção para o caso da cooperação sueca com o Moçambique. À Capes

pela bolsa de estudos concedida e pela atenção durante minha estadia no exterior.

Aos amigos do doutorado, Alexandre, Beth, Cristina, Eliane Tânia, Márcia, Nilton e

Ricardo pela cumplicidade e pelos divertidos encontros da Rua da Carioca. Também a

Wilca, que se juntou a nós com muita paciência.

Aos professores Pierre Sanchis e Maria Regina Lima, que me incentivaram a trabalhar

com o tema da cooperação internacional e me ofereceram uma interlocução privilegiada

quando precisei.

Agradeço a diretoria da FCH/ Fumec pela licença concedida. Aos colegas da Copinc por

todo tipo de ajuda e por “tomarem conta” do programa de pesquisa na minha ausência.

José Newton (também por preciosas indicações bibliográficas), Marcelo, Marcelino,

Márcio, Múcio, Osvaldo, Renatinha, Rosana e Rúbia.

Fiz muitas solicitações a todos da família. Vali-me da biblioteca da Alice, que discutiu

muitas idéias comigo e, junto com a Beatriz, me hospedou gentilmente no Rio de Janeiro.

Daniel e Malu, Leonardo e Fabiana, Graziela, Gabriela e Rubão, pelas consultorias em

suas áreas. Ao Bruno e Lucas agradeço a tolerância com as minhas seguidas ausências.

Ao Édesio, pela cumplicidade em toda parte do mundo.

Agradeço também ao Ulf Hannerz que na condição de chefe do Departamento de

Antropologia Social da Universidade de Estocolmo aceitou me receber como estudante

visitante. À Gudrun Dahl que se dispôs a me orientar durante o trabalho de campo na

Suécia e aos colegas do doutorado que me receberam com muita gentileza e

compartilharam seu espaço comigo. Na Suécia, contei com a atenção especial do Örjan,

da Nane e da Titti.

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As dificuldades de um trabalho de campo em um país estrangeiro foram grandemente

minimizadas pela ajuda que recebi da Thaïs e da família Borges-Högström. Amanda,

Marcel, Mattias, Tchalinha e Zlatan me acolheram de tal forma que se tornaram amigos

muito queridos. Agradeço também as orientações, indicações e leituras prévias da Thaïs

e do Hans Abrahamssom, com suas sugestões valiosas.

Aos informantes pela disposição em me receberem com minhas perguntas e por me

mostrarem a habilidade sueca para cooperar.

Ao Lars, por ter me apresentado a Suécia e pela conversa de longos anos entre norte e

sul. Algumas vezes pensei que as minhas condições para atender a um programa de

doutorado eram irreais. Nestes casos, contei com a ajuda incondicional de Paulo Newton,

a quem agradeço.

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RESUMO

A cooperação para o desenvolvimento tornou-se um tema muito relevante nas relações

internacionais contemporâneas e vem passando por redefinições desde o fim da Guerra

Fria. A tese discute o envolvimento da Suécia em cooperação internacional, estudando o

caso das suas relações bilaterais com Moçambique, pergunta pelo sentido e o

entendimento que os diferentes atores envolvidos nela têm de suas ações e busca

compreender a que tipos de motivações elas correspondem. Estudar esta relação

possibilitou conhecer com maior clareza as adaptações que marcam o campo da ajuda

externa e as transformações no conceito de desenvolvimento que orientam as políticas

das instituições internacionais, assim como descrever as cosmologias em torno das quais

vem se organizando o “jogo” da cooperação para o desenvolvimento, o sentido que é

dado para sua continuidade e como ela se retransmite e se reproduz de uma época para

outra.

Palavras-chave : Suécia, Moçambique, cooperação internacional, desenvolvimento

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ABSTRACT

Development cooperation programs have become a quite relevant theme in the realm of

contemporary international affairs and have undergone significant modification in their

conceptual definition since the end of the Cold War. This thesis aims to discuss the

Swedish involvement in international cooperation efforts, more specifically the bilateral

relations established with Mozambique. It attempts to identify the sense and understanding

the various participants have of the actions included in cooperation initiatives, as well as to

comprehend the underlying purposes they serve. Studying the above mentioned

relationship has allowed for keen insight into the adaptations introduced to external aid

programs and the changes made to the concept of development used to guide policy

makers in international institutions. This analysis has also been useful to describe the

arena in which the game of cooperation for development has been played, the meaning

given to its continuity and how it is retransmitted and reproduced along time.

Keywords : Sweden, Mozambique, international cooperation, development.

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LISTA DE ILUSTRAÇÔES

Figura 1 – Peça de teatro – Karlstad, 1995................................................................. 28

Figura 2– Noite de Valborg – Estocolmo..................................................................... 44

Figura 3- Midsommar – Estocolmo, 2004................................................................... 44

Figura 4- São Jorge – Gamla, Estocolmo................................................................... 48

Figura 5- Coleta no centro de Estocolmo, 2004.......................................................... 112

Figura 6- Produtos a venda – GAS............................................................................. 112

Figura 7- Casa da Solidariedade- Estocolmo, 2004.................................................... 112

Figura 8- Ilustração curso Sida I................................................................................. 118

Figura 9- Ilustração curso Sida II................................................................................ 118

Figura 10- Mapa de Moçambique............................................................................... 145

LISTA DE TABELAS

1- TABELA 1............................................................................................................... 126

2 - TABELA 2.............................................................................................................. 149

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 11

1 – POR QUE OS SUECOS FALARIAM DE SI MESMOS ........................................ 25

Uma opinião de fora................................................................................................... 25

Olhos azuis................................................................................................................. 31

Não se barganha com as crenças.............................................................................. 36

Debate moral e diálogo público.................................................................................. 43

Habilidade para cooperar........................................................................................... 52

2 – NEUTRALIDADE ATIVA ...................................................................................... 59

3 – COOPERAÇÃO INTERNACIONAL SUECA ........................................................ 75

Idéias em transição..................................................................................................... 77

Sida, a nave mãe…..................................................................................................... 91

Parcerias com a Sida.................................................................................................. 109

Vanguarda e controversa............................................................................................ 119

4 – DE UM HEMISFÉRIO A OUTRO.......................................................................... 125

Moçambique para sueco ver....................................................................................... 134

5 – COOPERAÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDO .................................................... 151

Velhos Combatentes e Novos Técnicos Estrangeiros................................................ 154

Combate contra a ordem colonial............................................................................... 157

A vida em Moçambique............................................................................................... 174

Nova ordem, novos atores; os Técnicos Estrangeiros................................................ 182

Desafinados................................................................................................................ 192

O Moçambique que os cooperantes descrevem......................................................... 195

Trocas simbólicas, potlatch e relações internacionais................................................ 211

CONCLUSÃO. ............................................................................................................ 223

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 233

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INTRODUÇÃO

Os povos, as classes, as famílias, os indivíduos poderão enriquecer-se, mas só serão felizes quando souberem sentar-se como cavaleiros

em torno da riqueza comum. (M. Mauss)

Estocolmo é uma cidade muito alegre no verão, as pessoas se juntam nas ruas, praças e

parques, acumulando horas de atividades ao ar livre, como se se preparassem para os

inevitáveis dias de inverno. É um movimento bonito de olhar. Numa tarde de domingo, ouço

com surpresa sons semelhantes aos de uma batucada, um pouco mal-ensaiada. Apressei o

passo para ver o que era, imaginando ser algum dos inúmeros eventos culturais que tomam

conta da cidade neste período. Não era. Era um movimento político, uma passeata de

apoio ao povo venezuelano, que votava naquele dia o referendo que decidiu pela

permanência do presidente Hugo Chávez no poder1.

A passeata reuniu um pouco mais de uma centena de participantes. Havia pessoas de

todas as idades, algumas com traços tipicamente suecos e outras não, carrinhos de bebê,

ciclistas, mochileiros, bandeiras de diferentes causas, a inevitável foto de Che Guevara,

sons de megafone e as palavras de ordem ditas em sueco: “Solidariedade internacional”,

“Solidariedade para a Venezuela”, “Destruir os Estados Unidos”, “Destruir o imperialismo” e

“União da classe trabalhadora”. A seguir, em espanhol, repete-se o nosso conhecido refrão

das lutas latino-americanas: “el pueblo unido jamás será vencido”. Um jovem sueco se

destaca entre os demais, caminha um pouco ao lado do grupo e comanda as palavras de

ordem. Ele é pequeno, magro e tem cabelos loiros muito longos. Tudo nele lembra um

1 O referendo foi realizado em 15 de agosto de 2004 e Hugo Chávez recebeu a seu favor 57,84% dos votos. Chávez parece incomodar o governo americano, que, em protesto contra seu governo, retirou da Venezuela um embaixador e demorou um dia para reconhecer sua vitória no referendo.

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jovem dos anos 70 do século XX, mas não é. É um militante sueco do século XXI, pela

solidariedade internacional.

Fiz um pequeno registro da passeata, numa dessas máquinas para amadores, e mostrei

depois para uma das minhas informantes, que, antes de viver por alguns anos em

Moçambique, tinha participado na Suécia dos diversos movimentos de solidariedade, desde

a segunda metade dos anos 70 do século passado. Ela se ajeita na cadeira e sorri

largamente, os olhos muito vivos: Mas eles gritam as mesmas coisas que nós! O

comentário pode ter uma conotação negativa, pode ser uma constatação de que o mundo

em que vivemos continua abrigando injustiça e desigualdade. Mas o que ela quis dizer, com

um indisfarçável ar de satisfação, foi que “a luta continua”.

Mesmo que os indicadores de desenvolvimento e de qualidade de vida no mundo sejam

sempre muito desanimadores, sobretudo quando se trata do continente africano, há um

conjunto de idéias e um certo número de sujeitos em circulação no cenário mundial que, se

não compartilham da mesma “fé” no desenvolvimento que empolgou as Nações Unidas e

demais instituições internacionais no final dos anos 60 do século passado, reivindicam uma

chance para um novo modelo que se desenha a partir do fim da Guerra Fria.

Podemos dizer que, naquele momento, pelo menos superficialmente, a análise do sentido

da cooperação para o desenvolvimento, em um mundo bipolarizado, não era muito

complicada. A ajuda chegava em nome do capitalismo ou do socialismo. Mas o que dizer

do engajamento da Suécia em cooperação internacional, um pequeno país neutro, social-

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democrata e sem tradição colonialista? Aceitando a tese de Marcel Mauss (1990) de que

nada é dado livremente, isto é, com pureza de motivos, qual teria sido o retorno esperado

pela Suécia por sua ajuda externa?

A questão proposta nos remete à obra fundamental de Marcel Mauss (1997), O ensaio

sobre a dádiva, que traz como epígrafe um antigo poema da mitologia escandinava. A

primeira das estrofes apresentadas por ele (idem, p. 1) diz:

I have never found a man so generous And so liberal in feeding his guests That ‘to receive would not be received’, Nor a man so… [the adjective is missing] Of his goods That to receive in return was disagreeable to Him

Embora Mauss observe ambigüidades na tradução desses versos e limitações

provocadas pela perda de algumas palavras, o tema central parece claro o suficiente para

permitir a conclusão de que “in Scandinavian civilization, and in a good number of others,

exchanges and contracts take place in the form of presents; in theory these are voluntary,

in reality they are given and reciprocated obligatorily”. (Idem, p. 3)

A referência que Mauss faz a Edda – antiga coletânea da poesia mitológica e heróica da

Escandinávia – tem por objetivo introduzir uma tese geral sobre a dádiva que, para ele,

não se aplica unicamente aos povos primitivos, estendendo-se às sociedades

contemporâneas. Um de seus pontos centrais diz que a dádiva que não produz

solidariedade é uma contradição. Ele entende a doação como um fenômeno social “total”,

do qual o potlatch seria o exemplo ideal devido à sua regra principal de que toda dádiva

tem que voltar de alguma forma ao seu doador, dando início a um ciclo de trocas nas

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gerações e entre elas. O retorno, em certos casos, pode ter valor igual ao da dádiva

original e, então, produzirá a estabilidade do sistema. Em outros, pode ter valor superior,

produzindo uma crescente disputa por honra. Para ele, toda a sociedade pode ser

descrita a partir desse sistema.

Além da importante contribuição de Mauss para a compreensão do sentido da ajuda

externa, é relevante observar que alguns estudiosos suecos (ODÈN e OTHMAN, 1989;

SELLSTRÖM, 1999, 2002a e 2002b; WIESLANDER, 1998 e 2001) se dedicaram a explicar

o engajamento de seu país em atividades de cooperação. Através desses estudos – que

também se tornaram uma referência importante para minha tese – pôde-se conhecer não

só os motivos que acreditam terem levado a Suécia a assumir a condição de porta-voz do

Terceiro Mundo, como também compreender como ela vê a si mesma e aos outros países

com os quais se senta em torno da mesa de negociações internacionais.

Passados cerca de 30 anos das lutas anticolonialistas, o mundo testemunhou grandes

transformações que levaram ao que se convencionou chamar de uma “nova ordem

mundial”. Por certo, não podemos dizer que os motivos da cooperação sueca sejam hoje

exatamente os mesmos. No entanto, tal qual afirma Mauss sobre o sistema da dádiva, o

ciclo da doação vem se perpetuando naquela sociedade, entre gerações,

independentemente de ser uma sociedade contemporânea e industrial. Compreender o

sentido que é atribuído ao ciclo das doações é compreender a sociedade. Mas a dádiva,

também no mundo contemporâneo, não envolve somente as instituições, como o governo,

a igreja ou as organizações não governamentais. Envolve igualmente as pessoas, e

concordo com Mauss que é delas, de suas motivações particulares e do sentido subjetivo

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que atribuem às suas ações no jogo da cooperação que este sistema tira sua energia e

vitalidade.

Conduzi minha pesquisa, portanto, para a compreensão de como os chamados

cooperantes2 suecos interpretam sua participação em programas de cooperação para o

desenvolvimento. Eles foram considerados aqui informantes privilegiados, uma vez que

minha suposição é a de que não basta compreender as macroestruturas políticas e

econômicas e conhecer as razões com que os Estados oficialmente explicam a ajuda

externa. A produção de sentido dessas relações depende significativamente da ação

subjetiva desses sujeitos.

Para isto, analisei o caso da cooperação sueca com Moçambique, não com o objetivo de

fazer um balanço ou uma avaliação de seus resultados, mas sim procurando compreender

o sentido desta relação para as organizações suecas e seus agentes e as estratégias de

sua adaptação frente a significativas transformações mundiais que lhe servem de fundo.

Este pareceu-me um caso exemplar, não só devido à recorrência com a qual a Suécia é

apontada como “modelo” de doador, e Moçambique, como um tipo ideal de receptor (um

show case, no jargão desse campo), mas também pela natureza da relação entre os dois

países. As maiores doações para Moçambique foram feitas, por muitos anos, pela Suécia,

e têm cabido a Moçambique as maiores cotas dos recursos suecos para a ajuda externa.

2 No Brasil, não há um termo específico para nos referirmos aos diferentes tipos de profissionais que trabalham em atividades de cooperação para o desenvolvimento. Em inglês, são normalmente chamados de practitioners, ou, algumas vezes, de experts em algum campo específico. A denominação de cooperante, assim mesmo, em português, foi dada aos suecos que foram para as ex-colônias portuguesas, e foi como se apresentaram a mim nas nossas conversas. Será, portanto, como irei me referir a eles.

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Os estudos sobre desenvolvimento deixam perceber uma dada trajetória histórica da

concepção desse conceito, que perpassa o cenário internacional desde o fim da segunda

Guerra Mundial; e acredito que as políticas de cooperação, mesmo as de um país

autoproclamado neutro, como a Suécia, não estão desvinculadas de um determinado

quadro teórico, nem das tendências políticas e ideológicas compartilhadas

internacionalmente. Entender as mudanças no âmbito internacional é, portanto,

imprescindível para a análise dessa relação entre Suécia e Moçambique.

A relação de cooperação entre os dois países se formaliza já em 1975, em plena Guerra

Fria, durante as lutas de libertação e, a seguir, com o regime socialista da Frelimo – Frente

Libertadora do Moçambique –, e não foi interrompida nem mesmo durante os anos mais

duros da Guerra Civil Moçambicana, período em que teria sido uma covardia deixar aquele

povo sozinho com problemas tão graves, conforme ouvi de uma informante. A Suécia

demonstrou uma postura antiimperialista, com seu apoio ao governo deliberadamente

marxista-leninista. Contudo, estende sua cooperação até os dias atuais, reestruturando-a

após a abertura democrática e a adoção de uma economia de mercado, quando mal se

podem distinguir os discursos social-democrata e neoliberal sobre desenvolvimento.

O período enfocado pela tese, portanto, testemunhou, no âmbito global, o fim da Guerra

Fria e a queda das grandes potências mundiais e do Muro de Berlim, com seus impactos na

nova ordem mundial, o que trouxe novas discussões sobre a noção de desenvolvimento e

de suas políticas.

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No mesmo período, a Suécia, que viveu uma longa estabilidade política, entre 1991 e 1994,

é conduzida pelo primeiro governo “não socialista” em muitos anos, que promete uma

revolução da “livre escolha” e da “flexibilização do Welfare State” (FARIA, 1996). Em 1995,

novamente conduzido pelos social-democratas, o país passa a integrar a UE – União

Européia –, e o debate público no período que antecedeu o plebiscito, vencido por uma

pequena maioria, questionava se as recomendações das organizações internacionais

ajudariam a quebrar a ética e a solidariedade internas, consideradas por eles os pontos

centrais do Welfare State, um sistema que implica que os mais afortunados na sociedade

apreciem a justiça e a redistribuição igualitária dos recursos. A Sida – Agência Sueca de

Cooperação Internacional para o Desenvolvimento – foi também remodelada em 1995, com

a justificativa de fazer frente às grandes mudanças mundiais.

Os moçambicanos, por seu turno, enfrentaram 16 longos anos de guerra civil, desde 1976

até o acordo de paz entre a Frelimo e a Renamo – Resistência Nacional Moçambicana3 –,

assinado em 1992. Em Moçambique, durante a década de 70 do século passado até o

começo dos anos 80, a política externa esteve condicionada por lutas contra a Rodésia e a

África do Sul e pela briga entre as superpotências, que marcou a Guerra Fria. Tanto a

Suécia quanto Moçambique perdem suas principais lideranças políticas em 1986, quando

morrem Samora Machel e Olof Palme, o primeiro em um acidente aéreo e o segundo em

um assassinato que nunca foi devidamente esclarecido. Em 1987, o país que conheceu um

significativo crescimento econômico precisa recorrer ao FMI e ao Banco Mundial4. Em

3 A Renamo – Resistência Nacional Moçambicana – surgiu como uma reação ao governo pós-colonial da Frelimo, como um grupo de resistência armada acusado de ser organizado e financiado pela África do Sul e outros apoiadores do regime do apartheid. Atualmente, a Renamo é o segundo maior partido político de Moçambique. 4 A economia moçambicana e sua relação com o FMI e o Banco Mundial foram amplamente estudadas pelos Suecos Hans Abrahamssom e Anders Nilsson (1994;1995a;1995b;1995c; 2001), que deram especial destaque à transição do Moçambique de economia planificada para economia de mercado, bem como ao impacto de uma nova ordem mundial no país.

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1990, adota uma nova constituição, e a primeira eleição pluripartidária acontece em 1994.

Apesar do forte impacto das enchentes de março de 2000, que destruíram o pouco da

infraestrutura recuperada após o conflito armado, esta década tem sido de grande

vitalidade econômica para Moçambique, o que contribuiu fortemente para que o país

passasse a ser visto como um show case de desenvolvimento na África, pela ótica das

agências internacionais.

A tese percorre, portanto, um período de mudanças, permanências e adaptações que

permeiam a reflexão proposta aqui, sobre a cooperação sueca em Moçambique, entre 1975

e 2004.

Sobre a Pesquisa

O trabalho de campo foi realizado entre os meses de março e setembro de 2004. Nesse

período, morei em Estocolmo e fui recebida como estudante visitante pelo Departamento de

Antropologia Social da Universidade de Estocolmo.

Durante o trabalho de campo, entrevistei 52 pessoas (23 mulheres e 29 homens) que estão

ou estiveram em Moçambique na condição de cooperante e/ou de representante das

instituições suecas que têm projetos de desenvolvimento naquele país.

Poucos cientistas sociais se interessam por estudar as elites. Minhas referências

metodológicas com relação a este grupo social (HERTZ e IMBER, 1995; MOYSER;

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WAGSTAFFE,1987) enfatizavam a grande dificuldade de chegar até eles, um grupo a quem

não temos como oferecer uma voz, através de nossas pesquisas, porque eles são “os

donos da voz”. Perguntei-me algumas vezes se conseguiria chegar, por exemplo, a

funcionários seniors de importantes instituições governamentais do primeiro mundo. Mas ter

acesso aos meus informantes não foi problema, com raras exceções. Independente de

quão importantes fossem, a disposição de encontrar um espaço na agenda para a

entrevista foi quase sempre a mesma. Fui beneficiada pelo orgulho sueco de não ter uma

sociedade hierarquizada, onde todos se tratam por você. Em princípio, ninguém é bom

demais para se fazer inacessível.

Sempre havia uma negociação preliminar com relação ao tempo que eu teria para a

entrevista. Cumprir rigorosamente a agenda do dia é uma meta muito importante para os

suecos, quase uma instituição nacional. Da minha parte, esperavam o famoso atraso

brasileiro, mas consegui quase sempre desapontá-los, chegando aos encontros

pontualmente. Da parte deles, não raro, estiveram tão envolvidos com as suas memórias de

Moçambique que passaram muito do tempo planejado, o que, em geral, é uma satisfação

para qualquer pesquisador que busca dados qualitativos.

Logo descobri que havia uma rede de comunicação entre o grupo dos que foram a

Moçambique. Algumas vezes, quando entrava em contato com algum deles para solicitar

um encontro, ouvia: Ah, sim, já soube que você anda por aqui. Aproveitei-me dessa rede de

cooperantes para conseguir contatos, e-mails, números de telefones, mas também para

verificar informações.

As entrevistas foram conduzidas sempre em caráter privado, de forma a evitar que os

informantes tivessem qualquer tipo de constrangimento que os levasse a optar por apenas

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reproduzir o discurso oficial. Quase sempre fui aos seus locais de trabalho, mas também

me vali muito do espaço do Zenit Café, conhecido entre os cooperantes por ficar ao lado do

prédio da Sida, na região central de Estocolmo. Alguns informantes preferiram ir até a

minha casa, quando lhes ofereci café brasileiro, e tivemos tempo para que os depoimentos

transcorressem também na direção de temas muito pessoais.

Além disso, visitei as instituições suecas que têm projetos de cooperação com

Moçambique, algumas delas mais de uma vez. Essas visitas me permitiram entender a

dinâmica dos processos de cooperação implementados por elas e me rendeu uma ampla

relação de possíveis informantes. Além do Ministério de Assuntos Estrangeiros e da Sida,

que são órgãos governamentais, fui recebida nas seguintes organizações não

governamentais e religiosas: Grupo de África na Suécia, Ajuda da Igreja Sueca, Conselho

Missionário Sueco, Cooperação sem Fronteiras, Cruz Vermelha, Diakonia, Forum Syd e

PMU Interlife. Conversei também com pessoas ligadas a instituições de pesquisa, como o

Instituto Africano Nórdico, Instituto Karolinska, Universidades de Estocolmo, Göteborg e

Växjö.

A maioria dos meus informantes estava em Estocolmo. Fui encontrar outros nas cidades de

Göteborg, Väjxö, Uppsala, Örebro, Sundsvall, Härnösand e Oskarshamm. Por duas vezes,

me hospedei em suas casas, o que me deu a oportunidade de ler melhor as marcas da vida

em Moçambique, registradas nos livros, objetos e fotografias que compõem o espaço em

que vivem na Suécia, e também de ter uma dimensão maior do que significa para eles ser

um cooperante, devido à importância que acredito terem dado ao nosso encontro. Pareceu-

me que ali, falando comigo, davam continuidade ao compromisso que, num determinado

momento de suas vidas, estabeleceram com Moçambique. Fui testemunha de emocionadas

expressões de apreço ao povo moçambicano e à sua causa.

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Durante minha estadia na Suécia, aceitei todos os convites que me aproximassem do estilo

de vida sueco. Participei de festas tradicionais, como a noite de Valborg e o Midsommar, fui

a diferentes tipos de feiras, jantares, piqueniques, fiz passeios pelas florestas, assisti a um

considerável número de DVD’s comerciais suecos, sempre perguntando pelos mais

populares na locadora do meu bairro (nada de Bergman, portanto). Cuidei para que o maior

número de pessoas possível soubesse dos meus propósitos na Suécia. Falei dos meus

objetivos de pesquisa não só para os professores, doutorandos e funcionários da

universidade, mas também para pessoas fora do meio acadêmico, como os vizinhos,

vendedores, atendentes de banco, passageiros de ônibus ou de metrô e novos amigos.

Este procedimento ocasionou boas perguntas sobre meu trabalho, que me ajudaram a

refletir sobre os objetivos com a pesquisa. Ouvi diferentes opiniões sobre a cooperação

sueca, colocadas livremente durante as conversas, assim como uma série de informações

e sugestões de leituras e contatos. Devo lembrar que era quase sempre eu quem iniciava

essas conversas, já contando com a notável timidez que os suecos reivindicam como uma

característica compartilhada.

O trabalho de campo consistiu, portanto, de um amplo levantamento bibliográfico nas

bibliotecas locais e nos acervos virtuais e de entrevistas semi-estruturadas com

cooperantes e funcionários de órgãos governamentais e não governamentais, inclusive os

de caráter religioso. Não posso dizer que adotei também a técnica de observação

participante, no sentido estrito do termo, mas estive lá todo o tempo como observadora

atenta, ciente de que todos os sinais poderiam ser, a princípio, um fio que me conduzisse à

compreensão dos motivos que levaram e levam duas gerações de suecos a Moçambique.

Como é usual neste tipo de pesquisa, os nomes dos informantes foram omitidos, uma vez

que as narrativas não são públicas, são memórias e reflexões de bastidores. São não

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autorais, por definição. Pelo mesmo motivo, adotei uma forma imprecisa ao falar de projetos

e organizações aos quais meus informantes estiveram ligados, sempre que julguei que as

referências mais concretas pudessem revelar suas identidades.

Uma vez que existem diferentes denominações para os países que fazem e para os que

recebem as doações e que cada uma delas corresponde a uma determinada expressão da

ideologia colonialista (países do Norte e do Sul, de centro e da periferia, desenvolvidos e

subdesenvolvidos, de primeiro e de terceiro mundo etc.), optei por me referir a eles como

países ricos e países pobres, adotando um recorte exclusivamente econômico, ciente,

contudo, de que também esta denominação não é livre de conotação ideológica. Quando

uso outras terminologias, estou reproduzindo uma idéia em pauta naquele momento.

Seqüência de Capítulos

No primeiro capítulo, registrei minhas observações sobre a sociedade sueca, as quais

elaborei principalmente durante o trabalho de campo, mas, também, de maneira menos

sistemática, durante outros dois períodos que passei na Suécia (1995 e 1996) como

participante de programas de treinamento patrocinados pela Sida. Recorri igualmente a

textos de autores que tratam da chamada “mentalidade sueca” para relatar como as idéias

de honestidade, solidariedade e valores morais aparecem na formação da identidade

coletiva daquele povo e na concepção de um “modelo sueco de cooperação”.

No capítulo 2, apresento uma síntese dos acontecimentos históricos, políticos e culturais

que levaram o governo e a sociedade sueca a participar das relações internacionais como

doadores, de um modo geral, e da luta contra o colonialismo, em particular.

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A partir da análise dos documentos da Sida, suas publicações, manuais e dados

disponíveis na sua home page, discuto, no capítulo 3, a política sueca de cooperação e

suas adaptações às transformações na idéia de desenvolvimento que prevaleceram no

cenário internacional durante e depois da Guerra Fria.

Depois dessa descrição, no capítulo 4, apresento a política sueca para o desenvolvimento

de Moçambique e as estratégias que o governo sueco e seus experts julgam serem as

adequadas para a promoção de seu desenvolvimento. Esta discussão é antecedida por

uma breve análise das imagens sobre o continente africano, que podemos apreender por

meio dos documentos da Sida.

No capítulo 5, exploro a narrativa dos meus informantes sobre a trajetória e os motivos que

os levaram ao campo da cooperação internacional e a Moçambique, em especial.

Reproduzo, a partir de seus relatos, a visão que têm da Suécia, de Moçambique e da

relação entre esses dois países. Para orientar minha análise, organizo meus informantes

em dois tipos ideais, de acordo, basicamente, com o sentido que atribuíram ao seu

envolvimento com as relações internacionais de cooperação: os Velhos Combatentes, para

os quais o envolvimento em cooperação significa, antes de tudo, a expressão de uma

ideologia, e os Novos Técnicos Estrangeiros, para os quais o desenvolvimento é,

principalmente, uma questão de knowledge e de aplicação correta de tecnologias.

Na conclusão, defendo que esses componentes ideológicos pouco motivam novos

cooperantes a se engajar em projetos de ajuda externa. Provavelmente, cederam lugar ao

primado da técnica, quando o tema é desenvolvimento. Procuro ainda demonstrar que

esta nova modelagem despolitiza a agenda internacional contra a desigualdade. Essa

transição que se anuncia produz a convivência, sem culpa, na Suécia contemporânea,

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entre adeptos de um modelo técnico de cooperação e uma militância jovem que, como

disse minha informante, já mencionada, gritam as mesmas coisas que nós.

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POR QUE OS SUECOS FALARIAM DE SI MESMOS?

Uma opinião de fora

Nas primeiras semanas que passei na Suécia para o trabalho de campo, respondi por

diversas vezes a mesma pergunta: Mas por que a Suécia? Da forma como ela me era

endereçada, quase sempre, não parecia apenas delicadeza ou mera curiosidade.

A princípio, sem perceber até onde esta pergunta me levaria, ensaiei uma resposta

padrão, em que expunha meu interesse, que teve origem em contatos anteriores, quando,

por duas vezes, estive na Suécia para cursos desenvolvidos dentro das políticas de

cooperação da Sida. Mais tarde, respondi isto sistematicamente a todos os meus

entrevistados, mas, primeiramente, estranhei a recorrência desse interesse entre os

professores e estudantes do Departamento de Antropologia da Universidade de

Estocolmo, onde estava sendo recebida como visitante. Todos esses antropólogos, como

é natural, ou têm alguma experiência de campo em países da Ásia, África, América Latina

e Europa do Leste, por exemplo, ou estão se preparando para viajar em breve a campo,

pela primeira vez.

A tradição sueca de fazer antropologia implica quase sempre viajar a outros lugares.

Muitas vezes, perguntei a antropólogos onde fizeram antropologia, querendo saber em

que universidade estudaram, e obtive como resposta o lugar onde fizeram a pesquisa de

campo, ou seja, pelo menos como resposta a uma pergunta informal, fazer antropologia

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não é compreendido como estudar antropologia, mas como fazer etnografia. No período

em que estive por lá, soube de poucas pessoas que se doutoraram nos últimos anos

fazendo pesquisa sobre a Suécia. Quando muito, pesquisavam grupos estrangeiros na

Suécia.

No Departamento de Antropologia, as paredes do corredor são cobertas por fotos de

lugares e povos distantes, tiradas pelos pesquisadores, em suas viagens de campo. Há,

inclusive, entre os doutorandos e seus orientadores, o costume de trazer das viagens um

doce típico do lugar. Um pacote de balas deixado na mesa do café significa que alguém

voltou do campo. Basta verificar de onde são as balas para saber quem chegou.

Ainda assim, para essas pessoas que encontram nos “outros” o seu objeto de estudo, a

Suécia ser tema de pesquisa de uma brasileira pareceu algo que necessitasse de

explicação, como se fosse um trabalho muito distinto das pesquisas em curso no

Departamento, cujos temas vão desde a identidade racial na Bahia ao jornalismo na Índia

e Romênia, por exemplo.

Muito educadamente, seguiam-se alguns comentários, feitos com simpatia e dúvida,

sobre o que alguém poderia pesquisar ali. O que de relevante poderia resultar da

investigação de um objeto tão comum como a Suécia e os suecos? Entre os acadêmicos,

esta conversa finalmente terminava com um comentário que interpretei como de boas-

vindas: É sempre bom ouvir uma opinião de fora.

Já entre as pessoas que não estão ligadas à universidade, como as vizinhas que eu

encontrava na lavanderia coletiva do prédio, atendentes do banco ou da companhia

telefônica, que se interessaram pelos motivos da minha estadia lá, freqüentemente

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surgiam comentários sobre a origem brasileira da Rainha Silvia. Na imaginação daquelas

pessoas, o principal fato, significativo o suficiente para me levar até a Suécia, seria uma

desejada popularidade da rainha sueca no Brasil.

Contudo, quanto mais contato tinha com as atividades de pesquisa e com os estudos

teóricos, melhor podia perceber o quanto é significativo na cultura sueca identificar o país

como um lugar comum, isolado do resto do mundo não só em termos geográficos, mas

também por um comportamento que nega sistematicamente atitudes voltadas para a

popularidade do país e de sua gente, mesmo daqueles que ocupam papéis que o mundo

moderno ocidental acostumou-se a celebrizar, com a ajuda substancial da mídia, como

políticos e artistas, por exemplo.

Com mais informações sobre os elementos que compõem, segundo o etnólogo Åke Daun

(2002), a “mentalidade sueca” (Svensk mentalitet), pude ouvir com outro tom a pergunta

sobre o que fui fazer ali. Ou seja, de algum modo, queriam saber como fui encontrar meu

objeto de pesquisa numa sociedade que prefere ser reconhecida por seu isolamento e

discrição e por ser formada por um povo que se define como simples e tímido. Será que

haveria falha no projeto de uma identidade coletiva sóbria e discreta?

Pode ser que se expressasse aí um gosto pela tradição de “terra incógnita”, que vem de

conhecimentos imprecisos sobre a Escandinávia pré-histórica e que permanece

desconhecida do resto da Europa quando das missões cristãs, como nos lembra o

historiador Derry (1979, p. 5):

far into the first millennium of Christian era, when events in other parts of Europe had been brought to some extent into focus by the labours of annalists and the first historians, the north remained a terra incognita to whose existence the civilised world was almost indifferent.

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A questão sobre a origem do meu interesse pela Suécia contemporânea e sua política de

ajuda externa me remeteu ao começo da primavera sueca de 1995, quando fui convidada

a assistir uma peça infantil com temática ambientalista, na cidade de Karlstad. O evento

fazia parte da programação de um treinamento para o manejo ambiental, dirigido a

pessoas de países em desenvolvimento, entre as quais eu me incluía. Em deferência aos

visitantes, a peça, que passo a descrever, foi conduzida em swenglish (um pouco de

sueco e um pouco de inglês), um neologismo equivalente ao nosso portunhol (um pouco

de português e um pouco de espanhol).

O palco estava rodeado por crianças de cerca de seis anos de idade. Elas eram brancas

e bem comportadas, sem exceção. No centro do palco havia um globo terrestre feito de

pano, com o desenho do mapa-múndi. Em cada continente havia uma pequena janela de

onde saiam fantoches, representando crianças com características raciais da América

Latina, Ásia, África e Europa. Do continente europeu surgiu um fantoche com

características de uma típica menina sueca, com duas trancinhas loiras e olhos azuis. Os

fantoches que representavam as crianças do mundo em desenvolvimento contavam para

a menina sueca suas vidas, com comentários sobre problemas como o desemprego dos

pais e a existência de trabalho infantil como, por exemplo, colher mandioca, que é depois

carregada em um cesto pesado.

Fig.1: Peça de teatro – Karlstad, 1995

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O momento dramático da peça deu-se quando um grande dragão de pano, o dragão da

poluição, entrou no planeta Terra, vale destacar, por um buraco localizado no Pólo Sul. O

fantoche da menina sueca, então, pede à audiência infantil que diga o que pode ser feito

para salvar a Terra do dragão da poluição. Minha expectativa foi de que as crianças

puxassem o dragão pelo rabo que ficara do lado de fora. Ao contrário, levantaram a mão

direita ordenadamente e, uma por uma, deram sugestões de como não poluir os rios,

reciclar o lixo e usar energia solar, dentre outras.

Os pequenos consultores suecos, sozinhos, ditaram todas as políticas ambientais que as

outras crianças pelo mundo afora precisariam implementar. Uma bela demonstração do

nível da educação ambiental ensinada às crianças nas escolas de Karlstad, mas não era

só isto. A perspectiva etnocêntrica era evidente. Elas, e só elas, conheciam as soluções.

Naquela tarde, a Terra não foi salva pela ação conjunta de meninos e meninas do mundo,

mas pelo conhecimento único das crianças suecas, transmitido ao resto do mundo por

uma delas, do sexo feminino.

Acredito que podemos identificar aí características importantes da sociedade sueca: a

preocupação com a formação de cidadãos bem informados sobre assuntos

internacionais, domínio de conhecimento e de tecnologia ambiental eficaz, vocação

solidária e igualdade de gênero, que leva as mulheres a ocuparem postos de liderança.

Mas também podemos pressupor que os suecos não têm perguntas para o resto do

mundo, e sim respostas – suas respostas são as tecnicamente melhores e são

reaplicáveis em outros lugares, configurando-se em um “modelo”. Esse “modelo” pode

conduzir o resto do mundo ao ponto a que eles chegaram, que seria bom para todos.

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A peça, portanto, provocou reflexões que me levaram a acreditar que a compreensão do

sentido que os suecos atribuem às suas ações e ao seu papel no cenário internacional

pode nos conduzir a um entendimento maior deste cenário, de um modo geral, e, em

particular, de uma complexa rede de significados que estão em pauta, de forma

subjacente, durante o jogo da cooperação.

Sendo assim, a opção por estudar a Suécia partiu do interesse em entender a trama

simbólica que compõe o chamado “modelo sueco”. Em geral, essa expressão se refere ao

que deve ser feito em políticas sociais, na busca de alternativas a uma economia de

mercado desigual. Essas políticas são freqüentemente citadas em estudos ou artigos na

imprensa, quando querem demonstrar um caso empírico de uma sociedade decente e

igualitária, que promove bem-estar em casa e solidariedade para com os demais povos.

A Suécia, mesmo fazendo parte do imaginário internacional como nação distante e

“discreta”, é identificada como um exemplo para as outras seguirem quando o tema é

políticas públicas. Contudo, lembramos que, nesses casos, não importa o quanto isso

possa ter de verdade, ou se internamente a própria sociedade sueca possa estar lidando

com problemas para os quais ela mesma precise encontrar soluções e, por que não,

buscar modelos em outras culturas.

Mas acreditamos que a sociedade sueca também se identifica com este papel de modelo,

tanto nas políticas internas regidas pelo estado de bem-estar social quanto no diálogo

Norte-Sul. O referido modelo, quer seja real ou mitológico, decadente ou atual, assume

significativa importância na formação da Suécia moderna, como se pretende demonstrar

adiante. Percebe-se que sua vertente política, caracterizada principalmente pela

neutralidade que manteve o país afastado das grandes guerras vividas por outros povos

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europeus no século XX e pela social-democracia, merece mais atenção dos suecos que

entrevistei do que as características de “ser sueco”, de sua cultura e, por conseqüência,

de sua identidade coletiva – essas, quase nunca citadas espontaneamente. Todavia,

podemos perceber uma relação complementar entre esses dois universos, ambos

igualmente importantes, se queremos compreender a Suécia pela ótica de seu papel nas

relações internacionais de cooperação.5

Olhos Azuis

Em todas as entrevistas que fiz na Suécia, meus informantes, em um determinado

momento, usavam o termo em inglês naive6 (naiv, em sueco). Foi assim com todos eles e,

depois de certo tempo, eu já conseguia prever quando o adjetivo seria introduzido, e

também identifiquei uma outra expressão usada por eles, com significado semelhante:

Nós, suecos somos muito olhos azuis.

Esta é uma maneira de dizer que os suecos, muitas vezes, não estão atentos para os

aspectos negativos das suas experiências, muito menos para os riscos aos quais eles e

os outros estão sujeitos. Por isso, dizem ter esta tendência de ver o mundo mais azul do

que realmente é, o que pode levá-los a se surpreender quando encontram nas suas

5 Existem dificuldades objetivas para pesquisadores estrangeiros que querem estudar a cultura sueca. Em primeiro lugar, como já mencionado, a Suécia não é, em geral, considerada um objeto atraente, que mereça a dedicação de estudiosos locais. Portanto, não há um grande volume de trabalhos publicados sobre a cultura local. Em segundo lugar, muitos desses trabalhos não foram publicados em outra língua que não o sueco, o que limita o trabalho daqueles que não têm domínio desta língua. Some-se a isto uma certa tendência de organizar publicações que falam sobre a Escandinávia, abordando temas gerais, com pouco destaque às especificidades entre Suécia, Noruega e Dinamarca, como nos tempos em que se deram a conhecer ao mundo como os Vikings. 6 Na definição do dicionário Oxford (p. 821), naive (also naïve): 1 – natural and innocent in speech and behavior; unaffected. 2 (a) – too ready to believe what one is told; credulous […]; (b) – showing lack of experience, wisdom or judgment.

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relações outras orientações que não aquelas baseadas nos valores que compartilham,

ou, ainda, no contrato social que acreditam pautar suas relações sociais.

Podemos ilustrar tal característica com os livros de Henning Mankell7, um autor de

romances policiais bastante conhecido na Suécia. Ele se tornou importante para esta

pesquisa porque vive há mais de 30 anos entre a Suécia e Moçambique, onde cria e

dirige peças de teatro e é uma voz importante na Europa, na defesa dos países africanos.

Em um trecho de A leoa branca – livro em que Mankell narra uma trama complexa,

arquitetada na África do Sul, no começo dos anos 90, para assassinar Nelson Mandela –,

o pretenso assassino é mandado ao sul da Suécia, onde vai receber treinamento de um

atirador russo. Ele tem o seguinte diálogo com seu contratante africano:

- Por que a Suécia? Jan Kleyn tomou um gole de café. - Boa pergunta. E que surge naturalmente [...]. A Suécia é um paiseco neutro e insignificante que sempre se mostrou agressivamente contrário ao nosso sistema social. Jamais passaria pela cabeça de alguém imaginar que o cordeiro está escondido na toca do lobo. Em segundo lugar, nossos amigos em São Petersburgo têm ótimos contatos na Suécia. É muito fácil entrar no país porque os controles nas fronteiras são muito superficiais, isso quando há controle. Muitos de nossos amigos russos já se estabeleceram por lá, com nomes e papéis falsos. (MANKELL, 2002, p. 147)

Talvez seja difícil distinguir o quanto de comportamento crédulo e ingênuo e o quanto de

aposta nas liberdades democráticas, por exemplo, estão representadas neste curto

diálogo. Embora ficcional, ele me parece bastante bom como narrativa verossímil de uma

situação que também se vê no mundo real. O baixo controle nas fronteiras suecas, por

exemplo, pode ser tanto a expressão de um povo naive como de um povo mais tolerante

7 Seus livros já foram publicados em 25 países. No Brasil, a Companhia das Letras publicou Assassinos sem rosto (2001), A leoa branca (2002) e Os cães de Riga (2003).

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à presença de estrangeiros, sejam eles desafortunados em geral ou especificamente

aqueles refugiados de regimes políticos contra os quais são “agressivamente contrários”.

A personagem principal dos livros de Mankell é Kurt Wallander, um inspetor de polícia

caracterizado tanto por sua ingenuidade quanto por uma boa fé orientada por valores

morais bem definidos. Tornou-se popular na Suécia, onde, segundo Mankell (2002), as

pessoas escrevem cartas para ele como se fosse real e pedem a sua ajuda. Wallander é

um homem comum, que leva uma vida sacrificada em função do seu trabalho. Nasceu em

Malmö, no sul do país, e vive em Ystad, pequena cidade da região de Skåne. É um pouco

atrapalhado e inábil com as mulheres, foi deixado pela esposa, às vezes tem sonhos com

uma bela mulher negra. Apaixonou-se por uma letoniana, mas não sabe o que dizer

quando lhe telefona ou tenta escrever para ela. Dorme pouco, come mal, toma muito café

e está acima do peso. É provável que ocasionalmente beba mais do que o que seria

considerado moderado, nos padrões suecos, para o consumo de bebidas alcoólicas, mas

parou de fumar. Sente-se culpado por não dar suficiente atenção ao velho pai e tem

problemas de relacionamento não muito graves com a filha jovem.

Seu gosto musical é bastante refinado, o que não combina muito com a imagem que se

tem, em geral, de um “tira”, a não ser que seja da polícia sueca, um país que tem a

reputação de valorizar a educação e a cultura como um bem geral de todos os seus

cidadãos. Wallander ouve óperas, gosta especialmente de Maria Callas e tem gravações

consagradas de Jussi Björling8, dentre outras de suas preferências musicais.

É um profissional dedicado e reconhecido por seus colegas, o que provavelmente nos

permitiria dizer que ele corresponde ao conceito muito afeito aos suecos de expert.

8 Jussi Björling (1911 – 1960), grande tenor sueco que fez carreira internacional e morreu precocemente, aos 49 anos. Nasceu em Borlänge, na região de Dalarna, e seu verdadeiro nome era Johan Jonatan Björling.

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Sujeito crítico, muitas vezes pondera que a polícia sueca está despreparada para

enfrentar os desafios de uma sociedade com rápidas mudanças. Lida com problemas que

vão da Letônia à África do Sul, como desigualdade social, emigração, refugiados,

racismo, violência e tráfico de drogas.

A popularidade de Wallander talvez possa ser explicada, em parte, por representar um

tipo ideal de conduta com relação a aspectos éticos e morais, que são importantes na

composição de uma imagem que os suecos querem ter de si mesmos. Ele prefere a

sobriedade, sente-se constrangido com exibições de hierarquia numa Riga mergulhada

na herança autoritária soviética, como o uso da continência, os carros oficiais luxuosos ou

a mobília cara na casa de um coronel, que um sueco dificilmente poderia ter. Contudo,

fica à vontade para comer um cozido simples e escasso com uma família pobre, que luta

clandestinamente pela liberdade da Letônia.

Por outro lado, suas dificuldades para lidar com coisas da vida cotidiana, como, por

exemplo, cometer erros estratégicos quando quer se declarar a uma mulher, ou a timidez

que, somada à extrema dedicação ao trabalho, fazem com que quase não tenha vida

social, correspondem a um estereótipo masculino, geralmente veiculado nos comerciais

da televisão sueca: um sujeito que se atrapalha e é condescendente com seus próprios

erros. Isto nos leva a crer que reside aí mais um motivo da sua popularidade na Suécia

contemporânea.

No entanto, a admissão de que a ingenuidade seja um traço da cultura sueca contrasta

com a imagem de Suécia moderna, secular e tecnologicamente avançada e com um alto

índice de informação sobre questões internacionais.

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É necessário destacar aqui que não falo da existência de uma personagem coletiva em

ação, que se pode apontar como sendo concretamente sueca, mas, dentro de uma

perspectiva weberiana (1984, p. 12), faço referência “unicamente ao desenvolvimento de

uma forma determinada de ação social de uns quantos indivíduos, quer seja real ou

construída como possível”.

A particularidade observada, portanto, está na construção de uma personalidade coletiva

sueca que participa do complexo jogo das relações internacionais sendo ao mesmo

tempo naive e exemplar. Isto nos remete novamente a Weber (1984, p. 324), que observa

que sentimentos coletivos nada unívocos são genericamente chamados de “nacionais”,

ancorando-se em diversos fundamentos. Ele diz que “muy diversos son los motivos reales

de la creencia en la existencia de una unidad ‘nacional’ y muy diferentes las acciones

comunitarias que en ella se basan”.

Sociedades diferentes não elaboram da mesma maneira a representação de suas

relações com as realidades que compõem a categoria de nação, vale dizer, “as

mentalidades nacionalistas”. As fontes que alimentam o sentimento de unidade nacional

podem estar localizadas em esferas sociais muito distintas. Ainda segundo Weber, para

um “tipo” de nacionalismo viabilizado a partir do Estado Moderno, as principais fontes de

referência são política, religião, língua e hábitos condicionados racionalmente. Mas,

apesar dessas pistas, não se pode falar que uma nação se faça com fundamentos

objetivos, uma vez que suas observações falam em favor de uma dimensão voluntarista

da idéia de nação.

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Sendo assim, é possível supor que, quando os suecos dizem “somos muito olhos azuis”,

essa identificação seria o resultado da legitimação de uma dada construção na realidade

social, portanto subjetiva (BEGER e LUCKMANN, 1985).

Henning Mankell (2002), o criador de Kurt Wallander, mesmo admitindo que não tem

grande admiração por ele, diz que

Wallander's never cynical. He never says, ‘don't care about that.' Naturally that damages him, but he takes responsibility, and that's what I love. He feels tired because the work is too much. But if he didn't do the work, he'd feel worse, he would leave a big black hole in himself. I think he's of the Calvinist generation, in the sense that you are supposed to work and pray, while you are sweating. That is supposed to be your life. (2002).9

Um de seus inimigos, ao ser derrotado, lhe diz: “O senhor é de fato muito esperto,

inspetor. Não dá um passo em falso, a menos que seja forçado.” (2003, p. 309).

Não se Barganha com as Crenças

Kurt Wallander é uma criação da ficção sueca contemporânea cuja conduta parece ser

orientada por valores racionais e seculares. No entanto, sua retidão moral tem

precedentes na literatura sueca, como, por exemplo, Master Olof, criação de August

Strindberg (1849 – 1912), da peça homônima (Master Olof, 1872).

Olof é um jovem padre capaz de levar seu idealismo às últimas conseqüências. Tornou-

se discípulo de Martin Lutero e assumiu a tarefa de introduzir seus ensinamentos na

Suécia, onde queria ver ruir o poder romano e o triunfo dos ideais da reforma luterana.

Seus ataques ao catolicismo são orientados por uma fé inabalável, que chega a colocar

9 HASTED, Nick. All along the watchtower. The Guardian, Saturday, January 12, 2002. Disponível em http://books.guardian.co.uk/departments/crime/story/0,6000,631288,00.html.

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em dúvida sua sanidade mental, por expressar pública e claramente suas divergências

religiosas em uma época em que tal comportamento era o caminho mais curto para as

fogueiras. Já no primeiro ato da peça, ele diz:

[...] what does the Church in Sweden care for the people? They pay taxes to the Pope in Rome, and what does he give them in return? The bishop ride through the land with trains of a hundred followers demanding food and lodging from peasants who can scarcely feed themselves. Bishop Brask of Linköping is the richest man in Sweden, richer than the king. (STRINDBERG, 1991, p. 17)

Master Olof é guiado pelo que acredita ser “a verdade” que, como tal, “é sempre

audaciosa”. Uma demonstração de onde pode chegar na luta por seus ideais está na

discussão que ele tem com a velha mãe católica (cena 2 do segundo ato da peça), que

tenta fazê-lo desistir da “sua estrada falsa”. A mãe usa dos argumentos ao seu dispor:

- Oh, that I might be rewarded for the sacrifices I made, so that you might go out into the world and teach. (Idem, p. 48). - Haven’t you heard that Bishop Brask is negotiating with the Pope to bring to this country the law that condemns heretics to the stake? (Idem, p. 49). (Ajoelhada e chorando) - You will bring me to the grave, Olof. (Idem, p. 50).

Mas o filho não se deixa abalar pelos seus sacrifícios nem pelas ameaças da inquisição e

responde que “The God who held his hand over Daniel in the lions’ den will guard me too.”

(Idem, p. 50). Ele nega todos os pedidos maternos, até mesmo diante de seu leito de

morte.

Ainda movido por sua verdade e ideal de liberdade, Master Olof, que antes era protegido

pelo Rei, chega a conspirar contra ele. Quando recebe a condenação do Rei, que temia

que as ações de Olof levassem à instabilidade política e social, mantém-se fiel à sua

crença, como ilustra o seguinte diálogo entre Olof e seu irmão Lars (cena 3 do quarto ato

da peça):

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OLOF: Lars, forget the formalities if you want me to listen to you. I don’t think I can die now, I’ve too much life left in me. LARS: I think so too, and it is for a new life in this world that I am to prepare you. OLOF: In this world? LARS: If you are willing to confess that what you did was wrong, and to renounce all you said against the King. OLOF: How can I? That would be to die. LARS: That is what I have to tell you. You must decide. OLOF: One doesn’t bargain about one’s beliefs. (Idem, p. 108, grifo meu).

Para Berger e Luckmann (1985, p. 49), “a realidade da vida cotidiana contém esquemas

tipificadores em termos dos quais os outros são apreendidos, sendo estabelecidos os

modos como ‘lidamos’ com eles nos encontros face a face”. Ao apresentar aqui Master

Olof e Kurt Wallander como narrativas possíveis sobre o que é ser sueco, falo de

tipificações ideais da conduta dos suecos na vida cotidiana, que se fazem representar por

uma consciência ética. Esta consciência tem homologias claras com os princípios

luteranos, mesmo em um mundo secularizado.

O discurso recorrente na Suécia moderna coloca a racionalidade no centro da definição

das condutas subjetivas, reivindicando, portanto, que atitudes seculares formem o padrão

geral de orientação social. Porém, é preciso lembrar que a Suécia foi um dos últimos

países europeus a separar oficialmente Estado e Igreja, o que aconteceu em 2000, após

mais de quatro séculos de laços muito estreitos. Até 2000, os suecos eram registrados,

ao nascer, como membros da Igreja Sueca – leia-se luterana –, e 85% da população

ainda se reconhecem como tal. Um dos argumentos centrais usados em favor da

separação foi a nova perspectiva multicultural da sociedade sueca, que se constitui com a

chegada de imigrantes de religiões diversas e que tornou injusto o reconhecimento oficial

de apenas uma delas. Independente da validade ou não de tal argumento, é possível

inferir que a separação tardia entre Estado e Igreja não foi, portanto, expressão da

negação do papel da religião na vida das pessoas, mas o entendimento de que esse

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papel pode assumir formas diversas, passíveis de respeito e consideração da sociedade

como um todo. Desta forma, sou levada a concordar com Ǻke Daun (2002, p. 141), que

informa que “common sense is easily combined with the Lutheran puritanism that

permeates certain aspects of Swedish culture.”

Como um argumento a reforçar a tese de Daun, cumpre fazer referêcia à teoria weberiana

(1984), segundo a qual a religião não apresenta somente uma ética de virtuosos que leva

ao caminho da salvação; a ética religiosa penetra nas esferas da ordem social com

profundidade diversa. Para ele, assim como em outras esferas da vida coletiva, como a

economia ou a política, a religião também contribui para a constituição de um conjunto de

valores que orientam a conduta racional dos fiéis. Weber (2004, p. 82) se declara

especialmente interessado nos aspectos periféricos e exteriores à consciência

propriamente religiosa,

porque justamente o que nos cabe é tornar um pouco mais nítido o impacto que os motivos religiosos, dentre inúmeros motivos históricos individuais, tiveram na trama do desenvolvimento da nossa cultura moderna especificamente voltada para “este mundo”.

Seu objetivo, portanto, é entender a Reforma como uma causa histórica à qual podem ser

atribuídos elementos de uma cultura. Seu foco principal são as transformações

econômicas, notadamente a cunhagem e expansão de um “espírito” do capitalismo, mas

interessa observar aqui seus comentários sobre o conceito de vocação em Lutero.

Segundo Weber (idem, p. 72), a idéia de missão dada por Deus seria um produto da

Reforma, que se faz refletir em novas condutas, dentre as quais, “a valorização do

cumprimento do dever no seio das profissões mundanas como o mais excelso conteúdo

que a auto-realização moral é capaz de assumir”. Ele atribui essa idéia a Lutero, para

quem a vida monástica não teria valor perante Deus devido à sua conotação egoísta, uma

vez que pressupõe o isolamento dos deveres do mundo. Lutero confere significado

religioso ao trabalho mundano de todo dia, por meio do qual pode-se expressar o amor ao

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próximo e, conseqüentemente, agradar a Deus. Seu conceito de vocação profissional,

conforme analisa Weber, seria tradicionalista. O trabalho profissional seria a missão dada

por Deus, uma vocação que deve ser aceita como um desígnio divino. O devotamento

puritano ao mundo valoriza a vida intramundana como missão.

O historiador Tom Ericsson (1993, p. 239), em artigo sobre a pequena burguesia sueca e

seus mitos na transição dos séculos XIX e XX, observa que

morality and virtue became a common theme in the small Swedish world of retailing and handicrafts around the turn of the century. Morality became almost a petit bourgeois cult and was treated as synonymous with the petite bourgeoisie as a class. Shopkeepers and masters artisans often regarded themselves as models of high moral standards compared with other classes in society. The petite bourgeoisie began to surround itself with a code of ethics which its members considered a model for society as a whole, one upon which all should agree.

Segundo Ericsson, os pequenos empresários suecos daquele período estavam seguros

de que desenvolviam atividades distintas das da indústria, fato que os obrigava a

demandar de seus empregados qualificações morais específicas. O artigo cita a

existência de um manual do homem de negócios (handbok för köpmän), de 1897, que

trazia um capítulo sobre a importância das qualificações morais dos empregados. Dentre

as qualificações que deveriam ser consideradas quando o comerciante desejasse

contratar um assistente, estão “diligence, capacity for work, feeling for order, reliability,

honesty, truthfulness, sincerity, discretion, loyalty etc. Cult of moral virtues”. Como o autor

observa, muitas dessas qualificações não têm nada a ver com o trabalho propriamente

dito.

Considerando a tese de Max Weber, o exemplo acima de exigência de uma práxis moral

no mundo do trabalho teria sua fonte nas idéias luteranas, ainda que combinadas com

outras fontes. Sendo assim, mesmo que a sociedade sueca se orgulhe de sua

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racionalidade moderna, “lutheranism still permeates Swedish thinking to a considerable

degree” (DAUN, 2002, p. 211), exercendo influência significativa na visão de mundo dos

suecos, tanto quanto a social-democracia, por exemplo.

Se o etnólogo sueco estiver certo quanto a esse grau considerável de luteranismo que

persiste na Suécia moderna, pode-se ainda supor que o interesse popular por assuntos

de cooperação encontre ancoragem nesse mesmo pensamento. Nas 95 teses em que

Martin Lutero debate o valor das indulgências, temos:

Tese 41 – Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor. Tese 42 – Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa, de alguma forma, ser comparada com as obras de misericórdia. Tese 43 – Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedemos melhor do que se comprássemos indulgências. Tese 44 – Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena. Tese 45 – Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.10

Ou seja, para Lutero, a compra da indulgência é uma prática livre e não obrigatória aos

cristãos, uma vez que são bastante menores do que as “boas obras do amor” e a

misericórdia, feitos que operam transformações naqueles que os praticam. Talvez por

isto, um de meus entrevistados, ao ser perguntando sobre o porquê de a Suécia cooperar

e sobre seus motivos para se dedicar a este tipo de atividade, me respondeu: Não sou eu

que tenho que explicar por que coopero. São aqueles que têm condição de fazê-lo e não

o fazem é que devem dizer por quê.

10 http://www.saberhistoria.hpg.ig.com.br/nova_pagina_105.htm.

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Na visão de Hobsbawm (1991, p. 15), é razoável que

As nações não correspondam aos critérios ou à sua combinação. Na verdade, como poderia ser diferente, já que tentamos ajustar entidades historicamente novas, emergentes, mutáveis e, ainda hoje, longe de serem universais em um quadro de referência dotado de permanência e universalidade?

Benedict Anderson tem uma visão complementar à de Hobsbawm. O nacionalismo não é

uma ideologia política como o liberalismo e o fascismo, mas sim proveniente de grandes

sistemas culturais que o precederam. Ou seja, a nação é ao mesmo tempo herdeira do

passado e uma realidade nova. Nas suas palavras, “dentro de um espírito antropológico,

proponho, então, a seguinte definição para nação: ela é uma comunidade política

imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana.” (ANDERSON, 1989,

p. 14)

Para ele, a nação é uma comunidade imaginada, uma vez que aqueles que a constituem

jamais encontrarão ou conhecerão a maioria dos outros. Sentimentos e personalidades

coletivos vivem na mente de cada um. No entanto, ele acrescentou que “as comunidades

não devem ser distinguidas por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são

imaginadas” (idem, p. 15). Uma análise sociologicamente pertinente, nesse caso, seria

orientada para a compreensão dos processos pelos quais a nação chega a ser

imaginada, modelada, adaptada e transformada.

A Suécia contemporânea, tal como quis demonstrar nesta sessão, aparece como uma

realidade nova, mas que herda um passado construído em torno de valores morais e

éticos – cuja gênese pode estar no pensamento luterano – e que se redefinem nos

tempos atuais assumindo novos sentidos, modernos e seculares, para as relações de

cooperação com outros povos.

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Debate Moral e Diálogo Público

Assim como os demais países escandinavos, a Suécia é formada por culturas muito

antigas11 e com marcos históricos que remontam à Idade do Bronze (cerca de 1500-500

a.C), dos Vikings (800-1050 d.C) e Medieval. As cidades suecas, com destaque para

Estocolmo, a capital fundada em 1252, apresentam castelos e igrejas medievais e

renascentistas. Os suecos comemoram festas neopagãs com bastante interesse. No dia

30 de abril, por exemplo, celebram a noite de Valborg (Valborgsmässoafton), que tem

origem nas festas Vikings da fertilidade e é também, desde 779, véspera do dia destinado

à Santa Walburga, no calendário católico12. Durante as comemorações da Semana Santa,

é comum que as casas suecas sejam decoradas com bruxinhas de pano e que as

crianças se vistam de bruxas para as festividades, com lenços na cabeça e pintinhas

desenhadas sobre o nariz. A adoção das bruxas como uma das personagens da Páscoa

vem da crença popular de que elas, anualmente, nesse período, promovem um encontro

em Blåkulla – local mítico onde mora o demônio nas lendas nórdicas – e lá permanecem

até a véspera da Páscoa. Outra festa importante acontece no solstício de verão

(Midsommar). É uma festa de origem secular, que passou a ser associada ao dia de São

João (24 de junho) a partir do século VII13.

11 Pesquisas arqueológicas cobrem cerca de 10.000 anos de atividade humana na região, com destaque para as pedras de Runas, em sua maioria do século XI. (KASTRUP, 1953). A paisagem física da Suécia – lagos, pedras, florestas – são da Era Glacial (AUSTIN, 1968). 12 O Rei Carl XVI Gustav faz aniversário neste dia. 13 Dentre as comemorações especiais para os suecos, estão também o dia de Santa Lúcia e o Natal.

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Fig. 2: Noite de Valborg – Estocolmo, 2006 Fig. 3: Midsommar – Estocolmo, 2004

Não cabe aqui aprofundar a análise da origem desses costumes, tampouco ir além da

observação comum de que foram se constituindo como tradição européia a partir dos

contatos entre seus povos e mediante processos históricos de dominação e troca. Sendo

assim, entende-se que eles não têm origem na cultura sueca, mas ganharam ali formas

rituais próprias, que foram sendo modeladas e transformadas ao longo dos séculos. Na

Suécia contemporânea, essas festas têm um caráter familiar e comunitário e são

preparadas minuciosamente, dando a impressão de que todo o repertório simbólico em

torno delas é de conhecimento público. Todos sabem quais as canções, as comidas, as

flores, roupas, músicas e até mesmo qual a cor das velas ou da toalha de mesa são

adequadas a cada ocasião. Muitas vezes, os vizinhos justificam entre si o envolvimento

na produção das festas: Fazemos isso para as crianças.

É difícil imaginar o que mais pode garantir vida longa a uma tradição do que a sua

transmissão às futuras gerações. Mas esse processo, conforme afirmam

recorrentemente, não tem para eles nenhuma correspondência com a possível existência

de um caráter nacional. Esse passado remoto não está no centro das representações que

os suecos fazem de si mesmos e de sua sociedade. Pelo contrário, a nação imaginada

expressa o desejo de ser identificada com a noção de modernidade, de um país

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organizado por meio de procedimentos racionais que resultaram numa sociedade

avançada, desenvolvida, justa e igualitária (AUSTIN, 1968; DAUN, 2002; GUSTAFSSON,

1964; KASTRUP, 1953).

Além disso, o debate cultural na Suécia tem uma tendência clara a negar a existência de

qualquer caráter nacional pelo qual pudessem ser identificados ou do qual pudessem se

orgulhar. Dito de outra forma, os suecos se orgulham de não terem orgulho nacional

(AUSTIN, 1968). Há aqui, portanto, uma comunidade que, além de representar-se como

racional e moderna, declara descaso e descrédito por supostos sentimentos nativistas.

Os estudiosos do assunto apresentam algumas explicações para o aparente paradoxo.

Uma delas é citada por Daun, etnólogo sueco que publica um livro sobre a mentalidade

sueca, em 1989 – pela primeira vez, desde trabalho anterior do estatístico Gustav

Sundbärg (1911). Ele observa que, depois da Segunda Guerra Mundial, os suecos

passaram a recusar qualquer discussão acerca de um possível determinismo racial, numa

atitude de repúdio ao Nazismo. Por este mesmo motivo, também as discussões sobre o

caráter nacional foram consideradas non sense científicos. Além disso, ele comenta que,

embora haja no país minorias internas e grupos de estrangeiros, a população sueca ainda

é muito homogênea para servir de base a estudos sobre diferenças culturais, a não ser

em contraste com outros povos. A segunda explicação, que está diretamente ligada ao

tema central deste trabalho, seria o desejo de se reconhecer como mais orientados pela

razão do que algumas outras culturas, muitas delas assentadas em crenças e religiões

que promovem uma explicação encantada do mundo e adotam costumes “exóticos e

pitorescos". Os suecos, ao contrário, orientam suas ações de acordo com princípios da

modernidade que são universais, por pressuposto. Seria esse desejo de universalidade

do cidadão sueco que lhe permite imaginar-se membro de uma comunidade de tal forma

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cosmopolita que um sueco seja perfeitamente adaptável e capaz de se integrar em

qualquer contexto ou cultura? Se assim for, é razoável que se imagine também portador

de uma credencial para exercer a incumbência de aplicar um “modelo sueco” de soluções

sociais e tecnológicas. “If Swedish solutions are for export, how far are they exportable?

How far Swedish?” (AUSTIN, 1968, p. 4).

Dito de outra forma, as observações feitas até aqui sobre como os suecos imaginam a si

mesmos podem ajudar a esclarecer os motivos pelos quais a Suécia se posiciona no

cenário internacional com uma reputação privilegiada entre os países desenvolvidos, no

que se refere à solidariedade internacional. O paradoxo é aparente porque, se por um

lado os suecos não se dedicam a celebrizar nem características nem personalidades

nacionais, agindo dessa forma acabam também por contribuir com a construção de uma

personalidade coletiva que lhes serve de referência: a de um povo “curinga” nas relações

internacionais.

O exame da escassa literatura que tem como tema definir o que é ser sueco (svenskhet)

pode nos ajudar a agrupar alguns elementos que constituem seu tímido quadro de

sentimentos nacionais14.

Considero interessante observar, por exemplo, o livro The Making of Sweden15

(KASTRUP,1953), publicado em Nova York, em inglês, pela The American-Swedish News

Exchange. O livro, endereçado aos leitores norte-americanos, teve como objetivo ampliar

14 É preciso lembrar que este tipo de literatura pouco interessa aos suecos, tanto como autores quanto como leitores. Não considero que eles sejam portadores de uma “verdade” sobre os suecos, mas sim interessante objeto de análise que possibilita conhecer que tipo de história contam sobre si mesmos. 15 O mesmo autor escreveu também Digest of Sweden (1959).

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o conhecimento sobre a cultura, economia e política sueca nos Estados Unidos. A edição

é cuidadosa, com farta ilustração que revela paisagens naturais, igrejas, castelos,

indústrias e personalidades. Na capa, há uma bela fotografia em preto e branco de

Estocolmo, tirada da parte sul da cidade, e nas 128 páginas que se seguem, o autor

pretende narrar a história de uma terra e de sua gente democrática, que desenvolve uma

economia industrial, participa de relações internacionais e tem relações especiais com a

América. Os suecos do final dos anos 50 são apresentados como caseiros, apaixonados

por flores e pela vida ao ar livre, gostam do contato com a natureza, de luz e de sol.

Devido à sua polidez, foram apelidados de “franceses do norte”.

Nas páginas 2 e 3, o mapa da Suécia aparece surpreendentemente dividido em duas

partes, com a seguinte legenda: “because the map of Sweden is so long it has to be

divided between two pages”. O motivo alegado certamente provocaria estranheza a um

leitor brasileiro, para quem a Suécia seria um país bem pequeno, comparado ao Brasil.

Mas todo o texto que se segue faz comparações sempre favoráveis a uma dada

superioridade sueca, quer seja em extensão, população, cultura ou desenvolvimento, com

relação a outros países europeus e, em especial, com relação aos demais países

escandinavos.

O passado sueco, por exemplo, é representado por uma trajetória viking singular. O autor

descreve que, a cada primavera, os Vikings saíam em expedição, fazendo trocas com os

povos amigos e, quando sofriam resistência, agiam como piratas. Apesar de admitir que

houvesse um comportamento bárbaro, porém justificado pela “incompreensível”

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resistência inimiga, a conclusão sobre o caráter viking é que “their fundamental sense of

fair play, order and insistence on the equality of free men has left a much stronger imprint

on history than their violence.” (KASTRUP, 1953, p. 7).

Kastrup situa a origem de um sentimento nacional a partir das ocupações dinamarquesa e

alemã, nos séculos XIV e XV. Quando, por exemplo, os soldados suecos comemoraram a

vitória contra um ataque dos dinamarqueses, em 1471, cantando a Balada de São Jorge

(Göran ou Örjan), foi erguida uma imagem do santo matando o dragão, esculpida em

madeira, que se tornou uma famosa referência ao feito nacional16.

Fig. 4: São Jorge – Gamla Stan, Estocolmo

A democracia também é apresentada no livro como um traço marcante da sociedade

sueca. Todavia, se considerarmos que, segundo o autor, os Vikings se caracterizavam

“pela insistência na igualdade do homem livre”, parecer-nos-á que o Estado Nacional

nada mais fez do que repetir um princípio democrático que já se encontrava consolidado

na origem primitiva da cultura sueca. Vale citar dois exemplos que aparecem no livro. O

primeiro deles é a relação interna com o comunismo: “The only weapons used in fighting

16 A imagem original esculpida em madeira está no interior de uma igreja (Storkyrkan). Numa praça de Gamla Stan, parte antiga de Estocolmo, há uma réplica muito apreciada e fotografada por visitantes suecos e estrangeiros.

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the Communist movement on the political level are education and free discussion.”

(KASTRUP, 1953, p. 57). O segundo é a liberdade de expressão:

Since 1812, a law guaranteeing the liberty of press has been part of constitution. Under the current constitutional press law, which was ratified by the Riksdag as recently as 1949, any attempt at censorship is strictly forbidden. No authorities have the right to impede the circulation of a newspaper. (Idem, p. 72 – 73)

Os suecos são apresentados aos americanos, através do livro, como sendo céticos

quanto às novas ideologias, mas muito interessados em desenvolvimento prático. Para

confirmar seu parecer, evoca o alto desenvolvimento de habilidades técnicas e a

capacidade de organização – características que poderiam justificar o sucesso de

empreendimentos internos, mas que não param por aí:

One of the central facts of Sweden’s modern history is its active participation in all kinds of international activities other than military. Without such close contacts with other countries, not only in trade but also in technology, science, education and other fields, this small nation would never have been able to keep abreast of world-wide material and cultural progress. But valuable impulses also have emanated from Sweden, whose contributions to the advance of science and the development of modern industry have been of significance. (Idem, p. 91)

O tom do texto é não só orgulhoso, mas também estratégico, porque reúne como

características nacionais aquelas consideradas, principalmente nos anos que se seguiram

ao fim da Segunda Guerra Mundial, as mais favoráveis ao “progresso material e cultural”

mundial, como ser capaz de fazer desenvolver a ciência e a indústria moderna. Dentro de

um contexto de reconstrução política, econômica e material das grandes potências

mundiais, a política externa sueca é descrita como sendo voltada para manter sua

liberdade e modo de vida democrático, objetivos comuns às nações ocidentais, mas que

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têm como aspecto singular a “longa tradição de neutralidade em tempos de guerra.” (p.

91).

A neutralidade da Suécia, apresentada por Kastrup como um valor importante na

construção da sua reputação internacional, é, contudo, um tema controverso. Durante a

Primeira Guerra Mundial, por exemplo, os Estados aliados manifestaram seu

descontentamento pelo fato de o país continuar comercializando com a Alemanha. Se,

por um lado, o governo sueco tentasse interpretar esse procedimento como a mera

aplicação dos direitos internacionais, por outro, pareceu uma atitude oportunista.

(WALLENSTEEN, 1995)

Também para o escritor, filósofo e sociólogo Lars Gustafsson (1964), o longo período de

paz e a neutralidade nas políticas externas, que mantiveram a Suécia de fora dos grandes

conflitos europeus, e o desenvolvimento do estado de bem-estar social, caracterizado

pelo liberalismo, socialismo e alta capacidade industrial, fizeram da Suécia um país

singular. Apesar das vantagens, essa singularidade também conservou um certo

isolamento, que antes havia sido eminentemente geográfico.

No entanto, parece que o autor de Making of Sweden tem como objetivo apresentar aos

americanos uma Suécia bastante distante da realidade econômica que, da metade do

século XIX até os anos 30 do século XX, provocou a emigração de muitos de seus

cidadãos para os Estados Unidos. Para alcançar seus intentos, demonstra-se convencido

de que a combinação entre as qualidades técnicas e a posição política do povo sueco são

condições especiais, que contribuirão fortemente para a definição do lugar que o país

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deve ocupar no cenário internacional. Como membro das Nações Unidas desde 1946, a

Suécia vai participar especialmente dando assistência técnica a programas para países

em desenvolvimento, papel que o país quer ver como sendo “inteiramente de acordo com

a tradição sueca”. (Idem, p. 97)

Fica a pergunta: a imagem da Suécia, narrada aos norte-americanos, interessa também

aos suecos? O exemplar que encontrei em um sebo no centro de Estocolmo tem a

assinatura de seu dono anterior, um nome tipicamente sueco, e as seguintes informações:

New York – 16: april 1953. Podemos imaginar um sueco em viagem ao exterior que

compra, um mês após sua publicação, um livro repleto de elogios ao seu país e sem uma

crítica negativa sequer. Por quais razões decide colocá-lo na bagagem que leva de volta à

Suécia?

É interessante lembrar que abril de 1953 passa a ser uma data memorável na história

sueca, com a posse de Dag Hammarskjöld17 como secretário geral das Nações Unidas,

causando surpresa nas grandes potências. O alto funcionário da administração pública

sueca, tido como eficaz e insubornável, ganhou destaque com seu trabalho na

Organização Européia de Cooperação Econômica – OECE – e foi, à época, uma boa

opção para conciliar interesses franceses e britânicos. Além disso, a escolha de um

cidadão da neutra Suécia para secretário geral das Nações Unidas poderia facilitar o fim

do bloqueio da União Soviética aos trabalhos da ONU. (WALLENSTEEN, 1995, p. 11)

17 Dag Hammarskjöld morreu prematuramente, em setembro de 1961, de acidente de avião em Ndola, Zâmbia. No mesmo ano, recebe o Prêmio Nobel da Paz, como homenagem póstuma. Especulações em torno da causa do acidente defendem a hipótese de ter sido um ato criminoso.

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A sua intensa atuação junto às Nações Unidas voltou-se primeiramente para a defesa da

legitimidade e integridade da Organização, contra a ingerência do FBI, por exemplo. É

importante destacar também que, desde sempre, ressaltou a importância da África,

procurando voltar a atenção internacional para os problemas que o sul do continente

vinha enfrentando e, conseqüentemente, contribuindo para o direcionamento da ajuda

sueca para o desenvolvimento da região.

Habilidade para Cooperar

No século XX, as condições outrora miseráveis da sociedade sueca foram finalmente

revertidas, passando o país a apresentar um dos melhores indicadores de qualidade de

vida do planeta. Segundo David Landes (1998), a Escandinávia pobre do século XVIII era

intelectual e politicamente rica. Quando entrou, tardiamente, no mundo da indústria

moderna, teve um desempenho impressionante, explicado por sua preparação cultural,

elevados níveis de alfabetização e de educação superior, além de estabilidade política e

ordem pública. Talvez por essas características é que o país seja reconhecido como um

dos que mais investem na educação pública sobre assuntos internacionais. (EDWARDS,

2000).

Para Gustafsson (1964), a “ambição” da Suécia de manter um debate em torno de

questões morais e sociais, problemas internacionais, arte e educação pública criou-lhe

uma situação muito específica. Ele observa que, nos anos 30 e 40, por exemplo, o

cenário nacional foi marcado pelo interesse por várias formas de libertação, fossem elas

de preconceitos ou dogmas. Esse comportamento se estende pelas décadas seguintes

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como característica cultural típica de uma sociedade moderna ocidental “with high

standard of living, advanced social reform and all the problems which modern mass media

place on such a society”. (GUSTAFSSON, 1964, p. 12)

Um tema que se destaca nesse contexto de libertações anti-dogmáticas são os direitos

das mulheres. Historicamente, lembra-nos Gustafsson, as conquistas das mulheres

suecas por seus direitos começam no fim do século XVIII, início do século XIX, e, na

Suécia moderna, são reconhecidos seus direitos econômicos, políticos, profissionais e de

liberdade; em 1947, a primeira mulher sueca passa a fazer parte de um governo que,

hoje, tem uma das maiores representações femininas no mundo.18

Para o autor, o estado de bem-estar social provocou uma situação de estabilidade interna

e externa com alto índice de segurança material e nível pouco usual de liberdade. Tais

conquistas teriam contribuído para que a opinião pública na Suécia moderna fosse

sensível com relação aos problemas dos países menos desenvolvidos, assumindo que

tais problemas são também de responsabilidade dos países ricos, cuja população tem o

dever de reagir contra as diferenças de condições em que vive a maioria das populações

do mundo.

18 Em 1845, foi aprovada a lei que dá às mulheres o direito de herança; em 1846, conquistam o direito de entrar no comércio; em 1863, o de votar em eleições municipais; em 1870, o de prestar exame para a universidade; e, em 1919, o de votar em todas as eleições. (GUSTAFSSON, 1964).

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In this situation, protesting in the form of public appeals, the writing of protest notes and public manifestation has become somewhat of a necessary means of expression. For this generation of young radical Swedes [anos 60] it has become rather an everyday experience to sign one’s name to protest lists to be delivered to foreign embassies, notes in which we have expressed our indignation, our abhorrence, our repudiation of phenomena which have violated our feeling for democracy and human worth. (GUSTAFSSON, 1964, p. 113)

Ele acredita que a consciência pública na Suécia foi ainda ampliada a partir da

participação do país em programas civis e militares das Nações Unidas. A atuação de

Dag Hammarskjöld19 à frente daquela organização foi tomada como um símbolo de um

país que participa dos problemas do mundo, contribuindo para a solução deles, ao

mesmo tempo em que se mantém neutra, baseando-se numa “specific idea that we have

a moral duty, just in that we are a fortunately endowed country, to share our experiences

and our welfare with the poorer countries”. (GUSTAFSSON, 1964, p. 115)

Mesmo que muitos cidadãos suecos, efetivamente, não participem de nenhum programa

de ajuda humanitária, Åke Daun (1991, p. 170) observa que

Ability to cooperate (samarbetsformåga) is very much desired when personnel on higher levels are recruited in Sweden. Ability to cooperate is also one of the central educational purposes of the Swedish state school, although one could argue that group-orientation is already so deeply integrate into Swedish culture that one would rather think that an educational emphasis on the opposite capacity, i.e., on individualism, would be needed.

A formação consciente do cidadão sueco foi, portanto, fundamental para que uma dada

habilidade cooperativa, voltada para os assuntos internacionais, passasse a fazer parte

da imaginação coletiva daquela sociedade. A base dessa habilidade pretendida estaria

assentada, em princípio, no sentimento de solidariedade, para eles um dos principais

valores morais a serem compartilhados.

19 Vale citar o comentário do historiador inglês Paul Britten Austin sobre Hammarskjöld: “a sort of intellectual Jesus, walking on the stormy waters of international politics and coldly bidding them be still.” (1968, p. 52).

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Conforme já mencionado, os princípios luteranos não são considerados significativos o

bastante para se justificar uma tendência solidária na construção da identidade coletiva

da Suécia moderna. Para Lars Trägårdh (1990), a proibição da igreja católica no século

XVI deu início a um comprometimento comunitário com seus “próprios” pobres, velhos ou

doentes. Há que se dizer que o conceito de “pobre” não era moralmente neutro, havendo

a distinção entre os honestos e merecedores de ajuda e os preguiçosos e vagabundos.

Contudo, ele observa que a solidariedade sueca seria mais bem compreendida a partir do

exame das características inerentes a uma sociedade social-democrata.

O crescimento da população fez com que os arranjos comunitários não fossem mais

suficientes para responder às questões sociais, papel que passou a ser desempenhado

pelos movimentos populares do final do século XIX, principalmente os movimentos

operários que, por seu caráter coletivista e anti-elitista, segundo o autor, constituíram-se

em importante herança para a social-democracia sueca. Ou seja, na visão de Trägårdh,

há um espaço de interseção entre os movimentos operários e o estado de bem-estar

social, marcado por aspectos igualitários que se tornaram objeto de orgulho dos cidadãos

suecos. “Equal opportunity for all individuals, not the levelling of difference per se, is the

Swedish ideal. Swedish policies are designed to give equal ‘first chance’ to everybody.”

(TRÄGÅRDH, 1990, p. 578). Para ele, os fundamentos social-democratas se confundem

com valores compartilhados pela sociedade sueca, como o trabalho, a igualdade, a

liberdade e a democracia.

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É importante salientar que Governo e movimentos sociais na Suécia estabeleceram e

estabelecem, como será discutido adiante, um tipo de envolvimento bastante peculiar.

Conforme destaca Gundelash (1993, p. 359),

The Swedish case is interesting because most of the activity as well as the topic of the new social movements have been coopted in the established system. The Social Democratic Party and the old social movement organisations have been able to integrate the new social movements. Swedish grass-roots activity is the highest among the Nordic countries. The traditional political actors have used the political repertoire of the new social movements to a much larger extend in Sweden than in the other Nordic countries. One very telling example was the occasion when the late Swedish prime minister Olof Palme led a demonstration against the Vietnam war.

É possível que, por sua singularidade, a ligação entre Estado e sociedade civil tenha se

tornado um símbolo da cultura sueca. Para Brian Palmer (1996), há uma conexão entre

engajamento solidário e identidade coletiva, uma vez que bem-estar social e ajuda

humanitária contribuem para a formação da identidade daquele povo. Segundo ele, o

termo solidariedade (solidaritet) é usado não só no sentido durkheimiano de coesão

social, mas também para se referir a um senso de relacionamento e de responsabilidade

dentro da Suécia e internacionalmente. Essa responsabilidade se expressa como

engajamento moral em questões humanitárias e em movimentos políticos, reforçando a

auto-identificação dos suecos como um povo tradicionalmente avançado moral e

tecnologicamente. Tal posição ganha visibilidade antes e durante a Segunda Guerra

Mundial, período que colocou em risco os valores civilizados, cabendo à Suécia,

acreditam eles, o papel de sua guardiã.

No dizer de Olof Palme, as sociedades industriais têm o dever de ser locus da realização

humana, o que só é possível com o acesso igualitário aos recursos e com a promoção da

solidariedade: “We all of us depend on each other for our material standards, for our future

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security, for our cultural experience, for our personal growth. (PALME apud PALMER,

1996, p. 1)

A frase de Palme tem o efeito de projetar o modelo político sueco para dentro e para fora

do país. Tal modelo, arquitetado durante um longo período de consecutivos governos de

orientação social-democrata20, tornou-se um símbolo nacional, na medida em que seus

princípios de crescimento com igualdade, que pressupõe que o mercado seja responsável

pela produção e o Estado por sua distribuição, colocando-se numa terceira via ente

capitalismo e socialismo, extrapolou os limites do programa partidário, configurando-se

um componente da identidade nacional, dentro e fora da Suécia, ainda que seus

princípios não sejam mais tão evidentes na vida cotidiana dos suecos.

As teses discutidas aqui, portanto, querem demonstrar que o modelo político sueco tem

papel importante na formação de uma simbologia compartilhada socialmente, reforçando

o mito de uma nação pioneira em qualidade de vida e em confiança nos seres humanos,

dona de exclusiva criatividade tecnológica, social e política, caracterizada pelos valores

da moralidade e da solidariedade e conectada com o mundo por meio de uma política de

cooperação global. Em suma, uma liderança que deve ser seguida por outras nações do

mundo, em busca de uma ordem social moderna, capaz de abrigar pacífica e

igualitariamente modos de vida diferentes.

Porém, Palmer chama nossa atenção para uma questão que merece reflexão: as

imagens de miséria dos outros povos ajudam a sustentar o sentido sueco de nação

20 Desde 1932, o Partido Social Democrata esteve à frente do governo sueco, com exceção do período entre 1976-82 (Centro) e 1991-94 (Conservadores).

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avançada. “By offering attention and aid to others, Swedes remind themselves where they

stand.” (PALMER, 1996, p. 35).

Dessa forma, é possível supor que a ajuda internacional sueca é retribuída com o

fornecimento dos elementos de universalidade que compõem a nação imaginada e com o

que Arne Ruth (1984) chamou de “energia moral”. A pequena nação, de cerca de 9

milhões de habitantes, entra no cenário global portando uma herança moral por meio da

qual pretende se fazer ouvir e competir com as grandes potências, na luta por uma ordem

mundial justa.

Relato, no próximo capítulo, o contexto histórico no qual se formalizou o engajamento da

Suécia em relações internacionais de cooperação, buscando identificar as razões que

levaram um país social-democrata, neutro e sem tradição colonialista a se envolver tão

diretamente nas lutas de libertação das colônias portuguesas e, principalmente, a apoiar a

independência de Moçambique.

2

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NEUTRALIDADE ATIVA

“I somehow feel that it was the last decade of the age of innocence of the Nordic

countries”. O comentário é de Janet Mondlane21, numa entrevista em que discute com o

cientista político sueco Tor Sellström (2002a, p. 45) o contexto e as razões que levaram a

Suécia a se tornar o primeiro país industrializado do Ocidente a se envolver diretamente

com as lutas de libertação das colônias africanas.

Esses movimentos, que durante a Guerra Fria foram chamados de comunistas e

terroristas, ganharam outra conotação no parlamento sueco, que formalizou, em maio de

1969, uma política de assistência humanitária aos movimentos nacionais de libertação no

sul da África e em Guiné-Bissau. A década seguinte, segundo Janet Mondlane, trouxe

novas informações e experiências que alteraram a opinião pública sueca e a visão de

mundo de uma sociedade até então muito homogênea, de certa forma protegida dos

acontecimentos políticos e da situação social nos países pobres do mundo.

A questão central que levou Sellström (1999 e 2002b) a desenvolver uma extensa

pesquisa sobre os motivos e o papel da Suécia nas lutas de libertação das colônias do

Sul da África é instigante e necessária para se entender a trama em torno da qual é

tecida a complexa rede das relações internacionais, principalmente no sombrio período

da Guerra Fria e no contexto do apartheid, cujos arquivos ainda resguardam muitas

informações e explicações que a humanidade precisa ter. Sellström (1999, p. 26)

21 Americana, neta de suecos, nascida Janet Rae Johnson e viúva de Eduardo Mondlane, um dos grandes líderes da luta de independência de Moçambique. Mondlane foi morto em 1969, em um atentado com uma carta bomba, e é celebrado em Moçambique como um herói nacional.

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questiona: “what made Sweden – a small, industrialized nation in northern Europe,

without a direct colonial heritage and largely isolated from Third World affairs – become

involved on the nationalist side in Southern Africa?”

A rigor, como o autor ressalta, as teses sobre política internacional concordam que as

relações entre os países são regidas por três objetivos básicos, que são segurança

nacional, afinidade ideológica e oportunidade econômica.

A Suécia dos anos 50, como lembra Sellström, é identificada pelo chamado “modelo

sueco”, conceito que se refere a um tipo de organização socioeconômica baseada no

crescimento com eqüidade e numa posição política localizada a meio caminho entre o

capitalismo e o socialismo. Neste “modelo”, a produção fica a cargo do mercado, mas sua

distribuição, que deve equacionar economia, igualdade e bem-estar, a cargo do Estado

(SELLSTRÖM, 1999, p. 35). O “modelo sueco”, que, segundo seus analistas, funciona

relativamente bem até o surgimento das crises econômicas dos anos 80, se valeu do

ambiente de paz entre o setor privado e a classe trabalhadora sueca, setores da

sociedade que conseguiram estabelecer um contrato social desde 1938, baseado mais

em negociação do que em conflito.

É provável que esse ambiente de igualdade tenha criado condições favoráveis para que

a população desse seu apoio à remodelação da política externa sueca, passando de

neutra para o que posteriormente se convencionou chamar de “neutralidade ativa”. Essa

característica da sociedade sueca, de ter conseguido muito cedo e sem conflitos um

acordo que envolve o mundo do trabalho, o setor privado e o Estado, é citada por muitas

pessoas que entrevistei no trabalho de campo como um dos fatores que explicam o papel

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que a Suécia assume nas relações internacionais. Ou seja, se foram capazes de criar

condições favoráveis ao diálogo interno, são também capazes de cooperar para que o

conflito ceda lugar ao diálogo, em outras partes do mundo.

O “modelo sueco”, no entanto, não pode explicar sozinho o envolvimento da Suécia com

os problemas dos países pobres e, em particular, com as lutas de libertação das colônias

portuguesas na África. Sellström ressalta, por exemplo, o papel da igreja sueca neste

contexto. Ele lembra que, antes do intenso relacionamento entre os países nórdicos e o

sul da África, que se estabelece com as lutas contra o colonialismo e o apartheid, já havia

uma significativa história entre eles, desde os séculos XVIII e XIX. Os registros dos

primeiros emigrantes suecos no sul da África são de 1630, quando homens suecos se

empregaram na Dutch East Índia Company, através de seus contatos com os holandeses,

que tinham uma posição de destaque no porto sueco de Göteborg. Esses suecos se

casaram por lá com moças de famílias holandesas, alemãs e francesas, e se integraram

ao grupo dos africânderes.

Segundo o autor (In ODÈN e OTHMAN, 1989, p. 20), esse tipo de contato, que durou

cerca de dois séculos, muda de figura quando, por volta de 1850, os finlandeses,

noruegueses e suecos formaram a sociedade missionária na África do Sul, Namíbia e

Zimbábue. Os missionários suecos começaram com programas sociais no Congo, em

1860, e na Etiópia, em 1870 (LEWIN, 1986, p. 221). O fôlego da igreja sueca na África

começou a aumentar a partir de 1890, quando 22 missionários vão para a Zululândia e

investem em um projeto de aproximação com a família real Zulu, a ponto de conseguirem

converter um primo do rei, que foi batizado na Suécia como Josef Zulu, em 1878.

Posteriormente, Josef Zulu se tornou o primeiro pastor africano da igreja sueca. O

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envolvimento da igreja sueca com os países africanos foi crescente e, segundo Sellström

(1999, p. 42), em 1959 havia cerca de mil missionários suecos no continente africano.

Essa relação de cunho religioso entre a Suécia e o sul da África assume outra conotação

com a implementação do sistema do apartheid na África do Sul. Nos anos 50, um lento,

mas crescente sentimento de solidariedade com a situação de opressão a que estava

submetida a maioria do povo sul-africano, começa a movimentar a opinião pública sueca,

em parte mobilizada pelos representantes da igreja, principalmente os que foram

missionários na África. Alguns deles se tornam ativos em campanhas de informação e

conscientização pública do que vinha acontecendo na África do Sul.

Além da ação dos missionários que voltavam da África narrando uma história que, de

certa forma, ofendia o sentimento de dever moral dos suecos, há outros fatores que nos

ajudam a compreender os motivos que levaram à definição precoce da Suécia por uma

política internacional que repudiou o apartheid e o colonialismo e que apoiou a

independência das colônias portugueses e o seu desenvolvimento econômico. Sellström

(Idem, ibidem) comenta dois deles: o primeiro teria sido o fato de a Suécia não ter

nenhum passado colonial na África e, devido aos horrores da Segunda Guerra Mundial,

ter se tornado avessa a todo tipo de nazismo, racismo e ocupação estrangeira. Portanto,

a posição que assume tem, na sua visão, uma conotação moral. Além disso, os países

nórdicos sempre foram membros ativos das Nações Unidas, cujos dois primeiros

secretários gerais foram o norueguês Trygve Lie (1946 – 53) e o sueco Dag

Hammarskjöld (1953 – 61), que sustentaram nas Nações Unidas o debate sobre a

independência das colônias inglesas, francesas e portuguesas na África. O papel dos

nórdicos na ONU atraiu a atenção dos cidadãos escandinavos, sobretudo depois que

tropas suecas participaram da missão de paz no Congo. Essa experiência contribuiu para

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que ficassem mais inteirados dos efeitos do colonialismo e da realidade do terceiro

mundo. (Idem, ibidem, p. 28)

O debate sobre a situação colonial torna-se público através, também, da atuação de

alguns jornalistas, dentre eles Per Wästberg, que publicou dois livros sobre o que vinha

acontecendo no sul da África: Território proibido (Förbjudet område), na Rodésia, e Na

lista negra (På svarta listan), na África do Sul. Ele também criou o fundo sueco para as

vítimas da opressão racial no sul da África. Cito novamente a opinião de Sellström (1999,

p. 29):

In the case of Sweden, the role of these intellectuals, editors and churchmen in the shaping of public awareness regarding the situation in South and Southern Africa should not be underestimated. In fact, representatives of religious and what in Sweden is termed “popular movements” (trade unions, cooperatives, temperance societies etc.) were strongly represented on the preparatory commission for Swedish bilateral development cooperation.

Paralelamente à formação de uma opinião pública sobre a situação do chamado Terceiro

Mundo, o governo tomou algumas decisões que contribuíram para estabelecer o lugar que

a Suécia viria a ocupar entre os demais países doadores. Em 1962, o governo social-

democrata da Suécia estabeleceu sua política de cooperação para o desenvolvimento,

ressaltando que ela era a expressão do “senso de dever moral e da solidariedade

internacional” do país. A proposta do parlamento, aprovada por unanimidade, traz como

justificativa para a assistência sueca aos países pobres o reconhecimento de que paz,

liberdade e bem-estar devem ser direitos universais e indivisíveis, e não exclusividade

nacional. Apesar desses argumentos, o conhecimento do governo e da sociedade sueca

sobre os problemas do mundo não eram muito extensos, e sua experiência em

desenvolvimento se limitava ao próprio país, conforme critica a jornalista Anna Wieslander.

Para ela (2001),

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Aid as such a consequence of the European colonial image of Africans. It presuposses Africans as “the other”, as “they”, who need help from “us” to be admitted to international arena. This feeling of benevolent superiority was the basis of the Swedish national aid programme when it started in the fifties, and the first efforts were characterized by naivety and optimism.

As relações de cooperação trouxeram um novo cenário para a sociedade sueca, por

exemplo, com a vinda de estudantes africanos para as universidades, muitos deles

refugiados. Os jovens daquela sociedade extremamente homogênea começaram a ter

contato não só com outras realidades sociais, mas também com outras culturas, e até

mesmo com os diferentes aspectos raciais que, ainda naquela época, não se via na

Suécia.

Uma das mulheres que entrevistei, que nasceu em 1941, conta que, na infância, não

havia na sua escola nenhuma criança negra ou chinesa, por exemplo. Ela diz que a

primeira pessoa negra que viu causou uma sensação, porque na Suécia da época não se

encontrava nem mesmo frutas e vegetais de outras partes do mundo. Quando foi para a

universidade, em Lund, havia um programa de bolsas para alunos estrangeiros, e o

ambiente era muito favorável a esses novos colegas, a maioria vinda da África. As suas

lembranças não registram atitudes de estranhamento que a sociedade certamente teve, e

ainda tem, com a presença de estrangeiros. Segundo ela, pelo menos no meio

universitário, todos estavam muito curiosos com aquelas pessoas, suas culturas

diferentes, cor, língua etc. Não havia nenhum tipo de preconceito, mas sim uma grande

atração para conhecê-los.

Durante o trabalho de campo, encontrei muitas pessoas que estavam entrando ou saindo

da universidade no final dos anos 60. Elas descreveram um ambiente social em que havia

muita atenção voltada para a solidariedade internacional. As pessoas, por exemplo,

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usavam diversos tipos de buttons, através dos quais era possível mapear as diferentes

causas em torno do mundo, como o símbolo yin/yang, tão distante da simbologia

escandinava, mas que remetia à solidariedade com o povo chinês.

A sociedade sueca começa a se internacionalizar nesse período. Muitas das pessoas que

entrevistei durante o trabalho de campo atribuíram uma significativa importância à figura

de Olof Palme, que colocava em pauta grandes temas internacionais. Palme foi líder do

Partido Social-Democrata, ocupou importantes cargos políticos no governo sueco, tendo

sido primeiro-ministro de 1969 a 1976 e de 1982 a 1986, ano em que foi assassinado.

Uma das suas atitudes, que lhe rendeu destaque internacional, foi o discurso contra a

Guerra do Vietnã, em julho de 1965, quando era ministro de Assuntos Estrangeiros. Para

outras pessoas, no entanto, sua figura pública não teve tanto peso assim na

internacionalização da Suécia. É possível que, naquele contexto mundial, em que as

ideologias estavam nitidamente polarizadas, ele fosse mais reconhecido fora do que

dentro da Suécia. Ele recebia críticas muito fortes da esquerda, que preferia que o país

mostrasse uma postura mais radical contra o imperialismo. O trecho a seguir, de uma

entrevista com um dos militantes de esquerda desta época, ilustra o quero dizer:

Muitos políticos do Terceiro Mundo acharam que a Suécia tinha esse papel de “Voz do Terceiro Mundo”, mas aqui dentro da Suécia sempre criticamos o governo e a política, por não serem suficientemente diferentes. Na minha perspectiva, a política do governo sueco nunca era suficientemente radical. Então, meu papel nunca era agradecer a social-democracia por uma política que era muito melhor do que muitas outras, claro, mas que devia ter sido mais radical, ainda mais a favor dos interesses dos países pobres.

No entanto, vale comparar essa opinião com um trecho do discurso de Fidel Castro sobre

Palme, na ocasião de seu assassinato. Na sua avaliação, Olof Palme teria contribuído

enormemente para a imagem positiva que a Suécia adquiriu entre os países do Terceiro

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Mundo. Enquanto ele esteve no poder, Cuba ocupou lugar de evidência nas políticas

suecas de cooperação. Em suas palavras (CASTRO In HADJOR, 1988, p. 7):

Swedish Social Democratic policy antedated Palme. But when our never-to-be-forgotten friend assumed the chief responsibility for the government of Sweden, he introduced into his country’s foreign policy a heightened sense of awareness of international responsibility for development as a major responsibility for Swedes, given the backwardness that still prevails over vast areas of the world. This brought him very close to us, who speak for the world that is trying to develop itself. Even before I got to know him personally, a positive relationship had grown up between us, based on his clear internationalist stand on peace, on the arms race, on co-operation for development, on racism, and on other issues. When we met for the first time, we saw him emerge at the top of the aeroplane steps with that characteristic smile. Our people instantly recognized him as a friend who would not be deflected by possible ideological differences.

Nos primeiros anos da década de 70, chegaram à Suécia os exilados brasileiros e

chilenos. A situação do Chile motivou a opinião pública sueca a se posicionar a favor da

solidariedade internacional, mas o que mais contribuiu para o fortalecimento do

movimento solidário contra o imperialismo foi o clima ideológico e intelectual que se

formou durante a Guerra do Vietnã. O debate público na Suécia desse período questionou

a eficácia de um tipo de ajuda que apenas dava dinheiro aos países, sem se envolver de

fato com suas possibilidades de independência. A sociedade sueca esperava mais

envolvimento político de seu país nas suas relações internacionais de cooperação. Como

conseqüência, a Suécia passa a cooperar com Cuba, Chile, Vietnã, Laos, Angola,

Moçambique, Guiné-Bissau e, mais tarde, com a Nicarágua. (SELLSTRÖM, In ODÈN e

OTHMAN, 1989, p. 31)

A neutra Suécia recoloca, portanto, seu enfoque político no cenário internacional. Ela se

define claramente por uma posição que já se anunciava, por exemplo, desde o caso da

guerra contra a Argélia. Em 1959, durante a guerra entre a Argélia e a França, a Suécia

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surpreende a comunidade internacional tornando-se o primeiro país ocidental a votar na

Assembléia Geral das Nações Unidas a favor da autodeterminação do povo argelino. A

posição sueca representou uma clara mudança na sua política externa. Segundo a

cientista política Marie Demker (1998, p. 131) “after the Algerian decision in late 1959,

Sweden went through a foreign policy transformation which led to the so-called ‘active

foreign policy’ base don non-alignment and an active policy of neutrality”. A autora discute

as motivações suecas, como o reconhecimento do risco de a Argélia ser cooptada pela

União Soviética se nenhum país ocidental agisse contra a guerra da França, mas o meu

maior interesse neste caso está na afirmação de Demker, de que essa decisão abriu

caminho para mudanças na política externa sueca, que se tornou mais direcionada para

os assuntos do Terceiro Mundo. (Idem, p. 144)

Na verdade, não seria errado dizer que o chamado Terceiro Mundo foi “para dentro” da

Suécia, tanto com a presença física de estudantes e exilados quanto na condição de tema

de estudo e de formação política. Esse interesse motivou a organização de diferentes

grupos de solidariedade, e a ideologia tornou-se um recorte significativo na definição das

identidades de grupos. Essas novas organizações ofereciam um tipo de “treinamento

político”, principalmente para os jovens universitários de esquerda, que era voltado para a

realidade dos países pobres e que se apresentava com uma roupagem mais moderna do

que as velhas organizações sindicais.

Assim como acontecia em países colonizadores, os jovens suecos queriam ter o direito de

substituir o serviço militar por atividade pacífica, de ajuda humanitária. Conseguiram do

governo sueco a criação da escola de Sundsvall, que foi aberta também às mulheres.

Muitos dos interessados em questões internacionais, mas sem maiores afinidades com as

atividades missionárias, encontraram nessa escola o ambiente adequado às novas

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perspectivas de solidariedade internacional e de ajuda. Mais tarde, a maior parte das

pessoas recrutadas pelo governo e pelas ONG’s para trabalhar com cooperação para o

desenvolvimento veio desta escola.

Além disso, o movimento solidário da juventude sueca se colocava em oposição ao setor

privado. O apoio do empresariado à internacionalização da Suécia era motivado por

interesses comerciais, mas os seus investimentos se chocavam com os critérios

humanistas, que acabaram prevalecendo na política sueca de cooperação, pelo menos

como uma declaração formal.

A cooperação sueca do final dos anos 60 e começo dos anos 70 assume características

mais à esquerda do que o próprio governo social-democrata. A Suécia concorda em

apoiar, por exemplo, o Instituto Moçambique, que havia começado suas atividades em

1964, em Dar es Salaam, na Tanzânia, com recursos da Ford Foundation. Quando esta

retirou o seu apoio perante críticas de que estaria financiando a luta armada da Frelimo, o

governo sueco assumiu a responsabilidade

Conquanto as razões humanitárias tenham estado à frente das explicações sobre o apoio

sueco ao movimento de libertação de Moçambique, é bem provável que a Suécia tivesse

também outros motivos para isto. No começo dos anos 60, por exemplo, o casal Eduardo

e Janet Mondlane visitam o país em busca de apoio para o Instituto Moçambique. Na já

referida entrevista a Sellström (2002b, p. 45), Janet Mondlane disse que, por ter avós

suecos, sempre se sentiu de alguma forma ligada ao país, e pensou em ir lá pedir ajuda

para o Instituto Moçambique. Do encontro entre Eduardo Mondlane e Olof Palme,

segundo ela, resultou uma estreita amizade e o respeito mútuo. Alguns suecos com os

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quais conversei durante meu trabalho de campo explicavam as relações entre Suécia e

Moçambique como decorrência desta amizade pessoal, que foi também transmitida a

Samora Machel.

Na visita à Suécia, o casal Mondlane encontrou um ambiente muito favorável à causa do

povo moçambicano, principalmente pelo envolvimento da juventude na luta

antiimperialista que, segundo ela, não se restringia a uma aprovação teórica. Eles diziam

que, se realmente conhecessem os moçambicanos, provavelmente gostariam deles.

Esta citada predisposição para gostar dos mais fracos e se opor aos mais fortes facilitou a

criação de grupos de apoio como o GAS – Grupos de África da Suécia –, que começa sua

atividade em 1970 e torna-se uma organização nacional em 1974. O GAS reuniu pessoas

jovens e com mentalidade aberta, que contribuíram com tempo e/ou dinheiro para as

campanhas de apoio aos países africanos. Depois da libertação de Moçambique, seus

dirigentes são solicitados e encontrar pessoas que pudessem ir para o país para trabalhar

na sua reconstrução. Como não tinham nenhuma experiência em mandar pessoas para a

África, improvisaram um treinamento tão bem intencionado quanto experimental, mas

muito bem ancorado nas motivações ideológicas. No final das contas, o GAS, com apoio

da Sida, começou um contínuo processo de selecionar, treinar e enviar cooperantes para

Moçambique. Mas, naquele momento crucial, após a independência, um critério de

seleção importante era estar disposto a aprender fazendo.

Na outra ponta, em Moçambique, a palavra de ordem era encontrar ajuda. Em princípio,

contaram com os suecos para alertar a opinião pública sobre o que se passava nas

colônias portuguesas. O ex-presidente Joaquim Chissano, em entrevista a Tor Sellström,

diz que os suecos foram os que tiveram o melhor entendimento da situação moçambicana

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na comunidade internacional e que os países nórdicos abriram espaço para Moçambique

em fóruns como nas Nações Unidas. Segundo ele,

Our struggle was an armed struggle. What used to be the first emphasis form 1962 to 1964, that is, the use of international institutions and of public opinion in Europe, became in 1964 a second emphasis. We had, however, to have friends to push resolutions in the United Nations General Assembly and Security Council and we were sure that the Scandinavian countries were on our side together with most of the African countries. We used to consult with them and they took positions on our behalf. It was a big support. (In: SELLSTRÖM, 2002b, p. 39)

A ajuda externa definida pelo parlamento sueco tinha caráter humanitário e diplomático,

mas havia um grande interesse dos moçambicanos para que eles apoiassem também as

atividades armadas da Frelimo. A luta armada foi interpretada por alguns dirigentes da

Frelimo como uma imposição histórica, sem a qual jamais chegariam ao poder. Com base

nesse argumento da determinação histórica, insistiram com vários governantes e se

ressentiram com a Suécia que, pelos laços de amizade entre eles, não poderia ter se

restringido à ajuda humanitária. Mas a ajuda sueca à área militar só chegou em termos de

medicamentos, o que os deixou, conforme relataram, dependentes dos países socialistas.

(SELLSTRÖM, 2002, p. 49).

Apesar deste episódio, que gerou um certo mal-estar nas relações de cooperação Suécia-

Moçambique, o presidente Samora Machel menciona, em seu discurso para celebrar a

independência, a importância da ajuda dos países escandinavos. Depois da libertação, a

continuação da cooperação da Suécia com Moçambique foi vista como uma

conseqüência natural da amizade entre estes povos.

Na verdade, a sociedade moçambicana convive com agentes de programas de

cooperação internacional desde o período colonial, quer sejam os missionários religiosos

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ou os técnicos estrangeiros contemporâneos. Alguns países, como a União Soviética e a

China, em certos momentos, impuseram condições muito estritas para darem suporte a

Moçambique, privilegiando seus próprios interesses geoestratégicos. A ajuda estava

condicionada ao apoio às suas políticas e à oposição ao “imperialismo”.

Segundo Hanlon (1991, p. 1-2), as bases dessa ajuda ao governo socialista pós-

independência foram muito peculiares:

With independence in 1975, Mozambique set out to follow a different path from many other developing countries. It wanted a non-aligned foreign policy and a socialist domestic policy; development was to benefit the mass of the people and not just a privileged handful. Mozambique recognised many of the well-documented problems of ‘foreign aid’; for the first nine years of its independence, it kept many aid agencies out and negotiated clear relationship with those it allowed in. Most ONG’s were barred. Mozambique was not a member of the IMF, the World Bank, or the Lomé convention; it set its own goals and made its own mistakes. [...] Destabilisation was the result at horrific cost: more than a million dead and a material cost of more than $18 billion.

Provavelmente, uma explicação para essa “peculiaridade”, sem considerar suas nefastas

seqüelas, reside nas possibilidades de alianças que a Frelimo encontrou durante e logo

após a luta para se libertar de Portugal. Ao iniciar a luta armada, a Frelimo contou com a

forte aliança com os camponeses, e o apoio ocidental a Portugal acabou por dirigir as

relações internacionais da Frelimo para a China e a União Soviética. Além disso, a

herança colonial deixou uma sociedade civil fraca, um Estado quase sem capacidade

administrativa e um mercado pouco desenvolvido. Esses fatores contribuíram para que a

Frelimo se transformasse num partido marxista-leninista de vanguarda, esperando, com

isso, o aumento do apoio político e econômico da União Soviética. (ABRAHAMSSON;

NILSSON, 1995a).

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Esta é também a interpretação de Malyn Newitt sobre o estabelecimento das primeiras

parcerias com o Moçambique independente. Ele diz que “Frelimo felt it had firm friends in

a number of minor Western countries like Sweden and the Netherlands, and could look to

the Eastern bloc and its surrogates in Cuba for practical as well as diplomatic assistance.”

(NEWITT, 1995, p. 558)

Contudo, perguntar pela motivação da ajuda naqueles anos que se seguiram à

independência não se colocava como uma tarefa pertinente para as lideranças da

Frelimo. Um dos desafios principais do novo governo era criar uma nova vida para o povo

moçambicano e, para isto, era preciso apoio externo. Embora se perguntassem pelos

motivos que levaram os países nórdicos a se interessarem por Moçambique, estranhando

que um país tão distante deles, geograficamente, e tão diferente, em termos culturais, se

interessasse pelos seus problemas, sem fazer, por exemplo, exigências comerciais, lhes

pareceu mais racional se dedicarem a reunir o quanto de apoio conseguissem,

independente da motivação que os suecos pudessem ter. (SELLSTRÖM, 2002b) No

entanto, compreender esses motivos significa trazer mais transparência para o campo

conturbado das relações internacionais.

Além dos fatores já citados, é importante lembrar que, na condição de país neutro,

durante a Guerra Fria, a Suécia pôde desenvolver uma política externa e de segurança

independentes. A sua política de cooperação não seguiu, evidentemente, os mesmos

rumos das grandes potências, pelo fato de não ter atrelado a ajuda a nenhum tipo de

interesse comercial e político, pelo menos formalmente.

Não podemos nos esquecer, no entanto, de que o estado de bem-estar social da Suécia

assumiu uma série de compromissos internacionais, ao longo de sua história. Como o

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país entra no mundo dos doadores durante a Guerra Fria, é possível que tenha feito isto

motivado por suas necessidades de país neutro, geográfica e politicamente colocado

entre Washington e Moscou, e que precisava encontrar aliados para suas posições

políticas, sobretudo junto às Nações Unidas. Portanto, é possível que as antigas colônias

africanas, em processo de descolonização desde os anos 60, tenham se tornado um

atraente espaço vazio entre “the West and the rest” já que, à época, as grandes potências

pouco ou nada se interessaram por elas.

Os documentos oficiais sobre a política externa da Suécia, no entanto, nunca fazem

referência à cooperação internacional como parte de uma estratégia de segurança, ainda

que muitas pessoas que estiveram ligadas a programas de cooperação vejam aí a

verdadeira razão pela qual a “voz sueca” se levantou pelo Terceiro Mundo, ou seja, a

conquista de aliados na defesa de sua condição de país neutro.

Oficialmente, porém, a participação da Suécia em programas de cooperação é relatada

como sendo a expressão da responsabilidade do país e de sua sociedade no cenário

global, bem como uma contribuição para a sua internacionalização. Na verdade,

encontramos, historicamente, relevantes episódios em que a Suécia levantou sua voz em

favor de povos em situação de risco, como Vietnã, Chile, Angola, Moçambique etc.

Contudo, o termo internacionalização pode ter tido um significado subjacente, ou seja, por

intermédio das relações de cooperação, poderia conquistar aliados em defesa de sua

posição de país neutro, entre o capitalismo e o socialismo. Tal idéia tem sua base

histórica, uma vez que o poder mundial é, nesse momento, definido a partir de um jogo de

equilíbrio geopolítico dominado por dois jogadores: as superpotências Estados Unidos e

União Soviética.

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Atualmente, o sistema mundial adota um novo modelo de desenvolvimento que vem

substituindo as agendas bilaterais pela multilateral. A Suécia tem participado cada vez

mais de programas de cooperação que se desenvolvem através de acordos multilaterais,

destacando-se as suas novas atividades no âmbito da União Européia, da qual se torna

membro a partir de 1995. Na condição de parceira em grandes projetos, algumas vezes

abre mão de convicções antigas sobre ajuda externa.

Adiante, procuro demonstrar como a Sida lida com seus objetivos de manter um diálogo

com a comunidade internacional e as tendências sobre desenvolvimento, ao mesmo

tempo em que quer enfatizar as especificidades do modelo sueco diante do panorama

mundial.

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3

COOPERAÇÃO INTERNACIONAL SUECA

Apresento neste capítulo como a política sueca de ajuda externa é descrita nos

documentos oficiais da Sida, a mais importante instituição do país nas questões de

desenvolvimento, responsável tanto pela cooperação bilateral quanto pela multilateral,

que se dá através da UE – União Européia – e da ONU – Organização das Nações

Unidas –, bem como de Bancos de Desenvolvimento. Discuto também as diferentes

concepções da idéia de desenvolvimento no cenário internacional, pretendendo que esta

discussão sirva de base teórica para a compreensão das transformações e permanências

nas políticas suecas de ajuda externa.

A Sida publica uma grande quantidade de documentos. Um dos motivos para isto é,

provavelmente, a sua obrigação de prestar contas, de imediato, de todas as suas

atividades, a qualquer pessoa interessada, sobretudo ao contribuinte sueco. Examinei

muitos destes documentos, novos e antigos, mas, evidentemente, deixei muitos deles de

fora, tão grande é a produção disponível. Interessei-me em especial pelas claras

recorrências em seus conteúdos, porque pressupus que ali estaria uma chave para

entender, através de um discurso que é primeiramente técnico, como se constrói o

processo de legitimação da política externa sueca e a sua afirmação como um dos

elementos em torno dos quais a identidade coletiva daquela sociedade é tecida.

Esses documentos delimitam ações e seus focos geográficos e sociais, estabelecem e

justificam regras para a doação e para a avaliação de resultados, bem como distribuem

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papéis entre os atores envolvidos no jogo da doação. Eles provavelmente cristalizam uma

conjunção de forças que vai dar na formulação de políticas e são finalmente apresentadas

como se fosse uma declaração de intenções unânime. Ao apresentar políticas e

resultados, deixam de lado os processos, estes mais complexos do que o que

comumente se anuncia em manuais e fôlderes. Não são mentiras, mas também não são

toda a verdade.

Tornam-se significativos, portanto, para os objetivos da pesquisa, quando são cotejados

com discursos de outra natureza, como, por exemplo, os relatos dos cooperantes, que

falam a partir do lugar institucional que ocupam, mas também de suas condições de

indivíduos que são enfermeiros, médicos, professores, engenheiros, economistas,

antropólogos, jornalistas, sociólogos, advogados, ou, ainda, idealistas, comunistas,

apaixonados, desencantados, aventureiros, pais de crianças “mistas”, amantes eternos ou

abandonados, desempregados ou donos de carreiras promissoras.

A observação dos documentos me levou a destacar três temas que são reiterados com

constância e que acredito fazerem parte da cosmologia que compõe a visão dos suecos

sobre si mesmos: a reafirmação da reputação que levou a Suécia – um país que não teve

tradição colonialista – a ser conhecido como “a voz do Terceiro Mundo”, a partir de um

processo de “neutralidade ativa”, a defesa de uma “pureza” das doações suecas, que se

conquista mantendo o mercado a uma distância segura das políticas de doação, e o que

chamo, por falta de denominação mais adequada, de expressão de ressentimento,

provocado pelas mudanças que o país tem sido levado a fazer na sua política de ajuda

externa a partir de sua entrada na UE e da provável consolidação de uma tendência

internacional de cooperação multilateral e de projetos financiados e conduzidos por

multidoadores, onde antes prevaleceram relações bilaterais de longo prazo.

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Portanto, os documentos oficiais reforçam uma tradição que se constituiu desde o final

dos anos 50, realimentando elementos simbólicos que compõem a identidade sueca, para

dentro e para fora do país, algumas vezes incorporando significados presentes em uma

certa cultura da doação, que circula transnacionalmente entre os países ricos que se

reconhecem por uma mentalidade similar quanto aos valores que os orientam nas suas

formulações de políticas e estratégias de cooperação. Por outro lado, os documentos

oferecem também sinais de que esteja em andamento uma recomposição dessa

cosmologia, provavelmente provocada por agentes externos, a ponto de alterar o sentido

que os suecos atribuem às relações de cooperação da Suécia no século XXI.

Idéias em transição

Há uma correlação direta entre as transformações nas estratégias contemporâneas de

cooperação e nas mudanças na concepção de desenvolvimento. O debate sobre a noção

de desenvolvimento tem sido intenso nas Ciências Sociais, em instituições como as Nações

Unidas, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional etc., provavelmente por ser um

conceito central e de relevância social, política e econômica. Por esses motivos, acredito

que seja importante recuperar aqui alguns pontos deste debate. De uma maneira geral, ele

pode ser recortado em teses que tendem a sustentar que as políticas atuais para o

desenvolvimento são potenciais atitudes de redistribuição dos recursos globais e nas que

reforçam uma perspectiva crítica sobre o tema, realçando a dimensão ilusória do

desenvolvimentismo.

O peruano Oswaldo Rivero (2001), a partir de sua experiência de diplomata e consultor das

Nações Unidas, conclui que a idéia de desenvolvimento tem sido um dos mitos mais

persistentes da segunda metade do século XX, cuja origem estaria na ideologia de

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progresso material que o Iluminismo legou à civilização ocidental e que foi impulsionada

pela revolução industrial.

Tanto o mito do desenvolvimento impregnou a nossa civilização que houve até esplêndidas atitudes de voluntarismo internacional, como a proclamação pelas Nações Unidas do Direito de Desenvolvimento, isto é, o direito de todos os Estados subdesenvolvidos de terem níveis de vida e padrões de consumo como os dos Estados industrializados. (RIVERO, 2001, p. 128).

Durante a Guerra Fria, o mito do desenvolvimento dividiu-se em modelos antagônicos, o

comunista e o capitalista. A rivalidade entre eles teve, no entanto, pelo menos um ponto em

comum: considerar impensável uma eventual impossibilidade de desenvolvimento.

Rivero observa que teria sido esta certeza na eminência do desenvolvimento que levou às

mudanças nos conceitos utilizados para se referir aos países pobres. Nos anos 50, as

teorias do desenvolvimento transformaram os “países atrasados” em “subdesenvolvidos”,

termo de conotação estática, que não corresponderia ao ideal de existência de um

processo de transformação em direção ao progresso e, por isso, nos anos 60, dá lugar à

expressão “em vias de desenvolvimento”, posteriormente aperfeiçoada para “países em

desenvolvimento”.

Outros termos, como países “industriais” e “agrícolas”, ou do “Norte” e do “Sul”, queriam

demonstrar a crença na superação do abismo que, já nos anos 50, se aprofundava entre as

economias “centrais” e as “periféricas”. Esta não é uma simples questão de terminologia. É

surpreendente como neste campo os termos ganham força, espalham-se e são

internacionalmente adotados, quase como um mandamento religioso. Dilemas complexos

parecem ser facilmente solucionados pelo consenso em torno de um novo conceito, que

emerge, muitas vezes, sem efetiva discussão sobre seu significado.

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O mito do desenvolvimento pressupõe uma certeza evolutiva, um processo natural por meio

do qual os países em desenvolvimento copiam os países industrializados, “seus

antepassados na história do progresso mundial” (Idem, ibidem, p. 124).

Para Rivero, a ajuda internacional seria, paradoxalmente, a expressão da fragilidade do

mito do desenvolvimento. Depois de mais de meio século de investimentos das agências

internacionais, tanto em termos de recursos financeiros quanto de estratégias de

desenvolvimento, o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres continua a crescer.

Todos os países “em desenvolvimento” tiveram que sobreviver por quase todo o século XX com ajuda internacional, empréstimos oficiais e financiamentos privados, sempre caindo em inadimplência ou à beira da falência. Agora vão sobrevivendo, por enquanto, com privatizações e capitais voláteis do especulativo mercado financeiro global. (RIVERO, 2001, p. 135).

A idéia moderna de desenvolvimento é julgada hoje como sendo equivocada porque teria

contribuído, por exemplo, com a ampliação dos laços de dependência, com a destruição

ecológica, a superpopulação e a corrida armamentista (TENBRUCK, 1994). Além disso,

está associada à noção de progresso, que é apontada como uma das bases do discurso

colonial que descreve o colonizado como atrasado e o colonizador como o portador da

chave racional para o progresso (SAID, 1990).

Esta dicotomia entre colonizador e colonizado é de uma persistência notável e se desdobra

em diferentes perspectivas. Uma delas é a de que as nações ricas, exclusivamente pelo

feito de seu próprio progresso, aparecem neste contexto portando uma pretensa herança

intelectual do desenvolvimento. Tal herança é a condição que faz delas potenciais tutoras

das não desenvolvidas (COWEN e SHENTON, 1996).

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Além disso, a capacidade de desenvolver aparece associada à idéia de evolução, ou seja,

de estágios progressivos que vão da tradição para a modernidade. O pressuposto

recorrente em teorias distintas, como a neoliberal ou a marxista, é de que para ser

desenvolvido é preciso ser moderno e, como tal, todos, sem qualquer exceção, devem ser

conduzidos pela racionalidade e pela ciência. Um princípio confortável pela ótica dos que

formulam políticas de cooperação e dos que planejam ou avaliam programas de

desenvolvimento. Os abundantes casos de fracasso na promoção do desenvolvimento e na

melhoria do padrão de vida das populações-alvo de cooperação podem ser facilmente

justificados por idéias evolucionistas, que interpretam as culturas tradicionais, com seus

ritos e costumes, ora como um elemento de “pureza” a ser exaltado, ora como um entrave

ao desenvolvimento, o qual precisa ser superado (CREWE e HARRISON, 2002).

A tese que apontava as culturas tradicionais como entrave ao desenvolvimento tornou-se

conhecida como “teoria da modernização”, cujo postulado central foi de que os problemas

relativos à pobreza e à desigualdade social poderiam ser explicados pela condição cultural

dos povos do chamado Terceiro Mundo, resistentes à adoção das novas tecnologias

“salvadoras” dos países ricos. A superação da pobreza, neste caso, implicaria também a

superação de crenças, costumes, valores etc., vistos aqui como impedimentos ao

crescimento econômico e à universalização da modernidade.

Tal idéia circula no cenário internacional desde os anos 50 e, até os anos 70, podemos

dizer que prevaleceu a opinião de que os valores das populações tradicionais seriam um

impedimento para a aplicação dos métodos que levariam ao desenvolvimento rápido.

Portanto, não seria possível desenvolver sem mudanças culturais, na maioria das vezes em

nada apropriadas à história daquelas sociedades. Por este motivo, sustentava-se que estas

populações precisavam modernizar-se e que a assistência técnica, por uma pretensa

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conotação apolítica e desinteressada, seria a solução para apressar este processo.

(CREWE e HARRISON, 2002; GARDENER e LEWIS, 1996; WALLERSTEIN, 2002).

Na visão do antropólogo Ulf Hannerz (1998, p. 77),

La teoría de la modernización en la versión de hace unos treinta o cuarenta años – es decir, en los años cincuenta y sesenta – no resultaba muy atractiva para los antropólogos en comparación con lo que ocurría con otros científicos del campo social. Esta teoría partía de la premisa, más o menos etnocéntrica, de un único camino hacia el progreso, con tendencia dominante hacia las abstracciones analíticas tanto desde el punto psicológico como estructural. Todo esto no resultaba atractivo para aquellos que estaban dispuestos a valorar la diversidad cultural por derecho propio, y que se especializaban en su descripción, análisis y teorización.

Apesar das acusações de que a teoria da modernização, tal como construída naquele

período, encerrava um alto índice de etnocentrismo, os doadores e as agências de

cooperação pautam-se, em geral, pelos princípios e valores de uma Europa educada; o

cristianismo, a racionalidade burocrática, o dever moral, dentre outros que pertencem ao

elenco da modernidade, são normalmente admitidos como condições universais para o

desenvolvimento e o progresso.

Conforme observam diversos autores, uma outra condição que é apontada como essencial

para o desenvolvimento e o progresso é a conquista da evolução tecnológica (CREWE e

HARRISON, 1998; GARDNER e LEWIS, 1996; RIVERO, 2001). O elogio à tecnologia é

construído de modo a aparentar ser um processo neutro e científico. Porém, o

desenvolvimento tecnológico, neste contexto, é avaliado por parâmetros absolutamente

etnocêntricos – por exemplo, como sendo do domínio masculino e não do feminino, do

jovem e não do velho, das sociedades complexas e não das primitivas.

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Não ter acesso à tecnologia tornou-se um dos pilares básicos da exclusão. As estratégias

para o desenvolvimento geralmente superestimam o papel que o conhecimento tecnológico

pós-industrial tem na conquista do desenvolvimento, tomando-o por um recurso

universalmente aplicável. As antropólogas Emma Crewe e Elizabeth Harrison falam de um

certo fetiche da tecnologia nas intervenções para o desenvolvimento, quando tecnologia e

expertise são postas em oposição às práticas tecnológicas populares.

There has been a tendency to fetishize technology in much development intervention. “Underdeveloped” has been seen as synonymous with poorly developed technology or with lack of access to modern technology. At the same time, technology change is treated as value-free and neutral, with scant consideration of the next context in which it takes place. (Idem, 2002, p. 91)

No imaginário das agências de cooperação, conforme lembram as autoras, a tecnologia é

capaz, ao mesmo tempo, de proteger o meio ambiente natural e de promover maior

produtividade econômica, coisas que na prática são quase sempre excludentes.

A miséria científico-tecnológica é apontada também por Rivero (2001) como um dos

impedimentos para o desenvolvimento econômico das nações pobres, o que faz o

desenvolvimento da tecnologia figurar quase que invariavelmente entre os principais

objetivos dos programas de cooperação. Neste contexto, a falta de cientistas e de produção

em pesquisa é igualmente assinalada como barreira ao desenvolvimento – barreira que

deve ser superada com a ajuda externa.

Desse modo, Crewe e Harrisson (2002, p. 31) concluem que

there are two perceived engines for progress: technology and money. The importance of technology in Europeans images of modernity cannot be overstated. Non-European civilizations were measured according to their knowledge of European science and technology […].

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A fórmula ideal para o desenvolvimento que associa tecnologia e dinheiro marcou o cenário

dos anos 70. Ela pressupõe também que o desenvolvimento econômico seja um indicador

incontestável da qualidade de vida dos povos. Wallerstein (2002, p. 168) informa que,

naquela época,

a possibilidade do desenvolvimento (econômico) para todos os países virou uma fé universal, compartilhada por conservadores, liberais e marxistas. As fórmulas propostas por cada corrente para atingir o desenvolvimento eram debatidas intensamente, mas não a possibilidade em si.

Esta “fé universal” mencionada por Wallerstein não só gerou fórmulas ideais para o

desenvolvimento, mas também contribuiu com a proliferação de agências de cooperação,

governamentais ou não, encarregadas da sua implantação, e com a consolidação de um

novo campo de trabalho, que é o do expert, em programas de cooperação, profissionais ou

voluntários, com um pretenso domínio das técnicas corretas para o desenvolvimento.

A pretendida universalização da igualdade econômica é criticada pelo economista Amartya

Sen (2001), quando se propõe a reexaminar a desigualdade. A igualdade de algo, segundo

sua análise, aparece como uma característica comum a quase todas as abordagens da

ética dos ordenamentos sociais, na forma de diferentes “tipos de igualdades”, como

igualdade de renda, de bem-estar ou de direitos de liberdade, por exemplo. A necessidade

de qualificar o “tipo de igualdade” que diferentes grupos defendem deriva, para ele, da

diversidade real dos seres humanos no nível prático, “de tal modo que exigir a igualdade

em termos de uma variável tende a ser incompatível – de fato e não somente em teoria –

com querer a igualdade em termos de outra.” (SEN, 2001, p. 23). Segundo o economista,

os igualitaristas geralmente negligenciam as diversidades internas (como sexo, idade,

talentos particulares, entre outros) e externas (por exemplo, patrimônios disponíveis e

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ambientes sociais) que fazem com que a igualdade em um campo acabe por implicar a

impossibilidade de igualdade em outro.

Investigações da igualdade – tanto teóricas como práticas – que são seguidas utilizando a suposição de uma uniformidade antecedente (incluindo a pressuposição de que “todos os homens são criados iguais”) desconsideram um aspecto muito importante do problema. A diversidade humana não é nenhuma dificuldade secundária (a ser ignorada, ou ser introduzida ”mais tarde”); ela é um aspecto fundamental do nosso interesse na igualdade. (SEN, 2001, p. 24)

Além do que, a diversidade humana resultaria também em divergências na avaliação da

igualdade em termos variáveis diferentes, como renda, riqueza e felicidade. Para Sen

(2001, p. 31), “a igualdade em termos de uma variável pode não coincidir com a igualdade

na escala de outra”, constatação que o faz defender a idéia de um igualitarismo diverso,

distinto de um igualitarismo onipresente nas principais teorias éticas do ordenamento social.

Essas diferentes teorias, ele observa, não adotam como tema central a questão “por que a

igualdade?”, uma vez que, mesmo tendo focos variáveis, são todas igualitárias, em última

instância. A questão relevante, neste caso, seria: “igualdade de quê?” Porque as teorias

vão apresentar respostas diferentes, baseadas em distintas abordagens conceituais, que

exigem a igualdade de “algo” que é considerado particularmente importante para cada uma

delas. Empiricamente, no entanto, as heterogeneidades humanas farão com que a

igualdade seja diferente de um espaço para outro, o que reforça a conclusão do autor de

que ser igualitário não é uma característica unificadora.

De fato, é precisamente porque existem tais diferenças substantivas entre aprovação de diferentes espaços nos quais a igualdade é recomendada por distintos autores que a semelhança básica entre eles (na forma de querer a igualdade em algum espaço que é visto como importante) pode estar longe de ser transparente. Isto é especialmente assim quando o termo “igualdade” é definido – implicitamente, como é típico – como igualdade num espaço particular. (Idem, p. 45)

Na verdade, os projetos desenvolvimentistas, desde os anos 50, não foram capazes de

enfrentar as complicações teóricas e empíricas relativas à conquista da igualdade

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econômica entre as nações, tampouco reduziram o fosso entre o nível de riqueza do núcleo

capitalista e o resto do mundo. Para Giovanni Arrighi (1997), o que houve foi a legitimação

de uma ilusão do desenvolvimento, num processo que acabou por ampliar ainda mais a

distância entre esses dois mundos. No sistema mundial, conforme ele analisa, as

oportunidades de avanço econômico são seriais, ou seja, se apresentam para um Estado

de cada vez e não igualmente para todos. Desta forma, a riqueza dos Estados do núcleo

orgânico capitalista “não pode ser generalizada porque se baseia em processos relacionais

de exploração e processos relacionais de exclusão que pressupõem a reprodução contínua

da pobreza da maioria da população mundial.” (ARRIGHI, 1997, p. 217). Por exploração, o

autor entende a pobreza dos países periféricos, que faz com que participem da divisão

mundial do trabalho por recompensas marginais, enquanto os maiores benefícios vão para

os países centrais. Por exclusão, refere-se às condições favoráveis aos países centrais

para o uso e gozo de recursos escassos, ou que estão sujeitos a acumulação anormal.

Esses dois processos são complementares e ampliam as condições favoráveis das nações

capitalistas, o que faz Arrighi concordar com Wallerstein, quando diz que “desenvolvimento

nesse sentido é uma ilusão”. (Idem, ibidem).

De fato, ao longo da segunda metade do século XX, houve uma sensível queda na

economia, fuga de capitais e endividamento externo de muitos países. O modelo de

desenvolvimento baseado na assistência técnica e na reforma interna passou a ser

questionado, como também seus ideólogos, a partir da metade dos anos 70.

(WALLERSTEIN, 2002)

As políticas de modernização começam a dar lugar a uma outra perspectiva de ajuda,

voltada para o combate à pobreza e focada nas “necessidades básicas” dos grupos-alvo da

cooperação, muito mais do que para a promoção da modernização e da industrialização.

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Assume-se, neste caso, que certos grupos teriam necessidades semelhantes e que

deveriam ser organizados para participar de projetos de interesse comunitário.

A introdução de técnicas modernas nos países periféricos, reconhecem agora, gerou

conflito com as culturas locais. Estas não são mais tidas como obstáculos ao

desenvolvimento e passam a ser vistas como um positivo elemento de resistência, ao

menos no discurso das organizações internacionais. E o modelo de “desenvolvimento

correto”, conforme se anuncia ao mundo, seria o desenvolvimento sustentável.

A idéia de desenvolvimento sustentável interessou a diferentes tipos de analistas, desde o

seu surgimento, em finais dos anos 80. Uma discussão ampla do assunto, apesar de sua

relevância, extrapolaria o objetivo central da tese, motivo pelo qual limito-me a lembrar que

a nova proposta foi arquitetada como resultado de uma comissão independente,

estabelecida pelas Nações Unidas em 1983 – The World Commission on Environment and

Development –, com a tarefa de examinar as condições em que se encontravam os

problemas ambientais e de desenvolvimento no mundo, para assim formular “propostas

realistas para solucioná-los”. A Comissão foi presidida por Gro Harlem Brundtland, primeira-

ministra da Noruega, motivo pelo qual seu documento final, Our Commom Future,

divulgado em 1987, tornou-se conhecido como “Relatório Brundtland”.

Na verdade, os primeiros sinais públicos de preocupação da comunidade internacional com

relação aos limites do desenvolvimento no mundo surgiram ainda na década de 70. O dado

histórico de maior relevância neste contexto foi a Conferência sobre o Meio Ambiente de

Estocolmo, promovida pelas Nações Unidas em 197222, que discutiu oficialmente, pela

22 Também no início da década de 70, pesquisadores conhecidos como “Clube de Roma” divulgaram o relatório The limits to growth, que analisava a produção e o consumo dos recursos globais e anunciava a

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primeira vez, os riscos causados ao meio ambiente pelo modelo de progresso adotado até

então.

Desenvolvimento sustentável, definido no Relatório Brundtland como o desenvolvimento

que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações

futuras de satisfazerem suas próprias necessidades, foi, portanto, a fórmula apresentada

como a solução para a tarefa complexa e talvez paradoxal de afinar economia e ecologia e

equilibrar tecnologia e meio ambiente. Para Giddens (1999, p. 66), essa definição é

enganosa e simples, “uma vez que não sabemos quais serão as necessidades das futuras

gerações, ou de que modo a utilização do recurso será afetada pela mudança tecnológica;

a noção de desenvolvimento sustentável não permite precisão.”

Resumidamente, desenvolvimento sustentável pressupõe que as “necessidades básicas”

das populações – educação, alimentação, saúde, lazer, entre outras – sejam satisfeitas

dentro de um espírito de solidariedade com as gerações futuras, ou seja, preservando o

meio ambiente. Além disso, a preservação dos recursos naturais deve ser feita com a

“participação” das populações envolvidas, a fim de promover sua “conscientização” sobre a

necessidade de conservação e sobre a parte que lhes cabe para isto, o que implica

também a existência de programas efetivos de educação ambiental. O sistema social deve

estar direcionado para a erradicação da miséria, garantindo emprego e segurança social,

assegurando o respeito à diversidade cultural e às populações indígenas, como também

eliminando preconceitos e, sobretudo, a opressão dos povos vulneráveis.

possibilidade de um colapso num prazo de 100 anos, caso a humanidade não revertesse alguns danos feitos à Terra e não passasse a se desenvolver segundo meios mais apropriados e eficientes. Em 1975, as Nações Unidas encomendaram à Fundação Dag Hammarskjöld, instituição sueca que leva o nome do segundo secretário das Nações Unidas (1953 – 1961), um relatório que foi elaborado com colaboradores de 48 países e que acusava os países coloniais de promover a devastação ambiental em suas colônias. Estas iniciativas tiveram em comum o fato de tornarem as questões ambientais relevantes nas discussões sobre desenvolvimento e de endereçarem críticas ao progresso inconseqüente promovido pelos governos dos países industrializados.

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A atenção às culturas locais, ressaltada nas novas recomendações internacionais para o

desenvolvimento, traz uma nova perspectiva para este campo. Onde antes se viam as

populações tradicionais e suas manifestações culturais como um empecilho ao

desenvolvimento, agora se vê como uma solução.

Como decorrência dos trabalhos da The World Commission on Environment and

Development, as Nações Unidas realizaram a Conferência das Nações Unidas sobre Meio

Ambiente – Eco 92 –, no Rio de Janeiro, em 1992. Um de seus principais resultados foi,

certamente, o documento chamado de Agenda 21, um acordo de longo prazo que deveria

guiar o desenvolvimento futuro, conforme escreve Michael Keating (1993, p. x):

The Rio Declaration states that the only way to have long-term economic progress is to link it with environmental protection. This will only happen if nations establish a new and equitable global partnership involving governments, their people and key sectors of societies. They must build international agreements that protect the integrity of the global environment and the development system.

As novas recomendações para o meio ambiente e desenvolvimento pedem também a

expansão das instituições internacionais de cooperação. As agências internacionais, por

seu turno, julgam ter encontrado uma alternativa ao modelo de desenvolvimento que

imperou nas décadas seguintes ao fim da Segunda Guerra que, ao que se pode avaliar

hoje, teria levado a alguns equívocos. Por outro lado, o desenvolvimento sustentável,

conforme proclamam, levaria à redução da pobreza, à criação de empregos, ao

gerenciamento adequado do meio ambiente, ao estabelecimento de políticas

participatórias, essenciais a uma vida mais saudável, igualitária e, obviamente, sustentável.

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As metas sociais para o desenvolvimento sustentável, entretanto, não diferem

fundamentalmente de outros conjuntos de propostas para o desenvolvimento de qualquer

época a não ser pela ênfase no princípio que postula que as ações desenvolvimentistas

devem considerar seus impactos para as gerações futuras. O relatório faz recomendações

institucionais e legais para o enfrentamento dos problemas globais comuns sem ser

contundente com relação aos Estados e mercados. O enfoque escolhido, associado à

maleabilidade do conceito, provavelmente contribuiu para que desenvolvimento

sustentável, políticas participatórias, boa governança, igualdade de gêneros etc. se

tornassem temas acoplados aos discursos de políticos tanto conservadores quanto social-

democratas, como, por exemplo, grupos ambientalistas, bancos de desenvolvimento,

agências governamentais, ONG’s, grupos de base e do setor privado.

O discurso sobre desenvolvimento sustentável se alastrou pelos anos 90 com temas

recorrentes, como boa governança, igualdade de gênero e os buildings, como capacity

building e institution building, vistos como novas forças capazes de promover as mudanças

sociais e políticas necessárias. A nova idéia exigiu também que se fizessem mudanças

estruturais nas políticas de cooperação. No entanto, conforme nos lembra Michael Edwards

(2000, p. 215), estas políticas parecem oferecer “soluções fáceis para dilemas complexos”,

dentro de uma perspectiva segundo a qual “técnicos de programas de desenvolvimento

algumas vezes romantizam a tradição e ignoram as relações de poder, desigualdades e

limitações que existem em todas as comunidades”.

Com a introdução da idéia de desenvolvimento sustentável e sua nova cosmologia, o

sistema internacional de cooperação se faz agora representar como portador de uma

sintonia nunca antes alcançada, mas deixa transparecer ruídos de sua possível ineficácia,

uma vez que a humanidade continua diante de novos e velhos desafios, como diminuir as

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desigualdades sociais e econômicas entre sociedades pobres e em ricas e desmobilizar as

novas ameaças à segurança coletiva, atualmente mais complexas e difusas, tais como as

novas questões econômicas que caracterizam as transações globalizadas, ameaças

ambientais, pobreza, migrações, problemas étnicos e religiosos.

É preciso comentar também que, a partir dos anos 80, o Banco Mundial e o FMI tornam-se

organizações mais poderosas do que os Estados Nacionais no que se refere à formulação

de regras do jogo econômico internacional, sobretudo quando se trata da política

econômica dos países pobres. Tal poder resulta, segundo Rivero (2002), da pressão dos

bancos transnacionais e dos governos credores, preocupados com o pagamento da dívida

externa, que acabou por legar a estas instituições um poder supranacional de supervisionar

as políticas econômicas e financeiras dos países pobres. Conseqüentemente, passam a

assumir um papel relevante também quanto à formulação das políticas de cooperação com

esses países, impondo regras que não entrem em choque com as suas, especialmente no

que se refere ao livre mercado e à privatização da economia.

Podemos dizer que essas organizações, ao adotar o desenvolvimento sustentável como a

nova bandeira para um novo mundo que se constitui com o fim da Guerra Fria, não

abandonaram a noção de desenvolvimento como crescimento econômico. Este ainda é um

objetivo forte para o Banco Mundial e o FMI. A industrialização, da mesma forma, continua

a figurar entre as principais estratégias para o crescimento econômico, aliada a evolução

tecnológica, modernização e urbanização. Vale lembrar que, pela ótica dessas

organizações, crescimento econômico não necessariamente significa erradicação da

pobreza, podendo conviver com o analfabetismo, a falta de habitação e sistema de saúde

precário.

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Penso que a concepção teórica de desenvolvimento, suas mudanças e permanências,

que procurei descrever nesta sessão, terão seu impacto no modelo sueco de cooperação

que começou a se constituir na transição dos anos 60 e 70 do século XX, bem como nas

adaptações deste modelo ao panorama mundial, registrado nas décadas seguintes.

Sida, a Nave Mãe

O primeiro órgão do governo sueco voltado para a ajuda externa foi criado em 1962,

como uma Comissão para Ajuda Internacional, ou NIB – do sueco Nämnden för

internationellt bistånd. Esta Comissão foi substituída, em 1965, pela primeira versão da

Sida – Autoridade Sueca para o Desenvolvimento Internacional. A velha Sida, como é

chamada atualmente, foi reformulada em 1995, dando lugar à nova Sida, sigla que passa

agora a significar Agência Sueca de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento

(Styrelsen för internationellt utvecklingssamarbete).

Após sua criação, em 1965, a Sida precisou de diferentes tipos de suportes, o que levou

ao surgimento de outros quatro órgãos ao longo dos anos 70 e 80: o Conselho Sueco de

Investimento Financeiro e Técnico (BITS), a Agência Sueca para a Cooperação em

Pesquisa com Países em Desenvolvimento (SAREC), a Corporação Internacional Sueca

de Empreendimentos de Desenvolvimento (SWEDECORP) e o Sandö Centro de Cursos.

Todos esses órgãos foram agrupados na nova Sida a partir de 1995, formando uma única

agência de cooperação. O motivo alegado para a fusão foi de que não fazia sentido dividir

as competências para promoção do desenvolvimento humano por organismos distintos.

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Além disso, justificaram, era necessário fazer frente às novas tendências mundiais de

cooperação e aos interesses da Suécia diante das modificações da Europa e do mundo:

The world has changed radically in the last 30 years. That requires a different type of development assistance, more holistic and cooperative. Using new, flexible methods which can rapidly adapt support to new conditions. This is why the new Sida was born on July 1st 1995. It was formed by merging the five different government authorities which had previously dealt with development assistance – BITS, Sarec, Sandö Course Centre, SIDA and SwedeCorp. The aim is to create more efficient Swedish development assistance. (SIDA, 1995).

O foco da cooperação sueca em relações bilaterais de longo prazo foi, de alguma forma,

alterado a partir de 1995. As mudanças não implicaram, no entanto, diminuição do

orçamento disponível para os programas de cooperação. Como, de fato, em 1996,

quando estas decisões foram tomadas, a Sida administrou cerca de 9 bilhões de coroas

suecas, e o orçamento definido para 2006 para cooperação internacional é de 16,7

bilhões23 de coroas suecas. Este valor corresponderá ao tão almejado e igualmente

flutuante objetivo de aplicar 1% do PIB – Produto Interno Bruto – em ajuda externa.

Vale explicar que, desde 1968, o Parlamento sueco decidiu que aumentaria gradualmente

o orçamento da ajuda externa, até que 1% de toda a produção do país fosse destinada a

programas de cooperação para o desenvolvimento. O indicador definido foi mantido entre

1975 e 1993, mas a porcentagem da ajuda tem variado ao longo dos anos ao sabor das

crises econômicas, ficando entre 0,7% e 1%. Conforme anunciado pelo Parlamento em

20 de setembro de 2005, este objetivo será atingido em 2006, e há proposta de mantê-lo

até 2008. O indicador, mesmo com suas flutuações, contribui para a boa reputação da

Suécia entre os doadores, uma vez que são muito poucos entre eles que consideram

seriamente este objetivo e também por marcar uma posição favorável entre os países

23 Pelo câmbio de novembro de 2005, aproximadamente US$ 8,2 bilhões. www.sida.se.

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escandinavos, que têm mantido uma tradição de revezamento entre os primeiros lugares

dos melhores indicadores mundiais, tanto de bem-estar interno quanto de políticas

externas. É, portanto, motivo de orgulho nacional, conforme nota na home page da Sida

(2005):

This year's budget brings Sweden's aid contribution to 1 percent of gross national income (GNI) for 2006. According to the budget proposal, Sweden will maintain that 1-percent level in 2007 and 2008. The increase puts Sweden among the top two countries that give the highest share of GNI for initiatives to end poverty around the world.

A definição das diretrizes da cooperação sueca para o desenvolvimento tem forte

fundamentação política. Como já foi dito, é o Parlamento Sueco que aprova o orçamento

do governo, que deve especificar, nas suas diretrizes anuais, os gastos que terá em suas

diversas atividades, bem como os resultados que pretende atingir com esses gastos.

Parlamento e governo, juntos, decidem com quais países a Suécia deve cooperar. A Sida

recebe recursos diretamente ou através do Ministério de Assuntos Estrangeiros, ficando

responsável pela administração de cerca de 60% do orçamento total destinado à

cooperação. Cabe ao Ministério de Assuntos Estrangeiros a liberação do restante, que é

destinado à cooperação multilateral, através da ONU, Banco Mundial e outras agências.

Entendo que a missão estabelecida para a nova Sida reflete as tendências mundiais de

desenvolvimento, principalmente pelas referências ao desenvolvimento sustentável e ao

primado do conhecimento e da técnica em seus documentos oficiais.

Sida’s task is to make sustainable development possible and thus make development cooperation superflous in the long run. Our principal method is capacity and institution development. Knowledge is our most important resource. (SIDA, 2001, p. 62)

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Nos últimos dez anos (1995 a 2005), os objetivos específicos da cooperação sueca,

adotados pelo Parlamento, mantiveram-se quase inalterados. Os cinco objetivos –

crescimento econômico, igualdade econômica e social, independência política e

econômica, desenvolvimento democrático da sociedade, uso sustentável dos recursos

naturais e proteção ao meio ambiente – foram acrescidos de mais um: igualdade entre

mulheres e homens.

Depois da definição das políticas, juntamente com o Ministério de Assuntos Estrangeiros,

cabe à Sida elaborar as Estratégias de Cooperação que dizem ser “the most important

instruments that govern Swedish development cooperation with countries and regions”24.

As estratégias, segundo divulgam em diversos documentos impressos e na internet, são

desenvolvidas em conjunto, na sua maioria, e com base em diálogo, parcerias, acordos e

em valores comuns, que pensam ser sempre possível descobrir entre doadores e

receptores. A partir das estratégias é que se define o planejamento para cada país com

os quais têm cooperação bilateral, o qual é formalizado em um plano com duração de três

anos25.

Os procedimentos para a formatação dos planos específicos para cada país são descritos

como totalmente participativos e democráticos. Envolvem os técnicos da Sida em

Estocolmo, os que estão em atividades de campo e as embaixadas suecas nos países

24 No caso da ajuda humanitária, cuja necessidade pode ser muitas vezes imprevisível, torna-se aceitável admitir estratégias “informais”, o que certamente contempla algum índice de improvisação. 25 Esses planos são invariavelmente mencionados pelos cooperantes mais jovens como um instrumento notável, mas, entre os cooperantes pioneiros, são criticados como sendo um incompreensível entrave burocrático à cooperação. Uma certa burocratização excessiva das estratégias de cooperação da Sida foi mencionada como uma das razões pelas quais alguns experts suecos em cooperação não se interessavam em trabalhar na agência. Apesar das críticas, a observação deste documento relativo a Moçambique me foi sempre recomendado pelos meus informantes, o que, evidentemente, acatei. As estratégias e planos para Moçambique serão objeto de discussão adiante.

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receptores – os escolhidos para esta tarefa, conforme anunciam, “possess extensive

specialist knowledge on both development matters and individual countries”. (SIDA, 2005).

Entendo este comentário como a afirmação de que desenvolvimento é uma condição que

depende da aquisição de um conjunto específico de conhecimentos que a Suécia possui

e que faz do país um jogador importante na cooperação para o desenvolvimento. Seu

capital, neste caso, não é apenas econômico, mas também científico e tecnológico.

A citação a seguir ajuda a evidenciar a posição da agência sueca quanto a este capital:

Recentes eventos em países em desenvolvimento têm demonstrado dois fatores importantes: primeiramente, que o crescimento do nível geral de educação pode ser de crucial importância para o desenvolvimento econômico e social. Segundo, que maiores esforços em educação são necessários, mas não serão suficientes, a menos que outra função importante na sociedade também trabalhe propriamente. O desenvolvimento de knowledge, a longo prazo, é importante, mesmo em programas de assistência humanitária, que freqüentemente aparecem na superfície como de curto prazo. (SIDA, 2002)

Quando os textos da Sida ressaltam um tipo específico de knowledge26 que qualifica sua

equipe de profissionais, podemos supor que os demais atores envolvidos em programas

de desenvolvimento, ou seja, representantes de outros Estados, de ONG’s, das igrejas e

das comunidades, não são indistintamente reconhecidos como naturalmente capazes de

promover o desenvolvimento. Falta a eles “algo” que os autorize a tomar as decisões

corretas nos processos de implantação e gerenciamento dos projetos de desenvolvimento

e, por conseguinte, coloca-os a um passo atrás dos portadores de knowledge, como a

Suécia acredita ser.

Ainda que o discurso oficial da Sida fale de redução de dependência à ajuda externa, em

sustentabilidade e em mobilização de recursos humanos locais, o pressuposto de que

26 O conceito será mantido aqui em inglês porque sua tradução direta para conhecimento, habilidades etc. não seria suficiente para alcançar o sentido provavelmente idealizado que adquire neste contexto.

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existam alguns mais competentes do que os outros para promover o desenvolvimento não

deixa de ser uma visão etnocêntrica. Uma perspectiva que, pelo lado das sociedades

pobres, pode ser um instrumento de dependência, e, pelo lado das ricas, de poder.

Numa atitude que parece querer ser de autocrítica, encontramos nos documentos da Sida

referência a um passado em que se acreditava na eficácia da “transferência” de

knowledge. Um equívoco, segundo eles, que não respeitava as capacidades locais. Hoje,

entendem que seria muito mais adequado falar em “capacitação” para o desenvolvimento

de knowledge. No entanto, as relações de capacitação são descritas como uma via de

mão única, que vai do doador ao receptor. Os documentos da Sida não descrevem

processos de cooperação em que os suecos participem de um processo de troca, dando

e recebendo27.

Paralelo ao fato de declararem que os que moram no país ou na região são os que

melhor sabem o que é bom para o desenvolvimento, chegar a um futuro almejado

depende de treinamento para técnicas que fazem parte do repertório dos doadores e não

das comunidades locais.

A partir dos anos 90, como parte de mudanças maiores que se seguiram ao fim da Guerra

Fria, cresceu o interesse das agências pela ajuda baseada em knowledge, como um novo

recurso e uma nova linguagem a serem incorporados nas agendas de cooperação para o

desenvolvimento. Este fenômeno foi amplamente examinado por Kenneth King e Simon

McGrath a partir de estudo comparativo das cooperações britânicas, japonesas, suecas e

do Banco Mundial. Para eles, a Suécia “appeared to be a leader in thinking and practice

27 Entretanto, é necessário lembrar que os cooperantes que entrevistei relataram importantes conhecimentos adquiridos em campo, tanto para sua vida particular quanto profissional.

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about key trends in development co-operation such as sector-wide approaches and

nationally led development partnership.” (KING e McGRATH, 2004, p. 4)

Segundo os autores, a necessidade de knowledge, uma idéia que tem suas raízes na

economia política e nos estudos gerenciais, passou a figurar como tema central da nova

agenda mundial de cooperação, entendido como a condição essencial para o sucesso

econômico e a chave para o desenvolvimento. Eles avaliam que a tendência mais comum

das agências foi a transferência de conhecimentos baseados em suas teorias

universalizantes. “Although the language of partnership has been accorded more

importance, the language of conditionalities remains in new forms, such as the

International Development Targets.” (Idem, p. 44)

Segundo a análise de King e McGrath, o modelo sueco é caracterizado por uma

composição de três conceitos complementares: knowledge, aprendizagem e capacitação.

Eles acreditam que, devido à tradição sueca de educação de adultos28, os dois últimos

acabam tendo maior peso do que o primeiro.

Ainda que os autores digam que têm uma visão positiva do discurso da agência sueca

sobre knowledge, por apresentar uma abertura e reflexividade incomuns entre as

agências de cooperação, entendem que esta linguagem não é igualmente aplicada nos

documentos nos quais as políticas suecas para o desenvolvimento são formuladas, como

nos Programas de Ação. Concordo com a opinião de King e McGrath, que consideram

frágil o engajamento da Sida com seus parceiros na elaboração dos Programas de Ação,

28 Educação de adultos na Suécia não significa alfabetização ou educação formal, mas uma gama muito ampla de cursos com característica de extensão, normalmente oferecidos nas chamadas folkskolan, que são muito populares em todo o país.

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mesmo que a descrição do processo de elaboração desses documentos seja abundante

de reflexões igualitárias.

Podemos entender a valorização do conhecimento, habilidades e competências do expert

estrangeiro nos programas de desenvolvimento como o reconhecimento de um

mecanismo comum das sociedades modernas, que Anthony Giddens (1991, p. 35)

chamou de sistema perito (expert sistem), ou seja, “sistemas de excelência técnica ou

competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social

em que vivemos hoje”. Estes sistemas dependem de confiança, o que, por sua vez,

requer capacidade de abstração para confiar em algo que não se pode conferir por si

mesmo, tal como a competência e autenticidade do conhecimento perito (expert

knowledge).

De acordo com a teoria de Giddens, podemos dizer que, nas relações de cooperação

para o desenvolvimento, as pessoas tendem a confiar em sistemas peritos porque, em

geral, não têm iniciação naqueles processos que atestam levar ao desenvolvimento e

nem domínio do conhecimento que eles produzem. São, portanto, levados a uma atitude

pragmática de acreditar que tais sistemas funcionaram como o esperado. Giddens (1991,

p. 41) entende confiança, neste contexto,

Como crença na credibilidade de uma pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos, em que essa crença expressa uma fé na probidade ou amor de um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico).

Para ele, a confiança em sistemas abstratos – como os sistemas peritos – é uma

característica das instituições modernas. A modernidade está orientada para o futuro e se

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estrutura na confiança em conhecimento técnico, a ponto de fazer disso um fetiche

contemporâneo, como já foi dito anteriormente.

Os atores leigos legitimam os sistemas peritos, não somente pela sensação de segurança

que isto gera, mas por uma questão de cálculo de vantagens e risco que não é oferecido

pelo sistema perito. Para isto, os agentes fazem uso da sua capacidade reflexiva e

construtiva, mas, segundo Giddens, fazem-no de acordo com seus recursos e

condicionamentos estruturais. Para melhor situar o fenômeno da reflexividade, cito José

Maurício Domingues (2001, p. 35):

De maneira geral, se aponta para uma capacidade de tecer símbolos, perceber sua situação no mundo e alterar tanto os símbolos quanto a interpretação do lugar que nele ocupamos, o que conjura simultaneamente uma reinterpretação do significado do passado e das possibilidades do futuro.

Vale lembrar que o futuro pode não vir a ser o que se espera, porque os peritos podem

errar, por erro de interpretação ou porque não têm tal perícia, como julgam possuir. Sendo

assim, a confiança nos doadores e em seus sistemas abstratos não depende, pelo menos

diretamente, de resultados bem-sucedidos do conhecimento que alegam ter. De acordo

com Giddens, a confiança, em situação de modernidade, não é, necessariamente, um

sinal de dependência passiva, mas da aceitação tácita de circunstâncias nas quais não há

possibilidade de encontrar alternativas.

Um país como Moçambique, que ainda nos tempos atuais depende muito da ajuda

externa para fechar seu orçamento, provavelmente não poderia formalizar uma eventual

falta de confiança nos sistemas peritos internacionais e abandonar um relacionamento

doador-receptor. A linguagem usada pelas agências de cooperação, repleta de termos

técnicos e de conceitos de definição complexa, assim como os complicados formulários

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de apresentação de projetos e as estratégias de acompanhamento e avaliação, muitas

vezes esgotam os dirigentes dos países pobres, que, para alavancar uma modesta

quantia de dinheiro para um pequeno projeto, precisam de inúmeras horas de dedicação

às exigências dos doadores.

No que tange à Sida, se os teóricos que dizem que desenvolvimento se faz com dinheiro

e tecnologia estiverem certos, pode-se concluir que um grande poder de decisão está

concentrado nas mãos de seus experts. Isto faz dela, em termos de capital tanto

financeiro quanto de knowledge, a instituição mais poderosa na definição dos objetivos e

dos processos de cooperação na Suécia. Uma espécie de nave mãe, à qual as outras

organizações suecas estão, de alguma forma, ligadas.

Na prática, este poder não é adquirido assim tão simplesmente, uma vez que depende da

decisão do Parlamento e, antes de tudo, do imposto pago pelo cidadão sueco, que é

quem, em última instância, financia a cooperação da Suécia com os pobres do mundo.

Eles também precisam, portanto, confiar na correção de seus princípios abstratos.

A Sida, no entanto, parece reconhecer a importância deste ator e a necessidade de obter

sua confiança. Desde 1975, faz-lhe consultas periódicas por meio de pesquisas e,

conforme se pode ver, os resultados têm confirmado as políticas em andamento:

The number of Swedes who want to reduce the development cooperation budget or do away with it completely are decreasing. This is shown in the latest survey of Swedish attitudes to international development cooperation. The survey also shows that an increasing number of people are undergoing a change: from negative to uncertain. The questionnaire was distributed at the end of last year to 2000 people in different professions and in different age groups from 15 to 79 years. Half of these people responded, which according to Statistics Sweden, makes the results reliable. (SIDA, 2005).

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Estes dados nos levam a supor que a solidariedade internacional depende de alguma

forma do índice interno de bem-estar social. As pesquisas mostram que, há dez anos,

durante a crise econômica dos anos 90, havia um equilíbrio entre os que eram a favor e

os que eram contra o orçamento destinado à cooperação. Atualmente, no entanto, o

índice de pessoas a favor deste orçamento é duas vezes maior do que o das que são

contrárias.

Just over 60 per cent want to retain the development cooperation budget at its current level, or to increase it, while just over 19 per cent consider it should be reduced and 15 per cent have no opinion on the subject. Today the proportion of people who want to do away with the development cooperation budget entirely is 5.4 per cent. (Idem, Ibdem)

A análise das pesquisas mostra também que há uma relação entre o nível de educação

dos suecos e sua opinião sobre ajuda externa. Aqueles que têm mais anos de

escolaridade são mais favoráveis à cooperação. As pessoas com maior escolaridade

apresentam também uma visão mais negativa sobre as condições de vida dos países que

recebem recursos da Suécia.

Os projetos coordenados pela Sida são freqüentemente “vasculhados” pelos jornalistas,

que fazem um balanço de seus resultados, talvez menos técnico e mais próximo dos

interesses dos contribuintes.

Muitos cuidados são tomados, portanto, para que eles sintam que a ajuda sueca se dá

dentro de um padrão racional e justo. Neste sentido, uma informação interessante que a

Sida (2004) oferece a eles, por sua forma bem didática e muito ao gosto dos suecos, é

uma comparação entre os gastos internos e os destinados aos projetos de cooperação.

Com base em dados do SCB – órgão oficial de estatísticas na Suécia (Statistiska

Centralbyrån) – informam, por exemplo, que, em 2004, o orçamento para cooperação

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internacional foi de cerca de 21,8 bilhões de coroas suecas, o que equivaleria a cada

sueco desembolsar uma contribuição de 6 coroas suecas por dia29. As estatísticas

apontam que este valor seria equivalente ao que os suecos gastaram a cada dia, no

mesmo ano, com livros e jornais, por exemplo. Os cidadãos são informados também de

que o valor gasto em cooperação é menor do que as 14 coroas suecas gastas em média,

diariamente, com álcool e tabaco (tipo de consumo nada bem-visto pela opinião pública),

as 19 coroas suecas gastas com roupas e sapatos e as 22 coroas gastas com escola, por

cada pessoa e por dia.

Suponho que tais comparações têm forte impacto na opinião dos suecos sobre ajuda

externa. As reclamações sobre os altos índices dos impostos que pagam são freqüentes,

mas as queixas são muito mais endereçadas ao tipo de política e de serviços públicos

que obtêm em troca do que com o que é gasto com solidariedade internacional. Neste

caso, são, em geral, favoráveis à cooperação, e os motivos comumente citados referem-

se ao reconhecimento da riqueza do país. O fato de julgarem que possuem muitas coisas

dá a eles a obrigação moral de contribuir de alguma forma com os menos afortunados.

Além disso, há também a alusão histórica à Suécia pobre dos antepassados, que citam

como um fator que os torna mais sensíveis ao sofrimento alheio e menos afeitos ao

consumo e ao desperdício.

Em geral, um dos pontos mais frágeis da cooperação internacional é garantir o uso

adequado dos recursos, isto é, que a ajuda chegue corretamente a seu alvo. Este é um

cenário repleto de acusações e com registros de alguns escândalos lamentáveis. Mais

29 Na Suécia, não se compra praticamente nada com 6 coroas. Este valor é menor do que a metade de uma passagem de ônibus. Para se usar um banheiro público, por exemplo, é preciso desembolsar 5 coroas suecas.

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uma vez, os suecos reivindicam sua idoneidade e gostam de acreditar que são

merecedores de boa reputação por fazerem com que as suas contribuições alcancem os

resultados aos quais se destinam. A Sida entende que isto é parte de sua

responsabilidade, mas também dos países com os quais coopera. Contudo, este não é

um campo livre de controvérsias e não é incomum surgirem matérias nos jornais

acusando os governos dos países alvo de cooperação de mau uso das doações e a

agência sueca de não acompanhar adequadamente a aplicação dos recursos doados. Um

exemplo disto é a matéria da jornalista Anna Careborg, publicada no jornal Svenska

Dagbladet (28/8/2004), com o título Suécia exige que Moçambique retorne dinheiro de

cooperação:

O dinheiro seria usado para a educação. Ele foi usado para pagar visitas ao dentista, restaurantes caros e bolsas para os parentes de ministros. Agora a Suécia exige que o Moçambique pague de volta a soma de 3,55 milhões de coroas. [...] Há pouco mais de um ano, a Sida começou a suspeitar que os aproximadamente 60 milhões de coroas enviados ao ministério da educação em Moçambique não estavam sendo usados de modo correto. No inverno passado, uma investigação confirmou as suspeitas, e mais uma investigação que ficou pronta em meados de junho mostra que o ministério da educação não cumpriu o contrato sobre como o dinheiro sueco deveria ser usado. 30

Segundo o jornal, há registros de gastos com cursos de inglês no exterior (Austrália, por

exemplo) que custaram entre 100 mil e 500 mil coroas suecas por pessoa, enquanto um

curso semelhante em Maputo custaria 6 mil coroas suecas. Durante a viagem, conforme

noticiaram, foram pagas despesas pessoais, como tratamento dentário, restaurantes

caros, e três viajantes voaram de primeira classe. Quando esta matéria foi publicada, o

ministro da educação de Moçambique ainda não havia se manifestado quanto à acusação

e ao pedido de devolução do dinheiro supostamente gasto de maneira indevida. A

jornalista conclui a matéria informando a seus leitores que Moçambique é um dos maiores

30 O artigo foi gentilmente traduzido do sueco pela antropóloga Thaïs Machado-Borges, às pressas, conforme ela cuidadosamente fez questão de ressaltar, o que não prejudicou a compreensão de seu conteúdo.

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receptores da ajuda sueca, tendo recebido 440 milhões de coroas suecas em 2002, mas

que, diante desses novos fatos, ela acreditava que a ajuda estaria em risco.

Mas não só os países receptores são colocados em dúvida, neste contexto. Um trecho da

correspondência enviada por um consultor estrangeiro a um consultor sueco é um

exemplo de questionamento dos procedimentos da Sida:

Although they thought that the budget was “realistic”, I have to say that I was shocked! Almost US$700.000 a year only in self-management!!! I found it outrageous. Some of salaries involved are totally absurd […] My fear has always been that this will be yet another project conceived to generate job opportunities for Swedish nationals (as has been the case of many SIDA sponsored initiatives) and to create opportunities for the same old boys’ club. A self-referential initiative, with very little of the money reaching the supposed beneficiaries and no impact on their realities.

Muitas das pessoas que ouvi durante o trabalho de campo mencionaram as vantagens

salariais de uma posição no exterior, muito mais acentuadas para os funcionários da Sida

do que para os que trabalham para organizações não governamentais, mas nunca

admitiram que este fosse um fator determinante da decisão delas de trabalhar em projetos

de cooperação internacional. As experiências profissionais e, principalmente, as

existenciais, advindas dessas atividades, são citadas elegantemente como fatores muito

mais relevantes do que os altos salários.

Alguns entrevistados da segunda geração de cooperantes que foram a Moçambique

mencionaram confortos talvez desnecessários e que, tal como supõem, não fizeram parte

das condições de trabalho disponíveis para a primeira geração. Um elemento polêmico,

muitas vezes citado, são os carros 4X4, considerados por alguns um equipamento para

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resguardar-lhes a segurança, e para outros, um luxo embaraçoso diante da situação de

pobreza da população local.

A hipótese apresentada pelo consultor estrangeiro, de que grande parte dos recursos

para cooperação acaba por beneficiar os profissionais suecos, foi uma questão que

também levantei em entrevistas que fiz dentro e fora da Sida. Mesmo que isto de fato

aconteça, as pessoas com as quais conversei, em geral, tentaram me fazer ver que é

preciso considerar que haveria outras maneiras mais simples de se aplicar 1% do PIB, se

o objetivo principal da cooperação fosse gerar empregos para os suecos.

Segundo documentos atuais da Sida, os recursos continuam sendo exclusivamente

destinados a promover mudanças que são do interesse dos países receptores. Esta

diretriz, ao ser aplicada ao novo paradigma do desenvolvimento sustentável, pressupõe

agora o envolvimento dos governos locais e de sua população no seu próprio destino.

Entretanto, o envolvimento local, ao que se pode entender, é parcial e até mesmo

circunstancial, porque a agência sueca reserva-se o papel de avaliar se as ações terão

resultado e, apenas em caso positivo, contribuirá com tecnologia e dinheiro (o consagrado

binômio do desenvolvimento). Neste caso, a decisão de cooperar ou não cooperar

depende da avaliação do doador, baseada na sua credibilidade de país desenvolvido.

Também na esteira do paradigma do desenvolvimento sustentável, a Sida adota um outro

conceito que “invadiu” o mundo das agências de cooperação, que é o ownership. Há uma

série de artigos e documentos produzidos pelas agências de cooperação internacional

sobre a idéia de ownership, o que torna difícil chegar a um conceito que fosse

incontestável. A idéia pressupõe que o país que recebe a doação é o dono do projeto, o

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que implica reconhecer que ele tem todo o direito de usar os recursos tal qual

estabeleceu-se no acordo de cooperação, mas também deve ter total responsabilidade

pela implantação do projeto, envolvendo-se ativamente em todas as atividades dele. Mas

isto significa também que, em algum momento dessa história, as nações pobres do

mundo não foram donas daquilo que deveriam ser. Portanto, para seus críticos, a idéia

parece ser mais uma questão legal do que uma questão de desenvolvimento.

Stefan Molund (2000, p. 7), em estudo sobre o tema, observa que “the established

Swedish view is that donors should support the development efforts of their partners not

directly drive the process of change”. Ele admite que haja discrepância entre a política e a

prática de ownership. Uma dificuldade prática é que, para se alcançar o ownership total, é

preciso que as esferas políticas dos países receptores, como parlamento, governos,

lideranças comunitárias etc. concordem quanto à relevância do projeto em questão e

participem democraticamente dos processos de tomada de decisão.

Sabemos que este nível de consenso, semelhante ao tipo ideal de ação comunicativa

descrita por Jürgen Habermas, não é uma característica comum nas sociedades, muito

menos naquelas pouco desenvolvidas, e que há uma relação perversa entre pouco

desenvolvimento e pouca democracia, embora não possamos afirmar que toda sociedade

não democrática seja pobre, no sentido econômico do termo.

Contudo, a Suécia, assim como os demais organismos internacionais, declara que

aumentar o ownership de seus parceiros é uma condição essencial para a maior

efetividade dos programas e projetos de desenvolvimento, podendo até mesmo ser visto

como um dos indicadores de desenvolvimento. De acordo com os documentos da Sida,

podemos dizer que, pelo menos em tese, eles estão convencidos de que há uma

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correlação entre o ownership do país parceiro e o sucesso da cooperação, e destacam

isto como uma especificidade positiva de sua política de cooperação.

A concepção pretendida pela Sida como ideal para os programas de cooperação para o

desenvolvimento exige uma interação social fundada numa consciência prático-moral

altamente igualitária e emancipatória. Habermas (1999) buscou demonstrar que as

possibilidades de que os atores sociais dispõem para se emancipar das formas de

dominação encontram-se nas relações sociais livres, tal como acontece na comunicação,

porque é aí que os agentes se utilizam pragmaticamente da linguagem, orientando-se

para o consenso. Para a razão comunicativa nas sociedades modernas, substituiria o

papel que a razão instrumental teve no Iluminismo. O tipo ideal de ação comunicativa

refere-se a uma forma de interação na qual não existe nenhum tipo de coação interna ou

externa.

Cada interlocutor suscita uma pretensão de validade quando se refere a fatos, normas e vivências, e existe uma expectativa de que seu interlocutor possa, se assim o quiser, contestar essa pretensão de validade de uma maneira fundada, isto é, com argumentos. (FREITAG, 1988, p. 59)

Supõe, portanto, que todos os atores interessados possam participar do discurso com as

mesmas oportunidades de argumentação, chances iguais de refutar afirmações e

interpretações e que estejam igualmente livres de qualquer coação, de forma que

possam agir de acordo com normas que lhes parecem justificáveis. Habermas não está

pretendendo o consenso com relação à interpretação que se faz do objeto de discussão,

mas que haja um acordo quanto à validade de se discutir aquele objeto, ou seja, de se

praticar a ação comunicativa.

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Os atos comunicativos são dotados de condições de afirmação de validade, seja de sua

verdade ou de sua sinceridade, por exemplo, que permitem que os participantes

sustentem um determinado discurso e se organizem em torno de um processo de

racionalização cognitiva.

Na sua análise, ele apresenta uma visão de sociedade moderna que é tripartida em

Estado, mercado e sociedade civil. Nas sociedades modernas, Estado e mercado

constituem o que ele chama de sistema. A sociedade civil seria a dimensão institucional

do mundo da vida e, de acordo com sua concepção, não podemos inferir a existência de

um bem comum compartilhado entre todos os seus membros, e sim um pluralismo

constituído por várias interações parciais.

Como o mercado é caracterizado pela presença de relações desiguais, não pode ser

libertador. A cultura também não seria o locus das possibilidades de igualdade nas

sociedades modernas, pela presença de movimentos e comunicação de massa, que

podem levar à dissolução de suas formas tradicionais. Portanto, para Habermas, é no

mundo da vida que se encontram as possibilidades comunicativas emancipatórias.

El mundo de la vida es, por así decirlo, el lugar trascendental en que hablante y oyente se salen al encuentro; en que pueden plantearse recíprocamente la pretensión de que sus emisiones concuerdan con el mundo (con el mundo objetivo, con el mundo subjetivo y con el mundo social); y en que pueden criticar y exhibir los fundamentos de esas pretensiones de validez, resolver sus disentimientos y llegar a un acuerdo. (HABERMAS, 1999, p. 179)

Quando se fala em ownership, da mesma forma que na teoria da ação comunicativa,

presume-se uma sociedade civil forte e organizada, que possa superar os mecanismos de

colonização tanto do Estado quanto do mercado, o que, na prática, dificilmente acontece.

Como o mesmo princípio pressupõe que haja menos liderança dos experts dos países

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desenvolvidos na implantação e gestão dos projetos de desenvolvimento, acaba por

ampliar o papel dos doadores na formação e capacitação dos governos e comunidades

dos países receptores da doação (capacity building).

Isto implica aprimoramento das políticas de participação, o que leva a Sida a se orgulhar

de seu pioneirismo em trabalhar em cooperação com parceiros dentro e fora da Suécia,

tais como ONG’s, movimentos populares, igrejas, empresas e universidades; ressalve-se,

que tenham “os conhecimentos necessários para que a cooperação sueca para o

desenvolvimento tenha sucesso”. (SIDA, 2005)

Já sugeri aqui que há um envolvimento especial da sociedade sueca em relações

internacionais de cooperação e que este envolvimento adquire significado importante na

formação da identidade coletiva daquele povo. Não seria surpreendente, portanto, que o

principal órgão do governo sueco, encarregado da política de cooperação, trabalhasse em

estreita parceria com outras organizações da sociedade civil. Na sessão a seguir, procuro

descrever como se dá essa parceria e o modelo adotado pela Sida para a capacitação de

seus parceiros da sociedade civil.

Parcerias com a Sida

A Sida tem repassado, anualmente, cerca de 1,7 bilhões de coroas suecas a organizações

ligadas à igreja e a movimentos sociais. Dentre elas, organizações tradicionais no campo da

ajuda humanitária, como a Ajuda da Igreja da Suécia (Lutherjälpens) e a Cruz Vermelha,

por exemplo.

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Todos os anos, cerca de 300 organizações recebem este apoio financeiro do governo

sueco. Uma parte deste financiamento é redistribuída por organizações maiores, as

chamadas framework organizations, com as quais a Sida tem uma longa tradição de

trabalhar31. Elas têm a prerrogativa de selecionar as propostas das suas suborganizações

para submeterem à avaliação da Sida. São elas: Grupo de África na Suécia

(Afrikagrupperna), Diakonia, Centro das ONG’s Suecas para a Cooperação para o

Desenvolvimento (Forum Syd), Organização Sueca para Pessoas Deficientes

(Handikapporganisationernas Internationella Biståndsförening, SHIA), Secretariado de

Cooperação para o Desenvolvimento Sindical da LO e da TCO, Ajuda da Igreja da Suécia

(Lutherjälpens)/ Missão da Igreja da Suécia (Svenska Kyrkans Mission), Centro

Internacional Olof Palmer (OPIC), PMU Interlife, Salvem as Crianças (Rädda Barnen),

Conselho Missionário Sueco (Svenska missionsrådet, SMR), Sociedade Sueca para a

Conservação da Natureza (Svenska Naturskyddsföreningen, SNF), Cooperação sem

Fronteiras (Utan Gränser, UG), Treinamento para as Operações de Assistência ao

Desenvolvimento (Utbildning för Biståndsverksamhet, UBV) e Cruz Vermelha, nos casos

de ajuda humanitária.32

Segundo Elisabeth Lewin33 (1986, p. 224), o governo já oficializava o papel positivo das

ONG’s desde os anos 60, por considerar que sejam organizações com maior agilidade do

que as agências internacionais para responderem às necessidades e demandas dos mais

pobres. Como são mais informais do que as organizações do governo, têm maiores

31 Inclusive, muitos funcionários da Sida começaram suas carreiras nessas organizações. 32 Durante o trabalho de campo, entrei em contato com todas essas organizações. Visitei aquelas que tinham ou tiveram programas significativos de cooperação com Moçambique – Grupo de África na Suécia, Diakonia, Forum Syd, Ajuda da Igreja da Suécia/ Missão da Igreja da Suécia, PMU Interlife, Conselho Missionário Sueco – SMR, Cooperação sem Fronteiras – Utan Gränser – e entrevistei alguns de seus integrantes. Ressalto que fui recebida com atenção, interesse e simpatia pelo meu trabalho. 33 Elisabeth Lewin trabalhou durante muitos anos na Sida como especialista em metodologia de avaliação.

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facilidades para contatar os grupos locais. Um de seus méritos, ela diz, é estarem mais

próximas dos segmentos pobres da sociedade do que os governos.

Operacionalmente, a parceria entre a Sida e as ONG’s se dá através das contribuições

que ela faz aos projetos que as organizações elaboram e implementam nos países

receptores. O procedimento visa, segundo seus manuais, ao fortalecimento da sociedade

civil nos países parceiros e das organizações locais, ou seja, o desenvolvimento de

capacidades e das organizações são objetivos paralelos aos dos projetos propriamente

ditos, como uma conseqüência esperada.

Se por um lado a Sida diz contribuir com o aprimoramento dessas organizações, por outro

ela se beneficia de seu considerável conhecimento de outras culturas e da experiência em

diferentes países, tanto em situação de paz quanto de emergência e de conflitos. Da

tradição missionária, elas guardam também uma capacidade peculiar de reunir as

pessoas em torno de uma causa comum, como antes fizeram em nome do cristianismo, e

que hoje se traduz em outras causas, como igualdade de gênero, democracia, direitos

humanos etc.

Ainda segundo Lewin, tanto quanto o governo, a opinião pública na Suécia é igualmente

favorável ao trabalho das ONG’s. No entanto, ela destaca que, nos anos 70,

principalmente, a mídia e alguns setores da sociedade fizeram restrição quanto a um

suposto caráter assistencialista de suas atividades. As organizações missionárias eram

vistas com alguma reserva, acusadas de dar um sentido de caridade à ajuda. Colocou-se

em questão que o apoio da Sida não deveria ser feito como caridade, mas como solução

para os problemas sociais. O debate público desta época questionava se a distinção entre

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as atividades de desenvolvimento e as de evangelização seria clara e se os africanos

precisariam tornar-se “bons cristãos” para se beneficiarem de programas sociais.

Estas organizações reexaminaram seu papel e, atualmente, acreditam terem substituído o

que havia de paternalista em seu discurso pela defesa da solidariedade e do respeito a

outras culturas e tradições. Algumas delas vêem este “respeito” com conotação

claramente evolucionista, ou seja, respeita-se hoje com a convicção de que as tradições

locais serão substituídas pelo “verdadeiro” cristianismo, quando aquelas sociedades

chegarem ao mesmo patamar em que se encontram os países da Europa. Outras,

contudo, as que mais defendem transformações básicas no modelo de cooperação para o

desenvolvimento, são críticas de si mesmas, de outras ONG’s, do governo, da UE etc.

Uma exigência da Sida para financiar as atividades das ONG’s é de que elas contribuam

com um mínimo de 20% dos custos de seus projetos, o que é, em geral, alavancado pelos

métodos tradicionais de pedir contribuições em dinheiro às empresas e à população, ou

da venda de camisetas, livros, revistas, broches, cartões etc. Depois de alguns meses em

Estocolmo, já havia reunido uma significativa coleção com cartões, nariz de palhaço,

selos, broches com flores, broche da luta contra o HIV/Aids, com uma gota d’água etc. Em

um dia ensolarado, é quase impossível passar pelo centro da capital sueca sem encontrar

algum grupo em campanha para arrecadação de dinheiro, com seus pequenos cofres em

forma de caneca.

Fig. 5: Coleta no centro de Estocolmo, 2004 Fig. 6: Produtos à venda – GAS

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Fig. 7: Casa da Solidariedade – Estocolmo, 2004

As contribuições já foram maiores e chegavam mais facilmente, me conta uma ativa

militante desde os anos 70. Segundo sua avaliação, as pessoas agora estabelecem

relações mais superficiais com as causas sociais. Na última campanha que fez para

arrecadar fundos, surpreendeu-se com um maior comprometimento de alguns jovens

voluntários, mas o fim de semana foi frio e chuvoso e dificultou o engajamento de outras

pessoas.

Na verdade, a exigência de as ONG’s participarem com 20% dos custos de seus projetos

não é a única, nem a principal condição apresentada pela Sida para lhes dar apoio. Os

projetos conduzidos pelas ONG’s devem ser coerentes com a política de ajuda externa

definida por governo e parlamento. Mesmo que, formalmente, o parlamento represente os

interesses da sociedade civil e, por conseqüência, das ONG’s, essas políticas nem

sempre contemplam as suas perspectivas. Podem, inclusive, exigir que essas

organizações façam adaptações radicais em seus procedimentos e nos focos de ação.

Um exemplo recente foi a decisão da Sida de que as ONG’s suecas só podem

desenvolver projetos nos países receptores em parceria com as ONG’s locais.

Oficialmente, esta decisão tem o objetivo de “estreitar as alianças das organizações

suecas e locais”, para fortalecimento da sociedade civil nos países com os quais a Sida

coopera.

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Porém, durante o trabalho de campo, soube que havia projetos em Moçambique que os

representantes das ONG’s reputam como muito importantes e que eram resultado de

parcerias entre uma ONG sueca e o governo moçambicano. A eminente possibilidade de

cancelamento desses projetos incomodava profundamente alguns dos meus informantes,

principalmente porque levaria ao rompimento de velhas alianças também com as

comunidades beneficiadas. Mas estas pessoas, quando falavam em nome de suas

instituições, sempre atestaram que as relações com a Sida eram as melhores possíveis,

dizendo que as mudanças eram inevitáveis sinais dos tempos e tecendo outros

comentários que não podiam ser entendidos como enfrentamento.

De qualquer forma, não seria errado supor que as novas tendências na política de

cooperação da Sida têm exigido, de fora para dentro, adaptações nas atividades de

algumas ONG’s, sem serem exatamente o resultado de suas reflexões sobre sua vocação

e seu próprio papel no exterior.

Uma vez que a Sida assume que knowledge e partnership são dois pilares

contemporâneos da cooperação internacional sueca, parece-nos razoável que ela chame

para si a tarefa de capacitar os agentes dos processos de desenvolvimento, já que está

falando de um knowledge específico do qual é perita. As políticas de capacity building da

Sida são endereçadas para três diferentes atores: seus funcionários na sede em

Estocolmo, nas embaixadas e no campo, os parceiros da sociedade civil na Suécia34 e os

parceiros dos governos e das comunidades nos países alvo de sua cooperação.

34 Outras organizações têm regularmente atividades de capacitação dos sujeitos que vão trabalhar em ajuda externa, quer seja em ajuda humanitária ou em projetos de desenvolvimento. Algumas, inclusive, têm este objetivo como uma de suas atividades principais, como é o caso da UBV – Treinamento para as Operações de Assistência ao Desenvolvimento.

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A primeira geração de cooperantes que foi a campo já recebia um treinamento que

englobava estudo da língua local, informações políticas, sociais e culturais, mas não havia

manuais, esquemas e planos sobre os métodos que eles empregariam para promover o

desenvolvimento. As informações, naquela altura, não circulavam com a rapidez que

conhecemos no século XXI. Além disso, talvez não houvesse muita gente na Suécia que

pudesse ser considerada especialista em assuntos das colônias portuguesas, por

exemplo, à exceção dos missionários. Estes, por seu turno, traziam um enfoque muito

contextualizado pela prática da evangelização e um relato que, possivelmente, não era

isento.

Mas, apesar de toda a informação em circulação no mundo contemporâneo, alguns dos

meus entrevistados da nova geração disseram que, assim como os antigos cooperantes,

as realidades locais são muito mais complexas do que o que sabiam teoricamente sobre

elas, antes de ir a campo. No caso do pessoal administrativo no exterior, o tipo de

conhecimento que têm sobre um determinado país parece ser ainda mais importante.

Eles monitoram e avaliam os programas, elaboram relatórios quadrimestrais e participam

da elaboração de relatórios anuais, mas não têm apenas estas funções burocráticas;

participam também da formulação das estratégias para os países, a partir da análise das

possibilidades de desenvolvimento nas áreas em que a Suécia dará seu suporte. Ou seja,

eles têm uma relativa autoridade para dizer o que vai ou não “dar certo” em termos de

desenvolvimento de um determinado país.

Mesmo que tenham à sua disposição uma série de manuais que pretendem orientar sua

prática, e que neles haja a recomendação do diálogo com os governos locais e outros

parceiros, este tipo de conhecimento não é nunca suficiente para entender as

diversidades internas. Conforme alertou Amartya Sen (2001), talentos particulares podem

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dar enorme vitalidade a um projeto dentro de uma comunidade, assim como divergências

internas podem levar a seu fracasso, em outra. Desta forma, a idealização do knowledge

do doador pode ser a causa de grande desperdício de investimentos humanos e

econômicos.

A Sida, todavia, tem se ocupado, ao menos formalmente, de educação e treinamento,

tanto nos países pobres quanto na formação de seu pessoal. Contudo, conforme a própria

Sida admite (2000, p. 9), “after more than 30 years of experience of support for capacity

development, there is still recurring criticism from partner countries of present approaches

to capacity development.”

Em 2002, por exemplo, foi criado o Centro da Sociedade Civil em Härnösand, cidade ao

norte de Estocolmo, concebido com a intenção de ser “um espaço de referência das

ONG’s e dos movimentos populares”, um ponto de encontro de membros das

organizações voluntárias, da Sida e de demais atores da cooperação para o

desenvolvimento para discutirem teoria e prática e compartilharem experiência e

knowledge.

Um pouco mais formal do que isto, ali são feitos treinamentos obrigatórios para a

capacitação de profissionais recrutados pelas ONG’s parceiras da Sida para trabalhar em

seus projetos no exterior. Além disto, o Centro promove seminários, congressos e oferece

uma série de cursos ao longo do ano, com temáticas como conflito e desenvolvimento,

assistência humanitária, conservação ambiental, comunicação e formação da opinião

pública, perspectiva de gênero na cooperação para o desenvolvimento, HIV/Aids,

diversidade e diálogo etc.

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Em março de 2004, o Centro da Sociedade Civil oferecia um curso virtual sobre as

políticas suecas para o desenvolvimento, visando à formação dos funcionários da Sida,

do Ministério de Assuntos Estrangeiros e das ONG’s parceiras. Apesar deste foco

específico, o curso era acessível a qualquer pessoa interessada, através da home page

da Sida. Fiz o curso, considerando que seria uma forma de conhecer as informações que

queriam divulgar para seus colaboradores sobre as políticas da Sida e a visão que têm de

si mesmos e da situação dos países pobres.

O ponto de partida do curso é o ano de 1995, quando assumem que a metodologia

adequada para suas atividades de cooperação é o desenvolvimento de knowledge e da

capacidade dos indivíduos e instituições, para que mudem “as políticas oficiais e regras

informais”.

Havia muitas fotos e ilustrações em que as pessoas dos países pobres apareciam sempre

limpas, ativas e felizes. Poucas fotos retratavam pessoas pobres de raça branca, como foi

o caso da primeira delas, em que se viam mulheres e crianças em volta de uma carroça,

trabalhando num campo que poderia ser facilmente de um dos países bálticos, por

exemplo. A seguir, contudo, a imagem recorrente dos pobres é negra ou mista.

Entro numa sessão em que vão responder a questões fundamentais sobre a política

sueca de cooperação. As perguntas “Por quê? O quê? Como? Quem?” saem da boca de

máscaras negras, que lembram muito as máscaras africanas. Já que o curso é para

profissionais suecos, me pergunto por que não são pessoas loiras e de olhos claros que

fazem as perguntas. Minha conclusão: os suecos não perguntam, respondem. Uma outra

série de ilustrações traz pessoas brancas em atitude de explicação e explanação para

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pequenos grupos de negros e mistos. Como é usual em documentos das agências

internacionais de cooperação, há uma superexposição de mulheres e crianças. Os jovens

negros do sexo masculino, grupo extremamente vulnerável aos riscos das periferias do

mundo, não merecem qualquer destaque.

“Antes, desenvolvimento era dinheiro”, diz o texto, seguido da ilustração de um homem

branco, barba loira e olhos azuis, que usa terno e gravata, embora esteja no campo, e

leva um trator e uma mala de dinheiro para oferecer a um asiático. Mas, depois,

descobrem que, além dos recursos materiais, é preciso ter knowledge e competência, e,

então, uma seta, que entendi como símbolo da perícia sueca, sai da cabeça do homem

branco até a cabeça do asiático. A fórmula é a seguinte: no knowledge, no development.

Apesar desta mudança, continua havendo deficiência de knowledge, porque a idéia era

simples demais e até mesmo errada. Um novo tempo se inicia em 1995, e a Sida entende

que é preciso capacitar para desenvolver knowledge, e, desde então, diz mudar

radicalmente seus métodos.

Nas sessões seguintes do curso, surge a informação de que nem todos na Sida falam

uma língua comum ao usar conceitos centrais de suas políticas. Por isso, sou convidada

a testar meu grau de afinidade com esta linguagem escrevendo a minha própria definição

de knowledge e competência, instituição e organização. Tento definir os dois primeiros

conceitos e recebo em troca a resposta “certa”:

Knowledge is informational skills acquired through experiences or education. Competence means to implement the knowledge, as well as to adjust and change depending on the situation. Competence in this sense is related to how the knowledge is acquired […].

Embora o texto explique que a metodologia da Sida baseia-se no diálogo, na confiança,

na franqueza e na humildade, porque o diálogo é uma oportunidade para o aprendizado

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mútuo, só agora vejo situações em que os suecos explicam fluxogramas e organogramas,

gesticulam para grupos que tomam nota e demonstram como desenvolver “habilidades

para usar os recursos”.

Fig. 8: Curso Sida Fig. 9: Curso Sida

Na condição de aprendiz daquele curso virtual, tenho algumas dúvidas. Não são as

sociedades pobres que estão acostumadas a sobreviver com recursos escassos? Em que

se ancoram para acreditar que esta estratégia não é novamente simples demais? Por que

não encontro no curso nenhuma referência ou ilustração que representasse as

possibilidades de aprendizado mútuo, quando os suecos aprendem com as novas

culturas?

Vanguarda e Controversa

Na sede da Sida, em Estocolmo, há uma pequena biblioteca sobre assuntos

internacionais, aberta ao público. É ali que ficam expostos também todos os tipos de

documentos, livros, fôlderes, relatórios etc. que publicam. Uma olhada rápida nas

prateleiras e podemos encontrar nos títulos a maioria dos termos que orbitam em torno do

novo modelo de desenvolvimento adotado pelas organizações internacionais: Donorship,

ownership and Partnership; Dollars, dialogue and development; Promoting gender equality

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in development cooperation; Civil society and poverty reduction, e assim por diante,

reforçando cânones já aclamados e reiterados nos discursos de diferentes agências de

cooperação.

Embora a ajuda sueca tenha por princípio cooperar para a promoção das mudanças que

interessam aos países receptores, ou seja, sem imposição de uma perspectiva

etnocêntrica, esses documentos nos levam a acreditar que a intenção de melhorar as

condições de vida das populações dos países pobres não questiona o princípio do

crescimento econômico, da democracia e da igualdade de gênero, fatores ligados às

características da sociedade sueca.

Para tentar fazer com que interesses internos, como os citados, ganhem uma relevância

geral, os suecos acreditam contar com um forte poder de persuasão. Alguns dos meus

informantes descreveram seu papel no jogo da cooperação como o de persuadir a

sociedade e/ou os governos para apoiar as causas sociais que defendem. Para alguns, a

implantação de políticas adequadas e a eficácia das ações para o desenvolvimento

passam antes pela tarefa de persuadir cada país, parlamentos, governos, autoridades,

indústrias, organizações e indivíduos da necessidade de superar a situação de pobreza

no mundo.

O potencial de persuasão dos doadores os coloca em um patamar distinto do dos

receptores que, na maioria dos casos, não têm poder para persuadir. Esta situação é não

só desigual, como também contraditória, se considerada à luz das metodologias

participativas que, atualmente, figuram entre as mais eficazes estratégias para o

desenvolvimento.

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Contudo, esta crença no poder de persuasão dos suecos no cenário internacional é

controversa. Para algumas pessoas que entrevistei, a entrada da Suécia na UE, por

exemplo, não pode ser interpretada como um acontecimento sem impacto neste contexto.

Ao contrário, para alguns, principalmente os que viveram ativamente as lutas dos anos

70, a Suécia perdeu muito no que concerne às suas condições de persuasão nas políticas

internacionais. Um informante, visivelmente desapontado com a imagem atual de seu

país, colocou-me a seguinte questão:

Diga-me você: se as lutas de libertação das colônias portuguesas estivessem acontecendo hoje, a Suécia, como membro da União Européia, assentada ao lado de Portugal, poderia ter levantado sua voz sem restrições como levantou? Claro que não, estaria limitada aos interesses e acordos com os demais países europeus.

No entanto, em um documento endereçado ao parlamento (SVERIGES RIKSDAG,

2003a), encontramos reiterada a convicção quanto ao papel de liderança global da

Suécia, um país que, segundo afirmam, tem sido um apoiador leal não só das Nações

Unidas como também de outras organizações internacionais. Por seu pioneirismo na

discussão da reforma das Nações Unidas e de outros sistemas multilaterais, frente às

novas necessidades mundiais, acredita-se que continuará, no futuro, tendo um papel

ativo.

Esta expressão de convicção, porém, vem mesclada com uma nova preocupação com

relação à coerência entre as políticas de cooperação que são adotadas nos casos em que

a Suécia é uma doadora isolada e nos casos em que participa dentro de redes de

cooperação.

The new development policy will encompass all relevant policy areas. It will be coordinated and coherent and determined by goals, perspectives and the various central component elements. This also applies to policy carried out at EU level. What Sweden does in one context must agree with how Sweden acts in another. (Idem, Ibdem)

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As novas relações entre doadores e receptores foram objeto de avaliação de Gus Edgren

(2003), que resultou em documento publicado pela Sida. Ele constata que o cenário

internacional vem se caracterizando pela substituição gradativa de projetos tradicionais,

organizados em torno de relações bilaterais, por outros financiados e conduzidos por

multidoadores. Na sua opinião, a constituição de conjuntos de doadores tem se dado pela

ótica da competição entre eles, o que pode ser desastroso, se se considera que os países

receptores podem rejeitar as condições de um doador mais exigente e aceitar as

daqueles que são mais flexíveis. Desta forma, ele acredita que os países receptores

podem reduzir os esforços que estariam dispostos a fazer para atingir a sustentabilidade

de seus projetos.

O estudo explicita a preocupação com a eficácia dos projetos financiados pela Sida e com

o peso da influência que a Suécia poderá ter nos casos em que for doadora minoritária.

Sugere que as relações entre multidoadores devem se pautar por três princípios

essenciais:

1) Any activity will be more important and strategic to some donors than others. 2) There will be an inherent tendency for major contributors to the activity to presume right of leadership (if not dominance) 3) Differences will arise with regard to objectives among donors, and among stakeholders. (Idem, p. 22).

Na sua perspectiva, se esses princípios não forem observados, a Sida corre o risco de

dar apoio a um “tipo de ownership” indesejável.

Entre os cooperantes que entrevistei, encontrei muitos pessimistas e alguns otimistas

com relação ao lugar que será ocupado pela Suécia, em um futuro próximo, dentro deste

novo modelo de cooperação internacional. Não saberia dizer se os otimistas estão

realmente convencidos ou se fazem um discurso “adequado” à posição que ocupam, mas

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disseram acreditar que, uma vez que a Suécia tem assento em todos estes fóruns

mundiais, seus representantes têm grandes chances de fazer valer os valores e o modelo

político do país nas negociações e acordos. Perguntei a um cientista político sueco,

provavelmente um dos principais estudiosos das relações internacionais de seu país, se

ele acredita que a Suécia tem chances de conduzir as novas políticas internacionais de

cooperação que vêm se desenhando no Pós-Guerra Fria. A reposta foi: Honestly, not.

É possível que as redefinições no jogo da ajuda externa tenham interferido negativamente

na manutenção de uma simbologia, cara aos suecos, de uma nação capaz de conduzir de

modo singular atividades de cooperação no mundo. Uma possível alteração nesta

imagem, que em algum momento pode ter sido compartilhada pelos suecos com

satisfação, não me pareceu configurar uma situação irrelevante para eles.

Penso que, no caso sueco, em que há uma sociedade bastante homogênea, o debate

interno em torno de questões de raça, classes sociais e direitos faria muito pouco sentido.

Neste caso, as construções simbólicas que delimitam as identidades individuais e

coletivas são tecidas, em grande parte, a partir das causas internacionais35. Assim, tribos

internas foram se formando, por exemplo, em torno da identificação com as causas

sociais, políticas, econômicas e culturais de diferentes sociedades e grupos sociais, como

os Grupo de África, do Chile, da Bolívia, pelos direitos das mulheres, das crianças etc.

Assumir como sua a causa do outro, ou apenas envolver-se com ela por razões

profissionais tem, neste caso, além de componentes ideológico, solidário ou pragmático,

uma conotação identitária. Assim como no totemismo, sistema classificatório encontrado

35 Dentre outros elementos identitários que suponho existirem, mas que não foram objeto desta pesquisa.

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nas sociedades primitivas com o sentido de designar cada clã ou grupo social pela

identificação com o totem (LÈVI-STRAUSS, 1965), numa sociedade complexa como a

sueca as causas internacionais podem funcionar como um operador totêmico, porque

servem para ordenar, associar, opor e classificar seus apoiadores.

Como foi dito anteriormente, a Suécia assume sua identificação com a causa

moçambicana desde os anos 70. Os dois países estiveram ligados, nesses anos, por

laços de diversas conotações, que vão desde o mais trivial caráter diplomático até a

formação de famílias sueco/moçambicanas, passando por questões políticas e

econômicas. Nestes cerca de 30 anos, o mundo, Moçambique e a Suécia mudaram de

cara, mas nenhuma das redefinições operadas nas relações internacionais provocou

ruptura entre esses dois países.

No próximo capítulo, apresento aspectos relevantes da política de cooperação da Sida

com a África e Moçambique, procurando identificar as implicações do plano estratégico

que a agência sueca defende ser a chave para o seu desenvolvimento.

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DE UM HEMISFÉRIO A OUTRO

Em 1999, a mesma organização que me levou à Suécia pela primeira vez para estudar

gestão de meio ambiente convidou-me para uma reciclagem na Indonésia. Durante uma

longa, mas agradável viagem de ônibus, de Java a Bali, fui sentada ao lado de um sueco

com muita experiência em cooperação para o desenvolvimento. Passamos admirados

pelas plantações de arroz que formam uma paisagem muito bonita e harmoniosa, em

grande parte devido a um delicado senso estético dos indonésios.

As plantações são mesmo belas, mas também produtivas, acrescentou meu companheiro

de viagem. Ele me contou, então, que no início de sua carreira havia trabalhado em

muitos programas para o desenvolvido de países africanos, mas que agora estava mais

motivado a trabalhar na Ásia porque a África não desenvolve. Esta foi a primeira vez que

ouvi alguém expressar um sentimento que já conhecia teoricamente. A expectativa de

desenvolvimento do continente africano, que entusiasmou as Nações Unidas nos anos

60, cedeu lugar, nos anos 90, ao “afropessimismo” e a uma sensação de cansaço da

ajuda àquele continente.

Era uma típica conversa de passatempo entre dois viajantes, mas me lembrou a tese de

Giovani Arrighi (1997) sobre as oportunidades seriais de avanço econômico que, quando

se apresentaram, por exemplo, para o continente asiático, significaram a exclusão dos

países africanos da rota dos investimentos. Também me ocorreu a análise de Joseph

Stiglitz (2002, p. 112 – 113), que, baseado em estudos do Banco Mundial, mostra que os

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conflitos civis têm sido um forte impedimento ao desenvolvimento na África. As disputas e

violências civis estão sistematicamente associadas às desfavoráveis condições

econômicas e ao desemprego e afastam drasticamente os investimentos.

Porém, mesmo que esse pessimismo com relação ao futuro do continente africano passe

algumas vezes pela cabeça de um ou outro expert, ele não se expressa formalmente nas

políticas suecas de cooperação. Atualmente, a cooperação da Suécia é destinada a cerca

de 120 países, e 77 deles estão no continente africano. De acordo com dados de 2004,

dentre os 20 países que recebem maior volume de recursos através da Sida, oito são

africanos. Tanzânia e Moçambique têm, tradicionalmente, se revezado no posto de maior

receptor desses recursos.

A seguir, são enumerados os países que receberam maior suporte da Sida em 2004:

TABELA 1

País

Ajuda (milhões de coroas suecas)

1 Tanzânia 614

2 Moçambique 486

3 Afeganistão 407

4 Etiópia 373

5 Rússia 346

6 Uganda 314

7 Nicarágua 302

8 Cisjordânia e Faixa de Gaza 273

9 Bosnia-Herzegovina 227

10 Quênia 219

11 Sérvia e Montenegro 212

14 Bolívia 212

13 Honduras 203

14 Vietnã 197

15 Bangaladesh 195

16 Zâmbia 193

17 Sudão 189

18 África do Sul 188

19 Sri Lanca 169

20 Camboja 166

Total 5484 Fonte: Relatório anual da Sida (2004)

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Se políticas equivocadas de cooperação, durante e após a Guerra Fria, trouxeram mais e

novos problemas para as regiões em desenvolvimento, estes foram mais intensos na

África, onde, por exemplo, vimos crescer de forma alarmante as dívidas dos países.

Porém, quando o tema é pobreza e desenvolvimento na África, encontramos, em geral,

descrições que enfatizam um continente de contrastes, com imensas riquezas humanas e

naturais continuamente ameaçadas por secas, enchentes, sistemas ditatoriais, corrupção

e, mais recentemente, pela disseminação do HIV/Aids. Esta dualidade aparece também

na visão contemporânea que a Sida tem da África e que formaliza no documento em que

apresenta a atual política sueca de cooperação bilateral com os países desse continente

(1999, p. 3).

Economic reforms have been introduced. They include deregulation and liberation in many areas, providing more opportunities and greater scope for the private sector. The introduction of information technology has had the effect that Africa is interacting more closely with other parts of the world and it has also been the source of revolutions in the academic world. At the same time the continent is facing serious difficulties. The greatest single problem in Africa is poverty. Approximately half of all Africans live in absolute poverty. In addition of poverty wars and conflicts are causing great human suffering and considerable flows of refugees. HIV/aids is striking hardest against people in the productive ages and exacerbates poverty. The poor often work land of poor quality which is then further impoverished due to over-grazing and inappropriate cultivation methods.

Em outros documentos, como, por exemplo, Shared Responsibility (2002, p. 10), do

Ministério de Assuntos Estrangeiros, encontramos também referências à África –

especialmente à Africa sub-sahariana – como uma região não apenas pobre, mas

também com um débito crescente, desigualdade social e de gênero, corrupção,

continuados conflitos armados na sua história recente, mortalidade materno-infantil e

disseminação de HIV/Aids.

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Esta descrição parece ser parte da justificativa pública do governo sueco para dar ajuda

prioritária à África. Por outro lado, justifica-se também pelo reconhecimento do interesse

dos países africanos em superar este quadro, em direção ao seu desenvolvimento,

organizando reformas e estratégias de combate à pobreza que parecem agradar os

doadores. Uma delas, citada no mesmo documento, é o New Partnership for África

Development (NEPAD)36, iniciativa baseada na idéia de que os países africanos devem se

responsabilizar por seu próprio desenvolvimento.

Um estudo publicado pelas Nações Unidas (BERG, 1993) já trazia a proposta de repensar

a cooperação técnica com a África, propondo reformas que levassem à construção das

capacidades africanas, em substituição a um sistema, tornado tradicional, de educar as

pessoas nas universidades dos países ricos e de mandar profissionais para os países

pobres para darem assistência técnica e preencherem deficiências da capacidade local,

por exemplo.

Neste estudo, Pierre-Claver Damiba (Idem, p.vi e vii) – administrador assistente e diretor

regional para África do PNUD, na década de 80 – aponta como problema o fato de a

cooperação técnica ser programada pelos doadores e não pelos países recipientes. Para

ele,

technical cooperation was a neglected factor. Most disturbing was that it was not managed seriously by the African governments because it is largely perceived, at best, as a free good and, at worst, as something imposed by the donors. I was astonished at the magnitude of these resources in the national context and became convinced that to ignore these issues would be a major error in resource-strapped Africa. I felt

36 O NEPAD é o programa da União Africana para o desenvolvimento econômico, adotado em julho de 2001 em Lusaka, na Zâmbia.

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that the UNDP had a responsibility to bring technical cooperation back to the center of the development agenda, and to help Africa.

A necessidade de reformas na dinâmica da cooperação com a África, em debate no

âmbito do PNUD, também mereceu consideração do novo governo social-democrata da

Suécia, iniciado em 1995. O novo governo fez as reformas burocráticas na Sida, já

discutidas aqui, e apresentou, em 1998, uma nova política para a África, que se propõe a

dar ênfase muito mais em parceria do que em ajuda. Contudo, diferente da perspectiva

acima, a argumentação que encontramos nos documentos suecos não faz referência a

uma possível negligência dos governos africanos com relação à cooperação estrangeira.

Para a Sida (1999, p. 5), pelo menos como apresenta em seus documentos, a relação

tradicional entre doadores e receptores está se transformando na direção de uma nova

situação, na qual os africanos assumem de maneira crescente o papel que antes coube

aos experts e consultores externos. A nova política estabelece, igualmente, a ampliação

das relações entre a Suécia e os países africanos e aumenta o volume de recursos

destinados a eles.

Portanto, as mudanças anunciadas seriam resultado do reconhecimento de que a África

iniciava uma transição para o crescimento sustentável e em direção a uma sociedade

mais democrática e, por isso mesmo, enfatizam o apoio ao fortalecimento da sociedade

civil, cooperando com as organizações não governamentais locais, suecas e

internacionais.

Da forma como a nova política é apresentada, podemos interpretá-la como uma

“premiação” do governo sueco pelo esforço de diversos países africanos para formularem

“suas própria estratégias de redução de pobreza” (Idem, p. 8), em um contexto em que,

de acordo com a visão sueca, os governos em África vinham sistematicamente relegando

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esta questão a segundo plano. A Sida se identifica como uma parceira que pode “ajudar a

remover os obstáculos à redução da pobreza”.

A nova política de cooperação com a África foi embalada, também, pelo entusiasmo

moderado com iniciativas de alguns países em direção à democracia. O fim da Guerra

Fria aliviou certas tensões, e as eleições democráticas na África do Sul, em 1994,

marcaram o fim do regime do apartheid. Para o governo sueco, estes novos

acontecimentos significaram que enfim haveria condições para definir democracia e

direitos humanos como objetivos centrais da cooperação internacional para o

desenvolvimento da África. Como estes dois temas são caros à sociedade civil sueca,

acredito que sua introdução nos planejamentos da ajuda externa pode ter agradado às

ONG’s e aos contribuintes e facilitado a implantação da política externa do novo governo

social-democrata. A partir de 1998, alguns países, como Moçambique, Tanzânia, Zâmbia,

Zimbábue e África do Sul, considerados em processo positivo de democratização,

passam a receber mais recursos da Sida, a fim de fortalecer a democracia.

A distribuição das doações suecas aos países africanos, portanto, começam a se

concentrar em áreas relacionadas com a boa governança, um tema que ganhou grande

relevância no cenário internacional contemporâneo sobre desenvolvimento e,

rapidamente, se tornou o foco de muitas agências internacionais de cooperação. Em

nome da boa governança, justifica-se o fato de grande parte dos investimentos serem

destinados ao fortalecimento da democracia, à capacitação dos governos e ao apoio aos

governos locais e ao sistema legal. Outra parte dos fundos passou a ser destinada a

minimizar as conseqüências dos conflitos armados, principalmente na Libéria, Sudão e

Angola, tomando como justificativa o caso moçambicano, em que a paz foi seguida de

significativo crescimento econômico.

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A cooperação sueca tem assumido a igualdade de gênero como um dos objetivos

fundamentais de sua ajuda externa. Não estou discutindo aqui a validade desse objetivo

para a promoção do desenvolvimento dos países africanos; limito-me a salientar que

vemos aqui, novamente, o foco da cooperação se voltar para um assunto importante na

escala de valores compartilhados pelo cidadão sueco que, certamente, gostaria de ver

seu modelo reaplicado em outras culturas.

A idéia de que igualdade de gênero seja um dos objetivos essenciais para o

desenvolvimento da África se fortalece na segunda metade da década de 90, após a

Conferência das Nações Unidas sobre as Mulheres, realizada em 1995, em Pequim. A

Conferência teve uma plataforma de 12 áreas críticas para as mulheres no mundo, e as

lideranças africanas concordaram em dar prioridade a quatro delas: desigualdade de

educação entre homens e mulheres, o direito de ownership, a situação das meninas e o

direito sexual, reprodutivo e à saúde. Como apoio a esta decisão, a Sida estabelece em

sua nova política de cooperação com os países africanos que a igualdade entre homens e

mulheres não é apenas uma “questão das mulheres”, mas de direitos humanos e pré-

requisito ao desenvolvimento sustentável. Os relatórios produzidos pelo Departamento de

África da Sida trazem sempre informações sobre a discrepância entre o acesso de

homens e mulheres à educação e ao mercado de trabalho, por exemplo, bem como sobre

os índices de violência contra as mulheres naqueles países. Portanto, os documentos

parecem pretender estimular a construção de uma nova realidade na África, que seja

mais próxima do que acontece nos países escandinavos.

O documento da Sida sobre a nova política de cooperação bilateral com a África traz em

sua capa o rosto sorridente de uma jovem mulher negra e é fartamente ilustrado com

fotos em que as mulheres aparecem dignamente em situações sociais. São pessoas

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simples, mas sempre limpas, bem vestidas e, em geral, com os cabelos cobertos por

lenços coloridos. A foto que ilustra a cooperação da Suécia com a universidade de Dar es

Salaam, na Tanzânia, por exemplo, tem em primeiro plano uma mulher negra, muito séria

e concentrada em frente a um computador. As mulheres estão também na linha de frente

de um auditório na Tanzânia, durante atividade da Sida pela promoção da igualdade de

gênero. Da mesma forma, as fotos que ilustram a eleição de 1994, na África do Sul,

mostram mais mulheres eleitoras do que homens, colocando o voto nas urnas e depois

comemorando nas ruas o “primeiro passo para a democracia”. No Quênia, é uma mulher

que aplica vacina em um bebê, e é também uma mulher que distribui folhetos sobre a

prevenção da Aids no Zimbábue. Na Etiópia, um professor dá aula para uma classe onde

vemos à frente apenas mulheres. Em Mali, meninos e meninas estão trabalhando na

confecção de um cartaz, mas a foto foi tirada quando era a vez de uma menina escrever

nele, dando destaque a ela. Por outro lado, em Moçambique, vemos um grande grupo de

meninos assistindo a uma conversa em que uma mulher branca, sueca, usando crachá e

camiseta com a logomarca das Nações Unidas explica a um senhor moçambicano, de

cabelos brancos, as eleições pluripartidárias de 1994.

Como ilustração do item Igualdade de Gênero, nesse mesmo documento, um homem

posa com visível ar de desconforto segurando um bebê, enquanto uma mulher os observa

em segundo plano. Uma cena que acredito agradar aos suecos, que se orgulham de sua

sociedade, em que pais e mães têm cuidados e deveres iguais com relação aos filhos,

desde o nascimento. Nesse item, cumpre destacar também a imagem criada para a

mulher de negócios do ano do Zimbábue (1994). Ela está muito elegante, usando um

chapéu com detalhe de pele de onça, sentada em uma cadeira forrada de tecido

acetinado com flores cor de rosa, em frente ao computador. Está, portanto, inserida em

um quadro notadamente mais rico do que as demais mulheres negras retratadas no

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documento. O texto reproduz frases suas, como “if poverty is to disappear in Zimbabwe,

women must take over economic policy”, mas há também um comentário, no mínimo,

estranho de se ver ressaltado em um documento do governo sueco sobre cooperação e

igualdade, por dar a impressão de que seja aceitável que, para umas mulheres ocuparem

espaço no mundo dos negócios, outras deverão estar restritas ao mundo doméstico: “I

love my maids. They are like substitute mothers for my children and the reason why I have

come so far”. (Idem, p. 13)

A antropóloga Gudrun Dahl (2001) analisou as bases da nova política sueca de

cooperação com a África e observou que o fim da Guerra Fria e do apartheid foram

acontecimentos cruciais para que o governo sueco anunciasse a existência de uma nova

tendência em África, que demandava reformas na política de cooperação. No entanto, a

autora ressalta duas outras razões específicas para isto. A primeira delas foi o fato de a

Suécia ter se tornado o país responsável pelos programas de ajuda da UE. A opinião

sueca, naquela altura, foi de que o acordo para ajuda e negócios entre a UE e a África

sub-sahariana, que seria discutido em 2000, era muito limitado e remetia aos tempos

coloniais. A segunda foi a insatisfação com a maneira como o Banco Mundial e o FMI

fizeram imposições de ajustes estruturais aos programas de cooperação. (Idem, p. 6)

Admitindo a necessidade de reforma no modelo de cooperação com a África, mas

discordando dos métodos em circulação no sistema internacional, foram formados grupos

de trabalhos e comissões que envolveram experts e estudiosos suecos, e também as

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novas lideranças africanas37. Esses grupos e comissões chegaram à proposta de uma

política de parceria, como o melhor caminho em direção ao desenvolvimento africano.

Para Gudrun Dahl, a ênfase em parceria é uma estratégia ideológica, e a nova política

para a África, apesar de “gestos polidos” à esquerda, foi apresentada muito mais em

termos neoliberais. Ela critica também o discurso cotidiano da Suécia, no qual “África”

aparece como uma unidade comumente aceita, quase não havendo referências a países

individuais, muitos menos a grupos étnicos, regiões ou áreas culturais (DAHL, 2001, p. 9).

Para ela, a referência retórica à África como continente dificilmente está destituída de

preconceitos e é mediada por uma ideologia colonial, que remete a uma natureza não

domesticada, imaturidade e irresponsabilidade, infecções e sensualidade, entre outras

coisas. Além disso, ela questiona a intenção da Suécia de operar com seus parceiros em

um contexto em que os Estados nacionais são genericamente chamados de africanos.

(Idem, p. 27)

Moçambique para Sueco Ver

Quase sem exceção, os documentos suecos sobre a cooperação com Moçambique

realçam, como justificativa para as doações, a sua condição de um dos países mais

pobres do mundo e um dos mais dependentes da ajuda internacional. Moçambique foi

indexado em 2005, pelo Relatório do Desenvolvimento Humano (HDR) do PNUD –

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – em 168º lugar entre 177 países.

Essa situação é citada como o principal motivo que faz dele um dos maiores receptores

37 O trabalho dessas comissões resultou em dois livros publicados pelo Instituto Nórdico da África – A New Partnershio for African Development (1997) e Towards a New Parthership With África (1998) –, que foram discutidos por Dahl (2001).

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da ajuda sueca, que gira, anualmente, em torno de 500 milhões de coroas suecas

(aproximadamente, 60 milhões de dólares)38.

No começo das relações bilaterais de cooperação entre os dois países, a principal

estratégia foi levar a Moçambique profissionais, homens e mulheres brancos que

pudessem preencher a lacuna deixada pela debandada geral dos portugueses e, com

isto, instaurar a confiança do povo moçambicano no novo governo, mediante a aprovação

e apoio de outras nações. Além disso, dedicaram-se ao desenvolvimento agrícola e a dar

suporte às importações. Na avaliação de Hermele (1988, p. 5 – 6),

At this stage, FRELIMO was confronted with two problems, one real and one ideological. The real one was that there were very few people around who could take on the functions the Portuguese had deserted. For instance, there were only about 40 Mozambican university graduates in the whole country, all liberal professions had been prohibited for Mozambicans, and only limited industrial or agricultural capitalism had been permitted outside Portuguese or foreign sectors. Thus, a real difficulty persisted in filling the vacuum created by the Portuguese exodus.

Como exemplo da ajuda inicial ao Moçambique39, ressalta-se o apoio à saúde, educação

e agricultura. Além de mandar para lá médicos e enfermeiros, a Suécia forneceu recursos

para a abertura de postos de saúde e de bancos de sangue, para a implantação de

programa de vacinação e para a compra de medicamentos. Segundo um médico que foi a

Moçambique nessa época, a palavra mais repetida era “acabou-se”: Onde está a seringa?

Acabou-se. Onde está a vacina? Acabou-se.

38 Conforme http://hdr.undp.org/statistics/data/countries.cfm. 39 Para compreender a versão oficial da Sida sobre as políticas voltadas para Moçambique, consultei cerca de 40 relatórios e estudos publicados da década de 80 em diante.

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Os suecos contribuíram também com mudanças nos procedimentos ambulatoriais, como

uso de seringas esterilizadas, e com mudanças de caráter ideológico e de respeito aos

direitos humanos. A estrutura hierárquica da sociedade moçambicana nunca passou

despercebida para os cooperantes suecos, que mencionaram diversos casos em que

estranharam este tipo de organização da sociedade, que não seguia nem um pouco os

ideais igualitários que levavam da cultura sueca.

Os setores do hospital de Maputo, por exemplo, eram divididos por raça. Como o novo

governo revolucionário havia formalizado que tudo deveria ser igualmente acessível a

todos, os suecos ficaram à vontade para trabalhar dentro da perspectiva de igualdade

social que praticavam na Suécia. O trecho abaixo foi relatado por uma enfermeira sueca:

Entrávamos nas organizações nacionais que foram construídas logo após a libertação. O hospital de Maputo era dividido antes para brancos, para pretos, para mistos e para não sei o que mais. A revolução significou que agora era tudo para todo mundo e nós trabalhávamos ali com essa gente, de uma maneira muito igualitária, porque essa é a nossa maneira de ser na Suécia.

Havia também separação hierárquica entre médicos e enfermeiros, e os suecos

reproduziram lá seu modelo de trabalho, que pressupõe igualdade entre os colegas. O

tratamento que era dado às parturientes era de tal modo desumano que, segundo

médicos suecos que trabalharam em Moçambique logo após sua independência, as

mulheres preferiam dar à luz no meio do mato a procurar os hospitais. A cooperação

sueca acredita ter introduzido novos e mais humanos procedimentos obstétricos.

No campo da educação, a Suécia financiou o salário de professores e profissionais para

fazer planejamento curricular e elaboração de material pedagógico e didático, organizou

programas de educação de adultos, fez grandes campanhas educacionais etc.

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Na agricultura, notabilizou-se por sua parceria no Programa Monap – Mozambique-Nordic

Agricultural Programme –, financiado pela Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e

Islândia. O Monap previa contribuição financeira para o orçamento nacional,

implementação de responsabilidades a serem alocadas nas agências nórdicas de ajuda e

um sistema de consultoria organizado entre os países nórdicos. Como a Suécia era o

único país nórdico com representação diplomática em Maputo, a Sida ficou encarregada

da implementação do programa.

O Monap foi discutido e estruturado junto com o governo moçambicano, entre 1975 e

1976, e tinha uma ênfase especial na agricultura, incluindo também a pesca e as

questões florestais, que os nórdicos apoiaram financeiramente e com assistência técnica.

Estiveram também envolvidos com o desenvolvimento de uma agricultura familiar em

Moçambique, um setor que consideraram que fora negligenciado no período colonial

(SIDA, 1991, p.12). O surgimento da guerra civil, problemas de segurança e tensão do

lado nórdico levaram ao cancelamento do projeto.

Um dado a se ressaltar nas estratégias de cooperação com o Moçambique é a constante

referência à idéia de se refazer alguma coisa, como reconstrução, retomada, reforma etc.

Isto se justifica, uma vez que, logo após sua libertação de Portugal, o país atravessou um

longo período de destruição, causada pela guerra civil entre Frelimo e Renamo –

Resistência Nacional Moçambicana –, que só cessou 16 anos depois, em 1992.

Muitos dos investimentos suecos em infra-estrutura foram destruídos nesse período,

como a construção de estradas e de escolas. Da mesma forma, a cooperação com áreas

estratégicas, como indústria, telecomunicações, energia e desenvolvimento da

administração pública tiveram seus resultados abortados pela guerra.

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O antropólogo Peter Fry (2005, p. 69), que conheceu o Moçambique dos anos 60, voltou

àquele país em 1989 e fez o seguinte relato sobre a herança trágica da guerra:

Naquela época, Moçambique estava mergulhado numa guerra violenta entre o governo da Frelimo e a Renamo. A guerra tinha se expandido para quase todas as regiões rurais de Moçambique. Só as cidades e as capitais das províncias estavam nas mãos do governo, e o único meio seguro de transporte entre elas eram os jatos das Linhas Aéreas de Moçambique (LAM). Dezenas de milhares de pessoas morreram na guerra, e centenas de milhares morreram de fome e das doenças causadas por ela. Aproximadamente quatro milhões, de uma população total de quinze milhões, estavam refugiados em países vizinhos, e muitos mais, os “internamente deslocados”, procuraram asilos nas cidades. Grande parte da infra-estrutura do país fora destruída, e o Produto Interno Bruto caiu a níveis mais baixos do que os registrados antes da independência. O sistema educacional nas áreas rurais estava praticamente paralisado. Tudo isso, agravado por uma série de secas, fez o Moçambique um dos países mais pobres da Terra, com uma renda per capita de aproximadamente 60 dólares.

Peter Fry observa também que a guerra civil moçambicana gerou “novas categorias de

pessoas”, referindo-se aos refugiados, deslocados internos e às crianças traumatizadas

pelas atrocidades que presenciaram.

Portanto, a guerra provocou desestabilização em todos os setores. Para citar apenas dois

exemplos relativos a equipamentos públicos, até 1987 havia 2.600 escolas destruídas, o

que afetou cerca de 500 mil estudantes em todo o país, e 800 clínicas e postos de saúde

destruídos ou fechados, deixando de 2 a 3 milhões de moçambicanos sem atendimento.

(HERMELE, 1988).

A Frelimo, que havia assumido o papel de Estado intervencionista, o que para alguns

analistas teria sido sua única alternativa naquele momento, teve, contudo, todo tipo de

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dificuldades para manter a economia operando; os planos, como, por exemplo, o PPI40 –

Plano Prospectivo Indicativo, que, no começo dos anos 80, pretendia erradicar o

“subdesenvolvimento” em uma década – e o PRE – Plano de Reabilitação Econômica

1987/1989 –, não obtiveram resultados significativos até a entrada do país no FMI, em

1987.

Segundo dois dos maiores analistas suecos de Moçambique, Hans Abrahamsson e

Anders Nilsson (1995), no final dos anos 70 o país chegou a conhecer uma recuperação

econômica excelente, porém não foi o bastante para enfrentar a pressão externa e a seca

dos anos 80, o que gerou a necessidade de ajuda alimentar e de crédito. Essa situação

levou o governo a buscar apoio do FMI e do Banco Mundial, mas, para eles, o “remédio”

acabou por agravar a situação econômica e enfraqueceu o governo.

Ainda que esta não seja, provavelmente, a interpretação oficial do FMI e do Banco

Mundial sobre sua atuação em Moçambique, ao menos podemos dizer, com certa chance

de acerto, que ainda hoje é difícil pensar no Moçambique independente da ajuda

internacional. Grande parte dos recursos financeiros tem origem em doações, créditos e

perdões dos débitos, que são disponibilizados através da comunidade internacional. Os

recursos, na sua maioria, destinam-se ao pagamento das dívidas, à assistência

emergencial, como, por exemplo, ajuda alimentar, e para a cooperação para o

desenvolvimento.

As prioridades da cooperação sueca com Moçambique têm se modificado ao longo

desses anos. Em parte, em decorrência das mudanças na própria concepção sueca de

40 Para o economista sueco Kenneth Hermele (1988, p.10), “PPI had an important component of traditional Soviet-style development philosophy Still, the choice was not self-evident as Mozambique remained heavily dependent not only upon South Africa but also on European capitalist countries.”

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ajuda ao desenvolvimento, mas também em atenção às avaliações periódicas do impacto

da ajuda e em resposta ao que outros doadores fazem em Moçambique. Um exemplo do

começo dos anos 80 foi o suporte dado pela Usaid – United States Agency for

International Development – e pelo Banco Mundial ao setor privado, levando os países

nórdicos a concentrarem atenção ao setor social e aos cidadãos moçambicanos, que,

para eles, são freqüentemente negligenciados.

Outro exemplo significativo para os objetivos desta tese é a avaliação que encontramos

no já referido relatório sobre Moçambique (SIDA, 1988), elaborado por Kenneth Hermele

(Idem, p. 33), que coloca em questão a ênfase que vinha sendo dada, nos anos 80, à

assistência técnica a Moçambique:

Another low-priority area appears to be technical assistance, although this statement must be qualified: the country frame does provide important support for technical assistance through the personnel fund which finances 700-800 expatriates working under government contracts. Also several of individual projects and programmes do provide technical assistance, indeed sometimes on a scale which has caused considerable criticism, not only for the quantity of expatriates concerned but also for the low quality or even absence of knowledge being transferred to Mozambican counterparts. What is lacking, then, is something else: technical assistance seen in a strategic perspective and adapted to the present situation as well as to the future prospects of Mozambique.

O comentário citado prenuncia mudanças no papel que será atribuído aos cooperantes

suecos no Moçambique das décadas seguintes, quando o preenchimento de postos

profissionais não seria mais a principal necessidade, e a idéia de assistência técnica teria

perdido, ao menos formalmente, seu status no campo da ajuda ao desenvolvimento.

Com o fim da guerra civil, em 1992, a comunidade internacional desenvolveu maior

confiança na retomada do desenvolvimento de Moçambique, devido à reconquista da paz

e à promoção do crescimento econômico. Em 1998, o crescimento de Moçambique foi

estimado em 9,9% e, em 1999, houve um novo acordo com o FMI, reduzindo a dívida do

país em 25%.

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De acordo com a análise de Abrahamsson e Nilsson (1995), a colaboração de países

ocidentais exigiu do governo da Frelimo, dentre outras coisas, a transição de uma

economia planejada para uma economia de mercado, e de um sistema político

unipartidário para sistema multipartidário. Conquanto a liberalização de mercado seja um

dos pilares do Consenso de Washington, muitas vezes as prioridades decorrentes desta

situação não contemplam a estabilidade do país em questão, nem suas estratégias

nacionais, que são condição essencial para a manutenção do contrato social.

Essa situação é criticada também por Rivero (2001, p. 64) que nos lembra que

A supervisão supranacional do FMI e do Banco Mundial nas políticas econômicas nacionais dos países latino-americanos, asiáticos e africanos é um fenômeno novo nas relações internacionais modernas, que reflete claramente a erosão da soberania nacional e o surgimento de um poder supranacional que se coloca por cima de toda uma categoria de Quase-Estados-nação que se autodefinem soberanos.

Ele diz que Moçambique, assim com os outros países em desenvolvimento, perderam,

sob a supervisão do FMI e do Banco Mundial, o controle democrático de suas políticas

econômicas e financeiras, e também de aspectos políticos, como o perfil do Estado, as

relações de boa governança, os gastos militares, dentre outros que sempre foram

tratados como uma questão de soberania nacional.

Para Rivero, o ponto fundamental do Consenso de Washington é que toda atividade

econômica deve ser regida pelo livre mercado. Para atrair investimentos estrangeiros e

ter crédito, os Estados ficam obrigados a manter a disciplina fiscal e a estabilizar a taxa

de câmbio, liberalizar, desregulamentar, privatizar a economia e flexibilizar o emprego

(Idem, p. 66). Tais reajustes rigorosos, contudo, mais freqüentemente do que esperam os

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dirigentes dos países pobres, têm conseguido estabilizar as economias e as taxas de

inflação, e até mesmo promover um pequeno crescimento econômico sem, todavia,

diminuir a pobreza.

No caso de Moçambique, houve um surpreendente crescimento econômico a partir da

década de 90, apresentando, em 1997, por exemplo, um crescimento de 8% do PIB.

Apesar disso, dados do PNUD de 1990 – 2002 (HDR – 2005) apontam que 69,4% da

população vivem abaixo da linha nacional de pobreza.

No entanto, o fim da guerra civil e o avanço democrático em Moçambique trouxeram

olhares mais otimistas para o país. Para a comunidade dos doadores, a Suécia inclusive,

o principal tema político dos anos 90 em Moçambique foram as eleições democráticas

que aconteceram em 30 de junho de 1998. Embora a Renamo, agora na condição de

partido político, tenha protestado, dizendo que os registros eleitorais haviam sido

fraudados, e decidido não participar das eleições, os analistas suecos julgaram que as

razões da oposição não foram suficientemente claras e que não havia evidência de

manipulação. Ao contrário, concluíram que

The opposition’s boycott is a setback for the development of a democratic society in Mozambique. The donor community, including Sweden, has seen the elections as important for the future of the country, and has financially supported them. (SIDA, 1998).

Segundo os relatórios da Sida sobre Moçambique, os avanços democráticos do país,

mesmo incipientes nos anos 90, levaram a Suécia a estabelecer novas estratégias para a

promoção da paz, da democracia e dos direitos humanos, como, por exemplo, alocando

recursos da ordem de 15 milhões de coroas suecas para as eleições locais (através do

PNUD), para a capacitação dos partidos políticos, para a parceria entre o Padrigu –

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Peace and Development Research Gothenburg University – e o ISRI – The Institute of

International Relations in Mozambique –, para o Conselho Cristão no Moçambique coletar

e destruir armas ilegais, para o retorno dos refugiados às suas vilas e dos soldados à vida

civil, para a desativação de minas e a orientação à população para conviver com as áreas

minadas. Financiou também projetos de prevenção da contaminação com o vírus do

HIV/Aids e projetos relacionados à questão de gênero, como a formação de mulheres

professoras e a promoção da saúde de mulheres e meninas.

Os governos sueco e moçambicano iniciaram discussões para o estabelecimento de

cooperação com as organizações da sociedade civil, uma empreitada que teria sido difícil

de se formalizar em tempos de guerra, dando continuidade ao seu apoio às ONG’s

suecas em ação em Moçambique.

Atualmente, não podemos dizer que a política sueca de cooperação com Moçambique

seja singular. Ao contrário, temos sinais suficientes para pensarmos que ela segue em

direção à tendência da cooperação para o desenvolvimento pós Guerra Fria, quando a

ajuda bipolarizada parece perder seu sentido. Vemos, então, países antes colocados em

blocos opositores constituindo grupos de doadores “em torno de uma iniciativa comum” e

regidos pela batuta das organizações multilaterais, como a UE, o Banco Mundial, o FMI e

as Nações Unidas. No caso de Moçambique, por exemplo, convivem norte-americanos,

considerados patrocinadores da destruição africana durante o apartheid, ao lado dos

escandinavos, considerados os maiores apoiadores da soberania moçambicana após a

independência de Portugal.

Há uma divisão geográfica das doações em Moçambique, segundo a qual a Suécia apóia

Niassa, a Dinamarca, a província de Tete, a Holanda apóia Nampula, e assim por diante.

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É possível que a atividade mais singular e independente que a Suécia desenvolve hoje

em Moçambique, e por meio da qual tenta perpetuar o sentido original das relações

bilaterais entre os dois países, seja a da província de Niassa.

Em 1996, a cooperação sueca com Moçambique passou a ser regida por um

planejamento qüinqüenal, que propunha a descentralização da ajuda e a ênfase nos

setores da educação, agricultura, administração pública e construção de estradas.

Definiu-se também pelo suporte ao orçamento do Estado, o que incluiu contribuições a

um fundo multilateral. Como estratégia de descentralização, a Suécia decidiu levar seu

apoio aos camponeses da província de Niassa, ao norte de Moçambique.

Na opinião de setores de comando dentro da Sida, a cooperação sueca a Moçambique

estava muito centralizada em Maputo. Este foi um dos motivos pelos quais decidiram

levar a ajuda sueca até a distante província rural de Niassa. Além disso, esta província foi

escolhida porque o seu governador demonstrou mais interesse pela presença sueca lá,

do que, por exemplo, o governador de Cabo Delgado.

Trata-se de uma região muito isolada e sem infra-estrutura. Durante a guerra civil recebeu

refugiados de diferentes regiões do país. Ironicamente, tornou-se um dos pontos de maior

convivência de culturas diferentes e, também por seu isolamento, os índices de

contaminação com o vírus do HIV/Aids são mais baixos do que no resto do país. No

entanto, a falta de infra-estrutura tem tornado os trabalhos lá muito difíceis, porque o

acesso é ruim, as estradas estão em péssimas condições, o nível de escolaridade da

população é o mais baixo do país e quase não há opção de hospedagem para os técnicos

suecos.

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Fig.10: Mapa de Moçambique41

O Programa Avante Niassa, do governo sueco, visa ao desenvolvimento de infra-estrutura

e tem dois projetos importantes nesse campo: o primeiro é a construção de uma estrada

que dá acesso a Cabo Delgado, e o outro, levar até lá a eletricidade de Cabora Bassa

(usina hidrelétrica construída antes da independência e que teve co-propriedade de

portugueses, moçambicanos e sul-africanos). Além disso, visa também ao

desenvolvimento da sociedade civil, mas esse é um conceito complicado de se aplicar à

região, onde quase tudo gera em torna de organizações familiares e interpessoais.

Basicamente, o “setor privado” resume-se a um pequeno posto onde se vende um pouco

41 http://pt.wikipedia.org/wiki/Mo%C3%A7ambique

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de arroz, óleo e açúcar, e o que não é Estado, representado pelo governador e pelo chefe

de polícia, é família.

Se, por um lado, o programa de desenvolvimento da infra-estrutura contribui para uma

percepção dos suecos como privilegiados portadores de knowledge, por outro, evidencia,

com as dificuldades estruturais, uma desconfortável distância entre os princípios que

norteiam as políticas de desenvolvimento e sua prática, uma vez que as possibilidades de

se implantarem processos de empowerment e de ownership são remotas.

De acordo com previsões extra-oficiais, algum resultado mais concreto da cooperação

sueca para a redução da pobreza em Niassa só vai começar a aparecer depois de 20

anos de ação na região. Contudo, o Programa Avante Niassa tem trazido benefícios aos

técnicos, em termos de aprendizagem, e à Suécia, que chama Niassa informalmente de

“sua” província, em termos de visibilidade de sua presença em Moçambique. Nessa

província, como dizem, está fincada a bandeira da Suécia.

A decisão de investir em Niassa parece ser um desafio através do qual a Suécia pode

mostrar todo seu knowledge, conquistado durante três décadas de convivência entre

suecos e moçambicanos. Os projetos das ONG’s suecas em Niassa, por exemplo, são

100% financiados pela Sida, diferentemente dos outros projetos em que as ONG’s têm

que comprovar uma contrapartida de 20%. Contudo, não deixa de ser um desafio

confortável, porque, se tudo “der errado”, terá sido pelas condições inóspitas daquela

região.

Até 2006, o documento que rege a relação da Sida com Moçambique é a Estratégia de

Cooperação com o Moçambique 2002 – 2006 (SIDA, 2001). Nele, há uma análise

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atualizada do país, dos resultados obtidos com a cooperação sueca e suas metas atuais.

O documento ressalta dados da situação moçambicana, como o número de crianças

“órfãs da Aids”, que se calcula que irá ultrapassar 1 milhão em 2007, a debilidade do

sistema judicial, a corrupção e a arbitrariedade no cumprimento da lei. Numa visão

otimista, ressaltam as possibilidades de crescimento econômico, de aumento da

produtividade agrícola e das condições para uma política mais estratégica para a redução

da pobreza, em parte devido à liberação de recursos públicos com a redução

considerável da dívida dentro da Iniciativa HIPC42.

Há aspectos que são tratados com especial importância na atual política de cooperação

com Moçambique e sobre os quais há consenso entre os técnicos da Sida, como o apoio

às eleições de dezembro de 2004, a implementação do plano de redução de pobreza e o

combate à corrupção. Conforme diz o documento (SIDA, 2001, p. 20 – 21),

A corrupção é um problema sério da sociedade e a Suécia deverá exigir que o Moçambique tome medidas adequadas para enfrentar a situação. Deverá continuar a apoiar-se o desenvolvimento institucional e de capacidade com vista a aumentar a transparência e efectivar sistemas de administração débeis. Deverá atender-se às questões de corrupção em todas as áreas de cooperação.

Esta expressão do governo sueco, de intolerância à corrupção43, nos permite supor que

sua intenção de fazer “exigências” a Moçambique pode ser entendida como um “sinal”

para que Moçambique faça a sua parte no ciclo das doações, retribuindo a ajuda sueca

com as referidas “medidas adequadas para enfrentar a situação”.

42 HIPC – Heavily Indebted Poor Countries – é a iniciativa do Banco Mundial que visa à redução da dívida dos maiores devedores entre os países em desenvolvimento ou dos que têm dificuldades consideráveis de pagar suas dívidas, com foi o caso de Moçambique após as enchentes de 2000. 43 É provável que a intolerância à corrupção esteja entre as críticas mais recorrentes da sociedade sueca quanto à sua ajuda externa.

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Por outro lado, esta situação nos permite perceber a complexidade e as limitações das

propostas de implantação de uma ideologia de igualdade, tal como traduzida nos

princípios de parceria, ownership e empowerment, por exemplo, já que os doadores têm

demandas concretas e se julgam na condição de exigir dos países receptores. Para os

suecos que entrevistei, o direito à retribuição dos receptores não aparece apenas como

uma conseqüência natural do ciclo das doações, mas como um resultado lógico e racional

deste processo. O combate à corrupção em Moçambique, por exemplo, não seria apenas

um dever para que façam jus à ajuda sueca, mas o caminho racional para uma sociedade

desenvolvida.

Nos relatórios da Sida, podemos perceber uma ênfase na função complementar da ajuda

sueca, que deve estar de acordo com o Parpa – Plano de Ação para a Redução da

Pobreza Absoluta –, um plano qüinqüenal, estabelecido pelo governo moçambicano em

199944, baseado em inquérito familiar e considerado um avanço no que diz respeito à

vontade política de um governo africano de assumir compromisso público com a redução

da pobreza.

Entendo a constante referência que os documentos da Sida fazem ao Parpa como

demonstração da intenção da agência sueca de valorizar a vontade política do governo

moçambicano de reduzir a pobreza em seu país, uma atitude desejada dentro da

perspectiva formal do ownership, que a agência adota como uma das suas diretrizes. Por

outro lado, o plano de ação tem também a importante função de atender às exigências

44 O Parpa substitui o plano de 1995, que não se baseava em pesquisas sobre as condições sociais. O atual documento serviu de base para o PRSP – Poverty Reduction Strategy Paper –, que orienta a cooperação de Moçambique com o FMI e o Banco Mundial, sobretudo nas decisões relativas ao perdão de parte da dívida externa moçambicana (HIPC e HIPC II).

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das instituições de Breton Woods, com as quais, ao que parece, o governo sueco não

quer nenhuma colisão direta.

O orçamento da ajuda a Moçambique confirma a posição do país como um dos mais

importantes para a cooperação sueca. Entre 1998 e 2000, a doação sueca foi de 1.096

milhões de coroas suecas (SIDA, 2001, p. 7) e, em 2004, a doação sueca a Moçambique

(486.468,000) foi assim distribuída:

TABELA 2

Pagamento Coroas Suecas

Direitos Humanos e Democratização 90.167,000

Setor Social (educação, saúde etc.) 21.150,000

Infra-estrutura, Comércio e Desenvolvimento Urbano 243.909,000

Manejo de Recursos Naturais 21.296,000

Pesquisa 4.232,000

Outros 105.714,000

Total 486.468,000 Fonte: Relatório Anual da Sida (2004)

A maior parte das doações suecas tem sido endereçada ao Estado moçambicano,

alegando-se muitas vezes o cumprimento do princípio de ownership (SIDA, idem, ibidem).

Em maio de 2006, a Sida discutiu as bases da cooperação Suécia – Moçambique até

2011, que devem se assentar no apoio ao Parpa II, à governança democrática, ao

crescimento econômico e ao capital humano, por meio do aumento do apoio ao

orçamento do Estado. Além disso, a Suécia irá cooperar nas áreas da agricultura,

energia, continuará seu apoio à sociedade civil e seu programa na província de Niassa,

além de outras possibilidades que ainda estão sob avaliação.

O apoio sueco em Moçambique tem sido direcionado, crescentemente, para uma

associação com os demais doadores. Através da ajuda ao orçamento do Estado,

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pretendem aumentar o ownership de Moçambique, cujo governo passa a decidir em quais

projetos deve aplicar os recursos externos recebidos, fazendo-os chegar onde são

realmente necessários, conforme aposta um técnico do Ministério dos Assuntos

Estrangeiros. O êxito desta nova tendência, no entanto, é um tema controverso. Se o

discurso oficial assume que a nova política internacional para o desenvolvimento tem sua

chance de êxito, nas esferas não governamentais encontramos críticas endereçadas,

principalmente, à sua tendência de despolitizar a agenda internacional do

desenvolvimento. A “impessoalidade” dessa nova política tem seu impacto também no

tipo de envolvimento que ela pede de seus agentes e, no caso sueco, na produção do

significado que estes agentes atribuem à cooperação sueca no cenário internacional.

No capítulo seguinte, descrevo a história da relação entre os dois países em pauta, a

partir da narrativa desses agentes, os chamados cooperantes suecos, que foram a

Moçambique desde a década de 70, até recentemente, nesta primeira década do século

XXI. Busco entender suas motivações e o sentido que vêm atribuindo ao seu papel nas

relações de ajuda.

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5

COOPERAÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDO

É importante retomar aqui o pensamento de Mauss, uma vez que entendo que seu estudo

sobre a dádiva e o ciclo das doações seja uma inequívoca referência para se

compreenderem as relações internacionais de ajuda, por exemplo, ao dizer que “gifts to

humans and to the gods also serve the purpose of buying peace between them both”.

(MAUSS, 1997, p. 17). Porém, ele se torna especialmente importante para esta tese

quando afirma que o sistema cíclico das doações tira sua energia dos indivíduos que

participam dele, porque não seria total se não incluísse as emoções pessoais, a religião e

a moralidade segundo a qual operam as transações de doação. Ao concluir que não há

pureza nas doações, demonstra também como o ciclo que se forma em torno delas

engaja as pessoas em compromissos permanentes – um fenômeno que se pode observar

mesmo antes da invenção do mercado, dos negócios e da propriedade econômica.

É com base nessa visão de Mauss que sou levada a acreditar que a compreensão das

relações de cooperação entre as nações ricas e pobres deve considerar, entre outras

coisas, o sentido que lhes é atribuído pelos indivíduos que participam dessas relações,

sejam eles representantes do Estado, do mercado ou da sociedade civil. O ciclo das

doações – para usar a expressão de Mauss – não se opera em um vazio cultural, nem

separado das motivações subjetivas que engajam as pessoas e esse universo, mesmo

que isso ocorra dentro de um contexto em que as relações políticas e econômicas, por

exemplo, sejam muito mais evidentes.

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Essa perspectiva de análise foi desenvolvida por Edward Said (1990), que apresenta a

idéia de orientalismo, referindo-se a um Oriente produto da invenção do Ocidente. Para

Said (Idem, p. 23), a Europa, e depois os Estados Unidos, tiveram primeiramente um

interesse político pelo Oriente:

mas foi a cultura que criou esse interesse que agiu dinamicamente em conjunto com as indisfarçadas fundamentações políticas, econômicas e militares para fazer do oriente o lugar variado e complicado que ele obviamente era no campo que eu chamo de orientalismo.

Segundo Said (1990, p. 26), admitir que as coações políticas, institucionais e ideológicas

agem sobre “a produção literária, erudição, teoria social e a escrita da história de modo

algum equivale a dizer que a cultura é uma coisa diminuída ou denegrida”. Por outro lado,

ele se pergunta que outros tipos de energias intelectuais, estéticas, eruditas e culturais

participaram da formação de uma tradição imperialista como a orientalista, além das

referidas coações políticas, institucionais e ideológicas.

Transpondo a tese de Said para o campo das relações internacionais, podemos supor

que a divisão do mundo em norte e sul, centro e periferia, the west and the rest etc. não é

um mero arranjo político e econômico refletido passivamente pela cultura, assim como

não o são as lutas anticolonialistas, antiimperialistas e os movimentos de solidariedade

internacional. Mais complexo que isto, são elaborações que não correspondem

diretamente ao poder político em si mesmo,

Mas que antes é produzido e existe em intercâmbio desigual com vários tipos de poder, moldado em certa medida pelo intercâmbio com o poder político (como uma ordem colonial ou imperial), com o poder intelectual (...) com o poder cultural (...), com o poder moral. (SAID, 1990, p. 24)

Nesse caso, sou levada a acreditar que os interesses políticos das nações influenciam a

formação de mitos e ações sociais dos sujeitos, por exemplo, mas não têm alcance

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suficiente para impedir as adaptações subjetivas que os sujeitos fazem de procedimentos

formalmente estabelecidos e de diretrizes objetivas descritas nos documentos das

políticas internacionais. As instituições do Estado, assim como as do mercado, podem

agir sobre as consciências individuais, mas não são determinantes na formulação de

valores, de cânones de gosto, do agir moral e dos processos de legitimação das relações

de cooperação. Ou seja, a produção de sentido dessas relações não independe de outros

tipos de energias simbólicas, ideológicas, religiosas, intelectuais, profissionais, estéticas,

culturais e psicológicas daqueles que participam do jogo da doação. Eles constroem um

ciclo de trocas simbólicas que é subjacente às relações entre país doador e país receptor,

mas que contribui igualmente na construção e continuidade de uma tradição das doações

nas sociedades contemporâneas.

Um dos problemas existentes nesse campo é o de transformar as políticas estabelecidas

em planejamentos efetivos. Quais são os obstáculos, nesse processo, que fazem com

que as expectativas políticas sejam ou não implementadas? Poucas vezes a busca de

respostas para essa questão se volta para a influência das pessoas, porque o princípio

predominante pressupõe que a estrutura, a organização é que conta. A perspectiva dos

sujeitos pouco é contemplada.

A intenção deste capítulo é, portanto, tecer indagações sobre essa trama de sentidos

subjetivos que perpassa a relação entre Suécia e Moçambique. Que mudanças,

refinamentos, modulações tomam lugar nessa relação, introduzidos pela ação dos

diversos atores nela envolvidos? Qual o sentido dado para sua continuidade e como ela

se retransmite e se reproduz de uma época para outra?

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Sem pretender estabelecer uma regra firme e segura de como isto acontece, tento sondar

essas questões no contexto específico da cooperação entre Suécia e Moçambique, a

partir da narrativa de seus agentes sobre suas memórias, experiências, motivações etc.

Velhos Combatentes e Novos Técnicos Estrangeiros

Assim que cheguei a Estocolmo e consegui um número de telefone para contato, dei

inúmeros telefonemas e enviei e-mails explicando minha condição de pesquisadora

visitando o país e solicitando uma entrevista. Embora soubesse que seria preciso falar

com pessoas com vínculos diferentes de meu campo de estudo, ou seja, com aquelas

que ocupam postos de comando, às vezes com até 30 anos de atividade, tanto quanto

com as que estivessem em posição periférica, as que começaram nessa atividade no

último ano etc., meu encontro com os suecos que foram a Moçambique para trabalhar

com cooperação foi acontecendo um pouco aleatoriamente, e a minha agenda de

entrevistas obedecia a um critério “pouco científico”. Precisava encontrar as pessoas que

trabalham em Estocolmo antes de elas saírem para as férias de verão e reservar os dias

de verão para os que viessem da África, para visitar amigos e familiares. Esse foi sempre

o desespero da minha orientadora sueca: Todos os informantes desaparecerão depois do

midsommar, assim como os professores e colegas da universidade.

É compreensível que o verão seja uma entidade imperiosa no reino da Suécia, mas,

mesmo obedecendo aos seus caprichos, não demorou muito para que percebesse que

meus informantes, entrevistados seguindo a ordem de suas agendas de férias, poderiam

ser organizados em duas categorias ideais, às quais atribuí nomes que colhi de seus

próprios depoimentos. Uma parte deles, que chegou a Moçambique entre os anos 70 e o

fim dos anos 80, portando o título de cooperantes estrangeiros ou internacionalistas, se

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auto-identificava como “Antigos Combatentes” ou “Velhos Combatentes”, termo usado no

âmbito do partido da Frelimo e adotado pelos suecos para fazer referência a um grupo, a

uma comunidade de pertencimento à qual se ligavam por vínculos ideológicos e de

geração. Todos tinham mais de 50 anos. A outra categoria observada referia-se ao seu

contato com Moçambique como uma expressão de altruísmo, mas sendo antes de tudo

profissional, e que havia se dado pela condição em comum de serem “Técnicos

Estrangeiros”. Esses últimos eram, geralmente, jovens com pouco mais de 30 anos, mas

havia entre eles pessoas mais velhas, que retardaram um desejo antigo de trabalhar

nesse campo, e só chegaram à sua realização depois de já terem uma carreira na Suécia.

As narrativas dos cooperantes suecos em Moçambique deixaram transparecer as

construções simbólicas sobre o mundo da cooperação que vêm sendo retransmitidas de

um grupo a outro, ao longo das décadas, e também as rupturas a partir das quais esses

grupos se diferenciam. De um modo geral, eles acreditam que seu envolvimento em

relações internacionais de ajuda faz deles membros de uma comunidade distinta dos

demais suecos, como bem sintetiza uma das minhas informantes, uma enfermeira que,

além de ter feito parte do grupo pioneiro que foi a Moçambique, participa freqüentemente

de seleções de novas pessoas que são mandadas para lá:

O escolhido para trabalhar no Moçambique não é um sueco qualquer. É um sueco um pouco aventureiro, mas também... como vou dizer? É engajado, está com dúvidas sobre o sistema que existe e que tem preocupação mais social. Há muitos suecos aqui que não se preocupam nem um pouco com aquilo que acontece no mundo, nem com os vizinhos. Há muitos que dizem que não gostam de imigrantes. Então, acho que esse grupo de pessoas, a maioria eu conheci através do Grupos de África da Suécia, tem esse ponto em comum. Muitas pessoas na Suécia não conseguem receber os amigos em casa. Ficam aflitos se compraram três costeletas e agora apareceram quatro pessoas. Os que vão ao Moçambique estão abertos para aprender que o mais importante não é o que está na mesa, é quem está assentado ao redor dela.

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Características como aventureiros e engajados me foram repetidas muitas outras vezes,

juntas ou separadas. Contudo, não seria correto dizer que esses motivos alegados

remetessem sempre a um mesmo significado. Ser engajado para um Velho Combatente

não é necessariamente a mesma coisa que para um Novo Técnico Estrangeiro. O mesmo

vale para a idéia de aventura.

Durante o tempo em que realizei o trabalho de campo, o professor Hans Abrahamsson –

provavelmente, um dos autores que mais publicou livros sobre Moçambique –, que eu

diria pertencer ao grupo dos Velhos Combatentes, concordou em discutir comigo,

periodicamente, percepções e dúvidas sobre os depoimentos que registrei. Ele conhecia

praticamente todos os contatos que levantei nos órgãos governamentais e nas ONG’s e

um pouco da história pessoal de alguns deles. Foi, portanto, bem mais do que um

informante. Recebi dele a seguinte recomendação:

Se tu vais falar com os suecos, todos nós envolvidos vamos dar um motivo em termos de solidariedade, em termos de altruísmo filantrópico: os pobres moçambicanos merecem uma outra vida. Muita gente pensa assim, mas se for aprofundar a análise vais também encontrar que é evidente que um dos grandes interesses da Suécia à época era a segurança nacional e este interesse entra em choque com as pessoas que pensam que nós estamos lá altruísticamente, sem nossos próprios interesses.

A observação dele nos remete novamente a Mauss (Idem), quando fala da dualidade

como uma característica inerente à dádiva, que é um fenômeno ao mesmo tempo

espontâneo e obrigatório, interessado e altruísta, egoísta e solidário. Os cooperantes

suecos que foram a Moçambique confirmam essa complexidade do jogo das doações, por

meio do qual se faz circular, conforme ressalta Mauss, bens materiais, mas também

imateriais, como festas, casamentos, espiritualidade etc.

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Combate contra a Ordem Colonial

A primeira pessoa a responder meu e-mail escreveu em bom português, dizendo que

podia conversar, mas que sairia de Estocolmo pelo fim de semana. Na semana seguinte,

faria contato – e fez. Ele é professor de uma escola de nível superior de formação de

professores e de pesquisas em educação, que tem cerca de 50 anos, 8.600 alunos e fica

numa bela área fronteiriça a um parque.

Ao marcar o encontro, explicou nos mínimos detalhes como chegar até a sua sala.

Depois, escreveu novamente, dizendo que iria me encontrar na portaria central,

provavelmente porque não se sentiu seguro de que eu pudesse chegar sem sua ajuda a

uma sala no terceiro andar. Dias mais tarde, eu me encontrei com uma informante cuja

sala ficava no sétimo andar de um dos prédios do Ministério de Assuntos Estrangeiros e,

na saída, ela se dedicou a me explicar como apertar os botões do elevador para chegar

ao primeiro andar. Esse comportamento foi se desenhando para mim como algo muito

peculiar entre suecos que conheci e significativo quando se trata de suecos que vão a

campo como peritos, cujo knowledge promove o desenvolvimento. Eles gostam de

explicar coisas aos outros, e fazem isso até mesmo sem perceber que podem estar sendo

óbvios.

Encontro meu informante na portaria da escola alguns minutos antes do horário

combinado. Ele tem 52 anos, fala muito bem o português, língua que estudou em Lisboa e

praticou em Moçambique, e faz uso de construções gramaticais sofisticadas. No entanto,

falava muito baixo, e quase nunca me olhou de frente.

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A princípio, parecia sem jeito com aquela situação; no entanto, me levou para conversar

no café da escola, que era um lugar cheio de gente chegando e saindo. Portanto, onde

todos podiam ver que havia um gravador sobre a mesa e que ele estava sendo procurado

por uma pessoa que, possivelmente, não era local. Pareceu-me que ele, discretamente,

se certificava de que estava chamando um pouco de atenção e que sentia alguma

satisfação com isto. Essa suposição tendeu a se confirmar depois das suas várias

referências ao baixo status que ele acredita que a educação tenha em um mundo

globalizado, onde há mais luz para as macrociências, como economia e política, fazendo

suas queixas ainda que esse assunto não estivesse em pauta. Foi fácil identificar que a

base de seu discurso está nas teorias de Pierre Bourdieu, devido ao uso repetido das

idéias do autor e de conceitos como capital cultural, poder simbólico e habitus.

Ele respondeu atenciosamente às minhas perguntas, mas queria também dizer algumas

coisas que pareceram ter sido previamente elaboradas para esta ocasião. Citou

nominalmente outros cooperantes que, no seu julgamento, foram oportunistas, porque

chegaram a Moçambique sem formação acadêmica, ou com pouca formação, e depois

fizeram uma importante carreira internacional. Tive a oportunidade de entrevistar um dos

que ele acusou de grande enriquecimento às custas de contratos milionários com a Sida e

com o governo moçambicano, em sua própria casa, e lá não percebi sinais de riqueza.

Expressou também rancor por ter ficado alienado de importantes informações durante a

guerra contra a Renamo. Na sua visão, alguns deles tiveram acesso a informações

privilegiadas que não foram compartilhadas com os demais cooperantes, sobretudo

acerca de desrespeitos aos direitos humanos.

Depois de muitas reclamações sobre os novos rumos que a cooperação internacional

vem tomando e sobre a Suécia que, segundo ele, devia se ancorar na condição de país

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doador para exigir a direção que quer que os países pobres sigam, encerra nossa

conversa com o que chamou de doces memórias do tempo dos Velhos Combatentes.

Esse tom, de certa forma, de denúncia e de rancor que percebi no seu discurso não se

repetiu com os demais entrevistados, mesmo entre aqueles que foram muito críticos

quanto à validade da ajuda externa para o desenvolvimento. A base de sua narrativa,

entretanto, foi importante para meu exercício de construir o tipo ideal do Velho

Combatente sueco em Moçambique.

Nesse grupo, encontrei homens e mulheres que deram uma explicação aparentemente

simples para o fato de um dia terem deixado a Suécia economicamente rica para ir ao

Moçambique economicamente pobre e praticamente desconhecido: sou comunista; sou

socialista ou sou de esquerda. O comentário a seguir é ilustrativo:

Eu tinha interesse pelo terceiro mundo, era do comitê do Chile em 1973, 74 até 77, estudei espanhol para apoiar a luta do povo latino-americano e fui como estudante de medicina à Tanzânia e Zâmbia. Fui para o Moçambique porque sou socialista. Simples, não é? No Moçambique, vi gente trabalhando duro como nunca vi em minha vida. Penso que os outros suecos que foram ao Moçambique nos primeiros anos da sua independência tinham esse mesmo sentimento, até que a continuação da guerra pelos anos 80 deixou o povo mais e mais desmoralizado.

Os Velhos Combatentes, em geral, tiveram uma formação teórica à qual se referiram

como um treinamento político. Para alguns, esse treinamento se deu na chamada Escola

de Sundsvall, escola que o governo sueco mantinha para a formação de voluntários para

trabalhar no Terceiro Mundo, como alternativa ao serviço militar obrigatório, e que foi

aberta também às mulheres. Alguns deles disseram que escolheram o curso que iriam

fazer na universidade considerando muito mais as áreas que julgavam ser necessárias

para as nações pobres do que as suas próprias vocações ou as oportunidades no

mercado de trabalho sueco. Daí saíram enfermeiros, médicos, engenheiros, professores,

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economistas, cientistas políticos etc., que acreditavam que poderiam usar melhor seu

conhecimento nos países do Terceiro Mundo.

A recorrência com a qual jovens de esquerda se engajaram na luta anticolonialista de

Moçambique justifica o comentário de um funcionário técnico da Sida, com trajetória

anterior pelo mundo político: Eu não sou um comunista, mas muitos são. Tenho sido ativo

na política pelos meus valores pessoais de solidariedade e contra as injustiças. É minha

responsabilidade fazer alguma coisa.

Apesar das exceções, a maioria dos que atenderam ao pedido moçambicano de

cooperação alegou que fez isto principalmente movido por sua ideologia política. Ainda

que alguns não se declarassem oficialmente comunistas, foram quase sempre guiados

pela esperança revolucionária da construção de um mundo mais justo e igualitário.

A razão desta tendência ideológica foi explicada por alguns deles como conseqüência da

Segunda Guerra Mundial, que gerou, mesmo na neutra Suécia, a consciência de que

todos fazem parte de um mesmo mundo. Na análise de um informante, essa geração

tinha a obrigação moral de ter uma cabeça mais aberta do que a anterior, que

experimentou a guerra. Portanto, era natural que tomassem uma posição bem distante do

fascismo e do conservadorismo: Eu não sei dizer exatamente por que, mas isto faz parte

da nossa geração e nós acreditamos nisto.

Uma cooperante que foi a Moçambique através do GAS disse que, antes de partir,

escreveu seus propósitos em uma folha de papel: Não fazer mais mal do que bem,

trabalhar como na Suécia e também mudar o mundo. Todavia, esses sujeitos reconhecem

que a luta por um mundo justo tinha sua significativa porção de romantismo e aventura

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porque, ao mesmo tempo em que se sustentava teoricamente por uma ideologia bem

mais à esquerda do que a social-democracia de Olof Palme, essa geração de

cooperantes não era exatamente preparada para lidar, na prática, com os problemas

moçambicanos ou de qualquer outro país pobre: No começo, era muito na base do

aprender fazendo.

Havia, portanto, um componente de aventura entre aqueles que sentiam o “dever” de

mudar o mundo, sem saber muito bem se poderiam ou como poderiam. Além disso,

escolheram fazer isto a partir de um país africano praticamente desconhecido. A fantasia

de uma África colorida, exótica e, sobretudo, de clima quente, acabou por incorporar ao

grupo dos Combatentes outros cooperantes menos motivados pela ideologia de

esquerda, mas igualmente envolvidos com o ambiente de contestação que marcou a

juventude do final dos anos 60 e começo dos anos 70 no Ocidente. Da mesma forma,

podemos dizer que o apelo tropical não foi indiferente a nenhum deles que foram a

Moçambique:

Queria ter ido nos 60, talvez para Madagascar. Também é uma parte do mundo que tem clima bom, mas não fui. Depois consegui um trabalho para ir com a família ao Butswana por dois anos, e depois para o Moçambique por mais dois.

Como já foi dito anteriormente, é provável que o debate público na Suécia dos anos 70

estivesse muito mais voltado para os problemas do Chile e para a Guerra do Vietnã do

que para as lutas de libertação das colônias portuguesas. Segundo os cooperantes dessa

geração, havia um sentimento de raiva entre os jovens suecos por verem um país tão

forte como os Estados Unidos destruindo o povo vietnamita. Uma vez que isto estava

acontecendo no mundo, acreditavam que não podiam permanecer neutros, silenciosos e

passivos.

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Além disso, muitos dessa geração havia, por exemplo, aprendido espanhol, eram

membros do comitê de apoio ao povo chileno e seus refugiados e tinham viajado àquele

país. Portanto, é razoável que se questione se não teriam preferido que a política externa

da Suécia tivesse criado maiores oportunidades de cooperação com o Chile, ao invés de

com Moçambique, por exemplo.

A resposta negativa a esta questão está relacionada, em primeiro lugar, com a

solidariedade internacional, e, em segundo, com a luta contra o apartheid. A forma de os

cooperantes suecos expressarem sua motivação varia de pessoa para pessoa, mas há

pontos recorrentes que nos permitem sugerir que o repúdio às injustiças foi uma condição

muito importante. Dessa forma, se o foco político desse grupo, em um determinado

momento, foi o Vietnã e o Chile, o próximo foco passou a ser a África e o movimento anti-

apartheid.

Moçambique não foi exatamente o objeto de escolha dos Velhos Combatentes, que, de

início, pareceram não se importar muito com o país para onde iriam. Conforme explicam,

dentro dos princípios internacionais do socialismo, naquele momento o mais importante

seria a união mundial contra o imperialismo. Dessa forma, havia diretrizes gerais que

deviam ser implantadas nas colônias portuguesas, quer fosse em Angola, Moçambique ou

Guiné-Bissau. Da mesma forma, o apoio ao desenvolvimento de Moçambique não estava,

segundo essa geração de cooperantes, desvinculado da luta contra o apartheid.

Conforme foi possível verificar durante o trabalho de campo, o foco político ocupava lugar

central em suas ações, com peso inegavelmente maior do que a promoção do

desenvolvimento. Naquele momento, desenvolver Moçambique e os demais países da

África Austral era uma forma de resistência política.

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No final do verão sueco de 2004, viajei para uma pequena cidade à beira de um lago, ao

sul da Suécia, para me encontrar com um Velho Combatente, citado por muitos dos meus

informantes como uma referência importante daquela geração. Era um escritor e

professor muito conhecido na área das relações internacionais e de desenvolvimento, e é

possível que tenha exercido uma certa liderança entre a comunidade sueca em

Moçambique, sobretudo no período da guerra civil. Sua trajetória ilustra o que já descrevi:

Minha esposa e eu caímos de pára-quedas em Moçambique. Foi coincidência pura. Íamos ao Butswana visitar amigos, mas encontrei um amigo de infância que ia a Moçambique e fomos visitá-lo lá. Eu tinha estado em movimentos de solidariedade à América Latina, ao Chile e tinha contato com o GAS. Em 1977, eu já tinha interesse por política internacional e havia um debate dinâmico aqui na Suécia. Foi a partir daí que surgiu o trabalho em Moçambique. Fiquei por sete anos, simplesmente porque tinha uma tarefa para fazer, e levou-me sete anos para fazer isto. Foi uma combinação de aventura e razões políticas. Não fazia diferença ir à América Latina ou ao Moçambique porque era a mesma luta da esquerda, não havia diferenciação. Então, Moçambique foi por acaso. É comum: muita gente que vai à África uma vez, lá fica.

Ele conta que, no começo de seu trabalho com o governo da Frelimo, tudo estava por

fazer: criar instalações e formar pessoas para andar por si próprias levou três, quatro

anos, mais ou menos.

A grande evasão de profissionais portugueses logo após a independência moçambicana

deu a essa geração de cooperantes suecos a oportunidade de estar em uma situação em

que sentiam que podiam contribuir e, segundo eles, em que você realmente faz a

diferença. Faltavam profissionais em toda parte, e os suecos encontraram essa desejada

utilidade em diferentes campos. Suas habilidades, eles lembram, serviam como um

modelo ou algo parecido. Mesmo não tendo a experiência necessária, não aconteceu

nenhum desastre.

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A situação pós-colonial em Moçambique parece ter reunido as condições necessárias

para que esse sujeito sueco, engajado e aventureiro, combinasse seus interesses político,

social e profissional. Em Moçambique, disseram ter encontrado pessoas com alto nível de

formação, bem educadas e com capacidade de liderança, mas o povo moçambicano, em

geral, não tinha, naquela altura, nem de longe a formação mediana de um cidadão sueco.

Eles podiam ensinar coisas úteis, às vezes simples, como escrever um cartaz.

Paradoxalmente, muitos suecos que foram trabalhar em Moçambique, logo após sua

independência, estiveram envolvidos em projetos grandiosos nos quais dificilmente

alguém poderia deixar sua marca pessoal. Conforme recordam, trabalhavam 12, 18 horas

por dia, tentando fazer o máximo. Os resultados, no entanto, não eram também

esperados a curto ou médio prazo.

Sempre em nome da solidariedade internacional, contra o racismo e o apartheid,

aceitaram trabalhar onde fosse preciso, o que, em geral, não correspondia às suas

habilidades nem às suas formações profissionais. Talvez os médicos tenham sido os

únicos que não se desviaram de seu campo, mas, mesmo assim, muitos deles

trabalharam fora de suas especialidades. Os depoimentos a seguir são exemplos de uma

situação que se repetiu com muitos cooperantes:

De 1979 a 1982, meu marido e eu fomos ao Moçambique como professores. Eu tinha 30 anos, e ele, 28. Havia estudado espanhol e sido membro do comitê chileno, mas segui a onda de ir para as colônias africanas. Estudei biologia, mas me pediram para ensinar geografia durante um ano, e depois fui professora primária. Trabalhei em um programa de geografia com outros suecos. Como coperante recrutada pelo GAS, recebia dez vezes menos do que o pessoal da Sida.

Eu escrevi para o novo governo moçambicano, me oferecendo para trabalhar lá. Sou economista e senti que, com minha experiência na Sida, eu poderia ajudar e tentar contribuir para a construção de novas estruturas para a administração da ajuda externa. Levou muito tempo

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até eu receber alguma resposta e, em 1977, recebi uma mensagem de que seria interessante que eu fosse. Naquele tempo, era perfeitamente possível viver lá com o salário que o governo pagava. Na verdade, quando cheguei a Maputo me disseram que eu não trabalharia para aquele departamento, e sim no planejamento de grandes projetos. A estrutura que encontrei era herança da administração portuguesa dos tempos coloniais.

Entre os Velhos Combatentes havia pedagogos ensinando inglês, clínicos gerais fazendo

cirurgias, economistas na agricultura de produtos tropicais etc. É possível que esse desvio

de foco profissional não tenha mesmo provocado nenhum desastre, como avaliaram. No

entanto, é preciso lembrar que a carência moçambicana por mão-de-obra especializada

acabava por criar um ambiente condescendente com os cooperantes estrangeiros e vice-

versa.

Quando um profissional de uma área era colocado em outro campo, poderia ter preferido

voltar para casa, mas o que verifiquei foi que eles escolheram tentar, assumindo o

trabalho como um dever maior de mudar o mundo. Quando um cooperante procurava

seus contratantes no governo moçambicano, era convidado a ficar, normalmente em

nome dos ideais socialistas. Era convencido de que a causa do povo moçambicano

dependia dele naquele posto, naquela atividade. Por outro lado, eles se sentiram, em

geral, estimulados a ter novas experiências e a assumir responsabilidades que

possivelmente não estariam em condições de assumir em seu próprio país. Todo esse

processo resultou, para alguns cooperantes, numa formação extremamente ampla, que

os tornou muito requisitados dentro e fora da Suécia, principalmente como consultores

das organizações internacionais.

Um desses cooperantes, que dedicou sua vida a encontrar pessoas na Suécia que

pudessem ir à África como voluntárias, foi um dos primeiros estrangeiros a chegarem a

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Maputo para apoiar a Frelimo. Ele parece se divertir ao lembrar que foi recebido como

uma celebridade internacional, o que reconhecia que não era. Aceitou o papel de ser

exposto como um troféu ao povo moçambicano porque entendeu que, naquela altura, a

sociedade estava acostumada a só ver brancos em postos de comando. O presidente

Samora Machel precisava mostrar que tinha seus próprios brancos, com cujo apoio

levaria o progresso a Moçambique.

Na opinião de alguns dos meus informantes, uma parte dos que acudiram ao pedido de

Samora Machel para ajudar Moçambique a se reconstruir, depois da libertação, estava

inclinada a fazer política, ainda que o motivo oficial de suas estadias lá fosse a prestação

de assistência técnica. No entanto, as circunstâncias encontradas em Moçambique

fizeram com que a competência técnica fosse às vezes utilizada de uma forma um tanto

quanto improvisada e adaptada. Na avaliação de um dos meus entrevistados, os

cooperantes chegaram de muitos lugares com habilidades em várias áreas – agricultura,

engenharia, educação ou saúde, e muitos deles vinham de uma revolução fracassada em

seus próprios países, como os da América Latina ou os portugueses do partido

comunista.

Um dos Velhos Combatentes comenta:

Não foi para isto que eles foram requisitados. O governo moçambicano considerou a situação de algumas pessoas que tinham uma agenda política, mas a posição principal foi a de que os moçambicanos é que deviam fazer política em Moçambique, não os de fora. Esse é um problema em todas as relações de ajuda. As agências de cooperação ou governos que dão assistência às vezes têm uma agenda política, como os Estados Unidos e o Banco Mundial, e eles todos tiveram suas estratégias.

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Havia, em geral, uma atitude idealista dessa geração de cooperantes suecos, mas

também dos de outras nacionalidades, que agiam politicamente e acreditavam que o

objetivo da Frelimo era completamente possível de ser atingido. Passados 30 anos, os

Velhos Combatentes avaliam, com uma certa condescendência, que os nórdicos foram

muito “olhos azuis”. No entanto, atribuem esse naivismo a um cenário internacional

historicamente único, que acabava por empolgar até aqueles mais reticentes.

Esse foi, por exemplo, o caso de um professor casado com uma médica que disse ter ido

a Moçambique contra sua própria vontade, porque a esposa queria muito ir. Para ele, a

maneira de pensar, que promovia uma certa solidariedade com o partido da Frelimo – em

nome da reconstrução de um país diante de grandes mudanças – ajudava-os a superar

as dificuldades com a língua, cultura, realidade local e com o formalismo do partido.

Conforme ele diz,

eram coisas muito difíceis, um pouco duras, mas mantínhamos a esperança de que se tratava de uma mudança política boa para um país rural, que iria se tornar industrial. Mas achávamos isso sem fazermos muita reflexão, muito definidos pela agenda retórica da Frelimo.

Algumas das pessoas com as quais conversei fazem hoje críticas a determinados

procedimentos do governo da Frelimo e confessam que sentiram desconforto em certas

situações. Admitem, contudo, que mesmo assim estavam dispostas a dar seu apoio à luta

contra o apartheid, que acreditavam ser a luta maior.

Quando abordavam esse assunto, alguns dos meus informantes se lembraram de me

recomendar o livro do antropólogo Christian Geffray, A razão das armas; antropologia e

guerra contemporânea em Moçambique, editado no começo dos anos 90, e que analisava

a guerra contra a Renamo. A forma como se referiam ao livro me fez pensar que ele foi

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recebido como uma “autorização” para que expressassem suas críticas ao governo

socialista de Moçambique.

Segundo Peter Fry, a versão oficial da Frelimo era de que a Renamo seria um grupo de

“bandidos armados”, sem programa político nem apoio popular, com o objetivo de

meramente destruir o socialismo em Moçambique. Sua análise é de que,

Naqueles tempos da guerra fria, qualquer crítica à Frelimo era interpretada como sinal de simpatia pelo capitalismo e pelo apartheid. O socialismo em Moçambique tornara-se um sistema fechado, protegido pelas “elaborações secundárias” que Evans-Pritchard descreveu para os azande. As opiniões discordantes eram rejeitadas por meio da desqualificação das pessoas que as emitiam, considerando-as simpatizantes do apartheid e do capitalismo internacional, os “inimigos internos” do regime socialista da Frelimo. (FRY, 2005, p. 71)

Ele discute o trabalho de Geffray (1991) e o impacto de suas análises que,

provavelmente, alteraram significativamente o modo de ver a guerra civil moçambicana:

O livro de Geffray afirmava que, ao contrário da versão oficial, grupos inteiros, sob liderança dos anciões de linhagens específicas, deixaram espontaneamente áreas controladas pela Frelimo para unir-se à Renamo. Ele dizia que esses grupos eram precisamente os que foram excluídos tanto pelo estado colonial quanto pelo governo da Frelimo. A Renamo deu-lhes a oportunidade de usar armas e violência para se colocarem fora do controle do que ele chamava de “Estado Aldeão”, referindo-se à política de destruir a organização política e residencial prévia para construir “aldeias comunais”. (Idem, p. 72)

A Razão das armas, portanto, contribuiu para o enfraquecimento da tese segundo a qual

a Renamo representava exclusivamente a mão do apartheid em ação contra a soberania

do povo moçambicano, a partir, principalmente da afirmação de Geffray de que a Renamo

havia conquistado apoio popular entre os descontentes com o governo da Frelimo.

Transcrevo, a seguir, trecho da entrevista com uma enfermeira sueca que tem toda a sua

vida recortada entre Suécia e Moçambique. Ela me recebeu dizendo que tinha um grave

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problema cardíaco, porque seu coração era dividido entre os dois países. Dias depois do

nosso encontro, me mandou um e-mail dizendo que nossa conversa fez com que ela

melhorasse um pouco do problema no coração. Viajara muito jovem ao Moçambique, fora

casada com um moçambicano e, quando voltou à Suécia, já tinha filhos. É uma ativista

incansável pelas causas africanas; alguns dos cooperantes que entrevistei, da velha e da

nova geração, disseram que foram a Moçambique por sua influência. Seu intenso

engajamento político me faz acreditar que a condescendência quase ilimitada dos

cooperantes suecos com a situação que encontravam em Moçambique não era

expressão de sua ingenuidade, mas sim de sua ideologia política. Talvez uma “estratégia

revolucionária”, ainda que velada:

O GAS entrou em contato conosco, os que tínhamos já passado pela escola de Sundsvall, para ver se havia interesse de ir trabalhar nas colônias. Então, eu pensei em ir para Guiné-Bissau e fui viver em Estocolmo para participar do grupo de recrutamento que se criou. Mandaram meus papéis para Angola, Guiné-Bissau e Moçambique e eu acabei indo ao Moçambique. Eu tinha trabalhado dois anos como enfermeira aqui na Suécia, o que não é muito, mas naquele tempo havia falta de tudo em Moçambique. E eles pensaram que eu era enfermeira B. Eu não sabia que enfermeira B era aquela que tinha, no máximo, terminado a quarta classe e tinha um ano de enfermagem. Eles achavam também que eu tinha uns 17 anos, mas com o tempo descobriram que talvez tivesse um pouco mais. Mas eu acho que toda essa confusão foi interessante porque me obrigou a trabalhar junto com outras colegas, trabalhar à noite, ver a realidade. Acho que foi muito bom para mim, porque senão a pessoa só vê tudo de fora, de cima. Mas eu vivia a realidade: me zanguei com pessoas preguiçosas, como também com os suecos. Lá, levei anos para entender que nem todos queriam a mudança e nem eram da Frelimo. Custei a entender. No hospital, tínhamos conselho de base que tomava decisões sobre as enfermeiras e serventes que não queriam fazer limpeza. Coisas práticas, não políticas. Estávamos proibidos de participar de atividades políticas, mas para mim era natural apoiar a Frelimo.

Esse apoio não era, ao que parece, unilateral. Um dos economistas suecos que foram a

Moçambique para trabalhar no Ministério da Agricultura estranhou o fato de esse

Ministério jamais ter tomado uma posição mais decidida com relação aos doadores

nórdicos. Na sua opinião, se os doadores encontrassem resistência, se dedicariam mais a

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buscar as melhores soluções para os problemas agrícolas em Moçambique. Porém, no

âmbito do secretário de Estado, ele foi informado de que a relação entre Suécia e

Moçambique era política, e não seria recomendável criar polêmica ou escrever coisas

para ofender a amizade entre esses dois povos. Como ele relata, coisa entre Samora

Machel e Olof Palme, que não se devia mexer.

Segundo meu informante, nos anos seguintes à independência moçambicana, o

Ministério da Agricultura estava cheio de cooperantes de várias nacionalidades, como

alemães, soviéticos e búlgaros. Ele disse que a Suécia era generosa quanto ao volume

de apoio, arcando com 80% dos recursos e que, apesar de os nórdicos reclamarem que

se gastava dinheiro como não devia, não houve cortes.

Havia um movimento para convencer os suecos a se engajarem na luta de apoio a

Moçambique, que se dava tanto nas suas relações sociais quanto nas pessoais. Foi

bastante comum, por exemplo, que a decisão de ir a Moçambique partisse das mulheres,

e não dos maridos. A juventude sueca abraçara enfaticamente o movimento feminista, e

muitas mulheres foram à Escola de Sundsvall, onde fizeram tudo como os rapazes.

Encontrei-me com algumas dessas mulheres que são apontadas como uma referência

importante nas questões de cooperação para o desenvolvimento. Elas vêm de famílias

liberais – mesmo aquelas do norte da Suécia, considerada uma região conservadora –

que, segundo disseram, apoiaram as escolhas das filhas quase incondicionalmente. Uma

delas contou de sua precoce curiosidade de saber sobre o que estava longe, mesmo que

tivesse medo de ir lá ver. Ela é filha de membros de uma igreja que manteve missionários

na África, mas foi para a Escola de Sundsvall para encontrar uma outra perspectiva para

seu interesse em cooperação, porque não queria ir à África para dizer aos africanos em

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que deus deveriam acreditar. Essas mulheres chegaram ao campo da cooperação para o

desenvolvimento através do GAS, a principal ONG sueca de apoio aos países africanos.

Mais tarde, muitas delas se mantiveram ligadas ao trabalho das organizações não

governamentais suecas, alegando incompatibilidade com as estruturas burocráticas da

Sida, por exemplo. Essa visão está expressa no seguinte comentário:

Não gosto da burocracia da Sida, por exemplo, para se fazer carreira lá. Fiquei nas ONG’s para apoiar uma sociedade civil que seja competente, capaz de dialogar com seu governo. Queremos também dialogar com nosso governo para eles terem boas políticas de cooperação internacional.

O GAS manteve, durante muito tempo, a ARO (do inglês, African Recruitment

Organization), uma organização para recrutar cooperantes para os países africanos.

Segundo um economista que trabalhou longamente em Moçambique, havia uma

hierarquia salarial entre os cooperantes estrangeiros. Normalmente, os que tinham menor

salário eram pagos pelo governo moçambicano e, a seguir, vinham os recrutados pela

ARO/GAS. Os funcionários da Sida eram mais bem pagos, e só recebiam menos do que

os do PNUD/ONU. Alguns poucos cooperantes disseram que, devido à extrema

necessidade de seu trabalho, recebiam uma quantia complementar do governo

moçambicano.

A diferença de salários me pareceu ter incorporado, ao longo dos anos, um valor

simbólico relevante. A alguns cooperantes do GAS, pareceu-lhes que seu salário teria

sido, por exemplo, dez vezes menor do que o dos funcionários da Sida. Para outros, essa

diferença foi de umas quatro vezes. Além disso, os cooperantes que estavam ligados ao

GAS davam para a organização uma contribuição de 10% dos seus salários. Essa

hierarquia salarial, na opinião de alguns que foram pelo GAS, acabou por manter os

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funcionários da Sida mais isolados da realidade moçambicana do que os outros

cooperantes, devido ao seu alto padrão de vida. No entanto, entendo que esse

sentimento teve uma razão mais simbólica do que prática, porque, como os cooperantes

relataram, quase não havia o que comprar, principalmente nos anos da guerra civil: um

pouco de arroz, óleo, com muita sorte um pouco de frango. Também não havia sistema

de transporte, e as ofertas de hotel eram poucas. Disseram que havia uma rede de

contatos entre os cooperantes de diferentes nações – suecos, dinamarqueses,

holandeses, canadenses, italianos –, que se hospedavam uns nas casas dos outros.

Apesar do reconhecimento de uma hierarquia salarial entre os Velhos Combatentes,

nenhum deles disse que os salários fossem um fator determinante para irem a

Moçambique. Um deles argumentou que recebia 1.500 coroas suecas por mês, enquanto

o salário equivalente na Suécia seria de cerca de 15 mil coroas.

Um dos médicos que desenvolve em Moçambique um trabalho reputado pelos Velhos

Combatentes como dos mais relevantes foi apontado como uma liderança que, nos anos

70, convencia facilmente seus colegas médicos e enfermeiros a irem trabalhar em

Moçambique. Quando me encontrei com ele, mencionei as opiniões que colhi sobre sua

reputação de recrutador, título do qual declinou elegantemente, explicando:

Não posso dizer que eu os “recrutava”. Nós nunca dissemos “você deve ir, porque Moçambique precisa de você”, mas estimulamos e motivamos uns aos outros. Escrevi muitas cartas às pessoas, motivando-as a repensar a possibilidade de ir ao Moçambique, porque isto daria a elas uma experiência extraordinária que só quem fosse a esse outro planeta Moçambique, a essa outra realidade, poderia ter. Isso era muito óbvio para nós. Alguns nunca foram, mas outros realmente decidiram ir. Não havia perigo nenhum, era uma questão de desejo, e mais e mais pessoas desejavam ir.

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Na sua opinião, no final dos anos 60 e começo dos anos 70, a juventude mundial abria

seus olhos. Aqueles que tinham motivos para entrar em conflito com seus pais, que

romperam de alguma forma com eles, deviam ser capazes de fazer alguma coisa

diferente do que eles fizeram. Esse foi o caso de muitos de seus amigos na Suécia, que,

no entanto, tinham poucas habilidades para fazer algo de relevante. Eles não podiam ir ao

Vietnã, mas podiam ir à África porque as necessidades do povo africano eram evidentes.

Muitos dessa geração tinham filhos e não poderiam se mudar para um lugar sem saber

para onde ir. Então, organizaram esse movimento, que funcionou e que permitia que

fossem em busca de desafios com as suas famílias. Para ele, as pessoas não se sentiam

forçadas a ir a Moçambique; estavam, ao contrário, excitadas com a possibilidade de

fazer alguma coisa significativa com suas vidas. Quando eu tento analisar com meus

amigos por que fomos, ele diz,

vemos que, no final das contas, foi um grande sacrifício, e nós não faríamos isto por dinheiro, não nos pareceria interessante. Nossos filhos não romperam conosco da mesma forma que fizemos com nossos pais. Nossos filhos, que foram conosco ao Moçambique, ou nasceram lá, viram tanta pobreza que são agora sensíveis o suficiente para saberem que a pobreza tem aspectos muito diferentes.

O envolvimento familiar mencionado, é corroborado por outro Velho Combatente, que

chama a minha atenção para uma tradição sueca de as famílias morarem fora por um

tempo, também no âmbito das grandes empresas, e não só no da cooperação

internacional. Ele diz que, na sua família, era uma coisa muito natural a possibilidade de

saírem para conhecer melhor a realidade, não só de leituras e de visitas, mas para viver

uma experiência de um país e de uma situação. Quando chegaram a Moçambique, num

sábado, a pessoa que devia esperá-los se esqueceu, e ficaram detidos por algumas horas

na emigração. A partir daí, ele brinca, já estávamos vacinados.

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A Vida em Moçambique

Durante o trabalho de campo, não encontrei um cooperante sueco que dissesse que

havia vivido mal em Moçambique, nem por questões coletivas como a Guerra, nem por

questões pessoais. Afora casos de frustrações no trabalho, não se queixam – ao

contrário, dizem que tiveram a grande chance de uma vida, de viver num país classificado

entre as nações mais pobres do mundo e, ao mesmo tempo, segundo acreditam, muito

mais rico do que a Suécia do ponto de vista existencial.

Perguntei por possíveis faltas: familiares, segurança, conforto, chocolate, queijos

franceses... e a imagem de um Moçambique rico e hospitaleiro sobressaiu. Quem precisa

de chocolates se pode ter um enorme ananás? – perguntou-me uma médica do grupo dos

Velhos Combatentes, que havia aceitado recentemente um trabalho em Moçambique,

porque queria mostrar o país aos filhos adolescentes. Ela tem lembranças de uma vida

muito interessante, com muitos amigos, muitas festas, com gente do mundo todo e

também do GAS. Em 25 anos, somos como velhos amigos. É como se tivéssemos

alguma coisa que as outras pessoas não têm, sintetiza.

Muitos dos meus entrevistados relatam que, nos primeiros anos, a vida em Moçambique

foi influenciada pelo entusiasmo revolucionário. Muitos viajaram sem saber nada sobre o

país além do que havia em um livro feito pelo GAS, cujo tom era a luta continua, a vitória

é certa, e no qual Samora Machel apresentava um plano de dez anos para tirar

Moçambique da pobreza. Estima-se que houvesse cerca de 500 suecos lá, nos primeiros

anos após a libertação.

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Na lembrança destes suecos, a empolgação revolucionária traduziu-se em um ambiente

de muitas horas de trabalho, que extrapolavam muito as regras trabalhistas, que são o

orgulho dos trabalhadores suecos. Elas não valiam ali, no campo de batalha contra o

imperialismo internacional.

Mas também havia festas quase que a cada fim de semana, com música, dança e um

pouco de cerveja, muito mais ao estilo moçambicano do que europeu. Em nome desse

entusiasmo, concordavam pacientemente com as condições de vida disponíveis. Faltava

o que comer e também não havia nada o que comprar nas lojas, mas as lembranças

desse tempo e de suas capacidades de adaptação foram narradas como a aventura de

suas vidas. Uma cooperante, que acabou se casando com um moçambicano, com quem

teve dois filhos, conta que, quando chegou a Moçambique, foi deixada numa pensão por

duas semanas. Quando ia se informar sobre seu futuro trabalho no Ministério da

Educação, diziam para voltar amanhã e tudo continuava bem:

Fui para uma escola nova em Maputo, que foi construída pouco antes da independência, era enorme. Tinha três turnos. Compramos uma bicicleta da China que só tinha modelo masculino. Fomos viver em casa de alguém que tinha ali um quarto de hóspede. Tá bom! Não havia nada a comer, não havia nada a comprar. Pensei: opa, o que que eu fiz? Vou ficar aqui 2 anos, 24 meses... Deram-me 50 alunos, todos iguais, exceto um, que era albino. Entrei, dei aula de biologia, tinha um pequeno livro, tipo compêndio. No colégio, havia outros professores estrangeiros, alguns da América Latina.

Conforme relatam, as condições que os Velhos Combatentes encontraram eram bastante

simples. As ruas eram cheias de gente, uma pobreza visível, e nas lojas não havia nada o

que comprar. Sempre faltou água e energia elétrica, mas, comparando com a Suécia, as

casas em que moravam eram grandes e havia o recurso de contratar empregadas

domésticas. Além disso, havia sol e praia, o que parece ter exercido grande fascínio nos

suecos.

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Embora os salários pagos aos contratados pela Sida sejam mais altos do que o que se

paga na Suécia, um médico ligado ao GAS disse que, durante cinco anos, recebeu o

equivalente a 500 dólares por mês, enquanto alguns médicos italianos recebiam 7 mil

dólares. Ele foi aconselhado a não falar o valor de seu salário, para que não perdessem o

respeito por ele. Viajou com a esposa e um filho; sua filha nasceu em Moçambique e

cresceu nas costas de uma mulher negra, empregada da família. Essa criança, filha de

um médico e uma enfermeira, ficou muito doente e, segundo seu pai, foi salva pela

empregada e por seus conhecimentos locais. Eles tentaram não ficar isolados como

estrangeiros e dizem que se divertiram e sofreram com os problemas do povo local.

As crianças suecas freqüentavam uma escola escandinava, mas, geralmente, conviviam

também com as famílias moçambicanas, o que os pais julgavam enriquecer suas vidas.

As relações sociais para pais e filhos em Moçambique, disseram, eram mais intensas do

que na Suécia, resguardando-se, é claro, as características pessoais. Na expressão de

dos meus informantes, alguns cooperantes nunca conseguiram sair muito da redoma que

recebemos da cultura sueca. Como a oferta de bens culturais, como cinemas,

restaurantes e cafés era quase inexistente logo após a libertação, os suecos tiveram que

aprender outras formas de lazer, como ir à praia e fazer visitas, sem que, para isso,

tivessem que fazer tanto planejamento anterior.

Quando tinham que trocar dinheiro, iam ao Banco Central, o que era o procedimento

oficial, porém pouco utilizado pelas pessoas que procuravam as vantagens do mercado

negro. Esse comportamento dos suecos, dizem, era sempre muito surpreendente: Por

que vão lá trocar dinheiro? Não fomos à candonga, não fomos ao mercado negro por uma

consciência ética contra a corrupção.

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Com a guerra civil, as organizações suecas decidiram que deviam continuar em

Moçambique, diferentemente da decisão que tomaram com relação a Guiné-Bissau. Foi

feita uma avaliação das condições em Guiné e a conclusão foi de que ali não havia

vontade política de trabalhar da maneira que o doador sueco exigia e, por isso, decidiram

se retirar e encerrar os projetos que tinham lá. Mas em Moçambique a avaliação foi de

que as condições ainda eram boas, porque tinham um presidente firme, a produção dava

respostas positivas, havia pessoas que estavam tentando lutar contra os bandidos

armados da Renamo.

Ano a ano, e depois, dia após dia, as condições pioraram muito para todos,

moçambicanos e estrangeiros, mas, ao que parece, sem muito impacto na posição dos

cooperantes suecos:

Durante todo o tempo da guerra, havia muita dificuldade, toda a produção desapareceu e não havia nada para comprar, a gente ficou sem nada, sem nada. Eu tinha meu vencimento, mas não havia o que comprar com o dinheiro, e no fim, não fazia falta para nós, porque tínhamos outros interesses.

Eles dizem que tentaram fazer com que os cooperantes ficassem com medo. Uma boa

estratégia da Renamo foi anunciar que colocaria minas terrestres nas praias,

demonstrando que percebiam que as praias faziam parte do fetiche tropical dos europeus.

Durante muito tempo, como lembram, os cooperantes suecos tiveram que se restringir a

fazer piqueniques nos jardins, assim como faziam em casa.

As lembranças dos suecos desse período não são feitas de fatos pitorescos. Em 1986,

em um dos centros de saúde em que uma médica coordenava cursos para funcionários

moçambicanos, mataram a professora, as parteiras e o diretor. Os suecos interpretaram

tudo isso como a ameaça que o crescimento de Moçambique representava para a África

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do Sul. Durante os anos 80, a tolerância dos suecos foi surpreendente até para eles

mesmos, que admitem que fizeram muitas coisas, como continuar a trabalhar com

projetos nas áreas rurais, coisa que não estava nas regras dos doadores, naquele

momento.

De acordo com os depoimentos que colhi, embora com um pouco de medo, defendiam

que era seguro ficar em Maputo, desde que não saíssem muito à noite. Nunca se soube

de nenhum sueco que tivesse morrido envolvido nas batalhas. Talvez por isso, não

encontrei no meu trabalho de campo nenhum sueco que tivesse considerado seriamente

a possibilidade de voltar para a Suécia por causa da guerra. Um deles me explica por que

não voltou à Suécia quando faltou segurança:

Ali havia uma lógica muito estranha, uma lógica que dizia que nós também atentamos contra nós próprios. Dizíamos a nós mesmos: quando a segurança piorar de tal maneira que não se possa ir à praia, vamos embora, ou quando a falta de segurança chegar à ponte entre a cidade Maputo e o subúrbio que se chama Matoba e nós só pudermos ficar dentro da cidade de cimento, iríamos embora. Às vezes saíamos para jantar com amigos e podíamos ver a guerra do outro lado da baía, mas dizíamos que, quando passasse para o lado de cá, teríamos que sair. Entretanto, não consigo me lembrar de uma pessoa que tenha terminado seu contrato antecipadamente por causa da guerra.

Ele admite que fez coisas que não faria se estivesse na Suécia. Mas sua estratégia de

negação dos riscos provocados pela guerra não eliminou a tensão que sentia e que só foi

perceber quando voltou para a Suécia e experimentou novamente a situação de

segurança que lhe era de praxe: só então senti alívio dessa pressão e pensei que não

voltaria nunca mais ao Moçambique. De fato, voltei depois muitas vezes.

No final dos anos 80, ficou impossível sair da cidade nova e isso complicou um pouco

mais a situação dos estrangeiros em Moçambique. Os cooperantes suecos ficaram

isolados em três hotéis centrais. No trabalho, muito dinheiro e energia foi gasto sem

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nenhum sucesso. Na avaliação de um Velho Combatente, que publicou alguns trabalhos

sobre a política de cooperação sueca, tudo não passou de um esforço para manter a

presença do Estado, ou seja, a presença da Frelimo. Para ele, os três anos do projeto em

que trabalhou só valeram como esforço de guerra, não só da guerra de Moçambique, mas

também da guerra contra o apartheid. As doações dos governos escandinavos tinham o

objetivo de terminar com o sistema do apartheid na África do Sul e, na sua opinião, essa

era a razão para a continuidade de projetos que não tinham possibilidade de mostrar

resultados positivos. E, nesse sentido, essa política teve um certo êxito.

Muita coisa que foi feita em Moçambique com o apoio do governo sueco foi desfeita

durante a Guerra, o que gerou um sentimento pessoal de frustração, embora, nas

organizações, como na Sida, essa situação tenha sido tratada com um certo eufemismo,

como definiu um de seus funcionários. Ele disse que, apesar de a versão oficial da Sida

ter sido positiva, há alguns que são um pouco desiludidos. A desilusão pode se mostrar

de várias maneiras e alguns ficam cínicos, porque agora podemos ver a força dos fatores

que estavam presentes naquela época.

Com a guerra contra a Renamo, as estruturas moçambicanas ficaram muito fortes e

fechadas, inclusive com a evidência de uma polícia secreta da Frelimo, segundo os

suecos, influenciada pela União Soviética.

Um dos cooperantes ficou sabendo pelos jornais de um escândalo envolvendo a polícia

secreta da Frelimo e uma delegação internacional que visitou prisões em Moçambique.

Ele conta que encontraram um estrangeiro que havia sido preso havia cerca de cinco ano,

sem qualquer tipo de julgamento. Era um estrangeiro que não tinha dinheiro, talvez

inocente e, segundo sua observação, este e outros tipos de atrocidades eram justificadas

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pela guerra civil, pela presença da Renamo e pela ameaça da África do Sul. Para ele, um

exemplo de mau uso do poder, que o levou a questionar o sentido do apoio que davam à

Frelimo.

Questionei meus informantes sobre a coerência do governo sueco e a validade da

continuação de seu apoio à Frelimo quando havia fortes sinais de que os procedimentos

de suas forças armadas seriam nada ortodoxos. Foram condescendentes consigo

mesmos e disseram que seria injusto deixar o povo moçambicano sem a ajuda sueca,

justamente no momento em que precisavam mais da solidariedade internacional.

Entendiam que a Suécia não estava apoiando a Frelimo, e sim o governo legítimo de

Moçambique, através do qual queriam ajudar o povo moçambicano. Além disso, alegaram

que ouviram dizer que a Suécia tentou influenciar os métodos da Frelimo através da

diplomacia silenciosa. Um dos cooperantes suecos, que esteve pessoalmente mais

próximo dos dirigentes da Frelimo, disse que havia posições diferentes dentro do próprio

governo e fez a seguinte defesa:

numa situação como essa, em que havia dois cachorros doidos se pegando, você não vai ficar dizendo: tu não vai morder a orelha porque isso não é permitido. Apesar de tudo, a Frelimo representava um movimento de libertação, e a Renamo, um movimento para trás, financiado pelo apartheid.

Certos aspectos da guerra contra a Renamo ficaram até hoje encobertos e a opinião

pública internacional não teve acesso à informação do que de fato estava acontecendo.

Para meu informante, a autocensura de informações na Suécia não é qualitativamente

diferente do que foi em Moçambique na época da guerra civil, e participar de um processo

no qual não se exponha publicamente o que de fato acontecia não deu a ele nenhum tipo

de conflito moral.

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De acordo com sua análise a posteriori, se a Suécia não tivesse continuado com a

Frelimo durante a Guerra Fria, não teria a influência que tem no desenvolvimento de

Moçambique. Ele pensa que a Suécia é considerada pelos moçambicanos como uma

parceira muito séria, porque não foi oportunista de ficar lá só nos momentos de paz e

crescimento. Considerando o contexto da Guerra Fria, ele defende a tese de que a

permanência da Suécia foi politicamente correta, embora não em termos de direitos

humanos. O problema da sua tese é que o respeito aos direitos humanos é condição sine

qua non para a correção política.

Depois de vários anos envolvidos com cooperação internacional, é possível que as

motivações iniciais desses Velhos Combatentes tenham se mesclado com muitas outras

experiências, a ponto de ter se tornado difícil descrevê-las para uma inesperada

pesquisadora brasileira. No entanto, ele se dispuseram a fazer isto, mesmo que o verão lá

fora estivesse irresistível, como na tarde em que conversei com esse engenheiro que

acabava de chegar da África, direto para nosso encontro:

Eu troquei radicalmente de trabalho três vezes, e quando vim para a Sida, pensei que era realmente o que queria fazer. Não é filantropia, faço isso porque penso que é importante. Há muita gente pobre no mundo, muita gente sofrendo, e se nós, suecos, podemos fazer alguma coisa por elas, eu quero estar junto. Você pode chamar isso de filantropia ou do que quiser, mas eu também penso que é um trabalho muito interessante e recompensador quando você consegue ter algum sucesso. Muitas vezes nós conseguimos, mas há também um monte de frustrações nesse trabalho, porque você sente que suas boas intenções são anuladas pela corrupção ou pelo que for. Então, lutar contra a corrupção é mais uma coisa a se fazer.

Suas frustrações não são descritas aqui como uma eventual falta de eficácia do que ele

chamou de “suas boas intenções”, mas sim causadas pelo “outro” e pelas condições que

servem de pano de fundo às ações de cooperação.

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Ele descreve brevemente a história do seu envolvimento com a cooperação para o

desenvolvimento:

Quando éramos crianças, ganhávamos a cada ano, no natal, uma camiseta de apoio a alguma causa do terceiro mundo. Se eu não queria comer, era sempre lembrado que havia milhares de criancinhas famintas na China, na África ou na Índia. Acabei trabalhando para que elas não tivessem mais fome. Quando isso acontecer, acho que vou poder deixar um pouco de comida no prato.

Na tentativa de construir um perfil do Velho Combatente, podemos dizer que foram

movidos por motivos que, provavelmente, ficam entre o engajamento e a aventura. Trata-

se de sujeitos que quiseram, desde cedo, aprender línguas estrangeiras e saber o que se

passava em outras partes do mundo. A abertura para “o outro” expressou-se tanto no

interesse por viagens e cursos sobre a realidade internacional quanto na atenção com os

poucos emigrantes, muitos deles refugiados, que começavam a chegar para estudar nas

universidades suecas. Foram à universidade buscar formação pessoal e habilidades

necessárias para ajudar o desenvolvimento dos países pobres. Os anos na universidade

foram marcados pelo engajamento em movimentos sociais e de solidariedade

internacional. Foram se inclinando cada vez mais à esquerda e a formação em assuntos

estrangeiros colocou-os do mesmo lado do movimento de 1968 na França e em oposição

aos Estados Unidos, que sempre representou para eles o neocolonialismo que repudiam.

Nova Ordem, Novos Atores: os Técnicos Estrangeiros

Quer mesmo saber sobre a cooperação sueca? Fale com gente de mais de 50 anos, não

fale com os jovens. Recebi essa sugestão de um ex-preso político chileno, exilado na

Suécia desde o golpe de Pinochet. Ele trabalha em uma ONG que tem projetos em várias

partes do mundo, inclusive com os camponeses em Moçambique. Conta que saiu da

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prisão por um pedido de Olof Palme à ditadura chilena, mas que nunca soube a razão

dessa deferência. Quando fala da Suécia, diz “nós”, e não “eles”. Comenta que não

lamenta o exílio na Suécia (porque os suecos são bons), nem se importa de ter sido

impedido de trabalhar pelo povo do Chile. Ele diz que nunca viu diferença em trabalhar

pelo camponês chileno ou pelo africano: é só a cor da pele, e isso não significa nada.

Ele faz uma análise do que chama de setor da cooperação internacional e observa que,

falando em termos de tipos ideais, pode-se perceber uma distinção entre ações

valorativas, em geral movidas pela ideologia política de seus atores, e ações que, embora

altruístas, estão voltadas para um fim último e nas quais se pode perceber um alto índice

de pragmatismo:

Há 26 anos trabalho nesse campo, que tem um componente ideológico muito grande. E não é só para os suecos. Tenho encontrado com profissionais de outros países com compromisso ideológico muito forte. São ingleses, franceses, alemães, e inclusive norte-americanos, o que é difícil de acreditar, mas existe.

Por outro lado, identifico uma visão pragmática quando ele informa que

o setor de ajuda internacional é um setor como qualquer outro. Assim como tem funcionários internacionais que estão no Banco Mundial, em Nova York, na sede das Nações Unidas, ou o pessoal que está nas embaixadas, existe um grupo de funcionários internacionais que são de campo e que gostam de trabalho de desenvolvimento. São profissionais: uns são médicos, agrônomos, sociólogos etc. Esse é um dos campos mais ricos que existe. Não há universidade que te dê o que é a relação internacional, a relação de classe, a relação financeira, o nível da pobreza, como o povo compartilha a pobreza e como se pode contribuir quando se está do outro lado. É um desenvolvimento profissional que não tem igual.

E, por fim, ele estabelece um parâmetro:

Eu diria que, entre 80% dos suecos que trabalham em programas de desenvolvimento, pelo menos 50% faz seu trabalho por ideologia, 25% por interesse profissional, e os outros 25%, por interesse econômico.

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Pergunto, então, pela razão de sua sugestão para conversar com “os velhos”, e ele me

diz que a nova geração é menos humanista, menos idealista, é mais negócios, o que

entendo como uma posição sua em favor do recorte ideológico e político da cooperação

internacional. A sua idéia sobre “os novos” cooperantes suecos representa a visão que os

Velhos Combatentes têm da geração que os sucedeu. Para eles, há muito menos

ideologia e vontade política na nova geração, ou não há motivação política, trata-se de

formação de recursos humanos.

Alguns dos Velhos Combatentes são hoje freqüentemente convidados a participar da

seleção de novos cooperantes. Outros, devido a seus cargos na Sida ou nas ONG’s de

cooperação, são responsáveis pela seleção de Novos Técnicos Estrangeiros. Penso que

é importante conhecer como interpretam as semelhanças e diferenças entre essas duas

gerações e suas motivações para participar do jogo da ajuda internacional.

Nas conversas com eles, encontro referências a dois tipos de novos cooperantes suecos.

Da forma como são descritos, é possível supor que, ao mesmo tempo em que geralmente

demonstram uma certa admiração por suas habilidades profissionais, sentem falta de uma

“causa” política que antecedesse a cooperação para o desenvolvimento em si. O primeiro

tipo aparece descrito como romântico e sonhador, tem entre 50 e 55 anos, por algum

motivo não participou dos movimentos dos anos 70 e 80 e só agora está em condições de

ir trabalhar fora do país. O outro tipo tem entre 30 e 35 anos, já viajou muito, estudou

muito, fez universidade e tem interesse político de tornar o mundo melhor, mas também

quer ser um profissional reconhecido.

Para uma funcionária da Sida, que está nesse campo há 30 anos, a nova equipe chega

muito mais bem treinada do que os colegas de sua geração chegavam, incluindo ela

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própria. Eles costumam brincar durante as reuniões, dizendo que, se tivessem que se

candidatar novamente a um emprego na Sida, não estariam bastante qualificados. A

demanda atual é por um profissional altamente qualificado e há cursos universitários para

formação sobre desenvolvimento. Bem diferente do “aprender fazendo” que caracterizou

os primeiros anos da ajuda externa sueca. No entanto, ela faz uma ressalva: Mesmo

aprendendo na universidade, ainda penso que o aprendizado real acontece quando se

está lá, assentado com o projeto.

Sua opinião sobre as novas tendências de qualificação dos técnicos estrangeiros é

corroborada por outro funcionário da Sida, que trabalha no setor de pesquisa:

Agora há uma maior discussão sobre cooperação e sobre como trabalhar nisto, e é bem mais difícil ser um consultor. Você tem que ter muito conhecimento sobre o que está em torno do seu campo, sobre a situação e sobre como se espera que você seja capaz de ajudar. Então, é bem mais difícil do que quando começamos.

O cenário atual da cooperação não é caracterizado, no entanto, apenas por jovens com

alta e precoce qualificação. Principalmente nos recrutamentos do GAS, a maior parte dos

candidatos que se interessam em trabalhar na África é composta por mulheres maduras,

que têm seus filhos crescidos, já tiveram experiência profissional trabalhando na Suécia e

agora querem fazer alguma coisa significativa. Uma das mulheres pioneiras nos anos 70,

que entrevistei, não disfarça sua pouca simpatia por esta nova tendência ao dizer que

o GAS, hoje em dia, não manda principalmente a nova geração. Vão as velhas tias que querem sair da monotonia e fazer alguma coisa. Então, quando chegam ao país e percebem a situação que existe lá, que as coisas não funcionam, ficam estressadas. Mas é difícil recrutar pessoas novas por várias razões. Uma delas é que o Moçambique não necessita desta gente toda, porque tem seus médicos, supervisores e professores. A outra coisa é que a juventude hoje viaja muito e, para nós, esta foi a única maneira de viajar. O GAS já teve 70 pessoas em Moçambique, e hoje tem 30.

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Um exemplo dessas mulheres é uma engenheira que trabalhou por muitos anos na ABB,

uma grande companhia sueca, e decidiu deixar seu emprego sólido para fazer um curso

de um ano na universidade sobre cooperação para o desenvolvimento. Depois desse

curso, conseguiu um emprego na Sida e, quando nos encontramos, estava se preparando

para trabalhar por dois ou quatro anos na embaixada em Moçambique. Ela diz que isso

representaria uma grande mudança, porque mesmo tendo viajado muito para o exterior,

agora vai alterar a sua vida e a de sua família. Sente-se muito inspirada com as novas

perspectivas e, ao mesmo tempo, aflita para ver como se sairá com o português e com o

novo trabalho, porque ela entende que ele vai demandar mais traquejo social, entre outras

coisas.

No GAS, eles têm uma máxima que diz que, muitas vezes, as pessoas não querem ir ao

Moçambique, e sim sair da Suécia. Isso pode se dar pelo clima frio, pelos dias cinza, por

vontade de encontrar um grande amor, por vontade de sair de um casamento ruim ou,

simplesmente, por não conseguir emprego na Suécia e trabalhar na África parecer ser

melhor alternativa do que o desemprego. Esse grupo de mulheres que escolhem trabalhar

em cooperação internacional muitos anos depois do que a sua própria geração parece se

enquadrar no caso dos que estão buscando, em primeiro lugar, sair da Suécia (ou de uma

situação indesejada). O relato a seguir foi feito por uma mulher gentil, mas com um

indisfarçável ar de tristeza. Ela desmarcou nosso encontro uma vez porque estava

indisposta e, dias depois, quando nos encontramos em um café, um lugar muito

agradável, no centro de Estocolmo, percebi que ela não sentia nenhuma satisfação de

estar ali, nem de falar comigo sobre sua experiência em Moçambique.

Sempre pensei que um dia gostaria de ir para a África trabalhar e ficar por algum tempo. Isso era um sonho, mas quando consegui o trabalho numa biblioteca em Moçambique – Oh, meu Deus, que medo da língua, da pobreza, da malária... Foi difícil começar a falar português. Decidi ir

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porque gostaria de ajudar a fazer alguma coisa boa com o meu trabalho, e também porque pensava que precisava fazer algo mais, uma coisa nova no meu trabalho, que era um pouco aborrecido. Eu também estive no hospital, tinha uma doença que fez com que eu precisasse fazer duas operações e tive muito tempo para pensar o que é que eu gosto de fazer na minha vida.

Na verdade, seu discurso é bastante ambíguo e nos faz uma provocação, que se traduz

na seguinte pergunta: nesse jogo, quem coopera com quem?

Um professor que é sempre convidado para dar palestras em cursos de treinamento para

técnicos estrangeiros pensa que as pessoas que estão hoje a caminho de Moçambique

não pretendem buscar uma via não capitalista para o desenvolvimento das nações

pobres. Ele reconhece na nova geração um outro tipo de idealismo: são pessoas que

acham que estão usando o que sabem para fazer coisas boas para o povo e as entidades

que vão encontrar lá. A sua avaliação sobre as duas gerações nos remete ao ciclo das

doações, com seus princípios de dar, receber e retribuir:

essa idéia de que estão lá para ajudar não é um bom ponto de partida. É melhor ter a idéia de que vai fazer coisas boas para si próprio, para sua própria vida. Eu, por exemplo nunca teria podido escrever os livros que escrevi, nem fazer as minhas palestras sem essa experiência de uma vida prática em um país como o Moçambique. Isso me dá mais credibilidade, mas também me dá mais visão de como é a relação entre um doador e um país pobre, entre o Banco Mundial e esse país, como discutir política em uma negociação entre uma entidade muito, muito forte e outra muito, muito fraca. Essas são coisas que se aprende.

Na visão de uma das pessoas que selecionam novos técnicos estrangeiros no GAS, há

20 anos, quem optava por viver em um país pobre não pensava muito nas dificuldades

que iria enfrentar. Mas os que vão hoje, além de estarem mais focados em emprego e na

profissão, demandam mais do GAS e dos seus coordenadores. Ela diz que eles querem

muito mais do que uma cama, como era no seu tempo, e que não podem fazer qualquer

trabalho se não tiverem carro, computador e uma boa casa. Não posso dizer isto para não

magoá-los, ela confessa, demonstrando certa nostalgia por um passado distinto,

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mas essa é a parte que eu menos gosto no meu trabalho, porque mostra que o sueco tem um pensamento solidário, mas quando chega na hora da prática, reclama que quer um ar-condicionado, por exemplo. Quando estão se preparando para viajar, sabem o que terão de mobiliário, que a comida no norte é mais cara do que em Maputo, mas depois vêm com uma série de reclamações...

Um desses jovens cooperantes foi pela primeira vez a Moçambique através da Cruz

Vermelha. Depois de três ou quatro meses, ele viu que precisava de um carro, porque o

transporte público era ruim, ineficiente e inseguro. Mas a Cruz Vermelha resistiu um

pouco até atender a sua solicitação. Na sua maneira de ver esse problema, não era

preciso arriscar a vida para mostrar solidariedade.

O novo cooperante sueco encontra necessidades em Moçambique bastante distintas das

que predominaram nos anos 70 e 80. Hoje, o país precisa de expertise, mais do que

preencher vazios profissionais, e, de acordo com o princípio do ownership, pelo menos

teoricamente o governo Moçambicano não precisa aceitar qualquer tipo de condição para

receber doações. Todo o campo se transformou muito, e, com ele, os sujeitos que

movimentam o ciclo das doações, no pós Guerra-Fria.

A complexidade do sistema mundial no pós Guerra-Fria e os efeitos da globalização na

circulação de informações podem ter contribuído para a constituição desses Novos

Técnicos Estrangeiros. Como a principal idéia em validade nesse campo é o knowledge,

eles precisam começar muito cedo seu processo de formação. Foi interessante notar que,

à exceção das velhas tias, todos os demais entrevistados disseram que seu interesse por

assuntos internacionais começou muito cedo e, mesmo sendo muito jovens, ficam à

vontade para salientar que têm se dedicado a esse campo há muitos anos. Um dos

profissionais mais representativos dessa geração, segundo dois de seus ex-professores e

vários de seus colegas e ex-colegas, trabalha no Ministério de Assuntos Estrangeiros.

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Quando fiz minha pesquisa, ele já trabalhava ali há quatro anos e, antes de ocupar esse

cargo prestigioso, havia passado pela Sida por um curto período, trabalhando com

assuntos relacionados à pobreza. Ele chama a minha atenção para sua formação, que

considera pouco usual, porque começou sua carreira em uma organização da sociedade

civil. Ele diz:

Para mim, não é difícil combinar meu interesse por justiça e solidariedade nos países pobres com a missão que temos aqui no Ministério, porque o objetivo sueco nas relações internacionais está muito próximo da sociedade civil, ou seja, trabalhar por um mundo mais justo. Então, nesse sentido, não é tão grande a transformação de ir de um trabalho numa ONG para um escritório no governo.

O que ele provavelmente ainda não percebeu, ou não quis admitir, é que a sua trajetória

não tem quase nada de exclusiva. Ao contrário, é possível que tenha simplesmente

trilhado uma rota já consolidada na formação de novos profissionais para assuntos

internacionais de desenvolvimento, alternativos à geração dos Velhos Combatentes e

mais adaptados à nova ordem mundial.

Os depoimentos a seguir podem ilustrar melhor o que quero dizer:

Eu sou antropólogo, estudei nas universidades de Estocolmo e Uppsala e fiz meu mestrado na Inglaterra sobre Práticas de Desenvolvimento. Desde o começo de meus estudos, me interessei por países em desenvolvimento e por suas economias. Depois dos estudos, fui fazer pesquisa em Londres nessa área. Trabalhei também com muitas ONG’s que atuam na área do desenvolvimento e depois fui para a Sida (...) Eu preciso ter uma compreensão muito ampla sobre os assuntos de desenvolvimento, uma vez que nossa organização trabalha em campos diferentes e preciso entender os países. Então, eu sei um pouco sobre como trabalhar com direitos humanos, um pouco sobre agricultura etc. Eu tenho que me manter bem informado sobre o que se passa na sociedade civil, para saber o que é uma boa iniciativa e para monitorar e avaliar todos os projetos. Tenho estudado isto há muito tempo.

Desde muito jovem queria trabalhar fora, em países pobres ou em desenvolvimento. Não tenho esse tipo de tradição na minha família. Então, era um interesse pessoal. Na universidade, estudei ciências políticas e economia, especialmente dirigida a países subdesenvolvidos,

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sobretudo para os da Europa do Leste. Por isso, estudei russo. Depois dos estudos, passei por um programa para juniores, aqui na Sida, depois fui a Angola pelo Unicef e só depois fui, novamente pela Sida, para o Moçambique, trabalhar no setor de educação na embaixada sueca. Nesse tempo, já dominava bem o português. Hoje, tenho aqui um papel global e estratégico. Cada ano fazemos um plano anual a partir de uma discussão de estratégia que inclua o que vamos fazer no próximo ano, quais são os programas e qual vai ser nosso foco no diálogo.

O discurso desse grupo é permeado por menor ou maior ênfase nos aspectos

humanitários de seu trabalho. Houve comentários como: é uma atividade necessária; dá

um sentimento de dividir com as pessoas; fazer algo que realmente conte; mas isto,

segundo disseram, não diminui o caráter pragmático de ser um trabalho, ao qual se

dedica um determinado número de horas por dia, pelo qual se recebe um salário e ao

qual não se consegue chegar sem passar pela universidade, buscar oportunidades de

viajar ao exterior, fazer cursos de línguas, ler jornais, acompanhar problemas internos e

internacionais, ter contatos, domínio das políticas e das regras deste campo, dentre

outras coisas que foram citadas.

A relação acima, pela rapidez e dinâmica que deve ser cumprida, lembra o estilo yuppie45,

adaptado a um cenário onde, antes, se apresentaram críticas sociais, tanto as da contra-

cultura quanto a socialista, contra a ordem estabelecida.

Essa nova geração de cooperantes chegou a Moçambique depois da guerra e já

encontrou o país com uma economia de mercado. Pelos depoimentos de seus

representantes, posso concluir que experimentaram a vida moçambicana de uma maneira

um pouco diferente: recebem seus salários, vivem em casa grandes e confortáveis,

muitas vezes com empregadas domésticas, mas ainda falta água e energia, o que é

45 Yuppie é uma sigla em inglês para Young Urban Professional, com a qual se pretende descrever, nos Estados Unidos, a geração dos anos 80, mais conservadora do que a anterior, que coloca a questão profissional antes de todas as outras, está preparado para um ambiente competitivo no trabalho e tem interesse por bens materiais, como, por exemplo, aparatos tecnológicos.

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considerado muito cansativo nos dias de calor. Podem comprar qualquer tipo de fruta e

legumes, desde que estejam dispostos a pagar caro por isto. Dizem que os

moçambicanos sabem muito bem o que os brancos podem pagar, e essa forma coletiva

de representar os brancos, como os donos do dinheiro, faz com que sejam abordados

diversas vezes ao dia por alguém que vem lhes pedir alguma ajuda. Têm carro e

continuam indo à praia nos fins de semana, mas também viajam a passeio e para fazer

compras na África do Sul. Em Pemba, onde aumentou muito o índice de roubos, as casas

dos cooperantes são guardadas por seguranças privados 24 horas por dia. Em 2003, um

segurança custava o equivalente a cerca de 500 coroas suecas por mês.

Segundo os Novos Técnicos Estrangeiros suecos, os moçambicanos continuam honrando

o título de hospitaleiros, e essa nova geração também diz se sentir em casa. Conhecem

muitas pessoas, fazem amigos e, quando voltaram à Suécia, muitos deles disseram que

ficaram tristes por um longo período, com grande dificuldade de se reintegrar ao antigo

grupo de amigos. Faltavam a esses amigos experiências essenciais de vida e uma

referência um pouco mais humana da realidade; além disso, sobra medo para enfrentar o

estranho.

Alguns desses Novos Técnicos suecos disseram ter a sensação de que suas estadias

naquele país custam muito mais do que o que é aplicado nos projetos que foram

desenvolver.

A nova geração de cooperantes encontra um país em que a distância entre ricos e pobres

aumentou, assim como a desigualdade econômica e as injustiças sociais. Por outro lado,

eles observam que os moçambicanos que têm agora 30 e 40 anos estão qualificados para

todo tipo de trabalho, com formação universitária nas mais diversas áreas, de modo que o

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sentido da cooperação sueca, de preencher vazios profissionais, não se justifica mais em

muitos setores.

Desafinados

Uma antropóloga sueca vê na internet uma oferta de trabalho em Moçambique, na área

de sua especialização. Interessa-se e passa por um processo bem semelhante aos de

recrutamento de recursos humanos. Precisa fazer um treinamento, tem que pagar por ele,

mesmo não acreditando muito em sua validade, porque, na sua opinião, eles tentam

despertar o senso crítico das pessoas com abordagens provocativas, mas não há

ninguém lá para avançar nas discussões. E o preço é muito alto, considerando que quem

faz o curso está procurando emprego.

Finalmente, ela é selecionada para trabalhar em Moçambique, chega lá no fim de

dezembro de 2001 para uma temporada que vai durar dois anos e, do ponto de vista

pessoal, vai lhe render um casamento com um moçambicano e uma linda filha de cabelos

encaracolados e olhos negros.

Logo que chega a Maputo, se sente como um talibã em Nova York. O curso preparatório

não foi mesmo muito eficiente, ela conclui.

Você veio pesquisar por que os suecos saem para Moçambique? Cada um tem sua razão. Para salvar o mundo, por curiosidade, porque gosta de viajar... Quem vai por uma ONG não vai pelo dinheiro, mas técnicos da Sida fazem muito dinheiro, saem para pagar a casa na Suécia, por exemplo. Também saem por aventura, porque é a África: leões, girafas, safáris, essas coisas. Há os que saem para evitar inverno, escuro, frio, tristeza, monotonia, ou por algum imediatismo que vem da nossa própria pobreza de suecos.

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Durante as entrevistas, percebi que os Novos Técnicos Estrangeiros estão mais livres

para expressar desapontamento com suas experiências no exterior. Uma jovem

economista disse que foi muito aborrecido sair da Suécia para trabalhar em Moçambique

em um escritório cheio de suecos. Ela admite que gostaria de estar em Moçambique

mesmo, ou seja, de trabalhar com os moçambicanos. Disse isso aos coordenadores do

GAS e eles conseguiram que ela fosse trabalhar numa organização local46, que lida com

microcrédito, mas, como disse, sempre sentiu que não ajudava muito, que eles podiam

fazer tudo sem ela. Muitas vezes disseram que não precisava fazer isso ou aquilo, mas,

se queres fazer, tudo bem.

Seu planejamento de formação profissional em Moçambique incluiu aprender bem o

português e envolver-se com a cultura local, além de ajudar as pessoas, evidentemente.

Ela contou, por exemplo, com a ajuda de uma empregada doméstica para conhecer

melhor a cultura moçambicana. Foi à sua casa fora de Maputo, visitou sua família e ouviu

histórias sobre o tempo da guerra. Percebeu que um bom conhecimento das tradições e

da história africana podia ser útil em outros empregos na Suécia.

Este foi o mesmo tom adotado por uma advogada da nova geração. Também ela pensa

que aprendeu mais do que podia contribuir e voltou com o mesmo desejo de poder fazer

alguma coisa, de mudar o equilíbrio no mundo, mas se perguntando se essa seria uma

boa maneira, referindo-se à ida de cooperantes aos países pobres. Seu projeto em

Moçambique pareceu-lhe muito interessante, mas talvez não muito importante para a

população. Depois de dois anos vivendo ali, começou a procurar trabalho na Suécia

46 Ao longo deste capítulo, faço referências propositalmente imprecisas sobre os projetos com os quais meus informantes estiveram envolvidos, com o objetivo de lhes resguardar a identidade.

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porque sabia que, pelas regras dessa carreira, se ficasse muito tempo fora do seu país

seria difícil encontrar trabalho.

O “coro dos contentes” desafina novamente. Uma outra informante avalia o ciclo das

doações a partir de sua própria experiência em Moçambique. Para ela, muitas pessoas

que vão para lá dizem que querem fazer alguma coisa para o mundo, mas acabam

recebendo muito mais dos moçambicanos. Nesse caso, ela pondera, não é uma relação

igual porque os suecos, se ficarem cansados, podem sempre voltar para a sua própria

vida rica, enquanto os moçambicanos têm que ficar lá. Ela não deslegitima o ciclo, mas dá

outro sentido às trocas que acontecem dentro dele, dizendo que é importante que as

pessoas vejam o que se passa em Moçambique, porque trazem para a Suécia uma

experiência profunda e informações muito importantes para formar a consciência dos

cidadãos sobre as desigualdades no mundo.

Na prática, é possível que sua tese não funcione tão bem. Muitos dos Novos Técnicos

Estrangeiros, quando voltaram à Suécia, ficaram desapontados com o solene descaso

dos suecos. Segundo dizem, fora do círculo mais próximo de amigos, ninguém se

interessa por conhecer as suas experiências africanas – o que, para eles, é um

comportamento lamentável:

Devíamos trazer os africanos aqui para aprendermos com eles, porque aqui não se ouve a voz dos imigrantes. A maioria dos que saem não volta com sentimento de igualdade porque carregam uma imagem muito primitiva da África. Chegamos lá pensando que vamos salvar o mundo e vamos ficar numa casa grande, com segurança e com um carro 4X4. Agora estou muito negativa, claro que há bons projetos, boas pessoas e bons tudo, mas penso que a área é muito complicada, não é tão fácil.

Procurei descrever aqui as principais características que me levaram a recortar o universo

dos cooperantes suecos em Moçambique em dois grupos, os Velhos Combatentes e os

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Novos Técnicos Estrangeiros. Tentei construir o perfil típico de cada grupo e, a partir dos

relatos pessoais, compreender suas motivações. Na sessão seguinte, pretendo descrever

as imagens de Moçambique e de sua gente, que fazem parte do imaginário das duas

gerações de cooperantes suecos.

O Moçambique que os Cooperantes Descrevem

Um dos meus interesses durante o trabalho de campo foi identificar as imagens de

Moçambique que foram construídas pelos cooperantes suecos, a partir de suas

experiências naquele país. Um Moçambique tal como é interpretado por aqueles agentes

de cooperação, ao que suponho, deve figurar também como uma construção simbólica a

partir da qual se formou, em épocas diferentes, a opinião pública sueca sobre os africanos

e sobre os pobres do mundo.

Ir a Moçambique nos anos da luta de libertação não era a mesma coisa que fazer isto no

século XXI. Quando fomos ao Moçambique, sabe, a comunicação era muda. Telefone

não funcionava, correio também não, não havia internet, nada. Era como desaparecer, me

contou uma médica nascida no norte da Suécia.

Se, por um lado, ir a Moçambique significava desaparecer do foco sueco, por outro,

segundo contam os primeiros que ali chegaram depois da libertação, o ambiente que

encontraram era muito mais cosmopolita do que o da Estocolmo daquela época. Lá havia

soviéticos, coreanos, cubanos, brasileiros, chilenos, gente da Alemanha Democrática,

Inglaterra, Itália, França, Bélgica, entre outros. No dizer de uma entrevistada,

Era um momento tão, tão especial, muito especial. Não havia quem soubesse ao certo o número das pessoas que foram ao Moçambique,

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nem de quantos países vieram. Nós chegamos lá para participar da reconstrução nacional, porque os portugueses não haviam deixado os moçambicanos irem para a escola. E fomos vistos assim, como os grandes internacionalistas que estão chegando aqui para colaborar conosco, trabalhar conosco. Mas fato é que nós participamos mesmo e participávamos de uma maneira de ficar dentro das organizações nacionais, que acho que hoje é impossível. Nós participamos lá como se fosse a nossa casa.

Toda essa gente de fora e a diversidade que trazia, segundo relatam, foi recebida com

grandes manifestações nas quais o mote era “viva os cooperantes”, “viva a solidariedade

internacional”, ou seja, havia uma propaganda a favor dos cooperantes, que eram

apresentados como salvadores pelo governo da Frelimo. Esta experiência provocou neles

certo constrangimento, mas também um indisfarçável orgulho. A propaganda que a

Frelimo fez dos cooperantes estrangeiros funcionou. Nenhuma das pessoas com as quais

conversei relatou ter sofrido qualquer atitude negativa por parte dos moçambicanos.

Se, por um lado, Samora Machel foi categórico em dizer que iam vencer com a ajuda dos

“internacionalistas”, por outro, como lembram alguns dos que estiveram lá nessa época,

tanto o GAS quanto a Sida eram mesmo muito solidários, e as críticas, não faz mal

reiterar, eram muito pequenas:

Havia grande entusiasmo, porque apoiar Angola e Moçambique era parte da luta maior contra o apartheid. Era um tempo muito político. O Moçambique deixou entrar essas pessoas e tiveram a capacidade de nos utilizar de uma forma que nós e eles ganhamos. A cooperação grande, que chegou depois, com muito dinheiro, facilitou a corrupção.

A primeira, mas não necessariamente a principal imagem de Moçambique que ocorre aos

Velhos Combatentes é a da total falta de pessoal treinado após sua independência. Ou

seja, de um povo que precisa de suas presenças lá para vir a ser desenvolvido um dia.

Raros moçambicanos haviam feito curso superior, e o governo exercia um tipo de

administração baseado no arcaico modelo português. Essa condição social contrastava

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com a racionalidade e com realidade da Suécia, onde há muito tempo já havia acesso

universal à educação e um alto nível de formação profissional.

A total falta de formação técnica da sociedade moçambicana da época deu aos Velhos

Combatentes um sentimento de valorização e de orgulho dos seus conhecimentos. Um

médico PhD lembrou que só ali percebeu que valeu de alguma coisa ter se dedicado à

sua formação acadêmica, porque seu título ajudou de alguma forma o povo

moçambicano. Por outro lado, um economista que confessou não ter sido um estudante

muito dedicado para os padrões da universidade sueca encontrou em Moçambique

aplicabilidade para seus conhecimentos e reconhecimento profissional.

A situação moçambicana ofereceu àqueles suecos que cresceram avessos às hierarquias

e aprenderam que ninguém é importante demais a “oportunidade” de experimentar uma

situação social em que ocupavam uma posição aparentemente superior. Fora de seu

contexto de origem, seus mapas simbólicos não faziam sentido no curso das interações

sociais. A aparência física, a passagem de uma experiência profissional a outra, um outro

sistema de relações sociais, tudo isto se configurou numa situação tipicamente moderna

de “desencaixe” desses cooperantes. Ou seja, exigiu deles uma reflexividade crescente e

os colocou em uma posição vulnerável a perigos e ameaças, tanto quanto lhes

proporcionou oportunidades de auto-realização.

Na avaliação dos dirigentes do GAS e da Sida, essa situação, que foi para eles

inesperada, poderia tornar-se uma experiência perigosa. Por isso as duas organizações

definiram o prazo máximo que um cooperante pode ficar fora da Suécia, para evitar que

percam as suas referências, ou, então, todos acabariam colonizadores.

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É possível, porém, que a Suécia tivesse outros temores desse encontro com

Moçambique. Um economista que foi para lá nos anos 70 foi alertado para tomar cuidado,

porque poderia tornar-se um escravo dos comunistas de Moscou e de Havana em

Moçambique:

Você sabe que será mandado a um país socialista, que tem uma maneira de pensar extremamente errada e que isto pode te deixar muito confuso, mas faça o que puder para contribuir com alguma coisa. Quando cheguei ao Moçambique, depois de duas semanas, o ministro do comércio interno me chamou dizendo: seja bem-vindo, você é puro social-democrata e nós precisamos de vocês para ver uma forma de apoiar o setor privado, porque sabemos que o Estado não pode fazer tudo. Nós temos uma visão socialista e queremos que aprecie isto, mas precisamos de ti para saber qual é a dinâmica do setor privado. Levou-me quatro anos para dar resposta a esta questão porque o setor privado não é coisa que se ache, é coisa que se desenvolve.

Um possível estranhamento entre social-democracia e socialismo foi menor do que o

estranhamento cultural. Naquela época, a maioria dos cooperantes suecos conhecia a

Europa, mas não tinha muita experiência em países pobres. Como lembra um Velho

Combatente, chegamos lá e não tínhamos maneiras de interpretar aquilo. No entanto,

eles dizem que os anos 70 e 80 celebraram uma relação muito amistosa entre suecos e

moçambicanos, porque havia uma base política comum ligada à solidariedade

internacional e à amizade entre Olof Palme e Samora Machel. Descreveram um ambiente

em que havia um tipo de denominador comum, uma força política que facilitou a

cooperação, além de uma simpatia mútua. Para ele, mesmo os que foram para lá por

dinheiro ou aventura se aproximaram de Moçambique com simpatia.

O alegado denominador político, no entanto, não teve alcance sobre as diferenças

culturais. Com o tempo, os suecos descobriram as dificuldades da interpretação de novos

códigos simbólicos:

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Os moçambicanos fazem muita coisa “para inglês ver”. Ainda hoje, muita coisa fica fora do nosso alcance, como hábitos, costumes culturalmente diferentes, mas penso que é uma assimetria necessária para a parte mais fraca manter um certo espaço para sua ação. Os moçambicanos, através do colonialismo português, desenvolveram certas atitudes: “deixa lá eles fazerem, depois fazemos à nossa maneira, é nosso mundo”. Mas eu nunca tive problema em aceitar isto. Aceito que o Moçambique pertence aos moçambicanos. Eu estou aqui para ajudar, para fazer alguma coisa, mas vocês é que decidem.

A cada novo grupo de cooperantes que chega a Moçambique, ao longo desses anos, a

sensação se repete. Uma jovem que voltou de lá em 2004 fez uma observação

semelhante à que citei acima, de um Velho Combatente. Ela acredita que ninguém nunca

vai saber realmente os segredos dos moçambicanos. Depois de um ano em Moçambique,

pensou que podia entender a sociedade moçambicana, que compreendia mais ou menos

como as pessoas viviam, suas relações familiares e com os seus antepassados. Mas,

depois de um ano e meio, começou a pensar que, a cada dia, compreendia menos aquela

cultura, e atribuiu isto a um costume moçambicano de não dizer aos brancos segredos

sobre a vida, sobre os feitiços etc.

Este comentário não quer dizer que os suecos classificam os Moçambicanos como

preconceituosos. Ao contrário, uma das imagens mais recorrentes entre os suecos sobre

o povo moçambicano é a de que eles não têm preconceito racial. Os cooperantes suecos,

principalmente os que já viveram em outros países africanos, desenvolvem teses sobre a

colonização portuguesa, sugerindo que ela acabou por render um “benefício” à cultura

moçambicana. Você pode dizer o que quiser sobre os portugueses, menos que eles foram

racistas, analisa um dos meus informantes, que já viveu também na Zâmbia. Ele diz que

lá não conseguiu fazer amigos, diferente do que aconteceu em Moçambique. Ouvi a

mesma coisa sobre a Tanzânia e o Zimbábue.

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Segundo o historiador Luis Felipe de Alencastro (2000), o domínio colonial português foi

claramente mais frágil em Moçambique, onde resvalou, em contraste com a avassaladora

conquista em Angola. Mas essa constatação histórica não resguarda qualquer elogio à

relação colonizador/colonizado. Segundo ele,

Sorvidos paulatinamente pela sociedade nativa, os colonos se africanizam, ou melhor, se cafrealizam, conforme a expressão de Alexandre Lobato, historiador de Moçambique. Um relato seiscentista retrata os embaraços da administração colonial moçambicana: “Essas terras estão repartidas em vários senhorios, e cada um se apoderou do que lhe pareceu e do rendimento delas [...] de tudo que dá um pouco, que cada um concorre para levar ao senhorio [...] por este pouco, não quer nenhum senhorio deixar ninguém [nenhum outro colono] morar nas suas terras, da razão que são suas”. (ALENCASTRO, 2000, p. 17)

O autor fala de uma situação em que os colonos se curvam, em decorrência da atitude

das comunidades nativas, e não de benesses do colonizador. Ele diz que, na época pré-

européia, o império Monomotapa cobrava um tributo em tecidos dos mercadores árabes,

denominado o curva, costume que teve continuidade com os capitães e governadores

portugueses, e “a não prestação desse tributo colocava em perigo o pacto entre colonos e

nativos” (Idem, p. 18). Para Alencastro (2000, p. 19),

Revolvida pelo mercado atlântico, repovoada pelo tráfico negreiro, a América portuguesa não viu, nem de perto nem de longe, brotar incidente desse tipo. Nenhuma tribo sul-americana jamais deteve poderio suficiente para impor sua soberania e cobrar tributos regulares do colonato luso-brasileiro.

Na sua avaliação, a exploração colonial de um território nem sempre implica dominação

colonial. No caso de Moçambique, a dominação esbarra numa rede de trato pré-européia

que coloca limites no comércio reinol e na ação dos colonos.

Entendo que os cooperantes suecos perceberam nas suas relações cotidianas as

conseqüências da tendência portuguesa à miscigenação, mas interpretaram isto como

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uma via de mão única, dos portugueses para os moçambicanos. A análise de Alencastro

nos auxilia a pensar no sentido oposto dessa relação.

A relação entre suecos e moçambicanos é descrita até hoje como muito próxima e

especial. Um argumento comumente citado é a amizade pessoal entre Olof Palme e

Samora Machel, que se transformou em cooperação formal entre os governos47.

Freqüentemente os suecos reivindicam certo “direito” à amizade com Moçambique. Eles

gostam de acreditar que são merecedores do apreço moçambicano porque a Suécia foi o

único país ocidental a se levantar contra os Estados Unidos e dar apoio à libertação das

colônias, e porque os suecos foram os primeiros a chegar para ajudar na reconstrução

nacional.

As afinidades não param por aí. Seriam povos semelhantes, por exemplo, pela timidez.

Uma cooperante diz que, em Guiné-Bissau, a cultura cai em cima das pessoas com a

música, a dança etc., e em Moçambique isso acontece um pouco passo a passo, como na

Suécia. Citaram também o gosto comum pela organização e pelo trabalho. Causou

estranhamento a uma cooperante da primeira geração o fato de eles trabalharem todo o

dia e irem à escola à noite, que funcionava em três turnos, mesmo com a pouca oferta de

eletricidade.

Embora os suecos alimentem uma crença na proximidade das duas culturas, construir

uma ponte entre elas, na prática, não é uma tarefa simples. Um Velho Combatente, cujo

filho permaneceu em Moçambique quando a família voltou à Suécia, se casou com uma

moçambicana e tem uma filha, lamenta o paradoxo que tomou conta da sua vida. Ao

47 Vale lembrar, por exemplo, que em Maputo há uma avenida Olof Palme, em homenagem ao primeiro-ministro sueco.

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longo de 30 anos vivendo entre os dois países, disse que ainda não encontrou uma forma

de explicar para as pessoas que nunca deixaram a Suécia como é a vida numa favela,

que as viúvas dos operários acordam de manhã e não sabem como vão fazer para pôr

comida na boca delas próprias e das crianças, até que o sol desapareça no monte. Por

outro lado, no Moçambique, ele evita tentar explicar como é a vida na Suécia, onde eles

pagam altos impostos e não têm empregados domésticos como lá, que fazem todo o

trabalho da casa nos fins de semana, o que eles achariam impossível para as pessoas

ricas. Ele diz que, durante todo esse tempo, tem vivido duas vidas separadas por causa

disso: quando essa situação é vivida a cada dia, depois de muitos anos a gente pode ficar

um pouco cínico. Às vezes, a pessoa fica mais realista do que idealista.

A realidade moçambicana, ao que parece, transformou de alguma forma os “olhos azuis”

suecos. Uma das diferenças mais mencionadas pelos meus informantes foi a experiência

da morte. Para uma médica sueca, a morte parece ser uma coisa “extraordinária” na

Suécia, e “cotidiana” em Moçambique48. Ela diz que a morte na Suécia é o destino dos

velhos, dos avós, e não dos amigos, dos vizinhos, dos filhos deles ou da sua secretária. O

trecho a seguir relata como um dos meus informantes elaborou a experiência tão próxima

da morte:

Eu penso que há uma diferença muito grande entre suecos e moçambicanos. Em Moçambique, as pessoas têm muita experiência da vida e da morte, e os suecos não sabem nada sobre isto. Essa presença da morte dá uma visão de como é a vida, do que mata, do que leva uma criança a morrer. Então, eu aprendi uma coisa em África: que o único tempo que existe é hoje, aqui e agora. Mas também o passado está presente com nossos ancestrais. Não se tem segurança de estar vivo amanhã e, por isso, não vale a pena pensar no futuro.

48 Entendo esse comentário como uma referência aos díspares índices de mortalidade nos dois países. Moçambique é o 9º país com mais mortes (20,99 mortes/1.000 habitantes), enquanto a Suécia é o 65º (10,36 mortes/1.000 habitantes). Com relação à mortalidade infantil, essa diferença é ainda maior: Moçambique tem o 4º maior índice (130,79 mortes/1.000 nascimentos), e a Suécia, o 221º (2.77 mortes/1.000). Conf. http://www.indexmundi.com.

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O contato com os moçambicanos despertou alguns cooperantes para atitudes mais

flexíveis diante de problemas. Eles disseram que trouxe também o interesse de entender

por que as pessoas com tantas dificuldades sociais e econômicas parecem ser tão fortes

e capazes de rir, de gostar da vida e de demonstrar alegria, de um modo que os suecos

não sabem fazer.

Talvez o principal problema de um emigrante na Suécia seja o domínio da língua. Os que

não falam razoavelmente bem o sueco não têm muitas chances. Também, para um

sueco, o conhecimento de muitas línguas dá certa respeitabilidade. Essa será uma das

qualidades que ele vai sempre dar um jeito de mencionar em situações sociais. Talvez por

isso, temeram tanto as dificuldades que teriam para aprender português, porque, na sua

cultura, não falar bem significa parecer infantil, pouco inteligente ou capaz. Contudo, os

cooperantes suecos disseram que encontraram em Moçambique um povo que parece se

importar muito mais com a qualidade da convivência que pode ter com os outros do que

com preciosismos lingüísticos.

Com relação ao traquejo social, diz uma cooperante sueca, essas sociedades são muito

diferentes. Eles não se preocupam com quem devem cumprimentar primeiro, ao lado de

quem vai se sentar em um jantar, e nunca fazem você se sentir mal pela roupa que veste.

Ela entendeu esses traços culturais como uma forma de respeito de uns pelos outros, que

se torna extremamente ambígua, em sua visão, quando confrontada com notícias sobre a

recorrente violência contra as mulheres e as crianças.

A chamada boa convivência entre moçambicanos e suecos saiu da esfera das relações

internacionais e, em alguns casos, tornou-se um assunto pessoal. O ciclo das doações

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envolveu também bens imateriais, como casamento, filhos mestiços, vidas e famílias

entrelaçadas para sempre.

As afinidades sentidas pelos suecos com relação aos moçambicanos não se confirmaram

em grande parte dos casamentos entre eles. Muitos terminaram em separação. De

acordo com meus informantes, as mulheres suecas que trouxeram seus maridos

moçambicanos para a Suécia enfrentaram uma série de problemas de adaptação, a

começar pela dificuldade de conseguir logo um bom trabalho.

Uma das cooperantes pioneiras em Moçambique conta que saiu da Suécia menina e

voltou mulher, casada e com filhos. Seu namoro com um moçambicano, colega de

trabalho numa escola, foi um escândalo que chegou ao topo do ministério da educação,

porque ele era um homem separado e com filhos. Para sua mãe, não havia problema a

filha se casar com um negro, mas, com um homem que havia sido casado, pareceu-lhe

moderno demais. O pai, por seu turno, tratou logo de aprender português para se

comunicar melhor com o futuro genro.

Depois de alguns anos juntos, decidiram ir para a Suécia porque ele tinha planos de fazer

cursos de especialização lá. Estudou durante meio ano, mas voltou para Moçambique,

alegando oficialmente que tinha problemas de sua empresa para resolver. Mas, na

opinião de sua ex-mulher, ele não se integrou à sociedade sueca e não gostou da vida

que se leva ali,

afastados uns dos outros nos subúrbios, onde não se pode tomar uma cerveja e depois sair com seu carro, não pode fumar, não se fala com os vizinhos e tudo está estruturado. Mas eu não teria tido os filhos que tenho se não tivesse ido ao Moçambique. E também não gostaria de ser como os suecos, que se aborrecem quando uma pequena coisa não funciona exatamente como estava planejado.

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Outros casais fizeram essa tentativa de viver parte da vida em Moçambique e parte na

Suécia. Eles se preocupam que os filhos tenham contato com as duas línguas e as duas

culturas, mas é sempre um exercício difícil quando as crianças começam a perguntar

pelas diferenças sociais. Uma menina de dez anos, quando voltou para Moçambique com

o pai moçambicano e a mãe sueca, queria saber da mãe, cientista política, quando

exatamente seus amigos moçambicanos teriam tudo que os suecos têm.

Marquei uma entrevista com uma enfermeira que havia vivido em Moçambique depois da

guerra civil. Ela se dispôs a ir a minha casa e disse que estava muito animada para

conversar sobre sua experiência. Foi muito generosa porque, para me encontrar, precisou

pedir ao pai já idoso para pegar a filha na escola, num fim de tarde em que chovia muito.

Ela falou de seu interesse precoce pela África e contou que, quando tinha sete anos,

perguntou à mãe se poderia se casar com um homem negro, no que mãe consentiu,

dizendo que a escolha seria dela.

Ela se casou com um professor moçambicano, ficou grávida e decidiram ir juntos para a

Suécia, onde ele fez mestrado em pedagogia internacional. Preferiu aprender inglês a

sueco, dizendo que queria manter o português como a língua da família. Ela tinha sempre

receios de viver com um homem negro em uma região onde vive a elite de Estocolmo e

onde, conforme sua observação, só vivem brancos, e perto de vizinhos que ela imagina

que falavam deles pelas costas: um negro, mas o que ele quer? Dinheiro, estudar? Ela

conta que há dois anos ele “fugiu” e vive agora em Moçambique, onde tinha deixado

outros dois filhos de um casamento anterior, mas ela está disposta a criar a filha dentro

das duas culturas.

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Através do olhar sueco, o povo Moçambicano é construído, portanto, como sendo

necessitado da ajuda internacional. Mas não se trata de um pobre qualquer, e sim de um

tipo que se enquadra na tradição missionária sueca de ajuda, porque é, como eles,

trabalhador e organizado. Além disso, os moçambicanos, também como eles, são tímidos,

e, por não serem preconceituosos, convivem bem com os agentes internacionais da

ajuda.

Quando os cooperantes suecos falam das diferenças entre eles, o argumento

predominante é evolucionista. Na esfera cultural, por exemplo, compreendem a presença

dos espíritos e dos feitiços como um traço que, no passado, também fez parte da cultura

sueca. Os trechos a seguir relacionam feitiçaria com o passado:

Tenho dificuldade de compreender e um pouco de medo também. Nós tínhamos isso aqui no século XIX. Tivemos muitos tipos de feitiços e não foi há tanto tempo atrás.

Essa história de feitiço e da presença dos ancestrais não era novidade para os suecos. Tínhamos isso aqui também, antigamente. Mas os moçambicanos são católicos, uma religião muito aberta e liberal.

Na visão dos cooperantes suecos, a condição social e econômica não melhorou ainda

porque tiveram muitos acidentes de percurso, como a guerra, o vírus HIV, as secas, as

enchentes e a corrupção. Acaba uma guerra, vem outra, eles lamentam, sem perder a

esperança de que “Moçambique” ainda seja uma “Suécia”.

As imagens de Moçambique no imaginário sueco são, portanto, bem próximas de como

interpretam a si mesmos: já foram pobres, são trabalhadores, organizados, tímidos e

levantam sua voz contra todo tipo de preconceito. Essas características são as mesmas

que fizeram dos suecos um modelo internacional de doador e, dos moçambicanos, um

modelo internacional de receptor.

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Contudo, houve também um significativo aumento de agentes de cooperação para o

desenvolvimento, de diversos países do mundo, na medida em que Moçambique registrou

um surpreendente crescimento econômico e se tornou, a partir da década de 90, um show

case de sucesso entre os países africanos. Segundo uma funcionária da Sida, hoje existe

um congestionamento de ONG’s internacionais no país, cada uma julgando sua

colaboração como de extrema importância e demandando a atenção dos dirigentes do

governo, diretores, coordenadores etc., que mal podem fazer seu próprio trabalho.

Os moçambicanos se tornaram uma espécie de “experts em receber ajuda”, fenômeno

bem ilustrado no comentário do escritor moçambicano Mia Couto49:

Há toda uma geração que está aprendendo uma língua – a língua dos workshops. É uma língua simples, uma espécie de crioulo a meio caminho entre o inglês e o português. Na realidade, não é uma língua, mas um vocabulário de pacotilha. Basta saber agitar umas tantas palavras da moda para falarmos como os outros, isto é, para não dizermos nada. Recomendo-vos fortemente uns tantos termos, como, por exemplo: desenvolvimento sustentável, awarenesses ou accountability, boa governação, parcerias, sejam elas inteligentes ou não, comunidades locais.

Estes ingredientes devem ser usados de preferência num formato “powerpoint". Outro segredo para fazer boa figura nos workshops é fazer uso de umas tantas siglas. Porque um workshopista de categoria domina esses códigos. Cito aqui uma possível frase de um possível relatório: Os ODMS do PNUD equiparam-se ao NEPAD da UA e ao PARPA do GOM. Para bom entendedor, meia sigla basta.

No final dos anos 80, os cooperantes suecos que tinham amigos e colegas no governo

ouviram deles que a situação nacional se deterioraria com a chegada do Banco Mundial e

que haveria um provável crescimento da corrupção. Eles dizem que viram a corrupção

crescer gradualmente, mas que entendiam que esse fenômeno era efeito de pressões

externas. As exigências do Banco Mundial por privatização teriam despertado a ganância

e a corrupção de alguns setores locais.

49 Conf. http://resistir.info/africa/isctem_mia_couto.html.

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Moçambique começou a conhecer, a partir daí, um tipo de crime mais “elaborado”, como

foi o caso do assassinato do jornalista Carlos Cardoso, em 2000, quando investigava o

tráfico de pedras preciosas, drogas e armas e o desaparecimento de cem milhões de

dólares do Banco Central de Moçambique. O crime mexeu com as esferas mais altas do

governo moçambicano porque Nympine Chissano, filho do ex-presidente Joaquim

Chissano, foi acusado de mandante do crime.

Carlos Cardoso estava escrevendo artigos que incomodavam os altos interesses dessa

elite, nos quais ele explicava uma série de acontecimentos envolvendo o governo

Moçambicano e as grandes agências internacionais. O Banco Mundial havia proposto um

programa de privatização dos bancos, ao mesmo tempo em que decidiu, junto com o FMI

e os grandes doadores, criar um apoio ao orçamento do Estado, uma nova versão para o

antigo apoio ao balanço de pagamento. Os países que estão dando esse apoio ao

orçamento geral do Estado não podem saber exatamente que rubrica vai se beneficiar

desse dinheiro. Então, teoricamente, ele pode ser utilizado de qualquer forma.

Diante das exigências de privatização dos bancos e das indústrias em Moçambique,

alguns setores interessados começaram a reclamar que não seria justo privatizar toda a

indústria nacional, porque o empresariado local não tinha dinheiro nenhum, não vinha de

uma tradição capitalista, e sim de antigos funcionários do Estado. Portanto, quem poderia

se aproveitar dessa situação seria o empresariado estrangeiro. Em nome de um “espírito

nacionalista”, foram aos bancos pedir empréstimos, que lhes foram concedidos sem

muitas garantias de pagamento. Os bancos tiveram grandes prejuízos e ficaram muito

perto da falência. Então, o governo moçambicano, para evitar um choque maior na

economia, usou o dinheiro dos doadores para intervir na falência dos bancos. Portanto, as

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doações dos países estrangeiros foram indiretamente para as mãos dos banqueiros

moçambicanos, na forma de empréstimos que eles não pagaram.

Na visão de um analista sueco, o Banco Mundial sabia que, para alavancar a economia

moçambicana, seria necessária a formação de uma classe média alta e de uma burguesia

nacional, e que isto se daria mais facilmente com o uso das doações internacionais. Para

ele,

as instituições internacionais e os doadores, entre eles a Suécia, que estavam reclamando a corrupção, não podiam parar este processo, porque, ao mesmo tempo, em um nível mais alto, todos eles aceitaram essa situação como condição para a criação de uma burguesia moçambicana. E aí morreu um pouco meu envolvimento com o Moçambique, porque eu estava sofrendo com esta situação. Se moralmente achava que era preciso acusar os dirigentes moçambicanos de mau uso da ajuda internacional, não poderia, contudo, acusá-los por querer criar uma capacidade interna em Moçambique, para impedir que os franceses, os alemães e os ingleses comprassem tudo o que tinham.

As doações para o orçamento do Estado, que, na análise do cooperante sueco, trouxeram

maiores problemas para a sociedade moçambicana, são formalmente justificadas pelo

princípio do ownership, embora esse princípio, para alguns cooperantes, não passe de

uma maneira cômoda de dar um cheque para o governo, cumprindo com isto os acordos

multilaterais de ajuda, sem precisar se envolver com os problemas dos países pobres.

Além disso, embora seja quase impossível discordar do princípio teórico do ownership, ou

seja, da idéia de que os governos locais devem ser os reais donos dos recursos das

doações, isto se torna paradoxal quando, ao mesmo tempo, os doadores concordam

quanto à fragilidade da capacidade administrativa desses governos e de suas sociedades

civis.

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Os novos rumos do desenvolvimento em Moçambique estão relacionados, dentre outras

coisas, com as conseqüências decorrentes da passagem de uma economia planificada

para uma economia de mercado. Quando se pensa no papel da Suécia na luta contra o

colonialismo, é razoável questionar como um país com economia de mercado podia

apoiar todos esses países marxistas e que não tinham um mercado interno em

funcionamento. Como social-democrata, a posição da Suécia foi de defender que

Moçambique passasse da economia planificada para a economia de mercado, mas, como

lembra um economista sueco, havia uma esperança talvez idealista de que fosse possível

passar da planificação para o mercado sem perder os ideais de igualdade, qualidade etc.

O que se tornou claro para a comunidade internacional foi que desenvolvimento é um

processo bem mais complexo e, em Moçambique, não bastou que os suecos

simplesmente apoiassem o movimento revolucionário da Frelimo com dinheiro e

tecnologia, ou que Moçambique seguisse as conhecidas estratégias do Consenso de

Washington.

Hoje, a cooperação bilateral vem cedendo lugar a um modelo baseado em multidoadores,

e a cooperação da Suécia está cada vez mais atrelada à sua condição de membro da

ONU, UE, Banco Mundial e FMI. Com o fim da Guerra Fria, os países ricos estão mais

próximos, não apenas aqueles conhecidos como Like Minded Countries50, mas também

os que historicamente a Suécia considerou como um modelo oposto ao seu, como os

Estados Unidos.

50 Os países conhecidos no cenário internacional como Like Minded Countries são Canadá, Dinamarca, Holanda, Noruega e Suécia.

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Com tantas mudanças conjunturais, seria razoável questionar as razões pelas quais

Moçambique continua a ser um dos países que mais recebe apoio da Suécia. Na opinião

dos cooperantes suecos, há, basicamente, três razões para isto. Uma delas poderia ser

traduzida quase que por inércia, ou melhor, porque é difícil mudar essa política, quando

há uma tradição de apoio a Moçambique. Portanto, é possível que ele continue por muito

tempo. A outra razão é que Moçambique ainda é um dos países mais pobres do mundo,

vive numa situação de pós-guerra, o que é um forte argumento para continuar o apoio, e,

finalmente, porque se tornou uma história de sucesso, com muita razão, porque o país

conseguiu, pelo menos até agora, sair de uma situação de guerra para uma situação de

paz que continua desde 1992. É provável que essas sejam as razões pelas quais não só

a Suécia continua cooperando com Moçambique, mas também outros doadores se

interessaram em apoiá-lo.

Trocas Simbólicas, Potlatch e Relações Internacionais

Segundo Mauss (Idem, p. 43) “in the things exchanged during the potlatch, a power is

present that forces gifts to be passed around, to be given, and returned”. Seja por

engajamento, aventura ou formação profissional, os suecos que vão a Moçambique têm

como princípio que estão lá para cooperar com o desenvolvimento do país. Contudo,

nesses anos de uma relação contínua entre esses dois povos, a “força da dádiva” fez

movimentar o ciclo das doações, de forma que a cooperação não pode ser vista em uma

única direção, mas sim em sua dimensão cíclica.

Se os programas e projetos suecos em Moçambique são fartamente descritos em um

sem número de relatórios e avaliações, não se encontra neles qualquer referência ao

retorno dessas doações ao povo sueco e à Suécia. Sabe-se da ponte sobre o rio

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Zambezi, sobre testes de HIV/Aids, sobre programas de capacitação do Estado e da

sociedade civil, mas não se diz nada sobre o impacto dessas atividades na formação

profissional dos suecos, para não dizer da ausência de outros tipos de trocas pessoais e

de dimensão simbólica. É compreensível que os interesses de Estado relativos a balanço

de poder durante a Guerra Fria fossem um assunto a ser colocado do lado de trás da

cortina no cenário das relações de cooperação para o desenvolvimento. O mesmo

acontece com os negócios que as empresas suecas acabam realizando como

“retribuição” às doações. Mesmo porque, a Suécia jamais atrelou formalmente

cooperação com negócios em nenhum dos países com os quais coopera, e menos ainda

em Moçambique, com tão parcas possibilidades econômicas e um mercado insipiente.

Contudo, o que falta nos documentos se sobressai nas narrativas dos cooperantes

suecos, “velhos e novos”, que mencionam um elenco de trocas grande e diversificado. Os

cooperantes citaram, por exemplo, a riqueza de experimentar outra cultura. Descobriram

na prática que o contato com o outro faz com que aprendam mais sobre si mesmos e

sobre sua própria sociedade. É esse aprendizado que permite que “saiam” um pouco das

regras européias para tentar compreender a realidade a partir das regras locais. Isto vale

também para ajudá-los a se desligar da segurança sueca e a acreditar que diagnósticos e

métodos desenvolvidos em outra cultura têm a sua eficácia.

Paralelamente a uma extensa relação de atividades para a promoção do

desenvolvimento, como vacinação, formação de cooperativas agrícolas, apoio à

democratização, promoção da igualdade de gênero, construção de pontes e estradas,

eletrificação etc., os suecos vão descobrindo novas formas de interação social e

aprendendo a experimentar sem medo a condição humana. Uma jovem cooperante foi

mandada pela empresa em que trabalha atualmente, em Estocolmo, a participar de um

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treinamento profissional obrigatório, que custava muito caro para a empresa e tinha uma

carga horária grande. Segundo ela, o curso consistia basicamente em ensinar a pessoa a

tornar-se pessoa, a olhar nos olhos das outras, permitir-se tocar alguém e ser tocada,

expressar sentimentos bons e ruins. Como ela concluiu, os suecos precisam de curso

para aprender coisas que fazem parte da socialização primária de um moçambicano, que

se aprende pela simples condição de ser membro daquela sociedade.

De volta para casa, depois de terem visto tantas pessoas sobreviverem a guerra,

doenças, secas, enchentes, não podem mais compactuar com a intolerância sueca

diante, por exemplo, de um ônibus que atrasa dois minutos para passar. A experiência de

viver em Moçambique “carimbou” esses suecos, que escolhem suas relações de amizade

dentre os que podem compreender as transformações pelas quais passaram. Eles

preferem a si mesmos da forma como estão hoje, depois da vida em Moçambique. Têm

orgulho de terem participado de uma história na qual cada ato conta e faz a diferença.

Para eles, não é possível fazer nada significativo na Suécia, onde tudo está tão pronto,

onde o Estado se encarrega de ser solidário por você.

Podemos entender, portanto, que o desencaixe da confortável segurança sueca para um

reencaixe no contexto moçambicano desencadeou um processo de reflexividade por meio

do qual os cooperantes reexaminaram as práticas sociais que conheciam, à luz de novas

informações. Esse processo os levou a reavaliar seu lugar no mundo, a tecer novos

símbolos, assim como a conhecer a chave para interpretá-los.

Esse processo trouxe também novos elementos que passaram a compor a subjetividade

coletiva desse grupo, provocando um novo recorte identitário. O comentário a seguir

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mostra, por exemplo, a partir de quais elementos esse cooperante passou a se localizar

no mundo:

Eu me prefiro assim do que da forma que eu seria se tivesse ficado na Suécia. As pessoas que encontro agora, pessoas da minha vida social, a maioria delas tem os mesmos valores. Mesmo tendo crescido numa família muito conservadora, muito poucos dos meus amigos são conservadores. Eles podem até ser liberais, mas eu não tenho um único amigo conservador.

A valorização das trocas simbólicas leva alguns cooperantes a lamentarem que haja

muita separação entre a comunidade internacional e a comunidade moçambicana. Ficam

muito ligados a outros suecos e europeus que estão por lá, cujos filhos vão à escola

sueca, perdendo a oportunidade de conviver mais com os moçambicanos.

Na nova geração de Técnicos Estrangeiros – dentre aqueles que não estão em uma

posição que demanda deles a defesa das políticas oficiais –, encontramos algumas

pessoas que colocam em dúvida a validade de seu papel de perito. Nas relações de

trabalho em Moçambique, sentiram que ajudaram um pouco, mas suas presenças ali não

eram essenciais para que o trabalho fosse executado. Os moçambicanos eram

plenamente capazes de dar cabo de tudo sozinhos. Trata-se de uma opinião controversa,

mas que não vem de uma análise objetiva, e sim de um sentimento subjetivo, como o

descrito a seguir:

Eu gostaria que eles me dissessem: “agora é tempo de você fazer qualquer coisa para nós.” Porque eu senti que não fiz nada. Eu estive ali junto com eles, tínhamos um bom tempo juntos e tentei fazer o trabalho com eles, mas não consegui. Perguntava se havia uma pequena coisa que eu pudesse fazer e eles diziam faça isso, faça aquilo, mas no fundo era desnecessário. Eu tinha medo de estar numa lista das pessoas que não conseguiam fazer nada e só aproveitavam.

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Numa interpretação mais realista, para alguns cooperantes da nova geração, os

moçambicanos aprenderam a lidar com gente de fora e a encontrar um lugar para

oferecer aos técnicos estrangeiros, porque eles representam dinheiro. Então, jogam um

jogo no qual sabem representar muito bem o papel de show case de desenvolvimento,

que lhes foi entregue pela comunidade internacional e do qual aprenderam a tirar algum

proveito, com uma desenvoltura ímpar entre os países pobres. Um funcionário da Sida,

que havia feito sua primeira viagem representando aquela organização, observou que foi

muito diferente de quando viajou para fazer pesquisa ou representando uma ONG. As

recepções foram sempre grandes, as reuniões mais formais e com muito mais gente. Ele

diz que é muito mais difícil simplesmente sentar e conversar com uma pessoa.

A avaliação pessoal dos cooperantes, portanto, visita áreas distintas do discurso oficial. A

partir dela, entendo que Moçambique recebeu muitos recursos que podem ter sido

determinantes para manter o seu próprio território e soberania diante da agressão sul-

africana. Esses recursos, se não promoveram seu desenvolvimento, como se anunciou

nos anos 70, acabaram por “aliviar a pobreza”, para usar a terminologia da moda. Por

outro lado, os sujeitos ganharam em termos da construção de suas identidades,

conhecimento e ampliação de seu repertório simbólico. A Suécia ganhou a formação de

um grupo com experiência em assuntos relativos aos países pobres e reforçou a sua

tradição internacionalista. Como diz o provérbio Maori citado por Mauss (Idem, p. 71),

“give as much as you take, all shall be very well”.

Pode não ser eficiente mandar suecos para fora com base no argumento do

conhecimento perito, quando, em muitos casos, sua capacidade não é muito distinta da

das pessoas que vivem lá, ou de outros peritos que, por exemplo, vivem mais perto ou

falam a mesma língua e conhecem as tradições e a cultura. Mas, ao mesmo tempo, as

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organizações e empresas suecas perderiam em conhecimento e formação profissional, e

a nação perderia um lugar singular nas relações internacionais. Essa troca, portanto, deve

justificar os casos em que se pagam salários altos e se oferecem pequenas e grandes

regalias, que chegam a somar um investimento maior do que o que vai, finalmente, para a

promoção do desenvolvimento.

Há, entre os cooperantes suecos, certa crença na distinção entre os países doadores,

que não seriam iguais nos seus objetivos, nem nos procedimentos de suas doações. A

Suécia é construída por eles como um tipo de doador especial, e a argumentação em

favor dessa crença acabou por criar certa mitologia da cooperação sueca.

Não encontrei nenhum cooperante que discordasse da opinião geral de que a Suécia é

dona da melhor reputação entre os doadores da comunidade internacional. Suas

intenções foram muitas vezes classificadas de genuínas e, em alguns casos, explicadas

como sendo expressão de uma tradição que vem desde os missionários, do fato de a

Suécia não ter sido um país colonizador e como conseqüência da luta passada por

democracia no país, como o movimento trabalhista, e da situação de paz em que vivem

desde o século XIX.

Acreditam que sua longa experiência com participação popular tornou a Suécia um país

que acredita em mudanças e é aberto ao diálogo. Essas são duas qualidades importantes

nas relações internacionais. Como dizem, muitos doadores têm dificuldade com o

estabelecimento de um diálogo com seus parceiros nas relações de cooperação, o que,

para a Suécia, acreditam ser parte da própria experiência nacional de solucionar conflitos

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e do modo como a democracia foi introduzida no país. Acreditam que isso se tornou, para

eles, uma tradição.

Minha experiência em campo me levou a concluir que os suecos gostam de ser vistos

como um povo solidário. Alguns dizem que a religião tem seu papel nisso, mas também o

sistema do estado de bem-estar social que efetivou na Suécia a política de cuidar de

seus cidadãos mais frágeis mais cedo do que em alguns outros países industrializados.

Acreditam, portanto, que uma conduta interna se transformou também em solidariedade

fora de casa, espalhando a reputação de país solidário pelo mundo, junto a uma imagem

de um lugar organizado e seguro. Os parceiros internacionais, como não podia deixar de

ser, deram à Suécia o crédito de que precisava como agente do desenvolvimento. Os

suecos reivindicam, deste modo, um tipo de herança moral que o país recebeu por suas

ações solidárias.

Portanto, a desejada e sentida reputação sueca é também descrita como merecida. O

lugar singular que acreditam ocupar entre os demais doadores, e ao qual pensam fazer

jus, vem de regras reputadas como exclusivas, que a Suécia teria adotado ao estabelecer

sua política de ajuda externa.

A mais citada dentre elas é a “pureza” das doações, reivindicada pelo fato de a Suécia

não atrelar formalmente cooperação a negócios. Embora eles, em geral, não fossem

capazes de discordar da máxima internacional trade follows aid, acreditam que o foco da

cooperação sueca é a solidariedade internacional – ou seja, uma abordagem altruísta, um

compromisso moral e político –, e que os negócios que as empresas suecas fazem nos

países com os quais coopera são conseqüência de sua performance nesses países.

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Se um país como os Estados Unidos, por exemplo, distribuir computadores da Microsoft

para instituições de um país pobre, é razoável prever que eles terão que atualizar seus

softwares e adquirir equipamentos complementares, comprando da Microsoft. Os suecos

sabem que suas empresas, produtos, técnicos e consultores são bons. Além disso,

defendem a possibilidade de estar entre os melhores do mundo em qualidade e

tecnologia; portanto, se suas empresas fazem negócios nos países receptores, é por puro

mérito. O exemplo de uma empresa americana, como a Microsoft, não é gratuito. Os

suecos usaram sempre os Estados Unidos como um modelo oposto ao deles entre os

países doadores.

Isso não quer dizer que o setor empresarial sueco não faça pressão ao parlamento, de

tempos em tempos, para ver o reflexo de seus interesses dentro do orçamento da ajuda

externa. Os empresários suecos prefeririam também que seu governo virasse seu foco de

ajuda para países com mercados mais fortes e com mais condições de comprar produtos

e serviços das suas empresas, como pensam que é atualmente o caso do Brasil e da

África do Sul. A despeito dessas pressões, a política sueca continua, ainda, na mesma

direção, sem uma agenda oculta por detrás de suas doações. De qualquer forma, a

posição conferida à Suécia no cenário internacional estendeu-se às suas empresas, que,

segundo acreditam, são vistas como menos imperialistas e mais confiáveis nos negócios.

Os suecos acreditam também que a boa reputação de seu país vem do fato de só

colaborarem naquelas áreas em que são reconhecidamente bons, ou seja, em que já

demonstraram expertise e, por isso, podem ajudar os países pobres. Sabemos, contudo,

que esse nem sempre foi o caso do envolvimento sueco em Moçambique, onde atuaram

também em áreas sobre as quais não tinham conhecimento anterior.

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No entanto, faz parte da imagem que os suecos têm da sua política externa o cuidado de

não provocar nenhum dano aos países com os quais coopera. Nos anos 70, a Suécia

tinha pouco conhecimento e contato com os países pobres, e eles admitem que devem

ter cometido alguns erros, porque trabalhavam em um ambiente estranho e

desconhecido. Levando essas circunstâncias em consideração, são condescendentes

consigo mesmos ao concluir que tiveram um bom desempenho.

Para alguns cooperantes, esse raciocínio é mais do que uma atitude autocomplacente.

Seria o reforço de um conjunto de mitos sobre a alta competência sueca, que se baseia

em pressupostos tais como: sabemos, mais do que os países receptores, o que se deve

fazer; estamos lá para apoiar, e não para satisfazer a nenhum interesse da nossa parte;

somos doadores que merecem ser agradecidos pelo nosso altruísmo; sem esse apoio, o

mundo fica muito pior, e nós precisamos controlar a aplicação/utilização do apoio, caso

contrário, desviam-se os recursos.

Essas idéias podem formar a imagem de que a Suécia tem a chave principal do

desenvolvimento e a resposta de como uma sociedade desenvolvida deve ser. Um

professor de pedagogia sueco observou que seus estudantes voltavam de países pobres

propondo a ele que elaborassem projetos para melhorar a educação nos países que

visitaram. Uma atitude que ele interpreta como ingênua, porque eles se baseiam numa

forma de representação dos suecos como aqueles que têm a melhor resposta para os

problemas do mundo. Na sua visão, é uma postura etnocêntrica, porque ele nunca viu um

aluno voltando da Inglaterra, por exemplo, com ambições de melhorar a educação

daquele país.

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Os cooperantes suecos concordam que a imagem do país facilita as suas transações no

exterior. Ser sueco, vir de um país que nunca foi uma potência colonial são características

vistas como uma vantagem, não porque eles sejam melhores do que os outros, mas,

como disseram, porque têm uma história, de uma certa forma, mais “limpa” do que a de

outros países que tiveram um poder colonial forte e ainda têm ambições econômicas nas

relações com os países pobres.

Essa reputação internacional da Suécia, seja ela real ou imaginada, tornou-se parte das

estratégias de alguns partidos políticos, que disputam entre si qual deles vai estabelecer o

índice maior do orçamento para a ajuda externa, caso seja eleito. Podemos pensar,

portanto, que, se a imagem da Suécia como modelo de cooperação não fosse pública, ou

ainda, se não fosse desejada pela sociedade, não faria sentido tentar atrair os eleitores

com base na sua manutenção.

A última característica da Suécia como doadora, relatada pelos cooperantes, é a de que,

ao ser a voz constante dos mais pobres, acaba por levar essa idéia para o cenário

internacional, influenciando outros países. Eles falaram da importância da Suécia como

membro de grandes organizações internacionais, como a ONU, a UE, o Banco Mundial e

o FMI, principalmente no contexto das transformações nas tendências da cooperação

internacional pós Guerra Fria. Como parte desse sistema, a Suécia pode agir no sentido

da construção de um modelo de cooperação no qual seus valores sejam reproduzidos

globalmente.

É preciso salientar que essas imagens da Suécia como país doador são repetidas pelos

cooperantes com sentidos diferenciados. Aqueles mais críticos reconhecem-nas como

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parte da construção de uma identidade coletiva sueca nas relações internacionais, ao

mesmo tempo em que assumem uma postura desmistificadora com relação a elas.

Alguns deles, por exemplo, dizem que há poucas evidências de que a Suécia se utilize

dessa possibilidade de tentar influenciar mudanças nas políticas das grandes

organizações internacionais. É possível que sua iniciativa mais relevante nesse campo

tenha sido o incentivo, dentro do Banco Mundial, à iniciativa do HIPC. Contudo, como

umas das grandes financiadoras de algumas entidades das Nações Unidas, poderia se

aproveitar dessa situação, mas falta vontade política para isto. Por outro lado, há os que

acreditam que o modelo sueco de doador tem, em alguns casos, sido seguido por outros

países. Em Moçambique, por exemplo, há um grupo de doadores que se encontram

basicamente toda semana para discutir a cooperação para o desenvolvimento daquele

país. A Suécia tem liderado as iniciativas para aumentar a liberdade de Moçambique para

decidir a prioridade que dará aos recursos que recebe.

Antes de a política externa da Suécia ter sido direcionada para a ajuda ao

desenvolvimento, em grande parte pelas mãos de Olof Palme, o país não tinha a

relevância internacional que tem hoje. Com a entrada na UE, é possível que a Suécia

tenha mudado a sua posição e a sua própria percepção de ser um país com uma política

muito autônoma, forte e independente dos modismos que circulam no mundo. As

diferenças entre os doadores já foram maiores, quando cooperação internacional era um

campo de combate. Mas, infelizmente, esse não foi o combate que conseguiu vencer a

pobreza no mundo.

Um velho combatente sueco me conta que, quando chegou a Moçambique, nos anos 70,

decidiu lutar para que aqueles camponeses tivessem pelo menos enxadas e sementes.

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Como ele mesmo disse, trabalhou como um idiota e, 25 anos depois, ainda em

Moçambique não há enxadas para os camponeses. De onde vem a incompetência? Onde

está a dificuldade?

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CONCLUSÃO

When all was said and done, we continued to be prisoners of the desire not to be ourselves. (Mia Couto)

Minha intenção, nesta pesquisa, foi a de explorar da forma mais intensa possível o

envolvimento da Suécia em cooperação internacional, estudando o caso da cooperação

entre Suécia e Moçambique, interrogando o sentido e o entendimento que os diferentes

atores envolvidos nela têm de suas ações e buscando compreender a que tipos de

motivações elas correspondem.

Apesar da singularidade do caso estudado, acredito que os dados da pesquisa não falam

apenas sobre cooperantes suecos e suas experiências africanas, mas permitem

compreender melhor a produção de sentido da cooperação internacional e de suas

redefinições no pós Guerra Fria, ou seja, suas estratégias de adaptação a um novo

contexto mundial.

A cooperação internacional é um tipo de ação que desencadeia complexas relações entre

motivações que nos levam a acreditar que este tipo de contato entre os países não pode

ser explicado unicamente por suas razões instrumentais ou valorativas, nem por uma

abordagem que contemple apenas os aspectos macroestruturais. Segundo Jacques

Godbout (1999, p. 232),

A dádiva combina o circuito do mercado com a hierarquia do Estado, o que a transforma numa hierarquia emaranhada. Eis por que toda apreensão da dádiva pelo modelo de Estado ou de mercado consiste num corte, seja vertical, retendo o aspecto hierárquico, de obrigação, de imposição, seja horizontal, retendo apenas a rede simples e plana do mercado, regida por uma só lei, a da equivalência, que neutraliza os vínculos e sua variabilidade contextual.

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Sua análise sobre a dádiva contribui para justificar o tipo de abordagem que escolhi fazer

aqui, ao observar que o jogo da cooperação é circunscrito por uma rede de atores que

representam Estados, sociedades civis e mercados, e que a ação desses atores coletivos

estabelece uma relação extrínseca com as trajetórias individuais, as quais não se pode

negligenciar sem prejuízo de seu entendimento.

A pesquisa com autores que pretenderam descrever o caráter sueco me permitiu perceber

um vínculo paradoxal entre identidade política e identidade nacional na Suécia. Ao mesmo

tempo em que os suecos se reconhecem nos princípios de igualdade e solidariedade

interna, tradicionalmente atribuídos ao modelo social-democrata, se definem por uma

postura que identifiquei como orgulho de não ter orgulho nacional. A combinação entre o

interesse por assuntos internacionais, a neutralidade e ausência de orgulho nacional são

elementos importantes para a construção de uma imagem de um povo cosmopolita. Ao

atribuírem a si mesmos essas características, os suecos correspondem ao tipo ideal de

sujeito da sociabilidade moderna, podendo se desencaixar da Suécia e se reencaixar em

qualquer outro lugar, como missionários, empresários, cooperantes ou consultores.

A análise da literatura sobre o envolvimento da Suécia com as lutas de libertação das

colônias do sul da África evidenciou alguns aspectos que abriram caminho para a entrada

da Suécia no mundo dos doadores. Os missionários da igreja sueca representaram um

significativo movimento para a sociedade, em direção do cumprimento do dever moral de

solidariedade interna e externamente. Numa perspectiva laica, os movimentos trabalhistas

foram apresentados como geradores de solidariedade internacional. Esta análise é

ancorada pela crença de que o contrato social que estabeleceram com o setor empresarial

e com o governo, baseado no diálogo e não no conflito, traduziu-se em uma credencial da

Suécia para transitar pelo sistema mundial como uma nação perita em conciliar interesses

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normalmente conflituosos. A internacionalização da Suécia aparece também associada ao

nome de Olof Palme, de suas posições humanitárias e da sua disponibilidade para

estabelecer relações pessoais com as lideranças políticas dos países pobres. Um quarto

motivo que aparece como justificativa da cooperação sueca substitui os argumentos

idealistas pela perspectiva realista da segurança nacional, ou seja, a cooperação sueca

durante a Guerra Fria visava encontrar nações aliadas que sustentassem sua posição de

país neutro, principalmente nas negociações na ONU.

A pesquisa permitiu também identificar os elementos principais de uma cosmologia que se

forma com a participação da Suécia no jogo da cooperação para o desenvolvimento. Há um

conjunto mais ou menos coerente de representações sobre a metodologia e o conteúdo das

suas relações de ajuda, que pode até ser criticado por alguns de seus atores; no entanto,

tais representações não lhes são desconhecidas.

O grupo estudado, ou seja, os cooperantes suecos em Moçambique, tece a imagem da

Suécia entre os demais doadores como sendo tradicional, uma vez que está envolvida em

assuntos dos países pobres há muito tempo. Um outro elemento característico atribuído à

sua cooperação é a “pureza” das doações, que pressupõe que a Suécia não tem interesses

diretos a serem obtidos por meio de sua ajuda e não atrela negócios aos acordos de

cooperação. Além disso, o país desenvolveu um sistema perito, que lhes dá o direito de

gozar da confiança dos países pobres, porque cooperam com aquilo em que são

“realmente” bons. Como conseqüência, mesmo que nem sempre seja possível ver

objetivamente os resultados positivos de seus programas e projetos, a cooperação sueca

nunca provoca nenhum dano ao desenvolvimento dos países receptores. De um modo

geral, a Suécia é representada como dona de excelente e merecida reputação no cenário

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internacional, o que alimenta a crença de que pode influenciar os demais atores em ação

neste sistema, com seus valores, métodos e políticas.

A sua política de cooperação, embora enfatize as metodologias participativas, não rompe

com os valores suecos fundamentais. Nos planos de cooperação, os valores

compartilhados pela sociedade sueca, ainda que de forma ideal, são tomados como

objetivos universais, como é o caso da ênfase em igualdade de gênero como um dos eixos

fundamentais para superar a pobreza em Moçambique.

Se o conhecimento nativo é visto como especial na promoção de laços sociais e afetivos,

no campo da técnica, entretanto, os cooperantes suecos comportam-se como peritos que

merecem confiança, porque alcançaram indicadores altos de desenvolvimento em seu país;

entretanto, nos contatos pessoais, não se acham tão bons e ressentem-se da falta de uma

visão de mundo mais realista, em contraposição a uma vivência protegida pelo Welfare

State. O ciclo das doações que se forma daí confirma o que diz o sociólogo Helmuth

Berking (1999, p. 32): “the gift presents itself at once as symbolic form and material

substratum of social synthesis. It constitutes an exchange which irrevocably unifies

economics, power and morality, cult and cultures.”

A análise dos documentos da Sida, principal braço do governo sueco nas relações de

cooperação, revelou um discurso oficial que se ajusta perfeitamente às políticas globais de

desenvolvimento pós Guerra Fria. A sua ênfase no knowledge como a chave principal do

desenvolvimento pode colocar a Suécia como um dos atores centrais no jogo da

cooperação, tornando-se o meio pelo qual a pequena nação pretende se fazer ouvir e

competir com as grandes potências no cenário internacional. Como nos lembra Albert

Hunter (1995, p. 151),

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knowledge and power are intimately related. Differences in the distribution of knowledge are a source of power, and power may be used to generate and maintain differences in the distribution of knowledge. Knowledge, then, is a scarce resource.

Mas, se esta afirmação é verdadeira em termos globais, entre os doadores é possível que

as diferenças de domínio de knowledge não sejam tão significativas assim. Contudo, o

discurso governamental sueco parece continuar apostando na singularidade da sua política

externa. Essa singularidade desejada seria decorrência de sua metodologia, que prevê o

desenvolvimento de knowledge, e não a sua simples transferência, o diálogo, as políticas

participativas e o ownership. Mais uma vez, princípios que são canônicos no sistema

internacional contemporâneo.

A confiança na sua perícia para aplicar esta metodologia de cooperação vem do fato de

terem uma sociedade muito organizada e politizada e uma tradição de diálogo entre as

ONG’s e o Estado. Sendo assim, podemos inferir que a sociedade civil sueca sustenta

duplamente a política do Estado, pagando seus impostos e oferecendo-lhe o método. Se

esta for uma parceria eficaz, a cooperação sueca, ainda que pautada por princípios

altruístas e não comerciais, pode criar, nos países receptores, um novo mercado de

exportação para os produtos e serviços suecos.

As novas políticas para o desenvolvimento global, em circulação entre as agências

multilaterais de cooperação, exploraram muito mais as semelhanças do que as diferenças

entre os doadores. No entanto, a Suécia participa dos fóruns internacionais com a intenção

de portar uma identidade que se constrói na crença de sua singularidade diante do sistema

internacional. Nos documentos governamentais, encontramos referências à sua condição

de país número 1 em coerência, porque assume para si o dever moral de ter a mesma

conduta e direção, em qualquer que seja a arena política que estiver envolvida. Isto

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significa, por exemplo, que a sua cooperação bilateral deve seguir a mesma política da

cooperação que faz no âmbito da UE, da ONU, do Banco Mundial ou do FMI.

Este anseio pode não ser realista, porque a coerência pode implicar conflito de interesses

em alguma ou algumas das diferentes arenas, já que, em geral, as estruturas mundiais

não são coerentes com os pobres, e sim com eles próprios. Além disso, essa coerência

tem exigido ajustes mais à direita na formulação de sua política externa, de modo a se

coadunar com a tendência de projetos multilaterais e supra-institucionais, que vêm

suplantando os bilaterais. Neste caso, pode vir a produzir conflitos internos com suas

antigas alianças na sociedade civil.

A morte de uma liderança como Olof Palme, justamente no momento de grandes

mudanças mundiais, pode ter feito a Suécia perder o momento e a oportunidade de ter

uma política própria, que lhe resguardasse a identidade de nação avant-garde nas

relações de cooperação.

Isto nos conduz à conclusão de que a Suécia está diante de um dilema contemporâneo,

provocado pelas mudanças no cenário mundial. Com o fim do mundo bipolarizado, não

faz mais sentido ser neutro. Além disso, dentro das novas políticas para o

desenvolvimento global, fica muito difícil se destacar a ponto de sua política externa

retornar para dentro do país como um traço significativo da identidade nacional. Nos

processos atuais, não fica claro quem fez o quê, quem fez melhor etc.

No entanto, a Suécia continua a buscar uma diferenciação no mundo dos doadores, como

acredito que faz no caso das suas novas estratégias de desenvolvimento da província de

Niassa, em Moçambique. Além disso, se esta diferenciação não é expressiva em termos

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quantitativos, ou seja, pelo montante de recursos, em termos absolutos, que destina para

a cooperação, podemos perceber um desejo, mesmo que não realizado, de se fazer

diferenciar nos fóruns internacionais dos quais participa, porque pensa ser capaz de

influenciá-los para que sua política de cooperação se torne parte relevante do paradigma

global.

A relação Suécia – Moçambique é um dos casos mais exemplares da cooperação

bilateral sueca e foi arena da luta política por solidariedade internacional e contra o

apartheid. A narrativa dos cooperantes suecos sobre Moçambique revelou que

escolheram voluntariamente fazer uma interpretação que enfatiza muito mais as supostas

semelhanças entre eles do que as diferenças: estes dois povos são tímidos,

trabalhadores, organizados e sem preconceitos raciais. Numa sedução etnocêntrica, os

suecos julgam tais características como positivas; as diferenças culturais são

interpretadas ou como favoráveis a Moçambique, como nos caso da maior sociabilidade e

capacidade interativa atribuída a eles, ou como sinais de uma escala evolutiva que ainda

não chegou ao mesmo ponto dos suecos, como no caso dos feitiços e das referências

aos espíritos dos ancestrais.

O trabalho de campo com os cooperantes suecos me levou a concluir que houve uma

mudança importante no sentido que estes agentes atribuem ao seu papel no jogo da

cooperação para o desenvolvimento. O grupo que chamei de Velhos Combatentes

constituiu-se, basicamente, em torno de uma clara motivação ideológica. A promoção do

desenvolvimento teve para eles muito mais uma conotação de meio para se atingir as

transformações políticas que defendiam do que de um fim em si mesmo. Nesse sentido,

assumiam um dever revolucionário, que tornava o êxito dos projetos de desenvolvimento

um critério secundário nas avaliações de suas ações.

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O contexto que viu surgir esses Combatentes é caracterizado pelo sucesso do antigo

contrato social dos anos 30, na Suécia, e por uma sociedade que deixava para trás uma

história de pobreza, em troca do bem-estar. A combinação destes e de outros fatores

favoreceu o despertar de um forte sentimento em favor da solidariedade internacional.

O sujeito que se interessou pela causa da libertação moçambicana é caracterizado por

seu engajamento político, na sua maioria, por se identificar com ideologias de esquerda,

embora houvesse entre eles alguns aventureiros que buscavam um pouco do sol, mar e

calor tropical, ou que conjugavam os dois interesses – ideológico e aventureiro. No ciclo

das doações com Moçambique, ofereceram mão-de-obra para preencher o vazio deixado

pelos portugueses e receberam oportunidades de fazer alguma que coisa que sentissem

como sendo significativa. Como conseqüência não esperada de suas ações, muitos deles

se tornaram profissionais muito requisitados, quer seja pelas organizações suecas e

internacionais, quer seja pelo mercado de trabalho interno, nas áreas de suas

especializações.

Para a nova geração de cooperantes, que chamei de Novos Técnicos Estrangeiros, o

retorno em termos de sucesso profissional não é uma conseqüência inesperada, e sim um

cálculo cuidadoso que pode, por si só, dar sentido à sua escolha por este campo. Não se

pode concluir que este grupo seja destituído de qualquer motivação ideológica. São no

mínimo altruístas, mas não têm nem grandes impérios nem o apartheid para destruir.

Na sua maioria, são jovens com a mesma idade dos que foram a Moçambique nos anos

70 e 80. Alguns deles ainda vêm da igreja, e outros têm um background muito menos

claro, ideologicamente falando. Querem trabalhar fora de seu país, mas o caminho natural

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para isto já não passa, necessariamente, pelos movimentos solidários. Quando estão

ligados a uma organização de ajuda, muitas vezes chegaram até ela pelas possibilidades

de emprego, e não exclusivamente pela afinidade e pelo desejo de se tornar um militante

daquela causa.

Os Novos Técnicos Estrangeiros chegam a Moçambique mais treinados e com maior

titulação universitária do que a maioria dos Velhos Combatentes, mas não se pode dizer

que sejam mais necessários para o desenvolvimento daquele país do que seus

predecessores. Hoje, o nível das habilidades profissionais dos moçambicanos é bem mais

elevado do que na situação dramática pós-independência e, por isto, a política de mandar

pessoal para lá pode não ser a mais eficiente forma de cooperação. Contudo, mandar

suecos a Moçambique tornou-se uma tradição com retorno muitas vezes positivo para o

mercado sueco, porque isto faz deles profissionais mais experientes e pessoas mais

perspicazes e comprometidas.

A pesquisa com os cooperantes da velha e da nova geração permitiu concluir que as suas

atividades em Moçambique ofereceu-lhes “uma causa” que serve de recorte identitário e

que cobre de sentido relações e transações humanas que lhes parecem esvaziadas

dentro da Suécia. Se assim for, o ciclo das doações encontra-se em seu movimento ideal.

Nos anos 70 e 80, a solidariedade internacional esteve mais voltada para o apoio às

políticas nacionais específicas de cada país. O cenário hoje é mais homogêneo, e a nova

geração se envolve menos com os Estados Nacionais e mais com os direitos humanos,

com as causas relativas a grupos como o das mulheres, o das minorias étnicas etc.

Portanto, é possível concluir que a cooperação sueca não se diferencia totalmente de

uma modelagem que vem das instituições econômicas internacionais e que são

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ancoradas no preceito do direito à eqüidade. Desta forma, a agenda internacional deixa

de ser movida especialmente pela polarização ideológica que marcou a segunda metade

do século XX.

Esta situação demonstra que não é tarefa fácil responder para onde vai o filão ideológico

no mundo atual. Diante desta dúvida, os suecos estão sentados com outros doadores,

como “cavaleiros em torno da riqueza comum”, ao mesmo tempo em que desfilam em

passeata pelas ruas de Estocolmo, dando sinais de que a luta continua.

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