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Para um Novo Judiciário:
qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
Boaventura de Sousa Santos (director científico)
Conceição Gomes (coord.) Paula Fernando Catarina Trincão Élida Santos Carla Soares Diana Fernandes
OBSERVATÓRIO PERMANENTE DA JUSTIÇA PORTUGUESA
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS
FACULDADE DE ECONOMIA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA Observatório Permanente da Justiça Portuguesa
Abril de 2008
1
Índice
Índice.................................................................................................................. 1
Agradecimentos ................................................................................................. 5
1. Introdução e Notas Metodológicas ................................................................. 9
2. Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da administração e
gestão da justiça .............................................................................................. 17
2.1 Modelos de gestão da Administração Pública ........................................ 17
2.2 Modelos de gestão e administração dos tribunais .................................. 25
3. Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da
administração e gestão dos tribunais ............................................................... 33
3.1 Qualidade, eficiência e transparência..................................................... 33
3.2 Prestação de contas ............................................................................... 36
3.3 O funcionamento interno e a divisão do trabalho no tribunal .................. 40
3.3.1 O novo modelo de oficina judicial em Espanha................................ 41
3.4 A distribuição dos processos .................................................................. 47
3.5 A gestão do caso concreto ..................................................................... 52
3.6 A introdução de novas tecnologias ......................................................... 53
3.7 A importância da cultura judiciária .......................................................... 55
4. Algumas orientações das instituições comunitárias quanto à gestão
processual e à informatização da justiça.......................................................... 57
4.1 As recomendações do Conselho da Europa........................................... 57
4.2 Os estudos da CEPEJ ............................................................................ 60
5. A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e
princípios em debate ........................................................................................ 65
5.1 A distribuição da procura entre tribunais................................................. 65
5.2 A distribuição dos processos dentro do tribunal ..................................... 69
6. A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual
mais eficaz e com melhor qualidade ................................................................ 87
6.1 A estrutura e os recursos dos tribunais como factores de eficácia da
gestão processual......................................................................................... 87
6.1.1 Os espaços físicos ........................................................................... 87
6.1.2 Os recursos materiais ...................................................................... 89
2
6.1.3 Os recursos humanos: liderança, motivação, formação e organização
funcional.................................................................................................... 92
6.2 O funcionamento e os actos das secções: regras e práticas................ 105
6.2.1. O funcionamento das secções ...................................................... 105
6.2.2 Actos das secções e fluxos processuais ........................................ 113
6.2.3 Os actos das secções e o impacto da Portaria n.º 114/2008 ......... 122
6.2.4 A necessária adequação das regras processuais.......................... 130
7. A gestão efectiva do caso concreto............................................................ 133
7.1 O papel do juiz no confronto entre duas visões na tramitação do caso
concreto: a técnico-burocrática vs a gestionária......................................... 134
7.2 Os indicadores de avaliação do volume e da complexidade dos
processos como instrumentos de gestão processual ................................. 143
7.3 O papel do juiz na promoção da conciliação como solução para o conflito
.................................................................................................................... 146
7.4 Pode no actual sistema o juiz gerir o caso concreto? A tensão funcional
com as competências do escrivão de direito .............................................. 148
7.5 O cumprimento e o controlo dos prazos ............................................... 156
7.6 Os despachos de mero expediente ...................................................... 160
7.7 Os actos (que podem ser instrumentais) das partes ............................ 165
7.8 A criação de uma cultura judiciária orientada para a gestão processual
.................................................................................................................... 168
8. Conclusões e Recomendações.................................................................. 173
8.1 Conclusões ........................................................................................... 173
8.2 Algumas recomendações ..................................................................... 201
Bibliografia...................................................................................................... 207
Índice de Figuras Tabela 1 ……………………………………………………………………………... 96
Tabela 2 ……………………………………………………………………………. 109
Tabela 3 ……………………………………………………………………………. 128
Tabela 4 ……………………………………………………………………………. 160
Tabela 5 ……………………………………………………………………………. 161
Tabela 6 ……………………………………………………………………………. 163
3
Organograma 1 …………………………………………………………………… 101
Diagrama 1 ………………………………………………………………………… 106
Diagrama 2 ………………………………………………………………………… 108
Fluxograma 1 ……………………………………………………………………… 114
Fluxograma 2 ……………………………………………………………………… 117
Fluxograma 3 ……………………………………………………………………… 121
Fluxograma 4 ……………………………………………………………………… 123
Fluxograma 5 ……………………………………………………………………… 124
Fluxograma 6 ……………………………………………………………………… 129
4
5
Agradecimentos
O presente estudo foi desenvolvido, por solicitação da Direcção-Geral da
Administração da Justiça, pelo Centro de Estudos Sociais da Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra, no âmbito do Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ). A reflexão sobre a gestão dos
processos nos tribunais judiciais cíveis de primeira instância (Medidas e
mecanismos de gestão processual nos tribunais: como garantir mais eficiência
no sistema?) constituiu o seu objecto central.
As transformações gestionárias no sistema de administração da justiça
são hoje, entre nós, à semelhança do que está a acontecer um pouco por todo
o lado, questões centrais da agenda de reforma do sistema de justiça. Nos
estudos que temos vindo a desenvolver no âmbito do Observatório Permanente
da Justiça, é consensual que um dos principais problemas dos tribunais
portugueses decorre de deficiências de organização e gestão do sistema de
justiça, globalmente considerado. Neste estudo, centramos a nossa análise na
gestão processual. Contudo, para uma resposta eficaz a esta questão exige-se
uma agenda de reforma mais alargada, que deve passar por alterações várias,
designadamente na organização e funcionamento interno dos tribunais, nos
métodos de trabalho e na cultura judiciária.
Como em muitos outros trabalhos de investigação que temos vindo a
desenvolver no OPJ, a realização deste estudo só foi possível com a
prestimosa colaboração, que sempre temos tido, dos senhores magistrados,
advogados e funcionários. A todos eles, sempre, o nosso reconhecido
agradecimento.
Um agradecimento especial é devido a todos aqueles que connosco
colaboraram neste projecto de investigação, nos painéis de discussão, nas
entrevistas ou na observação que levámos a cabo nas secções de processos.
Sem a sua generosa disponibilidade e competente colaboração não teria sido
possível realizar este estudo.
Assim, queremos deixar aqui o nosso reconhecido agradecimento aos
Senhores Magistrados Alexandra Ferraz Lage, Alfredo Madureira, Ana Isabel
Silva, António Beça Pereira, Fernando André Alves, Fernando Vilares Ferreira,
6
Francisca Micaela Vieira, Helena Ribeiro, Isabel Vieira, José Eusébio Almeida,
José Mouraz Lopes, Luís Azevedo Mendes, Maria da Purificação Carvalho,
Maria de Fátima Calvo, Maria de Fátima Silva, Nuno Coelho, Paulo Anunciação
Reis, Pedro Marques Ribeiro, Pedro Neves, Rosa Vasconcelos, Rui Lince de
Faria, Sara Pina Cabral, Sónia Vale e Silva e Susana Achemann.
Aos Senhores Funcionários Judiciais, Abel Silva, Afonso Pimentel,
Agostinha Nunes, Aldina Lemos, Álvaro Fidalgo, Ana Cairão, Ana Lima dos
Santos, Ana Maria Teixeira, Anabela Rodrigues, Anabela Silva, António
Ferreira, Arminda Duarte, Augusta Barreira, Avelino Duarte, Bento de Almeida,
Carla Fialho, Carla Fontes, Carlos Carrolo, Carlos Samorinha, Celeste Nunes,
Cesarina Figueiredo, Cristina Costa, Daniel Costa, Elisabete Oliveira, Emília
Ramalheira, Ernesto Tátá, Eva Jorge, Fernanda Margarida Soutinho, Fernando
da Silva Franco, Florbela Soeima, Isabel Ginja, Guerreiro da Silva, Helena
Campos, Isabel Carvalho, Isabel Teixeira, João Campos, João Lima, João
Pedrosa Pinto, Joaquim Parente, Jorge Constantino, Jorge Pires, Jorge Santos,
José Abelha, José Eduardo Santos, José Lapa, Júlio de Almeida, Junia
Bauhofer, Leonor Soares, Lúcia Santos, Lucília Matos, Luís Seco, Luísa
Coelho, Luísa Luz, Lurdes Pinheiro dos Santos, Lurdes Ramalho, Margarida
Mourão, Maria Adélia Macela, Maria Amália Rebelo, Maria Arminda Ferreira,
Maria da Graça Araújo, Maria do Carmo Ramos, Maria Esperança Chiquelho,
Maria José Barradas, Miguel Candeias, Natércia Lopes, Odete Sequeira, Olívia
Costa, Paulo Jorge Duarte, Rui Pitrez e Teresa Vale.
Agradecemos, igualmente, ao Senhor Presidente da Delegação de Sintra
da Ordem dos Advogados Dr. Rui Tavares.
Três agradecimentos especiais são devidos. À senhora Dra. Helena
Ribeiro, pelo inexcedível apoio no trabalho de campo, ao senhor Daniel Costa,
pela fundamental ajuda na interpretação de alguns dados empíricos e ao
senhor Dr. José Mouraz Lopes, pela discussão que connosco foi fazendo ao
longo do trabalho e pelo apoio com materiais vários.
Além da equipa de investigação, este trabalho contou, em vários
momentos, com o apoio dos Drs. Fátima Antunes, Lara Dias, Marta Fachada e
Ricardo Cabrita, e dos nossos colegas do OPJ, Drs. José Manuel Reis e Tiago
7
Ribeiro. A este último, queremos agradecer, de forma especial, a ajuda, que,
em acumulação com outras tarefas, nos prestou na produção do relatório final.
Introdução e Notas Metodológicas
9
1. Introdução e Notas Metodológicas
As transformações ocorridas no Estado, na sociedade e na economia, a
consciência social da importância do papel do poder judicial na construção do
Estado de Direito, a crescente visibilidade social e política dos tribunais, são
factores que, nas últimas décadas, provocaram profundas alterações, quer no
contexto social da justiça, quer no desempenho funcional dos tribunais
judiciais, obrigando os poderes político e judicial a desenvolverem extensos
programas de reforma.
Os movimentos de reforma do sistema de justiça sucedem-se à escala
global, inicialmente centrados em soluções que procuravam introduzir factores
de celeridade e de simplificação nas leis processuais, no apetrechamento dos
tribunais com mais recursos humanos e mais infra-estruturas e, mais
recentemente, apostando na desjudicialização e nos meios alternativos de
resolução de litígios.
Contudo, o aumento exponencial da procura judiciária, a complexidade
da litigação e a escassez de recursos vieram confrontar o judiciário com a
ineficiência e insuficiência daquelas soluções. Assume-se que é necessário ir
mais além das medidas de “mais do mesmo” (mais tribunais, mais recursos) e
olhar para o sistema judicial numa outra perspectiva. Como nota Lindblom e
Watson (1995)1, a complexidade da litigação emergente, num contexto de
evolução dinâmica, apela a uma maior flexibilidade e criatividade do legislador,
magistrados, advogados e académicos.
O programa de reformas da justiça passou, assim, a incluir uma outra
vertente, mais focada nos problemas relacionados com a qualidade, a
eficiência e a eficácia do sistema de justiça e, em especial, dos tribunais
judiciais. As reformas que visam o reforço da capacidade de organização e
gestão da justiça tornaram-se apostas centrais das agendas de reforma em
muitos países e integram as recomendações do Conselho da Europa, em
especial, da CEPEJ. No lastro desta tendência está um amplo movimento de
1 “Changes challenge established forms of procedure. While a static situation gives the courts a chance to catch up and anticipate complex litigation problems, a dynamic evolution demands much more productive flexibility and creative inventiveness from legislators, judges, lawyers and scholars.” (1995: 469-470)
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
10
transformação da administração pública em geral em direcção a um Estado
managerial.
Também entre nós há um relativo consenso quanto ao facto de o deficit
de organização, gestão e planeamento do sistema de justiça ser responsável
por grande parte da ineficácia e ineficiência do seu desempenho funcional.
Defende-se, por isso, a introdução de medidas que visem a alteração de
métodos de trabalho, uma melhor e mais eficaz gestão de recursos – humanos,
materiais e dos processos –, e uma melhor articulação dos tribunais com os
serviços complementares da justiça.
Esta é, contudo, uma via do processo de reforma da justiça muito
complexa. No seu lastro estão diferentes perspectivas da configuração do
poder judicial e dos princípios que o sustentam e, sobretudo, da sua relação
com os outros poderes, em especial, com o poder executivo. Os modelos de
administração e gestão dos tribunais em sentido lato têm na sua génese uma
discussão fundamental sobre o grau de participação/autonomia dos poderes
executivo e judicial. Este espaço de reforma é, portanto, um espaço onde se
medem as tensões entre os vários poderes do Estado. Daí que a legitimação
do processo de reforma e a defesa de valores constitucionais importantes da
cidadania, como a independência dos tribunais, requeiram uma ampla e
participada discussão das agendas de reforma.
No quadro das reformas que visam uma melhor qualidade e eficiência do
judiciário, insere-se a discussão sobre medidas e mecanismos de gestão e
distribuição processual (case management / case assigment) – duas faces da
mesma moeda. As teorias sobre o case management surgiram mais
associadas aos países de tradição da common law, caracterizada por um
processo de tipo adversarial, embora com um poder de conformação do juiz
forte, e em que este é assessorado por um conjunto de funcionários com
competências específicas. No sistema continental de raiz burocrática, a
introdução de métodos de gestão processual só muito recentemente entrou no
centro do debate, mas com mais resistência.
A reflexão e discussão sobre os modelos de distribuição da procura
judiciária, quer entre os diferentes tribunais, quer dentro da unidade orgânica
entre os juízes, confronta-se com questões como o acesso ao direito e à
justiça, eficácia, eficiência e qualidade processual, distribuição igualitária de
Introdução e Notas Metodológicas
11
cargas de trabalho e garantias de independência e de imparcialidade do
sistema judicial. Todos esses objectivos só serão, pelo menos em parte,
conseguidos num sistema judiciário que tenha uma perspectiva gestionária
sobre os casos concretos que constituem a procura que lhe é dirigida, isto é,
que veja para lá da sucessão de actos. Os mecanismos de gestão processual
permitem alcançar uma solução justa, rápida e com qualidade para o litígio.
O estudo que agora se apresenta faz, do nosso conhecimento, uma
primeira reflexão mais abrangente sobre esta temática, procurando incorporar a
visão dos operadores judiciários. Sabemos que há um longo caminho a
percorrer e, por certo, o aumento da eficácia, eficiência e da qualidade da
resposta à procura judicial passa por mudanças na lei, designadamente nas
leis do processo, mas passa também por mudanças culturais, quer da
advocacia, quer das magistraturas. Para esse processo de mudança é crucial a
contribuição dos estudos e da reflexão produzida, a dinamização de espaços
de debate e a criação e desenvolvimento de programas estratégicos de
formação.
Este relatório está dividido em oito pontos principais. Depois da
introdução e das notas metodológicas, no Ponto 2 traçamos alguns dos
rumos da qualidade, eficiência e transparência da justiça. Começamos por
dar conta da evolução dos modelos de administração e gestão das
organizações da Administração Pública, a saber: os modelos burocrático,
gestionário, e o modelo da Qualidade Total, salientando, no que se refere a
este último, os seus princípios e vectores organizacionais fundamentais:
liderança, motivação, cultura organizacional, comunicação e novas tecnologias.
Ainda neste ponto, centramos a nossa atenção nos modelos de gestão e
administração dos tribunais. Apresentamos as principais especificidades de
sete modelos (modelo executivo, modelo de comissão independente, modelo
de parceria, modelo executivo mitigado, modelo de autonomia limitada, modelo
de autonomia limitada e de comissão e modelo judicial), que têm como
principal característica diferenciadora a configuração das relações dos poderes
do Estado relativamente à administração da justiça e, em especial, à
administração e gestão dos tribunais.
O Ponto 3 pretende dar conta de algumas das principais questões
em debate quando o tema é administração e gestão dos tribunais. São
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
12
elas: a) qualidade, eficiência e transparência; b) prestação de contas; c)
organização interna; d) introdução de novas tecnologias; e) princípios e
critérios que presidem às regras de distribuição dos processos; f) discussão à
cerca do conceito de “gestão do caso concreto (“case management”); e g) a
importância da cultura judiciária.
A atenção das instituições europeias ao funcionamento da justiça e ao
desempenho dos sistemas judiciais nos Estados-membros tem sido
crescentemente reflectida nas respectivas agendas de reforma, o que se traduz
na emissão de diferentes recomendações e na elaboração de resenhas de
boas práticas. No Ponto 4 damos conta de algumas dessas recomendações e
das principais linha dos estudos da CEPEJ sobre esta matéria.
Os Pontos 5, 6 e 7 centram-se no sistema judicial português e
reflectem os dados empíricos recolhidos no trabalho de campo. No Ponto
5 salientamos as principais questões que emergiram no que respeita à
distribuição de processos, quer entre os diferentes tribunais, quer internamente
pelas diferentes unidades orgânicas e pelos juízes. São questões que
consideramos deverem ser tidas em conta no desenvolvimento de políticas
sistémicas e íntegras de gestão processual.
São múltiplos os factores que condicionam a melhoria da qualidade e
eficiência do sistema judicial e, em último grau, da administração da justiça.
Regras processuais, normas de organização judiciária, formação, colocação e
progressão na carreira dos agentes judiciais e cultura judiciária são factores a
ter em conta quando o objectivo é elevar a qualidade, a eficiência e a cidadania
da justiça. Mas, a organização interna das estruturas judiciais, designadamente
das secções de processos, os métodos de trabalho, a modernização
tecnológica e a adequação das infra-estruturas são factores igualmente
cruciais, condicionantes daqueles objectivos. No Ponto 6 focamos a nossa
análise na dimensão material e humana dos tribunais, com ênfase
especial nas secções de processos. Esses dois eixos de análise são
apresentados no contexto do funcionamento dos tribunais observados e das
relações dinâmicas estabelecidas internamente na secção e entre esta e outras
unidades funcionais e o gabinete do juiz.
O Ponto 7 centra-se na discussão à volta do conceito de “gestão do
caso concreto” (“case management”) e nas questões que se levantam sobre
Introdução e Notas Metodológicas
13
a participação e interacção dos diferentes intervenientes processuais. Porque é
ao juiz a quem os sistemas judicias, em geral, atribuem um papel mais activo
na gestão do caso concreto, damos especial atenção à discussão sobre esse
papel do juiz, considerando, designadamente, a necessária diferenciação
gestionária, o planeamento e agendamento dos principais actos, a promoção
da conciliação, a tensão funcional com as competências do escrivão e a
criação de uma cultura judicial orientada para a gestão processual.
No Ponto 8 incluímos as principais conclusões e recomendações.
Notas Metodológicas
A análise de estudos e artigos publicados foi fundamental, não só para
traçar o quadro teórico de referência, mas, ainda, para ajudar à definição do
objecto de estudo e das linhas metodológicas a prosseguir no contexto da
investigação. Como acima já referimos, são múltiplos os factores que
condicionam a melhoria da qualidade e eficiência do sistema judicial e, em
último grau, da administração e gestão da justiça, onde se inclui a gestão
processual. Havia, pois, que definir aqueles que, neste estudo, deveriam
assumir centralidade.
Ainda no âmbito documental, a análise das recomendações do Conselho
da Europa e da legislação nacional foi importante para o conhecimento das
tendências das políticas nesta matéria.
Estando em parte o nosso objecto de análise desde logo definido – os
processos cíveis – na obtenção de informações empíricas relativas às práticas
procedimentais, o processo de reforma em curso da acção executiva levou-nos
a centrar a análise empírica no âmbito das acções declarativas2.
As dinâmicas de concentração territorial da população e dos sectores
económicos impuseram, como se sabe, uma grande diferenciação na
distribuição territorial do volume da procura judiciária. Foi, por isso, necessário,
para efeitos de selecção dos tribunais para estudo de caso, ponderar a
distribuição desigual do volume da litigação pelos tribunais. Foram também
factores relevantes a ter em conta a necessidade de lidar com um volume
2 O OPJ produziu um estudo e apresentou propostas de reforma sobre a acção executiva que poderão ser consultados em Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2007) A Acção Executiva em Avaliação. Uma Proposta de Reforma.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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processual de média dimensão e com padrões de litigação diferenciados, mas
sem o serem em demasia. Para além disso, a especialização de competências
constituiu um critério importante face ao objecto de trabalho delimitado, sendo,
por isso, tomado em conta na selecção dos estudos de caso efectuados. Os
desvios à tramitação comum foram igualmente atendidos na selecção dos
tribunais, na medida em que testam regimes processuais alternativos (Regime
Processual Civil Experimental).
Em função desse quadro de critérios e das devidas salvaguardas
analíticas foram seleccionadas quatro comarcas e os seguintes tribunais: Sintra
(a vara mista e os juízos cíveis), Aveiro e Viseu (os juízos cíveis), e Porto (as
varas cíveis e os juízos cíveis). Nestes tribunais procurou aplicar-se um plano
de pesquisa que integrou duas técnicas metodológicas complementares, a fim
de analisar o curso do processo, os actos e as dinâmicas funcionais intra e
inter-secções, bem como entre estas e o gabinete do juiz. Essas técnicas
consistiram na observação sistemática e na realização de entrevistas semi-
estruturadas aos profissionais de justiça envolvidos.
Para levar a cabo a observação sistemática, ao longo de cerca de um
mês de trabalho empírico, foi necessário compreender o funcionamento interno
e quotidiano das diferentes secções de processos e, a partir daí, proceder à
reconstituição do percurso dos processos dentro do tribunal. Para além disso,
uma concepção de gestão processual ampla requer a adopção de um modelo
de observação multifocada, que abranja os diferentes factores que concorrem
para uma gestão dos processos eficaz, eficiente e promotora da qualidade da
justiça. Nesse sentido, a observação realizada procurou incorporar, para além
da tramitação processual em si, também as condições físicas e materiais das
unidades orgânicas, bem como outros elementos integrantes da gestão de
recursos humanos. As mudanças proporcionadas pela introdução de novas
tecnologias de informação no quotidiano dos tribunais constituíram igualmente
aspectos merecedores de uma especial atenção no plano da pesquisa
empírica.
Por essa razão, o caso de Sintra foi objecto de maior destaque, uma vez
que foi a comarca experimental do Projecto «Desmaterialização, eliminação e
simplificação de actos e processos na justiça», pelo que exigiu dois momentos
de observação: um anterior e outro posterior à entrada em vigor da Portaria n.º
Introdução e Notas Metodológicas
15
114/2008, de 6 de Fevereiro. Só dessa forma seria possível avaliar algum
impacto desta medida na tramitação processual.
Para todos os tribunais seleccionados, definiu-se um roteiro para a
observação das secções central, de serviço externo e de processos. Em
Aveiro, Viseu e Porto, para os juízos e/ou para as varas, foi seleccionado um
juízo/vara e respectivas secções, através de um método de escolha aleatória.
Em Sintra – comarca modelo –, escolheram-se, também de forma aleatória,
50% dessas unidades orgânicas.
Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, num total de 81, aos
operadores judiciais das unidades orgânicas observadas – juízes, secretários,
escrivães de direito, escrivães adjuntos e escrivães auxiliares. Algumas destas
entrevistas tiveram, inicialmente, um papel exploratório de grande importância,
suscitando questões de difícil acesso por via exclusiva da observação
sistemática ou de outra técnica de recolha de dados. Para além disso, visaram
essencialmente apurar e complementar as informações previamente obtidas,
permitindo uma averiguação sociológica ampla e melhor sustentada. As
entrevistas possibilitaram apurar as percepções e opiniões dos operadores face
às dinâmicas e práticas procedimentais das respectivas unidades orgânicas,
tocando tópicos como divisão de tarefas, actos praticados, dificuldades
enfrentadas ou métodos de trabalho adoptados, bem como o impacto
específico das recentes alterações3 na optimização das suas rotinas de
trabalho. Procuraram igualmente explorar os contornos específicos da gestão
processual no âmbito do case management, o que foi particularmente
aprofundado nas entrevistas junto dos magistrados judiciais. A natureza
complementar face à observação levou a que, todas elas, tivessem lugar no
espaço de trabalho dos operadores entrevistados, e durante o seu horário de
trabalho.
Foram ainda realizados dois painéis de discussão, envolvendo diferentes
operados judiciais, num total de 18, e colocando-os em confronto orientado
face às problemáticas levantadas no âmbito da investigação em curso. A
utilização deste método qualitativo permitiu esboçar uma cartografia dinâmica
3 Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro (Projecto «Desmaterialização, eliminação e simplificação de actos e processos na justiça»), e Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho (Regime Processual Civil Experimental), nos juízos cíveis do Porto.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
16
das suas leituras, opiniões e experiências, com incidência concreta no nosso
objecto de estudo. Diante dos aspectos mais controversos ou complexos que, a
este propósito, foram suscitados, foi possível apreender as várias posições e
fundamentações emergentes, quer dentro de um mesmo grupo (entre
magistrados judiciais, como sucedeu no segundo painel), quer entre categorias
profissionais diferenciadas (entre secretários de justiça, escrivães de direito,
formadores e inspectores, como ocorreu no primeiro painel).
O primeiro painel, contou com a participação de secretários de tribunais
cíveis e de tribunais administrativos e fiscais, de escrivães de direito de
tribunais cíveis, e de formadores e inspectores do Conselho dos Oficiais de
Justiça (COJ). O segundo reuniu juízes presidentes de tribunais administrativos
e fiscais, representantes do Conselho Superior da Magistratura (CSM) e do
Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), bem como
magistrados judiciais, com competências reconhecidas neste específico campo
temático.
Estes painéis decorreram no OPJ/CES, tendo sido integralmente
gravados e transcritos. As transcrições, depois de ligeiramente revistas, foram
enviadas a cada um dos intervenientes para eventuais correcções. Os excertos
que se incorporam no texto, bem como a sua integral publicação em anexo
incluem todas as correcções que os próprios entenderam fazer. Ao longo do
relatório, a identificação dos magistrados e dos funcionários judiciais faz-se
pela letra P e F, respectivamente, seguida de um número atribuído a cada um
dos intervenientes, em função da ordem da sua primeira intervenção no
respectivo painel.
Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da administração e gestão da justiça
17
2. Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da
administração e gestão da justiça
As transformações gestionárias nos sistemas de administração da
justiça estão intimamente relacionadas com as reformas da mesma natureza
levadas a cabo na administração pública em geral em direcção a um Estado
Managerial. São dois os modelos principais em confronto no que respeita à
gestão das organizações da Administração Púbica: o modelo burocrático e o
modelo gestionário.
2.1 Modelos de gestão da Administração Pública4
O modelo de Administração Burocrática
Segundo este modelo, típico do Estado Liberal, a administração é gerida
“com base num modelo hierárquico de burocracia, composta por funcionários,
admitidos com base em concursos, neutrais nas suas decisões e cujo objectivo
é o interesse geral. A esta administração compete apenas implementar as
políticas, cabendo aos políticos a decisão e formulação dessas mesmas
políticas” (Rocha, 2000:7). São apresentadas como vantagens deste
modelo em relação a outras formas de organização: a precisão, a
velocidade, a unidade, a subordinação estrita e a redução dos custos
materiais e humanos5. À sua aplicação prática são apontados factores
negativos como a despersonalização do relacionamento interpessoal e o uso
excessivo de formalismos, que acabaram por potenciar uma elevada
resistência à mudança.
A crise deste modelo surgiu, sobretudo, com o aumento das funções do
Estado resultantes do New Deal, agravando-se com a emergência do Welfare
State e com o consequente aumento das despesas com a saúde, educação,
segurança social e, em geral, com o aumento do número de funcionários
4 Seguimos de perto neste ponto Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2001), A Administração e Gestão da Justiça: Análise comparada das tendências de reforma. 5 Estas vantagens eram conseguidas devido, sobretudo, à hierarquização das relações interpessoais, ao carácter formal das comunicações, à divisão racional do trabalho, à estandardização dos procedimentos e à previsibilidade do comportamento dos funcionários.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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públicos. O modelo burocrático deixou de dar resposta às exigências de
celeridade e eficiência nos serviços, levando a que se introduzissem
algumas mudanças na Administração Pública. Criou-se a figura do gestor
público profissional, assumiu-se a percepção de que não há uma separação
entre a administração e a política, entendendo-se que “o sistema administrativo
não está isolado dentro do sistema político, não podendo ser gerido como uma
máquina. A administração participa efectivamente na discussão das políticas
públicas, podendo mesmo ter um papel determinante” (Rocha, 2000: 8-9)6.
O Modelo Gestionário
Nas últimas décadas do século XX começou a desenhar-se um
novo modelo de gestão pública, caracterizado, no essencial, por uma
gestão profissional, pela fragmentação das unidades administrativas, pela
competição, pela adopção de modelos típicos da gestão empresarial, pela
definição de padrões de desempenho, pela focalização nos resultados e
pelo uso dos meios de acordo com objectivos de eficiência7, 8.
A emergência das teorias do New Public Management, no início da
década de 90 do século passado, deu um novo fôlego à evolução deste outro
enquadramento do sistema de administração pública. Perfilhando a concepção
dos utentes da administração pública como consumidores ou clientes, estas
teorias preocuparam-se, essencialmente, com a introdução de mecanismos de
gestão e avaliação de qualidade. Crê-se que a qualidade dos serviços ou
6 Com o pós-guerra surgem novas ideias sobre a Administração Pública, entre as quais se destaca a teoria da escolha pública. Esta teoria defende que o interesse público é melhor servido pelo mercado. Neste contexto, a função mais importante do Governo é a de deixar os mercados funcionar naturalmente para maior ganho do público. Para isso, o Estado tem de ser forte, a Administração Pública minimalista e os burocratas têm de responder não aos cidadãos ou aos clientes, mas ao poder político. A legitimidade da burocracia passou, assim, a assentar na legitimidade política (Rocha, 2000). Este modelo tem dominado a estrutura organizativa pública em muitos países. Tem, contudo, vindo a enfraquecer com a emergência de um novo modelo de administração. 7 Este novo modelo tem como um dos pressupostos a ideia de que o sector público é muito dispendioso e não possui regras que estimulem a eficiência e a eficácia. Consequentemente, qualquer reforma do Estado e da Administração Pública deve passar pela privatização de certos sectores. E nas áreas ou sectores não privatizáveis, os modelos de gestão devem equiparar-se aos das empresas privadas, onde a ideia de concorrência desempenha um papel fundamental no desenvolvimento das instituições. Ganha corpo a ideia de que, à semelhança das organizações privadas que se considera funcionarem de forma mais eficiente por serem orientadas pelo lucro e pela oferta dos seus bens ou serviços estarem ligada à procura dos mesmos, o Estado também deveria organizar-se com base numa filosofia similar (Ng, 2007: 11).
Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da administração e gestão da justiça
19
produtos, na perspectiva de satisfação dos clientes, consumidores ou
cidadãos, aumenta a confiança do público na organização e, em
consequência, a sua legitimidade (Ng, 2007: 12).
A ausência do mercado como regulador de equilíbrio entre qualidade e
eficiência no sector público é colmatada pelo princípio de prestação de contas9.
A prestação de contas assume, na concepção adoptada pelo New Public
Management, sensivelmente a mesma função que a concorrência no
mercado. Ao tornar os resultados transparentes, as organizações do
sector público realçam a sua legitimidade como um complemento do
controlo político normal e da legitimidade democrática (Langbroek, 2005:
50).
Considera-se, no entanto, que não basta “introduzir na Administração
Pública mecanismos de mercado; é necessário convencer os cidadãos de que
são predominantemente consumidores de serviços públicos, pelo que esta
mudança supõe a alteração da cultura administrativa dos funcionários, os quais
não devem aparecer “vestidos de poder”, mas vendedores de serviços e
sujeitos a avaliação da qualidade dos mesmos” (Rocha, 2000: 13).
Mas se é certo que a gestão orientada para a qualidade no sector
público reconduz, tendencialmente, os seus utentes a consumidores ou
clientes, segundo Langbroek levanta problemas de difícil solução pelo New
Public Management ao não permitir facilmente, por um lado, a identificação de
alguns consumidores de determinados serviços (por exemplo, quem são os
consumidores dos serviços prisionais?), e, por outro, a conciliação dos
conceitos de consumidor e de cidadania (2005: 51).
Assim, para este autor, apesar da necessidade de uma reforma da
gestão pública, esta não pode ser redesenhada exclusivamente com base
nos modelos de gestão empresarial. São duas realidades distintas e os
cidadãos não podem ser reduzidos a meros consumidores. Na sua
perspectiva, enquanto que os consumidores ou clientes, de uma forma geral,
assumem uma posição passiva, o reconhecimento da qualidade de cidadãos
9 No sector privado, a gestão é duplamente orientada para a qualidade e para a eficiência das organizações. A gestão orientada para a qualidade tem como objectivo adaptar os produtos e serviços à vontade dos clientes, enquanto que a eficiência pressupõe a manutenção do custo de produção a um nível baixo. Assim, as organizações privadas geram o lucro buscando um equilíbrio permanente entre a qualidade e a eficiência.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
20
àqueles que recorrem a uma organização do sector público deverá implicar um
papel mais activo na sua relação com os serviços públicos. O aumento da
complexidade da sociedade impõe o envolvimento dos cidadãos na
administração pública, auxiliando a democracia representativa (2005: 52).
A nova Administração deve, assim, ser entendida como uma
organização onde participam diversos indivíduos e grupos, o que pressupõe,
necessariamente, a alteração de estruturas, processos e mentalidades de
modo a garantir a redução de custos, melhores serviços e melhores
desempenhos, isto é, um serviço de qualidade. Está em causa uma proposta
de uma nova concepção de gestão da Administração Pública em que o
Governo não poderá mais ser entendido como um actor racional que impõe
unilateralmente a sua vontade. Pressupõe a existência de vários actores –
locais, regionais e nacionais – como partidos políticos, grupos de interesse,
instituições e organizações privadas.
A concepção de novos objectivos da Administração Pública levou à
dinamização de um novo modelo de administração e gestão, o Modelo da
Qualidade Total, baseado nos fundamentos do modelo gestionário.
O modelo da Qualidade Total
Este modelo é tributário de uma filosofia de gestão (Total Quality
Management – TQM) que parte de um modelo europeu de excelência de
gestão pela qualidade consagrado pela Fundação Europeia para a
Qualidade da Gestão (European Foundation for Quality Management -
EFQM)10. Este modelo assenta no desenvolvimento e implementação de
determinados princípios ou vectores, nomeadamente princípios de
liderança, como factor fundamental na promoção da qualidade numa qualquer
organização; de gestão dos recursos humanos para o desenvolver e
sustentar o potencial humano de uma forma eficiente; de definição clara da
política e estratégia organizacional; do aumento da eficiência dos
10 Esta fórmula, aplicada a organizações do sector público e privado tem, para Albino Lopes e Catarina Lopes, “a virtualidade de conjugar um conjunto de critérios ou dimensões de gestão pela qualidade, fundamentais ao desenvolvimento organizacional, e consequente aumento da competitividade de qualquer serviço. A sua operacionalização define-se por um processo contínuo de inovação e aprendizagem, através do desenvolvimento de meios e processos com vista ao alcance de resultados, como garante da eficácia e eficiência de qualquer unidade produtiva, pública ou privada” (2000: 108).
Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da administração e gestão da justiça
21
procedimentos, de modo a melhor satisfazer as necessidades dos utentes; da
avaliação das percepções dos funcionários em relação à organização onde
estão inseridos; dos utentes quanto aos serviço prestado; da avaliação do
impacto do serviço prestado na sociedade; e da avaliação dos resultados
em confronto com os objectivos previstos.
Constituem princípios organizacionais fundamentais da nova
concepção de administração pública, os seguintes: a) liderança, b) motivação
dos funcionários, c) desenvolvimento de uma cultura organizacional, d)
comunicação e e) introdução de novas tecnologias.
a) Liderança
De acordo com a EFQM, a qualidade das organizações depende
muito da existência de uma liderança clara com uma estratégia bem
definida. Ao contrário da concepção do modelo burocrático, a liderança não é
necessariamente sinónimo de autoritarismo, nem de rigidez hierárquica. Ao
líder cabe não só dar instruções, como também definir o papel e missão da
organização; personificar o objectivo organizacional, decidindo os meios para
alcançar os fins; defender a integridade da organização; e resolver conflitos
internos (Hall, 1996: 140).
As novas concepções de liderança têm vindo a mostrar que o papel de
líder varia em função dos seguintes factores: a sua posição na organização, as
características da organização e dos indivíduos envolvidos e a natureza das
relações com os subordinados. Discutem-se, em geral, quatro estilos de
liderança: directivo, orientativo, participativo e delegativo11. A nova concepção
de administração pressupõe a adaptação do estilo de liderança ao
contexto e aos objectivos da organização. Considera-se que o ideal será
11 No modelo directivo, o líder fornece instruções específicas e controla passo a passo o cumprimento dessas instruções. É um estilo considerado adequado para situações em que as decisões têm de ser tomadas rapidamente e para quando as pessoas são inexperientes ou não conhecem a organização. O objectivo principal é a estruturação de tarefas. O estilo orientativo é aconselhado para pessoas que estão a começar a conhecer a organização e para pessoas que, apesar de estarem motivadas e de terem alguma experiência na organização, podem ficar bloqueadas por estarem desorientadas. O líder deve, não só dirigir, como apoiar e procurar mobilizar e motivar os funcionários. A liderança pode ser participativa, isto é, pode envolver os subordinados com alguma experiência na definição e execução das tarefas. No estilo delegativo, que pressupõe funcionários competentes e empenhadas, o líder supervisiona de uma forma geral o trabalho dos subordinados e dá-lhes alguma liberdade na realização das tarefas, delegando-lhes responsabilidades.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
22
passar, progressivamente, de um estilo directivo para um estilo delegativo, de
forma a fomentar a cooperação, a diminuição dos conflitos internos e a
produtividade (Hall, 1996: 145).
Como veremos, no actual sistema judicial, o papel do secretário do
tribunal, bem como do escrivão de direito, e o tipo de relação que cada
um destes intervenientes estabelece com os restantes funcionários é
considerado determinante para o eficaz desempenho funcional das
secções, bem como para a motivação, no sentido da qualidade e
eficiência dos serviços prestados, dos funcionários judiciais.
b) Motivação
A motivação dos funcionários pressupõe o conhecimento dos objectivos
da organização e a consciência da importância do seu papel no seu
desenvolvimento. O novo modelo reconhece a essencialidade da
motivação dos funcionários para a prossecução eficaz dos objectivos
previamente definidos. Só um funcionário motivado se pode comprometer
com um bom desempenho das suas funções resultando num aumento de
produtividade. Neste sentido, a filosofia de gestão consagrada pela EFQM
“pressupõe a auscultação sistemática da percepção (...) [dos funcionários] em
relação à organização onde exercem a sua actividade laboral, tendo em
atenção um conjunto de variáveis passíveis de influenciarem a sua satisfação”
(Lopes, 2000: 115) 12.
Se é certo que a organização tem vantagens em manter os seus
funcionários motivados, Estanque (1997) chama, no entanto, a atenção para o
carácter subjectivo das necessidades, assim como para a prioridade que lhes é
conferida, considerando que “a procura de prestígio não pode ser factor de
motivação se as recompensas materiais não chegarem para assegurar a
satisfação das necessidades primárias. Mas uma vez satisfeito esse limiar
12 Defende-se que as organizações devem ter em conta, para a adequada motivação dos seus funcionários, os seguintes aspectos: valorização do seu trabalho, reconhecimento do seu esforço e empenho, reconhecimento das necessidades de quebrar a rotina através da realização de novas tarefas, de segurança e de estabilidade no emprego, de convívio, criando laços de proximidade com a organização, de realização e prestígio profissionais, de sentirem que contribuem para o sucesso da organização e da necessidade de desenvolvimento e de progressão na carreira.
Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da administração e gestão da justiça
23
mínimo (bens materiais) os maiores factores de motivação são os elementos
simbólicos sociais e culturais”(1997: 4).
No trabalho de campo que realizámos no âmbito do presente projecto
de investigação, a questão da motivação emergiu como um factor
fundamental da eficiência e eficácia do desempenho funcional do sistema
judicial. Foi, por isso, importante tentar identificar factores de motivação ou
desmotivação de magistrados e funcionários judiciais.
c) Cultura organizacional
O desenvolvimento de uma cultura organizacional, forte e
homogénea, pode flexibilizar e ajudar a organização a adaptar-se mais
eficazmente às novas realidades sociais, difundindo-se a percepção da
organização como uma comunidade, com responsabilidades e objectivos
sociais. A organização, não só deve ser considerada como um elemento activo
da sociedade, como incorpora no seu funcionamento interno uma dinâmica
social importante para a integração dos funcionários e para a diminuição da
distância hierárquica.
No desenvolvimento desta cultura organizacional interna, assume
especial importância o papel do líder como agente coordenador e como
impulsionador da motivação dos funcionários.
d) Comunicação
A comunicação tem uma importância fundamental na eficiência das
organizações, como elemento imprescindível nos processos de tomada
de decisões, do exercício do poder e da liderança. De acordo com Richard
Hall (1996), o processo de comunicação nas organizações é bastante
complexo porque, não só pressupõe as capacidades e características próprias
dos indivíduos, mas também as específicas formas de organização como, por
exemplo, a hierarquização ou a especialização. Há, ainda, que considerar que
a comunicação tanto se faz em sentido vertical, envolvendo fluxos de
informação em ambos os sentidos (descendente e ascendente) como em
sentido horizontal13. A dinamização de diferentes formas de comunicação é
13 Os fluxos de comunicação descendentes englobam instruções de trabalho, explicação das tarefas, informação acerca de procedimentos e práticas organizacionais e feedback em relação
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
24
considerada de vital importância para a nova concepção gestionária das
organizações da administração pública. Uma eficaz e completa cadeia
comunicacional permite ao líder determinar as necessidades dos funcionários,
a sua satisfação e o desenvolvimento de uma cultura organizacional sólida.
e) As novas tecnologias
As novas tecnologias de comunicação e informação representam
um enorme potencial para as organizações, quer no que respeita à gestão
dos recursos humanos, quer da informação e da comunicação interna e
externa. As novas tecnologias desempenham um papel crucial na
prossecução dos objectivos de qualidade e eficácia das organizações. As
organizações correm o risco de se tornarem desadequadas face à realidade
social se não investirem em tecnologia e informatização eficazes. Mas, a sua
implementação tem de ser acompanhada de um eficaz processo de formação
dos funcionários, tanto mais exigente quanto mais desenvolvida for a
tecnologia utilizada na organização.
Para a implementação eficaz de um sistema de informação e
comunicação, assente nas novas tecnologias, é necessário assegurar um
conjunto de condições prévias, como a adequação do sistema às
necessidades e objectivos da organização, a sua compatibilização com
outros sistemas informáticos (por exemplo, entre tribunais e prisões ou
serviços do Ministério Público e polícias), a prévia auditoria aos
procedimentos existentes e a possibilidade de adaptação do sistema de
informação, rapidamente e a baixos custos, a novas circunstâncias e a
novos objectivos organizacionais. Considera-se que a formação e a
compatibilidade são cruciais para a sua eficácia. As pessoas só utilizam,
adequada e satisfatoriamente, as novas tecnologias se as considerarem
eficientes e um auxiliar indispensável na realização do seu trabalho.
Chama-se, ainda, a atenção para dois aspectos. O primeiro é de que a
eficiência dos sistemas de informatização depende muito da sua
ao desempenho funcional dos funcionários (Hall, 1996: 175-176). Os fluxos de comunicação ascendentes incluem informação sobre o desempenho dos funcionários, sobre problemas, a opinião sobre a organização em si e as suas práticas e propostas de novas tarefas ou métodos. A comunicação horizontal, indispensável para um bom funcionamento da organização, pode existir entre funcionários ou entre diferentes subunidades organizacionais.
Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da administração e gestão da justiça
25
coordenação ao nível macro. Não basta que a informação circule, rápida e
eficazmente, no interior de cada organização, sendo igualmente necessário
que estes fluxos circulem no interior de toda a esfera pública. O segundo é que
há que ter em atenção que a eficiência não se obtém apenas com a
introdução de novas tecnologias, mas também com um aproveitamento
racional das já existentes sob pena de os novos recursos rapidamente se
tornarem obsoletos e subaproveitados.
Como resulta da análise do trabalho empírico realizado no âmbito deste
projecto de investigação, esta é, no momento actual, uma das questões de
significativa relevância para o sistema judicial português.
2.2 Modelos de gestão e administração dos tribunais
Quando analisamos a experiência comparada podemos encontrar um
conjunto muito diferenciado de soluções em que as diferentes componentes
relacionadas com a gestão e administração dos tribunais, incluindo
mecanismos de gestão processual, podem ter soluções distintas, embora se
verifique uma tendência para uma maior atenção às políticas gestionárias,
que incorporam uma maior descentralização da acção administrativa e da
gestão dos recursos de cada tribunal.
Os sete modelos de administração dos tribunais que apresentamos
infra14 têm como principal característica diferenciadora a posição de cada um
dos poderes do Estado relativamente à administração do tribunal e as
diferentes formas de configuração da relação do poder executivo e do poder
judicial em relação a esta matéria. Reconhecendo-se, contudo, que existem
muitas outras relações que desempenham um papel central na administração
da justiça, mas que estão fora desta configuração, geridas por outros
mecanismos, como sejam as relações entre os advogados e outras entidades
colaborantes da administração da justiça.
Podemos, assim, identificar várias possibilidades sobre qual o tipo de
modelo mais apropriado à administração da justiça, parecendo encontrar-
se uma tendência de insatisfação com um modelo de administração do
14 Estes modelos são amplamente desenvolvidos no estudo Alternative Models of Court Administration do Canadian Judicial Council, datado de Setembro de 2006.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
26
judiciário muito dependente ou centrado do poder executivo e uma
tendência de defesa de um modelo mais centrado na autonomia do
judiciário.
Encontramos, ainda, diferentes posições consoante os diferentes tipos
de funções da administração judiciária em causa. Por exemplo, há autores que
consideram que determinado modelo é mais apropriado para administrar os
recursos humanos e outro para a gestão e administração das tecnologias de
informação ou um para determinados tribunais (por exemplo, um modelo de
maior autonomia do judiciário para os tribunais superiores, mas não para os
tribunais de 1ª instância).
O Modelo executivo
• O poder executivo tem um papel central na administração do judiciário
(quer a nível central, quer a nível de cada tribunal).
• Parte da ideia de que a independência dos tribunais é limitada à função
jurisdicional e não diz respeito às funções da administração quotidiana do
sistema de justiça15.
• A administração dos tribunais é controlada pelo poder executivo, que, por
sua vez, responde perante o poder legislativo;
• As decisões quanto às políticas relacionadas com a administração e gestão
dos tribunais estão centradas num departamento do poder executivo,
normalmente dirigido pelo Ministério da Justiça;
• É diminuta a participação do poder judiciário na administração dos
tribunais, sendo que, quando existe, é meramente consultiva e não
vinculativa16;
• Não existem objectivos definidos para o desempenho da administração
dos tribunais.
15 Considera-se, por um lado, que os juízes são nomeados para o exercício de funções jurisdicionais e não para o exercício da gestão administrativa para a qual não têm formação específica; por outro, que o poder judiciário não tem qualquer controlo sobre a acção do executivo, designadamente, no que toca à distribuição dos recursos públicos pelas várias funções e sectores do Estado. E, por isso, só o poder executivo é que está em melhores condições para fazer essa ponderação 16 A participação do judiciário na administração dos tribunais, no modelo executivo puro, circunscreve-se a situações em que haja uma concessão do poder executivo, sujeita a decisões casuísticas e a vicissitudes conjunturais, que reflectem os climas de “tensão” ou de “amenização” entre o judiciário e o político.
Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da administração e gestão da justiça
27
São, assim, apontadas como principais limitações deste modelo as
seguintes:
• Ausência de participação do judiciário na determinação e afectação
orçamental, o que cria dificuldades na definição de estratégias a médio-
longo prazo – possibilidade de ameaça à independência do judiciário, na
medida em que não permite que o poder judicial decida, de forma
independente do poder executivo, a organização de actividades
consideradas importantes em termos de impacto nos serviços
judiciários17.
• Ausência de mecanismos de accountability, embora este vector
tenha uma dupla leitura. Para alguns, o modelo executivo é visto como
limitador da introdução de mecanismos de prestação de contas no
judiciário; enquanto que outros o consideram essencial para garantir
uma adequada prestação de contas da administração dos tribunais, quer
seja vista como factor de transparência, como medida de legitimidade
democrática ou, ainda, como auditorias de valor acrescentado sobre as
despesas públicas. A independência judicial, nesta perspectiva, é vista
como um impedimento à implementação de mecanismos de
accountability18;
• A fraca possibilidade deste modelo em aumentar a eficácia e
eficiência da administração dos tribunais considerando outros
domínios, designadamente o aumento da diversidade de estruturas
judiciais e/ou para-judiciais (como, por exemplo, os julgados de paz),
bem como a necessidade de introdução de mecanismos de gestão
processual;
17 Os tribunais não têm competências que lhes permitam definir prioridades no que respeita à distribuição dos recursos existentes. Aliada à falta de participação na definição do orçamento dos tribunais, existe, em muitos países, a percepção de que o cabimento orçamental para a administração dos tribunais é insuficiente e que, em consequência, seja forçoso “fazer muito com pouco”. 18 Esta perspectiva é, no entanto, ultrapassada quando se considera a possibilidade de os próprios tribunais poderem responder perante o poder legislativo e de poderem estar sujeitos às mesmas regras contabilísticas aplicáveis ao sector público.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
28
• Não se ajusta a todo o tipo de tribunais, existindo relações diferenciadas
entre o poder executivo e o legislativo consoante, por exemplo, o
tamanho dos tribunais em causa.
• Ao nível dos tribunais, este modelo tende a acentuar a tensão entre o
administrador dos tribunais nomeado pelo executivo e os membros
do poder judicial, podendo originar situações de incompatibilidade.
O Modelo de Comissão Independente
• Modelo assente num órgão ou comissão independente
especialmente criada para a administração do judiciário, com
determinada estrutura e composição de que fazem parte membros do
judiciário. A principal inovação deste modelo, relativamente ao modelo
executivo, prende-se com a independência funcional da Comissão
face ao poder executivo e ao poder judicial.
• Modelo que comporta várias modalidades. A competência deste
órgão pode ser circunscrita a determinados aspectos da administração
do judiciário, ficando outros reservados, quer ao poder executivo, quer
ao poder judicial19.
• A prestação de contas é feita perante o poder legislativo, seja a
exercida directamente pela Comissão, seja exercida pelo Ministro
competente. Contudo, a prestação de contas é entendida tendo em vista
a satisfação de necessidades de transparência e abertura, numa
perspectiva moderna de prestação de contas ao público e não a
dirigentes políticos.
• Para alguns autores, a definição da composição, competências e a
nomeação dos membros da Comissão pode constituir factor de
19 A Comissão pode funcionar apenas como instância de resolução de conflitos entre o poder executivo e o poder judicial em áreas específicas relacionadas com a administração dos tribunais. Assim, em caso de divergência naquelas áreas previamente definidas, tanto o poder executivo como o poder judicial transformam-se em instâncias com funções meramente consultivas, sendo o poder decisório atribuído à Comissão. À Comissão pode, ainda, ser atribuído apenas o controlo operacional e de definição de políticas relacionadas com um número limitado de actividades da administração dos tribunais. Neste caso, o poder executivo e o poder judicial definem, a priori, o conjunto de objectivos a ser alcançado. A Comissão, por seu turno, assume a obrigação de executar aquelas directrizes. Por último, à Comissão pode ser atribuído o controlo e a definição de políticas de todas as actividades relacionadas com a administração dos tribunais. Nestas circunstâncias, a Comissão assume a qualidade de unidade de administração do tribunal efectivamente autónoma.
Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da administração e gestão da justiça
29
tensão entre o judiciário e o executivo. Há, ainda, quem defenda que
a composição deste tipo de comissões deveria integrar membros de
outras instituições da sociedade de modo a incorporar os interesses de
um público mais alargado.
O Modelo de Parceria
• A administração dos tribunais é exercida conjuntamente pelo poder
executivo e pelo poder judicial através de uma parceria, criando um
conselho em que o executivo continua a desempenhar um papel
importante, mas que, em simultâneo, prevê também um potencial
aumento do papel do judiciário.
• O conselho nomeia os órgãos de administração e gestão dos tribunais,
bem como define e impõe a implementação de determinadas políticas
de administração dos tribunais. O órgão de gestão a nível de cada
tribunal é um órgão autónomo do executivo e do judiciário que
executará as políticas de acordo com as instruções da parceria. As
suas competências tendem a estenderem-se a todas as áreas da
administração dos tribunais: gestão financeira, recursos humanos,
sistemas de informação e comunicação.
• A possibilidade de existirem interesses conflituantes pressupõe que
haja um efectivo consenso nos objectivos e expectativas da
parceria, o que exige, por seu lado, uma clara definição dos objectivos e
dos fins a prosseguir com a política de administração dos tribunais.
• Comporta várias tipologias, dependendo do grau de participação
do poder judicial e da composição do conselho. A parceria pode ser
limitada quando a maioria do conselho é composta por membros
nomeados pelo governo; igualitária, quando a composição do conselho
comporta um igual número de membros nomeados pelo governo e pelo
poder judicial; ou controladora, quando o poder judicial tem a maioria
dos votos do conselho.
• É apontado, a este modelo, um dilema conceptual: o modelo de
parceria pressupõe que parceiros independentes se juntem para
prosseguirem um objectivo comum. Mas, se o poder judicial é,
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
30
inquestionavelmente, um poder independente para o exercício da função
jurisdicional a mesma consagração não é considerada no que se refere
ao exercício de funções administrativas. Considera-se que uma
verdadeira parceria requer, não só o reconhecimento por parte de
ambos os parceiros da sua independência recíproca, mas, ainda, de
distintas e independentes perspectivas.
O Modelo Executivo Mitigado
• A responsabilidade pelo planeamento e pela execução operacional
da administração dos tribunais compete ao poder executivo.
• Ao poder judicial é conferida competência para intervir no
planeamento e administração ao nível dos tribunais em actividades
desenvolvidas e desenhadas pelo poder executivo, quando as mesmas
afectem de uma forma grave a capacidade de o sistema judicial
alcançar níveis adequados de eficiência ou sempre que se
considere necessário e apropriado para o exercício da função
judicial e para a prossecução dos objectivos do sistema de justiça.
O poder judicial pode, assim, emitir ordens directas ao Administrador do
Tribunal, impondo-lhe a realização de certas tarefas ou actividades ou a
cessação de outras por forma a garantir a realização dos objectivos do
tribunal.
• O cumprimento pelo administrador do tribunal das ordens emitidas
pelo poder judicial é obrigatório, apenas podendo ser discutido
posteriormente, e não são definidas aprioristicamente o conjunto de
circunstâncias em que o poder judicial poderá intervir20.
20 Apenas é definido que a intervenção será realizada quando seja necessária e adequada pelo poder judicial. Esta “indefinição” exige um consenso entre o poder executivo e o poder judicial sobre quais os objectivos adequados a alcançar com vista a níveis aceitáveis de desempenho dos tribunais relativamente às infra-estruturas e serviços destes. Mostra-se, igualmente, essencial a existência de um modelo adequado de informação sobre o desempenho do tribunal que permita ao poder judicial aferir adequadamente da necessidade de intervenção em cada caso.
Qualidade, eficiência e transparência: novos rumos da administração e gestão da justiça
31
O Modelo de Autonomia Limitada
• A competência para a administração dos tribunais (incluindo a
gestão financeira e de todos os recursos humanos) é da competência
do poder judicial.
• A gestão quotidiana dos tribunais pode ser levada a cabo por um gestor,
mas nomeado pelo juiz presidente de quem depende funcionalmente.
• A limitação imposta ao poder judicial é operada por duas vias: por
um lado, o orçamento global dos tribunais é definido e aprovado
pelo poder legislativo, deixando para os tribunais apenas o poder de,
dentro desta baliza definida pelo poder legislativo, alocar as receitas; por
outro, pode existir um conjunto de matérias que se mantenham
exclusivamente na esfera do poder político, dada a sua natureza,
como, por exemplo, a decisão de construir ou de fechar um tribunal.
• É o próprio judiciário que define as metas e os objectivos a atingir
no que respeita à administração e gestão dos tribunais, devendo
prestar contas da sua actividade, quer ao poder legislativo, quer ao
público em geral, mecanismos considerados como garantes de uma
efectiva transparência na gestão e administração dos tribunais.
• Pode potenciar a politização do judiciário. Para alguns autores, este
é um modelo que acabará, de certa forma, por enfraquecer a
independência do judiciário, uma vez que a responsabilidade pela
administração dos tribunais envolve questões com forte potencial
político.
O Modelo de Autonomia Limitada e de Comissão
• Combina vertentes do modelo de autonomia limitada e do modelo
de comissão independente, na modalidade de instância de resolução
de conflitos entre o poder executivo e o poder judicial em áreas
específicas relacionadas com a administração dos tribunais.
• Mantém a competência para a gestão e administração dos tribunais
no judiciário, mas confere a uma comissão independente, do
legislativo e do executivo, a competência para a intervenção num
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
32
conjunto muito limitado de assuntos, em especial em matéria de
orçamento.
• A atribuição da resolução dos conflitos relacionados com o orçamento
dos tribunais a uma entidade autónoma permite despolitizar a relação
entre o poder judicial e o poder executivo relativamente a questões
altamente politizadas e evitar o condicionamento da administração do
judiciário através de constrangimentos orçamentais.
O Modelo Judicial
• No pólo oposto ao modelo executivo, o modelo judicial reserva ao
poder judicial todas as competências relacionadas com a
administração e gestão do judiciário, definindo objectivos, regras e
procedimentos, incluindo competências para contratar e exercer a acção
disciplinar sobre todos os recursos humanos e para fixar o seu próprio
orçamento.
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
33
3. Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das
questões da administração e gestão dos tribunais
3.1 Qualidade, eficiência e transparência
As organizações do sistema judiciário, à semelhança das
organizações da administração pública em geral, confrontam-se com a
necessidade de implementar medidas que visem o aumento da sua
qualidade, eficiência, transparência, bem como de prestação de contas.
Parafraseando Langbroek, as nossas sociedades não podem funcionar sem
democracia, transparência, legitimidade, qualidade de serviços e mecanismos
fiáveis que possam avaliar os resultados e “Judicial organisations are no
exceptions to that” (2005: 49).
Assim, também no que respeita aos tribunais, enquanto organizações,
temos vindo a assistir à substituição do modelo burocrático-
administrativo por um modelo com características do modelo gestionário
com preocupações na definição de padrões de qualidade, distantes da
concepção do modelo burocrático21. As medidas, especialmente dirigidas à
eficiência e à qualidade do judiciário, começam a ser discutidas no contexto
europeu apenas no final dos anos 90 do século passado22.
Se é certo que alguns dos objectivos fixados pelos padrões de qualidade
para o sector da justiça estão definidos constitucionalmente (independência e
imparcialidade dos juízes, processo justo, carácter público dos julgamentos),
outros estão relacionados com a posição da organização judiciária numa
sociedade democrática, como, por exemplo, a criação e dinamização de
medidas de prestação de contas, de transparência e do aprofundamento do
princípio de uma justiça como serviço público virado para a cidadania.
Uma das principais questões, hoje em debate em vários países, é
precisamente a questão de como desenvolver e consolidar uma
21 Neste modelo, a qualidade era, por um lado, assegurada através da formação intensa dos seus profissionais que os dotaria das capacidades e dos conhecimentos necessários e, por outro, controlada através dos sistemas de recurso, dos julgamentos por tribunais colectivos e da publicidade das audiências (Ng, 2007). 22 Sobre a questão da qualidade no judiciário, cf. Rivero-Cabouat, Noëlle. 2005. L’Administration de la Justice en Europe et L´Évaluation de sa qualité. Mission de Recherche Droit et Justice. Paris: Editions Montchrestien.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
34
administração da justiça orientada para a eficiência e qualidade. Como
conseguir que determinados padrões e níveis de qualidade possam ser
desenvolvidos, implementados e garantidos pelas organizações e pelos
seus membros a partir de valores comuns? Para alguns autores, o
funcionamento adequado de uma gestão orientada para a qualidade,
principalmente em organizações com as características dos tribunais, depende
muito da forma como se alcança um acordo para a definição de padrões e
níveis de qualidade (Langbroek, 2005: 52).
Fabri (2005), na sequência de um projecto de investigação, que
envolveu diferentes países europeus (Áustria, Bélgica, Bulgária, Dinamarca,
Espanha, Finlândia, França, Holanda, Itália, Portugal, Roménia e Turquia), bem
como o Quebec, e que teve como objectivo inventariar e comparar critérios de
um judiciário de qualidade, sintetiza em quatro grupos as medidas dos
diferentes países para melhorar a qualidade da justiça: políticas de
governança, direccionadas para a mudança das instituições que
governam o judiciário; políticas estruturais, relacionadas com alterações
do número ou das funções das estruturas do sistema judicial; políticas
processuais, que visam alterar as regras tradicionais de responder a
problemas do judiciário; e políticas de gestão, cujo objectivo é o de
melhorarem o funcionamento dos serviços de justiça, tendo em vista,
designadamente, a gestão mais eficaz do volume processual, a avaliação de
desempenho e o investimento em tecnologias de informação e comunicação
(2005: 70-77).
No que respeita a estas últimas, Fabri destaca a experiência dos países
escandinavos de maior incentivo em medidas de gestão e as reformas
introduzidas na Holanda que prevêem a responsabilidade do presidente do
tribunal, dos juízes presidentes das várias secções e do administrador pelo
desempenho do tribunal, submetendo-os, enquanto órgão colectivo, à
supervisão do Conselho Judicial (2005: 77-79).
Para Langbroek são os seguintes os valores ou princípios, mais
comummente aceites nas organizações judiciais europeias, que podem
compor um modelo de qualidade da justiça: independência e
imparcialidade judicial, prestação de contas, eficiência, processo justo,
publicidade das audiências de julgamento, duração adequada dos
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
35
processos, certeza e segurança jurídica, acesso à justiça e eficácia de
desempenho. Tais vectores ou princípios podem relacionar-se com aspectos
muito diferenciados das organizações judiciárias, como seja o seu desenho
institucional e funcionamento organizacional, a transparência do sistema de
justiça, a tensão entre os domínios de acção politica e judiciária ou o
conhecimento e preparação técnica dos magistrados e funcionários (2005: 54).
Um dos principais vectores de um modelo de justiça orientado para a
qualidade prende-se, assim, com o seu desenho institucional e com a
relação com os vários poderes do Estado, principalmente com o poder
executivo.
De acordo com o relatório final do Canadian Judicial Council,
denominado “Alternative Models of Court Administration” (2006: 70), um
modelo de administração dos tribunais deverá procurar afirmar os
tribunais como instituições fundamentais ao serviço do Estado de direito
democrático, procurando alcançar os seguintes objectivos:
• Preservação da independência judicial e da integridade institucional
do judiciário como um poder separado do Estado;
• Aumento da confiança pública no sistema de justiça;
• Melhoria da qualidade dos serviços de justiça (mais e melhor acesso
aos tribunais; maior celeridade; melhoria da qualidade da justiça na
resolução dos litígios em concreto; maior transparência); e
• Desenvolvimento dentro do tribunal de uma maior capacidade e de uma
nova cultura na implementação das reformas através de a) uma direcção
e liderança claras; b) de mecanismos eficazes e transparentes de prestação
de contas e parcerias fortes; c) estratégias, ferramentas e práticas eficazes
e eficientes; d) pessoal bem treinado e meios adequados; e e) sistemas
eficientes de suporte às reformas, permitindo-lhes adaptarem-se a
transformações sociais, tecnológicas, económicas e políticas (2006: 71-72).
As componentes deste quarto objectivo encontram uma íntima relação
com as características que apontámos ao modelo gestionário. Destaca-se a
necessidade de uma liderança clara e forte como condição essencial para
desenvolver no seio dos grupos profissionais o compromisso de trabalhar,
numa perspectiva de conjunto, para objectivos comuns. Esta liderança
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
36
deveria, a título de exemplo, definir o conjunto de objectivos que o
tribunal deveria alcançar no que respeita ao acesso à justiça, à duração
dos processos, definir outros mecanismos de gestão processual, bem
como gerir aspectos de organização e funcionamento do tribunal
considerando, quer os funcionários e magistrados, quer o público em
geral.
A liderança deveria também avaliar, de uma forma sistemática, as
mutações verificadas, quer ao nível do volume processual, quer ao nível da
natureza dos processos, desenvolver mecanismos para lidar com essas
situações e assegurar o desenvolvimento de acções necessárias para garantir
um ambiente de aprendizagem contínua e de criação de uma cultura virada
para a evolução da eficiência e qualidade.
Uma administração dos tribunais eficaz pressupõe, ainda, que a
responsabilidade pelas diferentes tarefas seja atribuída, de forma clara, a
profissionais adequados, que se desenvolvam parcerias com organizações
externas, como, por exemplo, as polícias, serviços de mediação e de
segurança social, etc. e que se definam estratégias e procedimentos eficazes,
que devem incluir a adopção de mecanismos de gestão processual, a
contratação de profissionais especializados em matéria de gestão e a
adequação a esses objectivos das infra-estruturas e meios técnicos do tribunal.
É, assim, fundamental que o trabalho das unidades orgânicas dos tribunais
seja apoiado por sistemas de gestão e administração eficientes, que permitam
melhor avaliar o volume e a natureza processual, o desempenho funcional ou o
desenvolvimento da comunicação interna e externa (2006: 76-77).
3.2 Prestação de contas
Como já referimos, nas sociedades democráticas, as organizações
judiciais devem, tal como outras organizações do Estado, sujeitarem-se a
mecanismos de avaliação externa e de prestação de contas. A construção
desses mecanismos é uma questão em debate em muitos países.
O debate em torno deste tema tem, em regra, duas questões
latentes: a questão da independência judicial e o grau de
participação/autonomia do poder judicial no processo de gestão dos
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
37
tribunais. O princípio da independência judicial é visto, quer como um entrave
à implementação de mecanismos de prestação de contas no judiciário, quer
como alavanca essencial para a sua implementação.
Malleson distingue duas formas de prestação de contas: a prestação de
contas política (hard political accountability) e a prestação de contas limitada
(soft accountability). A primeira, que inclui medidas como a demissão, a
responsabilidade civil ou criminal pelos danos causados por uma decisão, não
é, tradicionalmente, aplicável ao poder judicial em face do princípio da
independência judicial.
O segundo tipo de prestação de contas exige transparência
procedimental, sensibilidade face aos diferentes interesses em jogo e uma
mudança no ambiente social, implicando uma maior transparência perante a
comunidade e uma atitude que reflicta com maior acuidade os valores e
necessidades daquela comunidade (prestação de contas social). Este conceito
de prestação de contas vem preencher o deficit pela dificuldade de prestação
de contas política (Ng, 2007: 17-18).
Para Langbroek, a independência judicial e a imparcialidade
pressupõem, precisamente, a ausência de prestação de contas política.
Diferente é a prestação de contas não política, considerada, aliás, como meio
de legitimação dos tribunais e magistrados.
A discussão sobre esta questão incorpora as seguintes duas
dimensões. A primeira é que o aumento do volume da litigação; as
consequências da globalização na litigação; a tendência para a privatização
dos serviços públicos; o aumento do crime organizado internacional; o aumento
da imigração; o desenvolvimento da biotecnologia e de novas técnicas
médicas; e as repercussões da difusão das novas tecnologias na vida
societária são factores, entre outros, que alteraram, quer o contexto social
da acção dos tribunais, quer o perfil do desempenho funcional dos
magistrados judiciais que, cada vez mais, são confrontados com novos
desafios no exercício da sua acção jurisdicional e são chamados a participarem
na organização das funções do tribunal.
Esta intervenção dos magistrados judiciais implica, não só a assunção
das funções jurisdicionais nos processos que lhes são apresentados, mas
também de responsabilidades no que toca às condições organizacionais
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
38
para o exercício de tais funções, que podem passar pelo exercício de
funções de liderança, gestão de recursos humanos, selecção e formação de
magistrados, informação dirigida aos meios de comunicação social e ao
público, relações com o Ministério da Justiça e/ou os conselhos do judiciário,
relações com advogados e serviços do Ministério Público, gestão orçamental,
etc. (Langbroek, 2005: 64).
A segunda dimensão está relacionada com o aprofundamento do
movimento de criação dos conselhos judiciais em muitos países, no âmbito
das políticas de governança, com o propósito de reforçar a sua
independência face ao poder executivo e de melhorar a gestão do
funcionamento do sistema judicial, que pode passar pela implementação de
medidas como a diminuição dos poderes do executivo na selecção dos juízes
(exemplo da Bélgica e da Dinamarca) ou aumento dos poderes do judiciário na
definição dos orçamentos (exemplo da Holanda e da Dinamarca). Para o autor,
a criação ou reforço dos conselhos deveria ter igual contrapartida no
aumento da prestação de contas do judiciário, com referência a critérios
qualitativos e quantitativos (2005: 71-72).
De facto, é interessante observar que na Europa assiste-se a uma
progressiva passagem de competências do Ministério da Justiça para
conselhos judiciais independentes. Fabri refere, precisamente, que um dos
tópicos mais interessantes de analisar nos próximos tempos será o da forma
como os vários países democráticos conseguirão o equilíbrio necessário entre
a responsabilidade política do Ministro da Justiça perante o Parlamento e o
crescente aumento da autonomia funcional dos tribunais, através de conselhos
judiciais, que não são politicamente responsáveis, ainda que sejam eles a fazer
a gestão de importantes recursos públicos (2005: 74).
Acresce que não podemos perder de vista que a concretização do
princípio da independência judicial tem vindo a sofrer uma evolução
conceptual. Esse processo é essencial para perceber o contexto normativo
dinâmico no âmbito do qual os modelos de administração dos tribunais deverão
ser analisados.
Por exemplo, para o Supremo Tribunal do Canadá uma das dimensões
da independência judicial, passa, além da inamovibilidade e da estabilidade
financeira que deverão ser garantidas aos juízes, pela independência
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
39
administrativa ou institucional, o que implica um controlo judicial sobre as
questões administrativas que podem ter repercussões directas e imediatas no
exercício das funções judiciais (Valente v. The Queen, 1985). Esta dimensão
institucional da independência judicial foi reafirmada no caso Beaurgard v.
Canadá, em 1986, reiterando, aquele Supremo Tribunal, a necessidade de
coexistir a garantia de condições de independência judicial individual, que
permita a cada juiz decidir livremente cada processo, com condições de
independência do próprio tribunal relativamente aos restantes poderes do
Estado, naquilo que é essencial para o desempenho das suas funções
jurisdicionais23. Justamente por se considerar que a independência do juiz,
individualmente considerado, caracterizada pela liberdade de decidir os
processos de acordo com a lei e a sua livre convicção, pode ser comprimida
pela vontade do poder executivo no que respeita à determinação do seu
orçamento e administração do dia-a-dia (Canadian Judicial Council, 2006: 49).
Apesar de as convenções internacionais não explicitarem de forma
exaustiva as várias componentes da independência judicial, vários
instrumentos de soft law reconhecem a importância da autonomia
administrativa como um dos pressupostos da independência judicial. Em suma,
tais instrumentos identificam as seguintes condições (Canadian Judicial
Council, 2006):
• Financiamento
a) Deve ser suficiente para permitir ao judiciário o desempenho das
suas funções (Syracuse 24, European Charter 1.6, UN Principles
7);
b) É uma prioridade essencial que o Estado forneça meios
apropriados que permitam uma adequada gestão da justiça
(Tokyo 13, Montreal II ix 2.41);
c) O montante atribuído deve ser suficiente para que cada tribunal
possa funcionar sem um volume de trabalho excessivo (Syracuse
25, Beijing 37) 23 Neste quadro, o Supremo Tribunal, no que respeita à dimensão de independência administrativa ou institucional dos tribunais, alerta para a necessidade de as relações entre o judiciário, por um lado, e o poder executivo e legislativo, por outro, deverem ser despolitizadas, o que implica a ausência de pressão política sobre o judiciário, e de participação política dos magistrados. A via da despolitização exige que a formalização das relações entre o judiciário e os outros dois poderes do Estado passe, em boa medida, por comissões independentes.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
40
d) O poder judicial deve ter a oportunidade de ser ouvido ou de
participar na determinação do orçamento (Syracuse 25, European
Charter 1.8)
e) O Estado deve garantir um orçamento independente para o
judiciário (Beirut 2, Cairo 1)
• Orçamento
O orçamento dos tribunais deve ser preparado pelo, em colaboração
com ou após o parecer do judiciário (Beijing 37, Montreal II ix 2.42,
European Charter 1.8, Beirut 2, Cairo 1).
• Administração
a) O principal responsável pela administração dos tribunais deve ser
o judiciário (Montreal II ix 2.40) ou um organismo conjunto (New
Dehli 9, Beijing 36);
b) Administração inclui a nomeação, supervisão e controlo
disciplinar do pessoal administrativo e de apoio (Beijing 36) e o
controlo sobre o orçamento concedido ao judiciário (Latimer
House II 2)
3.3 O funcionamento interno e a divisão do trabalho no tribunal
A adopção de uma perspectiva gestionária na administração e gestão
dos tribunais impõe a consideração de questões relacionadas com a
organização interna do tribunal. Esta temática, de discussão antiga nos países
de common law, começa a ser alvo de reflexão também nos países de tradição
jurídica continental, não obstante o carácter mais limitado das reformas
possíveis tendo em atenção o mais reduzido grau de autonomia dos tribunais
em relação ao poder central, bem como a codificação dos trâmites
procedimentais, que, em larga medida, regulam as actividades desenvolvidas
no tribunal. Todavia, como refere Fix-Fierro (2003: 223), a gestão do tribunal
pode ser uma ferramenta importante para resolver problemas similares que se
encontram em diferentes tribunais de países de diferentes tradições jurídicas.
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
41
Assim, revela-se necessária a adopção de objectivos comuns claros
a prosseguir pelos tribunais, que, por um lado, constitui um pressuposto para a
avaliação do seu desempenho funcional e, por outro, cria um ambiente de
envolvimento de todos os intervenientes em algo que é, pelos próprios, visto
como comum.
Outro instrumento que possibilita uma gestão mais eficiente da
actividade dos tribunais é a adequada divisão do trabalho dentro do
tribunal. Esta divisão de trabalho permite, na perspectiva de Fix-Fierro,
garantir, por um lado, um nível mais elevado de eficiência, e, por outro, criar
condições de trabalho mais favoráveis, tais como a redução de custos de
coordenação; a introdução de incentivos de motivação para os funcionários
judiciais; ou o aumento da capacidade de reacção a situações de “crise” (2003:
226).
Para Santos Pastor (2003: 10-12), no que respeita à política de recursos
humanos, importa assegurar uma maior flexibilidade dos conteúdos
funcionais dos funcionários; uma evolução na carreira profissional que se
fundamente na produtividade; a previsão de incentivos vinculados ao
desempenho; um adequado planeamento que impeça a permanente
rotatividade nos postos de trabalho; formação; e uma adequada divisão
de trabalho, que permita atribuir tarefas mais qualificadas a pessoal mais
qualificado, libertando-os de outras funções que não exijam um grau tão
elevado de conhecimentos.
Um dos obstáculos mais sentidos nos tribunais de países de tradição
continental à adopção deste tipo de ferramentas prende-se com a separação
rígida existente entre os vários corpos profissionais. Gar Yein Ng (2007: 385-
386) conclui que para a implementação de mecanismos de qualidade total
nos tribunais é necessário reformular numa única a organização dos
tribunais baseada em duas ou três organizações de juízes, funcionários e
magistrados do Ministério Público.
3.3.1 O novo modelo de oficina judicial em Espanha
Pela sua pertinência e importância para o tema em análise considerámos
útil conhecer, ainda que de forma breve, alguns dos objectivos e principais
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
42
pontos da reforma tendo em vista a implementação de um novo modelo da
oficina judicial em Espanha. Na sequência da publicação do Livro Branco da
Justiça, de 1997, elaborado pelo Conselho Geral do Poder Judicial (CGPJ),
foram introduzidas alterações de monta na Lei Orgânica do Poder Judicial
(LOPJ), pela LO 19/2003, de 23 de Dezembro, criando-se um novo modelo de
oficina judicial. Esta nova oficina judicial aparece, assim, como o resultado
de uma ambiciosa reestruturação com vista à adaptação aos novos
tempos e necessidades de uma organização considerada obsoleta.
A reforma foi idealizada tendo em vista os seguintes três objectivos
principais:
• Adaptar a organização judiciária à realidade de um Estado
autonómico;
• Adaptar a oficina judicial às novas tecnologias e a um programa
eficiente e racional de gestão de recursos humanos e materiais,
como um sistema de organização mais ágil e eficaz; e
• Converter o secretário judicial no efectivo director da oficina
judicial, libertando-se o juiz da realização de toda a actividade
burocrática. Por essa via liberta-se o juiz de uma relevante carga de
trabalho permitindo-lhe concentrar-se nas funções jurisdicionais, já que
todo o trabalho de documentação do expediente, da marcação de
diligências e da execução de sentenças passa a ser da competência do
secretário judicial e da sua equipa.
As alterações legislativas necessárias
Esta reforma da oficina judicial veio implicar alterações em várias leis
(mais concretamente, 22 diplomas, desde a LOPJ e dos diplomas que
regulamentam a carreira dos funcionários judiciais, às leis processuais civis,
penais, laborais e administrativas, entre muitas outras) devido, sobretudo, à
necessidade de regulamentação da nova distribuição de competências
entre juízes e secretários, mas também à adequação dos procedimentos à
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
43
modernização tecnológica e informatização e, ainda, à aplicação do Plano
de Transparência Judicial que está adstrito a esta reforma24.
Para além das alterações legislativas realizadas para adequar as leis
processuais às novas funções do secretário judicial, o legislador espanhol
aproveitou a oportunidade desta revisão para introduzir outras novidades,
também necessárias a uma regulamentação conforme à nova oficina judicial
informatizada:
− Alterações que visam potenciar as garantias das partes (como a
gravação obrigatória de todos os julgamentos penais, administrativos e
laborais, à semelhança do que já sucedia com os cíveis);
− Alterações destinadas a introduzir “boas práticas processuais”
(como novas regras para a marcação de diligências); e
− Alterações dirigidas a sanar problemas interpretativos ou lacunas em
normativos já existentes, ou mesma a eliminar aspectos anacrónicos
(como a referência à já extinta pena de morte em vários artigos do
Código de Processo Penal).
A nova oficina judicial
Estrutura
A oficina judicial em Espanha, no início da década de 90, caracterizava-
se pela ausência de critérios organizativos, funcionando as secretarias
judiciais, atomizadas e auto-suficientes, como “compartimentos estanques”
onde se realizavam múltiplas e diversas funções. Na prática diária, misturavam-
se actividades de carácter administrativo e actividades de carácter jurisdicional,
não existindo um modelo comum de trabalho em todas as secretarias ou
incentivos à produção diferenciada. Devido à sua forma atomizada, surgiam
dificuldades na rotatividade e formação dos funcionários. Era ainda apontado
como um ponto fortemente negativo o facto de nas secretarias se cruzarem
funcionários, advogados e público em geral, o que provocava contínuas
24 O Plano de Transparência Judicial, promulgado pela Lei 15/2003, de 26 de Maio, é definido como o instrumento através do qual diferentes órgãos do poder executivo, bem como o CGPJ e os próprios cidadãos podem ter à sua disposição informação acerca da actividade de todos os órgãos jurisdicionais. Por esse meio, procura-se obter uma justiça transparente, compreensível, tecnologicamente avançada e atenta ao cidadão.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
44
interrupções no trabalho dos primeiros (Cf. Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa, 2001: 138-146).
O novo modelo de oficina judicial moderniza e racionaliza a infra-
estrutura humana, material e tecnológica que rodeia o juiz. Assim, a ideia
principal é a de conseguir um desenho mais racional de oficina judicial,
acabando com uma estrutura considerada antiquada, constituída por
“micro-secretarias” em cada juízo, vara ou secção, organizadas de
maneira própria, diferentes umas das outras e sem a aplicação de
técnicas de gestão de recursos humanos. Por essa via, entendeu o
legislador espanhol, que é possível tornar a tramitação processual mais rápida
e eficiente e, consequentemente, menos dispendiosa.
Actualmente, a LOPJ estabelece que a oficina judicial funciona com
critérios de agilidade, eficácia, eficiência, racionalização do trabalho,
responsabilidade pela gestão, coordenação e cooperação entre serviços,
com a finalidade primordial de que os cidadãos obtenham uma justiça
próxima e de qualidade.
Esta nova filosofia pretendeu acabar com a atomização da estrutura
dos órgãos judiciais e tende a concentrar recursos em serviços comuns. Do
ponto de vista organizativo, o legislador considerou aconselhável
catalogar e separar das diferentes actividades em secções, equipas ou
unidades especializadas, dedicadas a tarefas específicas.
Sendo o objectivo primário da reforma a racionalização e actualização
dos meios humanos e materiais, com vista à obtenção de uma melhor e mais
rápida administração da justiça, o legislador optou, no desenho da nova
oficina judicial, por um sistema flexível, o que permite a cada oficina
judicial adaptar-se às suas necessidades específicas. Não obstante, a sua
estrutura básica “será homogénea em todo o território nacional como
consequência do carácter único do Poder que serve”.
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
45
O elemento organizativo básico da estrutura da nova oficina judicial é a
unidade, a qual é de dois tipos: a Unidade Processual de Apoio Directo (UPAD)
e o Serviço Comum Processual (SCP)25.
As Unidades Processuais de Apoio Directo (UPADs) ocupam-se da
assistência directa aos magistrados no exercício das respectivas funções
jurisdicionais, pelo que têm que existir tantas UPADs quantos os tribunais,
secções ou juízos, constituindo, juntamente com o juiz titular, o respectivo
órgão judicial.
Quanto aos Serviços Comuns Processuais (SCPs), são unidades da
oficina judicial que, sem estar integradas num órgão judicial concreto,
assumem funções centralizadas de gestão e apoio em actividades
específicas. Prestam, assim, apoio a um ou mais órgãos judiciais do seu
âmbito territorial, com independência da ordem jurisdicional a que pertençam
e da extensão da sua jurisdição. Os SCPs estruturam-se em secções, as quais,
por sua vez, podem ser divididas em equipas com a mesma estrutura interna. À
frente de cada SCP está um secretário judicial, de que dependem
funcionalmente os restantes funcionários.
Modernização tecnológica
A nova oficina judicial pretende, acima de tudo, servir a modernização
tecnológica da administração da justiça considerando-se que o êxito da sua
implementação depende, em grande medida, dessa adaptação. Um outro dos
propósitos enunciados é, também, a criação de uma “Justiça sem papel”, em
que os advogados dirijam as suas comunicações aos tribunais em formato
electrónico, em que os diferente serviços da administração da justiça
comuniquem entre si através de uma rede informática, até que,
paulatinamente, o suporte documental da justiça seja informático26.
25 Embora não estejam integradas nas oficinas judiciais, as Unidades Administrativas (UAs) assumem, no âmbito da organização da administração de justiça, as funções de chefia, ordenação e gestão dos recursos humanos da oficina judicial sobre as quais têm competência, bem como dos meios informáticos, novas tecnologias e demais meios materiais desta. 26 Assim, para evitar o transporte de papéis pelo tribunal e fora deste, são desenvolvidos sistemas de comunicação intra-tribunal e inter-tribunais e outras instituições, através de três projectos específicos: o Programa LEXNET, que permite o envio para os tribunais de peças processuais e de documentos escritos através de meios telemáticos; o Projecto INFOREG, por
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
46
A implementação dos programas informáticos tem vindo a ser realizada
de forma progressiva, considerando-se que as mudanças e consequentes
adaptações serão realizados de forma a evitar-se uma ruptura abrupta com os
anteriores hábitos e modos de funcionamento, acomodando-se a nova oficina
judicial informatizada às possibilidades técnicas, organizativas, orçamentais e
formativas da Administração.
Espaços físicos adequados
Neste processo de reforma merece realce a elaboração de um plano de
adaptação dos espaços físicos judiciais com a incorporação de estruturas que
possibilitem a utilização das novas tecnologias e a sua inclusão no quotidiano
dos serviços. Para tal, em várias Comunidades Autónomas foram construídos
novos edifícios de tribunais ou reestruturados edifícios previamente existentes,
com projectos arquitectónicos apropriados e pensados especificamente para o
efeito27.
Algumas críticas
Ao processo de implementação da nova oficina judicial, têm sido,
contudo, apontadas algumas críticas, designadamente, as seguintes:
• O facto de as reformas processuais não estarem terminadas antes
de se iniciar a implementação do novo modelo de oficina judicial;
• O atraso na adaptação dos sistemas informáticos;
• A falta de formação para a utilização dos novos sistemas
informáticos;
• O “esquecimento” da existência de processos pendentes nos
serviços, pensando-se a reestruturação dos serviços sem se
atender àqueles e estruturando-se estes “partindo do zero”, sem meio do qual se realiza a gestão do Registo Civil e inscrições no mesmo por via informática; e o Módulo de Intercâmbio Genérico (MIG), que possibilita a comunicação por via telemática entre as diferentes Unidades da oficina judicial e entre oficinas judiciais diferentes, oferecendo, também, a assinatura digital das decisões judiciais. 27 Sobre o plano de construção de infra-estruturas judiciárias em Espanha, cf. o relatório do OPJ “A Administração e Gestão da Justiça – Análise comparada das tendências de reforma” (Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, 2001).
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
47
atender à carga processual;
• A falta de definição prévia dos protocolos de actuação dos
funcionários judiciais, por forma a concretizar e delimitar as
funções, competências e tarefas específicas de cada um;
• A forma de nomeação (livre, isto é, sem concurso) de funcionários
para novos cargos que envolvem tarefas de especial
responsabilidade ou conhecimentos técnicos;
• A falta de recursos financeiros, em determinadas regiões,
necessários para levar a cabo a reforma dos serviços e o atraso
nas obras de raiz e de adaptação das instalações.
3.4 A distribuição dos processos
Como já referimos, os mecanismos de distribuição dos casos pelos
diferentes tribunais e, dentro de cada tribunal, pelos juízes, é crucial para
a qualidade e eficiência com que os sistemas judiciais respondem à
procura judicial. Como adiante se verá, no que respeita ao caso português,
na discussão sobre esta matéria emergem diferentes questões,
designadamente, sobre a interpretação dos princípios constitucionais da
inamovibilidade e do juiz natural e sobre o recrutamento e colocação dos
juízes.
Tanto o princípio do juiz natural (ou juiz legal) como o princípio da
inamovibilidade têm diferentes enquadramentos e amplitudes nos vários
sistemas judiciais. No que se refere ao princípio da inamovibilidade, em
particular, os procedimentos que permitem a movimentação de um juiz de um
tribunal para outro são particularmente delicados. Em muitos sistemas judiciais,
a colocação dos juízes obedece a regras rígidas. Os juízes são colocados, não
só em determinado tribunal, mas mesmo para determinada secção, não
admitindo flexibilidade de transferência. A necessidade de introdução de
mecanismos de flexibilidade na gestão de recursos humanos colocou esta
questão em debate, admitindo-se, em alguns países, alterações que permitam
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
48
maior facilidade de deslocação, de acordo com critérios pré-definidos, dos
recursos humanos28.
Por outro lado, o papel do presidente do tribunal na gestão dos
recursos humanos e, mesmo na distribuição dos processos é igualmente
diferente, considerando os vários sistemas judiciais, suscitando
diferentes interpretações daqueles princípios. Por exemplo, em França,
compete ao presidente do tribunal pode distribuir os juízes do tribunal pelas
várias secções e, na Noruega, é o presidente do tribunal que decide a
distribuição dos processos pelos diferentes juízes.
Considera-se que os tribunais são mais “flexíveis” nos sistemas
judiciais em que o presidente do tribunal desempenha um papel mais
activo, quer no que respeita à distribuição processual, quer à gestão dos
recursos humanos.
As regras de distribuição processual têm, genericamente, um duplo
objectivo: o de garantir a imparcialidade do tribunal, bem como uma distribuição
tendencialmente igualitária de carga processual entre os vários magistrados.
Estes objectivos, como refere Langbroek et al. (2007), no estudo “Is There a
Right Judge for Each Case”, são genericamente assumidos pelos vários
sistemas judiciais europeus, independentemente da sua tradição continental ou
de common law.
Mas, como já referimos, se, por um lado, a distribuição processual tem
como função garantir a imparcialidade dos tribunais, através da previsão de
regras gerais e abstractas que garantam a aleatoriedade daquela distribuição,
por outro, é também na distribuição dos processos que algumas das
questões relacionadas com uma adequada gestão dos tribunais e da
administração da justiça com maior acuidade se colocam, reclamando
maior flexibilidade para acorrer a situações excepcionais. É, assim, neste
âmbito que a tensão entre imparcialidade e eficiência se revela.
No projecto de investigação, acima referido, que envolveu países de
tradição jurídica tão díspar como Alemanha, Dinamarca, França, Holanda,
Inglaterra e País de Gales e Itália, pretendeu-se responder a três questões
essenciais: 1) quais as regras para desenvolver e proteger a
28 Sobre esta questão, cf. o estudo do OPJ, “ Geografia da Justiça”, 2006.
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
49
imparcialidade judicial quando se atribui um processo?; 2) Como se
expressa este princípio no quotidiano? Que tipo de práticas são
utilizadas? 3) Como vêem os juízes, os administradores dos tribunais e as
partes envolvidas (stakeholders) a distribuição de processos a nível
interno, tendo em conta a protecção da imparcialidade do judiciário?
Partindo daquelas três questões, Langbroek et al. mostram que, de um
ponto de vista organizacional, nos países estudados, tenta-se garantir
eficiência e flexibilidade através da própria estrutura institucional da oferta do
sistema judiciário, da existência de funcionários qualificados, da capacidade de
adaptação/flexibilidade dos juízes (troca de processos entre juízes, por
exemplo).
A eficácia na gestão da procura judiciária reside em grande parte na
optimização dos recursos, o que implica, desde logo, uma escolha adequada
de procedimentos consoante a natureza e complexidade do caso. Está
subjacente a ideia, que, em vários trabalhos do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa (OPJ), temos vindo a defender que o sistema de justiça
deve tratar, eficazmente, de forma desigual o que é intrinsecamente
desigual, sem obviamente colocar em causa direitos e garantias dos cidadãos.
Deste modo, o tipo de regras e procedimentos previstos na ordem jurídica pode
conduzir (ou não) a uma maior eficácia.
Para além disso, revela-se necessário que as regras e
procedimentos admitam alguma flexibilidade para assegurar eficiência.
Tal flexibilidade pode ser assegurada, quer através de uma adequada
distribuição processual, quer, devido à flutuação da carga processual,
através da previsão de mecanismos de transferência de juízes para outras
unidades (Langbroek et al, 2007: 16).
Chama-se, contudo, a atenção para o facto de a introdução de
mecanismos de flexibilidade não poder colocar em causa os princípios da
imparcialidade do tribunal e da continuidade na tramitação e resolução
dos processos.
Pode, assim, verificar-se alguma contradição latente sobre esta matéria:
quanto mais rígidas as regras e procedimentos processuais menos flexível é o
tribunal e, portanto, menos eficiente, apesar de se escudar melhor contra
influências que possam colocar em causa aqueles princípios. A ênfase nesta
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
50
última vertente pode ser verificada em Itália29 e na Alemanha30. Na Dinamarca,
França31, Inglaterra e País de Gales32, os tribunais são mais flexíveis e,
aparentemente, mais eficientes. A maior ou menor facilidade na transferência
de juízes de um para outro tribunal em resposta ao aumento ou diminuição da
procura é mais um reflexo dessa flexibilidade.
Um outro aspecto dessa flexibilidade é a possibilidade de
transferência de processos entre juízes, que é um mecanismo simples e
expedito para uma gestão do volume processual (Langbroek et al., 2007: 17).
Os autores salientam, naquele estudo, que, apesar do princípio da
inamovibilidade ser transversal a todos os países analisados (embora apenas
constitucionalizado na Alemanha e em Itália), tem interpretações diferenciadas
nos diferentes sistemas judiciais. Assim, enquanto que na maioria dos
países a nomeação de um juiz para um tribunal permite que o mesmo
presida a qualquer processo daquele tribunal, na Alemanha e
especialmente em Itália, as regras relativas à alteração da distribuição
processual já realizada são muito rígidas (necessidade de decisão escrita do
presidente do tribunal e de parecer favorável do Conselho Judicial), o que
29 Em Itália, a colocação de magistrados nos tribunais de competência genérica parece apontar para uma tentativa de limitação do poder de direcção dos tribunais, de modo a evitar possíveis abusos de poder dos presidentes dos tribunais, reforçando, em consequência, a independência interna dos juízes. No entanto, como referem Contini e Fabri (2007: 267), a introdução deste esquema organizacional diminuiu a flexibilidade dos tribunais, aumentou a dificuldade de coordenação do trabalho dos juízes, com reflexos na produtividade. Apesar de se terem avançado medidas de alteração da colocação dos magistrados, os autores consideram-nas ainda tímidas, tendo em conta as necessidades reais. Apontam, ainda, como factor negativo a sua excessiva regulamentação, tentando-se antecipar todas as situações possíveis e, consequentemente, diminuindo a margem de discricionariedade de quem tem o encargo de tomar este tipo de decisões. No que respeita à distribuição dos processos, aqueles autores defendem ainda que esta deveria ser realizada não por um órgão central, mas pelo presidente do tribunal, coadjuvado pelo administrador, que, certamente, estará mais familiarizado com o seu contexto específico (2007: 268). 30 De acordo com Dyrchs et. al (2007: 229), na Alemanha, o princípio do juiz legal, resultado de uma salutar divisão de poderes, consolida e reforça a confiança dos cidadãos nos juízes e no sistema judicial. A fixação dos critérios abstractos de distribuição dos processos pelas várias secções, definidos anualmente, compete ao presidente do tribunal. Posteriormente, a distribuição dos processos pelos vários juízes é realizada por ordem de entrada ou com base nos últimos dígitos do número de processo (consoante o tribunal). 31 Em França, o presidente do tribunal tem competência para proceder à distribuição dos juízes dentro do próprio tribunal, através de ordens de escalonamento, sendo o responsável, ainda, pela distribuição dos processos (Marshal, 2007: 190). 32 Na Inglaterra e País de Gales, a distribuição dos juízes é realizada pelo Lord Chancelor, em articulação com o presidente do tribunal, sendo que a colocação de um juiz num determinado tribunal ou secção não impede que o mesmo presida a julgamentos noutros tribunais e/ou secções. Como ilustração, tome-se o caso de um juiz colocado na Queen’s Bench Division. Este pode ser simultaneamente destacado para o tribunal da Coroa e para decidir sobre alguns recursos de processos penais no Tribunal de Apelação (Flood, et. al: 2007: 138).
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
51
dificulta a distribuição de determinados processos, em especial os mais
complexos, a juízes tecnicamente mais preparados para tal. Na Dinamarca e
em Inglaterra e País de Gales, por outro lado, a troca informal de
processos entre juízes é frequente (2007: 21).
Em relação ao nosso tema, consideramos importante destacar as
seguintes conclusões daquele estudo: a primeira é que, apesar de a
sociedade moderna empurrar as estruturas judiciais para uma busca por
maior eficiência, flexibilidade e transparência, os valores judiciais
tradicionais parecem condicionar muito aqueles objectivos, com forte
influência na gestão de processos e de recursos humanos (2007: 23).
A segunda é que existem grandes diferenças entre, por um lado, a
Alemanha e Itália, e, por outro, a Dinamarca, Inglaterra e País de Gales no que
concerne ao nível de formalismo da distribuição de processos. Naqueles
dois primeiros países (ao contrário dos outros três), a distribuição de processos
está fortemente formalizada. A França e a Holanda encontram-se num meio
termo, começando a desenvolver regras internas que permitem mais
flexibilidade na distribuição de processos (2007: 24).
A terceira conclusão é que os tribunais devem gerir o equilíbrio entre
juízes especializados e juízes generalistas, sendo que, embora um maior
número de juízes generalistas possa aumentar a flexibilidade e, assim,
aparentemente a produtividade, esse desequilíbrio pode ter consequências
negativas na resolução dos processos, acabando por afectar negativamente,
não só qualidade e legitimação do tribunal, como também a sua produtividade.
Para combater a tendência generalista, na Inglaterra adoptou-se um sistema
(ticketing system ou sistema de qualificação profissional33), em que os
juízes têm que estar profissionalmente certificados para se ocuparem de
determinados tipos de litígios (2007: 24).
33 Como referem Fabri e Langbroek (2007: 14), “em Inglaterra e País de Gales, o chamado sistema de qualificações profissionais [ticketting system] permite ao juiz que tenha recebido formação ou tenha experiência numa determinada matéria, tomar parte nos processos que envolvam determinadas matérias específicas e que decorram perante determinadas instâncias. Consequentemente, existem juízes que desempenham as suas funções numa determinada instância e que podem intervir num determinado processo, caso tenham a apropriada qualificação [ticket]. Este sistema permite que os juízes intervenham em processos de natureza específica que tramitem na área geográfica onde exercem funções. Verifica-se, assim, não apenas uma especialização dos tribunais, mas igualmente uma qualificação específica dos juízes que ultrapassa a das subsecções”.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
52
3.5 A gestão do caso concreto
Na definição dada por Schwarzer e Hirsch, gestão processual supõe a
utilização, com justiça e bom senso, de todos os instrumentos à disposição dos
juízes de forma a alcançar uma resolução justa, rápida e não dispendiosa do
litígio (2006: 1). Da mesma forma, Nuno Coelho define gestão processual como
“a intervenção conscienciosa dos actores jurisdicionais no tratamento dos
casos ou processos, através da utilização de variadas técnicas com o propósito
de dispor as tarefas processuais de um modo mais célere, equitativo e menos
dispendioso” (2007: 4).
Também para Fix-Fierro (2003: 229), o conceito de gestão do caso pode
ser definido como a intervenção conscienciosa dos intervenientes judiciais na
tramitação e tratamento do caso concreto, através de várias técnicas e ou
procedimentos, com o objectivo de o resolver de uma forma mais justa, rápida
e menos dispendiosa. O objectivo é, assim, atingir uma resolução dos litígios
justa, rápida e eficiente.
As preocupações de gestão processual surgem mais associadas aos
países de tradição da common law, caracterizado por um processo de tipo
adversarial, embora com um poder de conformação do juiz forte e onde, em
regra, este é assessorado por um conjunto de funcionários com competências
específicas, não só na administração do tribunal, mas também em direito. No
sistema continental de tradição histórica francesa e de raiz burocrática, a
introdução de métodos de gestão processual tem-se revelado mais
resistente34.
A necessidade de introdução de uma visão gestionária na tramitação
dos processos surge, assim, como resposta ao aumento da litigação e tem por
base a concepção, segundo a qual a eficiência resulta menos das 34 Embora se situe no contexto da common law, o que dificulta a sua adaptação aos sistemas continentais, é interessante o conjunto de instrumentos procedimentais que existem nos EUA sobre a gestão dos diferentes tipos de casos. Por exemplo, no manual de gestão dos litígios cíveis, elaborado pela Conferência Judicial, em 2001, chama-se a atenção para a necessidade de estabelecer uma gestão antecipada do processo pré-judicial, fixando-se um plano rígido de marcações, que envolve conferências prévias entre advogados, para discutir uma possibilidade de acordo e definir a natureza do litígio; de orientar a fase da prova tendo em conta os meios mais adequados e menos dispendiosos em termos de custos e de tempo; de agendamento de discussões com o objectivo de alcançar uma transacção; de limitar as leituras dos depoimentos; e evitar provas desnecessárias. No que respeita a litígios semelhantes, sugere-se ainda que se procure coordenar as agendas de todos os intervenientes, possibilitar a produção de prova conjunta, identificar questões similares susceptíveis de resolução num único e comum procedimento e desenvolver tentativas de conciliação.
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
53
mudanças das regras processuais do que da adequada monitorização do
desempenho funcional dos tribunais e intervenientes no processo. Uma
das principais consequências desta nova concepção deu-se na mutação do
tradicional papel do juiz, de terceiro imparcial e distante a interveniente
activo na gestão do litígio (Fix-Fierro, 2003: 230).
Ainda para o autor, de entre as diferentes medidas que podem
integrar a gestão do caso concreto, destaca a selecção adequada da
calendarização e do sistema de marcação de diligências; a adopção de
medidas que visam o encorajamento da solução do conflito por acordo; a
introdução de adequados programas informáticos; o recurso a funcionários
judiciais com competência e formação especializada para o tratamento de
certas questões e litígios; e a utilização de mecanismos processuais, como
audiências preliminares e formas de julgamento sumárias.
Schwarzer e Hirsch (2006) apontam também para a necessidade de o
magistrado, bem como os advogados das partes, se familiarizarem
antecipadamente com o processo, identificando-se as questões pivot do
processo, como factor potenciador do alcance de um acordo antes do
julgamento; a necessidade de estabilização da instância atempadamente,
decidindo-se de imediato todas as questões formais; o adequado agendamento
das diligências; a definição de uma estimativa da duração provável do
processo; a adopção de medidas por parte do juiz que permitam prevenir a
duplicação de prova, bem como exigir a adopção dos meios menos
dispendiosos para a obtenção da informação desejada; e a adopção de
medidas que garantam uma produção de prova reduzida ao essencial,
ordenada e compreensiva.
Mais adiante, com referência ao caso português, voltaremos a este
assunto.
3.6 A introdução de novas tecnologias
Como acima se referiu, a introdução de novas tecnologias de
informação e de comunicação no sistema judicial é considerada uma das
componentes fundamentais de uma nova política gestionária, orientada
para a qualidade e eficácia dos sistemas judiciais. Contudo, a
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
54
disponibilização de Tecnologias de Informação (TI) no sistema judiciário não
constitui, por si, garantia de uma utilização optimizada das mesmas, podendo o
seu uso ficar bastante aquém das suas potencialidades. Desde logo, torna-se
importante explicitar os benefícios práticos das TI aos utilizadores e demonstrar
que as TI não são uma ameaça aos postos de trabalho existentes.
Fabri e Contini (2001) salientam a diversidade europeia, quer no que
se refere ao grau de implementação, quer à eficácia e finalidades das
Tecnologias de Informação nos sistemas judiciários. Concluem que, a nível
europeu, e de um modo geral, a introdução das TI nos sistemas judiciários é
conduzida tendo em vista a resolução de problemas específicos e não a sua
eficaz integração no sistema e organização onde vão ser utilizadas.
Acresce que essa introdução não previu, de um modo geral, uma
visão integrada dos sistemas de informação, não se tendo verificado uma
articulação eficaz entre as diferentes instituições do judiciário, como, por
exemplo, entre os sistemas de TI dos tribunais e das prisões, que, em regra,
não comunicam.
Segundo Oskamp et al. (2004), uma outra conclusão a destacar é que,
tendencialmente, não existiu uma troca de conhecimentos sobre as
aplicações utilizadas e testadas entre diferentes países, iniciando cada um
a introdução das TI a partir da estaca zero.
Os autores chamam, ainda, a atenção para a necessidade de uma
adequada formação de todos os intervenientes do sistema judicial no que
respeita à utilização de TI (juízes, funcionários, advogados), pois só assim
será optimizada a sua utilização. Para tal, é fundamental, não só o
conhecimento intensivo do seu potencial por parte dos utilizadores, como
também o seu reconhecimento como uma mais valia para o desenvolvimento e
adequado desempenho das suas funções.
É crucial que os agentes judiciais considerem as TI como
necessárias, como uma verdadeira melhoria e vantagem na execução das
suas tarefas. Neste contexto, chamam a atenção para o facto de os
funcionários, em regra, sentirem receio da concorrência das TI, com medo de
perderem o emprego. Consideram, por isso, importante que se estabeleça um
equilíbrio entre as políticas e intervenção do poder executivo (governo) e o
Como gerir a procura judicial? Temas do debate em torno das questões da administração e gestão dos tribunais
55
desempenho funcional e as sugestões dos profissionais (funcionários, juízes,
advogados, etc.).
3.7 A importância da cultura judiciária
Não obstante a influência de muitos outros factores condicionantes do
funcionamento dos sistemas de justiça, muitos autores chamam a atenção
para a necessidade de não descurar a cultura judiciária (“legal culture”)
como um dos elementos potencialmente explicativos de alguns dos
bloqueios a um funcionamento mais eficiente e eficaz do sistema judicial.
Apesar de ter sido nos países de tradição da common law que a discussão em
torno da importância da cultura judiciária (legal culture) no cumprimento cabal
dos objectivos reformistas mais se evidenciou, ela tem vindo, igualmente, a
alargar-se aos países de tradição de civil law ou continental law. Hoje, é
considerada uma componente importante que não pode ser ignorada, quer na
introdução das reformas, quer nos processos de avaliação das mesmas.
A British Columbia Justice Review Task Force, no seu Livro Verde
intitulado The Foundations of Civil Justice Reform identificou, entre os
obstáculos ao sucesso das reformas, uma resistência à mudança por
parte de quem está “dentro do sistema judicial” (juízes, profissões jurídicas,
governo e funcionários judiciais). Esta resistência prende-se com o conforto do
status quo, e que persiste não obstante o reconhecimento generalizado dos
problemas do sistema. “If a «change of fundamental nature» to the civil justice
system is to be possible, the resistance to change coming within the legal
community will have to be addressed” (MacDonald, 2005: 2).
Partindo da teoria de Lawrence Friedman e da distinção entre “internal
legal culture” e “external legal culture”, David Nelken (2004) interroga-se sobre
qual a sua importância na avaliação e análise da morosidade judicial em Itália.
Sem desprezar factores puramente legais ou sistémicos, como, por exemplo, a
necessidade de fundamentação das decisões; o aumento exponencial da
litigação; o aumento do número de advogado, bem como a sua forma de
pagamento (por acto), que é vista como potenciadora do “arrastar” de
processos; ou a falta de investimento público nos tribunais, Nelken constata
que, não obstante, existir um discurso consensual de insatisfação por parte de
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
56
vários grupos sociais quanto à eficiência do sistema de justiça (“external legal
culture”), esse discurso não se tem traduzido num sistema mais eficiente e
responsável (“In Friedman's terms, the question remains, why does the
pressure of ‘external legal culture’ not produce a more responsive and efficient
system?”).
Defende por isso o autor a necessidade de analisar mais
detalhadamente a posição dos profissionais do direito (“internal legal culture”) e
para avaliar a sua resistência às reformas é necessário analisá-las
considerando a sua eficiência. “A distinction is sometimes made between
'effectiveness' (which is relative to aim), and acceptable, and 'efficiency ' which
is assumed to sideline questions of ideal aims into sordid questions of costs and
benefits. Because the law must be equal for all, there is resistance to
introducing special procedures for different types of cases at either a formal or
informal level” (2004).
Nos estudos levados a cabo no âmbito do OPJ, este é um dos factores
também identificado como um dos principais bloqueios da eficácia de algumas
reformas35.
Boaventura de Sousa Santos (2000) faz uma extensa reflexão sobre o
perfil da cultura judiciária portuguesa, bem como sobre a necessidade de a
mudar e de como a mudar. Porque, como escreve Santos, “não há reformas
que resolvam os problemas se não houver uma cultura judiciária que as
sustente” (2000: 33). Para tal o recrutamento e, sobretudo, a formação dos
magistrados, quer a formação inicial, quer a formação permanente, assumem
um papel central num qualquer projecto de reforma estrutural do sistema
de justiça dirigido, não só ao aumento da eficácia, mas também à
melhoria da qualidade de justiça e à criação de uma nova cultura
judiciária.
35 Salientam-se, por exemplo, as reformas relativas às formas especiais de processo e às penas alternativas à prisão. Cf. os projectos de investigação realizados no âmbito do OPJ “As Reformas Processuais e a Criminalidade na Década de 90 - As formas especiais de processo e a suspensão provisória do processo: problemas e bloqueios” (Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, 2002a) e “As Tendências da Criminalidade e das Sanções Penais na Década de 90 - Problemas e bloqueios na execução das penas de prisão e da prestação de trabalho a favor da comunidade” (Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, 2000).
Algumas orientações das instituições comunitárias quanto à gestão processual e à informatização da justiça
57
4. Algumas orientações das instituições comunitárias quanto à
gestão processual e à informatização da justiça
A atenção das instituições europeias ao funcionamento da justiça e ao
desempenho dos sistemas judiciais nos Estados-Membros tem vindo a ser
crescentemente reflectida nas respectivas agendas de reforma, o que se traduz
na emissão de diferentes recomendações e na elaboração de resenhas de
boas práticas.
No âmbito do Comité de Ministros do Conselho da Europa e da
Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ), a problemática da
gestão processual e do recurso às Novas Tecnologias da Informação e da
Comunicação (TIC) tem vindo a merecer um particular destaque. A
progressiva relevância da administração da justiça civil no contexto das
sociedades modernas e o seu contributo indispensável para o dinamismo
económico e social justificam, em grande medida, o investimento político dos
actores europeus no sentido da adopção de instrumentos técnicos e
administrativos capazes de optimizar os recursos disponíveis nos sistemas
judiciais, bem como assegurar um incremento de práticas aceleradoras e
qualificadoras da resposta dos tribunais à procura judicial, nos seus diferentes
domínios.
4.1 As recomendações do Conselho da Europa
O Observatório Permanente da Justiça Portuguesa tem vindo a
acompanhar os novos movimentos da litigância à escala europeia, bem como o
desempenho funcional das instâncias judiciais nos diferentes Estados-
Membros. Em 2001, num relatório com incidência na administração e gestão da
justiça36, procedeu-se a uma análise comparada das tendências de reforma
não apenas no espaço integrado europeu, como também na Noruega e nos
EUA. Nesse contexto, foi objecto de um estudo detalhado a intervenção do
Conselho da Europa para a promoção da eficiência e eficácia da administração
36 Cf., Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2001), A Administração e Gestão da Justiça – Análise comparada das tendências de reforma.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
58
da Justiça. Analisaram-se as várias recomendações e procurou-se escrutinar o
calendário de actividades desenvolvidas a propósito do quadro de reformas a
empreender pelos Estados-Membros. Especificamente em matéria processual
civil, no Relatório elaborado em 1995 pelo Comité Europeu de Cooperação
Jurídica em colaboração com o Comité Europeu para os Problemas Criminais,
salienta-se a importância do legislador interno em estabelecer regras que
definam os métodos sobre os quais se devem basear os tribunais para gerir os
processos, defendendo também que o tratamento das causas deve seguir
processos diferenciados, de acordo com a sua complexidade.
A utilização de mecanismos informáticos e de gestão
Dada a sua relevância, as Recomendações n.os 2 e 3, de 2001, desse
mesmo órgão, foram, também, objecto de estudo nesse nosso relatório de
2001, embora sob uma outra óptica. Nelas é impulsionado o recurso à
tecnologia enquanto instrumento auxiliar da administração e gestão da
justiça, apelando-se ao uso das novas tecnologias na concepção dos
sistemas judiciários e nos serviços prestados aos cidadãos.
As vantagens e inconvenientes de opções de ordem prática relativas aos
sistemas informáticos de gestão são analisadas na primeira dessas
recomendações. Do estudo efectuado, destacam-se o contraponto entre
sistemas padronizados ou ad hoc; entre a automatização de procedimentos já
estabelecidos e a reestruturação dos procedimentos; e, ainda, entre a opção
por uma gestão centralizada ou descentralizada.
Os sistemas padronizados caracterizam-se por uma maior facilidade de
utilização e manutenção, por apresentarem custos mais reduzidos na sua
criação/aquisição e manutenção, e, ainda, por poderem proporcionar uma
maior e melhor comunicação inter-organizacional. São, no entanto, mais
desvantajosos devido à sua rigidez: nem sempre podem ser adaptados às
aplicações e, muitas vezes, podem não ser satisfatórios face às respostas
exigidas pelos utilizadores.
Os sistemas ad hoc, por seu turno, apesar de desenhados
especificamente para os fins a que se destinam, revelam-se mais dispendiosos
Algumas orientações das instituições comunitárias quanto à gestão processual e à informatização da justiça
59
e requerem competências e formação adequada para a sua utilização. Quando
é necessário fazer alterações posteriores, obriga à contratação de
especialistas, o que os torna mais onerosos.
A automatização de procedimentos já estabelecidos revela-se
particularmente benéfica pela facilidade com que é apreendida pelos
utilizadores, bem como pela menor resistência à sua utilização. No entanto, o
facto de os procedimentos se encontrarem pré-concebidos poderá impedir ou
dificultar a respectiva automatização.
A longo prazo, porém, a reestruturação dos procedimentos tendo em
vista a sua automatização, torna-se menos dispendiosa e mais adequada para
os utilizadores. Outra vantagem do recurso a esta medida reside na visão de
conjunto que proporciona à sua concepção e administração, facilitando o
desenvolvimento de links. A reestruturação constitui, todavia, uma solução
mais morosa, podendo causar perturbações nos serviços e insatisfação dos
recursos humanos, para além de poder exigir alterações legislativas de monta.
Uma gestão centralizada facilita a planificação geral e o controlo, a
flexibilização da utilização dos recursos humanos, bem como a possibilidade de
oferecer serviços similares em todos os locais. Não obstante, a
sobreconcentração acarreta alguns riscos, como um bloqueio generalizado do
sistema, tal como pode acentuar a distância entre os serviços e os seus
destinatários, criando uma dependência excessiva dos dispositivos de
intercomunicação. Este modelo de gestão poderá também provocar um
esvaziamento das funções de coordenação locais, desmobilizando os recursos
humanos intermédios. Para além disso, a compreensão e a resposta às
necessidades locais poderão revelar-se insuficientes.
Pelo contrário, um modelo de gestão descentralizado possui maior
capacidade de compreensão e de resposta às necessidades locais,
encorajando a produtividade dos recursos humanos intermédios e
aproximando-se dos utilizadores finais. Não está, no entanto, isenta de efeitos
de duplicação do trabalho, ou mesmo de perda de flexibilidade dos recursos
humanos. A inexistência de padrões mínimos comuns relativamente a outras
unidades poderá estar na origem de incompatibilidades operativas entre elas.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
60
Acresce que as tarefas de gestão, ao nível local, requerem muita experiência
por parte dos recursos humanos envolvidos, o que se poderá revelar, nalguns
casos, de difícil execução.
O conceito de e-governance
Uma visão mais estratégica e integrada acerca do valor das novas
tecnologias na governação ganhou força nos últimos anos, tendo sido, a partir
dela, formulado e generalizado o conceito de e-governance. Esta nova
abordagem administrativa, visando uma reaproximação das instituições
aos cidadãos, produziu um impacto considerável também no âmbito da
justiça, produzindo alterações, tanto nas relações entre autoridades,
como na sua interacção com a sociedade civil. A Recomendação (2004) 15
versa especificamente sobre esta modalidade, sublinhando a sua importância
modernizadora das operações de gestão. Visa, por isso, impulsionar os
Estados-Membros a elaborar estratégias de gestão electrónicas, que
permitam uma utilização eficaz das TIC no seio de cada organização e nas
relações entre os diferentes poderes públicos, tal como entre estes e os
cidadãos. O carácter genérico dos conteúdos veiculados pela referida
Recomendação sinaliza a importância transversal dos mecanismos
electrónicos na modernização dos serviços públicos. Em todo o caso, não são
feitas referências específicas à sua adopção no domínio da justiça, o que pode
reduzir as potencialidades persuasivas desta Recomendação.
4.2 Os estudos da CEPEJ
Em 2006, foi publicado pela CEPEJ um compêndio de boas práticas de
gestão do tempo nos processos judiciais, adoptado na oitava reunião plenária
daquela Organização. Este documento reúne algumas orientações políticas e
práticas, desenvolvidas em tribunais ou recomendadas pelo Conselho da
Europa, bem como decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. As
questões identificadas são agrupadas em cinco linhas temáticas:
estabelecer calendarizações realistas e mensuráveis para a realização
dos actos processuais; assegurar a aplicação dos prazos fixados;
Algumas orientações das instituições comunitárias quanto à gestão processual e à informatização da justiça
61
proceder à monitorização e disseminação de dados; desenvolver medidas
referentes à avaliação e resposta do volume processual e da carga de
trabalho; e promover políticas e práticas de gestão processual.
Políticas e práticas de gestão processual
Para o desenho e a promoção de políticas de gestão processual
eficazes, a CEPEJ entende que se deverá tomar em consideração, na
formulação de linhas de actuação, o envolvimento dos diferentes interessados.
Nesse sentido, deverão ser os próprios tribunais a desenvolver as suas
estratégias de gestão, atendendo às respectivas especificidades, às
dinâmicas contextuais e aos usos e costumes do foro. Não obstante,
adverte-se para a necessidade de ser estabelecido um enquadramento
geral, aplicável em todos os tribunais.
A CEPEJ chama também a atenção para a necessidade de adaptação
da tramitação processual à complexidade dos casos. A gestão de cada
processo deve ser diferenciada, considerando, por exemplo, o valor, o
número de interessados, bem como as questões jurídicas envolvidas.
Devem igualmente ser estabelecidos processos de carácter sumário para
lidar com casos que revelem pouca complexidade.
É de salientar a menção à Recomendação (1984) 5 do Comité de
Ministros, na qual se aconselha a criação de um processo-tipo, baseado em
dois grandes momentos processuais: o primeiro consiste numa audiência
preliminar de natureza preparatória; o segundo centra-se na exposição das
posições das partes, na apresentação de prova e, quando possível, na emissão
de uma decisão. É, ainda, de mencionar a importância de um papel mais
activo por parte dos magistrados judiciais e dos tribunais na gestão
processual. Por outro lado, a imposição de sanções pelo não cumprimento de
prazos pelas partes, testemunhas ou peritos constitui uma medida que visa
agilizar o andamento dos processos.
Outra das linhas de actuação apontadas pela CEPEJ prende-se com a
necessidade de redução do número de adiamentos de audiências, de
forma a acelerar a tramitação dos processos, optimizar a utilização do
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
62
tempo do juiz e evitar atrasos injustificados na obtenção de decisões
judiciais. Sublinhe-se que estas medidas vão ao encontro das preocupações
expressas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
De forma a melhor racionalizar o andamento do processo, é também
aconselhada a realização de uma conferência prévia entre as partes, com
o objectivo de calendarizar os actos processuais, evitando o desperdício
de tempo e de recursos. São apontados os seguintes resultados práticos: um
aumento dos acordos extrajudiciais; a redução dos adiamentos; a concentração
das sessões de julgamento; e, consequentemente, o respeito pela
calendarização previamente acordada. Para além disto, a CEPEJ identifica
como causas de atraso o não cumprimento dos prazos para a apresentação de
prova e relatórios conexos por parte de advogados, das partes e de peritos. No
sentido de ultrapassar este problema, é recomendada uma política rígida tanto
de incentivos como de sanções relativamente ao cumprimento dos prazos
estabelecidos.
O uso de formatos concisos e padronizados nas decisões judiciais
é igualmente visto como útil para o cumprimento das calendarizações
estabelecidas no processo. Para além disso, a produção de decisões
judiciais pode ser ainda beneficiada pela sua focalização nas questões
essenciais, diminuindo, assim, todo o peso argumentativo da decisão que pode
ser feito em parte por remissão.
A utilização de tecnologia áudio e vídeo nos tribunais pode constituir um
importante meio de poupança de tempo e dinheiro, tanto para os próprios como
para as partes. O recurso às TIC para a gestão processual e, ainda, para a
recolha de prova, permite igualmente um aumento dos níveis de eficiência da
administração da justiça, designadamente por via da automatização de tarefas
repetitivas. Por outro lado, o uso da Internet pode facilitar a troca de dados e
informação entre os tribunais e as partes.
Políticas referentes ao volume processual e à carga de trabalho
A CEPEJ alerta para o facto de as variações de volume processual
e de carga de trabalho nos tribunais obrigarem a uma monitorização e
Algumas orientações das instituições comunitárias quanto à gestão processual e à informatização da justiça
63
gestão cuidadas, que tenha em conta os fluxos da procura e a capacidade
de resposta dos tribunais. Neste sentido, entende que o acompanhamento
sistemático poderá ser feito, tanto com recurso à recolha de dados através de
meios automatizados de gestão processual, como por intermédio de sistemas
mais simples e tradicionais, baseados em papel.
Por forma a prever, gerir e reduzir a carga de trabalho, será vantajoso
programar e respeitar calendarizações realistas, exequíveis e eficientes. Para a
previsão e monitorização do volume processual e da carga de trabalho, é
essencial que seja definida a capacidade de trabalho dos recursos
humanos do tribunal e uma distribuição adequada dos recursos materiais
disponíveis. A implementação destas medidas poderá socorrer-se de
diferentes métodos de mensuração processual, de programas informáticos
especializados (Delphi), mapas de tempo, entre muitos outros37.
A flexibilidade constitui um requisito importante, quer na
concretização dos diferentes mecanismos de avaliação do volume
processual e da carga de trabalho, quer nas respostas a desenvolver. A
sua importância prende-se, sobretudo, com a emergência de alterações
significativas, não previstas ou imprevisíveis no volume processual do tribunal,
o que requer a mobilização de instrumentos e medidas correctivas. De entre
aquelas, é de sublinhar a recomendação de criação de task-forces de juízes
e, em ordenamentos jurídicos onde seja mais rígida a interpretação sobre o
princípio do juiz natural, e uma maior flexibilidade das normas processuais
de distribuição dos processos. Outra medida poderá passar pela extensão
das competências dos funcionários judiciais, afectando-os a determinadas
tarefas, prescindindo da intervenção do juiz, ou reduzindo a sua supervisão.
Podem, ainda, ser limitadas as actividades extrajudiciais dos juízes e dos
tribunais, de forma a concentrar os seus recursos na função jurisdicional.
37 Sobre esta questão, cf. para o caso português, Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2002) Os actos e os tempos dos juízes: contributos para a construção de indicadores da distribuição processual nos juízos cíveis” e GIPC (2007) Estudo de Contingentação Processual.
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
65
5. A distribuição da procura no sistema judiciário português:
algumas regras e princípios em debate
Salientamos, neste ponto, as questões principais que emergiram do
trabalho de campo no que respeita à distribuição dos processos, quer entre os
diferentes tribunais, quer internamente pelas diferentes unidades orgânicas e
pelos juízes sobre as quais consideramos importante fazer-se alguma reflexão,
dada a sua directa relação com a temática em análise, e que, no
desenvolvimento de políticas sistémicas e integradas de gestão processual,
consideramos deverem sempre ser tidas em conta.
5.1 A distribuição da procura entre tribunais
A distribuição da procura judiciária pelos diferentes tribunais
começa, a um nível macro, por ser condicionada pelas políticas relativas
a dois aspectos essenciais: mecanismos de resolução alternativa de
conflitos (ADR) e organização judiciária.
A maior ou menor densificação dos meios alternativos de resolução
de conflitos tem influência no desempenho funcional dos tribunais
judiciais. O volume e a natureza dos conflitos serão diferentes num sistema
judicial em que parte substancial da procura é “desviada” para aqueles meios
ou onde tal ocorra menos. Como se sabe, nos últimos anos, Portugal tem vindo
a apostar na criação de soluções “alternativas” ao modelo formal da justiça,
concretizando-as em medidas como a criação de centros de arbitragem,
julgados de paz, conciliação e mediação e desjudicialização de determinados
conflitos. Todos estes ADR, a par dos tribunais judiciais, devem ser
considerados parte de um sistema integrado de resolução de litígios no âmbito
da política pública de justiça, de modo a que as políticas sobre uns não possam
perder de vista os outros.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
66
A organização judiciária: alguns ajustamentos no período de
transição da reforma
As políticas relativas à organização judiciária são, ao nível macro, a
segunda condicionante da distribuição da procura judicial. Desde logo, a
maior ou menor especialização dos tribunais judiciais, quer considerando
as principais áreas do direito (cível, criminal, laboral, administrativo,
família, comercial), quer dentro de cada área (por exemplo, a existência de
especialização para tramitar as acções executivas ou para a propriedade
industrial), irão determinar formas diferentes de distribuir a procura judiciária
num dado país38.
Como se sabe, está em curso um processo de reforma do mapa e
organização judiciária39 que, a título experimental, irá vigorar em três
comarcas-piloto (Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Grande Lisboa Noroeste), até
31 de Agosto de 201040, sujeito a avaliação, facto que em si mesmo merece
aplauso.
Consideramos, contudo, que numa perspectiva de eficiência e eficácia, é
importante, sem colocar em causa os objectivos e o paradigma da reforma,
fazer alguns ajustamentos em matéria de organização judiciária, aliás, na
linha de continuidade do que já se vem fazendo com a extinção de algumas
Varas41. A recente alteração das alçadas dos tribunais42 veio salientar a
38 Sobre a organização judiciária na experiência comparada, cf. o estudo do OPJ “ A Geografia da Justiça” (Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, 2006). Sobre esta matéria (mapa e organização judiciária), o OPJ apresentou, naquele estudo, uma proposta onde se incluem um conjunto de princípios fundamentais que consideramos deverem presidir à reorganização judiciária do sistema judicial português. 39 O actual modelo da organização judiciária encontra-se previsto na Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ) com a Rectificação n.º 7/99, de 16 de Fevereiro, e alterada, sucessivamente, pela Lei n.º 101/99, de 26 de Julho, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08 de Março, pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, pela Lei n.º 42/2005, de 29 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, pelo Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de Janeiro e pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto. Em 12/03/2008, o Governo apresentou a Proposta de Lei n.º 124/2008 que se propõe a alterar o actual mapa e organização judiciária. 40 Nos termos do artigo 183.º, n.º 2 e 3, da Proposta de Lei n.º 124/2008, a nova organização judiciária aplicar-se-á, a título experimental às comarcas piloto até 31 de Agosto de 2010, alargando-se a todo o território nacional a partir de 1 de Setembro de 2010, tendo em atenção o relatório de avaliação do impacto da aplicação da lei às comarcas piloto, a que se refere o artigo 169.º 41 Nos termos do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 250/2007, de 29 de Junho, com este diploma pretendeu-se implementar “com carácter de urgência, um conjunto de medidas que permitem reduzir as pendências para níveis inferiores ao fluxo processual normal, em si bastante
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
67
necessidade de avaliação da actual situação e de eventuais ajustamentos. É
acentuada a percepção dos agentes judiciais, nalguns dos tribunais onde se
realizou trabalho de campo, do decréscimo da procura judiciária. A título de
exemplo, o secretário de um dos tribunais em que fizemos um dos estudos de
caso refere que as varas cíveis deste tribunal “estão-se a extinguir a elas
próprias (…). os processos que entram são poucos (…)”. Actualmente, apenas
entra um a dois processos por secção, por semana”. (Ent. 41)
Acresce que a alteração das regras da competência territorial43, que
“desviou” de algumas comarcas urbanas do litoral, com é o caso da comarca
do Porto, uma parte significativa da litigação vem também requerer essa
avaliação, quer considerando o volume e natureza da litigação, quer a oferta
institucional, em especial no que respeita aos recursos humanos (considerando
o número e categoria) e eventual reajustamento. Há tribunais próximos e, por
vezes, secções do mesmo tribunal, em que a relação volume de processo/
número e categoria de funcionários é bastante desigual. Mais à frente
voltaremos a esta questão.
elevado. Desde há alguns anos que se vem verificando a existência de um significativo défice de recursos humanos em diversos tribunais, especialmente nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, enquanto em outros tribunais destas grandes áreas se verifica situação inversa. Assim sendo, foram encontradas novas soluções que permitem a realização de ajustamentos na organização interna em alguns dos tribunais que permitirão reduzir os recursos humanos em alguns deles afectando-os aos mais carenciados. (…) Porque se trata da instituição de medidas de carácter urgente, importa aproveitar os recursos humanos existentes e proceder a uma melhor redistribuição dos mesmos. Assim, procede-se à extinção de juízos e varas onde a pendência tem sido manifestamente decrescente, para afectar magistrados e funcionários aos tribunais onde a tendência é claramente inversa”. Com estes fundamentos, através deste diploma, procedeu-se, nomeadamente, à criação do Tribunal de Família e Menores de Almada, bem como de novos juízos dos Tribunais de Família e Menores de Cascais, Loures e Vila Franca de Xira e dos Tribunais do Trabalho de Vila Franca de Xira e de Comércio de Lisboa e Vila Nova de Gaia; procedeu-se à conversão dos juízos do tribunal de comarca da Maia e dos juízos do tribunal de comarca da Póvoa do Varzim em juízos de competência especializada criminal e cível; à extinção da 15.ª a 17.ª Vara Cível e da 9.ª Vara Criminal de Lisboa, do 4.º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, os 11.º e 12.º Juízos de Pequena Instância Cível de Lisboa, as 6.ª a 9.ª Varas Cíveis do Porto e o 4.º Juízo Criminal do Porto. 42 Pelo Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, procedeu-se à alteração do artigo 24.º da LOFTJ, estipulando-se que, em matéria cível, a alçada do Tribunal da Relação é de € 30.000 e a dos tribunais de 1.ª instância é de € 5.000. 43 A Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, que procedeu à alteração do Código de Processo Civil, alterou o disposto no artigo 74.º daquele Código, que passou a prever que “a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
68
Aliás, no caso da comarca do Porto, a franca diminuição do volume de
litigação ocorre, não só nas varas cíveis, como também nos juízos cíveis. Para
a diminuição do volume de processos nestes juízos, para além daqueles
factores, os operadores mencionam a cultura e prática da advocacia que,
não querendo estudar e adaptar-se a uma nova forma processual (o regime
processual civil experimental), tentam propor as acções em comarcas limítrofes
“contornando” as regras da competência territorial. Como nos referiu um
escrivão de direito, “alguns advogados só dão aqui entrada das acções que
forçosamente aqui têm que entrar, como as acções de despejo” (Ent. 35). De
acordo com os escrivães entrevistados a procura neste tribunal, em
decorrência de todos aqueles factores, terá diminuído cerca de 40%44.
Contudo, a alteração das alçadas irá, por certo, desencadear novos fluxos de
procura para estes tribunais.
Consideramos, por isso, necessário que neste período de transição
se desenvolva um sistema que permita uma avaliação real e periódica do
volume e da natureza da litigação, bem como dos recursos humanos de
todos os tribunais cíveis.
Um outro ajustamento, que consideramos fundamental, prende-se
com a necessária separação, sobretudo nas comarcas de elevado volume
processual, entre as acções declarativas e as acções executivas. Nalguns
dos tribunais que constituíram os estudos de caso, a litigação era largamente
dominada pelas acções executivas, cerca de 70%, responsáveis pela grande
maioria dos despachos de mero expediente.
Pelas razões que explicámos no nosso estudo sobre a acção
executiva45, consideramos que é uma medida de eficácia, eficiência e de
44 A Direcção-Geral da Política de Justiça tornou público, em Junho de 2007, o relatório preliminar tendente à avaliação e análise do sistema instituído pelo Regime Processual Experimental nos quatro tribunais escolhidos pela Portaria n.º 995/06, de 13 de Setembro. Nesse relatório, conclui-se que “da análise do movimento processual nos tribunais em que se aplica o RPCE para o período compreendido entre Outubro de 2006 e Março de 2007 (…) ocorreu uma diminuição do número de acções de RPCE entradas, o que surge na sequência da diminuição consistente da entrada de acções declarativas observada nos últimos anos, em função da desjudicialização de alguns conflitos e do aumento de possibilidade de intentar acções executivas, sem necessidade de recorrer a acções declarativas”. O mencionado relatório alerta, no entanto, para o facto de “os dados recolhidos sobre os processos entrados e findos ainda não nos permitem concluir, face ao seu curto espaço de vigência, se o RPCE tem já qualquer reflexo ou impacto significativo ao nível das estatísticas judiciais, designadamente da morosidade processual” (2007: 80-81). 45 Cf. Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2007).
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
69
qualidade da justiça, no seu conjunto, que se criem juízos de execução nas
comarcas com elevado volume processual. Separar o processo declarativo do
processo executivo é uma medida de qualidade e racionalidade fundamental.
No nosso entender, nenhum dos ajustamentos acima mencionados
coloca em causa o paradigma da reforma em curso e, numa perspectiva de
qualidade e eficiência da justiça do país, não devem ser considerados
desnecessários em função dela.
5.2 A distribuição dos processos dentro do tribunal
Como vimos no ponto 3.4, a distribuição dos processos pelas diferentes
unidades orgânicas e pelos juízes de um dado tribunal levanta questões várias
e está sujeita a mecanismos diferenciados nos vários sistemas judiciais. Esta
foi, também, uma questão em debate no âmbito do presente estudo.
Confrontam-se dois propósitos: por um lado, o de assegurar que a
distribuição dos processos se faça sem colocar em causa o direito e
garantia das partes a um processo justo e imparcial; por outro, igual
direito a uma justiça eficiente e de qualidade.
Os sistemas judiciais que prevêem, tal como o sistema judicial
português, regras de distribuição, gerais e abstractas, visam, assim, garantir
que a carga de trabalho seja tendencialmente igualitária entre os juízes e a
secção de processos e a aleatoriedade da distribuição como via essencial para
garantia da imparcialidade dos tribunais.
O problema é que as regras gerais e abstractas não respondem a
algumas necessidades excepcionais de qualidade e eficiência. Defendem-
se, por isso, regras que, sem colocar em causa o direito a um processo justo e
imparcial, permitam uma maior flexibilidade da distribuição dos processos
dentro do tribunal. As situações de excepcionalidade podem decorrer da
especial complexidade dos litígios, do aumento do volume de trabalho ou da
impossibilidade temporária dos magistrados titulares do processo. Levantam-
se, assim, questões no que se refere à distribuição dos processos entrados e
quanto aos processos pendentes.
No que se refere à distribuição de processos entrados, a principal
questão coloca-se quanto à distribuição de determinados litígios que, pela sua
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
70
complexidade, decorrente da natureza da litigação, do número ou do tipo de
intervenientes, exijam uma resposta judicial para a qual determinado juiz está
mais bem preparado.
Quanto aos processos pendentes, como acima já referimos, as
situações que requerem especial intervenção podem decorrer da
impossibilidade temporária do magistrado ou da especial complexidade do
caso que se tenha revelado depois da distribuição.
Com este pano de fundo, foram as seguintes as questões em discussão
no âmbito do presente estudo, todas interligadas entre si: a) a insuficiência das
regras de distribuição e as distribuições paralelas; b) as limitações decorrentes
do princípio do juiz natural; e c) o papel do juiz presidente.
A distribuição dos processos: as normas legais e as distribuições
informais
Para que melhor se compreenda toda a problemática em volta desta
questão, vejamos, em traços gerais, as actuais regras de distribuição nos
tribunais judiciais portugueses.
Com a entrada em vigor das alterações ao Código de Processo Civil
(CPC) introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto e com a
publicação da Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro, a distribuição nos
tribunais de primeira instância passou a ser feita diariamente (duas vezes
por dia) e de forma automática. Nos termos da lei, o objectivo da distribuição é
o de “repartir com igualdade o serviço do tribunal”, designando “a secção e a
vara ou o juízo em que o processo há-de correr ou o juiz que há-de exercer as
funções de relator” (cf. artigo 209.º do CPC). Esta operação é realizada por
meios electrónicos que devem “garantir a aleatoriedade no resultado e a
igualdade na distribuição do serviço” (cf. artigo 209.º-A, n.º 1). Estão sujeitos a
distribuição, na 1.ª instância, todos os actos processuais que importem começo
de causa e, em regra, os actos processuais que venham de outro tribunal46.
46 Com excepção das cartas precatórias, mandados, ofícios ou telegramas, para simples citação, notificação ou afixação de editais (cf. artigo 211.º, n.º 1, al. b)). Não dependem de distribuição “as notificações avulsas, as arrecadações, os actos preparatórios, os procedimentos cautelares e quaisquer diligências urgentes feitas antes de começar a causa ou antes da citação do réu” (cf. artigo 212.º CPC).
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
71
Para assegurar o cumprimento dos objectivos acima referidos, a lei de
processo prevê que os processos sejam distribuídos por espécies, prevendo,
para o efeito, 10 espécies distintas47. Assim, distribuídos todos os papéis de
uma determinada espécie (que tenham dado entrada no tribunal desde a última
distribuição), passa-se à distribuição das espécies seguintes. Terminada a
distribuição de todas as espécies de processos, é publicado o resultado por
meio de uma pauta que agora é “disponibilizada electronicamente e por meios
electrónicos em página informática de acesso público (…)” (cf. artigo 219.º do
CPC).
A lei não prevê, assim, com excepção daquela divisão em espécies,
nenhum critério geral e abstracto que mande atender à complexidade do
processo ou à especificidade da matéria em causa.
Afastando-se um pouco das regras processuais civis, a distribuição nos
Tribunais Administrativos e Fiscais já atende, embora dentro de
determinados limites, à natureza do litígio, conferindo, ainda, um papel
importante ao presidente do tribunal. Nos termos do artigo 26.º do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), os critérios a ter em linha de
conta são os seguintes:
� Espécies de processos, classificados segundo critérios a definir
pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais,
sob proposta do presidente do tribunal;
� Carga de trabalho dos juízes e respectiva disponibilidade para o
serviço;
47 Cf. artigo 222.º CPC: “Na distribuição há as seguintes espécies: 1.ª Acções de processo ordinário; 2.ª Acções de processo sumário; 3.ª Acções de processo sumaríssimo e acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos; 4.ª Acções de processo especial; 5.ª Divórcio e separação litigiosos; 6.ª Execuções comuns que, não sendo por custas, multas ou outras quantias contadas, não provenham de acções propostas no tribunal; 7.ª Execuções por custas, multas ou outras quantias contadas, execuções especiais por alimentos e outras execuções que não provenham de acções propostas no tribunal; 8.ª Inventários; 9.ª Processos especiais de insolvência; 10.ª Cartas precatórias ou rogatórias, recursos de conservadores, notários e outros funcionários, reclamações e quaisquer outros papéis não classificados”. De notar que o Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, relativo à aprovação do regime processual experimental, prevê, no artigo 4.º, a criação da 11ª espécie na distribuição, destinada aos papéis entrados ao abrigo daquele regime.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
72
� Tipo de matéria a apreciar, desde que, no tribunal, haja um
mínimo de três juízes afectos à apreciação de cada tipo de
matéria.
Uma outra inovação reside no papel conferido ao Presidente do Tribunal
na aplicação daqueles critérios, determinando a lei que essa aplicação “(…) é
assegurada pelo presidente do tribunal, no respeito pelo princípio da
imparcialidade e do juiz natural”.
Temos, assim, um processo de distribuição que se afasta do
processo de distribuição previsto no Código de Processo Civil em dois
aspectos essenciais: primeiro, porque atende a critérios que vão para
além da aleatoriedade no resultado e da igualdade na distribuição de
serviço; segundo, porque atribui especiais e mais amplos poderes ao
presidente do tribunal48.
Decorre do exposto que as regras de distribuição previstas
actualmente no Código de Processo Civil não incorporam critérios
especialmente dirigidos a assegurar a eficiência e a qualidade da
resposta judicial. Parte-se do pressuposto que esses objectivos são
assegurados pela especialização das jurisdições, quando ela ocorre, e
pela geral qualidade e capacitação de todos os magistrados, que deverão
estar aptos a dirigir e decidir qualquer tipo de litígio.
Para acorrer a situações excepcionais, a lei atribui ao Conselho Superior
da Magistratura competência para “alterar a distribuição de processos nos
tribunais com mais de um juízo, a fim de assegurar a igualação e
operacionalidade dos serviços” e “estabelecer prioridades no processamento
de causas que se encontrem pendentes nos tribunais por período considerado
excessivo, sem prejuízo dos restantes processos de carácter urgente” (alíneas
a) e h) do artigo 149º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ)).
48O disposto nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 36.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) atribui ao presidente de cada Tribunal Central Administrativo, entre outras, as seguintes competências: propor ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais os critérios que devem presidir à distribuição; planear e organizar os recursos humanos do tribunal, assegurando uma equitativa distribuição de processos pelos juízes e o acompanhamento do seu trabalho; e providenciar pela distribuição equitativa dos processos, no caso de alteração do número de juízes.
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
73
Os estudos, as recomendações do Conselho da Europa e a experiência
de alguns sistemas judiciais mostram, contudo, como referimos no ponto 3, a
necessidade de maior flexibilidade das regras de distribuição.
Entre nós, como se verá, o discurso sobre esta questão ainda está muito
vinculado a regras de distribuição rígidas referenciadas à interpretação do
princípio do juiz natural. Mas, mesmo para dar resposta a um dos objectivos
previstos na lei (igual distribuição de carga de trabalho), a prática mostra
a insuficiência dessas regras, levando a outras formas de distribuição
informal.
Podemos verificar, por exemplo, que num dos tribunais onde efectuámos
trabalho de campo (o Tribunal A), os processos relativos a expropriações
são considerados “uma situação particular”. O escrivão de direito explicou-
nos que existe uma ordem interna, dada pelo juiz presidente do tribunal, para
que as expropriações não entrem no sistema de distribuição electrónica.
Nestes casos, a distribuição é feita manualmente, de forma sequencial, pelos
vários juízos.
A justificação avançada prende-se com o facto de as expropriações,
como os demais documentos não classificados, nomeadamente as cartas
precatórias, caírem todos na 10.ª espécie. Dada a complexidade daquele tipo
de acções e o facto de nesse tribunal estarem a surgir com frequência, o juiz
presidente considerou que distribuição aleatória, pela via electrónica,
poderia sobrecarregar determinados juízos. O sistema permite, ou pelo
menos permitia aquando da realização do trabalho de campo, a atribuição
manual de um determinado processo a um juízo concreto. De acordo com o
escrivão de direito, o sistema tem essa permissão, porque “quem concebeu a
aplicação deixou esta possibilidade em aberto porque é do conhecimento de
todos os que trabalham nos tribunais que, tendo em conta as
especificidades de cada tribunal e dos seus juízos, é sempre necessário
fazer pequenos ajustes à distribuição electrónica” (Ent. 57).
O mesmo escrivão considera, com base na sua experiência, que caso se
venha a avançar para uma distribuição automática sem possibilidade de
“manipulação manual” se deveria ponderar a criação de outras espécies ou
sub-espécies de litígios para processos especialmente complexos e que caem
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
74
na 10.ª espécie juntamente com outro tipo de processos com uma
complexidade muito reduzida, como é o caso das cartas precatórias.
Um outro problema que, na sua opinião, mostra a insuficiência das
actuais regras de distribuição na igualização do volume de trabalho está
relacionado com os apensos, que não sendo considerados como processos
novos não vão à distribuição e, consequentemente, não são tidos em conta no
volume de trabalho atribuído a cada juízo.
No Tribunal E, a distribuição separada é assumida em despacho de
provimento afixado na Secção Central, relativamente aos seguintes tipos
de acções: insolvências; recursos de autoridades administrativas (que
estão divididos em três tipos – apoio judiciário; registo de pessoas
colectivas e conservatórias); e expropriações. A distribuição para cada uma
daquelas espécies é feita manualmente, através do seguinte procedimento: a
cada juízo e secção corresponde um papel que, colocado num saco de plástico
com os demais, é “sorteado”. Posteriormente, o processo é atribuído no
sistema informático ao juízo e secção assim seleccionados.
A existência desta distribuição “paralela” e manual é justificada pelo
escrivão de direito da seguinte forma: “o programa olha para eles como se
fosse tudo a mesma coisa. Se calhar o programa devia diferenciar. Já
quando era manual havia esse problema. Havia tribunais que faziam
diferenciação, outros não” (Ent. 37).
Outros casos de distribuições paralela foram relatados, como, por
exemplo, o seguinte:
num caso recente e conhecido, os juízes que intervinham no tribunal colectivo pediram
escusa e o pedido foi-lhes deferido. Verifico que para os substituir se procuraram juízes
disponíveis para formar aquele colectivo em outros tribunais, alguns bem longe do
tribunal em causa e sem integrarem a cadeia legal de substituição. Não deveria ser
assim. A afectação de juízes sem seguir os mecanismos de substituição legal previstos
na lei não respeita o princípio do juiz natural. Se há uma redistribuição ad hoc
podemos estar na mesma situação. A lei prevê mecanismos de substituição legal
para situações de impedimento (P1)
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
75
O discurso dos operadores
Interessou-nos conhecer a opinião sobre esta matéria dos operadores
judiciários49. Confrontam-se, no essencial, três posições, que incorporam
duas leituras diferentes do princípio do juiz natural50: a) aqueles que
tendencialmente consideram suficientes os actuais mecanismos de distribuição
e de gestão processual e que qualquer alteração tem sempre que ser feita
através do CSM; b) os que entendem a necessidade de aprofundar a qualidade
da justiça alargando a possibilidade de especialização, mas através de
unidades de especialização dentro do tribunal (estas duas posições fazem
leituras mais restritas do princípio do juiz natural); c) e aqueles que, colocando
a ênfase na eficiência e qualidade da resposta judicial, fazem uma outra leitura
menos rígida daquele princípio e consideram insuficientes os actuais
mecanismos de distribuição e gestão processual, dando particular atenção às
funções do juiz presidente.
Os depoimentos seguintes enfatizam as atribuições do CSM na
distribuição e gestão processual:
Essa gestão já se faz actualmente, como é o caso da distribuição de megaprocessos
que não têm que ver com as regras instituídas na codificação processual civil. Já se faz
uma distribuição à parte destes processos. Já estamos a avançar em termos de gestão
processual. Já se faz a atribuição de colectivos ao julgamento de determinados casos
quando certo processo pode vir a ter impacto no serviço de determinado tribunal ou
secção. (P5)
49 As opiniões dos magistrados que integraram um dos painéis de discussão podem ser lidas na integra no Anexo A. 50 Princípio que, embora não expressamente referido na CRP, encontra-se garantindo pelo texto do artigo 32.º, n.º 9 da CRP . Segundo anotação ao referido preceito constitucional de Jorge Miranda e Rui Medeiros (2005: 363) este princípio “tem por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo”. Tanto as normas processuais, como as normas orgânicas, devem, assim, prever regras gerais e abstractas que permitam determinar qual o tribunal competente para, em cada caso concreto, apreciar uma determinada causa. Para o efeito, é necessário atender a critérios objectivos que afastem a possibilidade de uma escolha discricionária do tribunal e, em particular, do juiz. Também Gomes Canotilho e Vital Moreira (1997), escrevem que o princípio ora em análise “(…)consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento (...)”. Ainda, de acordo com estes autores, o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais, designadamente: a) exigência de determinabilidade - o que “(…) implica que o juiz (ou juízes) chamados a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (...)”; b) princípio da fixação da competência – ou observância das competências decisórias legalmente atribuídas a esse juiz e à aplicação dos preceitos que, de forma mediata ou imediata, são decisivos para a determinação do juiz da causa ; c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos).
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
76
As questões de paragem de redistribuição existem e são acompanhadas pelo CSM há
muitos anos. Todos os dias, há juízes auxiliares, há juízes em acumulação a substituir
os juízes em dificuldades. Há colectivos ad hoc e tudo isso é legal e actual. (P1)
Eu acho que o que pode vir a responder a isso é a capacidade do Conselho Superior
da Magistratura desenvolver tecnologia de gestão processual adequada. Podendo
apoiar-se no juiz presidente, para identificar, comarca a comarca, as situações que
mereçam uma alteração à distribuição processual, em função da categoria de acções,
da sua complexidade. Acho que o caminho pode ser esse. (P1)
Ainda o mesmo magistrado:
Esta questão do princípio do juiz natural não tem tanto a ver com a independência do
juiz, é uma garantia para as partes. O juiz será independente, as partes é que não
ficam garantidas se a sua designação não for predeterminada. A questão tem a ver
com a imparcialidade, com a imparcialidade objectiva de todo o tribunal, de eu saber
que o juiz vai actuar de uma forma imparcial não pondo em causa, por causa disso, a
decisão. Penso que poderia ser o juiz presidente a propor ao Conselho os critérios
predeterminados de distribuição”. (P1)
Como já referimos, um segundo grupo considera que os actuais
mecanismos de distribuição e gestão dificultam a atribuição de processos
mais complexos a juízes tecnicamente mais preparados, afectando,
assim, a eficiência e a qualidade da justiça. Contudo, esta necessidade
confronta-se com a leitura que fazem do princípio do juiz natural.
Para ultrapassarem a tensão entre aquele princípio e a eficiência e
qualidade defendem o aprofundamento de unidades de especialização
dentro do tribunal, ainda que especializado, isto é, uma segmentação da
especialização. Assim, de acordo com esta perspectiva, sempre que se
evidenciasse que o volume de trabalho de determinado tipo de litígio se
intensificava ou se considerasse de especial complexidade a justificar alguma
especialização, seria criada, dentro do tribunal, uma secção especializada para
aqueles litígios.
As regras de especialização dos tribunais podem ser mais ou menos ricas, podem
obedecer a critérios de competência, de matéria ou direito substantivo e pode ter a ver
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
77
com espécies de processo, valor, tudo isso. Obviamente que a criação de tribunais com
determinada competência leva a determinadas regras de distribuição, isto é, os
processos em vez de serem distribuídos no tribunal de competência genérica, são
distribuídos de acordo com a matéria, valor ou com a espécie processual. A partir do
momento em que o processo entra no tribunal, que é distribuído de acordo com as tais
regras de equilíbrio absoluto, é distribuído ao juiz A ou B, colocado em determinadas
secções, independentemente das características do processo. Depois, dentro do
tribunal, pode haver uma gestão do tribunal que atribua determinadas espécies de
processo ao juiz A e ao C. O que podemos questionar é se esta segunda situação é
possível ou não. Por razões de gestão, é possível ou não, dentro do mesmo tribunal,
que o processo – estando já atribuído por competência especializada e já depois de
distribuído – seja atribuído ao juiz A, B ou C por via das regras de gestão do tribunal e
processual?
Eu penso que relativamente às regras da competência especializada não existe
qualquer travão legal. Quanto mais especialização houver e adequada com o tipo de
litigância, melhores respostas relativamente à procura teremos. Temos uma oferta mais
qualificada. Quanto às regras da distribuição, eu penso que, pode existir alguma
flexibilidade mas sempre com critérios predeterminados; mas aí as coisas já podem ser
mais sensíveis. (...) O que se pode dizer é que em determinado tribunal, por razões de
gestão processual, os processos que entrarem a partir de agora com determinada
característica de litígio, objectiva, predeterminada, passa a ser julgado, apreciado por
uma secção onde serão colocados juízes com a competência A, X, Y, Z, para conhecer
determinado litígio. (…) Não pode é ter só um. (P5)
Penso que só é possível fazer como escolha a secção, não podemos chegar à
subjectivação total de escolher em razão da qualificação de um juiz e não pode ficar a
ideia de que se pode escolher o juiz. Não se pode escolher o juiz. (P3)
Um magistrado, dando ênfase às potencialidades da figura do juiz
presidente considera que:
pode existir uma regra que diga, não obstante a estrutura de um determinado tribunal
estar assente em regras de colocação e distribuição de processos, o juiz presidente de
acordo com o CSM pode criar uma secção para além, no sentido de acorrer a uma
situação temporal, isto é, para dar resposta a mudanças de litigâncias conjunturais. O
que leva a que não seja necessário criar um diploma nesse sentido. (P6)
Para a terceira posição, o que tem que ser garantido ao cidadão é
uma justiça independente e imparcial, mas esta garantia não tem de
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
78
passar por uma interpretação restritiva do princípio do juiz natural. Esta
posição confere ao juiz presidente do Tribunal um papel fulcral na identificação
de situações carentes de soluções específicas para determinada comarca.
Os dois depoimentos que a seguir se transcrevem sintetizam esta
posição.
É necessário repensar o papel do juiz natural, é um princípio claramente respeitável,
com uma dimensão constitucional, mas andando sempre à volta de uma reforma. É
necessário deixar de entender a distribuição de processos como uma espécie de
debate consagrado que vai por em causa a independência aquele princípio. Há
várias formas concretas do juiz fazer a distribuição dos processos de acordo com
vários critérios qualitativos, até de acordo com a própria especialização do processo,
sem pôr em causa o principio do juiz natural de uma forma ampla (...) se tivermos 4
juízes num tribunal podemos arranjar critérios em concreto para naquele tribunal fazer
a distribuição (…) o tribunal pode arranjar mecanismos que não violem o princípio
do juiz natural e que permitam que aqueles 4 juízes trabalhem de forma mais
eficiente nos processos a resolver. (…) Tem de haver a possibilidade de dar poder
ao juiz presidente através de garantias de que não há manipulação na forma de
distribuição. É preciso dar esse salto. (P2)
Em cada circunscrição o juiz presidente deverá poder aproveitar a qualidade,
aproveitar a especialidade, desde que pela existência prévia de alguns
parâmetros que se possa controlar. Os parâmetros de especialização devem ser
predefinidos e a distribuição não pode ser totalmente subjectiva, mas ser, ainda assim,
uma distribuição de especialidade. Alarga-se a especialidade dos tribunais à
especialização dos juízes, segundo regras de uniformidade e transparência.
Garante-se que o acesso possa ser de maior qualidade, mas um acesso
equilibrado, igual para todos. Todos têm acesso a essa qualidade. É de admitir
essa possibilidade e creio que o que agora se apresenta no que respeita às
competências do juiz presidente vai nesse caminho. (P3)
Desde que se salvaguardem as questões legais do juiz natural, concordo que se
encaminhem certos processos para um magistrado particularmente conhecedor e
experiente com essa temática. (Ent. 19)
Com uma posição mais marcada, um magistrado referiu que:
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
79
a lei deveria possibilitar ao juiz presidente uma total liberdade de gestão do
processo, mesmo quanto à personalização do juiz para resolver determinado
processo, evitando no entanto sempre violações do princípio do juiz natural. Ou seja,
não vejo qualquer problema que permita dizer: a partir de agora todos processos
de injunção (e não aquele, em concreto) vão ser julgados pelo juiz A que está
disponível para isso, tem capacidade para o fazer, tem conhecimentos técnicos
diferenciados face aos restantes. Julgo que aqui não há problema nenhum de
violação do princípio do juiz natural, desde que se garantam regras gerais, mesmo que
estabelecidas pelo juiz presidente, não assentes em princípios arbitrários. (P2)
Está, portanto, aqui em causa a possibilidade de distribuição de
determinado tipo de acções a um determinado juiz especialmente
habilitado para a resolução das mesmas. Esta foi uma questão que, em
geral, gerou bastantes reticências, defendendo os entrevistados, na sua
maioria, a necessidade de criação de uma secção especializada para se
afectarem um determinado juiz processos de matéria específica. A razão de ser
desta posição funda-se, no essencial, no receio de se perder a imparcialidade
do tribunal.
Fica sempre uma suspeição de parcialidade. Mas podem-se criar secções próprias
para a tramitação de certas matérias, que acabam por ser tribunais especializados.
(Ent. 1)
Encaminhar certos processos apenas para um juiz implica uma quebra da rigidez. É
essa rigidez que dá segurança à justiça. É preferível a criação de competências
especializadas. (Ent. 20)
O papel do juiz presidente na distribuição e gestão processual
Actualmente, a presidência do tribunal, para efeitos administrativos, é,
atribuída ao respectivo juiz de direito quando apenas exista um juiz no tribunal.
Nos tribunais em que haja mais de um juiz de direito, a presidência compete a
cada juiz titular, começando pelo da 1.ª vara ou juízo ou, sendo várias varas ou
juízos, pelo juiz titular da 1.ª secção, seguindo-se, escalonadamente, a ordem
das demais. O exercício destas funções é atribuído por períodos bianuais (cf.
artigo 74.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais
(LOFTJ)). Não obstante, sempre que estiverem instalados no mesmo edifício
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
80
diversos tribunais, a presidência, para efeitos de administração geral do
tribunal, é atribuída ao mais antigo dos respectivos presidentes. As
competências administrativas do presidente do tribunal encontram-se previstas
no artigo 75.º da LOFTJ, sendo-lhe expressamente atribuídas as seguintes:
orientar superiormente os serviços das secretarias judiciais; dar posse ao
secretário judicial; exercer a acção disciplinar sobre os funcionários de justiça
relativamente às penas de gravidade inferior à de multa; e elaborar anualmente
um relatório sobre o estado dos serviços.
Segundo o Novo Modelo de Organização Judiciária, constante da
proposta do Governo avançada pelo Ministério da Justiça em Dezembro de
2007, prevê-se a implementação de um Novo Modelo de Gestão dos Tribunais.
De acordo com esta proposta, o novo modelo de organização territorial e de
gestão dos tribunais a implementar caracteriza-se, no que respeita, em
concreto, à gestão dos tribunais, pela criação de novas figuras como o
Presidente do Tribunal, o Administrador do Tribunal e o Conselho Consultivo.
A figura do Presidente foi pensada para cada tribunal de comarca,
devendo o mesmo ser nomeado pelo CSM. No desempenho das funções que
lhe serão atribuídas será coadjuvado por um Administrador e por um Conselho
Consultivo. O que está em causa é “construir um modelo de divisão e
organização judiciária com capacidade para atender as especiais necessidades
que se venham a detectar em função de uma maior eficiência da resposta
judicial, tendo sido por isso tidos em consideração no novo diploma factores
como: - Racionalização e simplificação da resposta judicial em cada
circunscrição; - Reforço do modelo de especialização; - Criação de
mecanismos eficazes para a gestão dos tribunais, dotando-os de mais
autonomia; - Criação de instrumentos que possibilitem maior flexibilização da
organização dos tribunais e distribuição do volume processual” (Ministério da
Justiça, 2007).
De acordo com os artigos 84.º e 85.º da Proposta de Lei 124/2008, de 12
de Março, “em cada tribunal de comarca existe um presidente, o qual é
coadjuvado por um administrador judiciário”, nomeado pelo Conselho Superior
da Magistratura, pelo período de três anos, de entre juízes habilitados com
curso de formação específica que cumpram um determinado conjunto de
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
81
requisitos, nomeadamente, exercício de funções efectivas como Juízes
Desembargadores.
As competências a atribuir a esta nova figura são vastas e constam do
artigo 87.º da referida proposta de lei, dividindo-se em três espécies distintas:
representação e direcção51, de gestão processual52, administrativas53 e
funcionais54.
51 No âmbito destas atribuições compete ao presidente do tribunal: a) Representar e dirigir o tribunal; b) Acompanhar a realização dos objectivos fixados para os serviços do tribunal por parte dos funcionários; c) Promover a realização de reuniões de planeamento e de avaliação dos resultados do tribunal, com a participação dos juízes e funcionários; d) Adoptar ou propor às entidades competentes medidas, nomeadamente, de desburocratização, simplificação de procedimentos, utilização das tecnologias de informação e transparência do sistema de justiça; e) Ser ouvido pelo Conselho Superior da Magistratura, sempre que seja ponderada a realização de sindicâncias relativamente aos juízos da comarca; f) Ser ouvido pelo Conselho dos Oficiais de Justiça, sempre que seja ponderada a realização de inspecções extraordinárias quanto aos funcionários da comarca ou de sindicâncias relativamente às secretarias da comarca; e g) Elaborar, para apresentação ao Conselho Superior da Magistratura, um relatório semestral sobre o estado dos serviços e a qualidade da resposta, dando conhecimento do mesmo à Procuradoria-Geral da República e à Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ). (cf. artigo 87.º, n.º 2). 52 Ao presidente do tribunal, no exercício das suas competências de gestão processual, compete, sem prejuízo do poder jurisdicional de cada juiz: a) Implementar métodos de trabalho e objectivos mensuráveis para cada unidade orgânica, sem prejuízo das competências e atribuições nessa matéria por parte do Conselho Superior da Magistratura, designadamente, na fixação dos indicadores do volume processual adequado; b) Acompanhar e avaliar a actividade do tribunal, nomeadamente a qualidade do serviço de justiça prestado aos cidadãos; c) Acompanhar o movimento processual do tribunal, identificando, designadamente, os processos que estão pendentes por tempo considerado excessivo ou que não são resolvidos em prazo considerado razoável, informando o Conselho Superior da Magistratura e propondo as medidas que se justifiquem; d) Promover a aplicação de medidas de simplificação e agilização processuais; e) Propor ao Conselho Superior de Magistratura a especialização de secções nos juízos; f) Propor ao Conselho Superior de Magistratura a reafectação dos juízes no âmbito da comarca, tendo em vista uma distribuição racional e eficiente do serviço; g) Proceder à reafectação de funcionários dentro da respectiva comarca e nos limites legalmente definidos; e h) Solicitar o suprimento de necessidades de resposta adicional, nomeadamente através do recurso ao quadro complementar de juízes (cf. artigo 87.º, n.º 4). 53 No exercício das competências administrativas, o presidente do tribunal tem as seguintes competências: a) Elaborar o projecto de orçamento; b) Propor as alterações orçamentais consideradas adequadas; c) Participar na concepção e execução das medidas de organização e modernização dos tribunais; d) Planear as necessidades de recursos humanos; e) Gerir a utilização dos espaços do tribunal, designadamente dos espaços de utilização comum, incluindo as salas de audiência; f) Assegurar a existência de condições de acessibilidade aos serviços do tribunal e a manutenção da qualidade e segurança dos espaços existentes; g) Regular a utilização de parques ou lugares privativos de estacionamento de veículos; h) Providenciar, em colaboração com os serviços competentes do Ministério da Justiça, pela correcta utilização, manutenção e conservação dos equipamentos afectos aos respectivos serviços; e i) Providenciar, em colaboração com os serviços competentes do Ministério da Justiça, pela conservação das instalações, dos bens e equipamentos comuns, bem como tomar ou propor medidas para a sua racional utilização (cf. artigo 87.º, n.º 5). 54 As competências funcionais do presidente do tribunal são as seguintes: a) Dar posse aos juízes e funcionários; b) Elaborar os mapas e turnos de férias dos juízes e submetê-los a aprovação do Conselho Superior da Magistratura; c) Autorizar o gozo de férias dos funcionários e aprovar os respectivos mapas anuais; d) Exercer a acção disciplinar sobre os funcionários em serviço no tribunal, relativamente a pena de gravidade inferior à de multa e, nos restantes
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
82
Independentemente daquelas três posições de fundo supra identificadas,
as posições relativas ao papel do juiz presidente na distribuição e gestão
processual são díspares55. Comum à maioria dos entrevistados é, não
obstante, a posição segundo a qual ao juiz presidente compete a importante
tarefa de identificar situações patológicas no seu tribunal:
Penso que ao juiz presidente podem ser conferidas competências em matéria de
gestão processual. Por exemplo, podendo avaliar quando há sobrecarga de um colega.
No fundo, fazendo uma melhor e mais racional distribuição do serviço. É a forma mais
certa de fazer distribuir o serviço. Tem de haver um responsável pela gestão eficaz do
serviço. O sistema que temos não tem tido bons resultados. (Ent. 29)
De uma forma geral, identificámos três posições quanto ao papel do
juiz presidente na distribuição processual dos processos entrados e na
redistribuição dos pendentes: para uns, tal possibilidade deve estar
absolutamente vedada; para outros, essas competências devem ser exercidas
conjuntamente com o Conselho Superior da Magistratura; e, para outros ainda,
a possibilidade de o juiz presidente definir critérios de distribuição é claramente
defendida.
Expressivo da primeira posição são os depoimentos que se transcrevem:
Isso é perigosíssimo. Falamos de um processo abstracto a que ninguém liga, mas
depois é um processo onde está o Sr. A e o Sr. B e já não é a mesma coisa. (Ent. 46)
Pode facilmente escorregar para a arbitrariedade. (Ent. 47)
casos, instaurar processo disciplinar, se a infracção ocorrer no respectivo tribunal; e e) Nomear um juiz substituto, em caso de impedimento do substituto legal, nos termos do disposto no artigo 76.º (cf. artigo 87.º, n.º 3). 55 Uma das questões que mobilizou o debate dos operadores, durante o trabalho de campo, em torno do juiz presidente foi a do perfil da pessoa que deveria ocupar tais funções, nomeadamente, se a presidência de um tribunal deveria ser entregue a um par ou a um juiz de um tribunal superior. A posição dos operadores não é convergente. Para alguns, só poderá ser um par; enquanto para outros, um juiz de um tribunal superior. Mais consensual é a necessidade de um perfil legitimado pelos seus pares. Um dos magistrados entrevistados sintetiza desta forma as objecções levantadas:
Mas, as pessoas têm opiniões diferentes sobre, por exemplo, quem deve ser o juiz presidente, como é que devem ser ou não eleitos os Juízes Presidentes, critérios que devem presidir à sua escolha. Tudo isso é muito relevante. Mesmo que o aceitem, é legítimo que haja muitas reticências consoante depois a concretização dos diversos pontos que levaram à sua escolha… (P3)
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
83
Para outros magistrados entrevistados, no entanto, admitindo as
competências em matéria de distribuição processual do juiz presidente,
consideram que as mesmas deveriam ser exercidas conjuntamente com o
Conselho Superior da Magistratura, devido à proximidade com o núcleo
essencial da função jurisdicional.
O que eu defendo é que a nível da gestão processual tem de haver uma articulação
muito próxima. Seria bom que, relativamente a outras dimensões, o juiz presidente
tenha mais autonomia, relativamente à gestão e de distribuição de processos tem que
haver articulação com o Conselho Superior da Magistratura. Estamos muito próximos
do núcleo da função jurisdicional. Estamos a entrar no gabinete do juiz e a dizer que
tudo vai se desenvolver desta forma quanto a este processo e o sentido da decisão
talvez fique condicionado. Relativamente a outras matérias pode-se dar mais
competência ao juiz presidente, em relação à gestão processual, sobretudo a nível de
distribuição de processos, deve haver uma articulação maior com o CSM. (P5)
Acrescentando que:
não posso admitir que juiz presidente, sozinho, defina mecanismos de distribuição do
processo. Até por razões que têm a ver com a legitimação interna. (P5)
Há, no entanto, magistrados com posições mais radicais quanto à
margem de liberdade de o juiz presidente distribuir os processos pelos vários
magistrados:
se houver colegas que gostam particularmente de algumas matérias não vejo como
não pode o juiz presidente atribuir o processo. (Ent. 49)
A possibilidade de o juiz presidente proceder à redistribuição dos
processos, tendo em vista objectivos de celeridade e eficiência, gera ainda
maior apreensão por parte dos magistrados entrevistados.
É uma questão me merece muitas reservas. A única solução que consigo vislumbrar é
que outro colega venha, em acumulação de funções, ajudar-me a tramitar os meus
processos. Mais do que isso não consigo conceder. Cada um de nós tem a sua forma
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
84
de trabalhar e não é benéfico que mude o juiz de um processo. O Conselho Superior
da Magistratura deve dar uma ordem a um juiz para que este vá ajudar um outro em
determinadas situações. Deve vir um juiz substituir-me durante o período de tempo que
eu estiver ausente. Quando regressar os meus processos voltam para mim. (Ent. 39)
Esta magistrada não concorda, inclusive, com a possibilidade de se
proceder à paragem da distribuição em situações excepcionais, como por
exemplo, ausência do magistrado:
também não considero que, por exemplo, durante o tempo em que um juiz esteja
ausente por um período de tempo, mesmo que à partida se sabe longo, se possa parar
a distribuição para a sua secção. (…) Para poder aceitar uma outra solução teria que
ter garantias fortes de não discricionariedade o que considero muito complicado. (Ent.
39)
Esta não é, no entanto, a posição de outros magistrados, no que
respeita à possibilidade de paragem de distribuição, que, de todo o modo,
advertem para a importância e dificuldade de definição de critérios:
a dificuldade reside em aferir a complexidade dos processos, quais os critérios
indiciadores de complexidade, entendendo que esses critérios teriam que ser
palpáveis, objectivos, de forma a interromper a distribuição para um juiz. (Ent. 1)
No caso de um magistrado ter processos muito complexos, esse colega devia ficar
dispensado de distribuição durante algum tempo. Porém, é difícil classificar os
processos como muito complexos (processos com mais de 5 réus, por exemplo). A
complexidade tem de ser apurada caso a caso. Essa tarefa de identificar os
processos complexos devia ficar a cargo do juiz presidente. (Ent. 20)
Outra competência do juiz presidente que foi avançada pelos
magistrados entrevistados, que diz directamente respeito à gestão processual,
é a possibilidade de estabelecer alguma uniformidade de procedimentos dentro
do próprio tribunal, como, por exemplo, alertando para a possibilidade de
apensação de acções, promovendo reuniões entre magistrados para discussão
de uma determinada matéria recorrente naquele tribunal e objecto de decisões
divergentes.
A distribuição da procura no sistema judiciário português: algumas regras e princípios em debate
85
Alguns magistrados consideraram particularmente proveitosa a função
dinamizadora do juiz presidente de fomentar o diálogo entre os magistrados
de um tribunal, criando espaços, com dimensão institucional, de debate.
Neste contexto, merece reflexão a experiência dos tribunais
administrativos e fiscais, assim narrada por um dos magistrados entrevistados.
Eu já tive essa experiência nos TAs. Tínhamos quinzenalmente reuniões no TA do
Porto, agendadas pelo juiz presidente com o colectivo de 17 juízes nas quais estava
presente também um professor, cuja presença se revelou de grande utilidade para os
juízes e para aquele professor, onde eram colocadas várias questões práticas. A
preparação destes magistrados para lidar com estas matérias não era ainda muito
sólida, tínhamos sido recentemente formados e o direito administrativo acabara de
passar por alterações muito profundas, daí que sentíssemos como muito úteis as
reuniões onde as várias questões eram discutidas. Por vezes surgiam questões com
que um colega já se tinha deparado e que ainda não se nos tinham colocado, como por
exemplo, problemas sobre quem eram os juízes competentes para certos processos,
designadamente, para os processos executivos das decisões proferidas pelos tribunais
administrativos liquidatários, se eram os novos ou os juízes antigos. Essas questões e
outras eram debatidas. Sobre a questão referida havia diferentes entendimentos, uns
sustentavam que as mesmas eram da competência do juiz liquidatário; outros diziam
que aceitavam que as execuções fossem tramitadas pelo juiz novo. Gerou-se uma
discussão útil e no Porto passou a haver uma concordância num determinado sentido.
(P4)
Esta função de articulação do juiz presidente é particularmente
enfatizada no depoimento que a seguir transcrevemos:
em relação ao juiz presidente, eu penso que podemos ir um bocadinho mais longe.
Determinar ao juiz uma certa competência no sentido de observar determinadas
questões processuais que se levantam, que podem não estar uniformizadas.
Apontámos o caso da apensação das acções. No Palácio da Justiça em Lisboa tivemos
a necessidade de juntar os juízes para saber se concordávamos sobre determinado
provimento ou deliberação. Essa decisão é tomada, os advogados podem consultar o
livro de provimentos e saber que a entrada de processos se faz segundo uma certa
regulamentação. Relativamente à acção executiva, quando ela entrou, e não era só da
competência dos juízes de execução, eu tive múltiplos problemas quanto aos
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
86
requerimentos que entravam dos solicitadores de execução. Pode-se criar tramitações
coincidentes e procedimentos uniformes. O juiz presidente tendo, nas suas
competências de representação do CSM, competência para o andamento dos
processos, deve-se prever também nesse âmbito a competência de promover a
reunião entre todos os juízes no sentido de criar procedimentos uniformes ou
coincidentes relativamente a determinadas questões de índole processual.
(…) não há outra fórmula de adequar o funcionamento eficaz do sistema e a
organização do sistema com a dimensão profissional, que tem que ser aqui garantida,
senão através da figura do juiz presidente. Ele é a pedra de toque da gestão do
sistema. Ele faz a intercepção entre a dimensão profissional e a burocrática. Não podia
ser senão um juiz a presidir a um tribunal, porque parte dele a garantia de que os
mecanismos de organização e gestão do sistema não vão contender com a função
jurisdicional. (P5)
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
87
6. A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação
processual mais eficaz e com melhor qualidade
6.1 A estrutura e os recursos dos tribunais como factores de eficácia da
gestão processual
Como temos vindo a referir, para uma administração da justiça com
eficácia, qualidade e eficiência concorrem diversos factores que se
interrelacionam e provocam impacto – maior ou menor – na tramitação dos
processos. O trabalho empírico permitiu-nos identificar, tanto factores cujo
impacto na qualidade, eficiência e eficácia da tramitação processual é
difuso, quanto factores cuja interferência directa na gestão do processo
acaba por convertê-los em factores de optimização – se bem geridos, em
número suficiente e em bom estado de boa utilização – ou em factores de
perturbação – se sua gestão, quantidade, utilização e estado de conservação
forem precários ou insuficientes.
De seguida, apresentamos os resultados do trabalho de campo dando
uma ênfase especial aos factores que, no nosso entender, consideramos
poderem ter repercussão na optimização ou na perturbação da gestão de
processos. Dado o impacto directo que esses factores podem provocar na
gestão do volume processual, a sua eficácia, qualidade e eficiência reflectem-
se na eficácia, qualidade e eficiência da tramitação do caso concreto.
Abordaremos duas dimensões principais: a dimensão material e a
dimensão humana. Esses dois eixos de análise serão apresentados no
contexto de funcionamento de cada tribunal observado e nas relações
dinâmicas existentes entre si e entre as diferentes unidades funcionais dos
órgãos judiciais analisados.
6.1.1 Os espaços físicos
Os diferentes tribunais observados incorporam distintas
concepções, quer arquitectónicas, quer da forma de aproveitamento do
espaço físico. Embora não haja uma explicação única para essas diferenças,
elas assentam, sobretudo, na própria diversidade das instalações físicas dos
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
88
tribunais existentes pelo país, onde – para citar alguns dos exemplos
recolhidos nos estudos de caso – edifícios modernos recém-construídos
convivem com edifícios, cuja construção data das décadas de 50/60 do século
passado e onde alguns órgãos judicias estão instalados não em edifícios
construídos especificamente para o efeito, mas em edifícios de escritórios,
partilhando espaço com outros serviços privados.
No curso do trabalho empírico foi possível detectar tanto a boa
qualidade de algumas instalações, como seja luz natural, salas amplas,
corredores espaçosos, etc. – em especial nos edifícios de construção recente –
quanto a deficiência crónica de outras, designadamente falta de luz, pintura
das paredes deteriorada, janelas que não se abrem, aspecto degradado e
insalubre, WCs sem condições, falta de instalações para armazenar objectos
de processos-crime e falta de espaço no arquivo56.
Numa primeira análise, as condições físicas dos edifícios em que estão
alojados os juízos e varas repercutem-se na gestão processual a um nível que
poderíamos denominar contextual, isto é, têm um impacto indirecto na medida
em que as condições mais ou menos deficientes do órgão judicial podem
afectar a motivação dos funcionários e o sentimento de dignidade que têm
quanto ao exercício da função judicial. Exemplificando, num dos estudos de
caso (tribunal E) foi evidente nas entrevistas realizadas o sentimento dos
funcionários de que as instalações eram “confusas” e “indignas para albergar
um tribunal”.
Mas, numa análise mais detalhada, é possível verificar situações em
que as condições das instalações do tribunal constituem obstáculos
directos a uma eficaz tramitação processual. Esse é o caso, por exemplo,
da adaptação necessária dos espaços físicos à introdução das novas
tecnologias, bem como a maior ou menor racionalidade e ou dispersão na
localização dos serviços e dos gabinetes de juízes e dos secretários judiciais57.
56 Em um dos estudos de caso, devido à falta de espaço no arquivo, os processos são acomodados em caixas cedidas pelos CTT, ocupando os espaços de circulação dos funcionários e até do público. 57 Um outro exemplo de interferência das condições do espaço físico na eficaz tramitação processual é o número de salas de audiência disponíveis e as rotinas para a sua utilização. Esse tema será abordado mais adiante na análise da gestão da agenda do juiz e seu papel no case management.
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
89
Quanto à adaptação exigida pela introdução das novas tecnologias, a
questão coloca-se, sobretudo, em edifícios onde o funcionamento de juízos e
varas foi concebido para uma realidade que não contemplava a quantidade de
cabos e aparelhos que o actual processo de modernização idealizado para os
tribunais implica. Num dos casos observados no trabalho empírico (tribunal E),
o edifício do tribunal foi construído numa época em que não se pensava na
utilização de computadores. Por essa razão, o espaço físico sofreu ligeiras
adaptações para que os meios tecnológicos fossem ali introduzidos, resultando
na existência de cabos pelo chão, calhas com cabos em locais onde é fácil
pisá-las e servidores em vãos de escadas. Foi-nos relatado, por exemplo, que
um advogado ao colocar um pé em cima de uma calha instalada junto a um
degrau numa sala de audiências provocou uma avaria no sistema informático.
No que se refere à distribuição do espaço com a ocupação de salas e
gabinetes, resulta do trabalho empírico a importância de uma organização
interna e de adaptação dos espaços físicos que não esteja, tendencialmente,
baseada em critérios casuísticos ou subjectivos, devendo, observadas as
particularidades de cada caso, orientar-se por princípios e critérios
racionais e de optimização dos espaços e do trabalho. Caso contrário, o
projecto de modernização e eficiência dos tribunais, em vez de superar
obstáculos, pode criar outras dificuldades em virtude do anacronismo das
instalações ou da deficiente adaptação e organização das condições físicas.
Retoma-se aqui o exemplo do esforço de modernização da justiça no País
Basco, onde os propósitos de desmaterialização do processo e de criação de
um novo modelo de oficina judicial levaram necessariamente à reconfiguração
dos espaços físicos de acordo com princípios e critérios previamente definidos.
6.1.2 Os recursos materiais
Tal como a reflexão sobre os espaços físicos, a discussão sobre os
recursos materiais como possíveis obstáculos à gestão processual também é
acentuada quando confrontada com as necessidades colocadas pelas
inovações tecnológicas. Nos casos observados, num quadro de recursos
materiais aproximadamente similar – número de computadores, impressoras,
fotocopiadoras, digitalizadores, etc. – os recursos materiais podem emergir
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
90
como obstáculos que podem interferir no curso da tramitação processual em
duas situações principais: (1) como deficiência real, (2) como deficiência
pressentida face às exigências das novas tecnologias.
No curso do trabalho de campo foram detectadas e apontadas faltas e
falhas nos equipamentos utilizados pelos funcionários, nomeadamente, no
número de impressoras, no número de fotocopiadoras e nos equipamentos de
gravação e de vídeo-conferência. A título de exemplo, num dos estudos de
caso observados, não havendo fotocopiadoras no piso onde estava uma das
unidades orgânicas do juízo, os funcionários, sempre que necessitavam fazer
fotocópias tinham que se deslocar ao piso superior.
Noutro tribunal (estudo de caso C), para todos os juízos cíveis (instalados
no mesmo andar) existia em funcionamento apenas uma fotocopiadora,
implicando que, muitas vezes, os funcionários tivessem que “fazer fila” para
esperar que outros colegas terminassem de usar a máquina. Foi-nos relatado
que a mesma fotocopiadora avaria com frequência e que, quando tal acontece,
os funcionários têm que utilizar uma outra máquina situada no piso acima e
que, por não haver elevador no edifício, os funcionários têm que transportar
pilhas de processos pelas escadas. Por isso, quando indagados sobre as
dificuldades enfrentadas na sua rotina de trabalho, muitos dos funcionários
apontaram, de imediato, as carências decorrentes da falta de material.
As deficiências dos recursos materiais também são sentidas pelos
funcionários quando confrontados com as necessidades trazidas pela
introdução das novas tecnologias. Em muitas entrevistas evidenciou-se a
preocupação com a capacidade dos computadores e a agilidade do
sistema informático para trabalhar com uma sobrecarga de aplicações.
Nesse âmbito, é exemplificativo o depoimento de uma das juízas entrevistadas
que, por considerar a capacidade do computador insuficiente para albergar o
CITIUS, adquiriu a expensas próprias mais memória para o equipamento bem
como, para potenciar o aproveitamento que teria do programa, também
adquiriu um monitor maior que lhe permitisse visualizar com amplitude as
janelas do programa58 (Ent. 17).
58 A iniciativa da juíza é corroborada pelo depoimento de outros colegas entrevistados que, muito embora não tenham feito um investimento pessoal para viabilizar a utilização do CITIUS, também apontaram problemas de execução do programa, nomeadamente, a lentidão do
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
91
Ainda no âmbito das carências materiais face às inovações tecnológicas,
muitos funcionários acusaram a falta de digitalizadores em número suficiente
para realizar o objectivo de desmaterialização do processo, bem como
deficiências nos digitalizadores que o tribunal dispõe, nomeadamente o facto
de não estarem ligados em rede e de não procederem automaticamente à
digitalização frente e verso de um documento. Refira-se, aliás, que, como
adiante se verá, este problema tem reflexos, designadamente, na tramitação
das cartas precatórias.
Como se vê, os recursos materiais podem afectar a gestão
processual, não só em sua carência ou deficiência, como também quando
essas carências e deficiências abalam a fiabilidade desses recursos como
instrumentos de trabalho. Esta segunda situação ocorre principalmente no
contexto de aplicação das novas tecnologias em que se evidencia no discurso
de muitos funcionários a desconfiança de que a qualidade dos equipamentos
pode ser o maior obstáculo ao projecto de desmaterialização.
Por outro lado, as críticas às carências/deficiências materiais podem
muitas vezes actuar como um “escudo” que impede os funcionários de
reflectirem sobre as suas próprias debilidades enquanto utilizadores dos
sistemas informáticos. Nesse sentido, é de referir o depoimento do técnico
em informática de um dos tribunais observados. De acordo com este
especialista, seria necessário que os utilizadores tivessem mais conhecimentos
em termos de gestão informática para não cometerem determinadas
“atrocidades”, sobrecarregando a rede com inúmeros programas abertos em
simultâneo (HABILUS, Outlook, navegador de internet). Referiu, ainda, que
quando os técnicos de informática são chamados para resolver os problemas
que surgem e dão determinadas sugestões ou fazem determinados reparos, os
utilizadores, por regra, mostram alguma resistência (Ent. 59).
Quando se fala da introdução de novas tecnologias, da alteração de
métodos de trabalho e das resistências que daí derivam, a discussão acerca da
utilização dos recursos materiais não pode ser levada a cabo se a dimensão
sistema e a difícil visualização das janelas do programa. Essas dificuldades também decorrem do facto de muitos juízes estarem habituados à visualização do programa Word, de forma que também foi recorrente nas entrevistas apontarem dificuldades sobre as ferramentas disponíveis no CITIUS para a elaboração de textos, tendo um juiz declarado que fazia os despachos em Word e que só depois os transpunha para o CITIUS (Ent. 1).
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
92
material não for associada à dimensão humana e, neste caso, especificamente
ao papel a ser desempenhado pela formação e pela liderança na gestão dos
quadros profissionais.
6.1.3 Os recursos humanos: liderança, motivação, formação e
organização funcional
Liderança, motivação e formação
Como acima já referimos, há um forte consenso quanto à importância da
liderança e da formação de recursos humanos como factores centrais da
qualidade das organizações59. No desenvolvimento do trabalho empírico, a
formação e a importância da liderança na gestão dos recursos humanos
emergiram como categorias de análise relevantes devido à frequência
com que foram enfatizadas no discurso de funcionários e juízes.
Por um lado, o destaque dado a esses dois elementos pode ser visto
como natural devido ao contexto sobre o qual se desenrolou a investigação,
isto é, um contexto de mudança que afecta rotinas e métodos de trabalho
profundamente enraizados. Por outro, e em busca de uma explicação mais
aprofundada, o trabalho de campo desvelou no discurso dos agentes judiciais
um sentimento de desconforto vivido por membros de uma organização que
não se sentem como entes participantes activos desse processo de mudança.
Daí também ter emergido no discurso, em especial por parte dos funcionários
judiciais, uma reivindicação contundente por formação o que,
consequentemente, acaba por destacar o papel de alguns funcionários que no
desempenho de cargos de chefia, ao actuarem com liderança, podem contribui
para atenuar esse desconforto adoptando medidas de motivação e inclusão
dos funcionários.
Quando indagados sobre quais as principais dificuldades sentidas no
âmbito da sua rotina de trabalho, as respostas esboçadas, com maior
frequência pelos entrevistados disseram respeito ao ritmo acelerado das
alterações legislativas. No discurso dos funcionários, as sucessivas e
constantes alterações legislativas são vividas como dificuldades por dois
motivos principais: em primeiro lugar, são decididas sem que sejam chamados
59 Cf. ponto 3.
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
93
a participar activamente no processo; em segundo lugar, não permitem
sedimentar saber.
O sentimento, em especial dos funcionários judiciais, de estarem à
margem das decisões tomadas no âmbito do sistema judicial foi reforçado no
curso das entrevistas realizadas. Ao serem indagados sobre a Portaria n.º
114/2008, de 6 de Fevereiro, muitos responderam que ainda não haviam sido
informados de nada e que não tinham ideia de como funcionaria quando
entrasse em vigor (dentro de dias) no seu tribunal. A este desconforto
proveniente do sentimento de “marginalidade” em relação a reformas que
afectam o seu trabalho quotidiano alia-se a percepção de não haver interesse
pelo modo como tais alterações acabam por se repercutir no exercício das
suas funções. Uma funcionária referiu: “eles partem do princípio de que quando
for necessário, os funcionários se desenrascam” (Ent. 33).
A análise desse sentimento de “marginalidade” e de desinformação
não pode ser feita de forma linear, uma vez que também resulta do
trabalho de campo um desconhecimento generalizado, tanto da parte de
juízes quanto da parte de funcionários, a respeito das inovações
previstas, em especial da Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro. Devem
explorar-se os motivos da inexistência de uma proactividade por parte de
funcionários e juízes no sentido de se actualizarem acerca das alterações
legislativas que afectam a sua rotina de trabalho.
Os resultados do trabalho de campo revelam a existência de um
círculo vicioso: quanto mais se sentem alheados do processo de reforma da
justiça, menos interessados os funcionários se sentem para buscar
informações por si mesmos; quanto menos iniciativa têm para buscar
informações por si mesmos, mais alheados ficam do processo de reforma. O
trabalho empírico também revelou a adopção de algumas medidas que
podem ser vistas como tentativas exemplares de romper com esse ciclo.
Tais iniciativas decorrem da liderança exercida por algumas chefias na gestão
de recursos humanos.
Nesse sentido, o secretário de justiça de um dos tribunais analisados
(estudo de caso A), com vista a promover a uniformização de práticas em
consequência da entrada em vigor daquela Portaria, convocou uma reunião
com todos os escrivães de direito onde foram apresentadas e discutidas as
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
94
dúvidas de cada um e debatidas as melhores práticas a adoptar, tendo sido as
mesmas estabelecidas de forma a que todas as secções passassem a ter um
método de trabalho minimamente uniforme no que respeita à aplicação e
interpretação da Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro. Posteriormente, cada
escrivão de direito falou com o magistrado judicial da sua secção, dando-lhe
conhecimento do resultado daquela reunião, sensibilizando-o para que também
ele passasse a actuar de modo a possibilitar uma prática uniforme dos actos
das secções.
Esta experiência, apesar de revelar dinamismo por parte do secretário,
revela igualmente a desarticulação funcional existente entre funcionários
judiciais e magistrados dentro da mesma unidade orgânica. A falta de
articulação e interacção entre estes dois corpos profissionais impede decisões
concertadas que tenham em vista quer o processo concreto, quer a unidade
como um todo.
Outra medida adoptada é a elaboração e distribuição pelas secções de
processos de mapas de produtividade dos vários juízos e secções. Entre outros
dados, figura o número de papéis que a secção tem para juntar e o número de
despachos por cumprir – para fornecerem estes dados ao secretário, os
escrivães de direito têm que contar os papéis, a informação não decorre de
uma aplicação informática. Esta prática não é comum a todos os tribunais,
neste caso, é uma iniciativa deste secretário, e é vista como um estímulo para
manter o padrão de produtividade das unidades. Como curiosidade, refira-se o
facto de, nesse Tribunal, em 31 de Dezembro de 2007 haver secções com 30
despachos por cumprir e outras com 2.000. Recentemente, o Secretário
entendeu que devia intervir por numa secção existirem cerca de 150 sentenças
cujas notificações estavam por cumprir.
Este exemplo demonstra a importância da liderança no processo de
capacitação e motivação dos funcionários. Nos dados colhidos, as opiniões
dividem-se quanto à pessoa a quem cabe um papel central de liderança na
gestão directa do serviço e do pessoal da secção: uns atribuíram esse papel ao
escrivão de direito e outros ao secretário de justiça.
Se tivermos um bom escrivão, que saiba, de facto, gerir a secção, o serviço faz-se e a
secção funciona bem. (Ent. 29)
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
95
Uma das juízas entrevistadas apontou ser essencial para uma eficiente
gestão processual a necessidade de a secção de processos ter um bom
escrivão. Por bom escrivão declarou ser alguém que tenha capacidade de
organização e que imponha uma determinada hierarquia de funções, que tenha
capacidade de chefia e que “saiba dar ordens”. Tem, ainda, que saber gerir
recursos humanos e, para isso, tem que ter “sensibilidade, competência e
sentido de humanidade”. Caso assim não seja, defende que “é o juiz quem tem
de o substituir (…). E nestes casos temos que controlar tudo, mesmo as
contas. Mas esta não é uma tarefa do juiz”. Considera que “se a secção não
funcionar bem, a Vara também não pode funcionar. É essencial haver um bom
juiz e um bom escrivão”. Não deixou de salientar, contudo, o papel
preponderante dos Secretários na gestão dos recursos humanos (Ent. 39).
No painel realizado com os magistrados, diferentes participantes
enfatizaram a actuação do Secretário:
Claro que a capacidade de liderança de um secretário faz toda a diferença, desde logo
até na própria relação com os magistrados, tudo está ligado. (P4)
O papel dos secretários é fundamental. A capacidade dos secretários para efectuar
pequenas mudanças, para readaptar os meios humanos em conjugação com o juiz,
distingue a produtividade e a eficácia de um tribunal de uma maneira claríssima
relativamente a outro. (P3)
Para que seja possível alcançar e manter uma gestão processual
eficiente, é imprescindível dotar os líderes de ferramentas que lhes
permitam exercer essa função. Alguns dos escrivães e secretários
entrevistados sublinharam a importância de as chefias receberem
formação específica para gestão de recursos humanos, gestão de
conflitos e liderança. Alguns dos entrevistados, motivados pelas exigências
do trabalho, frequentaram por conta própria cursos de formação nessas áreas.
A importância da formação para as chefias foi igualmente ressaltada durante o
painel realizado com funcionários de justiça:
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
96
“(…) Desde há uns anos que a meu ver não se tem investido na chefia e na formação,
virada para a gestão do serviço”. (F1)
Não só a necessidade de formação da chefia foi alvo de avaliação nos
dados qualitativos recolhidos, mas também, como já foi referido, se detectou
um sentimento de desconforto geral com o contexto de mudança e sucessivas
alterações legislativas vigentes, nomeadamente, por não permitir sedimentar
saber. Daí que a formação tenha sido apontada por quase todos os
entrevistados como uma verdadeira carência, se não mesmo um bloqueio, para
o devido desempenho das suas tarefas, o que transformou a necessidade de
maior formação na reivindicação mais frequente discutida ao longo das
entrevistas e observação. Essa reivindicação é feita tanto com o sentido de
criticar as características da formação existente, como com o objectivo de
apontar elementos para a melhoria do plano actual de formação. As opiniões
recolhidas estão sistematizadas na tabela abaixo:
Tabela 1
A formação no discurso dos funcionários entrevistados
Como é percepcionada Como consideram que deveria ser
Garantir maior especialização por parte dos
funcionários para que haja efectivo
conhecimento das tarefas que o cargo implica
(de acordo com o cargo a desempenhar)
No âmbito dos novos sistemas informáticos,
uma formação contínua que possibilite que as
funcionalidades de cada programa sejam
efectivamente aproveitadas
Com conteúdos específicos para facilitar o
desempenho de certas actividades: gestão
dos recursos humanos, gestão de conflitos,
atendimento ao público
Escassa, pouco esclarecedora, ineficaz e
apenas introdutória no que se refere às
alterações de rotinas e a novos
procedimentos
Turmas compostas por menos formandos e
com horário mais alargado de modo a
fomentar um espaço para o debate
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
97
No âmbito das alterações na rotina de
trabalho, voltada para promover a
sensibilização dos funcionários para as
mudanças que se avizinham e suas
implicações, minorando assim a criação de
resistências
Dado o quadro de carência ou deficiência da formação, os funcionários
assumem que a aprendizagem para o cumprimento das tarefas é,
tendencialmente, de natureza autodidáctica ou colectiva. Isto é, ou aprendem
sós e por iniciativa própria, ou aprendem ensinando-se uns aos outros. Esse
cenário, para além da desmotivação das equipas de trabalho, tem outras
consequências: (1) quando aprendem uns com os outros, os funcionários
tendem a assimilar os vícios de rotina daqueles com quem trabalham; (2)
quando a aprendizagem é decorrente do compromisso e empenho
pessoais, a responsabilidade pelo aperfeiçoamento do trabalho é difusa e
depende do esforço e do interesse de cada um; (3) num contexto de
formação isolada e aleatória, é mais difícil ultrapassar as resistências
interpostas por rotinas de trabalho há muito enraizadas.
Se, por um lado, os depoimentos recolhidos durante o trabalho de
campo indiciam que a formação é um problema sistémico, por outro, um dos
depoimentos proferidos nos painéis de discussão revela também que, no
tocante aos problemas levantados pela deficiência de formação nos tribunais,
estamos diante de um problema estrutural:
É a formação que aqui está em causa. É aquilo que nos aflige, que nos preocupa e de
que toda a gente fala e com razão, mas com o que os responsáveis pouco se
preocupam. Os responsáveis a todos os níveis porque o centro de formação está
criado há mais de 15 anos e todos os oficiais de justiça andam a clamar nos últimos
anos por uma plataforma de formação à distância. É uma questão de organização e de
definir tempo, como se pode fazer e quem pode fazer. O centro de formação não tem
capacidade para o fazer porque não tem autonomia administrativa nem financeira.
Entretanto iniciou-se 11 meses de formação contínua para um concurso de 2600
candidatos para acesso a técnicos de justiça principal. São 19 salas. Estamos a
trabalhar no limite. (F3)
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
98
A organização funcional
Os funcionários de justiça regem-se por estatuto próprio – o Estatuto
dos Funcionários de Justiça60. De acordo com o artigo 1.º do referido
Estatuto, são os funcionários “nomeados em lugares dos quadros de pessoal
de secretarias de tribunais ou de serviços do Ministério Público”, distribuindo-se
por seis grupos de pessoal: pessoal oficial de justiça, pessoal de informática,
pessoal técnico-profissional, pessoal administrativo, pessoal auxiliar e pessoal
operário (cf. artigo 2.º). A descrição do conteúdo funcional referente às
carreiras de cada grupo de pessoal consta de um mapa (I) anexo ao diploma
em análise61.
60 Publicado pelo Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 175/2000, de 9 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 96/2002, de 12 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 169/2003, de 1 de Agosto e pelo Decreto-Lei n.º 42/2005, de 29 de Agosto. 61 Ao Secretário do Tribunal de Tribunal Superior compete, designadamente, dirigir os serviços da secretaria; elaborar e gerir o orçamento de delegação da secretaria; distribuir, coordenar e controlar o serviço externo; proferir nos processos despachos de mero expediente, por delegação do magistrado respectivo; corresponder-se com entidades públicas e privadas sobre assuntos referentes ao funcionamento do tribunal, por delegação do magistrado respectivo; assinar as tabelas das causas com dia designado para julgamento; assistir às sessões do tribunal e elaborar as respectivas actas; assegurar o expediente do Serviço Social do Ministério da Justiça, na qualidade de seu delegado; submeter a despacho do presidente os assuntos da sua competência; apresentar os processos e papéis à distribuição; providenciar pela conservação das instalações e equipamentos do tribunal; desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Ao secretário de justiça compete dirigir os serviços da secretaria; elaborar e gerir o orçamento de delegação da secretaria; assegurar o expediente do Serviço Social do Ministério da Justiça, na qualidade de seu delegado; proferir nos processos despachos de mero expediente, por delegação do magistrado respectivo; corresponder-se com as entidades públicas e privadas sobre assuntos referentes ao funcionamento do tribunal e ao normal andamento dos processos, por delegação do magistrado respectivo; dirigir o serviço de contagem de processos, providenciando pelo correcto desempenho dessas funções, assumindo-as pessoalmente quando tal se justifique; desempenhar as funções atribuídas ao escrivão de direito da Secção Central, sempre que o quadro de pessoal da secretaria não preveja lugar de escrivão de direito afecto à Secção Central; desempenhar as funções atribuídas ao escrivão de direito da Secção de Processos e ao Técnico de Justiça Principal da Secção de processos dos Serviços do MP, sempre que o quadro de pessoal da secretaria não preveja lugar de escrivão e ou técnico de justiça principal afectos à secção de processos; distribuir, coordenar e controlar o serviço externo; providenciar pela conservação das instalações e equipamentos do tribunal; Nas secretarias-gerais, compete-lhes, ainda, dirigir o serviço da secretaria por forma a assegurar a prossecução das respectivas atribuições e desempenhar as demais funções previstas nesta alínea relativamente à Secretaria-Geral respectiva e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Ao escrivão de direito provido em Secção Central dos serviços judiciais: compete orientar, coordenar, supervisionar e executar as actividades desenvolvidas na secção, em conformidade com as respectivas atribuições; preparar e apresentar os processos e papéis para distribuição; assegurar a contagem dos processos e papéis avulsos; efectuar as liquidações finais nas varas criminais, nos juízos criminais, nos juízos de competência especializada criminal e nos juízos de pequena instância criminal; organizar os mapas estatísticos; escriturar a receita e despesa do Cofre; processar as despesas da secretaria; desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Por sua vez, ao escrivão de direito provido em secção de processos dos serviços judiciais compete orientar, coordenar, supervisionar e executar as actividades
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
99
No grupo de pessoal oficial de justiça62, que presta apoio à tramitação
processual, inserem-se as categorias de secretário de tribunal superior e de
secretário de justiça, assim como as carreiras judicial e dos serviços do
Ministério Público. A carreira judicial é constituída pelas categorias de escrivão
de direito, escrivão adjunto e escrivão auxiliar. A carreira dos serviços do
Ministério Público, por seu lado, é composta pelas categorias de técnico de
justiça principal, técnico de justiça-adjunto e técnico de justiça auxiliar63.
desenvolvidas na secção, em conformidade com as respectivas atribuições e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior; e ao escrivão de direito provido em Secção Central de serviço externo compete orientar, coordenar, supervisionar e executar as actividades desenvolvidas na secção, em conformidade com as respectivas atribuições e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Ao escrivão adjunto compete assegurar, sob a orientação do escrivão de direito, o desempenho de funções atribuídas à respectiva secção; desempenhar as funções atribuídas ao escrivão auxiliar, na falta deste ou quando o estado dos serviços o exigir; e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Ao escrivão auxiliar compete efectuar o serviço externo; preparar a expedição de correspondência e proceder à respectiva entrega e recebimento; prestar a necessária assistência aos magistrados; e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Ao Técnico de Justiça Principal provido em Secção Central dos serviços do Ministério Público compete orientar, coordenar, supervisionar e executar as actividades desenvolvidas na secção, em conformidade com as respectivas atribuições; preparar e apresentar os processos e papéis à distribuição; organizar os mapas estatísticos; preparar, tratar e organizar os elementos e dados necessários à elaboração do relatório anual; e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Por sua vez, ao Técnico de Justiça Principal provido em secção de processos dos serviços do Ministério Público: compete orientar, coordenar, supervisionar e executar as actividades desenvolvidas na secção, em conformidade com as respectivas atribuições; desempenhar, no âmbito do inquérito, as funções que competem aos órgãos de polícia criminal; e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Ao Técnico de Justiça-adjunto compete assegurar, sob orientação superior, o desempenho das funções atribuídas à respectiva secção; desempenhar, no âmbito do inquérito, as funções que competem aos órgãos de polícia criminal; desempenhar as funções atribuídas ao técnico de justiça auxiliar, na falta deste ou quando o estado dos serviços o exigir; e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Ao Técnico de Justiça Auxiliar: compete desempenhar, no âmbito do inquérito, as funções que competem aos órgãos de polícia criminal; efectuar o serviço externo; preparar a expedição de correspondência e proceder à respectiva entrega e recebimento; prestar a necessária assistência aos magistrados; e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Ao Oficial Porteiro compete zelar pela segurança e conservação do edifício; executar as diversas tarefas relativas ao serviço de portaria; orientar, fiscalizando e colaborando, a limpeza das instalações e pequenos serviços de reparação; e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. Ao Auxiliar de Segurança: compete assegurar a vigilância e a segurança das instalações; controlar a entrada e a saída de pessoas, verificando os objectos suspeitos de que as mesmas se façam acompanhar; e desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior. 62 Os oficiais de justiça, no exercício das funções que lhe são atribuídas, e, em particular, a função de assegurar o expediente, a autuação e regular a tramitação dos processos, encontram-se funcionalmente dependentes do magistrado competente (cf. artigo 6.º, n.º 3). 63 As categorias de secretário de tribunal superior, secretário de justiça, escrivão de direito e técnico de justiça principal correspondem a lugares de chefia (cf. artigo 3.º, n.º 4).
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
100
A Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) é o organismo
do Ministério da Justiça ao qual cabe recrutar, gerir, administrar os funcionários
de justiça, assim como assegurar a sua formação, por meio do Centro de
Formação dos Funcionários de Justiça. O ingresso nas categorias de escrivão
auxiliar e de técnico de justiça auxiliar faz-se, em regra, de entre os indivíduos
habilitados com curso de natureza profissionalizante, aprovados em
procedimento de admissão. Caso não existam possuidores desta habilitação, o
ingresso faz-se de entre os candidatos aprovados em curso de habilitação (cf.
artigos 7.º e 8.º). Por sua vez, é de entre estes, desde que respeitam
determinados requisitos previstos no artigo 9.º64, que se faz o acesso à
categoria escrivães adjuntos e técnicos de justiça adjuntos; bem como é dentro
desta última categoria que se faz o acesso à categoria de escrivão de direito e
a técnico de justiça principal, mais uma vez, desde que respeitados os
requisitos previstos no referido artigo 9.º.
No topo desta cadeia hierárquica encontra-se o secretário de justiça.
Para aceder a esta última categoria é necessário que os candidatos tenham
sido escrivães de direito ou técnicos de justiça principais e preencham os
requisitos do artigo 9.º ou, então, que sejam oficiais de justiça possuidores de
curso superior adequado, com sete anos de serviço efectivo, classificação de
Muito Bom e que tenham tido aprovação na respectiva prova de acesso.
O Conselho dos Oficiais de Justiça (COJ) é o órgão ao qual cabe
apreciar o mérito profissional e exercer o poder disciplinar sobre os oficiais de
justiça, sem prejuízo da competência disciplinar atribuída aos magistrados e do
caso excepcional no que se refere aos secretários de tribunal superior que são
classificados pelo presidente do respectivo tribunal (cf. artigos 68.º, n.º 2, e
98.º). As competências do Conselho dos Oficiais de Justiça encontram-se
descritas no artigo 111.º do Estatuto65.
64 Prestem serviço efectivo pelo período de três anos na categoria anterior, tenham uma classificação mínima de Bom e sejam aprovados na respectiva prova de acesso. 65 As competências do COJ, em matéria de exercício de poder disciplinar e apreciação do mérito profissional foram postas em causa pelos Acórdãos Constitucionais n.ºs 244/01 de 23 de Maio; 178/01, de 18 de Abril; 159/2001, de 4 de Abril e 398/01, de 26 de Setembro, que vieram declarar a inconstitucionalidade do artigo 98.º da alínea a) do artigo 111.º do Estatuto dos Funcionários de Justiça, por violarem o disposto no artigo 218.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa. Para colmatar a instabilidade e insegurança então reinante, foi publicado o Decreto-Lei n.º 96/2002, de 12 de Abril, para redefinir as competências quanto à apreciação do mérito profissional e ao exercício do poder disciplinar sobre os oficiais de Justiça, que vem sendo exercida pelo Conselho dos Oficiais de justiça, para que aquelas
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
101
Nos diferentes tribunais observados, as funções assumidas pelos oficiais
de justiça seguem os conteúdos funcionais descritos acima, de forma que não
apresentaram diferenças significativas entre si. Em cada tribunal, as
diferenças detectadas no exercício das funções dos oficiais de justiça
estão relacionadas, por um lado, com a heterogeneidade de gestão e
métodos de trabalho adoptados (que será abordada mais adiante) e, por
outro, com a diferente composição do quadro funcional. Assim, para
exemplificar seleccionámos 4 casos de estudo para exemplificar a diversidade
do quadro funcional nas secções de processos observadas. Foram, de facto,
observadas secções com um número maior de escrivães adjuntos e outras com
um número maior de escrivães auxiliares.
Organograma 1
Categorias Profissionais nas Secções de Processos Observadas
Caso A
deixassem de ser competências exclusivas e passassem a admitir, em qualquer caso, uma decisão final do conselho superior competente de acordo com o quadro de pessoal que integram (cf. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 96/2002, de 12 de Abril).
Escrivão de Direito
Escrivão Adjunto
Escrivão Adjunto
Escrivão Ajunto
Escrivão Auxiliar
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
102
Caso C
Caso E1
Escrivão de Direito
Escrivão Auxiliar
Escrivão Auxiliar Escrivão Adjunto
Escrivão Adjunto Escrivão Auxiliar
Escrivão Adjunto
Escrivão Adjunto
Escrivão Auxiliar
Esta secção de processos está sem escrivão de direito há cerca de 3 anos – esteve de baixa médica e está reformado desde Fevereiro último. Neste momento, um dos escrivães adjuntos acumula as funções de escrivão de direito desde Setembro.
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
103
Caso E3
Num contexto em que a organização interna dos tribunais está
sustentada na diversidade da distribuição dos recursos humanos com casos
crónicos de déficit de pessoal, os conteúdos funcionais podem aparecer como
um bloqueio para uma boa gestão processual, sendo percepcionados como
obstáculos à flexibilidade, mobilidade e polivalência de funcionários. Resulta,
contudo, das posições assumidas, que, mais do que eventual rigidez dos
conteúdos funcionais, o que está em causa é uma melhor e mais eficaz gestão
e flexibilização dos recursos humanos, dentro de determinados critérios, na
colocação e mobilidade dos funcionários.
A percepção sobre os conteúdos funcionais como problema foi abordada
nos depoimentos dos painéis de discussão de juízes e funcionários:
Eu acho que há um bloqueio nos conteúdos funcionais. Há muitos funcionários que se
começam a agarrar aos conteúdos funcionais e os escrivães não têm coragem para
dizer «faz o que eu disser», ou por vezes dizem, o que arranja problemas. Eu acho que
não devia haver conteúdos funcionais (F1).
Uma das juízas entrevistadas referiu, por sua vez, a necessidade de
mobilidade funcional com que o sistema se depara. Segundo esta
magistrada, os secretários deviam promover e facilitar a mobilidade de
Escrivão de Direito
Escrivão Adjunto Escrivão Auxiliar
Nesta secção, um funcionário se encontra de baixa médica “há muito tempo”.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
104
funcionários entre secções, de acordo com orientações do juiz: “(…) há
funcionários em secções onde não são precisos e há outras secções em que
eram precisos e não são colocados lá (…). A mobilidade não se verifica. Mas
como essa é uma competência dos secretários, nós não podemos intervir” (Ent.
39).
Assim, defende que o que está em causa acaba por ser um problema na
lei porque esta lhe veda a possibilidade de dar instruções neste sentido: “(…)
não posso ir à central e pedir que um determinado funcionário venha para a
minha secção. Não posso passar por cima do secretário. A lei diz que quem
manda nos funcionários são os secretários e eu tenho que respeitar.” Discorda,
por isso, que a lei tenha alterado o poder que os juízes tinham sobre os
funcionários, defendendo que “tínhamos que ter a possibilidade de actuar
sempre que necessário (…). O Juiz tinha que ter mais poder sobre os
funcionários, nomeadamente no que respeita à mobilidade” (Ent. 39).
No depoimento desta juíza subjaz a ideia de que, da forma como estão
estabelecidos pela lei, a mobilidade funcional ceifa qualquer participação do
juiz no processo de escolha dos funcionários a serem destacados para a sua
secção, mas, sobretudo, para seu apoio directo, acentuando, assim, o
problema de os juízes não terem qualquer intervenção na escolha do
funcionário que lhe será adstrito para apoio.
Essa falta de intervenção pode ser interpretada como uma medida que,
ao libertar o juiz de matérias administrativas, lhe permite dedicar o seu tempo
exclusivamente à tarefa de “julgar”. Contudo, em determinadas situações, esse
propósito é invertido e em vez de facilitar o trabalho do juiz acaba por se
revelar prejudicial à gestão dos processos. Basta pensar nas situações em que
se aloca para auxílio do juiz um funcionário sem qualidade técnica para tal
função.
Durante o trabalho empírico, tanto nas entrevistas quanto nos painéis de
discussão, os participantes mencionaram que a assistência na sala, nem
sempre valorada, exige especial formação. Em muitas audiências, por
exemplo, levantam-se incidentes, o que faz com que a elaboração das actas
seja uma tarefa complexa. Ao iniciar funções na secção onde actualmente se
encontra, a mesma juíza referiu que teve de fazer um particular investimento
pessoal para orientar os funcionários e sanar as falhas daquele que lhe
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
105
prestava apoio directo, tarefa que lhe ocupou muito tempo. Especificamente
quanto às actas de audiência, mencionou: “se eu não escrevesse tudo o que se
passava na audiência não era possível corrigir as actas. Quando me chegavam
não tinham quase nada. Faltavam muitos dados essenciais. O português era
praticamente imperceptível” (Ent. 39). Mais adiante voltaremos a este assunto.
Outra questão, perturbadora do desempenho funcional do tribunal
globalmente considerado, é a possibilidade de existir, em simultâneo, numa
secção, excesso de funcionários de uma determinada categoria e, em outra,
déficit de funcionários dessa mesma categoria e não ser feita a realocação dos
funcionários.
Nesta discussão, salientam-se, no que respeita os conteúdos funcionais,
um modelo de administração de recursos humanos um baseado na conjugação
de funcionários especializados e polivalentes. A polivalência funcional não
pode prescindir de certa especialização e a especialização de funções
tem que abrir espaço para alguma flexibilização e mobilidade funcional,
em situações particulares.
É necessário, então, relativamente à gestão e colocação de recursos
humanos nos tribunais, encontrar um ponto de equilíbrio que fomente, de
acordo com os indicadores de qualidade e produtividade, de volume e de
natureza da procura judicial no interior dos tribunais, uma alocação de recursos
humanos racional e coordenada com as necessidades de cada caso. Esta
tarefa dependerá em grande medida da proactividade das chefias internas de
recursos humanos que, no actual enquadramento legal são, em especial, os
escrivães de direito e os secretários de justiça, no sentido de, em decisões
concertadas com juízes, decidirem sobre a melhor distribuição funcional para
as unidades orgânicas.
6.2 O funcionamento e os actos das secções: regras e práticas
6.2.1. O funcionamento das secções
No curso do trabalho empírico, deu-se especial atenção à secção de
processos, assumindo esta o status de unidade analítica base da investigação.
As razões dessa escolha baseiam-se no actual funcionamento do sistema de
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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justiça, sustentado no “poder de direcção” desta unidade orgânica sobre a
tramitação processual. É esta secção que, designadamente, dá a “forma de
processo” aos documentos recebidos na Secção Central, encaminha os
despachos e notificações para as partes, outros serviços ou para serem
cumpridos pela Secção de Serviço Externo, bem como alimenta o gabinete do
juiz com conclusões, diligências e outros procedimentos que careçam de
decisão. O Diagrama 1 demonstra a centralidade da secção de processos na
dinâmica interna dos tribunais.
Diagrama 1
Centralidade da Secção de Processos no funcionamento do sistema judicial
Secção Central
Gabinete do Juiz
Exterior (Advogados e
outros intervenientes)
Secção de
Serviço Externo
Secção de
Processos
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
107
Para além de assumir a secção de processos como pivot da tramitação
processual, este modelo é também atomizado, ou seja, baseia-se na divisão
um juiz, uma secção. Esta forma de organização respondia bem às
necessidades de uma época em que as vias de comunicação eram escassas e
não integradas. Mas, devemos indagar se no contexto actual, com a evolução
dos meios tecnológicos e de comunicação entre as diferentes unidades
orgânicas dos tribunais e entre estes e o exterior, e considerando o propósito
de modernização da justiça, esse modelo deve ser mantido ou se é um
bloqueio à qualidade, à eficácia e à eficiência da gestão processual.
Essa pergunta exige um maior conhecimento dos actos das secções e
do seu funcionamento e relações internas. Partimos da seguinte hipótese: o
actual modelo de funcionamento atomizado e de predomínio da secção de
processos na gestão processual pode conduzir a um bloqueio na
comunicação entre as unidades orgânicas que prejudica o controle da
pendência e do funcionamento do juízo.
Por outro lado, a centralidade da secção de processos na direcção do
processo leva-nos a outra hipótese: a qualidade e eficiência na gestão e nos
métodos de trabalho da secção de processos repercutem-se na qualidade
e eficiência da própria gestão processual. Daí que uma das vertentes do
trabalho de campo foi apurar a divisão de tarefas e os métodos de trabalho
adoptados nas secções de processos observadas.
De seguida, apresentamos graficamente a divisão de tarefas dentro das
secções de processos observadas e alguns fluxos processuais. Serão
apresentados os métodos de trabalho adoptados pelos funcionários e os actos
que realizam, procurando identificar boas práticas e pontos de bloqueio.
A divisão de tarefas e métodos de trabalho
Da observação realizada nos diferentes tribunais resultou uma certa
similitude no conteúdo das funções desempenhadas pelos funcionários. De
maneira geral, dentro de uma secção de processos, as funções assumidas
pelas diferentes categorias funcionais organizam-se como se demonstra no
diagrama abaixo.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
108
Diagrama 2
Divisão de tarefas nas secções de processos observadas
Contudo, de acordo com o quadro de funcionários existente na secção,
as funções desempenhadas pelos diferentes funcionários podem variar. Assim,
por exemplo, nas secções com déficit de pessoal, os escrivães de direito
assumem outras funções, cumprindo também despachos; os escrivães
adjuntos colaboram na procura e junção de papéis e aos auxiliares são
atribuídos (mais) processos para cumprir.
Escrivão de
Direito
Orientação, coordenação e supervisão das actividades desenvolvidas no juízo. Controlo dos prazos, elaboração das declarações de cabeça de-casal, das conferências de interessados, dos mapas de partilha. Contas dos processos (a partir de 2004) e mapas estatísticos
Escrivão Adjunto
Cumprimento dos despachos, junção de papéis e realização de expedientes nos processos que lhe são atribuídos
Escrivão Auxiliar
Acompanhamento de diligências, feitura das respectivas actas, cumprimento de alguns despachos, elaboração do correio, procura e junção de papéis
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
109
Nas secções observadas, detectámos uma heterogeneidade de
procedimentos nos critérios adoptados por cada escrivão de direito para
a distribuição dos processos a cumprir, no benefício extraído das
potencialidades dos sistemas informáticos, bem como nos métodos de
trabalho adoptados para o exercício das respectivas funções.
Na Tabela 2, seleccionámos três secções de processos para
exemplificar as diferenças nos métodos de distribuição dos processos e no
aproveitamento das ferramentas informáticas.
Tabela 2
Critérios de distribuição de processos e de aproveitamento das ferramentas informáticas
em diferentes secções de processos
Secções de Processos
A2 A3 C
Critérios de
Distribuição dos
Processos entre os
Escrivães
Distribuem-se de
acordo com o último
dígito do número do
processo. Actos nos
processos de falência
e expropriação são
atribuídos a um
determinado escrivão
Atribui-se um número
a cada um dos
adjuntos, repartindo
os processos de
acordo com a
distribuição – os
novos processos vão
para um funcionário,
depois para outro e,
de seguida para outro
Os processos e as
cartas precatórias
são distribuídos pelas
escrivãs adjuntas de
acordo com o número
final dos processos
(par / ímpar),
tramitando todos os
funcionários
processos de todas
as espécies.
Utilização da
Ferramenta Alarme
do HABILUS
Escrivães utilizam a
ferramenta em todos
os processos
Escrivães não sabem
utilizar a ferramenta.
Cada fim do mês,
todos os escrivães
fazem um
levantamento dos
processos para “tirar
prazos”66 ou verificar
se precisam de mais
providências
Escrivães utilizam a
ferramenta em parte
dos processos
66 Cf. infra sobre o sentido da expressão “tirar prazos”.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
110
A divisão da tarefa de atendimento ao público é um outro exemplo
da heterogeneidade na gestão de serviços entre diferentes secções de
processos. Foram encontradas secções em que o atendimento ao público
cabia ao escrivão auxiliar, outras em que essa tarefa cabia a escrivães
adjuntos e auxiliares indistintamente – neste último caso, recaindo quase
sempre naqueles posicionados mais perto do balcão de atendimento –,
enquanto que em outra secção o atendimento ao público era distribuído
rotativamente, cabendo um dia da semana a cada funcionário (escrivão adjunto
ou auxiliar).
Quanto aos métodos de trabalho adoptados por cada funcionário,
foram também detectadas variações, quase sempre assentes na percepção
de cada um sobre qual a melhor maneira de administrar o seu volume de
trabalho. Exemplificamos a partir das tarefas desempenhadas pelos escrivães
adjuntos. Em geral, estes preferem iniciar o trabalho pelos actos mais simples,
deixando os processos mais complexos para o momento que consideram mais
oportuno. Foi observada a adopção de dois diferentes métodos de trabalho: (1)
realizar os actos processuais aleatoriamente, de acordo com a ordem em que
os processos lhe são colocados na secretaria; e (2) separar os processos que
tem a tratar por categorias e realizar os actos processuais iguais em série.
Na organização do trabalho acabam por imperar as preferências
subjectivas de cada um, isto é, como costumam trabalhar e o que gostam de
fazer primeiro. As preferências, por seu turno, são contrabalançadas com o que
é exigido na secção pelo escrivão de direito, dependendo também do método
de trabalho do juiz. A organização do trabalho varia, então, de acordo com
o escrivão de direito, o juiz e o perfil e a experiência de cada funcionário.
Consequentemente, os métodos de trabalho não são definidos e geridos de
acordo com critérios objectivos de racionalidade e eficácia, e a produtividade
dos funcionários depende muitas vezes do seu empenho e compromisso
pessoais. A ausência de critérios de racionalização do trabalho das secções de
processos foi levantada nos painéis de discussão:
Dentro das secretarias, cada um trabalha um bocado “como lhe apetece”, as
pessoas não olham para o serviço e pensam “eu tenho que ter aqui um objectivo, tenho
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
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de começar por aqui ou por ali”. Chegam ali e aquilo vai andando, o que acaba por
arranjar muitos problemas com os magistrados. O que eu tenho visto é que os
processos andam, mas sem método. Acho que neste momento esse é o principal
problema (F1).
O problema relaciona-se, por um lado, com a falta de preparação das
chefias para o exercício de tarefas específicas, como a gestão de recursos
humanos (abordada anteriormente). Por outro, também reflecte a lógica de
um modelo técnico-burocrático de gestão processual em que o processo
é visto como um conjunto de actos isolados e os funcionários são tidos
como entidades separadas, cujo o objectivo principal é o cumprimento
estrito dos actos que lhe são atribuídos, independentemente das
consequências para a gestão do serviço como um todo.
No painel de discussão dos funcionários, um dos participantes salientou
que o predomínio desse modelo técnico-burocrático em que o cumprimento
isolado dos actos, nomeadamente dos prazos, impera em detrimento da
própria organização de serviço e da visão gestionária do processo e está
relacionado, em primeiro lugar, com a própria lei processual – que condiciona
os operadores judiciários em termos de prazos – e, em segundo lugar, com o
modelo de inspecção vigente, que se concentra em exigir dos funcionários,
sobretudo, o cumprimento dos prazos:
(...) toda a estrutura legal que nós temos nos condiciona em termos de prazos. A
secção tem um prazo para fazer uma coisa, o juiz tem um prazo para fazer outra,
embora sejam prazos meramente indicativos que se não forem cumpridos não
têm consequência nenhuma.
Nós estamos habituados a olhar para a gestão do processo em função do cumprimento
das normas legais. Se a lei impõe colocar no dia de amanhã 500 processos no
gabinete, pois coloco lá 500. E se tiver possibilidade de pôr lá outros 500, coloco lá
outros 500. Porque temos um serviço de inspecções que vai olhar para o meu
serviço e para a capacidade que eu tiver para cumprir dentro dos prazos,
independentemente dos efeitos que isso tenha em termos de organização do
serviço. Primeiro, tinha de haver aqui um tronco comum: como é que nós somos
avaliados pela gestão do nosso serviço (F4).
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
112
O exercício de qualquer tarefa é, em si mesmo, um campo de
manifestação da subjectividade de quem a executa. O que colocamos em
questão aqui não é o fim da subjectividade ou dos critérios pessoais no
exercício das funções de uma secção de processo, mas sim a importância de
existirem critérios que, numa perspectiva gestionária, estejam voltados
para optimização e eficiência dos métodos de trabalho e, em
consequência, da gestão processual.
Neste contexto, merece uma especial reflexão o chamado método de
“tirar prazos”. O depoimento de um funcionário é elucidativo desta metodologia:
Há muitas secções em que se vê que as pessoas vão à estante duas vezes por ano, se
calhar, a seguir às férias (...) “tirar os prazos”, é movimentar os processos que estão a
aguardar prazos. Os processos, depois de cumpridos os despachos, ficam a aguardar
os prazos dos advogados. Depois é preciso tirá-los, terminado esse prazo, e fazer as
conclusões, fazer o que for preciso. E como se faz poucas vezes, isto é, como há muito
trabalho, vai-se deixando para o fim e faz-se o resto. Não quer dizer que as pessoas
não trabalhem, porque as pessoas até trabalham muito. Só que deixam para o fim. Vão
lá duas ou três vezes por ano. Pode ser assim ou não ser. Não é assim em todas as
secções. Mas, depois os processos saem todos ao mesmo tempo, o que faz dar muito
ou pouco trabalho. (F1)
Como refere o mesmo funcionário, é patente nesta metodologia a
ausência de “orientação e organização das secretarias”. “Os processos andam
todos ao mesmo tempo, quando a secretaria se lembra” (F1).
Ora, na ausência de critérios, o bom funcionamento da secção passa a
depender da iniciativa isolada e da proactividade dos funcionários que estão
em cargos de chefia e, na ausência destes, é mais um encargo que o juiz terá
que administrar para garantir o bom andamento dos processos. Nos tribunais
em que se percebeu maior liderança dos escrivães de direito ou dos
secretários, detectou-se também uma postura diferenciada no
aproveitamento dos recursos humanos. Este é, por exemplo, o caso do
escrivão de direito de uma das secções centrais analisadas que estabeleceu
um sistema rotativo de divisão de tarefas para garantir maior motivação dos
funcionários e assegurar que estes tenham uma visão do todo, aprendendo a
executar todas as funções. A eficácia talvez decorra do facto de este escrivão
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
113
de direito, por iniciativa e expensas próprias, ter frequentado cursos de
formação em liderança.
6.2.2 Actos das secções e fluxos processuais
Mostramos, de seguida, alguns actos da competência das secções e os
fluxos processuais em três fluxogramas. Para refazermos graficamente o
caminho do processo entre as unidades orgânicas, escolhemos alguns actos e
um dos tribunais observados – o estudo de caso A. O nosso objectivo é
demonstrar, não só os actos praticados, como também discutir a sua relação
com a organização do tribunal, daí que, para manter a coerência da análise,
tenhamos escolhido apenas um dos estudos de caso.
Em todos os fluxogramas é visível a centralidade da secção de processos
na direcção da tramitação processual. Para além disso, foi possível perceber
que, no conjunto de actos praticados no interior das secções, em alguns
momentos a condução das tarefas é orientada ou de acordo com o método de
trabalho adoptado pela escrivã de direito, ou de acordo com o volume de
trabalho dos escrivães adjuntos e auxiliares.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
114
Fluxograma 1
Fluxo Secção Central – Secção de Processos: petição inicial
Secção Central
Petição
inicial
Grava o email
e respectivos
anexos
Imprime o email, os
anexos e o MDDE
Carimba o
papel e separa
Verifica os
requisitos de
admissibilidade
Verifica os
requisitos de admissibilidade
Abre, carimba e
separa a carta
Carimba e rubrica
as cópias, e entrega
uma ao apresentante
Verifica os
requisitos de
admissibilidade
Distribuição
Imprime as etiquetas e cola-as
Secção de
processos
Correio
electrónico
H@bilus
Correio
registado
Em mão
Habilus
Regista os dados
dos intervenientes e
do processo
Quando os advogados
solicitam o envio do duplicado carimbado, carimbam-no,
inserem-no no envelope selado
e colocam o envelope numa
caixa de cartas a enviar
Este fluxograma reproduz os actos e a divisão de tarefas observados antes da entrada em vigor da Portaria 114/2008. No
momento da observação, a distribuição era feita 2ª e 5ª feiras, às 12h.
Na Secção Central há dois funcionários com a tarefa de prestar atendimento ao público – um escrivão adjunto e um
auxiliar; outro escrivão adjunto é o encarregado da distribuição – sempre o mesmo funcionário.
Todos os requerimentos apresentados ao Tribunal, quer ao balcão em papel ou em formato digital, recebidos por fax ou
por email passam pela Secção Central – é feita a triagem dos papéis que são para distribuir, que ficam ao cuidado de um
dos escrivães adjuntos – e são aí registados sempre no dia em que são recebidos, apesar de, por vezes, o serem após o
encerramento ao público, às 16 horas, altura em que todos os funcionários da Secção Central passam a fazer o registo.
Depois de registados, os papéis são separados por juízo e são entregues por um funcionário da Secção Central à
respectiva Secção de Processos até às 17 horas.
Secção Central
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
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Escrivão
de Direito
Confere os papéis que lhe chegam com os
da lista de distribuição H@bilus
H@bilus
H@bilus
Distribui os papéis pelos escrivães adjuntos,
colocando-os nas suas secretárias
Escrivão
Adjunto
Verifica se o processo já está devidamente registado
Verifica a peça processual,
designadamente a competência territorial
Autua
Sistema de
custas
judiciais
Imprime a capa do
processo
Importa e encaminha o pagamento
da taxa de justiça para o processo
Imprime o comprovativo
dessa operação
Numera as folhas
Cola etiqueta na capa
onde fará anotações
prazos
Se a procuração tem
poderes especiais
escreve na capa
Junta a peça
Secção de Processos
Nas secções de processos existe, no sistema informático, uma lista de todos os papéis recebidos e remetidos para essa
unidade. Após o funcionário da Secção Central levar fisicamente os papéis distribuídos à secção de processos, um
funcionário desta secção “pica a lista” que está no sistema, isto é, através do número de registo aposto em cada papel
pela Secção Central consoante a ordem de entrada, confere os papéis que tem perante si com a lista emitida pela Secção
Central. Nos casos observados de autuação da petição inicial, após a autuação, não se procedeu de imediato (no próprio
dia) à citação.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
116
Note-se que o registo da petição inicial, e de outros documentos, é
realizado de forma mais ou menos expedita de acordo com o volume de
trabalho dos funcionários da Secção Central. Também os critérios de
distribuição dos processos aos escrivães adjuntos serão variáveis de secção
para secção, de acordo com o método do respectivo escrivão de direito.
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
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Fluxograma 2
Fluxo Secção Central – Secção de Processos – Gabinete do Juiz:
encaminhamento de um requerimento avulso
Requerimento
Correio
Registado
Correio
Electrónico
Confronta o número de
registo da carta com a lista
de registos dos CTT
Ao final do dia, juntamente
com o correio a enviar, CTT
recolhe a lista assinada
Assina os que correspondem
àquela secção central
Aos que correspondem a
outras unidades orgânicas,
assinala na lista, para, no final, entregar aos colegas e
pedir-lhes para assinar
Abre a carta
Imprime tudo
Abre os anexos
Abre o email
Verifica se é só um
requerimento para um processo. Se não for, tira
fotocópia(s) ao envelope e
agrafa o original a um dos requerimentos e a(s)
fotocópia(s) a outro(s)
Verifica se o requerimento
vem acompanhado dos
documentos que menciona
Agrafa o
envelope
2 3
Quando os documentos não
foram anexados, faz uma
nota junto do carimbo
Secção Central
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
118
Secção de
Processos
Quando os advogados
requerem o envio de uma cópia do requerimento carimbada,
carimbam o duplicado,
inserem-no no envelope selado, põe o envelope numa caixa de
cartas a enviar
3 2
Faz o registo:
Selecciona a identificação do processo;
Identifica o autor da peça;
Caracteriza o requerimento;
Anexa o requerimento ao
processo
Guarda na pasta
do Habilus mail Habilus
Habilus
Carimba o requerimento em papel,
inscreve o número de registo, assina e deposita o requerimento no separador do
juízo em causa
Carimba o requerimento em
papel, inscreve o número de registo, assina e deposita o
requerimento no separador
do juízo em causa
Na Secção Central, dois funcionários judiciais dão entrada aos faxes e aos papéis (alternam entre si - às 2.ª, 4.ª e
5.ª, está um funcionário a fazer o atendimento; às 3.ª e 6.ª é outro). Quando não estão no atendimento, dão
entrada aos faxes, aos quais estão sempre atentos. Quando podem, ajudam na abertura do correio, mas só
raramente isso acontece. Também o funcionário encarregue das vídeo-conferências, quando pode, ajuda na
abertura do correio postal.
Um funcionário está encarregue de abrir os emails. De manhã, abre os emails e faz os registos. Quando chega o
correio postal, por volta das 10 horas, vai abri-lo e encarrega-se do correio registado. Um outro funcionário abre
o correio não registado. Quando acaba de abrir o correio postal não registado, ajuda no registado.
Depois de registados no Habilus e separados por juízos, os papéis são levados às secções de processos até às 17
horas.
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
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Escrivão
Auxiliar
“Pica a lista” dos papéis chegados
da Secção Central Habilus
Põe os papéis por ordem
numérica de acordo com o
número do processo
Procura os respectivos
processos Quando não encontra nas
prateleiras alguns dos processos, pesquisa no
H@bilus a sua localização
Se estiver no gabinete do juiz aguarda-se até ao fim da
semana que o juiz remeta o
processo para a secção, excepto se for um
requerimento urgente
Põe o processo no
carrinho de transporte, em pilhas referentes a
cada escrivão adjunto
Distribui essas pilhas pelas
secretárias dos colegas
Elabora notificação
Se for um papel
urgente, o auxiliar vai
levá-lo ao juiz
Escrivão
Adjunto
Abre folha de
conclusão
Imprime
Numera a folha
Junta ao processo
Conclusão Notificação
das partes
Juiz
Imprime o número de cópias
necessárias
Numera a(s) folha(s) a juntar ao
processo
Junta cópia(s) ao processo
Coloca no(s) envelope(s) e
envia
Habilus
Habilus
Se o juiz tiver muitos processos
conclusos pode o funcionário
abrir conclusão para alguns
dias mais tarde
O escrivão auxiliar por volta das 15.15h transporta o correio gerado naquela secção à Secção Central. No
fim do dia, o escrivão auxiliar arruma os processos no carrinho de transporte. Os processos que irão para o
gabinete do juiz ficam numa prateleira; noutra os que se destinam ao Ministério Público; e noutra os que são
para visto em correição. Na prateleira dos processos para o juiz, coloca numa pasta os processos urgentes e
actas para rever, assim como os processos que têm conclusão aberta para o dia seguinte.
Secção de Processos
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
120
Neste fluxo também foi possível identificar momentos em que a
definição do método de trabalho e a execução da tarefa concreta
dependerá da organização da secção e de cada funcionário. Por exemplo,
o momento de juntar o papel ao processo, fazer a notificação ou
conclusão variará de acordo com esses factores, podendo, como nos foi
referenciado, qualquer daqueles actos ocorrer em momento mais próximo
ou mais longínquo do acto que os precedeu.
Especificamente no fluxo Secção de Processos – Gabinete do Juiz está
representado o poder de controlo daquela sobre a tramitação do processo, uma
vez que para o juiz os processos a serem despachados dependem, em boa
medida, da secção de processos com o juiz a não ter o controlo sobre os
processos que estão pendentes. Eis aqui um bloqueio que a centralidade e
isolamento da Secção de Processos pode impor à gestão processual. Como se
verá mais adiante, um dos impactos positivos da desmaterialização apontado
pelos juízes é a possibilidade que estes agora passam a ter através do sistema
informático CITIUS de controlar os processos que estão distribuído à secção,
podendo, assim, mais facilmente acompanhar o movimento do trabalho da
secção de processos.
Essa separação entre secção de processos e gabinete do juiz também
pode originar bloqueios à gestão processual quando, por exemplo, dificulta a
sincronização do trabalho de ambos, designadamente que a agenda do juiz e a
sua quantidade de trabalho sejam concertadas com o volume e a actividade da
secção de processos. A falta de sincronia vivida pelo modelo actual de
separação das unidades orgânicas está exemplificada no seguinte depoimento
de um funcionário judicial:
O juiz tem os processos no gabinete que o funcionário decidiu levar para lá e decide
que vão para lá no momento em que entende que devem ir. Da mesma forma, o juiz
também decide o que envia para a secção quando entende que deve enviar.
Claro, que se o juiz se queixa quando vêm tantos processos num dia e vêm poucos
noutro dia, se calhar até posso estar bem organizado. Tiro os prazos à segunda, à
terça cumpro os despachos, à quarta juntos os papéis… posso ter a minha
organização, mas não há de facto nenhuma concertação entre a secretaria e o
gabinete do juiz (F4).
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
121
É de referir que a reformulação da gestão processual em Espanha que
conduziu à criação de um novo modelo de oficina judicial tinha por objectivo
precisamente, superar o modelo atomizado de funcionamento das diferentes
secções, criando uma unidade organizacional que pudesse integrar e
racionalizar os critérios de gestão do trabalho entre os diferentes participantes.
Fluxograma 3
Fluxo Gabinete do Juiz – Secção de Processos
Escrivão
de Direito
Retira do carrinho de
transporte os processos
No sistema informático
altera a localização para
“unidade orgânica”
Habilus
Coloca os processos
em pilhas
Coloca essas pilhas nas secretárias ou armários
dos adjuntos As cartas precatórias são
separadas para serem tramitadas pelo escrivão
auxiliar
Gabinete
do Juiz
Escrivão auxiliar leva os
processos para a secção
Diariamente, em geral pela manhã, o escrivão auxiliar leva para o gabinete do juiz os processos e actas
de audiência trabalhados na Secção de Processos e traz de lá os que já tiverem sido despachados. Na
secção de processos, o escrivão de direito retira do carrinho de transporte os processos provenientes dos
gabinetes dos magistrados e distribui-os entre os adjuntos.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
122
O Fluxograma 3, ao representar o fluxo inverso do Gabinete do Juiz para
a Secção de Processos, reforça a falta de integração e sincronia entre estas
unidades. A Secção de Processos não interfere na quantidade de trabalho
devolvida pelo juiz, pelo contrário, é também por ela condicionada. Durante o
trabalho de campo, pudemos observar, por exemplo, uma secção de processos
que funcionava com níveis óptimos de produtividade, mas onde as funcionárias
se assumiam desmotivadas porque o ritmo de trabalho da juíza não
acompanhava o da secção e tampouco o ritmo a que estiveram acostumadas
com juízes anteriores.
6.2.3 Os actos das secções e o impacto da Portaria n.º 114/2008
Como já referimos, foi recentemente publicada a Portaria n.º 114/2008,
de 6 de Fevereiro, cujo objectivo principal é “a eliminação e simplificação de
actos e processos na justiça”, com vista a promover a facilitação do acesso à
justiça e a simplificação dos processos de trabalho nos tribunais através da
utilização intensiva das novas tecnologias (Cf. Preâmbulo).
Como demonstramos nos Fluxogramas seguintes, a implementação da
Portaria conduz à simplificação de alguns actos, criando uma distribuição
automática, eliminado a necessidade de impressão em papel de muitos
actos e eliminando etapas no curso do processo.
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
123
Fluxograma 4
Encaminhamento da petição inicial antes e depois da vigência da Portaria 114/2008
Petição inicial
Correio
electrónico
Imprime o email, os
anexos e o MDDE
Grava o email
e respectivos
anexos
Carimba o
papel e separa
Verifica os requisitos de
admissibilidade
Habilus
Habilus
Distribuição
Imprime as etiquetas e
cola-as
Secção de
processos
Regista os dados dos
intervenientes e do processo
Petição
inicial
Plataforma
informática
Distribuição
Automática
Secção de
processos
CITIUS
Imprime
Habilus
Funcionário acede
ao registo e retira a indicação de
suspensão
Habilus
Secção Central
Secção Central Antes da entrada em vigor da Portaria
Depois da entrada em vigor da Portaria
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
124
Fluxograma 5
Actos de conclusão e notificação antes e depois da vigência da Portaria 114/2008
Abre conclusão
electrónica
Elabora notificação Habilus
Habilus
Conclusão
Notificação das partes
Juiz
Os processos vão
fisicamente para o gabinete,
excepto quando
tal seja dispensado pelo
juiz
CITIUS
Imprime o número de cópias necessárias
Coloca no(s) envelope(s) e envia
Coloca no(s) envelope(s) e envia
Junta ao processo
Junta cópia(s) ao processo
Numera a folha
Numera a(s) folha(s) a juntar ao processo
Imprime
Imprime o número de cópias necessárias
Abre folha de
conclusão
Elabora notificação Habilus
Habilus
Conclusão
Notificação
das partes
Juiz
Os processos vão
fisicamente para o
gabinete
Antes da entrada em vigor da Portaria Depois da entrada em vigor da Portaria
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
125
Como se pode verificar nos Fluxogramas 4 e 5, os ganhos de
produtividade são evidentes, com a automatização de alguns actos (como a
distribuição automática) e a eliminação de etapas de trabalho (como a
impressão dos documentos, a junção de papéis ao processo e a respectiva
numeração das folhas). Também a simplificação de alguns procedimentos foi
apontada como um ganho de eficiência muito positivo.
Na verdade, aquando da realização do trabalho de campo, muitos
funcionários salientaram o grande benefício com a economia de tempo que o
fim da impressão e junção dos documentos implicou. Essa percepção foi
verificada, sobretudo, na Secção Central e, na secção de processos, no
trabalho dos escrivães auxiliares, que eliminaram muito do seu tempo de
trabalho dispendido com a tarefa de junção de papéis.
Mas, como já referimos, a adopção das inovações tecnológicas
implica reflectir sobre: (1) a necessária adaptação dos espaços físicos; (2)
a capacidade dos recursos materiais para suportarem as exigências da
desmaterialização; (3) a eventual adaptação do quadro funcional à nova
realidade; (4) a formação e acompanhamento necessários para enfrentar
possíveis resistências; e (5) a reconversão e requalificação dos
funcionários, no sentido de adquirirem competências necessárias à
utilização das novas ferramentas. Como temos vindo a demonstrar, este é
um processo que, entre nós, ainda enfrenta muitos obstáculos67. Neste
67 Estas observações analisam a realidade do projecto de desmaterialização tal como se apresentou no decurso do trabalho de campo. Mas não podemos deixar de referir que este é um processo em curso, cuja concretização de etapas futuras podem vir a sanar algumas das deficiências que apontamos. Num dos painéis de discussão, um dos funcionários avançou expectativas futuras quanto à evolução dos actuais sistemas informáticos, o que faz prever a resolução de alguns dos problemas ainda evidenciados: “(...) Há aqui uma série de actos que vão ter de ser corrigidos em função da portaria 114. Isso já nós vimos e há uma quantidade de coisas que hão-de chegar ao dia 30 e vão estar por fazer. É um processo que vai demorar, porque mexer no sistema que temos leva o seu tempo. Não temos outra solução. Relativamente àquilo que P4 disse, efectivamente falta-nos completar o resto do circuito. Ou seja, vem o sistema electrónico dos advogados, dá a volta toda e quando tem de regressar ao advogado a notificação vai a papel. Ora, primeiro tem de haver aqui alguma alteração legislativa, mas para além disso, que creio que seria feito relativamente rápido e sem problemas, Relativamente às injunções, os advogados já são notificados electronicamente através do “CITIUS mandatários judiciais”. Não há qualquer tipo de papel em termos de notificações. Relativamente aos restantes processos, aos processos comuns, irá ser criado um sistema idêntico, onde em vez do funcionário imprimir a carta e apesar de ter o correio facilitado, vai passar a ser tudo automático, ou seja, clicar no botão e aquilo vai via electrónica e volta na mesma via. Não só traz economias em custos, como também em tempo, pelo menos a perda de tempo com o correio, na parte de dobrar, etc. Isso é algo que vai acontecer seguramente. Não é via electrónica, é através da Web, o mesmo
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
126
contexto, volta-se a ressaltar a importância da formação, não só para permitir
que seja extraído das ferramentas electrónicas o maior proveito possível, como
também para actuar como um mecanismo de suavização das resistências. O
depoimento de um funcionário é ilustrativo dessa necessidade:
Se a formação não for dada no momento certo, o caminho torna-se mais difícil. Isto não
é difícil, o que é difícil é a sua execução. Por exemplo, no tribunal em que eu trabalho
aconteceu isto de um dia para o outro com as execuções. Tinha-se o hábito de imprimir
meio com que eles comunicam para nós, nós comunicamos para eles. É tudo via Web, tudo mais seguro. Isto vai ser o grande salto. Depois, só para termos uma ideia daquilo que há para fazer e está previsto ser feito, até meados do ano ou até às férias, é a desmaterialização completa do registo criminal, integração completa entre o Habilus e o SICRIM, que é um sistema novo que está a ser criado e que vai desmaterializar o registo criminal. Vamos passar finalmente a ter um registo criminal quase online, portanto já não vamos demorar aqueles três meses quando pedimos para vir os certificados. Temos também até ao Verão a questão dos DIAPs. Temos uma empresa a trabalhar connosco, no sentido de fazer não só a migração das bases de dados do SGI para o Habilus, como inclusive desenvolver um conjunto de funcionalidades, que vai permitir a prática de um conjunto de actos em lote, para já dedicado ao inquérito nesta primeira fase, mas que vai ser alargado a todas as áreas processuais. Vai permitir às secretarias, com maior facilidade, praticar os actos. Depois temos também a questão das custas judiciais. Portanto, o regulamento das custas que está a começar a ser desenvolvido por uma equipa da DSI da DGAJ do Porto, que é um programa autónomo, mas vai estar integrado no Habilus, ou seja, vai ser algo melhor que o sistema actual, em que há importação dos dados do Habilus para o actual sistema das custas. Vai estar integrado, mesmo a conta, há-de cair nos processos respectivos, evitando a possibilidade das pessoas andarem a anexar e a digitalizar, etc. Temos também a questão, mais para breve, para iniciar a partir do dia 7 de Abril, que é a distribuição automática, vai deixar de ter uma intervenção humana sempre que os processos estejam prontos para a distribuição. Vamos ter o acesso à Segurança Social e a todas aquelas entidades que constam do menu e que estão previstas serem integradas no Habilus. Vamos passar a ter acesso a informações que, hoje em dia, demoram meses. Portanto, tudo isto está previsto ser desenvolvido até às férias. O que não acredito, porque há sempre muita coisa que se mete pelo meio. Esta semana vai ser colocado nos tribunais um módulo de estatística, que vai substituir o actual, para além de conter tudo o que a análise de pendências tem melhorado, pode inclusive cruzar alguns dados, por unidade orgânica, por magistrado, por tipo de crime. (...) Dentro em breve vão acabar os mapas mensais. Quero acrescentar que, para além de todos os mapas que já existia e que foram melhorados com outro tipo de critérios, adicionámos mais alguns, nomeadamente ao nível da distribuição, onde é possível ver-se aquilo que até agora não era possível. Podemos conhecer acções por complexidade, nas distribuições penais, porque no crime não há papéis de distribuição, nós criamos a complexidade para se dividir os presos, os soltos, os complexos. Inclusive na parte dos processos de crimes prioritários, é necessário saber que tipo de decisões foram tomadas. Está previsto inclusive cálculo do tempo médio da duração do inquérito. Dentro de um determinado tempo findaram um determinado número de inquéritos, sabemos como findaram, inclusive sabemos aqueles que findaram e o tempo médio daqueles que findaram para dar uma noção se estão a demorar mais ou se estamos a obter ganhos relativamente a isto. (...) Fizemos um modo que está em fase experimental de gravação digital para as audiências, completamente integrado no sistema, com todas as virtualidades que possam advir daí. Não têm de fazer rigorosamente nada. Numa primeira fase, a gravação vai ser enviada para CD ou DVD. Futuramente, aquilo que se pensa fazer, penso que num espaço relativamente curto, são gravações que passam a ficar centralizadas no serviço central e que por sua vez possam ser disponibilizados através do CITIUS para advogados e para magistrados”. (P4)
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
127
os requerimentos executivos, a partir do dia em que foi publicada a portaria dei
indicações para nada mais ser impresso na Secção Central, e expliquei às pessoas
como se faz. Hoje já quase não tenho papéis na Secção Central. Claro que isto foi feito
de forma concertada com os juízes, para saberem que deixavam de receber papéis
para receber comunicações electrónicas e que no caso das execuções não tinham de
imprimir nada. Não sei se alguma vez houve alguma hesitação com a mudança de
procedimento. Mas estamos tão rotinados com o nosso trabalho que é preciso
que alguém alerte que a partir de hoje deixa de ser assim. Penso que era
fundamental nesta fase fazer isto. Sinceramente, em relação aos juízes, estava à
espera de uma reacção menos boa. Mas depois de conversarmos um bocado,
perceberam isto. Uns com mais rapidez que outros, todos aceitaram pacificamente
(F4).
O depoimento também aborda a necessidade de acompanhamento dos
impactos das alterações na rotina de cada funcionário. De facto, não nos
podemos esquecer que a modernização também pode servir para a
consolidação de um modelo técnico-burocrático de gestão processual e, nesse
caso, significaria não muito mais que a simplificação e automatização de
alguns procedimentos mantendo inalteradas as rotinas e os métodos de
trabalho. Nesse caso, um dos maiores riscos é, ao simplificar a rotina de
trabalho do funcionário, provocar a sua automatização e um maior
alheamento da gestão do processo e do serviço como um todo. Esse
perigo foi apontado por um funcionário durante o painel de discussão:
A aplicação HABILUS facilitou muito e uniformizou critérios de trabalho, porque até
aqui, até os modelos de impressos que se utilizavam variavam de tribunal para tribunal.
Só que agora temos outro problema, a excessiva dependência do HABILUS e a
automatização dos funcionários que, aliada a ausência ou deficiente formação,
não se preocupam saber como se tramitam os processos, limitando-se a
procurar saber se o que vão fazer está ou não no HABILUS (F6).
Consideramos, por isso, que a informatização deve implicar um
repensar dos métodos de trabalho e da organização de serviço tendo em
vista uma perspectiva gestionária da tramitação processual baseada em
critérios de racionalização, optimização e orientada para a eficácia,
eficiência e qualidade da justiça do caso concreto.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
128
Como se pode ver na tabela seguinte, o processo de desmaterialização,
para além das facilidades que implica, vem também acompanhado de
dificuldades e preocupações vivenciadas pelos operadores judiciários. Na
Tabela 3, sistematizamos o discurso dos operadores judiciários que emergiu do
trabalho de campo.
Tabela 3
A desmaterialização do processo na opinião dos funcionários entrevistados
Potencialidades Problemas Preocupações
Confere maior confiança,
segurança e transparência ao
sistema.
É difícil visualizar de forma
desmaterializada peças
processuais extensas.
Se o sistema evoluir nesse
sentido, as partes, por qualquer
motivo, podem não conseguir
aceder às notificações
electrónicas que lhes forem
feitas.
Permite administrar a
pendência do juízo, controlar
os processos e acompanhar o
trabalho da secção.
Lentidão do sistema,
sobretudo quando é
necessário trabalhar com
mais de uma aplicação.
Dúvidas quanto à capacidade
do sistema em arquivar todos
os dados.
Poupa tempo: o recurso ao
papel, actualmente, leva a
procedimentos e rotinas de
trabalho desajustados com a
realidade e a gastos
desnecessários.
Abandonar o papel como
suporte de trabalho. O papel
permite um acesso e consulta
mais rápidos e um maior
volume de informação.
Receio de que se extraviem
documentos.
Permite libertar os funcionários
de tarefas, como furar os
papéis e juntá-los aos
processos.
Cortes de rede que
prejudicam a comunicação
electrónica.
Sistema não ter capacidade de
resposta e velocidade
suficientes para atender às
necessidades dos utilizadores.
Facilita o cumprimento de
prazos por parte dos
advogados.
Impossibilidade de trabalhar
no CITIUS fora do tribunal. Não existir um “arquivo virtual”.
A tramitação das cartas precatórias é um exemplo de dificuldades na
informatização sem recursos materiais adequados, como decorre do
Fluxograma seguinte:
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
129
Fluxograma 6
Circuito das cartas precatórias na vigência da Portaria 114/2008
Tribunal Deprecante
Envia Carta Precatória e
Documentos por via postal
Envia Comunicação
Electrónica
Secção
Central
Aguarda a chegada
de documento
Remete apenas a Comunicação
Electrónica
Secção de
Processos
Encaminha o suporte em papel
Abre conclusão electrónica
Juiz
Profere despacho electrónico “Cumpra-se”
Secção de
Processos
Remete os documentos em
suporte de papel
Funcionário
recolhe o suporte
em papel
Encaminha a ordem de cumprimento
electrónica
Secção de Serviço Externo
Habilus
Habilus
Habilus
CITIUS
Habilus
Chegada de documento(s)
Anota a data em que foi
recebido o documento
Distribuição Habilus
Remete documento(s)
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
130
Como o Fluxograma aponta, depois da implementação da Portaria, as
cartas precatórias são enviadas telematicamente e distribuídas de forma
automática pela Secção Central, eliminando-se a etapa da impressão.
Contudo, como os documentos que acompanham o processo não são
digitalizados (de acordo com a informação dos funcionários porque muitos
tribunais não possuem, ainda, digitalizadores), o andamento das cartas
precatórias dentro do tribunal é feito de duas formas: telematicamente e no
papel.
6.2.4 A necessária adequação das regras processuais
Nos debates que no âmbito de diversos estudos sobre a reforma da
justiça cível temos vindo a realizar há um relativo consenso quanto à
necessidade de criação de novos paradigmas processuais. Essa foi, por
exemplo, a posição assumida pela maioria dos intervenientes nos painéis de
discussão realizados no âmbito do estudo sobre o mapa judiciário. Esta
questão voltou a emergir no debate quando se discutem medidas e
mecanismos para melhorar a gestão processual.
Consideramos, como já escrevemos em outros trabalhos, que é
fundamental fazer-se entre nós uma ampla discussão que nos leve à
adopção de regras processuais menos complexas e menos burocráticas,
e, consequentemente, menos indutoras de morosidade e mais adequadas às
expectativas dos cidadãos e ao seu tempo social. Este processo tem que ser
orientado pelos princípios da oralidade, celeridade e simplificação de
procedimentos e tratar, obrigatoriamente, de forma desigual os litígios de baixa
e alta intensidade. A avaliação da reforma em curso do Regime Processual
Civil Experimental será um auxiliar fundamental nessa discussão.
Não basta, pois, simplificar procedimentos. É fundamental que se
crie um reforço da oralidade, quer nos actos das partes, quer nos actos
jurisdicionais. Como nos foi amplamente referido por vários dos agentes
judiciais entrevistados, continuamos com um excessivo peso da escrita, quer
nas peças processuais apresentadas pelas partes, quer nos despachos dos
juízes, em especial das sentenças.
A prática dos actos: factores e caminhos para uma tramitação processual mais eficaz e com melhor qualidade
131
O “atavismo” processual tem efeitos negativos na tramitação do
processo, não só porque é ele próprio indutor de morosidade, mas
também porque diminui a eficácia da aplicação das novas tecnologias à
gestão processual. Como foi amplamente referenciado pelos agentes
judiciais, há uma clara desadequação entre regras e práticas processuais e
os objectivos de celeridade, racionalidade e eficácia pretendidos, como
se estivéssemos em dois tempos distintos e dessincronizados.
A tramitação processual, prevista nas leis de processo, e enraizada nas
rotinas e cultura judiciária, é uma tramitação que tem o seu lastro na cultura do
papel, assente em despachos judiciais extensamente fundamentados; em
sentenças de várias páginas, que repetem a base instrutória, os fundamentos
das partes, extensa doutrina; e em articulados e requerimentos das partes
extensos, com longas repetições de factos e de argumentação jurídica68. Esta
cultura processual é difícil de transpor, com ganhos de eficácia e de
qualidade, para a tramitação telemática. É exemplo dessa dificuldade o facto
de numa das secções centrais em que realizámos trabalho de campo ter sido
recebida uma petição inicial, cujo anexo contava com 790 documentos. A
escrivã adjunta demorou um dia inteiro para proceder à sua digitalização69.
Também os juízes mostram preocupação com o facto de a
desmaterialização não comportar o peso de uma cultura jurídica baseada em
normas e peças processuais pouco simplificadas:
(…). A nossa cultura exige a fundamentação de facto e de direito. A isto não escapamos.
(…) Eu já vi sentenças de tribunais franceses e espanhóis mais simplificadas do que as
nossas. Isto tem a ver com a cultura judiciária. Eu vejo com muita dificuldade fazer um
saneador sem um suporte de papel. (Ent. 48)
Eu, hoje, para dar um despacho tive de abrir seis anexos. Eu demorei à vontade dez
minutos. (Ent. 47)
68 Sobre esta questão, Cf. Observatório Permanente da Justiça Portguesa. Os actos e os tempos dos juízes: contributos para a construção de indicadores da distribuição processual nos juízos cíveis. 69 Foram apontados ainda outros exemplos dificultadores da agilização da tramitação processual, como a existência de vários prazos de dilação, a diversidade de normas relativas à citação e notificação e a possibilidade de existirem muitos incidentes.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
132
Sem alterações de fundo no paradigma processual e cultural, a
informatização, ao modificar apenas o meio de comunicação da tramitação
processual mantendo inalteradas as regras processuais e os métodos de
trabalho, além de não provocar grandes ganhos na eficácia da tramitação
processual (os magistrados queixam-se que não conseguem acompanhar o
ritmo da secção de processos, o que leva a que os processos parem mais
tempo na sua secretária) poderá, ainda, a curto prazo, promover a “duplicação
de processos” com um processo oficial a tramitar telematicamente e outro
“informal” com todas as peças processuais impressas.
Como temos vindo a referir, a eficácia na gestão processual da
concretização da desmaterialização implica a alteração de um conjunto de
factores com ela relacionados, como sejam a alteração da organização e
dos métodos de trabalho, o bom funcionamento dos recursos humanos e
materiais, a alteração no paradigma processual e na cultura jurídica, entre
outros. Sem esse respaldo, podemos assistir não só a poucos ganhos de
eficácia na gestão processual, como ainda a alguns efeitos perversos da
reforma, como a duplicação do trabalho em que, paralelamente aos actos
virtuais, são mantidos os actos manuais.
O aumento da eficácia, da eficiência e da qualidade da tramitação
processual passa pela mudança da lei, mas passa também por mudanças
culturais, quer da advocacia, quer das magistraturas. Este processo de
mudança é lento, mas só se pode fazer com dinâmicos e alargados espaços de
debate e, sobretudo, com um programa estratégico de formação.
A gestão efectiva do caso concreto
133
7. A gestão efectiva do caso concreto
Como temos vindo a demonstrar, são múltiplos os factores que
condicionam a melhoria da qualidade e eficiência do sistema judicial e,
em último grau, da administração da justiça. Regras processuais, políticas ou
medidas gestionárias, organização judiciária, organização interna das
estruturas judiciais, designadamente das secções de processos, métodos de
trabalho, modernização tecnológica, adequação das infra-estruturas, formação,
colocação e progressão na carreira dos agentes judiciais e cultura judiciária,
são factores a ter em conta quando o objectivo é elevar a qualidade, eficiência
e a cidadania da justiça. Naturalmente que conseguir o ponto óptimo de todos
eles num dado sistema judicial (e o ponto óptimo seria sujeito a diferentes
interpretações) é objectivo quase impossível. Por isso, o que consideramos
fundamental é que as alterações sobre cada um deles não percam de vista
uma perspectiva sistémica e a interacção necessária com todos os outros.
É na forma como os tribunais tramitam e decidem os processos
concretos, isto é, respondem à procura que lhes é dirigida que todos
aqueles factores se interseccionam e combinam. A eficácia, eficiência e
qualidade dessa combinação determina igual eficácia, eficiência e
qualidade na resolução do caso concreto.
Nesse percurso, é crucial o modo como se faz a participação e
interacção dos diferentes intervenientes processuais. Como refere Lopes
(2008: 1), defendendo a necessidade de abandono da cultura do «isolamento»,
“a cooperação intersubjectiva entre os vários operadores no sistema
judiciário, sem prejuízos das competências funcionais de cada um, é
assim fundamental por um lado na compreensão do funcionamento do
sistema e, por outro, na produção e melhoramento de resultados
adequados no sistema produtivo”.
De entre todos os intervenientes, é ao juiz a quem os sistemas judicias
atribuem um papel mais activo na gestão do caso concreto. Ao juiz é
conferido um papel central na prossecução de uma gestão processual
orientada para a eficácia, eficiência e qualidade do caso concreto. “Ao juiz
pede-se um conjunto de actos e procedimentos que a nenhum outro «sujeito da
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
134
organização» tribunal é pedido. (…) O juiz é também a face visível da justiça
perante o cidadão que acede ao tribunal” (Lopes, 2008: 3).
Contudo, como veremos, tal como em muitas outras áreas do sistema
judicial, a prática está, entre nós, longe desse objectivo, embora se
defenda a essencialidade de o juiz assumir efectivamente esse papel. A
grande questão é, pois, de como fazer que tal aconteça.
7.1 O papel do juiz no confronto entre duas visões na tramitação do caso
concreto: a técnico-burocrática vs a gestionária
Confrontam-se duas perspectivas sobre a tramitação de um dado
caso/processo: uma técnico-burocrática que tende a privilegiar o processo
como uma sequência de actos em que cada um dos intervenientes processuais
(partes, advogados, funcionários e juiz) pratica os actos que a lei lhes atribui; e
outra que olha para o caso concreto, nas suas diferentes dimensões, que
subjaz ao processo. Esta última perspectiva pressupõe, sem colocar em
causa os direitos e garantias das partes, uma gestão tendencialmente
diferenciada de cada processo, considerando as suas características,
como a natureza do litígio, o valor, o número de intervenientes, etc. Esta
gestão do caso concreto confere ao juiz um papel crucial podendo, para tal,
recorrer a um vasto conjunto de medidas.
Ora, como resulta do nosso trabalho de campo, e apesar de alguns
passos dados, domina entre nós, sobretudo no âmbito da justiça cível, uma
visão técnico-burocrática do processo. Como reconhece um dos juízes
entrevistados:
nos nossos tribunais ainda impera muito a rotina, o funcionamento burocrático, o
trabalhar, sobretudo, para aquele dia e não para a finalidade do processo (...)Tudo
passa por tramitar tudo para a etapa seguinte e se a etapa seguinte é o saneamento do
processo e não a decisão final, obviamente cria-se ali o sentimento de se estar a
trabalhar para outras etapas seguintes que nunca são a etapa final da decisão final.
(P5)
A gestão efectiva do caso concreto
135
Esta visão técnico-burocrática leva a que, por exemplo, haja uma cultura
nos funcionários judiciais no sentido de darem prevalência ao cumprimento dos
despachos.
O que o juiz despacha transforma-se no primeiro objectivo de serviço para o
funcionário, ele quer cumprir logo, deixando parados os outros processos até que, um
certo dia, se lembra de “tirar prazos”. As inspecções do COJ também fomentam esta
actuação. As inspecções, na avaliação que efectuam ao desempenho dos
funcionários, dão prevalência ao cumprimento atempado dos despachos e
decisões proferidas e não ligam tanto ao que está lá parado há anos. (P4)
Não basta, pois, tramitar ou agir relativamente ao caso concreto de
acordo com as regras processuais (elas próprias, em muitos aspectos,
devem ser objecto de alteração), mas, e ainda, de acordo com objectivos
orientadores e mecanismos de gestão processual, com o propósito de
uma decisão final que seja, simultaneamente, justa e rápida:
se os dois objectivos fundamentais são obter uma decisão justa e rápida então
todo o processamento deve ter em consideração esse objectivo. Nesse sentido, o
juiz deve ter poderes em qualquer área que lhe permitam chegar a essa decisão
rapidamente. As diligências processuais e todas as diligências de prova devem ser
feitas nesse sentido. (P2)
Se é certo que o papel central é do juiz, essa perspectiva tem que ser
assumida por todos os intervenientes do processo, em especial pelos
magistrados e funcionários, vencendo-se uma cultura em que o
desempenho funcional está muito assente em rotinas e na tendência para
um produtivismo quantitativo. O trabalho desenvolvido pelos vários
intervenientes deve ter como objectivo central a decisão/resolução final do caso
e “não para marcar diligências ou para despachar processos ou para dar
decisões formais de rotatividade do processo (...). As próprias regras do
processo devem conter a ideia de que o objectivo final é o da decisão
final (da sentença). Toda a preparação do processo tem o objectivo claro de
marcar uma audiência de julgamento e de proferir a decisão final” (P5).
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
136
As regras processuais podem, de facto, funcionar como
estimulador de uma cultura de gestão do caso concreto, ou, pelo
contrário, como um bloqueador a essa perspectiva. A actual estrutura do
processo civil, ao contrário do que acontece com outras regras processuais,
como é o caso do Código de Processo do Trabalho, é, tendencialmente, vista
na segunda perspectiva, isto é, como factor de bloqueio.
O Código de Processo Civil (CPC), ao contrário do Código de Processo do Trabalho
(CPT), não aponta logo o fim do processo. O CPP e o CPT já o fazem. O processo
entra e logo é marcado o julgamento com vista à finalização do processo. A
audiência inicial de partes no processo do trabalho, após a entrada da petição inicial,
marca logo de início a disciplina dos actos até ao termo do processo e isso faz toda a
diferença em relação ao processo civil. (P1)
Cada caso/processo concreto deve, assim, ser orientado, desde a sua
entrada no sistema, em função da decisão final:
a questão fundamental é esta: quando se começa o processo é preciso ter em
atenção, logo, o tempo da decisão final, marcar e controlar esse tempo e, depois,
gerir em função dele. Evidentemente que isso tem a ver, também, com os aspectos
da organização do tribunal, já que, por exemplo, não é possível marcar julgamento a
quatro meses do início do processo se não houver salas de audiência disponíveis para
alcançar esse objectivo. (P1)
A necessária diferenciação gestionária do processo
Como acima referimos, uma das dimensões essenciais da gestão
processual é, na verdade, a utilização de mecanismos adequados a
proferir uma decisão que seja, simultaneamente, justa e rápida. Para
alcançar tal objectivo, impõe-se “ao juiz que na visualização do trabalho
distribuído possa, desde logo, diferenciar o tipo de processos e nestes o
tipo de actividades mais ou menos complexas que lhe são exigidas. A
constatação desta evidência e a sua concretização prática implica, desde logo,
A gestão efectiva do caso concreto
137
a possibilidade de gerir melhor toda a actividade que cada um dos processos
exige ao magistrado” (Lopes, 2008: 15)70.
Esta diferenciação, que permitirá ter uma visão estratégica do
processo, quer no que respeita à sua duração previsível, quer aos actos a
praticar e à sua complexidade, necessita de recorrer a critérios mais amplos
do que os actualmente definidos nas regras processuais em função do
valor e da natureza do processo. Especificamente no que respeita ao
processo civil, o nosso estudo mostra que a diferenciação em função do
valor e da forma processual, ou mesmo em função das espécies de
distribuição não é suficiente para abarcar a pluralidade da actuação
exigida ao magistrado judicial em cada caso concreto.
Esta insuficiência de critérios legais de diferenciação processual é
realçada por um entrevistado da seguinte forma:
há, ainda, outra dimensão que é preciso articular, é que a diferenciação entre
processos não é uma diferenciação que está clara nas normas processuais
legais, isto é, actualmente o nosso tipo de litigância não se compadece com a
distribuição de espécies processuais consagradas que nada têm a ver com o
peso, por vezes, que os processos têm, nem, porventura, era possível articular na lei
tudo aquilo que é necessário fazer para a gestão processual para distinguir espécies
processuais e para distinguir tipos de casos. Isto é, um tipo de caso pode ter um
impacto grande no funcionamento do tribunal sendo uma espécie processual com
pouco peso, sendo que, às vezes, as espécies processuais também não fazem
distinguir o peso que o processo deve ter e qual é o tempo disponível ou o esforço que
o sistema deve implementar para a resolução daquele caso. Temos que ir mais além
e permitir que, relativamente aos casos em presença, eles possam ser diferentes
consoante os graus e formas de intervenção gestionária atendendo, por exemplo,
à complexidade, à novidade dos casos, à capacidade, e estratégia ou atitude dos
advogados, às rotinas, às ordens práticas, às informações, às inspecções
judiciais, às circulares dos Conselhos, à importância económica, social ou
mediática dos próprios casos. Há casos em que o juiz, pelo impacto mediático que
tem o processo, deve ter uma gestão diferenciada. O caso Casa Pia podia ser um
processo tratado numa audiência de julgamento que não demorava mais do que
70 Lembramos aqui as recomendações da CEPEJ, explanadas no ponto 5, chamando a atenção para a necessidade de adaptação da tramitação processual à complexidade do caso.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
138
algumas horas, o que não ocorreu, pelo impacto político que teve, pela dimensão
mediática, pela estratégia das partes envolvidas. (P5)
Ainda o mesmo magistrado, cuja perspectiva analítica se justifica
continuar a citar.
Tem que perceber que os casos funcionam, não só com as espécies processuais
que estão em causa, com as regras processuais, mas também com a dimensão e
o peso processual que concretamente está ali em causa. Tem que se olhar para a
identidade social das partes, eventualmente, para a estratégia dos advogados e tem
que criar, ao mesmo tempo, graus de procedimento “tarifado” para algum tipo de
litigância; e para outros, tem que se criar obviamente uma disposição de agenda e
tramitações que sejam adequados a cada caso sem prejudicar o tratamento equitativo
das partes e sem entrar em dessintonias ou violando até o princípio da igualdade das
outras partes. (P5)
Em sentido idêntico, um outro entrevistado referiu que:
há algo muito importante, que nada tem a ver com a lei, quer do processo civil, quer do
processo penal, mas tem a ver com a diferenciação processual. É preciso de uma vez
por todas encarar o facto de termos que tratar de forma diferenciada o que é
diferente. Já hoje há processos especiais que são diferentes em função do tipo de
interesses, do valor, da natureza do processo, etc., mas não temos, por exemplo, em
nenhuma lei - nem talvez teremos que ter alguma lei mas apenas em termos de gestão
– assegurado o princípio da diferenciação do tempo previsível da resolução. Se
eu sei que para fazer uma sentença de divórcio litigioso ou uma acção de despejo por
falta de pagamento de rendas demoro cerca de “cinco minutos”, sei que aquela acção
vai demorar menos do que dez minutos e posso gerir o meu tempo em função dessa
previsão. Agora, se tiver uma acção de empreitada que tem problemas jurídicos
complicadíssimos, tenho que ter à partida a possibilidade de prever que aquela acção,
nomeadamente a decisão, me vai levar uma semana a fazer e tenho que ter a minha
agenda programada para efectuar numa semana uma decisão complicada que tem o
mesmo peso numérico que a decisão do arrendamento que demorou só cinco minutos.
A previsibilidade da resolução do caso é um dos itens fundamentais em termos
de gestão que temos que levar em consideração. (P2)
A gestão efectiva do caso concreto
139
Já no projecto de investigação realizado em 2002 pelo Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa, denominado “Os actos e os tempos dos
juízes: contributos para a construção de indicadores da distribuição processual
nos juízos cíveis”, se chamava a atenção para a variação significativa, não
só das durações dos processos, mas ainda do tempo dispendido pelo
magistrado judicial na prática dos seus actos, consoante o objecto de
acção71.
Como se demonstrou, “conhecendo os actos efectivamente praticados
pelo juiz nos diferentes tipos de acções (…) e sabendo o tempo que o juiz
necessita, em média, para os praticar seria possível determinar o que
designámos de ‘tempo esperado do juiz por processo de determinada
categoria de objecto de acção’ (o número médio de horas de dedicação do
juiz com um determinado processo de determinada categoria de objecto da
acção) e, a partir desse indicador, fazer uma projecção para todos os juízos
cíveis” (2002: 339).
O conhecimento da duração média e do “tempo esperado do juiz”
para os diferentes tipos de litígios são auxiliares importantes do
desenvolvimento de medidas de gestão processual.
O planeamento e agendamento dos principais actos jurisdicionais
O planeamento e agendamento, eficazes e logo que o processo se
inicie, dos principais actos jurisdicionais, em especial das audiências
preliminares, despachos saneadores, audiências de discussão e
julgamento e sentenças, são considerados como instrumentos
fundamentais da gestão do caso concreto.
Nesse sentido, Lopes (2008: 12) defende que uma gestão proactiva do
processo implica um “planeamento e calendarização atempado e realista que
tenha em consideração o tipo de processo e o seu objectivo”. Aquele autor
71 Sobre esta questão, chamava-se a atenção para dois aspectos. Por um lado, que “o peso relativo de cada intervalo de duração daquelas acções [declarativas] sofre variações significativas se considerarmos o objecto de acção. O peso relativo dos intervalos de duração igual ou superior a dois anos é maior nas acções de direito de propriedade e outros direitos reais e nas acções relativas a actos, contratos e outras acções (sem dívidas)” (2002: 152-153). Por outro, no que respeita aos tipos de actos praticados pelo magistrado judicial em processos cíveis, que foram categorizados em 37 tipos, “que as durações médias estimadas para cada uma das 37 categorias são muito distintas, havendo actos com uma duração estimada (mínima) de 4,85mn e outros com duração estimada (máxima) de 141mn” (2002: 358).
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
140
defende, assim, um “sistema de pré-marcações de julgamentos em dias
certos e definidos, que sirva de referência ao tribunal, às partes e aos
seus advogados, bem como à administração judiciária, a fim de assegurar a
gestão de recursos humanos e prever a escala de juízes. Para aproveitar as
vantagens de um sistema de fixação prévia de datas importa determinar o
momento exacto em que pode decorrer a audiência, tendo em conta a
evolução do processo”.
Resulta do trabalho de campo realizado no âmbito deste estudo que esta
é uma matéria que é decidida de forma subjectiva por cada juiz e nem sempre
muito articulada dentro do tribunal, verificando-se muita heterogeneidade.
Se é certo que haverá sempre um grau de subjectividade na
metodologia de trabalho de cada juiz72, também é verdade que envolvendo a
prática de alguns dos actos jurisdicionais outros recursos do tribunal,
72 A metodologia de trabalho adoptada nos vários tribunais e, inclusive, dentro do mesmo tribunal pelos vários juízes é muito diversa. No tribunal F, uma magistrada (Ent.17) referiu que marca as diligências das acções sumárias e AECOPECs para o período da manhã, reservando as tardes para inventários, para o expediente e para processos urgentes, marcando diligências para todos os dias da semana. Já uma outra magistrada judicial do mesmo tribunal (Ent. 18) referiu que marca diligências para os períodos da manhã e da tarde, sendo raros os dias sem marcações para um desses períodos. No tribunal C, a magistrada (Ent. 2) marca as diligências de preferência para a tarde e reserva as manhãs para as continuações, para as providências cautelares e para o trabalho de gabinete, referindo que “assim, quando estou na sala já não estou preocupada com os processos que tenho para despachar porque já despachei de manhã”. Da mesma forma, não marca diligências para todas as sextas-feiras, a fim de aí poderem ser “encaixadas” as providências cautelares que forem surgindo. No mesmo tribunal C, uma outra magistrada (Ent. 81) marca, preferencialmente, julgamentos para as terças-feiras, quartas-feiras e quintas-feiras. A segunda-feira reserva-a para as diligências menos morosas e para as marcações urgentes e a sexta-feira fica livre para elaborar despachos e sentenças e para diligências curtas e/ou urgentes, como embargos de terceiros, conferências de interessados e providências cautelares. No entanto, refere que tudo o que seja mais complicado e que exija uma maior concentração e dispêndio de tempo tem, forçosamente, que levar para fazer em casa. No tribunal A2, o magistrado (Ent. 49) marca as diligências para todos os dias de manhã, com excepção das sextas-feiras. Quando tem muitas diligências marca então também para as tardes desses dias da semana. As providências cautelares também são marcadas para a tarde, apesar de considerar que ter diligências de manhã e de tarde “é confuso”. Reserva as sextas-feiras para elaborar as sentenças e despachos saneadores, assim como a audição de peritos dos processos de interdição. Um outro magistrado do mesmo tribunal (Ent. 53), refere marcar as diligências preferencialmente para o período da manhã. Enquanto aguarda a chegada de todos os intervenientes faz despachos de mero expediente. Elabora os despachos saneadores e as sentenças de acções contestadas em casa, ao fim-de-semana ou à noite. Reserva as segundas e sextas-feiras para processos urgentes; as terças-feiras para acções sumaríssimas; as quartas-feiras para acções especiais e inventários e as quintas-feiras para AECOPECs e sumaríssimas. Ao longo do ano reserva algumas semanas sem marcar diligências, perto dos períodos de férias judiciais, com o fim de pôr em dia os processos com despachos mais complexos.
A gestão efectiva do caso concreto
141
quer humanos, quer materiais, tem, desde logo, de haver uma boa
articulação dentro do tribunal.
Sintoma dessa desarticulação é a recorrência com que muitos
magistrados assumem que marcam diligências sem que previamente
saibam se, nesse dia, terão sala disponível para as realizar. Se houver
mais que uma diligência para a mesma sala, “joga-se” na expectativa do
adiamento de um dos actos. Caso tal não ocorra, a solução é adiar a diligência,
embora se assuma que tal não ocorre com muita frequência. Pode, ainda,
acontecer que haja uma espécie de corrida para “ocupação da sala”. Faz a
diligência quem chega primeiro ou os funcionários tentam averiguar qual a
duração da diligência que está a decorrer e pedem às partes para aguardarem.
Se há tribunais onde pudemos verificar alguma articulação entre juízes,
no tribunal C os juízes não definiram qualquer tipo de concertação no sentido
de dividir entre os mesmos os dias ou períodos de dia em que a sala de
audiências lhes estivesse atribuída, apesar dos magistrados entrevistados do
mesmo tribunal considerarem que a solução passará por fixar dias específicos
para as salas serem utilizadas por cada juízo.
A dinâmica da evolução dos casos exige, contudo, que esta seja uma
matéria que deve ser coordenada pelo juiz presidente, centralizadamente e
com flexibilidade.
Resulta ainda do trabalho de campo a carência de formação
adequada dos juízes nesta matéria. A prática dos actos jurisdicionais é feita
por cada magistrado de acordo com métodos próprios de trabalho, mas sem
que procure incorporar princípios ou critérios de eficácia e eficiência que devem
estar, igualmente, presentes na prática daqueles actos. E, como temos vindo a
referir, o planeamento da actividade jurisdicional deve ir muito para lá das
audiências, devendo adoptar-se mecanismos que tornem mais expedita e
racional a actividade do juiz.
Neste sentido, Lopes (2008: 16-17), defende que “se uma determinada
actividade processual (v.g. despacho de expediente) é aparentemente mais
rápida então será relevante que essa actividade seja efectuada de imediato e
em todos os processos onde deve ser também efectuada. Se a realização de
uma tarefa no processo se apresenta previsivelmente mais complexa, deverá
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
142
desde logo identificar-se no processo essa situação e simultaneamente
identificar desde logo o prazo limite em que, legalmente deve, pode e tem que
ser efectuada.”
A eficaz gestão dos processos pode passar, ainda, sobretudo para
alguma litigação, pelo incentivo ao agendamento comum de casos
idênticos, ou pela agregação/apensação de processo. Esta possibilidade
de agregação/apensação de processos já encontra acolhimento expresso
no Regime Processual Civil Experimental, nos termos do qual, é possível,
além da apensação, a associação transitória de acções que preencham os
pressupostos de admissibilidade do litisconsórcio, da coligação, da oposição ou
da reconvenção, para a prática conjunta de um ou mais actos processuais,
nomeadamente actos de secretaria, audiência preliminar, audiência final,
despachos interlocutórios e sentenças (cf. artigo 6.º do Decreto-Lei 108/2006,
de 8 de Junho)73.
Depois, penso que podemos já avançar para determinadas ferramentas de gestão
processual e que obviamente não estão previstas na lei, que são o agendamento
comum, por exemplo, do mesmo caso. Às vezes acontece virem os mesmos tipos de
processos com as mesmas partes processuais e, portanto, o juiz se tiver razoabilidade
em agendar as diligências permite que as mesmas partes venham no mesmo dia ao
tribunal para tratar de incidentes processuais diferentes (P5)
Um magistrado identificou os mecanismos de agregação de
processos e de agendamento comum para despacho de decisões uniformes
ou temporalmente coincidentes como ferramentas possíveis de utilizar:
Relativamente a técnicas de gestão processual, quanto a mim é possível mesmo com o
sistema actual melhorar muito. Para além da utilização de mecanismos de
agregação formal ou informal de processos, eles estão estabelecidos já para o
processo experimental, é possível já com as ferramentas processuais do Código
de Processo Civil ou outras, proceder à apensação de processos em
73 No Regime Processual Civil Experimental são cometidas ao presidente do tribunal algumas competências de gestão como, por exemplo, a decisão sobre a agregação ou apensação de processos que pendam perante juízes diferentes. Da mesma forma, também à secretaria é atribuído um papel fundamental na realização destes desideratos, uma vez que é a esta que compete informar mensalmente o presidente do tribunal e os magistrados dos processos que se encontrem em condições de ser agregados ou apensados (cf. artigo 6.º, n.os 4 e 7). Ver sobre esta matéria o ponto 5.
A gestão efectiva do caso concreto
143
determinadas situações. Elas não são utilizadas, mas se houvesse uma pedagogia
no sentido da utilização daqueles mecanismos, talvez o fossem numa perspectiva
global de uma gestão do tribunal no seu todo, o que vai permitir que as o volume de
processos seja também visto globalmente e os mecanismos, falando aqui a propósito
da rede de distribuição dos processos, vão passar a ser mais utilizados. Há
ferramentas como o agendamento comum para despacho de decisões uniformes
ou temporalmente coincidentes, isto é, a possibilidade de o próprio juiz fazer, por
exemplo, um agendamento para o mesmo dia do mesmo tipo de acções. (P5)
Mas, vai mais além e, sobretudo, para a litigância de massa, o mesmo
magistrado, avança com a necessidade de adopção de um “manual de boas
práticas” pelo Conselho Superior da Magistratura que defina um conjunto de
linhas orientadoras para aquela litigância, aliás, na senda de recomendações,
nesse sentido, da CEPEJ:
Estou-me a lembrar de outro tipo de ferramentas que tem a ver também com a criação
de guidelines relativamente à litigância de massa. Não se compreende, por
exemplo, que órgãos de gestão e de organização do sistema judicial como são os
Conselhos Superiores de Magistratura não promovam e não estabeleçam um catálogo,
no fundo um código de boas práticas, no sentido de permitir relativamente à litigância
de massa decisões com determinado número de páginas, não fugindo a determinados
trâmites, mas com determinadas regras que não são obviamente cerceadoras dos
limites da função judicial, mas vão ajudar ao tratamento quantitativo de determinados
casos através de determinadas tabelas e de determinadas guidelines. Estas guidelines
orientavam a decisão no sentido de dizer qual a forma do relatório, a fundamentação –
não mais que tantas páginas segundo determinado formulário – e, depois, a decisão
não deve fugir muito a isso. O objectivo é de criar rotinas e peças processuais,
mesmo ao nível das decisões jurisdicionais, que sejam compatíveis com a
importância dos casos e também com a quantidade dos casos, permitindo assim
um funcionamento eficaz do sistema. (P5)
7.2 Os indicadores de avaliação do volume e da complexidade dos
processos como instrumentos de gestão processual
Como referimos, a existência de indicadores auxiliares da previsão dos
actos e do “tempo esperado” do caso concreto são instrumentos de gestão
essenciais para a necessária diferenciação processual. Mas cada
caso/processo que cada agente e/ou unidade orgânica tem que tramitar é
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
144
apenas um entre muitos outros. Por isso, é fundamental que se tenha um
elevado conhecimento sobre a realidade processual de cada unidade
orgânica. O acesso à informação, em tempo real, sobre o volume e o tipo
de litígios por parte quer dos funcionários judiciais, quer dos
magistrados, é um dos pressupostos essenciais para a criação de um
sistema transparente e compatível com a adopção de mecanismos de
gestão.
A produção e disseminação (através de relatórios, na intranet ou
Internet, etc.) de indicadores estatísticos, de acesso imediato e
adequadamente trabalhados, constitui, deste modo, uma das ferramentas
essenciais para a implementação e introdução no sistema judicial de um
modelo de gestão adequado, quer dos processos judiciais, quer dos
serviços de justiça globalmente considerados.
Como realça Coelho (2007), nunca poderão existir boas reformas
judiciárias ou uma boa gestão judiciária sem a existência de um consistente e
fiável acervo de dados disponíveis e suficientemente trabalhados, com os
referenciais que são exigíveis para cada uma das quantificações necessárias
(aos diversos níveis macro e micro).
A necessidade e a ausência desses indicadores, no momento actual,
foram realçadas por alguns dos magistrados entrevistados:
Outro problema importante tem a ver com a falta de meios e de instrumentos até
empíricos, estatísticas, de contingentação, que devem permitir ao juiz fazer ele próprio
a organização e gestão do seu trabalho e também do trabalho da secção. Sem a
existência desses meios empíricos, nada é possível fazer. O juiz não está informado,
não só porque, por vezes, se contém um pouco no núcleo da sua função jurisdicional,
porque não tem mais tempo disponível para fazer outro tipo de tarefas, mas também
porque não lhe é disponibilizada informação para tanto. Não é possível um eficaz
funcionamento do sistema judicial onde não existem estatísticas tratadas ao
nível de cada secção, que permitam perceber que tipo de processos estão ali em
causa, onde vai existir contingentação, quais são os objectivos para o juiz no
sentido de dizer quantas decisões ele deveria dar, que tipo de processos é que
deve tramitar ou mesmo qual é o tempo em que devia prosseguir determinadas
tramitações processuais. (...) Daí eu ver como fundamental aquela previsão na Lei
Orgânica de que se deve disponibilizar aos Juízes Presidente a informação estatística,
mas, compreenda-se, informação estatística que seja adaptável às funções de cada
A gestão efectiva do caso concreto
145
tribunal em concreto, e não informação estatística genericamente sobre o sistema, que
depois tem de ser tratada para chegar a determinados resultados. (P5)
Neste contexto, merece referência a experiência referida por um
funcionário judicial revelando que, no seu tribunal, ao difundir, de forma
sistemática, por todos os juízos e secções alguns indicadores
estatísticos, quer de volume e tipo de litigação, quer de desempenho
funcional, verificou ganhos de produtividade, funcionando como factor
dinamizador do trabalho:
da minha experiência, a divulgação de alguma informação pareceu-me ser relevante na
dinamização do trabalho. Eu acho que a informação numa primeira fase devia ser
divulgada internamente e depois, de assim se entender, para acesso público,
relativamente àquilo que é feito em cada unidade orgânica. Se eu chegar ao fim do
mês e puder olhar para trás e ver aquilo que fiz ou aquilo que tenho de fazer,
provavelmente, passo a ter aqui um instrumento de gestão fundamental para assegurar
as tarefas do dia-a-dia. Numa fase inicial, acho que era de todo interessante ter uma
intranet onde isso fosse divulgado. (F4)
Se é certo que a informação passível de recolha, em cada tribunal,
através da aplicação informática existente é percepcionada como insuficiente, o
esforço de informatização do sistema judicial que tem vindo a ser feito faz
prever que, a curto ou médio prazo, esses instrumentos poderão estar
disponíveis. Hoje, os programas CITIUS e HABILUS já permitem conhecer a
realidade de cada tribunal em termos de litigância74. O que é fundamental
é que os agentes criem uma cultura de os utilizar e de lhes reconhecer
utilidade.
74 A instalação de um novo módulo de estatística com novas funcionalidades foi realçada num dos painéis de discussão “para além de conter tudo o que a análise de pendências tem melhorado, pode inclusive cruzar alguns dados, por unidade orgânica, por magistrado, por tipo de crime. (…) Dentro em breve vão acabar os mapas mensais. Quero acrescentar que, para além de todos os mapas que já existiam e que foram melhorados com outro tipo de critérios, adicionámos mais alguns, nomeadamente ao nível da distribuição, onde é possível ver-se aquilo que até agora não era possível. Podemos conhecer acções por complexidade, nas distribuições penais, porque no crime não há papéis de distribuição, nós criamos a complexidade para se dividir os presos, os soltos, os complexos. Inclusive na parte dos processos de crimes prioritários, é necessário saber que tipo de decisões foram tomadas. Está previsto inclusive o cálculo do tempo médio da duração do inquérito (F5).
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
146
7.3 O papel do juiz na promoção da conciliação como solução para o
conflito
Como se sabe, as próprias leis do processo conferem ao juiz um papel
importante na tentativa de composição do litígio pela conciliação das partes,
definindo momentos específicos em que tal pode e deve ocorrer. Em geral,
considera-se que a realização de uma conferência com a presença das
partes numa fase anterior à audiência de julgamento pode, além de outros
efeitos de natureza gestionária na tramitação do processo, como o
agendamento das audiências de julgamento, fomentar a resolução do
litígio por acordo das partes. A nossa lei processual elege dois momentos
principais para a intervenção do juiz com esse objectivo: a audiência preliminar
e o início da audiência de discussão e julgamento75. A vantagem do primeiro é
óbvia: o dispêndio de recursos, humanos e materiais, será muito menor quanto
mais cedo o litígio terminar.
Do trabalho de campo realizado são duas as conclusões
fundamentais sobre esta matéria: por um lado, como se verá de seguida,
entre nós parece ainda ser determinante a “cultura” do acordo à “porta da
audiência”; por outro, é divergente o entendimento sobre o efectivo papel
do juiz na via conciliatória e, mais ainda, se considera essa via no quadro de
uma perspectiva gestionária do processo, bem como sobre o momento em que
tal deve ocorrer.
Para alguns, a resolução do conflito por acordo é uma tarefa que,
primordialmente, deve competir aos advogados das partes, devendo o juiz
preocupar-se, apenas, com a decisão final:
a conciliação existe como solucionador dos problemas, mas acho que isso deve ser
antes da intervenção do tribunal. Isto é, quando o juiz vai decidir essa possibilidade da
conciliação, esta deve já ter sido resolvida por advogados e pelo MP. O juiz está lá
para, numa fase posterior, decidir. (P2)
75Nos termos do artigo 508.º-A do CPC, o juiz pode convocar audiência preliminar com o intuito de realizar uma tentativa de conciliação. Da mesma forma, nos termos do artigo 652.º do CPC, o juiz deverá procurar conciliar as partes no início de audiência final.
A gestão efectiva do caso concreto
147
Foram várias as posições que identificámos em sentido oposto. Há,
mesmo, alguns magistrados que assumem uma atitude muito pró-activa
no sentido da conciliação das partes:
Eu consigo, na maioria dos casos, que as partes cheguem a acordo, mesmo quando os
advogados dizem não haver possibilidade de acordo. Chamo as partes e, dentro do
possível, mostro-lhes o sentido da sentença, ficando a saber com que contam e
mostrando-lhes, também, que será mais vantajoso um acordo. (Ent. 17)
Diferente entendimento sobre o papel do juiz na via conciliatória
conduz a igual divergência quanto à utilização dos mecanismos que a lei
processual coloca à disposição do juiz para esse fim, em especial, quanto
à utilidade da audiência preliminar. Diga-se, aliás, que quanto à utilização
desta diligência encontrámos, inclusive no mesmo tribunal, posições muito
divergentes, com alguns magistrados a assumiram uma “declaração de
princípio” de total oposição àquela diligência, o que os leva a nunca a
marcarem.
Para outros, depende da “leitura” dos articulados.
Eu marco muitas tentativas de conciliação, mas tento perceber dos articulados se há
uma vontade das partes se tentarem conciliar. E tenho processos que não chegam à
fase do saneador porque se conciliam antes. Mas tenho de ter ali alguma base para
marcar uma tentativa de conciliação antes da audiência de julgamento. (Ent. 49)
Os juízes devem, em cada caso concreto, fazer essa avaliação. Também é para isto
que existem os juízes. Não é um legislador com critérios abstractos de obrigatoriedade
inútil. O 508.º está bem como está, porque permite quem quer faz, quem não quer
dispensa. (Ent. 52)
Outros, porém, consideram que o momento adequado para a promoção
da conciliação é, de facto, o dia do julgamento, altura em que consideram sentir
os advogados preparados para essa diligência:
Se a controvérsia for muito profunda, a marcação de audiência preliminar não tem
qualquer utilidade. E a tentativa de conciliação pode sempre ser feita na data da
audiência de julgamento. (…) Eu aguardo pelo momento da audiência de discussão e
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
148
julgamento, se não houver transacção tem-se logo a possibilidade de fazer julgamento
em termos imediatos. (…) só à “boca do julgamento” é que os advogados se
encontram preparados para a conciliação. É uma questão da cultura da
advocacia. E se não houver transacção, haverá logo a produção de prova. Não vejo
utilidade na tentativa de conciliação anterior à audiência de julgamento. Só muito
excepcionalmente é que marco audiências preliminares e apenas quando estão em
causa questões de direito. (Ent. 29)
A falta de preparação dos advogados para a realização desta
diligência foi recorrentemente realçada:
Eu considero que esta diligência não funciona bem porque os advogados não
vêm preparados. Chegam ao ponto de não terem preparado o requerimento de
prova e dizem que não sabem que o haviam de apresentar. Olham para mim e
pedem prazo para o apresentar e eu marco julgamento sem saber se há
perícias ou não, porque não há requerimento de instrução. Para mim esta
audiência preliminar serve para nós fazermos um despacho a dizer que se
dispensa com mais ou menos fundamento. (Ent. 52)
Aquela é claramente uma diligência, cuja eficácia no processo
depende muito da cabal preparação e cooperação de todos os
intervenientes processuais. As recomendações da CEPEJ, considerando
uma visão estratégica do processo, em especial nos litígios mais
complexos, mostram a centralidade de uma fase de conferência prévia
dinamizada pelo juiz. E a cultura judiciária também se muda com a
adopção de novas práticas.
7.4 Pode no actual sistema o juiz gerir o caso concreto? A tensão
funcional com as competências do escrivão de direito
Resulta do nosso trabalho que, na prática, o juiz apenas tem controlo
prévio sobre a sua actividade no que diz respeito à marcação de
diligências (audiências de produção de prova, audiências preliminares, etc.).
Essas diligências, porque implicam a presença de outros intervenientes
processuais (partes, advogados, peritos, testemunhas, etc.) são previamente
agendadas pelo juiz. Todo o restante trabalho de gabinete (despachos,
A gestão efectiva do caso concreto
149
sentenças) depende muito do que, quotidianamente, lhe for apresentado pela
secção de processos, que funciona como uma fonte de “alimentação” do
gabinete do juiz. Como refere um dos magistrados entrevistados “em bom
rigor, apenas despacho o que me aparece em cima da secretária para ser
despachado”. (Ent. 81)
A título de exemplo, são elucidativos os seguintes depoimentos:
O principal problema dos nossos tribunais é mesmo o problema da organização e
gestão. De um lado estão os funcionários e do outro o juiz. Este só faz o que
recebe, sem nenhuma intervenção na decisão dos processos que devem ser
conclusos. (Ent. 29)
Nós temos, de facto, um problema de gestão do nosso trabalho porque estamos
completamente dependentes do movimento das secções. Não faz sentido eu não
poder mandar no meu trabalho (…). A verdade é que despachamos o que nos põem no
gabinete. Tanto posso ter que despachar 100, como 50, como 20 ou mesmo
nenhum processo. (Ent. 30)
Ninguém está virado para esta questão e os processos andam todos ao mesmo
tempo quando a secretaria se lembra. É isso que traz conflitos entre a secretaria e
os magistrados. Porque não há organização das secretarias, não há orientações.
Há queixas de toda a gente, toda a gente tem razão e ninguém tem razão. É a falta de
método das secretarias. (F1)
Em relação à gestão dos processos, acho que os Srs. Juízes têm toda a razão quando
dizem que não têm nenhuma gestão do trabalho deles, mas os funcionários também
não têm. Se uns não têm, os outros também não têm. É verdade que o juiz só actua no
processo se houver uma intervenção da secretaria. Que intervenção é essa? Há
funcionários mais cuidadosos e uns menos cuidadosos e no fundo, é o funcionário
que acaba por condicionar o trabalho do juiz e o dele próprio. Se ele quer ter
muitos processos, ele manda muitos para dentro. Se ele quer ter poucos processos, ele
manda poucos para dentro. (F4)
Parece consensual que a adopção de mecanismos de gestão
processual exige, por parte do juiz, uma maior capacidade de controlo e
de programação dos actos que, num determinado período de tempo (por
exemplo, uma semana), tem que praticar. A questão que se coloca é de
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
150
como fazê-lo. Que medidas e mecanismos legais ou outros é necessário
introduzir para essa mudança?
A primeira questão é a de saber qual o grau de intervenção do juiz nesta
matéria que o quadro legal permite. Como se verá de seguida, pudemos
constatar “leituras” muito divergentes.
Para alguns, considerando, quer o actual ordenamento jurídico, quer a
prática, o magistrado pode já “dar instruções” à secção no sentido de proceder
a uma triagem dos processos segundo o tipo de despacho que solicitam:
É óbvio que ele não pode saber, na totalidade, que processos lhe vão surgir para
despachar, nem mesmo determinar que venham mais ou menos processos. Penso que
ir por aqui é ir um bocadinho longe demais. Mas pode dar instruções concretas à
secção e pode instruí-la para, nomeadamente, fazer uma coisa muito simples que
é apresentar-lhe já separados, com triagem, os processos em função do tipo de
despacho que solicitam. (P1)
Esta medida, segundo alguns magistrados, não é, no entanto, de fácil implementação:
O problema é esse, uma coisa é poder outra coisa é conseguir. A cultura de
separação funcional que existe dentro dos tribunais é de tal maneira enraizada
que os funcionários acham-se donos de uma determinada área de terreno em que
o juiz tem dificuldades em entrar. E esse tipo de resistência, para quem não está
preparado para gerir e tem mais que fazer, conduz evidentemente a inibições de
actuação por parte do juiz. (P1)
Na relação juiz – secção de processos, outra das questões em debate
e enfatizada pelos juízes está relacionada com o apoio às diligências e ao
trabalho do juiz. Em regra, considera-se que esse apoio deve ser feito por
uma pessoa qualificada para tal.
Numa secção de processos, deveria haver a possibilidade de afectar um
funcionário para secretariar o juiz, assistindo-o nas salas de audiência e no seu
gabinete, elaborando as respectivas actas e os actos orientados ou ordenados
pelo juiz. Há juízes que não estão preparados nem vocacionados para as novas
tecnologias, principalmente a informática. Por isso, justificar-se-ia a afectação de um
A gestão efectiva do caso concreto
151
oficial de justiça que, além secretariar o juiz, faria a ponte entre o gabinete do juiz e a
secretaria. (…) Eu tentei fazer uma rotatividade entre os funcionários, para a
assistência à sala de audiências e isso não resultou. É que há funcionários mais
vocacionados ou “preparados” para essas funções e outros que até nem gostam nada.
No meu caso, o funcionário, que até rende pouco na secção, é um bom relações
públicas, faz bem o trabalho de sala de audiências. Ele põe os mandatários a falar
incentivando-os ao acordo, assiste ao juiz, elabora as actas, as sentenças e prepara
tudo como o juiz gosta. No entanto não posso contar com este funcionário para
endireitar uma secção. (F6)
Outro funcionário judicial também partilha aquela perspectiva e levantou
algumas questões às quais o actual modelo organizacional não dá resposta:
Utilizou bem o termo “quem secretaria o juiz”. Isso é benéfico para todos, porque
isso permite aos juízes agilizar melhor o trabalho e responder com mais
qualidade. E o juiz da secção depende daquele funcionário de secretaria que lhe
está adstrito. O problema maior para mim é que eu tenho uma data de juízes – o juiz
titular, o auxiliar, o de instrução, o auditor e o estagiário – e quando todos me vêm pedir
que querem um funcionário para o secretariar, levanta-se um problema: quem é que
fica aqui na secretaria? Vão buscar o funcionário do outro juízo? O nosso modelo
organizacional ainda assenta na estrutura que diz: o juiz da secção. E o juiz da secção
tem em regra dois auxiliares, dois adjuntos e um escrivão. Mas, nos últimos anos, o
que tem acontecido com o aumento sistemático do número de magistrados (às vezes
há mais magistrados do que funcionários) é que cada magistrado quer ter o seu serviço
de secretariado. (F4)
No mesmo sentido, um juiz refere que:
Os juízes consideram que precisam de um apoio de proximidade que responda de uma
forma mais rápida e, portanto, cria-se a ideia do gabinete do juiz. Um juiz já poderia
socorrer-se desses funcionários e organizá-los doutra maneira, se as coisas no
relacionamento funcional com o escrivão e na relação de dependência funcional do
escrivão não estivessem como estão. (P1)
Para a mudança organizacional e funcional da interacção
juiz/secção de processos exigem-se mudanças em factores de natureza
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
152
legal e cultural. Contudo, as posições, quanto à maior ou menor presença
de uns e outros, não são unânimes. Se para alguns o problema é,
sobretudo, um problema de lei, para outros é, sobretudo, um problema de
práticas e rotinas, que apenas poderá ser ultrapassado com a definição e
assunção de objectivos comuns do tribunal, enquanto organização. Os
depoimentos seguintes mostram as diferentes posições.
Mais uma vez reafirmo que as questões são de articulação, com alguma complexidade,
porque tem que se ver numa perspectiva de sistema e de organização. Se for
clarificado que o objectivo dos tribunais é proferir decisões, compor litígios, fazer
pacificação social, deve entender-se que os objectivos da função jurisdicional e os
objectivos dos senhores escrivães e dos outros funcionários têm que ser comuns e têm
que se articular numa organização com alguma uniformidade de critérios e de
finalidades e de objectivos. Portanto, a estratégia das secções tem que ser articulada
com a estratégia da função jurisdicional. (P5)
A questão da liderança orgânico-funcional do tribunal assume,
quanto a esta matéria, uma forte centralidade. Há relativo consenso
quanto à necessária intervenção do juiz presidente, no uso de
competências, legalmente definidas, quanto a esta matéria.
A lei contém a descrição funcional das tarefas do escrivão e do secretário de justiça.
Mas também diz que as actua mediante orientação superior. Depois, a Lei Orgânica
dos Tribunais diz que é ao Presidente do tribunal que compete orientar superiormente
as secretarias. Logo, se o Presidente do tribunal der orientações no sentido da
secretaria agir de determinada forma, penso que o assunto da articulação
juiz/secretaria pode ser resolvido e não vejo como é que nos tribunais pode existir
outro entendimento. (P1)
Há, no entanto, a expectativa que a nova lei de organização
judiciária venha solucionar alguns destes problemas:
É exactamente uma questão fundamental a ultrapassar. Do meu ponto de vista, já
existe a possibilidade de dar esse tipo de ordens de serviço. Mas, com o juiz
A gestão efectiva do caso concreto
153
presidente, com os novos poderes previstos na proposta de lei em discussão, deixam
de haver essas dúvidas e penso que deveria existir um maior reforço de
clarificação legal. A ideia do gabinete do juiz aparece por causa dessa fricção entre os
funcionários e o juiz. Os juízes sentem que os funcionários são uma outra coisa, que a
secção é outra coisa, que não podem dar instruções concretas. Os juízes consideram
que precisam de um apoio de proximidade que responda de uma forma mais rápida e,
portanto, cria-se a ideia do gabinete do juiz. Um juiz já poderia socorrer-se desses
funcionários e organizá-los doutra maneira, se as coisas no relacionamento funcional
com o escrivão e na relação de dependência funcional do escrivão não estivessem
como estão. Vamos avançar para uma coisa, que a proposta de Lei Orgânica prevê,
que são os núcleos de assessoria técnica, não se sabendo muito bem ainda o que é
que será, mas será qualquer coisa entre o gabinete do juiz que vem previsto no pacto
para a justiça e outra dimensão de assessoria. (P1)
Entre os funcionários judiciais esta questão não é, no entanto, pacífica.
Por um lado, alguns vêem com agrado as inovações legislativas que se
prevêem:
Nós já tínhamos concordado que era melhor revermos o modelo de gestão para um
modelo de gestão conjunta. Alguns destes problemas serão sanados com a entrada em
vigor da nova lei orgânica, em que já se prevê o conteúdo funcional das competências
do juiz presidente. São muito mais abrangentes. Eu penso que 50% destes
problemas vão ser sanados com a entrada em vigor. (F8)
Outros, por outro lado, defendem a centralidade do escrivão de
direito na gestão da secção de processos:
Há por aí juízes que defendem que o funcionário deve estar ligado a uma espécie de
secretariado. A nossa organização judiciária como está hoje (não sei se vai ser assim
no futuro) deveria assentar, e às vezes não assenta, na figura do escrivão. Ou seja, o
escrivão é o chefe da secção que deveria ter conhecimento bastante para fazer uma
gestão adequada de toda a documentação. (F4)
Quando o escrivão desempenha o papel como deve desempenhar, nenhum juiz quer-
se meter na secção, nem se mete com o escrivão. (F1)
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
154
Esta dessintonia, induzida pela lei e pela prática, entre a secção de
processos e o juiz pode gerar efeitos perversos com práticas que, de
acordo com os operadores entrevistados, devem ser consideradas inaceitáveis.
Eis os seus relatos:
Conheço talvez cerca de meia dúzia de casos, mas certamente haverá mais, de juízes
que dão ordens, provimentos, em concreto à sua secção de processos no
sentido de limitar o número de processos diários submetidos a despacho. Talvez
seja até um bocadinho de exagero, mas nalguns casos até se identifica o número de
processos que devem ser colocados em determinadas datas. (P1)
Na minha perspectiva, tenho sérias duvidas que esses provimentos sejam legais.
Se o provimento significa que se bloqueia o acesso dos processos, tenho dúvidas que
seja legal, isto é, um processo já está em fase de conclusão e não cabe nos números
que o juiz fixou, tenho dúvidas da legalidade desses provimentos. O Código diz quais
são os prazos, não há mais nenhuma regra, que eu saiba. (P3)
Há aqui dois tipos de pensamento nesta discussão. O pensamento de cariz
individualista e aquele outro que passa por uma concepção colectiva de organização.
Nesta concepção, o juiz não pode, sem qualquer critério de racionalidade e de
integração de critérios de gestão dos processos do seu próprio tribunal, tomar
decisões que não fossem as mais adequadas ao seu trabalho e ao do escrivão,
numa perspectiva de gestão processual. O que não é compatível com o
funcionamento do sistema é existirem colegas nossos que têm muita atenção pelo
trabalho da secção e, às vezes, dão provimentos completamente irrazoáveis, porque
não se inserem em qualquer estratégia racional de gestão processual, havendo outros
ainda que descuram completamente essa atenção. O case management aqui insere-se
na gestão do tribunal e o tribunal numa organização, portanto, nunca pode haver uma
decisão do juiz que a seu belo prazer venha criar critérios de ordem particular.
(P5)
É que nós somos muito desconfiados uns dos outros. Porquê? Em regra, os juízes
quando querem assegurar a gestão do processo não é para acelerar, é para
condicionar a ida do processo para o gabinete. Também tem acontecido alguns
juízes darem provimento a dizer que para o gabinete vão “x” processos. Isso é,
A gestão efectiva do caso concreto
155
obviamente, gestão na óptica do juiz, mas para nós contraria todos os princípios legais.
Porque nós estamos habituados a olhar para a gestão do processo em função do
cumprimento das normas legais. (F4)
Umas das vertentes da mudança tem que passar por uma visão
estratégica de conjunto da secção do processo – juiz76. Para alguns dos
operadores, nessa visão, o juiz tem que assumir uma maior co-
responsabilização pelo andamento do processo77.
Acho que aqui devia haver uma co-responsabilização do juiz pelo funcionamento da
secção, porque o juiz apercebe-se quando tem uma secção que trabalha ou que não
trabalha. (…) o juiz deve exercer o poder relativamente ao conjunto de funcionários que
trabalham com os seus processos e ele não pode ignorar se os processos estão ou
não parados há muito tempo. Claro que ele sabe, se não sabe é muito incompetente.
(…). O que eu verifico é que às vezes há pessoas que se acomodam e que até gostam
dessas situações em que a secção não produz e até a fomentam. Isso não pode ser.
As coisas não podem ser vistas separadamente. Estamos num processo de
transformação e, no futuro, talvez o magistrado é que tenha que ter mesmo toda a
competência disciplinar sobre o funcionário, porque está a trabalhar com ele, o trabalho
do juiz depende do trabalho da secção e o ritmo da secção também depende muito do
nível de desempenho do magistrado. Os objectivos a definir para os funcionários
dependem muito do que são também os objectivos daquele magistrado para a sua
secção. Está tudo interligado. O que não pode haver é o juiz de costas voltadas
para a secção e a secção de costas voltadas para o juiz. E o juiz é que tem, de
facto, o poder de direcção dos seus processos, mas também tem que ter algum
poder para interferir no funcionamento da secção e não se pode alhear e dizer
tenho o serviço em dia quando a secção não lhe faz conclusos os processos.
(P4)
76 Sobre esta questão, cf. o ponto 4.3.1 sobre o novo modelo da oficina judicial em Espanha. 77 Para ilustrar a sua perspectiva, um magistrado relata a seguinte situação: “Vou dar um exemplo ilustrativo: houve um inspector que, no mesmo tribunal, propôs uma má classificação a um juiz que tinha processos conclusos no gabinete com imensos atrasos e a outro juiz propôs-lhe a mesma classificação quando esse juiz não tinha nenhum processo em atraso no seu gabinete, mas os processos estavam quase todos parados na secção de processos que não lhos apresentava para despacho. Este segundo juiz reagiu e disse que não tinha processos nenhuns na sua secretária, em atraso, pelo que a classificação proposta não se compreendia. O inspector respondeu-lhe que os tinha na sua secção de processos e imputou-lhe a falta de não se ter preocupado em saber sequer o que é que estava lá em atraso. Compreendo bem este inspector. A lógica de responsabilidade de um juiz limitada ao processo com conclusão aberta para despacho é uma lógica errada”. (P1)
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
156
Para esta falta de articulação entre a secretaria e o magistrado judicial
volta a ser levantada a questão da liderança e da formação nesta área,
principalmente para cargos de chefia, quer de funcionários judiciais, quer de
magistrados:
Há falta de formação ao nível das chefias, especialmente dos escrivães e secretários.
Deviam-se centrar na gestão e na organização. O bom funcionamento depende
diariamente das chefias. (F8)
Mas, eu começaria primeiro pela gestão de processos. Todos nós, e eu acho que isto é
comum aos magistrados e aos funcionários, nunca fomos instruídos para a
necessidade de nos organizarmos de determinada forma. E a organização de cada um
de nós, é aquela que cada um de nós acha mais adequada, que é nenhuma. Cada um
faz o que e como acha que deve fazer. (F4)
7.5 O cumprimento e o controlo dos prazos
A questão das consequências do não cumprimento dos prazos pelos
intervenientes processuais, em especial pelos funcionários e magistrados, é
necessariamente uma questão em debate quando se querem introduzir
políticas e medidas de gestão processual. Facilmente se compreende que não
é possível introduzir mecanismos de gestão, quer do caso concreto, quer
de todos os processos a tramitar numa dada unidade organizacional
(secção, juízo, tribunal) se os prazos legais previstos para o cumprimento
dos actos não forem cumpridos ou o forem apenas por alguns dos
intervenientes processuais.
Como escreve Lopes (2008: 11), um dos objectivos instrumentais da
gestão processual, prende-se com a necessidade de “[o]s prazos
preestabelecidos legalmente, quer para a tramitação quer para a actividade,
deve[re]m ser encarados como imperativos. O tempo que decorre entre a
finalização de uma actividade e o início da actividade seguinte deve ser
tendencialmente nulo. Não devem existir processos “parados” entre as
actividades efectuadas por cada um dos intervenientes”.
Segundo este autor, a assunção por parte dos magistrados do
carácter obrigatório de todos os prazos processuais permitirá “visualizar
A gestão efectiva do caso concreto
157
todo o esquema processual, o seu decurso e, em conformidade, planear
todo o agendamento do próprio processo. Como consequência é mais fácil
concretizar a possibilidade de controlar toda a restante actividade processual
que está distribuída ao juiz” (2008: 13-14).
Aliás, como se infere de alguns depoimentos, sempre que a lei é mais
rígida na definição dos prazos, isto é, sempre que impõe consequências mais
gravosas, a tramitação dos processos é muito mais célere78.
A realidade de hoje, escudada no fundamento de excesso de volume
de processos e da falta de recursos humanos79, é do generalizado não
cumprimento dos prazos previstos na lei para as diferentes fases do
processo. Pouco vale para o caso concreto se o juiz proferiu o seu despacho
no prazo de 2 ou 5 dias, contados a partir do momento em que a secção lhe
abriu conclusão, ou se o processo esteve meses parado na secção. De facto, o
juiz cumpriu o seu prazo, mas é um cumprimento meramente burocrático.
Porque a verdade é que o tribunal não cumpriu o prazo que a lei lhe tinha
indicado para aquele acto concreto.
É ilustrativo da actual situação o seguinte depoimento:
O escrivão recebe os processos e é ele que decide o que vai fazer ou o que não vai
fazer. Se entende que os deve movimentar, no caso de os processos deverem ir para o
gabinete, ele pode de imediato enviá-los. Mas, se ele tem alguma tarefa a fazer no
processo ele, pode dizer que não faço hoje, tenho ali coisas mais urgentes, em vez de
fazer isto faço aquilo. Depois as secções com pessoas que de alguma forma querem
fazer a gestão do seu trabalho sabem que se enviarem 20 processos para o gabinete
do juiz, têm 20 de volta. Se enviarem 5, só têm 5 de volta. É assim porque cada um de
nós decide assim. De facto é verdade que o juiz não tem nenhum poder de decisão,
porque toda a estrutura legal que nós temos nos condiciona em termos de prazos. A
secção tem um prazo para fazer uma coisa, o juiz tem um prazo para fazer outra,
embora sejam prazos meramente indicativos que se não forem cumpridos não
têm consequência nenhuma. O juiz tem os processos no gabinete que o
funcionário decidiu levar para lá e decide que vão para lá no momento em que
78 Há quem chame a atenção para o excesso de dilação. “(…) No nosso processo civil temos dilações de 30 e mais dias. Vamos para o Código das Custas Judiciais, mais dilações. Há dilações a mais e é preciso uniformizar os prazos processuais. Por exemplo, no processo civil, temos prazos de 2, 5, 10, 15, 30 dias e por aí fora.” (F3) 79 “A lei de processo seria óptima se os serviços tivessem um número de processos adequado. O problema também passa por aí. Há muitos mais processos do que capacidades para os gerir. Depois, não se cumpre o prazo e o processo fica mais dois dias.” (F2)
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
158
entende que devem ir. Da mesma forma, o juiz também decide o que envia para a
secção quando entende que deve enviar. Também não é nada fora do normal se
houver um juiz que entende que envia os processos todos, por exemplo, no último dia
do mês. E a secção o mesmo. Isto é um círculo vicioso. (…) infelizmente, temos uma
cultura que se passar um dia ou 2 ou 3 ou 5, todos até achamos que estamos
dentro dos prazos. (…) Ou seja, a total ausência de método de trabalho. (F4)
O não cumprimento dos prazos por parte das secretarias é atribuído
pelos funcionários judiciais a vários factores. Além da falta de recursos
humanos, foi, também, enfatizada a falta de formação para a organização e
a gestão do trabalho:
E isto tem a ver com a formação (…). Sou muito crítico relativamente à forma como a
nossa formação é organizada e dada. Em todas as acções de formação, somos
instruídos sobre a forma como devemos cumprir os despachos, mas nunca nos foi
dada nenhuma indicação sobre a forma como devemos gerir o nosso trabalho.
(F4)
As novas tecnologias de informação são consensualmente
reconhecidas como ferramentas de auxílio fulcral no controlo e gestão,
não só do volume e natureza da litigação, mas também do cumprimento
dos prazos previstos na lei, por parte dos diferentes intervenientes
processuais. Ora, o debate efectuado no âmbito deste trabalho mostrou
algumas insuficiências das actuais aplicações informáticas e a necessidade de
as superar.
Destacam-se as novas funcionalidades do CITIUS que vieram
introduzir maior transparência no sistema, “designadamente porque apenas se
podem abrir conclusões para o futuro, não com datas do passado, ao invés do
que antes por vezes acontecia, em que as datas de abertura de conclusões por
vezes não correspondiam às reais”. (Ent. 1)
Segundo um funcionário judicial, a resistência que alguns magistrados
estão a manifestar em relação à nova plataforma CITIUS decorre do facto de
muitos magistrados não querem trabalhar nessa plataforma por aí estar
registado há quanto tempo os processos estão a aguardar despacho e por
A gestão efectiva do caso concreto
159
deixar de ser possível recorrer a uma prática que existia: “o funcionário abrir
conclusão numa data e levar o processo para o gabinete do magistrado nessa
data e o processo ser despachado dias depois mas com data supra”. (Ent. 27)
Outra das potencialidades do CITIUS prende-se com a possibilidade de
controlar o “estado”, a pendência do juízo, podendo o magistrado pesquisar há
quantos dias determinados processos estão pendentes. (Ent. 1) Por outro lado,
o sistema de alarmes80 do HABILUS é também referido como benéfico, embora
ainda insuficiente.
A aplicação informática poderia ter um indicativo para controlo dos atrasos. A
possibilidade de, a qualquer momento, podermos ver uma lista dos prazos e
respectivos atrasos, contando os dias à medida que fossem ultrapassados os
prazos, seria uma ferramenta essencial para uma melhor gestão dos processos,
principalmente numa secção com elevada pendência onde não é sempre possível
cumprir nos prazos legais. (F6)
Aquilo que eu gostaria de ter quando no HABILUS se marca um determinado prazo,
era que a partir do dia que eu previamente defini, o sistema me desse a
informação referente a esse processo, nomeadamente se o atraso é de um, dois,
três dias. Ou seja, em vez de ter esta informação apenas no módulo do magistrado,
tinha-a também no módulo da secretaria. Deve-se sempre definir previamente, – se
passar a ter processos virtuais – na prateleira virtual, informações sobre se já
passaram os prazos e que, consequentemente tenho para movimentar. (F4)
Na parte da movimentação do processo, há prazos e os actos devem ter por referência
um determinado prazo. E tem lá uma data. A pasta vai-me adicionando diariamente os
processos e quando ultrapassar os prazos destes processos, vai passar a dizer mais
um dia, ou menos um dia, ou menos dois, e por aí fora, para saber que aqueles
processos relativamente ao prazo que eu predefini já passaram “x” dias. É isto que me
vai dar alguma capacidade para eu saber em termos de gestão de processo o que é
que está por movimentar há mais tempo. (F4)
80 Os alarmes são uma função na agenda da secretaria e do magistrado. Existem estes três módulos com agenda, cada um para as suas funções. Mas, grosso modo estamos a falar da secção de processos. E chamamos alarmes, porque o funcionário pode alarmar os processos que naquele dia tem que cumprir. A vantagem daquilo é que sempre que entra no sistema a agenda dispara. (F5)
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
160
7.6 Os despachos de mero expediente
Um dos problemas há muito discutidos no âmbito do processo civil
relaciona-se com o elevado volume de despachos de mero expediente
proferidos nos processos, que ocupam parte significativa da actividade diária
dos juízes. Como concluímos no estudo do OPJ “Os actos e os tempos dos
juízes: contributos para a construção de indicadores da distribuição processual
nos juízos cíveis”, a carga de actos de mero expediente praticados pelos
juízes é a confirmação da “dimensão burocrática” do actual paradigma
processual.
Tendo como referência aquele estudo, vale a pena atentar nas tabelas
seguintes que mostram como uma parte significativa do tempo do juiz é
ocupado com aqueles tipos de actos, bem como a dimensão burocrática da
tramitação processual. A excessiva dimensão burocrática do processo,
sobretudo quando convoca a intervenção do juiz, dificulta a tramitação
processual orientada por princípios e critérios de gestão, por vária vias,
designadamente, diminuindo o tempo do juiz e dificultando o planeamento e
agendamento dos actos jurisdicionais e potenciando o andamento aparente do
processo81.
Tabela 4
Actos mais frequentemente praticados pelo juiz
Fonte: OPJ, 2002
81 Sobre o conceito de andamento do processo, Gomes (2003).
A gestão efectiva do caso concreto
161
Tabela 5
Actos mais frequentes praticados pelo juiz
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
162
A gestão efectiva do caso concreto
163
Fonte: OPJ, 2002
Tabela 6
Número médio de actos praticados pelo juiz
Fonte: OPJ, 2002
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
164
Alterações eficazes nesta matéria exigem a criação e
implementação eficazes de novos paradigmas processuais, orientados
pelos princípios da oralidade, celeridade e simplificação de
procedimentos e do tratamento “desigual” da litigação, de acordo com o
seu grau de complexidade. No âmbito daquele estudo, foram, contudo,
avançadas algumas soluções, possíveis de funcionar sem alteração
significativa do paradigma processual.
Segundo Lopes (2008: 11), uma das ferramentas de gestão processual
possíveis para minorar o peso deste tipo de actos é a concentração no
mesmo momento da intervenção do juiz relativamente a uma pluralidade
de solicitações no mesmo processo e em processos semelhantes. Assim,
defende o autor que “[t]odas as tarefas devem trazer valor acrescentado ao
tratamento do processo no sentido da sua efectivação contribuir para o avanço
do processo. Trata-se de evitar, por um lado actividades redundantes e por
outro lado actividades necessárias, mas que possam ser efectuadas em
simultâneo com outras actividades no mesmo momento. Se numa só
intervenção judicial pode ordenar-se a prática de vários actos processuais que
não dependam uns dos outros, então esse deve ser o procedimento
adequado”.
À semelhança do que ocorreu, por exemplo, em Espanha82, alguns dos
entrevistados defendem que a solução passa pela delegação da
competência para a prática de actos de mero expediente do juiz no
secretário ou no escrivão de direito:
Ao escrivão de direito, bem como ao secretário podiam ser dadas as mais variadas
competências ao nível da gestão processual. Porquê, se continuam a ocupar os Srs.
Juízes com determinados trabalhos de expediente que não são de facto relevantes…
Isso podia libertá-los para as tarefas mais nobres, que é de facto decidir. (F2).
Aqueles actos de mero expediente poderiam ficar a cargo da secretaria ou dos
escrivães. Isto é, o processo seria preparado na secretaria, naturalmente com
fiscalização do juiz. Se, por exemplo, um processo cível, preparado e apresentado ao
juiz para marcar audiência preliminar ou proferir despacho saneador, entender que o
82 Cf. ponto 4.3.1 e o estudo do OPJ, “A Administração e Gestão da Justiça: análise comparada das tendências de reforma” (Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, 2001).
A gestão efectiva do caso concreto
165
processo não estava bem preparado, devolveria à secretaria. Acho que assim
aligeirava um pouco mais a tramitação do processo. (F6).
Comungando desta perspectiva, uma magistrada dá o seguinte exemplo:
“um processo parado há mais de 5 meses e que vai à conta; este processo não
precisava de ir ao juiz para este determinar a ida à conta, a própria secção
podia determinar esse acto” (Ent. 49).
7.7 Os actos (que podem ser instrumentais) das partes
Uma outra “velha” discussão, não só no âmbito da justiça cível, é
sobre se as leis processuais permitem ou não uma excessiva
“instrumentalização” do processo pelas partes ou alguma das partes, de
forma a afectar, com gravidade, a eficácia, eficiência e qualidade da justiça e,
em caso afirmativo, como limitar essa instrumentalização.
De entre as estratégias processuais das partes, foi salientado o
recurso à suspensão da instância por acordo, utilizado, com frequência,
como resposta perversa à limitação do adiamento das audiências,
servindo estratégias de agendas dos advogados e que acaba por
redundar num expediente dilatório.
A experiência dos operadores judiciais gerou posições não coincidentes.
Para uns, se tais mecanismos estão ao dispor das partes, não devem ser
questionados pelo tribunal ou, pelo menos, não devem constituir o centro da
discussão em torno da gestão processual, até porque pode acontecer que essa
suspensão ajude na realização de um acordo:
Acho que temos que olhar para os atrasos que sejam da efectiva responsabilidade do
tribunal, esses é que são os importantes. (…). Tenho muita dificuldade em ver como
é que se torneiam os problemas concretos dos advogados, na gestão do seu
tempo profissional. Acho que devemos preocupar-nos mais com os atrasos que
sejam da responsabilidade efectiva da máquina dos tribunais do que com problemas
profissionais dos advogados que já antes sabíamos existirem. Antes não havia a
suspensão da instância por acordo com esta latitude, mas provocavam-se atrasos por
causa desses problemas, que podem ser até os da doença súbita de um advogado.
(P1)
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
166
Para outros, todavia, esse é um problema real que coloca em causa o
planeamento e agendamento da actividade do tribunal, não só no processo em
concreto, mas com consequência em outros processos:
O que já me aconteceu, mais do que uma vez, são aquelas comunicações de última
hora de impossibilidade de comparência. Isso sim é que me perturba mais. (Ent. 50)
A suspensão por acordo das partes é muito frequente e é um dos nossos problemas
aqui no tribunal. O que acontece é que adiamos o julgamento com a promessa de
acordo que, com frequência, não acontece, mas acabamos por perder tempo e
recursos na expectativa de um julgamento que não se realiza. (Ent. 30)
Claro que se corrigíssemos a suspensão da instância, se as pessoas não pudessem
suspender logo no dia, isso ajudava alguns dos juízes que marcam bem e que todos os
dias são confrontados com isso. (P3)
Pior é quando não vêm ao tribunal e por simples requerimento pedem a suspensão. O
n.º 4 do artigo 279.º criado com boas intenções acaba por ter um efeito prejudicial.
Acaba por resolver o problema da gestão de agenda dos advogados. Por isso, valorizo
muito as regras que definem o adiamento no regime experimental relativamente ao que
temos no processo sumário e ordinário. Mas, não evita o “esquema” das suspensões.
Em termos de adiamento, só é possível suspender uma vez, mas os tribunais
superiores entendem que, desde que no cômputo geral não se ultrapasse seis
meses, podem suspender quantas vezes quiserem. Só que depois temos que jogar
com a agenda. Além de que os processos acabam por ser conclusos, mais tarde do
que o período da suspensão. Por exemplo, a suspensão é pedida por 15 dias, mas só
ao vigésimo dia é que o processo vai ser concluso.
Penso que o n.º 4 não era necessário. Porque se a suspensão for legítima, não
dilatória, pode ser decidia ao abrigo do n.º 1, do artigo 279º. (Ent. 29)
Eu penso que se deve dar uma especial atenção relativamente a essa matéria. Isto é
um problema sistémico e, portanto, isso insere-se, por um lado, num problema
de estratégia das partes perante o processo e, por outro, na permeabilização da
organização e gestão dos tribunais à estratégia das partes. Mas, esse é um
problema que tem que ser envolvido no seu todo, pode haver uma solução legal para
tratar desse problema específico sem cuidar do resto dos problemas do sistema. (P5)
A gestão efectiva do caso concreto
167
Relativamente a esta questão, o principal problema salientado prende-se
com o facto de, com recorrência, os pedidos de suspensão de instância
entrarem no próprio dia em que a diligência está marcada, com as
testemunhas presentes e com os recursos do tribunal accionados em função
da diligência.
O problema é que em determinados tribunais, aqueles em que o movimento processual
é elevado, os senhores juízes têm a sua agenda completamente preenchida e o pedido
de suspensão do julgamento, nesses casos, compromete de forma grave a respectiva
agenda. (...) Naqueles tribunais em que os juízes se encontram assoberbados de
trabalho, com uma agenda completamente comprometida com julgamentos marcados
de manhã e de tarde, dois em simultâneo, que têm de se deslocar de comarca em
comarca para realizarem os julgamentos e que, entretanto, são surpreendidos com
uma suspensão, já depois de se terem deslocado para o julgamento, que não têm
agenda e que, caso tivesse havido uma comunicação atempada, poderiam ter evitado
a deslocação e ter usado esse furo na agenda para marcação duma continuação de
julgamento ou para outra diligência. (P4)
Parece que estamos de acordo que o problema não é tanto os seis meses que se
permite dar às partes para suspenderem o processo, mas mais a maneira como
usam no sentido em que sistematicamente o usam em cima do julgamento e
quando já todo o mecanismo do tribunal funcionou, e, nomeadamente, as
pessoas estão presentes. Nessa parte talvez a lei possa ser alterada: é permitida a
suspensão, desde que avisados quinze dias antes da audiência, por exemplo. (P3)
Acresce que a desmarcação de audiências no próprio dia origina, na
opinião dos entrevistados, uma imagem negativa da justiça na perspectiva dos
cidadãos, o que leva a que muitos magistrados façam questão de informar as
testemunhas e as partes sobre a razão do adiamento da diligência.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
168
7.8 A criação de uma cultura judiciária orientada para a gestão processual
De todo o exposto, resulta a essencialidade de se desenvolverem
medidas e mecanismos que, a curto prazo, permitam desenvolver uma
cultura que tenha sobre os processos uma visão estratégica orientada
para a qualidade e eficiência da administração da justiça.
De facto, como amplamente foi salientado nas discussões desenvolvidas
no âmbito deste projecto, a gestão processual não se resolve por ela própria,
isto é, não é mudando as leis de processo que conseguimos resolver os
problemas de falta de eficácia do sistema e da qualidade do sistema. Como
refere Coelho (2007), “a ausência desta cultura organizacional é um facto
permanente de limitação e incapacidade, despromovendo e incapacitando as
mutações pretendidas, suscitando lógicas de actuação adversas aos objectivos
delineados e promovendo uma atitude permissiva aos bloqueios e disfunções
existentes”.
Mas, este é um caminho que só agora começa a ser percorrido e para o
qual ainda é necessário acrescentar muitos passos.
Gostaria de começar por dizer que há cerca de 5 anos essa era uma questão de que
ninguém falava. Ninguém falava de case management, de gestão processual.
Nunca se olhava de uma forma global para a gestão do processo. A gestão
processual é muito mais do que está nas normas processuais estabelecidas no
processo penal e no processo civil. Concretamente, tem a ver com a gestão de
interesses envolvidos no procedimento, com a resposta à questão para que serve o
tribunal. Deve partir-se da ideia de que há um interlocutor privilegiado ou um agente no
tribunal que é sustentado na figura do juiz, quer se queira, quer não. Todo o processo
funciona em função da decisão judicial. Ora bem, tendo por base este princípio, tudo o
que está no processo deve ser orientado em função da decisão judicial. Esta será a
linha de orientação a seguir quando se fala em gestão de processo. (P2).
Os operadores ressaltam, assim, a importância da previsão legal de
um dever de gestão, consagrado pela primeira vez no regime processual
civil experimental83:
83 Nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei 108/2006, de 8 de Junho, com a epígrafe “dever de gestão”, “o juiz dirige o processo, devendo nomeadamente: a) Adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir; b) Garantir que não são praticados actos inúteis, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório;
A gestão efectiva do caso concreto
169
Há uma questão que gostava de referir que tem a ver com o processo civil
experimental, que tem 2 anos, salvo erro, onde pela 1ª vez foi criada na lei o dever de
gestão processual e que ainda está a ser discutido. Ainda é cedo para se saber
concretamente o que é esse dever de gestão. Mas é importante que este conceito já
exista, porque se não há nada que não está na lei, não existe. Agora já está na lei,
já pode ser densificado. (P2)
Mas, também, não basta a previsão legal, é necessário implementar e
desenvolver uma cultura de receptividade a estes modelos:
Nalgumas coisas é necessário mudar a cultura de quem trabalha com esse modelo.
Mudar-se a formação. Quando não damos formação às pessoas com base no modelo
que está a ser implementado, não pode ser exigível aos juízes que na prática venham
a utilizar esse modelo. O processo é um processo que nasceu e que está ainda
agarrado ao «Alberto dos Reis» e é no «Alberto dos Reis» que nós continuamos a
assentar e desenvolver o paradigma. O que não pode continuar84. (P2)
Concretamente, no que se refere ao processo civil experimental, foi
referenciada a fraca alteração da esmagadora maioria dos procedimentos
adoptados com o regime experimental processual civil, em relação à forma
comum do processo civil, tanto a nível de organização do trabalho das secções
de processos, como ao nível da atitude das partes em relação ao processo, e
dos actos dos próprios magistrados:
[O processo experimental] não traz grande vantagem, nem havia necessidade de
experimentar! Não se afasta muito das acções declarativas especiais para
cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos com petição,
contestação e audiência de julgamento. Não há benefício em termos de celeridade
processual.
c) Adoptar os mecanismos de agilização processual previstos na lei”. 84 Recordando a experiência da mudança de modelo de processo penal em 1987, um magistrado refere: Há um exemplo histórico que permite verificar que por vezes há regras importantes que devem ser quebradas. Trata-se da vigência e modificação do Código de Processo Penal de 1929. Durante 50 anos o CPP de 29 foi o diploma vigente no nosso ordenamento. Com a sua revogação e a introdução do CPP de 87 mudou-se o paradigma processual penal completamente. Mesmo assim durante mais de 10 anos continuou-se a aplicar o CPP de 1987 à luz de muitos princípios estabelecidos no CPP de 1929. Só quando a geração de juízes formados já no âmbito da vigência do Código de 1987, da qual fiz parte, começou a aplicar esse código é que, de uma vez por todas, se mudou «na realidade» a matriz processual. As consequências disso são conhecidas. (P2)
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
170
Relativamente a acções sumárias as diferenças são muito poucas. Os meios de prova
são apresentados juntamente com os articulados, mas há a possibilidade do Autor
requerer a alteração dos meios de prova depois da contestação. Há dez dias que
passam sempre, antes eram quinze dias. (Ent. 29)
Frequentemente, os requerimentos não incluem a prova, porque os advogados não
conhecem este processo. É frequente indicarem mais testemunhas do que é permitido
e ao abrigo do princípio da cooperação, pedimos para corrigir. Estas situações fazem-
nos perder ainda algum tempo. Em regra, os advogados não conhecem esta forma
de processo. (Ent. 30)
Não há um ganho por aí além, pode até causar algum prejuízo. Mas, eu sou adepto
desta forma de processo se a sentença for proferida num tempo breve após o
encerramento da audiência. Porque quanto mais presente estiver o julgamento melhor
para a decisão da matéria de facto. (Ent. 29)
O seguinte depoimento sintetiza as questões e dificuldades que estão
em causa quando se fala de mudança de uma cultura processual, orientada
para a gestão do caso concreto.
Penso que a questão da gestão processual é uma questão que deve ser enquadrada,
como todas as outras; e o problema é que os enquadramentos que temos feito a nível
de gestão processual são sobretudo ao nível das velhas questões do processo, de
rever ou não a lei processual. Portanto, quando falamos de gestão processual,
existem aqui duas grandes dimensões, a dimensão do processo e a dimensão de
organização e de gestão dos tribunais. Nos sistemas anglo-saxónicos existe, desde
os finais dos anos 90, nos Estados Unidos, a percepção de que o processo enquanto
tal foi completamente digerido pela organização e gestão dos tribunais e, portanto, a
questão processual é uma questão relativamente manipulável e flexível. Naturalmente
que os procedimentos são adaptáveis a objectivos de gestão e de organização, sejam
eles para obter a decisão final, sejam para obter outras finalidades quaisquer. Tem a
ver com política judiciária, tem a ver com a política de gestão dos tribunais, tem a ver
com o sentido que se quer atribuir à função dos próprios tribunais, à função social dos
tribunais. Nos sistemas continentais como o nosso, a questão prevalecente é a questão
da codificação da lei e, portanto, temos que actuar ao mesmo tempo em duas
dimensões, que são: a dimensão de organização e gestão dos tribunais, que envolve
também a gestão dos processos, e ao mesmo tempo temos que adequar isso a uma
determinada tramitação legal. E aqui é que está o problema, é perceber até que ponto
a nossa cultura, que é uma cultura jurídica e de compreensão dos Códigos e
disciplinas processuais, está ou não adequada à perspectiva mais ampla de
A gestão efectiva do caso concreto
171
organização e gestão dos tribunais. É aqui que se joga tudo. Penso que é possível,
não extrapolando sistemas diferentes, e, portanto, utilizando as ferramentas que são
próprias da organização e de gestão dos tribunais relativamente ao sistema anglo-
saxónico e aos sistemas de Common Law, é possível adaptá-los ao nosso sistema,
mas com algumas nuances e com algumas limitações, nomeadamente limitações que
têm a ver com cultura jurídica, codificação da lei, formação jurídica, etc. Obviamente
que ao nível do nosso sistema é possível, desde já, adequar soluções legais como
aquela que foi para o processo experimental, eventualmente com algumas
modificações ao nível da sistemática de processo civil, sabendo de antemão que elas
são sempre limitadas nas suas consequências. Podemos ter um sistema muito bem
pensado a nível processual, mas se as questões de organização e gestão dos tribunais
não forem compatíveis, obviamente que mesmo se tivermos uma solução legal ela não
vai ter eficácia porque há mecanismos de organização e de gestão que não estão
apropriados e não estão pensados para aquela dimensão processual. (P5)
Conclusões
173
8. Conclusões e Recomendações
8.1 Conclusões
Desde os finais da década de 80 que, à escala global, as reformas do
sistema judicial passaram a constituir componentes principais das agendas
políticas de diferentes Governos. De facto, as transformações ocorridas no
Estado, na sociedade e na economia, a consciência social da importância do
papel do poder judicial na construção do Estado de Direito, a crescente
visibilidade social e política dos tribunais, são factores que, nas últimas
décadas, provocaram profundas alterações, quer no contexto social da justiça,
quer no desempenho funcional dos tribunais judiciais, obrigando os poderes
político e judicial a desenvolverem extensos programas de reforma.
O aumento exponencial da procura judicial e a complexidade da litigação
vieram confrontar, nos anos mais recentes, o judiciário com a insuficiência das
reformas que inicialmente se centraram, sobretudo, em soluções de carácter
processual e no apetrechamento dos tribunais com mais recursos materiais e
humanos. Assume-se que é necessário ir mais além das medidas de “mais do
mesmo” (mais tribunais, mais recursos) e olhar para o sistema judicial numa
outra perspectiva. O programa de reformas da justiça passou, assim, a incluir
uma outra vertente, mais focada nos problemas relacionados com a qualidade,
a eficiência e a eficácia do sistema de justiça.
Neste novo quadro, as reformas de organização e gestão da
administração da justiça passaram a constituir uma das principais apostas das
agendas de reforma em muitos países. No lastro desta tendência está um
amplo movimento de transformação da administração pública em geral em
direcção a um Estado Managerial. Como acima escrevemos, esta é, contudo,
uma via muito complexa. Na sua base estão diferentes perspectivas da
configuração do poder judicial e dos princípios que o sustentam e, sobretudo,
da sua relação com os outros poderes, em especial, com o poder executivo.
Este espaço de reforma é, portanto, um espaço onde se medem as tensões
entre os vários poderes do Estado. Daí que a legitimação desta via do
processo de reforma e a defesa de valores constitucionais importantes da
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
174
cidadania, como a autonomia e a independência dos tribunais, requeiram uma
ampla e participada discussão nas agendas de reforma.
No quadro das reformas que visam uma melhor qualidade e eficiência do
judiciário, insere-se a discussão sobre medidas e mecanismos de gestão e
distribuição processual (case management / case assigment) – duas faces da
mesma moeda. A reflexão e discussão sobre esta temática confrontam-se com
questões como acesso ao direito e à justiça, eficácia, eficiência e qualidade
processual, distribuição igualitária de cargas de trabalho e garantias de
independência e de imparcialidade do sistema judicial. Todos esses objectivos
só serão, pelo menos em parte, conseguidos num sistema judiciário que tenha
uma perspectiva gestionária sobre os casos concretos que constituem a
procura que lhe é dirigida, isto é, que veja para lá da sucessão burocrática de
actos do processo.
Esta é uma discussão que também entre nós se começa a fazer. Há um
relativo consenso quanto ao facto de o deficit de organização, gestão e
planeamento do sistema de justiça ser responsável por grande parte da
ineficácia e ineficiência do seu desempenho funcional. Defende-se, por isso, a
introdução de medidas que visem a alteração de métodos de trabalho, uma
melhor e mais eficaz gestão de recursos humanos, materiais e dos processos.
O estudo realizado por solicitação da Direcção-Geral da Administração
da Justiça, que agora se apresenta, faz, do nosso conhecimento, uma primeira
abordagem mais abrangente sobre esta temática, procurando sistematizar
dados empíricos e trazer a perspectiva dos agentes judiciais. Ressalta-se, por
isso, o seu carácter exploratório e, acima de tudo, a agenda de investigação
que incorpora.
Eis as principais conclusões gerais:
1. As transformações gestionárias nos sistemas de administração da
justiça estão intimamente relacionadas com as reformas da mesma natureza
levadas a cabo na administração pública em geral em direcção a um Estado
Managerial. São dois os modelos principais em confronto no que respeita à
gestão das organizações da Administração Púbica: o modelo burocrático e o
modelo gestionário. É comummente aceite que o modelo burocrático de
Conclusões
175
Administração Pública, típico do Estado liberal, deixou de dar resposta às
exigências de celeridade e eficiência nos serviços. Nas últimas décadas do
século XX, começou a desenhar-se um novo modelo de gestão pública, o
modelo gestionário, caracterizado, no essencial, por uma gestão profissional,
pela fragmentação das unidades administrativas, pela adopção de modelos
típicos da gestão empresarial, pela definição de padrões de desempenho, pela
focalização nos resultados e pelo uso dos meios de acordo com objectivos de
eficiência. Este novo modelo abraça dois conceitos fundamentais: a qualidade
dos serviços ou produtos, na perspectiva dos clientes, consumidores ou
cidadãos, como factor de legitimação da organização e a prestação de contas,
como regulador do equilíbrio entre qualidade e eficiência, tornando os
resultados mais transparentes.
A concepção de novos objectivos da Administração Pública levou à
dinamização de um novo modelo de administração e gestão, o Modelo da
Qualidade Total, baseado nos fundamentos do modelo gestionário, cujos
princípios organizacionais fundamentais são os seguintes: liderança, motivação
dos funcionários, desenvolvimento de uma cultura organizacional, comunicação
e introdução de novas tecnologias.
2. Também no que respeita aos tribunais, enquanto organizações, temos
vindo a assistir à substituição do Modelo Burocrático-Administrativo por um
modelo com características do Modelo Gestionário com preocupações na
definição de padrões de qualidade, distantes da concepção do Modelo
Burocrático.
Quando analisamos a experiência comparada, podemos encontrar um
conjunto diferenciado de modelos em que as diferentes componentes
relacionadas com a gestão e a administração dos tribunais, incluindo
mecanismos de gestão processual, podem ter soluções distintas, embora seja
comum a tendência para uma maior atenção às políticas gestionárias, que
incorporam uma maior descentralização da acção administrativa e da gestão
dos recursos de cada tribunal.
Tendo como principal pedra de toque distintiva a relação existente entre
o poder judicial e o poder executivo naquela matéria, podemos identificar sete
modelos de administração e gestão dos tribunais: o modelo executivo (cuja
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
176
centralidade recai no poder executivo); o modelo de comissão independente
(que assenta num órgão ou comissão independente especialmente criada para
a administração do judiciário); o modelo de parceria (com uma administração
conjunta pelos poderes executivo e judicial); o modelo executivo mitigado (que
se caracteriza pela delegação de algumas competências no poder judicial); o
modelo de autonomia limitada (relegando para o poder executivo apenas o
controlo sobre a aprovação do orçamento global dos tribunais); o modelo de
autonomia limitada e de comissão (que combina vertentes do modelo de
autonomia limitada e dos modelo de comissão independente); e o modelo
judicial (que reserva ao poder judicial todas as competências relacionadas com
a administração e gestão do judiciário).
3. As medidas, especialmente dirigidas à eficiência e à qualidade do
judiciário, começam a ser discutidas, no contexto europeu, em finais dos anos
90 do século passado. O novo contexto social do desempenho funcional das
organizações do sistema judiciário levou-as, assim, à semelhança de outras
organizações da administração pública em geral, a confrontarem-se com a
necessidade de implementar medidas que visem o aumento da sua qualidade,
eficiência, transparência, bem como de prestação de contas.
A forma como os diversos países têm procurado incorporar essas
medidas passa frequentemente pela combinação de vários tipos de políticas,
sejam elas de governança direccionadas para a mudança das instituições que
governam o judiciário; estruturais, relacionadas com alterações do número ou
das funções das organizações do sistema judicial; processuais, que visam
alterar as regras tradicionais de resposta a problemas do judiciário; ou políticas
de gestão, cujo objectivo é o de melhorarem o funcionamento dos serviços de
justiça, tendo em vista, designadamente, a gestão mais eficaz do volume
processual, a avaliação de desempenho funcional e o investimento em
tecnologias de informação e comunicação.
O principal objectivo é desenvolver e consolidar uma administração da
justiça orientada para a eficiência e qualidade, cujos principais vectores são
independência e imparcialidade judicial, prestação de contas, eficiência,
processo justo, publicidade das audiências de julgamento, duração adequada
Conclusões
177
dos processos, certeza e segurança jurídica, acesso à justiça e eficácia de
desempenho.
4. Também no âmbito do Comité de Ministros do Conselho da Europa e
da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ), a problemática da
gestão processual e do recurso às novas tecnologias da informação e da
comunicação (TIC) tem vindo a merecer um particular destaque. No que
concerne ao Conselho da Europa, destacam-se as Recomendações n.os 2 e 3,
de 2001, nas quais é impulsionado o recurso às novas tecnologias enquanto
instrumento auxiliar da administração e gestão da justiça, apelando-se ao uso
das novas tecnologias na concepção dos sistemas judiciários e nos serviços
prestados aos cidadãos; e a Recomendação (2004) 15, que versa sobre o
conceito de e-governance, sublinhando a sua importância modernizadora das
operações de gestão, e visa impulsionar os Estados-Membros a elaborar
estratégias de gestão electrónicas, que permitam uma utilização eficaz das TIC
no seio de cada organização e nas relações entre os diferentes poderes
públicos, tal como entre estes e os cidadãos.
Em 2006, foi publicado pela CEPEJ um compêndio de boas práticas de
gestão do tempo nos processos judiciais, que focou a sua atenção em cinco
pontos essenciais: estabelecer calendarizações realistas e mensuráveis para a
realização dos actos processuais; assegurar a aplicação dos prazos fixados;
proceder à monitorização e disseminação de dados; desenvolver medidas
referentes à avaliação e resposta do volume processual e da carga de trabalho;
e promover políticas e práticas de gestão processual.
A CEPEJ conclui, ainda, pela necessidade de uma tramitação
processual diferenciada tendo em conta o tipo de processo e a sua
complexidade; pela importância de um papel mais activo por parte dos
magistrados judiciais e dos tribunais na gestão processual; pela
calendarização, tanto quanto possível rígida, das diversas fases do processo;
pela realização de uma conferência prévia à audiência final entre as partes com
a participação do juiz; e pelo uso de formatos concisos e padronizados nas
decisões judiciais.
A monitorização que permita detectar variações de volume processual e
de carga de trabalho nos tribunais é igualmente incentivada. Para tal,
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
178
considera-se necessária a definição da capacidade de trabalho dos recursos
humanos do tribunal e uma distribuição adequada dos recursos materiais
disponíveis.
5. Neste novo contexto tem vindo a dar-se uma crescente importância
aos mecanismos de prestação de contas. Nas sociedades democráticas as
organizações judiciais devem, tal como as outras organizações do Estado,
sujeitarem-se a mecanismos de avaliação externa e de prestação de contas. A
construção desses mecanismos é uma questão em debate em muitos países,
no qual emergem duas questões latentes: a questão da independência judicial
e o grau de autonomia/participação do poder judicial na gestão das
organizações judiciais. No seu lastro estão dinâmicas de mudança, que
podemos agrupar em dois tipos.
O primeiro tem a ver com as mutações no volume e na estrutura da
litigação que vieram alterar, quer o contexto social da acção dos tribunais, quer
o perfil do desempenho funcional dos magistrados judiciais confrontando estes
com novos desafios, sejam eles no exercício da sua acção jurisdicional ou
chamando-os a participarem na organização e administração dos tribunais. O
segundo com o aprofundamento do movimento de criação dos conselhos
judiciais em muitos países, com o propósito de reforçar a independência do
poder judicial face ao poder executivo e de melhorar a gestão do
funcionamento do sistema de justiça. Ora, justamente, para muitos autores este
novo desenho institucional do judiciário deveria ter como contrapartida o
aumento da prestação de contas com referência a critérios qualitativos e
quantitativos.
6. Os dados, e a reflexão que a partir deles foi possível fazer no curso do
trabalho de campo, permitiram aplicar e comprovar o quadro teórico que serviu
de suporte à nossa análise. Uma das vertentes essenciais do modelo
gestionário, também aplicável à administração dos tribunais num modelo
orientado para a qualidade e para a eficiência, passa pela existência de uma
liderança clara e forte, como condição essencial para desenvolver no seio dos
grupos profissionais o compromisso de trabalhar, numa perspectiva de
conjunto, para objectivos comuns.
Conclusões
179
Do trabalho de campo realizado resulta que, na perspectiva de
optimização dos recursos dentro dos tribunais, a liderança foi apontada como
fundamental para o bom funcionamento das unidades orgânicas. Tanto os
secretários de justiça quanto os escrivães de direito foram considerados como
funcionários, nos quais uma proactividade e uma capacidade de liderança
dinamizadora podem ajudar a suprir lacunas várias e constituem uma variável
relevante no desenvolvimento de políticas gestionárias.
A necessidade de um perfil proactivo da chefia de recursos humanos
dos tribunais conduz necessariamente à questão da importância de formação
específica para esses funcionários e, em geral, para quem venha a assumir
funções de liderança na organização e gestão dos tribunais. É sintomático que,
durante as entrevistas, alguns secretários de justiça e escrivães de direito
terem manifestado que as necessidades do serviço os levou a frequentar, por
conta própria, cursos de formação na área de recursos humanos e liderança.
7. A adopção de uma perspectiva gestionária na administração e gestão
dos tribunais impõe a consideração de questões relacionadas com a
organização interna do tribunal, nomeadamente, a necessidade de adopção de
objectivos comuns claros a prosseguir pelas diferentes unidades que, por um
lado, constituem um pressuposto para a avaliação do seu desempenho
funcional e, por outro, permitem criar um ambiente de envolvimento de todos os
intervenientes em algo que é, pelos próprios, visto como comum; e o
desenvolvimento de uma política de recursos humanos que garanta uma
adequada divisão do trabalho dentro do tribunal.
Merece referência, neste contexto, o novo modelo de oficina judicial,
criado em Espanha em 2003, cujos objectivos principais foram adaptar a
organização judiciária à realidade de um Estado autonómico; adaptar a oficina
judicial às novas tecnologias e a um programa eficiente e racional de gestão de
recursos humanos e materiais, como um sistema de organização mais ágil e
eficaz; e converter o secretário judicial no efectivo director da oficina judicial,
libertando-se o juiz da realização de toda a actividade burocrática. Todo o
trabalho de documentação do expediente, da marcação de diligências e da
execução de sentenças passou a ser da competência do secretário judicial.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
180
O novo modelo de oficina judicial moderniza e racionaliza a infra-
estrutura humana, material e tecnológica que rodeia o juiz. A ideia principal é a
de conseguir um desenho mais racional de oficina judicial, acabando com uma
estrutura considerada antiquada, constituída por “micro-secretarias” em cada
juízo, vara ou secção, organizadas de maneira própria, diferentes umas das
outras e sem a aplicação de técnicas de gestão de recursos humanos. Outra
das vertentes essenciais da nova oficina judicial prende-se com a
modernização tecnológica da administração da justiça e a necessária
adaptação dos espaços físicos à utilização daquelas tecnologias.
Nos termos da lei, a oficina judicial funciona com critérios de agilidade,
eficácia, eficiência, racionalização do trabalho, responsabilidade pela gestão,
coordenação e cooperação entre serviços, com a finalidade primordial de que
os cidadãos obtenham uma justiça próxima e de qualidade. Esta nova filosofia
pretendeu acabar com a atomização da estrutura dos órgãos judiciais e tende a
concentrar recursos em serviços comuns. Do ponto de vista organizativo, o
legislador considerou aconselhável catalogar e separar das diferentes
actividades em secções, equipas ou unidades especializadas, dedicadas a
tarefas específicas.
Sendo o objectivo primário da reforma a racionalização e actualização
dos meios humanos e materiais, com vista à obtenção de uma melhor e mais
rápida administração da justiça, o legislador optou, no desenho da nova oficina
judicial, por um sistema flexível, o que permite a cada oficina judicial adaptar-se
às suas necessidades específicas. Não obstante, a sua estrutura básica “será
homogénea em todo o território nacional como consequência do carácter único
do Poder que serve”. O elemento organizativo básico da estrutura da nova
oficina judicial é a unidade, a qual é de dois tipos: a Unidade Processual de
Apoio Directo (UPAD) e o Serviço Comum Processual (SCP).
8. A introdução e a correcta aplicação das novas tecnologias de
informação e de comunicação no sistema judicial são consideradas
componentes fundamentais de uma nova política gestionária, orientada para a
qualidade e eficácia dos sistemas judiciais. Contudo, a disponibilização de
Tecnologias de Informação (TI) no sistema judiciário não constitui, por si,
Conclusões
181
garantia de uma utilização optimizada das mesmas, podendo o seu uso ficar
bastante aquém das suas potencialidades. Desde logo, torna-se importante
explicitar os benefícios práticos das TI aos utilizadores e demonstrar que as TI
não são uma ameaça aos postos de trabalho existentes.
Ao analisarmos a experiência comparada, salienta-se a diversidade
europeia, quer no que se refere ao grau de implementação, quer à eficácia e
finalidades das Tecnologias de Informação nos sistemas judiciários. De um
modo geral, a introdução das TI nos sistemas judiciários é conduzida tendo em
vista a resolução de problemas específicos e não a sua eficaz integração no
sistema e organização onde vão ser utilizadas. Os estudos salientam,
igualmente, a ausência de uma visão integrada dos sistemas de informação,
não se tendo verificado uma articulação eficaz entre as diferentes instituições
do judiciário, bem como a adequada formação dos seus utilizadores.
9. A análise empírica veio mostrar a centralidade destas questões
quando o objectivo é elevar a eficácia, eficiência e qualidade do sistema judicial
português. Permitiu-nos identificar tanto factores cujo impacto na qualidade,
eficiência e eficácia da tramitação processual é difuso, como factores cuja
interferência directa na gestão do processo acaba por convertê-los em factores
de optimização – se bem geridos, em número suficiente e em bom estado de
boa utilização – ou em factores de perturbação – se sua gestão, quantidade,
utilização e estado de conservação forem precários ou insuficientes.
De entre os diversos factores que concorrem para a qualidade, eficácia e
eficiência da administração da justiça, foi dada especial atenção àqueles cujo
impacto na rotina de trabalho de funcionários e magistrados judiciais pode
convertê-los em factores de optimização ou de bloqueio da gestão processual.
Nesse sentido, o trabalho empírico realizado levou-nos a dois eixos de análise:
a dimensão material e a dimensão humana da gestão processual.
Na dimensão material, os problemas na organização do espaço físico,
distribuição de salas e gabinetes, bem como as deficiências na adaptação das
instalações materiais à introdução das novas tecnologias foram apontados
como obstáculos e dificuldades do quotidiano no trabalho dos operadores
judiciários.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
182
No que se refere aos primeiros, resulta do trabalho empírico que é
importante que a organização interna e a adaptação dos espaços físicos não
esteja, tendencialmente, baseada em critérios casuísticos ou subjectivos,
devendo, observadas as particularidades de cada caso, orientar-se por
princípios e critérios racionais e de optimização dos espaços e do trabalho.
Caso contrário, o projecto de modernização e eficiência dos tribunais, em vez
de superar obstáculos, pode criar outras dificuldades em virtude do
anacronismo das instalações ou da deficiente adaptação e organização das
condições físicas. Fundamental é também a adaptação exigida pela introdução
das novas tecnologias, que deve também sempre obedecer a devida
programação. Esta questão coloca-se, sobretudo, em edifícios onde o
funcionamento de juízos e varas foi concebido para uma realidade que não
contemplava a quantidade de cabos e aparelhos que o actual processo de
modernização idealizado para os tribunais implica.
10. Tal como a reflexão sobre os espaços físicos, a discussão sobre os
recursos materiais como possíveis obstáculos à eficácia da gestão processual
é também acentuada quando confrontada com as necessidades colocadas
pelas inovações tecnológicas. As carências na quantidade de alguns recursos
materiais e as deficiências no seu estado de conservação – impressoras,
fotocopiadoras, equipamentos de videoconferência – foram igualmente
sentidas como problemáticas para o bom desempenho do serviço. Diga-se,
aliás, que o projecto de modernização da justiça e de desmaterialização do
processo é percepcionado por muitos operadores com preocupação fruto da
falta ou inadequação dos equipamentos (número de digitalizadores, lentidão do
processamento e na transmissão de dados pelo sistema informático, etc.).
Foram também questionadas as debilidades dos próprios operadores enquanto
utilizadores das novas tecnologias e a necessária formação para que essas
debilidades fossem superadas.
11. Na análise da dimensão humana, o trabalho de campo revelou o
confronto entre os factores de bloqueio da gestão processual e as possíveis
medidas para superá-los. No primeiro caso, destacaram-se: (1) desmotivação
por parte dos funcionários e seu respectivo desinteresse enquanto parte do
Conclusões
183
sistema de justiça; e (2) a deficiência no actual plano de formação. De outro
lado, sobrelevou-se a actuação de alguns funcionários que, actuando como
lideranças, fomentam medidas de motivação e capacitação na gestão dos
recursos humanos.
Identificámos o que podemos designar de um círculo vicioso de
desmotivação e desinteresse por parte dos funcionários em relação às
reformas e às alterações de rotina. Tal círculo vicioso foi formulado da seguinte
maneira: quanto mais se sentem alheados da tomada de decisões dentro do
sistema de justiça, menos interessados os funcionários se sentem para buscar
informações por si mesmo; quanto menos iniciativa têm para buscar
informações por si mesmo, mais alheados ficam do processo de tomada de
decisões.
12. Pela frequência com que emergiu no discurso dos operadores,
merece especial destaque a questão da formação. O trabalho de campo
permite enquadrar as questões colocadas à formação dos funcionários judiciais
como um problema de duas dimensões: (1) como um problema sistémico
dentro do sistema de justiça, que se revelou na reivindicação unânime entre os
funcionários entrevistados por mais e melhor formação; (2) como um problema
estrutural do próprio Centro de Formação dos Oficiais de Justiça relacionado
com os limites de sua autonomia e capacidade financeira para gerir os cursos
que são oferecidos. A questão da formação também assumiu especial
relevância no discurso dos magistrados judiciais, na perspectiva da criação de
uma cultura judiciária que suporte uma nova concepção da tramitação
processual, prestando particular atenção aos casos concretos.
13. Ainda no quadro da dimensão humana, o trabalho empírico permitiu-
nos detectar, no funcionamento interno das secções, além da heterogeneidade
de métodos de trabalho adoptados, diferentes composições do quadro
funcional. Num contexto em que a organização interna dos tribunais está
centrada na diversidade da distribuição dos recursos humanos, com situações
deficitárias que se prolongam no tempo, os conteúdos funcionais podem
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
184
aparecer como bloqueio para uma boa gestão processual, percepcionando-os
como obstáculos a uma necessidade de maior flexibilização, mobilidade e
polivalência dos funcionários. Resulta, contudo, das posições assumidas pelos
diferentes operadores judiciários que, mais do que a eventual rigidez de
conteúdos funcionais, o que está em causa é uma melhor e mais eficaz gestão
dos recursos humanos e maior flexibilidade, dentro de determinados critérios,
na colocação e mobilidade dos funcionários. Situação em que, no âmbito do
mesmo tribunal ou mesmo da mesma comarca, possam existir secções de
processos com excesso de funcionários de determinada categoria e outras com
deficit dessa mesma categoria, são altamente prejudiciais para a eficácia e
qualidade da tramitação processual.
14. Nesta discussão, salienta-se, no que respeita aos conteúdos
funcionais, um modelo de administração dos recursos humanos baseado na
conjugação funcionários especializados com funcionários polivalentes. A
adopção de um modelo que tendesse para o modelo de polivalência funcional
nunca poderia prescindir de certa especialização, como, aliás, resulta claro do
trabalho de campo. Neste contexto, cabe aqui referir que o modelo de gestão
do trabalho que sustenta a maioria das secções de processos que, numa visão
técnico-burocrática do processo, enfatiza o cumprimento dos despachos
judiciais, tende a “negligenciar” outras funções centrais, como sejam o apoio
directo aos juízes nas diligências e audiências para o qual nem sempre são
destacados os funcionários mais adequados, obrigando o juiz a ter que suprir
muitas das deficiências, sejam elas de escrita de português ou outras.
Como já referimos, consideramos que o problema principal se situa no
âmbito da gestão e colocação de recursos humanos nos tribunais. É
necessário encontrar um ponto de equilíbrio que fomente, de acordo com os
indicadores de produtividade e de qualidade do trabalho, de volume e natureza
da procura judiciária, uma alocação de recursos humanos racional e
coordenada com as necessidades de cada caso. Esta tarefa dependerá em
grande medida da proactividade das chefias internas que, no actual
enquadramento legal são, em especial, os escrivães de direito e os secretários
de justiça, no sentido de, em decisões concertadas com juízes, e, com a
Conclusões
185
entidade com competência nesta matéria, decidirem sobre a melhor
distribuição funcional para as unidades orgânicas.
Esta nova atitude, mais do que alterações legais, exige uma nova
filosofia e práticas de administração e gestão dos recursos humanos para as
quais terão que estar disponíveis, não só as chefias locais, mas, também, as
entidades centrais com competência nesta matéria. Para tal, tem que, em
primeiro lugar, ser reconhecida a situação como um problema, para uma eficaz
e eficiente gestão processual; e, em segundo lugar, que, por parte de todos,
exista a predisposição para o resolver.
É certo que a nova Reforma do Mapa Judiciário aponta nessa direcção,
mas até à sua avaliação e extensão a todo o país, há todo um vasto conjunto
de cidadãos e empresas com expectativas por uma justiça mais eficiente e
eficaz.
15. Tendo em conta o actual modelo de organização dos tribunais
portugueses, constituído por unidades orgânicas separadas entre si e
interligadas pelo fluxo de documentos e processos, no qual cabe à secção de
processos um papel destacado na tramitação processual, esta unidade
orgânica assumiu o status de unidade analítica base da nossa investigação. É
esta secção que, designadamente, dá a “forma de processo” aos documentos
recebidos na Secção Central, encaminha os despachos e notificações para as
partes, outros serviços ou para serem cumpridos pela Secção de Serviço
Externo, bem como alimenta o gabinete do juiz com conclusões, diligências e
outros procedimentos que careçam de decisão. Esse corte metodológico
conduziu-nos a aprofundar a análise sobre a gestão e os métodos de trabalho
da secção de processos partindo da seguinte hipótese: a qualidade e eficiência
na gestão e nos métodos de trabalho da secção de processos repercutem-se
na qualidade e eficiência da própria gestão processual.
Uma primeira constatação que consideramos dever merecer reflexão é
que estamos perante um modelo de organização atomizado, ou seja, baseia-se
na divisão um juiz, uma secção. Esta forma de organização respondia bem às
necessidades de uma época em que as vias de comunicação eram escassas e
não integradas. Mas, devemos indagar se no contexto actual, com a evolução
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
186
dos meios tecnológicos e de comunicação entre as diferentes unidades
orgânicas dos tribunais e entre estes e o exterior, e considerando o propósito
de modernização da justiça, esse modelo deve ser mantido ou se é um
bloqueio à qualidade, à eficácia e à eficiência da gestão processual.
Relembramos, a este propósito, a discussão e a reforma feita em Espanha com
a nova oficina judicial.
16. No funcionamento interno das secções de processos, detectou-se
uma heterogeneidade de procedimentos em três aspectos principais: nos
critérios adoptados por cada escrivão de direito para a distribuição entre os
funcionários dos processos a cumprir; no controlo de prazos legais; no
benefício das potencialidades dos sistemas informáticos; e nos método de
trabalho adoptados para o exercício das respectivas funções, quase sempre
assentes na percepção de cada um sobre qual a melhor forma de administrar o
seu volume de trabalho.
Na organização do trabalho acabam por imperar as preferências
subjectivas de cada um, isto é, como costumam trabalhar e o que gostam de
fazer primeiro. As preferências, por seu turno, são suportadas com o que é
exigido na secção pelo escrivão de direito, que dependem também do método
de trabalho do juiz. A organização do trabalho varia, então, de acordo com o
escrivão de direito, o juiz e o perfil e a experiência de cada funcionário.
Consequentemente, os métodos de trabalho não são definidos e geridos de
acordo com critérios objectivos de racionalização e eficácia e a produtividade
dos funcionários depende muitas vezes do seu empenho e compromisso
pessoais.
Na identificação do problema salienta-se, por um lado, a falta de
preparação das chefias para a gestão de recursos humanos. Mas, por outro,
reflecte a lógica de um modelo técnico-burocrático de gestão processual em
que o processo é visto como um conjunto de actos isolados e os funcionários
são tidos como entidades separadas, cujo objectivo principal é o cumprimento
estrito dos actos que lhe são atribuídos, independentemente das
consequências para a gestão do serviço como um todo.
Conclusões
187
17. Naturalmente que o exercício de qualquer tarefa é, em si mesmo, um
campo de manifestação da subjectividade de quem a executa. O que se coloca
em questão não é o fim da subjectividade ou dos critérios pessoais no exercício
das funções de uma secção de processos, mas sim a importância de existirem
critérios que, numa perspectiva gestionária, estejam voltados para optimização
e eficiência dos métodos de trabalho e, em consequência, da gestão
processual. O momento de juntar documentos ao processo, fazer notificações,
abrir conclusões, cumprir despachos, fazer actas das diligências, etc., não
pode depender, sobretudo, de critérios subjectivos de maior ou menor pró-
actividade ou dos critérios de inspecção, que ocorrem muito mais tarde.
Neste contexto, merece uma especial reflexão o chamado método de
“tirar prazos”. Pela desigualdade que reflecte para os cidadãos no acesso à
justiça, atente-se no seguinte depoimento de um funcionário
Há muitas secções em que se vê que as pessoas vão à estante duas vezes por ano, se
calhar, a seguir às férias (...) “tirar os prazos”, é movimentar os processos que estão a
aguardar prazos. Os processos, depois de cumpridos os despachos, ficam a aguardar
os prazos dos advogados. Depois é preciso tirá-los, terminado esse prazo, e fazer as
conclusões, fazer o que for preciso. E como se faz poucas vezes, isto é, como há muito
trabalho, vai-se deixando para o fim e faz-se o resto. Não quer dizer que as pessoas
não trabalhem, porque as pessoas até trabalham muito. Só que deixam para o fim. Vão
lá duas ou três vezes por ano. Pode ser assim ou não ser. Não é assim em todas as
secções. Mas, depois os processos saem todos ao mesmo tempo, o que faz dar muito
ou pouco trabalho (...) Os processos andam todos ao mesmo tempo quando a
secretaria se lembra. (F1)
Mas, note-se que este “andar” apenas se refere à secção. Porque pode
acontecer, como muitas vezes acontece, que o processo ande apenas para o
gabinete do juiz e aí fique “a aguardar”. Aliás, este método de “atacado”
proporciona isso mesmo: desencalhar num sítio para encalhar no outro.
18. A análise da centralidade da secção de processos na organização
interna dos tribunais conduziu-nos à representação gráfica dos fluxos
processuais entre esta e as demais unidades orgânicas. Na análise dos fluxos
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
188
processuais, foi evidente o bloqueio na relação secção de processos-gabinete
do juiz que, em última instância, representa um obstáculo à gestão processual
por dificultar uma decisão concertada sobre a agenda de trabalho de ambos,
que obviamente é muito mais do que a marcação de diligências.
Os fluxos processuais foram, também, analisados à luz da Portaria n.º
114/2008, de 6 de Fevereiro. Para além das virtualidades desse novo modelo
de informatização, que vieram provocar, nomeadamente, a eliminação de
etapas de trabalho (como a impressão de documentos e a junção de papéis ao
processo) e de simplificação de procedimentos, o projecto de
desmaterialização foi também discutido no âmbito das dificuldades e
preocupações que trouxe para os operadores judiciários. No âmbito das
dificuldades, destacamos a existência de uma cultura de trabalho
profundamente enraizada no papel, cuja difícil superação em vez de significar
simplificação pode correr o risco de redundar em duplicação de trabalho, como,
aliás, de certa forma aconteceu com a reforma da acção executiva de 2003.
Não nos podemos esquecer que a modernização tecnológica também
pode servir para a consolidação de um modelo técnico-burocrático de gestão
processual e, nesse caso, significaria não muito mais do que a simplificação e
automatização de alguns procedimentos mantendo inalteradas as rotinas e os
métodos de trabalho. Nesse caso, um dos maiores riscos é, ao simplificar a
rotina de trabalho do funcionário, provocar a sua automatização e um maior
alheamento da gestão do processo e do serviço como um todo.
Consideramos, por isso, que a informatização deve implicar um repensar
dos métodos de trabalho e da organização de serviço tendo em vista uma
perspectiva gestionária da tramitação processual baseada em critérios de
racionalização, optimização e orientada para a eficácia, eficiência e qualidade
da justiça do caso concreto.
19. Mas, como também resultou deste e de outros trabalhos que temos
vindo a realizar no âmbito da justiça cível, para a eficácia da gestão processual
é fundamental a alteração do paradigma processual. Sem esse respaldo,
podemos assistir, não só a poucos ganhos de eficácia na gestão processual,
como ainda a alguns efeitos perversos da reforma, como a duplicação do
Conclusões
189
trabalho em que, paralelamente aos actos virtuais, são mantidos os actos
manuais. O “atavismo” processual tem efeitos negativos na tramitação do
processo, não só porque é ele próprio indutor de morosidade, mas também
porque diminui a eficácia da aplicação das novas tecnologias à gestão
processual. Como foi amplamente referenciado pelos agentes judiciais, há uma
clara desadequação entre regras e práticas processuais e os objectivos de
celeridade, racionalidade e eficácia pretendidos, como se estivéssemos em
dois tempos distintos e dessincronizados.
Consideramos que há, entre nós, um relativo consenso quanto à
necessidade de caminharmos para um processo mais orientado pelos
princípios da oralidade, celeridade e simplificação de procedimentos e que
trate, obrigatoriamente, de forma desigual os litígios de baixa e alta
intensidade. A avaliação da reforma em curso do Regime Processual Civil
Experimental será um auxiliar fundamental nessa discussão.
Não basta, pois, simplificar procedimentos. É fundamental que se crie
um reforço da oralidade, quer nos actos das partes, quer nos actos
jurisdicionais. Como nos foi amplamente referido por vários dos agentes
judiciais entrevistados, continuamos com um excessivo peso da escrita, quer
nas peças processuais apresentadas pelas partes, quer nos despachos dos
juízes, em especial das sentenças. A tramitação processual, prevista nas leis
de processo, e enraizada nas rotinas e na cultura judiciária, é uma tramitação
que tem o seu lastro na cultura do papel, assente em despachos judiciais
extensamente fundamentados; em sentenças de várias páginas, que repetem a
base instrutória, os fundamentos das partes, extensa doutrina; e em articulados
e requerimentos das partes extensos, com longas repetições de factos e de
argumentação jurídica. Esta cultura processual é difícil de transpor, com
ganhos de eficácia e de qualidade, para a tramitação telemática.
20. O elevado volume de despachos de mero expediente proferidos nos
processos, decorrente do actual paradigma processual, ocupa parte
significativa da actividade diária dos juízes, confirmando a “dimensão
burocrática” do actual paradigma processual. Esta questão, recorrentemente
em discussão no âmbito da justiça civil, tem fortes implicações na adequada
gestão processual. A excessiva dimensão burocrática do processo, sobretudo
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
190
quando convoca a intervenção do juiz, dificulta a tramitação processual
orientada por princípios e critérios de gestão, por várias vias, designadamente,
diminuindo o tempo do juiz e dificultando o planeamento e agendamento dos
actos jurisdicionais e potenciando o andamento aparente do processo.
À semelhança do que ocorreu, por exemplo, em Espanha, alguns dos
entrevistados defendem que a solução passa pela delegação da competência
para a prática de actos de mero expediente do juiz no secretário ou no escrivão
de direito.
21. Os mecanismos de distribuição dos casos pelos diferentes tribunais
e, dentro de cada tribunal, pelos juízes, são também cruciais para a qualidade
e eficiência com que os sistemas judiciais respondem à procura judicial,
emergindo nesta discussão questões relacionadas com a interpretação dos
princípios constitucionais da inamovibilidade e do juiz natural, bem como com o
recrutamento e colocação de juízes. Da análise da experiência comparada,
decorre que, tanto o princípio do juiz natural, como o princípio da
inamovibilidade têm diferentes enquadramentos e amplitudes nos vários
sistemas judiciais.
O papel do presidente do tribunal na gestão dos recursos humanos e,
mesmo, na distribuição dos processos é, igualmente, diferente, suscitando
diferentes interpretações daqueles princípios. Considera-se que os tribunais
são mais “flexíveis” nos sistemas judiciais em que o presidente do tribunal
desempenha um papel mais activo, quer no que respeita à distribuição
processual, quer à gestão dos recursos humanos.
Os estudos analisados apontam para a necessidade de as regras e
procedimentos admitirem alguma flexibilidade para assegurar eficiência. Tal
flexibilidade pode ser assegurada, quer através de uma adequada distribuição
processual, quer, devido à flutuação da carga processual, através da previsão
de mecanismos de transferência de juízes para outras unidades. A introdução
de mecanismos de flexibilidade não pode, no entanto, colocar em causa os
princípios da imparcialidade do tribunal e da continuidade na tramitação e
resolução dos processos.
Langbroek et al. (2007), no estudo “Is There a Right Judge for Each
Case”, retiraram três conclusões essenciais: a primeira é que, apesar de a
Conclusões
191
sociedade moderna empurrar as estruturas judiciais para uma busca por maior
eficiência, flexibilidade e transparência, os valores judiciais tradicionais
parecem condicionar muito aqueles objectivos, com forte influência na gestão
de processos e de recursos humanos; a segunda é que existem grandes
diferenças nos vários países europeus analisados no que concerne ao nível de
formalismo da distribuição de processos; e a terceira conclusão, é que os
tribunais devem gerir o equilíbrio entre juízes especializados e juízes
generalistas, sendo que, embora um maior número de juízes generalistas
possa aumentar a flexibilidade e, assim, aparentemente a produtividade, esse
desequilíbrio pode ter consequências negativas na resolução dos processos,
acabando por afectar negativamente, não só qualidade e legitimação do
tribunal, como também a sua produtividade.
22. Esta foi, também, uma das matérias em reflexão no curso do
trabalho de campo. Em primeiro lugar, temos que ter em consideração que a
distribuição da procura judiciária pelos diferentes tribunais começa, a um nível
macro, por ser condicionada pelas políticas relativas a dois aspectos
essenciais: mecanismos de resolução alternativa de conflitos e organização
judiciária. A maior ou menor densificação dos meios alternativos de resolução
de conflitos tem influência no desempenho funcional dos tribunais judiciais.
As políticas relativas à organização judiciária são, ao nível macro, a
segunda condicionante da distribuição da procura judicial. Desde logo, a maior
ou menor especialização dos tribunais judiciais, quer considerando as
principais áreas do direito (cível, criminal, laboral, administrativo, família,
comercial), quer dentro de cada área (por exemplo, a existência de
especialização para tramitar as acções executivas ou para a propriedade
industrial), irão determinar formas diferentes de distribuir a procura judiciária
num dado país.
23. Sobre esta questão, consideramos que sem prejuízo do processo de
reforma em curso relativo ao mapa e à organização judiciária, é importante,
sem colocar em causa os objectivos e o paradigma daquela reforma, fazer
alguns ajustamentos em matéria de organização judiciária, tendo em atenção
recentes alterações legislativas, como a alteração das alçadas e das regras de
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
192
competência territorial, que transferiram a procura de alguns tribunais para
outros. Há tribunais próximos e, por vezes, secções do mesmo tribunal, em que
a relação volume de processo/ número e categoria de funcionários é bastante
desigual. Consideramos, por isso, fundamental que neste período de transição
se desenvolva um sistema que permita uma avaliação real e periódica do
volume e da natureza da litigação, bem como dos recursos humanos de todos
os tribunais cíveis.
É, ainda, importante que se proceda, ainda neste período de transição,
sobretudo nas comarcas de elevado volume processual, à separação definitiva
entre as acções declarativas e as acções executivas.
24. No que respeita à distribuição das acções dentro do tribunal, pelas
diferentes unidades orgânicas e pelos juízes, como mostramos neste relatório,
levantam-se questões várias, estando sujeita a mecanismos diferenciados nos
vários sistemas judiciais. Confrontam-se dois propósitos: por um lado, o de
assegurar que a distribuição dos processos se faça sem colocar em causa o
direito e a garantia das partes a um processo justo e imparcial; por outro, igual
direito a uma justiça eficiente e de qualidade.
Os sistemas judiciais que prevêem, tal como o sistema judicial
português, regras de distribuição, gerais e abstractas, visam, assim, garantir
que a carga de trabalho seja tendencialmente igualitária entre os juízes e as
secções de processos, proporcionando a aleatoriedade da distribuição como
via essencial para garantia da imparcialidade dos tribunais. O problema é que
as regras gerais e abstractas não respondem a algumas necessidades
excepcionais de qualidade e eficiência. Defendem-se, por isso, regras que,
sem colocar em causa o direito a um processo justo e imparcial, permitam uma
maior flexibilidade da distribuição dos processos dentro do tribunal. As
situações de excepcionalidade podem decorrer da especial complexidade dos
litígios, do aumento do volume de trabalho ou da impossibilidade temporária
dos magistrados titulares do processo.
A primeira nota a considerar é que as regras de distribuição previstas
actualmente no Código de Processo Civil não incorporam critérios
especialmente dirigidos a assegurar a eficiência e a qualidade da resposta
judicial. Parte-se do pressuposto que esses objectivos são assegurados pela
Conclusões
193
especialização das jurisdições, quando ela ocorre, e pela geral qualidade e
capacitação de todos os magistrados, que deverão estar aptos a dirigir e
decidir qualquer tipo de litígio.
Entre nós, o discurso sobre esta questão ainda está muito vinculado a
regras de distribuição rígidas referenciadas à interpretação do princípio do juiz
natural. Mas, mesmo para dar resposta a um dos objectivos previstos na lei
(igual distribuição de carga de trabalho), a prática mostra a insuficiência dessas
regras, levando a outras formas de distribuição informal, procedendo-se a
distribuições paralelas, à margem da distribuição automática e electrónica, de
determinados tipos de litígios, como as expropriações ou alguns recursos de
autoridades administrativas.
A opinião dos operadores judiciários ouvidos no âmbito deste estudo
sobre a distribuição processual e a possibilidade de implementação de
mecanismos de flexibilização, tendo em vista uma maior eficiência e qualidade
do sistema, pode ser dividida em três posições, que incorporam duas leituras
diferentes do princípio do juiz natural: a) aqueles que tendencialmente
consideram suficientes os actuais mecanismos de distribuição e de gestão
processual e que qualquer alteração tem sempre que ser feita através do
Conselho Superior da Magistratura; b) os que consideram a necessidade de
aprofundar a qualidade da justiça alargando a possibilidade de especialização,
mas através de unidades de especialização dentro do tribunal (estas duas
posições fazem leituras mais restritas do princípio do juiz natural); c) e aqueles
que, colocando a ênfase na eficiência e qualidade da resposta judicial, fazem
uma outra leitura menos rígida daquele princípio e consideram insuficientes os
actuais mecanismos de distribuição e gestão processual, colocando uma
ênfase específica nas funções do juiz presidente.
Para assegurar a possibilidade de distribuição de determinado tipo de
litígios a um determinado juiz, especialmente habilitado para a resolução do
mesmo, a maioria dos entrevistados defendeu a necessidade de criação de
uma secção (ou sub-secção) especializada onde esse juiz seria colocado. A
razão de ser desta posição funda-se, no essencial, no receio de se perder a
imparcialidade do tribunal.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
194
25. As posições relativas ao papel do juiz presidente na distribuição e
gestão processual são díspares. Identificámos três posições principais quanto
ao papel do juiz presidente na distribuição processual dos processos entrados,
e na possibilidade de redistribuição dos processos pendentes: para uns, tal
possibilidade deve estar absolutamente vedada; para outros, essas
competências devem ser exercidas conjuntamente com o Conselho Superior
da Magistratura, devido à proximidade com a função jurisdicional; e, para
outros ainda, a possibilidade de o juiz presidente definir critérios de distribuição
é claramente defendida.
Ainda no que respeita às funções do juiz presidente, alguns magistrados
consideraram particularmente proveitosa a sua função dinamizadora de
fomentar o diálogo entre os magistrados de um tribunal, criando espaços, com
dimensão institucional, de debate.
26. Uma outra vertente central da qualidade e eficiência da resposta
judiciária é a adopção de uma visão gestionária do processo (case
management). O magistrado judicial abandona a sua veste de terceiro
imparcial e distante, passando a assumir uma intervenção activa na gestão do
litígio. Esta perspectiva tem por base a concepção, segundo a qual a eficiência
resulta menos das mudanças das regras processuais do que da adequada
monitorização do desempenho funcional dos tribunais e intervenientes no
processo.
É, na verdade, na forma como os tribunais tramitam e decidem os
processos concretos, isto é, respondem à procura que lhes é dirigida, que
todos os factores que condicionam a melhoria da qualidade e eficiência do
sistema judicial se interseccionam e combinam. A eficácia, eficiência e
qualidade dessa combinação determina igual eficácia, eficiência e qualidade na
resolução do caso concreto. Nesse percurso, é crucial o modo como se faz a
participação e interacção dos diferentes intervenientes processuais.
27. De entre todos os intervenientes, é ao juiz a quem os sistemas
judiciais atribuem um papel mais activo na gestão do caso concreto. Ao juiz é
conferido um papel central na prossecução de uma gestão processual
orientada para a eficácia, eficiência e qualidade do caso concreto. Contudo, tal
Conclusões
195
como em muitas outras áreas do sistema judicial, a prática está, entre nós,
longe desse objectivo, embora se conceba a essencialidade de o juiz assumir
efectivamente esse papel.
No discurso dos entrevistados e na prática, confrontam-se duas
perspectivas sobre a tramitação de um dado caso/processo: uma, dominante
entre nós, técnico-burocrática que tende a privilegiar o processo como uma
sequência de actos em cada um dos intervenientes processuais (partes,
advogados, funcionários e juiz) pratica os actos que a lei lhes atribui; e outra
que olha para cada caso concreto que subjaz ao processo. Esta última
perspectiva pressupõe, sem colocar em causa os direitos e garantias das
partes, uma gestão tendencialmente diferenciada de cada processo,
considerando as suas características, como a natureza do litígio, o valor, o
número de intervenientes, etc..
Para se alcançar uma perspectiva diferenciada do processo, é
necessário, em primeiro lugar, tramitar e agir relativamente ao caso concreto
de acordo com objectivos e mecanismos de gestão processual que tenham
sempre no horizonte a decisão final, que deverá ser simultaneamente justa e
rápida, abandonando-se, assim, uma cultura em que o desempenho funcional
esteja assente em rotinas e na tendência para um produtivismo quantitativo.
28. Um dos pressupostos essenciais que permite implementar
mecanismos de gestão processual é o da diferenciação de processos que
permita ter uma visão estratégica do processo, quer no que respeita à sua
duração previsível, quer aos actos e sua complexidade. Para tanto, é
necessário recorrer a critérios mais amplos do que os definidos nas regras
processuais em função do valor e da natureza do processo.
O nosso estudo mostra que a diferenciação em função do valor e da
forma processual e ou mesmo em função das espécies de distribuição não é
suficiente para abarcar a pluralidade da actuação exigida ao magistrado judicial
em cada caso concreto. O conhecimento da duração média e do tempo
esperado do juiz para os diferentes tipos de litígios são auxiliares importantes
do desenvolvimento de medidas de gestão processual.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
196
29. Além do conhecimento aproximado do tempo que determinado
processo concreto em princípio tomará ao juiz, é, ainda, fundamental que se
tenha uma visão sobre a realidade processual de cada unidade orgânica. O
acesso à informação, em tempo real, sobre o volume e o tipo de litígios, por
parte, quer dos funcionários judiciais, quer dos magistrados, é um dos
pressupostos essenciais para a criação de um sistema transparente e
compatível com a adopção de mecanismos de gestão. A produção e
disseminação (através de relatórios, na intranet ou Internet, etc.) de indicadores
estatísticos, de acesso imediato e adequadamente trabalhados, constitui, deste
modo, uma das ferramentas essenciais para a implementação e introdução no
sistema judicial de um modelo de gestão adequado, quer dos processos
judiciais, quer dos serviços de justiça globalmente considerados. Do trabalho
de campo realizado, concluímos pela carência deste tipo de ferramentas e pela
visão marcadamente parcelar que os operadores judiciários têm da sua própria
unidade orgânica.
30. O planeamento e agendamento eficazes dos principais actos
jurisdicionais, em especial das audiências preliminares, despachos
saneadores, audiências de discussão e julgamento e sentenças, são
considerados como instrumentos fundamentais da gestão do caso concreto.
Resulta do trabalho de campo que esta é uma matéria onde se verifica
heterogeneidade, decidida de forma subjectiva por cada juiz e nem sempre
articulada dentro do tribunal. Resulta, ainda, que esta heterogeneidade é fruto,
em boa medida, da falta de formação dos operadores nesta área específica. A
gestão do caso concreto é feita, por cada magistrado, de acordo com métodos
próprios de trabalho, mas sem que procure incorporar princípios ou critérios de
eficácia e eficiência, considerando a globalidade dos actos e dos processos.
A eficaz gestão dos processos pode passar, ainda, sobretudo para
alguma litigação, pelo incentivo ao agendamento comum de casos idênticos, ou
pela agregação/apensação de processo, mecanismo já previsto no Regime
Processual Civil Experimental, mas de pouca utilização na prática, ou pela
criação de um “manual de boas práticas” dirigido especificamente à litigância
de massa.
Conclusões
197
31. Resulta do trabalho de campo que, na prática, o juiz apenas tem
controlo prévio sobre a sua actividade no que diz respeito à marcação de
diligências (audiências de produção de prova, audiências preliminares, etc.).
Todo o restante trabalho de gabinete (despachos, sentenças) depende muito
do que, quotidianamente, lhe for apresentado pela secção de processos, que
funciona como uma fonte de “alimentação” do gabinete do juiz. Contudo, do
discurso dos entrevistados, é consensual que a adopção de mecanismos de
gestão processual exige maior capacidade de controlo e de programação dos
actos que, num determinado período de tempo (por exemplo, uma semana), o
magistrado tem que efectuar.
Para a mudança organizacional e funcional da interacção juiz/secção de
processos exigem-se mudanças em factores de natureza legal e cultural, com
posições diferenciadas quanto à maior ou menor presença de uns e de outros.
Se para alguns o problema é, sobretudo, um problema de lei, para outros é,
sobretudo, um problema de práticas e de rotinas, que apenas poderá ser
ultrapassado com a definição e assunção de objectivos comuns do tribunal
enquanto organização.
32. A questão da liderança orgânico-funcional do tribunal assume,
quanto a esta matéria, uma forte centralidade. Há relativo consenso quanto à
necessária intervenção do juiz presidente, no uso de competências, legalmente
definidas, quanto a esta matéria. Outros, por outro lado, defendem a
centralidade do escrivão de direito na gestão da secção de processos. Esta
dessintonia entre a secção de processos e o juiz pode gerar efeitos perversos
com práticas que, de acordo com os operadores entrevistados, devem ser
consideradas inaceitáveis, nomeadamente, estipulando o número de processos
em relação aos quais a secção deverá abrir conclusão para despacho,
limitando e seleccionando, desta forma, os processos que vão ao gabinete do
juiz.
Para ultrapassar esta dessintonia, é necessário adoptar uma visão
estratégica de conjunto da secção do processo/juiz, assumindo o próprio juiz
uma co-responsabilização pelo andamento do processo na secção.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
198
33. Relacionada com aquela questão, surge o problema do cumprimento
dos prazos, pressuposto essencial de uma adequada gestão processual.
Constatámos que a realidade de hoje, escudada no fundamento de excesso de
volume de processos e da falta de recursos humanos, é do generalizado não
cumprimento dos prazos previstos na lei para as diferentes fases do processo.
Neste campo, destacam-se as novas funcionalidades do Citius, que veio
introduzir maior transparência no sistema, impedindo a abertura de conclusões
para futuro, por um lado, e, por outro, permitindo o permanente controlo por
parte do juiz da pendência do seu juízo.
34. Ainda quanto ao papel do juiz, os estudos e recomendações
apontam-no como muito importante na tentativa de composição do litígio pela
conciliação das partes. A realização de uma conferência com a presença das
partes numa fase anterior à audiência de julgamento pode, além de outros
efeitos de natureza gestionária na tramitação do processo, como o
agendamento das audiências de julgamento, fomentar a resolução do litígio por
acordo.
Do trabalho de campo realizado são duas as conclusões fundamentais
sobre esta matéria: por um lado, entre nós parece ainda ser determinante a
“cultura” do acordo à “porta da audiência”; por outro, é divergente o
entendimento sobre o efectivo papel do juiz na via conciliatória (alguns
defendem que tal tarefa cabe aos advogados e não aos juízes, cuja função é
proferir uma decisão) e, mais divergente ainda, no quadro de uma perspectiva
gestionária do processo, sobre o momento em que tal deve ocorrer.
35. De entre as estratégias processuais das partes, que podem afectar a
celeridade processual e uma adequada gestão do processo, foi salientado o
recurso à suspensão da instância por acordo, utilizado, com frequência, como
resposta perversa à limitação do adiamento das audiências, servindo
estratégias de agendas dos advogados e que acaba por redundar num
expediente dilatório. A experiência dos operadores judiciais gerou posições não
coincidentes. Para uns, se tais mecanismos estão ao dispor das partes, não
devem ser questionados pelo tribunal ou, pelo menos, não devem constituir o
centro da discussão em torno da gestão processual, até porque pode acontecer
Conclusões
199
que essa suspensão ajude na realização de um acordo. Para outros, todavia,
esse é um problema real que coloca em causa o planeamento e agendamento
da actividade do tribunal, não só no processo em concreto, mas com
consequência em outros processos.
36. Não obstante a influência de muitos outros factores condicionantes
do funcionamento dos sistemas de justiça, muitos autores chamam a atenção
para a necessidade de não descurar a cultura judiciária (“legal culture”) como
um dos elementos potencialmente explicativos de alguns dos bloqueios a um
funcionamento mais eficiente e eficaz do sistema judicial Nas discussões
desenvolvidas no âmbito do presente projecto foi amplamente salientado que a
gestão processual não se resolve por ela própria, isto é, não é mudando as leis
de processo que conseguimos resolver os problemas de falta de eficácia e da
qualidade do sistema, sendo necessário criar uma cultura judiciária que tenha
sobre os processos uma visão estratégica orientada para a eficiência e
qualidade da justiça.
Neste contexto, sublinha-se que a previsão legal de um dever de gestão
(à semelhança do que ocorreu no Regime Processual Civil Experimental) pode
ser um factor de incentivo da criação dessa cultura. No entanto, do trabalho de
campo realizado decorre que a mera previsão legal não é suficiente para
desenvolver, no caso do Regime Processual Civil Experimental, uma cultura de
receptividade destes modelos.
Para as mudanças culturais da advocacia, das magistraturas, dos
agentes judiciais em geral, há um longo caminho a percorrer. Para esse
processo de mudança é crucial a contribuição dos estudos e da reflexão
produzida, a dinamização de espaços de debate e a criação e desenvolvimento
de programas estratégicos de formação. As reformas dificilmente resolvem os
problemas se não houver uma cultura judiciária que as sustente. Para tal, a
formação dos magistrados, quer a formação inicial, quer a formação
permanente, assumem um papel central num qualquer projecto de reforma
estrutural do sistema de justiça dirigido, não só ao aumento da eficácia, mas
também à melhoria da qualidade de justiça e à criação de uma nova cultura
judiciária.
Algumas recomendações
201
8.2 Algumas recomendações
Como acima referimos, a discussão sobre medidas e mecanismos de
gestão processual, no quadro das reformas que visam uma melhor qualidade e
eficiência do judiciário, é uma discussão que, na maioria dos países da Europa,
tem pouco mais de uma década e que, entre nós, só muito recentemente se
iniciou. A natureza exploratória deste estudo e a agenda de investigação para
que aponta, apenas nos permitem salientar algumas recomendações de
carácter geral. Assim, à luz da investigação realizada, da literatura consultada,
e tendo como referência as conclusões supra, parecem-nos adequadas as
seguintes recomendações com o objectivo de aprofundar a eficiência, eficácia
e qualidade da justiça cível em todos os tribunais judiciais de primeira instância:
a) Sem prejuízo do processo de reforma em curso relativo ao mapa e
organização judiciária, consideramos importante a organização de um plano de
acção que ausculte os juízes presidentes e secretários de cada tribunal, tendo
em vista a redefinição da relação entre os recursos humanos existentes e o
movimento processual. Os reajustamentos dos recursos humanos decorrentes
das recentes alterações legislativas a nível de competência territorial e do valor
das alçadas deve ser decidido de forma global e com a participação activa e
responsável de todos os juízes presidentes e secretários.
b) Para tal, consideramos importante a criação de um grupo de trabalho
que, neste período de transição, desenvolva um sistema de avaliação real e
periódica do volume e da natureza da litigação, bem como dos recursos
humanos de todos os tribunais cíveis.
c) Idêntico plano, em concertação com os juízes presidentes e secretários
de cada tribunal, deve ser desenvolvido para o levantamento dos recursos
materiais, em especial daqueles que são essenciais para a implementação das
novas tecnologias, atendendo ao estado de conservação dos existentes, às
necessidades do quadro de funcionários e às exigências impostas pela
desmaterialização do processo. A ausência de recursos materiais em alguns
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
202
tribunais pode colocar em causa a adopção dos novos mecanismos de
tramitação electrónica.
d) Consideramos, ainda, que deve ser avaliado o actual sistema de
aquisição e substituição de recursos materiais para os tribunais no sentido de
procurar incorporar, de forma sistemática, as opiniões locais sobre as efectivas
necessidades dos tribunais e dos seus agentes, evitando gerar, em simultâneo,
situações de desperdício e de carência.
e) O secretário e o escrivão de direito são, no actual quadro normativo,
duas figuras reconhecidamente identificadas pelos operadores como
portadoras de uma função de destaque na organização e gestão dos tribunais
e dos processos. A forma como o seu papel é exercido (como líder activo e
delegativo ou como líder directivo) tem repercussões na produtividade e gestão
dos serviços, uma vez que são elementos que podem actuar como
dinamizadores da capacitação e motivação dos funcionários. O investimento
nestas figuras chave (e em especial do secretário que possui uma visão mais
integrada do sistema) neste período de transição revela-se premente.
Consideramos, assim, importante rever, quer os seus critérios de
recrutamento, quer de avaliação e, sobretudo, investir na formação destes
elementos nas áreas de recursos humanos e de liderança.
Podia ser desenhado um programa de formação avançada, de alguns dias,
centralizado nas sedes dos distritos judiciais.
Consideramos, ainda, que deve apenas existir um secretário por edifício,
tribunal ou em situações particulares, mesmo conjuntos de edifícios próximos.
f) É, ainda, importante que se proceda, neste período de transição,
sobretudo nas comarcas de elevado volume processual, à separação definitiva
entre as acções declarativas e as acções executivas.
g) Como mostrámos as actuais regras de distribuição das acções não
cumprem os objectivos que lhes subjazem e não incorporam critérios
especialmente dirigidos a assegurar a eficiência e a qualidade da resposta
judicial. Consideramos fundamental a criação de novas formas de distribuição
Algumas recomendações
203
dos processos pelos magistrados judiciais que melhor atendam à
particularidade da natureza do litígio e a outros factores que indiciam o grau de
complexidade do caso. Estas são, aliás, recomendações do Conselho da
Europa. A particularidade de cada comarca pode convocar a necessidade de
estabelecer critérios diferentes que atendam a essas especificidades. Pelas
razões que explicamos, esta é uma medida de gestão processual que
consideramos essencial.
No presente relatório são apresentadas várias soluções possíveis. Pelas
tensões que esta questão incorpora com os princípios do juiz natural e da
imparcialidade, as vias que se encontrarem para o sistema judicial português
devem ser amplamente debatidas. O que propomos é que se inicie, de
imediato, esse processo de reforma e de debate pela sua essencialidade para
a eficácia e qualidade do sistema de justiça português.
h) A especialização dos magistrados é um factor de qualidade da justiça. O
actual sistema de acesso a determinados tribunais especializados é insuficiente
para garantir a especialização dos magistrados, apesar de se prever a
necessidade de formação específica. Como já escrevemos, o acesso a
tribunais de competência especializada deve ser precedido da frequência
obrigatória de cursos certificados pelo Centro de Estudos Judiciários ou
reconhecidos pelo Conselho Superior da Magistratura.
i) A especialização de tribunais não resolve o problema dos casos de
especial complexidade, mas de reduzida presença nos tribunais. Deve, por
isso, alargar-se e reconhecer-se a especialização a outras áreas fora das áreas
que compõem dos tribunais especializados.
j) A formação foi identificada, no discurso dos operadores judiciais, como
uma carência crónica. Pelas razões que explicámos, a formação assume um
carácter central em processos de mudança. Deve ser criado um grupo de
trabalho que proponha uma reformulação do plano de formação dos
funcionários judiciais de forma a permitir uma formação contínua, adequada às
actuais necessidades das políticas de reforma e que fomente o aproveitamento
racional das ferramentas electrónicas e a criação de espaços de debate que
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
204
ultrapassem o momento em que é ministrada. Deve apostar-se em cursos
avançados, de curta duração, e descentralizados.
l) Ainda no âmbito da formação, deve ser criada uma plataforma de
elearning e de intranet que permita o acesso generalizado das alterações
legislativas e de decisões que implicam uma alteração na dinâmica do trabalho
e/ou de outras informações relevantes. O sucesso destas ferramentas exige
actualização e fácil acessibilidade.
m) As várias dessintonias, de que damos conta no relatório, entre a secção
de processos e o gabinete do juiz, os problemas decorrentes da organização
interna das secções e dos métodos de trabalho só se podem resolver com uma
reforma global das unidades de tramitação dos processos e de apoio ao
trabalho do juiz (actuais secções de processos). À semelhança de outros
países, de que é exemplo a Espanha, é preciso adaptar a organização interna
dos tribunais e os métodos de trabalho às novas exigências da procura
judiciária e ao novo contexto, em especial, o que decorre da introdução das
novas tecnologias. Deve, por isso, ser iniciado o processo de estudo e de
reforma desta matéria.
n) Sem prejuízo da recomendação da alínea anterior, deve ser
desenvolvido um plano de formação, a decorrer nos moldes acima já referidos,
dirigido aos escrivães e aos inspectores, que ajude a abandonar a visão
técnico-burocrática dos processos, e a substitua por outra, orientada para a
eficiência, eficácia e qualidade das respostas da secção.
o) Deve privilegiar-se a disseminação de informação relativa aos
desempenhos funcionais das unidades de cada tribunal. Esta informação deve
estar mensalmente disponível para todos os membros do tribunal através de
um sistema intranet.
p) Deve, igualmente, procurar desenvolver e disseminar informação, em
tempo real, que permita conhecer o volume e o tipo de litígios a tramitar em
cada unidade judicial e distribuídos a cada juiz. A produção e disseminação
Algumas recomendações
205
(através de relatórios, na intranet ou Internet, etc.) de indicadores estatísticos,
de acesso imediato e adequadamente trabalhados, constitui uma das
ferramentas essenciais para a implementação e introdução no sistema judicial
de um modelo de gestão processual.
q) Deve, igualmente, criar-se um grupo de trabalho com formação
adequada que, utilizando o conhecimento já produzido nesta matéria,
designadamente pelo Observatório Permanente da Justiça, pelo Conselho
Superior da Magistratura e pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses,
desenvolva mecanismos que permitam conhecer, em tempo real, a carga de
trabalho de cada juiz. Esta é uma ferramenta essencial para uma gestão
adequada da distribuição de processos.
r) Como demonstrámos, uma vertente central da qualidade e eficiência da
resposta judiciária, é a adopção de uma perspectiva gestionária do processo
(case management), na qual o juiz assume um papel central, que obriga a uma
visão estratégica do processo, quer no que respeita à sua duração previsível,
aos actos a praticar e sua complexidade, quer, ainda, ao próprio papel do juiz
na composição do litígio pela conciliação das partes. As mudanças culturais
que tal visão incorpora só são possíveis através de um adequado programa de
formação, que deve ser desenhado nesta matéria e ser ministrado, quer no
âmbito da formação inicial, quer no âmbito da formação permanente.
s) A reforma do mapa judiciário dá particular destaque ao papel do juiz-
presidente. Igual destaque emergiu na discussão no âmbito deste trabalho,
designadamente, na possibilidade de intervenção, em determinados casos, na
distribuição de processos, mas também, na gestão dos recursos humanos e na
dinamização de instrumentos de gestão processual. O sucesso da reforma
dependerá, em boa medida, do desempenho funcional desta nova figura.
Assim, os conteúdos formativos dos potenciais candidatos devem ser
adequadamente definidos e implementados, atendendo aos objectivos dos
seus poderes e deveres
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
206
t) Deve ponderar-se a organização, após discussão alargada, de um
manual de boas práticas, que possa servir de base de implementação de
ferramentas que sejam consideradas como potenciadoras de uma intervenção
gestionária no processo. A discussão sobre qual deve ser em concreto a
actuação do juiz no processo, no exercício do seu dever de direcção e gestão,
deve ser particularmente alargada, uma vez que deve emergir de uma cultura
de receptividade a este tipo actuação e não de uma imposição legislativa, ou
seja, a implementação de ferramentas de gestão do caso concreto deverá
resultar de um ambiente de consenso entre os próprios magistrados.
Entendemos, por isso, que, neste âmbito, o Conselho Superior da Magistratura,
bem como Centro de Estudos Judiciários no âmbito da formação, têm um papel
fundamental.
u) No seguimento da avaliação do Regime Processual Experimental deve
avançar-se para uma reforma sistemática do Código de Processo Civil.
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215
ANEXO AANEXO AANEXO AANEXO A
Painel com Funcionários Judiciais
Para um Novo Judiciário:
qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
13 de Março de 2008
216
Anexo A
217
Intervenientes:
Daniel Costa, Eva Jorge, João Campos, Joaquim Parente, Jorge Constantino,
José Lapa, Luís Seco, Luísa Coelho e Maria do Carmo Ramos1
F1: Há, neste momento, duas questões que eu destacaria como relevantes da
gestão processual: mas, antes queria dizer que, se não fosse o programa
HABILUS, eu diria que já não se podia entrar nos tribunais. Mas há duas
questões fundamentais: por um lado, as alterações legislativas constantes.
Quando as pessoas já estão habituadas e dizem “agora já percebo isto”, têm
de enfrentar mais outra alteração e depois, primeiro que as pessoas se
habituem à nova alteração vai haver atrasos. Por outro lado, são os métodos
de trabalho das secretarias. Desde há uns anos que a meu ver não se tem
investido na chefia e na formação, virada para a gestão do serviço. Dentro das
secretarias, cada um trabalha um bocado “como lhe apetece”, as pessoas não
olham para o serviço e pensam “eu tenho que ter aqui um objectivo, tenho de
começar por aqui ou por ali”. Chegam ali e aquilo vai andando, o que acaba por
arranjar muitos problemas com os magistrados. O que eu tenho visto é que os
processos andam, mas sem método. Acho que neste momento esse é o
principal problema.
F2: O problema de facto é a organização. E um outro problema tem a ver com
a dificuldade que muitas vezes os secretários têm em gerir o pessoal. É muito
difícil mudar os funcionários. Basta uma diferença legislativa para em termos
organizativos, com métodos diferentes, para a secção funcionar de forma
diferente e mais eficaz.
OPJ: Mas diferente como?
1 A identificação dos funcionários judiciais faz-se pela letra F, seguida de um número atribuído a cada um dos intervenientes, em função da ordem da sua primeira intervenção no respectivo painel. Esta ordem é completamente diferente da que consta da lista de intervenientes, em que os participantes foram identificados por ordem alfabética. O painel, com autorização de todos os participantes, foi integralmente gravado e posteriormente transcrito. As transcrições, depois de ligeiramente revistas, foram enviadas para eventuais correcções a cada um dos intervenientes. A sua publicação inclui todas as correcções que os próprios entenderam fazer.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
218
F2: Eu e o meu colega temos uma passagem pelos Tribunais Administrativos.
E os Tribunais administrativos têm uma forma organizacionalmente diferente. E
essa organização diferente faz a diferença.
OPJ: Onde é que ela é diferente?
F2: O secretário tem outro protagonismo. O secretário tem funções específicas
de organização da própria secretaria, além da secção central, e pode intervir na
secção de processos, optimizando os recursos humanos.
OPJ: Mas em que sentido?
F2: Por exemplo, nos Tribunais Administrativos, por ter uma outra autoridade, o
secretário tem a possibilidade de fazer, sem a autorização dos juízes, a
modificação da estrutura da própria secretaria, em situações pontuais e
urgentes, numa perspectiva mais definitiva as soluções têm de ser conjugadas
de acordo com o principio que a direcção do tribunal pertence ao Juiz
Presidente.
OPJ: Sem a autorização do juiz? Mas, os juízes dizem que “nós juízes não
podemos dar nenhuma indicação na forma como a secção trabalha”. Essa é
uma questão que eu gostaria de ver esclarecida.
F1: Isso não é verdade.
OPJ: Mas, o juiz não tem competência para interferir na organização do
trabalho da secção?
F3: Não é bem assim. No dia-a-dia não é isso que acontece. Temos
infelizmente a experiência na acção executiva. Apesar do legislador ter definido
muito bem os momentos de intervenção do juiz, temos muitos casos em que os
juízes interferem no trabalho do escrivão investido na funções de agente de
execução. Eu próprio tive uma experiência. Fui censurado por despachos de
página e meia, por praticar oficiosamente actos que a lei previa
expressamente.
OPJ: Mas que tipo de actos?
F3: Actos de secretaria. Por exemplo, notificações.
Anexo A
219
OPJ: Mas, os Srs. Oficiais de Justiça entendem como positivo ou negativo a
possibilidade de um juiz dar indicações sobre a organização do trabalho à
secretaria? É verdade que o juiz não controla o que lhe é entregue pela
secção? E se se assim é pergunto se identificam esta situação como negativa.
F1: Tem a ver exactamente com aquilo que eu já tinha dito. Ninguém está
virado para esta questão e os processos andam todos ao mesmo tempo
quando a secretaria se lembra. É isso que traz conflitos entre a secretaria e os
magistrados. Porque não há organização das secretarias, não há orientações.
Há queixas de toda a gente, toda a gente tem razão e ninguém tem razão. É a
falta de método das secretarias.
OPJ: Este desencontro ou falta de articulação na organização do serviço é
para os Srs. Funcionários um bloqueio à eficácia da tramitação dos processos?
Os processos andam todos ao mesmo tempo ou, de vez em quando, “limpam-
se” os armários, como uma avalanche, e depois estamos dois meses sem os
movimentar?
F1: Um ano, meio ano. Há muitas secções em que se vê que as pessoas vão à
estante duas vezes por ano, se calhar, a seguir às férias.
OPJ: O que é ir às estantes?
F1: É tirar os prazos, é movimentar os processos que estão a aguardar prazos.
Os processos, depois de cumpridos os despachos, ficam a aguardar os prazos
dos advogados. Depois é preciso tirá-los, terminado esse prazo, e fazer as
conclusões, fazer o que for preciso. E como se faz poucas vezes, isto é, como
há muito trabalho, vai-se deixando para o fim e faz-se o resto. Não quer dizer
que as pessoas não trabalhem, porque as pessoas até trabalham muito. Só
que deixam para o fim. Vão lá duas ou três vezes por ano. Pode ser assim ou
não ser. Não é assim em todas as secções. Mas, depois os processos saem
todos ao mesmo tempo, o que faz dar muito ou pouco trabalho.
F4: Gostava de dizer duas coisas. Primeiro estou inteiramente de acordo com o
que F1 disse. Mas, eu começaria primeiro pela gestão de processos. Todos
nós, e eu acho que isto é comum aos magistrados e aos funcionários, nunca
fomos instruídos para a necessidade de nos organizarmos de determinada
forma. E a organização de cada um de nós, é aquela que cada um de nós acha
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
220
mais adequada, que é nenhuma. Cada um faz o que e como acha que deve
fazer. Em relação à gestão dos processos, acho que os Srs. Juízes têm toda a
razão quando dizem que não têm nenhuma gestão do trabalho deles, mas os
funcionários também não têm. Se uns não têm, os outros também não têm. É
verdade que o juiz só actua no processo se houver uma intervenção da
secretaria. Que intervenção é essa? Há funcionários mais cuidadosos e uns
menos cuidadosos e no fundo, é o funcionário que acaba por condicionar o
trabalho do juiz e o dele próprio. Se ele quer ter muitos processos, ele manda
muitos para dentro. Se ele quer ter poucos processos, ele manda poucos para
dentro.
OPJ: Se ele quer ter muitos processos… traduza isso, por favor.
F4: O depósito dos processos em termos legais é a secção. O fiel depositário
dos processos é o escrivão, que em cada momento deve definir onde é que o
processo vai e para quê. E, em regra, ele faz a gestão do seu próprio trabalho.
OPJ: Por favor, explique melhor a prática. Os processos são distribuídos a uma
determinada secção e começa ali a tramitação do processo.
F4: O escrivão recebe os processos e é ele que decide o que vai fazer ou o
que não vai fazer. Se entende que os deve movimentar, no caso de os
processos deverem ir para o gabinete, ele pode de imediato enviá-los. Se este
adjunto ou aquele auxiliar vai abrir aquelas conclusões, ou se não vão. Mas, se
ele tem alguma tarefa a fazer no processo ele, pode dizer “não faço hoje, tenho
ali coisas mais urgentes, em vez de fazer isto faço aquilo”. Depois as secções
com pessoas que de alguma forma querem fazer a gestão do seu trabalho
sabem que se enviarem 20 processos para o gabinete do juiz, têm 20 de volta.
Se enviarem 5, só têm 5 de volta. É assim porque cada um de nós decide
assim. De facto é verdade que o juiz não tem nenhum poder de decisão,
porque toda a estrutura legal que nós temos nos condiciona em termos de
prazos. A secção tem um prazo para fazer uma coisa, o juiz tem um prazo para
fazer outra, embora sejam prazos meramente indicativos que se não forem
cumpridos não têm consequência nenhuma. O juiz tem os processos no
gabinete que o funcionário decidiu levar para lá e decide que vão para lá no
momento em que entende que devem ir. Da mesma forma, o juiz também
Anexo A
221
decide o que envia para a secção quando entende que deve enviar. Também
não é nada fora do normal se houver um juiz que entende que envia os
processos todos, por exemplo, no último dia do mês. E a secção o mesmo. Isto
é um circuito vicioso. A única regra gestionária é o cumprimento da lei. Se
temos prazos na lei, temos que os cumprir. Para nós, infelizmente, temos uma
cultura que se passar um dia ou 2 ou 3 ou 5, todos até achamos que estamos
dentro dos prazos. O sucessivo alargamento dos prazos a todos, quer quando
temos que responder a uma citação, quer quando temos de fazer alguma
coisa, leva a que os processos se atrasem. Ou seja, a total ausência de
método de trabalho. E isto tem a ver com a formação de que F1 falou. Sou
muito crítico relativamente à forma como a nossa formação é organizada e
dada. Em todas as acções de formação, somos instruídos sobre a forma como
devemos cumprir os despachos, mas nunca nos foi dada nenhuma indicação
sobre a forma como devemos gerir o nosso trabalho. Neste momento, a
Direcção Geral pôs lá no tribunal umas equipas de recuperação de atrasos.
Tem um propósito claro, que é recuperar o que está atrasado, mas este
conceito do que está atrasado já em si é muito difícil. Atrasado o que é? Tudo o
que está parado há muito tempo e deveria ter sido movimentado. Mas, o facto
de ter sido movimentado agora e ter sido recuperado hoje, não quer dizer que
não esteja atrasado amanhã. Porque o movimento hoje pode ser abrir uma
conclusão. E se sair do gabinete do juiz e não voltar a ser movimentado, fica
atrasado na mesma. O conceito de atrasado (ou não) tem a ver com isto.
Depois, de acertada a intervenção das equipas, pedimos às escrivãs, que são
fiéis depositárias dos processos, para dizerem o que é que, do seu ponto de
vista, deveria ter intervenção imediata. Foi interessante ver o conceito que cada
uma escrivã tem acerca disto: umas deram os processos para a conta, outras
para juntar papéis, outras para marcar julgamento. Ou seja, não houve ali
nenhuma atitude concertada de ninguém. Bom, lá vou eu dizer que para mim o
conceito de atrasado é o que está aí à beira de prescrever para evitar um mal
maior. Mas, no fundo, é um critério.
Nós, em termos de gestão do processo, o único critério que temos é a lei. Eu
tenho um prazo, e, dentro da medida do possível, tento cumprir o prazo. Claro,
que se o juiz se queixa quando vêm tantos processos num dia e vêm poucos
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
222
noutro dia, se calhar até posso estar bem organizado. Tiro os prazos à
segunda, à terça cumpro os despachos, à quarta juntos os papéis… posso ter
a minha organização, mas não há de facto nenhuma concertação entre a
secretaria e o gabinete do juiz. Essa organização deve depender da secretaria
ou deve depender do gabinete do juiz? E há outro problema, nós fazemos a
gestão com base, em regra, naquilo que fazemos e quase nunca naquilo que
temos para fazer. Ora, para fazer a gestão do pessoal é obviamente importante
o que as pessoas estão a fazer, mas não é menos importante o que as
pessoas têm para fazer. Neste momento, a informática é um factor fundamental
na nossa actividade e o que temos registado e visível no nosso sistema de
informação é aquilo que fizemos, e não temos ainda uma relação entre as
acções da secretaria (cumprimento de despachos) e os gabinetes (informação
sobre processos despachados). Ou seja, se o juiz puser 50 processos na
secretaria com decisões finais e, se a secretaria estiver atrasada e não
actualizar o histórico do processo, o sistema informático considera que os
processos estão todos pendentes. Não posso fazer uma gestão do pessoal se
o sistema de informação que tenho não me permitir obter a informação
necessária para fazer movimentação dos funcionários. Tenho reparado nisto.
Os juízes opõem-se, em regra, à mudança de funcionários quando não se
explicam os motivos de serviço para a efectuar. Se eu for dizer ao juiz que
quero pôr este indivíduo aqui, porque o escrivão gosta mais daquele, isso é
meter-me numa guerra. Agora se eu for dizer-lhe – “Sr. Dr. aquele juízo tem
500 processos para notificar as decisões finais e não tem ninguém para lá
colocar, já falei com a escrivã, com o seu colega, não vejo aqui nenhuma
oposição de nenhum deles, o Sr. Dr. concorda?” – sempre que isto aconteceu
tenho, face ao que já ouvi de outros colegas, de dizer que sou uma pessoa feliz
porque até agora não tive nenhum entrave da parte do Juiz Presidente.
Voltando de novo à questão de nenhum de nós ser instruído para se organizar
tendo em vista fazer uma adequada organização na gestão do serviço: como é
que um escrivão que chega a um juízo que tem 1000 processos parados deve
actuar? Deve tomar a iniciativa de pôr aquilo em dia? Em regra, o conceito que
temos quando temos muito serviço para fazer é pôr aquilo em dia. E o que é
pôr tudo em dia? É pôr os processos todos em movimento. Basta dizer que
Anexo A
223
estão todos em movimento para não dizer que tenho um atrasado. Mas o facto
de movimentarmos todos os processos não quer dizer que temos os processos
todos em dia, nunca fomos sensibilizados para esta realidade. É por aí que
acho que esta reforma que aí vem irá trazer o seu mérito, sendo certo que não
basta ter os computadores para praticar os actos.
OPJ: Quando diz esta reforma, está a referir-se exactamente a quê? O que é
que isso tem a ver com os métodos de trabalho?
F4: Daquilo que li, que não foi muito, mas olhando para a figura do Juiz
Presidente, em termos das competências, parece-me que vai passar a haver
alguém no tribunal com preocupações diferentes daquilo que acontece hoje.
OPJ: A questão que coloca é da necessidade de existir uma pessoa no tribunal
com competências alargadas que permita de facto uma acção de conjunto.
Mas, se a organização e os métodos de trabalho forem os mesmos, é um
problema ou não?
F2: Temos a lei de processo para regular o funcionamento. Regula, porque os
processos têm prazos. Mas, a lei de processo seria óptima se os serviços
tivessem um número de processos adequado. O problema também passa por
aí. Há muitos mais processos do que capacidades para os gerir. Depois, não
se cumpre o prazo e o processo fica mais dois dias. Há a tal gestão de
compromisso.
OPJ: Se a lei do processo fosse cumprida para cada um dos processos, nós
teríamos todas as semanas um saneador para fazer, seria uma pendência
normal. Será que a lei do processo só por si é suficiente?
F3: É o problema da gestão processual. Nós habituámo-nos todos, oficiais de
justiça e magistrados, a trabalhar com leis em constante mutação. Estamos a
falar da gestão processual cível. Ainda há bem pouco tempo passámos de
duas distribuições semanais para duas distribuições diárias. Há aspectos aqui
sobre os quais, se calhar, vale a pena reflectirmos. Por outro lado, todos nós
vivemos com o estigma dos atrasos, que é o estado normal dos tribunais. As
excepções são os poucos tribunais que estão em dia. E nestes, os métodos de
trabalho dificilmente podem fugir ao cumprimento dos prazos legais.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
224
OPJ: Quando diz “com a excepção dos poucos tribunais que estão em dia”, o
que é estar em dia?
F3: Quando todos os actos são praticados dentro dos prazos legalmente
estabelecidos.
OPJ: Na sua perspectiva, é todo o tribunal que cumpre todos os prazos no
prazo indicativo da lei, isto é, abre conclusão ao juiz de todos os actos em dois
dias, cumpre todos os despachos em 5 dias, não tem nenhum processo que
não seja movimentado. É isto um tribunal em dia na sua perspectiva? Mas
quantos tribunais existirão no país em dia?
F3: Muito poucos.
F4: Ele é um exagerado quando diz muito poucos, é que são mesmo
pouquíssimos.
OPJ: Mas conhecem tribunais em dia? Quais são esses tribunais?
F5: Os pequenos tribunais.
OPJ: Mas, quais são as características destes tribunais? Ou melhor, destas
secções?
F6: Dependem de outros factores que ainda não foram aqui mencionados. A
relação de número de processos e funcionários é um deles e será,
provavelmente, o principal factor que determina a estabilidade de uma secção.
O volume de processos é tão grande que não permite a sua movimentação nos
prazos normais. Depois a especialização. De facto, verifica-se que, onde o
tribunal foi especializado criaram-se mais condições para um melhor
desempenho, talvez por ser um trabalho mais regular do que numa secção de
competência genérica. Existe ainda outro problema chamado formação ou a
falta dela e, por último, a relação da secção com o juiz. O escrivão a quem
caberia a gestão dos processos, nem sempre tem essa “liberdade para o fazer”
preferindo evitar conflitos com os senhores magistrados. O volume de
processos é tão grande que não permite movimentá-los todos de uma só vez.
Estava F4 a dizer muito bem, porque às vezes é necessário fazer algum acordo
e algum bom senso no relacionamento com o juiz para não haver conflitos, que
naturalmente haviam se levássemos tudo a direito. Há casos de juízes que
Anexo A
225
querem dar um provimento de como deveriam gerir o maior número de
processos possível.
OPJ: A formação dos funcionários e a relação com o juiz foram factores
indicados como importantes para se conseguir ter um tribunal em dia.
Concordam com estes factores?
F7: Concordo com tudo o que aqui foi dito e com todas as opiniões. Mas, no
fundo, isto tem a ver com os tribunais onde há um elevado número de
processos. De tribunal para tribunal as secções estão organizadas de forma
diferente, não é de forma igual. Por outro lado, aquilo que se debate aqui tem a
ver com a falta de conhecimento em gerir o próprio serviço e inclusivamente a
falta de capacidade de chefia de algumas pessoas, porque para ser escrivão
não é necessariamente uma pessoa que saiba muito, mas sim uma pessoa que
tenha algum método de trabalho, que trabalhe e que consiga ter uma equipa de
trabalho unida.
OPJ: Mas o escrivão não escolhe a equipa.
F7: Pois não. Efectivamente é verdade. De facto, eu consegui ter uma equipa
que movimentava muitos processos. Criticavam-me por ter a melhor equipa do
tribunal, e eu dizia que não tinha a melhor equipa, o que eu conseguia era unir
as pessoas à volta de mim, dava o exemplo de como trabalhava e as pessoas
acompanhavam-me. É isto que eu consigo, não são piores, nem são melhores.
Tem a ver com a tal ideia de chefia e também com a tal relação com os
magistrados, porque há magistrados que hoje em dia interferem: “olhe traga-
me só cinco processos conclusos”, “traga-me só dois processos”. E eu nunca
fiz nenhum pacto com nenhum, nem nunca aceitei essa questão.
OPJ: Se quisermos pôr ordem nisso, como vamos fazer? Primeiro, como
identificaram, há aqui um problema da formação no que respeita a gestão
processual. O escrivão é o pivot de uma secção.
F4: Há por aí juízes que defendem que o funcionário deve estar ligado a uma
espécie de secretariado. A nossa organização judiciária como está hoje (não
sei se vai ser assim no futuro) deveria assentar, e às vezes não assenta, na
figura do escrivão. Ou seja, o escrivão é o chefe da secção que deveria ter
conhecimento bastante para fazer uma gestão adequada de toda a
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
226
documentação. Quando o colega dizia que o juiz quis dar um provimento sobre
a gestão do processo, para o conceito que temos hoje sobre o funcionamento
da secção isso é um absurdo. Eu direi que mesmo para o futuro acho que não
é nenhum absurdo, é preciso é que os juízes também assumam isto de facto.
Quem assume a responsabilidade pela gestão também deve assumir o
fracasso a que pode conduzir e é bom que assim seja para o futuro.
É que nós somos muito desconfiados uns dos outros. Porquê? Em regra, os
juízes quando querem assegurar a gestão do processo não é para acelerar, é
para condicionar a ida do processo para o gabinete. Também tem acontecido
alguns juízes darem provimento a dizer que para o gabinete vão “x” processos.
Isso é, obviamente, gestão na óptica do juiz, mas para nós contraria todos os
princípios legais. Porque nós estamos habituados a olhar para a gestão do
processo em função do cumprimento das normas legais. Se a lei impõe colocar
no dia de amanhã 500 processos no gabinete, pois coloco lá 500. E se tiver
possibilidade de pôr lá outros 500, coloco lá outros 500. Porque temos um
serviço de inspecções que vai olhar para o meu serviço e para a capacidade
que eu tiver para cumprir dentro dos prazos, independentemente dos efeitos
que isso tenha em termos de organização do serviço. Primeiro, tinha de haver
aqui um tronco comum: como é que nós somos avaliados pela gestão do nosso
serviço. Se me dissessem que os processos para o gabinete têm que ir todos à
Segunda-feira e durante a semana só vão aqueles que forem urgentes. Se nos
disserem que esse é o modelo correcto para gerir o serviço de movimentação
dos processos, provavelmente nós assim faremos. Se nos disserem quem tem
de definir o que é que vai e quando é que vai para o gabinete por dia, nós
também aceitaremos. Mas amanhã também nunca seremos responsabilizados
porque enviamos só aquele “x”. Lá vem a tal história do conceito do que é que
está atrasado. Atrasado é tudo aquilo que não foi cumprido dentro dos prazos.
A lei exerce alguma pressão e impede a gestão do serviço.
OPJ: Falaram em formação, mas temos de perceber para quê e qual o
enquadramento. É um factor realmente importante, mas é preciso definir o
sentido. Gostava de perceber qual é o vosso posicionamento. Um escrivão é
uma figura central da secção de processos, o chefe, o orientador, o gestor do
Anexo A
227
serviço, mas ele é o cumpridor de regras que são ditadas pela lei do processo
ou podem ser determinadas por outrem?
F3: Se me permite eu recuperava o que dizia há pouco a propósito dos
tribunais atrasados ou não atrasados. Nós estamos de tal maneira formatados
com os tribunais atrasados que o nosso raciocínio em termos de gestão
processual funciona sempre na base dos atrasos, porque a gestão de uma
unidade orgânica ou duma secção de processos em dia é totalmente diferente,
bem como a articulação com os magistrados. Não há sequer conflitos. Todos
nós já tivemos este tipo de experiência de sermos esmagados pelo serviço
atrasado e termos que fazer um levantamento e articularmo-nos com o grupo
de trabalho, não apenas da secção de processos como também com os
magistrados. Isto é um circuito fechado, em que a secretaria tem um papel
central, funciona como uma placa giratória, ora vira-se para o público, ora
distribui processos ao juiz, ora distribui processos ao Ministério Público, tudo
isto de forma coordenada. Quando se consegue uma boa articulação e se tem
uma boa equipa na secção de processos, o tribunal funciona bem. Isto é o que
muita gente ainda não entendeu, inclusivamente o próprio legislador quando
resolve fazer alterações. É certo que sem juiz não há tribunal, sem procurador
também não há tribunal. Mas pode haver esta gente toda e se uma secção de
processos não funcionar, o magistrado chega ao meio-dia e não tem
processos, vai-se embora…
OPJ: A questão é de saber se devemos continuar a trabalhar com este modelo
ou procurar outro modelo? Mas, há sempre momentos na secção em que é
preciso definir prioridades, definir trabalhos, é preciso gerir, racionalizar,
optimizar?
F6: A aplicação HABILUS facilitou muito e uniformizou critérios de trabalho,
porque até aqui, até os modelos de impressos que se utilizavam variavam de
tribunal para tribunal. Só que agora temos outro problema, a excessiva
dependência do HABILUS e a automatização dos funcionários que, aliada a
ausência ou deficiente formação, não se preocupam saber como se tramitam
os processos, limitando-se a procurar saber se o que vão fazer está ou não no
HABILUS.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
228
Poderá haver também falta de motivação dos funcionários, aliás, acho que uma
das falhas que existe na preparação do escrivão é a falta de formação nas
áreas de gestão processual e da gestão das relações humanas. Esta
componente relacionada com as ciências comportamentais, as relações
humanas, é muito importante. Como é que um escrivão numa secção com oito
mil processos e uma equipe de seis ou sete funcionários, onde todos os dias
“chovem” centenas de papéis, consegue motivar os funcionários para
conseguir uma boa estabilidade emocional e o melhor desempenho, mantendo
uma secção em dia? Como garantir tudo aquilo role mais ou menos bem?
OPJ: Todos consideram que o escrivão tem uma função central de gestão
processual e que é preciso mais formação, mas é preciso saber que tipo de
formação e em que sentido? Deve o juiz poder determinar a sua agenda
semanal? O juiz, devido às novas aplicações informáticas, vê no computador
os processos que tem à sua ordem e pode saber se um processo está à espera
dele?
F3: O que está aqui em causa é a boa utilização da aplicação informática. É
preciso que o utilizador introduza toda a informação e saiba utilizar os alertas,
os alarmes e as agendas. Terminado um prazo marcado haverá um alerta para
a secção de processos, que faz a gestão, mas também poder permitir saber
todos os prazos que foram terminados ou expirados. Os magistrados, hoje em
dia, quando entram no Citius, abrem-se dois painéis, e aquele que aparece em
primeiro plano contém a listagem dos processos conclusos.
OPJ: Parece-me que sistema tecnologicamente é pensado da mesma forma
como o processo tramita no papel. Nós temos um funcionamento no papel e o
mesmo funcionamento telemático. O que é que hoje acontece?
F5: Como há pouco disse, a informatização que nós fizemos foi seguir um
pouco aquilo que já fazíamos anteriormente em papel. Mas, o que nós fizemos
foi aquilo que a lei nos permite fazer. Enquanto os TAF’s tiveram uma reforma
do contencioso administrativo que lhe dava integralmente para desenvolverem
uma aplicação informática, nós tentámos traduzir para uma aplicação
informática os códigos de processo civil, de trabalho, OTM… tentámos pegar
naquilo que tínhamos neste momento e toca de arranjar uma solução
Anexo A
229
informática que trouxesse ganhos em termos de produção, ganhos para as
secretarias. Agora, quando se fazem reformas e elas visam a componente
informática é evidente que temos um ganho substancial. Nós simplificamos as
coisas, a lei tem de prever essas simplificações e nós executamo-las. Mas se
não as fizer nós não podemos por nossa criação ter mecanismos que vão
depois chocar com a lei ou gerar dar alguns pontos de discórdia.
Relativamente a essa questão que a Dra. está a colocar, eu acho que
realmente era importante que o juiz pudesse, de alguma forma, controlar isto.
Há aqui uma componente prática. Haverá uma solução, não digo que não se
arranje. Mas a questão é que um juiz para saber que aquele processo chegou
àquela fase e está pronto para o saneador, alguém tem que lho dizer. Ora, das
duas uma: ou o escrivão vai ter o trabalho de dizer, “eu agora não vou concluir,
mas vou pôr aqui para este juiz saber que este processo está pronto a ser
concluso”, ou então, se calhar, abre logo conclusão, faz logo o mesmo
trabalho, faz logo o que tem de fazer.
F1: Estamos a falar do que acontece, mas podíamos falar do que podia
acontecer.
OPJ: De facto, nós estamos aqui a falar numa perspectiva de futuro.
F1: Eu acho que as coisas só funcionarão melhor quando as pessoas
assumirem que há muita coisa que está mal e que somos nós os primeiros a
fazer asneira.
OPJ: A informatização tem ganhos de eficiência, mas não toca na forma de
organização. E a questão é se deve tocar e em que sentido deve tocar. A
questão é saber se essa relação deve ser negociada, se deve ser um pouco ao
sabor da capacidade do juiz e do escrivão que daqui um ano é um e daqui a 2
anos é outro. Ou se temos que ir mais longe no sentido de institucionalizar de
outra forma.
F4: Nós aquilo que temos realmente é aquilo que nos permite ter o pouco de
bom que temos dos tribunais.
OPJ: O que permite é tramitar os processos.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
230
F4: E isto chega para aquilo que queremos ou para aquilo que precisamos? A
minha resposta é claramente que não. Nós estamos a atravessar uma altura
em que o cidadão está descontente connosco, por muito que gostemos daquilo
que fazemos e da organização que temos. Temos que nos sentir mal por não
estarmos a dar resposta adequada às necessidades das pessoas. E esta
última Portaria 114 pôs-nos a todos a pensar um bocado como é que nós nos
devemos organizar para o futuro, e temos feito de alguma forma um
levantamento daquilo que precisamos. Toda a organização do trabalho que
neste momento temos é como se tivéssemos efectivamente de fazer o
transporte de todos os processos físicos sempre que os movimentamos, daí
que a conclusão era um acto voluntário de alguém do juízo e implicava o
transporte do processo por alguém para o gabinete. Com a entrada em vigor da
Portaria deixamos de ter os processos físicos e passamos a ter processos (ou
parte deles) virtuais, e como é que vai ser no futuro? O juiz só deve poder
despachar um processo se houver uma acção do funcionário? Os alertas que
actualmente se colocam no processo são suficientes para esta nova
necessidade da gestão electrónica dos processos? A minha opinião é
claramente que não. Prefiro que o sistema de informação dê indicações sobre
aquilo que devo fazer. Penso que o juiz deve poder ver a totalidade dos
processos independentemente do local onde se encontram e, se assim o
entender, despachá-los sem necessidade de intervenção da secretaria. Acho
que os funcionários gostariam de ter era uma estante virtual. Ou seja, a secção
devia ter uma organização de processos, em vez de ter na agenda como tenho
hoje, se o juiz der um despacho, então o processo deve-me cair numa pasta
onde diz processos despachados. Tudo vai cair na minha pasta e lá deve
permanecer até eu os cumprir, porque se o juiz quiser saber o que fiz ou o que
não fiz ele também vem à minha pasta ver. E partindo dali vão para onde? De
acordo com uma boa organização física que eu hoje tenho, devemos ter uma
boa organização electrónica. Ficam a aguardar o quê? Uma resposta ao pedido
que eu fiz? O decurso de um prazo? E decorrido esse prazo o processo vai
para onde? Se calhar posso logo previamente indicar. Decorrido esse prazo, se
não houver nenhuma acção, o processo deve passar automaticamente para a
pasta da conclusão. Ou seja, acabo por ser puxado por indicações que o
sistema me dá, indicações prévias que eu forneci, como era óbvio. O juiz, se
Anexo A
231
for à pasta da gestão de processos, pode ter a percepção do que tem e onde.
E do meu ponto de vista, deve ter a possibilidade de despachar os processos
independentemente da secção lhe abrir ou não conclusão. Nós temos neste
momento uma situação muito caricata, não com o juiz, mas com o M.P., na
parte das execuções. Se a secretaria tiver o trabalho atrasado, o M.P. não
intenta nenhuma execução, não tem a possibilidade de o fazer. Eu não consigo
perceber isto.
OPJ: O processo é dirigido pelo juiz. Eu pergunto se quem dirige o processo
não tem ou não deve ter a possibilidade de planear a sua semana ou o seu
mês.
F1: Mas pode.
OPJ: Mas os juízes queixam-se que não o podem fazer.
F1: Podem dizer ao escrivão…
F3: O número 1 do artigo 161.º do CPC e o n.º 3 do artigo 6.º do Estatuto dos
Funcionários de Justiça estabelecem que o oficial de justiça trabalha na
dependência funcional do magistrado.
F1: Isto tem a ver com o que eu disse no início de ir à estante e tirar os
processos. Se tirarem 50 saneadores, abrir conclusão é fácil. É disto que os
juízes falam.
OPJ: Mas, estamos todos a dizer a mesma coisa. Ele não pode dizer: “não
abra e não faça 50 conclusões”.
F1: Pode dizer…
OPJ: E porque não faz?
F1: Porque depois ficaria ele com uma responsabilidade pelos atrasos. Para
evitar as queixas dos juízes era essencial a gestão dos processos pela secção,
quando o serviço é muito. Quando é normal as questões não se colocam.
Quando o escrivão desempenha o papel como deve desempenhar, nenhum
juiz se quer meter na secção, nem se mete com o escrivão.
OPJ: E quando é que ele desempenha o papel que ele deve desempenhar?
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
232
F1: Vamos imaginar que eu tenho muito serviço para fazer, tenho os prazos
para tirar das estantes, os papéis para juntar e despachos para cumprir, pondo
de lado outras coisas mais pequenas. Se eu todos os dias fizer um bocado de
cada uma destas coisas, eu digo que alguma coisa tem de ficar, não consigo
fazer tudo. Tenho de estabelecer prioridades, tem que se escolher quando não
se consegue fazer tudo. Eu até tenho aqui estes despachos que não me estão
a causar grande prejuízo e atraso mais esta parte e nunca o juiz vai ter 50
saneadores só de uma vez, porque os processos que estão para saneadores
vão aos pouquinhos. Isto é um exemplo, não estou a dizer que é o ideal.
F4: Ontem à tarde um juiz quis falar comigo sobre uma funcionária de baixa
que estava a atrasar as actas. Queria um outro funcionário que do ponto de
vista dele era melhor que aquela mas que se encontra afecta a outro juízo.
Respondi-lhe que depois de ele falar com o colega para trocar de funcionária, e
se ele não se opuser, o pedido seria satisfeito. O juiz pode escolher, mas a
escolha está limitada aos funcionários existentes e sempre tendo em conta
também a vontade de outros Magistrados. As pessoas quando são nomeadas
também têm direitos e os Magistrados com quem trabalham também. O
problema é saber se a nossa organização tal como está se permite satisfazer
esta necessidade.
OPJ: Por um lado, o problema é saber se a organização permite ou não, por
outro lado, é saber se deve permitir.
F1: Eu acho que há um bloqueio nos conteúdos funcionais. Há muitos
funcionários que se começam a agarrar aos conteúdos funcionais e os
escrivães não têm coragem para dizer “faz o que eu disser”, ou por vezes
dizem, o que arranja problemas. Eu acho que não devia haver conteúdos
funcionais.
F4: Eu ouvi uma pessoa entendida nestas coisas que há tempos dizia que as
pessoas entram para o tribunal e a primeira coisa que têm de saber fazer é
escrever à máquina. Quando são exímios como escriturários, são promovidos e
vão aprender tudo de novo. Vão aprender como é que cumprem os despachos.
Depois quando já estão muito bem a cumprir os despachos, são novamente
promovidos e vão ter de aprender a chefiar pessoas. Estamos constantemente
Anexo A
233
a aprender as coisas à medida que somos promovidos. No cível isto não é
muito crítico, mas nos criminais é. Depois, quem é que o juiz quer na sala?
F1: Mas, o problema aí não é do juiz, para mim, é do escrivão. Isto é, eu,
escrivão, mandaria para a sala de audiência o melhor funcionário que eu
tivesse, porque é o que provoca maior impacto do público.
OPJ: Sobre essa questão dos conteúdos funcionais, gostava de ouvir…
F8: Nós já tínhamos concordado que era melhor revermos o modelo de gestão
para um modelo de gestão conjunta. Alguns destes problemas serão sanados
com a entrada em vigor da nova lei orgânica, em que já se prevê o conteúdo
funcional das competências do Juiz Presidente. São muito mais abrangentes.
Eu penso que 50% destes problemas vão ser sanados com a entrada em vigor.
A Portaria 114 vai trazer um certo convívio na gestão processual, permitindo
uma aproximação entre o juiz dos processos e o próprio escrivão. Agora não
nos podemos esquecer que há falta de funcionários, há falta de formação ao
nível das chefias, especialmente dos escrivães e secretários. Deviam-se
centrar na gestão e na organização. O bom funcionamento depende
diariamente das chefias. (…)
OPJ: Explique-me essa ideia da informatização da alteração nos próprios
conteúdos funcionais.
F6: Por exemplo, numa secção de processos, deveria haver a possibilidade de
afectar um funcionário para secretariar o juiz, assistindo-o na sala de
audiências e no seu gabinete, elaborando as respectivas actas e os actos
orientados ou ordenados pelo juiz. Não havendo este serviço trabalharia na
secção. Há juízes que não estão preparados nem vocacionados para as novas
tecnologias, principalmente a informática. Por isso, justificar-se-ia a afectação
de um oficial de justiça que, além secretariar o juiz, faria a ponte entre o
gabinete do juiz e a secretaria.
OPJ: Mas não é só nesta perspectiva que eu estou a pensar. Os senhores
magistrados dizem com alguma frequência, sobretudo em relação à sala de
diligências, que há funcionários com os quais têm mais confiança. Isso tem a
ver com uma certa especialização de quem desempenha essas tarefas.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
234
F6: Eu tentei fazer uma rotatividade entre os funcionários, para a assistência à
sala de audiências e isso não resultou. É que há funcionários mais
vocacionados ou “preparados” para essas funções e outros que até nem
gostam nada. No meu caso, o funcionário, que até rende pouco na secção, é
um bom relações públicas, faz bem o trabalho de sala de audiências. Ele põe
os mandatários a falar incentivando-os ao acordo, assiste ao juiz, elabora as
actas, as sentenças e prepara tudo como o juiz gosta. No entanto não posso
contar com este funcionário para endireitar uma secção.
OPJ: Hoje em dia, há secções que funcionam assim, porque há uma espécie
de pacto, o escrivão e o juiz entenderam assim. Mas, se o escrivão entender de
outra maneira, como é que se resolve esse problema?
F4: Hoje arranja um problema. Tem de haver um bom senso das pessoas ou
arranja-se uma chatice. Lá vem a tal história do conteúdo funcional.
F3: O nosso Estatuto tem uma fuga.
OPJ: Mas, há situações onde estes problemas estão a acontecer. Se há
normas para os resolver porque é que não estão resolvidos?
F3: Sobretudo porque é muito fácil lastimarem-se, mas não exercem o poder
que a lei lhes dá. O artigo 66.º do Estatuto abre a porta à colaboração de todos
os funcionários na normalização do serviço, independentemente das carreiras
e dos conteúdos funcionais.
OPJ: Mas o juiz podia fazer o quê?
F3: Era o que mais faltava.
F4: “Dê-me cá o livro de provimentos”.
OPJ: E depois a questão fica resolvida?
F3: Fica resolvida conforme o juiz entender.
OPJ: O que está em cima da mesa é a questão de saber se o juiz deve ou não
ter a possibilidade de quando chega a um tribunal ter um funcionário que lhe dê
assistência.
F3: Sim.
Anexo A
235
OPJ: Portanto, estamos todos de acordo neste aspecto. Quem é que deve
decidir qual vai ser o funcionário? Que funcionário é este? É um funcionário
com “especialidade” na sala? A questão é se deve e como dever ser
escolhido?
F4: Neste momento é em função do conteúdo funcional. É o escriturário.
F6: Penso que deve ser o mais vocacionado para a sala. Não há necessidade
de concurso até porque eles estão todos preparados para essa função.
OPJ: Não poderia ser por indicação de um juiz presidente?
F4: Pelo menos nos cíveis, que eu conheça, não tem sido muito problemático.
É pacificamente aceite que quem secretaria os juízes é o auxiliar. Isto é mais
ou menos pacificamente aceite por todos.
OPJ: Este funcionário que dá apoio ao juiz nas diligências, que pode
secretariar o juiz, é aquele que deve ter uma relação directa com o gabinete do
juiz?
F4: Utilizou bem o termo “quem secretaria o juiz”. Isso é benéfico para todos,
porque isso permite aos juízes agilizar melhor o trabalho e responder com mais
qualidade. E o juiz da secção depende daquele funcionário de secretaria que
lhe está adstrito. O problema maior para mim é que eu tenho uma data de
juízes – o juiz titular, o auxiliar, o de instrução, o auditor e o estagiário – e
quando todos me vêm pedir que querem um funcionário para o secretariar,
levanta-se um problema: quem é que fica aqui na secretaria? Vão buscar o
funcionário do outro juízo? O nosso modelo organizacional ainda assenta na
estrutura que diz: o juiz da secção. E o juiz da secção tem em regra dois
auxiliares, dois adjuntos e um escrivão. Mas, nos últimos anos, o que tem
acontecido com o aumento sistemático do número de magistrados (às vezes há
mais magistrados do que funcionários) é que cada magistrado quer ter o seu
serviço de secretariado.
OPJ: Na relação do gabinete do juiz com a secretaria, pode o juiz dar
indicações concretas à secção de processos e ao escrivão? Deve o juiz dar
indicações concretas na gestão do serviço?
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
236
F3: O juiz deve poder como já pode. Na confusão dos atrasos, porque ninguém
cumpre, as únicas vítimas da peremptoriedade dos prazos são as partes.
Queria dizer duas coisas. Primeiro, acho que no processo civil nas fases
processuais devia haver um limite temporal tal como no processo penal para a
fase de inquérito e da instrução. No crime há um “x” tempo para os actos de
processos, não há é um tempo para o julgamento. No processo civil deveria
haver também. Por outro lado, há prazos dilatórios a mais. O artigo 252.º-A
devia apontar para uma dilação 0, com a excepção das citações no estrangeiro
ou, eventualmente, alguns casos de citação edital. Com o Código de Processo
Penal de 87 acabou-se a dilação. Foi um excelente contributo para a celeridade
do processo. E no regulamento processual do tribunal de 1.ª instância das
comunidades, a dilação é de dez dias. No nosso processo civil temos dilações
de 30 e mais dias. Vamos para o Código das Custas Judiciais, mais dilações.
Há dilações a mais e é preciso uniformizar os prazos processuais. Por
exemplo, no processo civil, temos prazos de 2, 5, 10, 15, 30 dias e por aí fora.
Vamos para o processo penal, temos outro tipo de prazos. O legislador teve
uma boa oportunidade, mas não passou das boas intenções, de uniformizar ou
de arranjar um tronco comum para o regime dos recursos. Faltou-lhe a
coragem e temos regimes, embora mais próximos, mas diferentes. Tudo isto
contribui para uma grande dificuldade de apreensão dos conteúdos legais. E
em torno dos prazos, há muito para fazer no sentido de contribuir para a
celeridade processual e de fácil apreensão por todas as pessoas, incluindo os
cidadãos. Dou-lhe um exemplo: um cidadão é no mesmo dia convocado como
testemunha de um julgamento cível e outro penal. Por coincidência, um
julgamento é de manhã e outro é à tarde. Mas está doente. No processo civil,
ele tem 5 dias após o julgamento para justificar a falta. No processo penal, a
regra é antes ou no próprio dia e excepcionalmente nos 3 dias seguintes.
Estamos a falar de intervenientes acidentais, de pessoas que não conhecem
estas regras e com penalizações extremamente graves e dolorosas. Acho que
é um bom exemplo o regulamento processual do tribunal das comunidades,
que tem aquilo que pode ser um tronco comum para a tramitação processual,
independentemente das diversas áreas. No processo civil, nos tribunais, nós
até brincamos, porque não temos propriamente baralhos de cartas, mas temos
baralhos de AR’s: AR vermelho, AR laranja, AR amarelo…é uma grande
Anexo A
237
confusão. Provas de depósito e depois os custos que isto implica. Desde 1988,
data em que foi publicado o Decreto-Lei n.º 176/88, que aprovou o regulamento
dos serviços postais, que não faz qualquer sentido a citação por carta registada
com aviso de recepção, e os ingleses que o digam. A citação por carta
registada é tão segura quanto a citação com aviso de recepção. Não faz
qualquer sentido o aviso de recepção, muito menos a prova de depósito. O
usual recibo de entrega do registo postal oferece as garantias da prova de
depósito.
OPJ: O que está em causa é a existência de um conjunto de regras de ordem
processual que contribui para a ineficácia da tramitação. Já se viu aqui alguma
heterogeneidade de procedimentos no que diz respeito a prazos e regras de
citação.
F4: Relativamente aos prazos, só queria fazer uma observação. O artigo 105.º
do Código de Processo Penal, que vigora desde 1987, ninguém o cumpre. A
secretaria nunca fez nenhum rol de processos em que os prazos foram
ultrapassados e consequentemente nunca se comunicaram às entidades com
responsabilidade disciplinar, e nada se faz, provavelmente por boas razões.
Pode-se legislar muito bem, mas se não há condições para cumprir nada há a
fazer.
F6: A aplicação informática poderia ter um indicativo para controlo dos atrasos.
A possibilidade de, a qualquer momento, podemos ver uma lista dos prazos e
respectivos atrasos, contando os dias à medida que fossem ultrapassados os
prazos, seria uma ferramenta essencial para uma melhor gestão dos
processos, principalmente numa secção com elevada pendência onde não é
sempre possível cumprir nos prazos legais.
OPJ: Mas, a secretaria não pode ter isso?
F5: A questão que se coloca aqui é que os prazos que são calculados lá nem
sempre correspondem ao acto processual. Normalmente, manda-se uma carta
registada com AR e o prazo que está lá é relativo à vinda do AR. Não se põe
os 30 dias para contestar porque não sabemos quando é que ele foi citado.
Aqui coloca-se outro problema, passamos a ter funcionários operadores de
sistema que deixaram de ser funcionários judiciais.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
238
OPJ: Portanto o sistema informático ainda não tem essa funcionalidade?
F3: A secretaria notifica a contestação ao autor e, a partir daí, a aplicação tem
essa possibilidade, que não é muito utilizada. É necessário que utilizador
preencha os campos de data instruindo a aplicação com os dados necessários.
Ainda no que se refere aos prazos, o novo regulamento de custas vem
ressuscitar um grave problema relacionado com o pagamento imediato da
multa prevista no Art.º 145.º, que a redacção revogada havia resolvido na linha
da jurisprudência dominante. Este imediato era até ao primeiro dia útil seguinte.
Agora voltamos ao próprio dia. Aliás, a extensão de prazo previsto no Art.º
145.º condicionado ao pagamento duma multa também não faz qualquer
sentido. Só dá jeito pelas receitas. Bastaria o justo impedimento do Art.º 146.º.
F4: Aquilo que eu gostaria de ter quando no HABILUS se marca um
determinado prazo, era que a partir do dia que eu previamente defini, o sistema
me desse a informação referente a esse processo, nomeadamente se o atraso
é de um, dois, três dias. Ou seja, em vez de ter esta informação apenas no
módulo do magistrado, tinha-a também no módulo da secretaria. Deve-se
sempre definir previamente, – se passar a ter processos virtuais – na prateleira
virtual, informações sobre se já passaram os prazos e que, consequentemente
tenho para movimentar.
F3: Peço imensa desculpa por discordar. Tu tens exactamente a mesma coisa
na secção de processos, não tens é com o mesmo aspecto, não te aparece o
tal painel. Tu também não te sentas numa secretaria ou numa cadeira igual à
do juiz. Mas tens o mesmo tipo de informação.
(…)
OPJ: Por favor expliquem-me primeiro como funcionam os alarmes.
F5: Os alarmes são uma função na agenda da secretaria e do magistrado que
nós criamos e que funciona também para a secção central. Existem estes três
módulos com agenda, cada um para as suas funções. Mas, grosso modo
estamos a falar da secção de processos. E chamamos alarmes, porque o
funcionário pode alarmar os processos que naquele dia tem que cumprir. A
vantagem daquilo é que sempre que entra na secção a agenda dispara.
OPJ: É um agendamento que se faz.
Anexo A
239
F5: Exactamente.
OPJ: Não se pode ver, por exemplo, quantos processos eu tenho com 20 dias
de atraso? Eu pergunto se esta não deve ser uma ferramenta disponível na
secção?
F5: É possível. Aqui a única questão que se coloca não são os processos que
não têm agendamento. (…) Há aqui um sistema de automatização. Todos
aqueles actos processuais que são praticados e que dão lugar a prazos, nós
contamos… mas todos os prazos que agendamos é para a vinda de qualquer
coisa. É muito subjectivo. Estes prazos ficam no histórico do processo e é
possível aos funcionários através deste histórico alterar os prazos. Conforme o
funcionário põe lá o prazo, também o pode tirar.
OPJ: Ele pode tirar ou não, mas aqui é uma questão de responsabilidade.
F5: Mas não sei se será assim tão prático quanto possa parecer, porque não
estou a ver em tribunais muito sobrecarregados as pessoas irem aos
processos juntarem o AR… isto implica que os funcionários tenham que
introduzir mais dados. Este é o problema e quanto mais tempo se perde a
introduzir dados, menos se movimenta. A Sra. Inspectora disse que traz
ganhos. Se calhar até traz.
OPJ: Vamos imaginar que a secretaria manda citar e tem de aguardar. Mas se
entretanto chegou tem de lá pôr alguma coisa? Põe ou não põe lá? É
obrigatório ou não?
F5: É uma possibilidade, mas pouca gente utiliza aquilo.
OPJ: Como é que a Sra. Escrivã faz?
F9: Ponho lá 15 dias…
OPJ: Põe lá 15 dias, mas noutra secção não vão colocar qualquer prazo. Ora
bem, esta secção de processos teria controlado o seu serviço, enquanto que a
secção ao lado tem de ir ver todos os processos para saber a situação deles?
F7: Em termos de futuro deixa de ter processos.
OPJ: Temos processos na mesma. Só que não vão ao armário, vão ao
computador.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
240
F6: Os tribunais de competência genérica, com as pendências actuais, jamais
vão conseguir colocar alarmes para cumprir os prazos.
OPJ: Por isso eu pergunto se não é possível ou se não deve ser possível
adequar a aplicação e se este procedimento não deve ser obrigatório?
F4: Na parte da movimentação do processo, há prazos e os actos devem ter
por referência um determinado prazo. E tem lá uma data. A pasta vai-me
adicionando diariamente os processos e quando ultrapassar os prazos destes
processos, vai passar a dizer mais um dia, ou menos um dia, ou menos dois, e
por aí fora, para saber que aqueles processos relativamente ao prazo que eu
predefini já passaram “x” dias. É isto que me vai dar alguma capacidade para
eu saber em termos de gestão de processo o que é que está por movimentar
há mais tempo.
F5: Visto assim é capaz de ser simples, o problema é que isso não é assim tão
simples. Tem mais esta agravante, é que há processos que têm 2 ou 3 prazos.
Qual deles é que se controla? Que prazo referente a quê? Tudo é possível de
se controlar no processo, desde que se defina. Neste momento, no campo do
histórico do processo, se se praticam dois actos, o que se visualiza é apenas
duas linhas vermelhas, os actos podem ter prazos iguais ou diferentes, só se
vê com notas. Se os prazos forem automatizados, onde é que pomos as notas?
Isto no campo do histórico. Mas se fomos falar do alarme, em que o trabalho é
mais ou menos o mesmo, se calhar temos maior exactidão nas coisas.
OPJ: Eu pergunto como é que pode haver gestão sem esse controlo dos
prazos?
F5: Já temos aqui três soluções: aquela que é do histórico, a dos alarmes e a
das notas nos processos… Não é possível isto sem a intervenção da pessoa,
porque o sistema não adivinha quando é que termina o prazo.
OPJ: A questão é se isto é uma ferramenta essencial para gerir? Como é que
se pode gerir o volume dos processos sem essa ferramenta?
F5: Nós temos um outro sistema que podemos controlar e que os juízes
também têm, até de uma forma simplificada. Podemos saber, por exemplo,
qual foi o último acto praticado em cada processo. Isto também permite ao
escrivão controlar a movimentação processual.
Anexo A
241
OPJ: Mas isso obriga o escrivão a ir lá ver um de cada vez. E se esse
agendamento fosse obrigatório?
F5: Como é que podemos obrigar? Se é obrigatório só o escrivão é obrigado,
mais nada. Como é que mexemos e no sistema e conseguimos adivinhar que
temos aquele agendamento obrigatório?
F4: A lista dos processos com agendamento tem de ser vista diariamente,
porque eu de manhã, quando ligo o computador, se tiver processos pendentes
aquilo não sai dali. Isto está na aplicação. Senão não continuo o meu trabalho.
F5: Já vimos três formas de controlar as coisas.
OPJ: A questão que nos interessa aqui é saber se é fundamental o
agendamento dos prazos. Outra questão é saber se o juiz deve ou pode dar
orientações ao escrivão e à secção no que diz respeito à gestão do serviço?
F4: Poder, pode, e sempre que há atrasos deve.
OPJ: Pode? Para haver aqui uma gestão concertada do serviço?
F3: Já pode! Se calhar precisa, além de ser juiz, ser um bom gestor das suas
tarefas e da sua actividade.
OPJ: Portanto os senhores funcionários não vêem aí nenhuma atitude ou
cultura dos oficiais de justiça no sentido de dizerem “o Sr. Juiz não tem nada de
se intrometer no trabalho da secretaria”? Não se identificam com esta
perspectiva?
F3: De forma alguma. O magistrado já pode.
F4: Em regra, o problema é quando há excesso de processos, do ponto de
vista dos juízes, que são enviados para o gabinete.
F5: Eu não tenho muita experiência, nem sou escrivão, estou há uns anos fora
das secretarias, mas, como vou falando com muitas pessoas diariamente,
apercebo-me daquilo que se passa a nível nacional. Mas penso que desde que
o juiz dê o provimento está o problema resolvido.
OPJ: Os juízes evitam dar provimentos?
F5: Não. Dizem de boca.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
242
F1: Eu metia aqui uma outra personagem que resolvia alguns problemas, que
era o secretário. Arranjando uma forma de responsabilizar o secretário. Ele
tinha de saber em que estado estava o serviço.
OPJ: Eu queria saber se, na sua perspectiva, os juízes evitam dar despachos
de provimento?
F1: Alguns sim.
F5: Mas, era a forma mais fácil para tudo.
F1: Era (no sentido de seria como forma de) evitar que o juiz se tivesse que
preocupar …
OPJ: Gostaria que pudéssemos discutir sobre que mecanismos de
transparência nós precisamos. Por exemplo, há países em que os tribunais
fazem relatórios semestrais sobre a situação dos processos. Para onde é que
nós devemos avançar? Qual é que deve ser o papel do Juiz Presidente nesta
matéria? Consideram como uma necessidade a introdução de ferramentas de
transparência, que nos permita conhecer melhor e avaliar os desempenhos
funcionais da organização dos funcionários e dos magistrados?
F1: Eu conheço magistrados que hoje já estão a trabalhar no Citius desde o
início e dizem que não voltavam atrás. Principalmente nos tribunais que são
especializados, porque têm um ganho de produtividade enorme e conseguem
já programar quantos processos conseguem despachar por dia, o que nunca
aconteceu antes.
F3: Nas primeiras sessões de formação do CITIUS o problema era a
segurança. “Então mas eu estou a trabalhar por causa de alguns artigos que
vieram nos jornais?” – o que veio nos jornais não era verdade – “mas estou
aqui a despachar…”; e pensava-se que quem estava na secção de processos
via o que o magistrado estava a despachar. Assim que nos apercebemos
tivemos tais preocupações que passámos a mostrar mais detalhadamente os
instrumentos de segurança da aplicação. Nas sessões seguintes notámos que
a postura já era outra. De facto, aqueles que têm uma relação menos amigável
com as novas tecnologias têm um outro tipo de discurso. A maioria começou
logo a trabalhar no CITIUS. Alguns magistrados até tinham dificuldades no
Anexo A
243
Word, massacraram os colegas nos tribunais para os ensinarem, mesmo já
depois da nossa formação, que são só três horas.
OPJ: Mas porquê só três horas? É suficiente?
F3: São suficientes.
OPJ: Se a pessoa tem qualquer dificuldade como é que resolve?
F3: Se têm qualquer dificuldade normalmente recorrem a nós. Os elementos
das equipas de apoio reencaminham-nos para nós e quando vemos que não
dá para explicar por escrito, nós pegamos no telefone e ligamos.
F6: Alguns quereriam a formação em duas fases. Uma primeira fase que seria
com o contacto com o programa e as suas ferramentas principais e, depois,
uma segunda, após a sua utilização, em que eles já pudessem colocar todas
as dúvidas e as identificar as suas dificuldades.
F3: Só para fazer uma rectificação. Para as duas primeiras séries de formação,
quem definiu o tempo e os planos de sessão foi a DGPJ. Não fazia muito
sentido nós estarmos a alterar.
OPJ: Eu entendo. Mas a questão aqui é saber se consideram suficiente.
F5: O público-alvo é muito variado, desde aquele magistrado que domina a
informática àquele que não sabe nada. A média é aquele magistrado que sabe
fazer as coisas no Word e pouco mais que isto. Parece-me que as pessoas que
sabem trabalhar no Word, basta dizer “clica aqui e ali” e depois mostrar um
conjunto de funções idênticas à do Word. A questão que o colega colocou de
se poder equacionar uma segunda fase para os que sentirem a necessidade de
colocar as dúvidas, depende da disponibilidade.
OPJ: No que diz respeito à utilização das novas tecnologias como mecanismo
de transparência na avaliação de desempenhos, precisamos mais? Precisamos
de outros indicadores de transparência? Será importante para a eficácia da
gestão processual?
F4: Da minha experiência, a divulgação de alguma informação pareceu-me ser
relevante na dinamização do trabalho. Como já tinha feito noutro serviço com
resultados muito bons, fi-lo novamente. Eu acho que a informação numa
primeira fase devia ser divulgada internamente e depois, de assim se entender,
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
244
para acesso público, relativamente àquilo que é feito em cada unidade
orgânica. Se eu chegar ao fim do mês e puder olhar para trás e ver aquilo que
fiz ou aquilo que tenho de fazer, provavelmente, passo a ter aqui um
instrumento de gestão fundamental para assegurar as tarefas do dia-a-dia.
Numa fase inicial, acho que era de todo interessante ter uma intranet onde isso
fosse divulgado.
OPJ: Por exemplo, o DIAP de Lisboa faz isso, tem informação na intranet.
F4: Eu não tenho conhecimentos para isso, mas faço intranet com umas
folhinhas no Excel. E foi curioso que no primeiro mês não teve impacto
nenhum, no segundo mês já iam ver quem é que tinha feito mais ou menos. E
por exemplo, no caso dos juízos cíveis, é raro ter um processo para contar, ou
seja, não há um único escrivão que queira ver lá um processo. Teve um efeito
muito positivo. Acho que se a informação for bem apresentada, não tendo
como objectivo controlar a pessoa, era uma medida interessante.
Com a desmaterialização do processo, estamos a mostrar mais do que alguma
vez o fizemos. Há vários intervenientes a ter acesso. O que passou a ser válido
com a publicação da Portaria 114 foi o processo electrónico. A partir daí o que
eu esperava era que tudo aquilo que viesse se traduzisse nisso. Se há uma
proibição de materialização de actos no processo, por maioria de razão, eu não
deveria guardar nada que tivesse a ver com a injunção. Mas é ao contrário,
agora obrigam-nos a criar pastas, parece haver aqui um contra-senso qualquer.
Partindo do princípio que o caminho é este, o da desmaterialização, vamos ter
aqui um conjunto de questões novas que até hoje não tivemos e algumas de
ordem prática. Por exemplo, se um processo que já não tem muita
documentação tivesse de subir em recurso, não sei se era necessário
materializar aquilo tudo, porque na Relação não posso ter o processo
electrónico. Não estou a dizer nenhuma asneira.
OPJ: A questão é a seguinte: a lei veio dizer que o processo é electrónico. Só
se materializam as peças relevantes. Desde logo importa definir o que são
peças relevantes. O que é que é relevante?
F5: Tem de haver bom senso.
Anexo A
245
OPJ: A alteração de cultura não se decreta apenas por lei. A dada altura,
podemos ter dois processos: o do juiz impresso por ele e o processo na
secção. Eu pergunto o que é que vislumbram sobre isto?
F5: Não é preciso o magistrado dizer o que é relevante.
F1: Desde que eu trabalho nos tribunais só se vê problemas. “Isto funcionava
tão bem e agora vem isto”. É sempre a mesma coisa! Depois, vão-se
habituando e já não querem outra coisa. Mas, há uma determinada altura que é
preciso proibir, foi o que aconteceu com a máquina de escrever, se não
tivessem sido proibidas nos tribunais, elas hoje ainda continuavam lá.
F5: Outro exemplo foi a guerra com a pasta dos ofícios.
OPJ: Não iremos ter aqui uma perversão, como aconteceu na acção
executiva?
F5: Eu acho que não. Aliás acho que esta portaria trouxe uma coisa que foi
aquilo que defendemos desde o início. Quando tivemos as primeiras reuniões
nós dissemos: desmaterializar é complicado, o que nós achamos que era um
passo importante era “despapelizar”os processos, tirar aquilo que não interessa
dos processos. O magistrado tem um processo com 5 volumes e se calhar
meio volume chega para aquilo que ele necessita. Agora se os magistrados
não entendem isto desta forma, eles prejudicam-se também a eles. O
manuseamento do papel deve ser reduzido para aquilo que interessa, este é o
passo intermédio para um dia mais tarde termos então a total
desmaterialização. Isto é uma questão de cultura.
OPJ: Acham que vai haver alguma resistência? Será preciso introduzir
mecanismos que evitem estes efeitos perversos?
F5: Não.
F4: Isto é uma forma diferente de organizar o nosso trabalho e era necessário
que as pessoas tivessem sido despertas para esta alteração. Tudo começa aí.
As inspecções já vêm no momento posterior. É fundamental que até ao dia 30
de Junho seja feita alguma sensibilização do que é que isto implica.
OPJ: Está a ocorrer alguma iniciativa neste sentido?
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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F3: Não. Nós somos confrontados e conhecemos a lei ao mesmo tempo que os
nossos colegas nos tribunais. Nós não temos nenhum dom especial. O
legislador tem de nos dar algum tempo de aprendizagem e de adaptação, para
conceber a formação.
F6: No meu tribunal ainda não houve nenhuma formação. Ainda se está à
espera.
F4: Se a formação não for dada no momento certo, o caminho torna-se mais
difícil. Isto não é difícil, o que é difícil é a sua execução. Por exemplo, no
tribunal em que eu trabalho aconteceu isto de um dia para o outro com as
execuções. Tinha-se o hábito de imprimir os requerimentos executivos, a partir
do dia em que foi publicada a portaria dei indicações para nada mais ser
impresso na secção central, e expliquei às pessoas como se faz. Hoje já quase
não tenho papéis na secção central. Claro que isto foi feito de forma
concertada com os juízes, para saberem que deixavam de receber papéis para
receber comunicações electrónicas e que no caso das execuções não tinham
de imprimir nada. Não sei se alguma vez houve alguma hesitação com a
mudança de procedimento. Mas estamos tão rotinados com o nosso trabalho
que é preciso que alguém alerte que a partir de hoje deixa de ser assim. Penso
que era fundamental nesta fase fazer isto. Sinceramente, em relação aos
juízes, estava à espera de uma reacção menos boa. Mas depois de
conversarmos um bocado, perceberam isto. Uns com mais rapidez que outros,
todos aceitaram pacificamente.
F3: Convém dizer que nós passamos dias pendurados ao telefone, não dá para
escrever uma linha que seja. E somos confrontados com situações como a
reforma do código de processo penal, com 15 dias para entrar em vigor.
Diplomas sem exposição de motivos.
OPJ: O legislador não está a dar atenção à questão da formação?
F3: O legislador não tem revelado grandes preocupações com a formação,
muito embora no artigo 19.º do Decreto-lei n.º 108/2006 tenha tido uma atitude
inédita ao prever a aplicação da lei precedida de acções de formação, que
houve. Vem agora outra norma do mesmo género no regulamento das custas.
Que se imponha, mas que se dê tempo para preparação dos formadores. Há
Anexo A
247
um outro aspecto também muito importante que são as sucessivas alterações.
Por exemplo, o artigo 19.º do anexo das injunções teve 3 alterações em meio
ano. Isto é muito complicado.
F5: Muitas vezes a componente informática também não é avisada. Muitas
vezes as leis estão para ser publicadas, quando nos pedem para adaptarmos o
sistema.
OPJ: Isso tem a ver com a preparação das reformas.
F5: Mas nós precisamos de saber com o que vamos contar e o que é preciso
desenvolver. E ainda inventar soluções para fazer corresponder àquilo que a lei
diz.
F3: Só devia permanecer em suporte físico o que chegasse ao tribunal e que
não fosse das partes, por exemplo, um ofício da GNR ou das autarquias. Tudo
o resto era devolvido às partes depois de digitalizado. Podemos fazer uma
interpretação a contrario. Se o legislador identifica as que não são relevantes,
então o que é relevante é o que aqui não está.
F5: Eu acho que há aqui uma questão que não foi abordada. Percebo que não
tenham querido englobar aqui a parte criminal, mas era efectivamente a mais
fácil de todas, e isto vai levar a que, em processos de competência genérica, o
juiz, nuns, tenha processos semi-desmaterializados, noutros, tenha os monos.
OPJ: Gostaria de ouvir os nossos colegas dos TAFs, porque tudo isto que
estivemos a discutir era assim quando se criaram várias aplicações no âmbito
da justiça administrativa e fiscal. E depois o que é que aconteceu?
F2: A jurisdição administrativa sofreu uma reforma em 2004 que resultou hoje
em dia num fracasso técnico para as secretarias dos tribunais, porque não lhes
foram dadas as condições óptimas para poder funcionar. O tribunal foi criado
com um quadro de funcionários muito aquém das necessidades que eram
exigidas, existência de condições físicas em determinados tribunais
desapropriadas para poderem trabalharem. Depois uma aplicação informática
com uma nomenclatura estranha para os oficiais de justiça, com uma
tramitação inovadora extremamente revolucionária que os funcionários não
estavam preparados para ela, não houve prévia formação sobre a aplicação
informática. As pessoas foram postas no terreno sem saber com o que é que
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
248
iam trabalhar. Ninguém sabia como tramitava um processo na aplicação
informática. Agora podem fazer o processo de outra forma e não cairmos nos
mesmos erros. O TAF de Sintra conseguiu em 2006 desmaterializar os
processos, só que as dificuldades depois decorrentes, nomeadamente, ao nível
da rede são de tal ordem que torna impraticável o fluxo do processo. É
desesperantemente lento. Pode-se ir fumar um cigarrinho e voltar. Quem é que
pode trabalhar numas condições destas? Ninguém!
Quero dizer acima de tudo que a secretaria da jurisdição administrativa poderá
agora dar a resposta pretendida na desmaterialização processual, como em
Sintra foi quase conseguido, se as condições técnicas forem de acordo com as
necessidades, bem como os seus recursos humanos (funcionários
administrativos e oficiais de justiça).
OPJ: E isto não vai acontecer agora?
F5: Eu conheço mal o TAF. O que acontece é que a aplicação é demasiado
pesada.
F2: Não, não. Tem a ver só com a rede.
OPJ: Mas, volto a perguntar, isto vai acontecer?
F5: Não, porque os servidores são locais e a rede nacional está a ser alargada.
A centralização do HABILUS também só irá acontecer quando houver
condições de rede.
F2: Voltando a 2006, fez-se a estrutura organizativa dos tribunais e o quadro
era de 5 funcionários. Quando recebemos os processos…supostamente só
seriam novos, mas recebemos cerca de 2 mil processos tributários. Depois as
instalações físicas eram provisórias. Alguns tribunais não tinham as condições
para funcionar, o que dificultou também a tramitação processual. Se eu
quisesse mandar um fax tinha de pegar no meu carro e andar dois km. Depois
temos de contar também com a dificuldade que as pessoas (funcionários)
tiveram no início de se adaptar a um processado novo (administrativo e
tributário). Tiveram todos formação ao nível processual, mas desconheciam as
particularidades da jurisdição. Daí algumas dificuldades para os oficiais de
justiça trabalharem e desenvolverem o trabalho. Por outro lado, o
Anexo A
249
desconhecimento total da aplicação informática também deu origem a algumas
resistências.
Em 2006 houve a possibilidade de acabar com o papel na parte administrativa
(o processado tributário é obrigatoriamente tramitado em papel). Agora poderá
haver condições necessárias para tramitar o processo em suporte digital, só
que as condições técnicas e exteriores ao próprio SITAF não levam a esse
sucesso. Embora o SITAF ainda hoje em dia não corresponda minimamente às
exigências, faltam ferramentas ao nível do oficial de justiça, nomeadamente o
registo do correio. O que é uma coisa inconcebível. Como é que ainda não está
implementado? Temos uma plataforma informática que é a Fórmula 1 das
aplicações e depois obrigamos o oficial de justiça a fazer o registo do correio à
mão. Por outro lado, temos a questão dos templates, ou seja, os impressos que
podiam ser utilizados e ainda hoje não estão implementados no SITAF, apesar
de já existirem há algum tempo e sujeitos a uma recente actualização, mas
ainda não implementados. Há significativos bloqueios para que a tramitação
processual, na secretaria, possa decorrer como se tinha idealizado.
OPJ: Temos então o problema da formação e o problema tecnológico. Por
outro lado, o problema da rede. No que diz respeito à relação entre secretaria
ou secção de processos e gabinete de juiz há uma outra forma de
organização?
F2: Com o desenho da organização eu concordo. O problema do desenho tem
a ver com o grande escassez de funcionários que foram colocados. Uma
portaria estabelecia o número de funcionários por cada TAF. Depois foi criada
outra portaria para o número de magistrados para cada TAF. Mas os
funcionários colocados ficaram extremamente aquém do que se encontrava
previsto. Repare: como é que o TAF de Sintra com o volume que tem podia
funcionar com 5 funcionários?
F7: O quadro legal é de 30 pessoas…
F2: Enquanto um escrivão auxiliar ia para a secção de processos, se me
mandassem um escrivão de direito obrigava a criar outra unidade orgânica,
porque na dependência hierárquica do escrivão de direito eu não podia colocar
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
250
outro escrivão. A estrutura da própria tramitação do processo criava pontos de
bloqueio. São as condições organizacionais da própria secretaria.
OPJ: Numa secção não pode haver mais do que um escrivão?
F2: O escrivão é o responsável pelo movimento dos processos. O secretário
tem a possibilidade de dentro da secção de processos pode afectar às várias
unidades orgânicas os funcionários, excluindo os escrivães de direito. Só que
há uma subversão nesse aspecto, se lermos o Decreto-Lei n.º 325/2003
ficamos com a ideia de que um TAF só tem dois escrivães, o da central e o da
secção de processos, independentemente do número de unidades orgânicas
que a secção de processos tenha. O que não se passou na realidade. Como
não havia mais ninguém, nomearam escrivães.
OPJ: E o que é que vamos fazer aos escrivães?
F2: Eu ainda pensei que o último que foi nomeado não ficasse afecto a uma
unidade orgânica. No entanto, para corresponder às funções do escrivão de
direito, constantes do estatuto, acaba-se por se criar unidades orgânicas dentro
da secção de processos.
OPJ: Isto é uma outra discussão. Podemos ter 30 escrivães adjuntos, mas
precisávamos de 10 auxiliares. Mas depois temos excesso de escrivães
auxiliares e o que é que vamos fazer?
F2: Na organização estatutária que temos, as funções do escrivão de direito
são as que estão lá definidas. Quando é nomeado um escrivão de direito para
a secção de processos, terá de haver a correspondente unidade orgânica.
OPJ: E os poderes do juiz presidente nos TAF, no que diz respeito à
distribuição de processos?
F2: A distribuição já está previamente definida. O juiz conselheiro não pode por
seu livre arbítrio alterar a distribuição, mas pode alterá-la de acordo com os
condicionalismos que vão surgindo, alterando termos de atribuição e carga de
processos a cargo de cada magistrado. Mas o conselho tem uma palavra
fundamental a dizer. Mas, ao contrário da jurisdição comum, o processo de
distribuição é um bocadinho mais complexo, o processo é distribuído ao juiz
aleatoriamente e funciona excelentemente. No TAF nunca se sabe a que juiz
Anexo A
251
vai cair um determinado papel. No início houve alguns problemas mas foram
tecnicamente resolvidos. Mas acima de tudo existe a vantagem dos processos
serem, desde logo, redistribuídos a partir do momento em que um juiz por
alguma razão circunstancial ou definitiva deixe de exercer funções no TAF.
OPJ: Mas o que lhe parece positivo?
F2: Parece-me positivo termos os processos em massa, saber se há
necessidade e benefícios, para as partes, em afectar aqueles processos a um
determinado juiz (ao juiz que é detentor do processo mais antigo).
OPJ: Mas não há aqui violação do princípio do juiz natural?
F2: Não. Ele é que vê se a questão jurídica é importante.
OPJ: Ele quem?
F2: O juiz presidente.
F1: Eu estive no Tribunal Administrativo do Porto e lá o sistema não funciona.
F4: Os TAFs, em termos de aplicação, só dá para falar do que a gente não
quer ter. Quando se iniciou o processo de informatização dos TAFs o HABILUS
já existia, embora numa concepção diferente. Mas esqueceram-se de uma
coisa que era e ainda é muito importante. Os funcionários precisavam de uma
aplicação que lhes permitisse produzir os documentos para notificar os
diferentes intervenientes processuais. A aplicação do TAF foi muito bem
desenhada, mas esqueceram-se do facto de que o tribunal produz
documentos. Por isso, é que na parte de produção documental ainda estão à
espera dela. Por muito boa que ela (aplicação) seja, para o que é preciso não
tem nada. E, depois, ainda se esqueceram de outra coisa: se o processo era
desmaterializado, então as comunicações com os diferentes intervenientes
processuais também deveriam sê-lo desde o início.
F7: Houve uma falta de investimento. A percepção que eu tenho é negativa. De
quase tudo. Pode haver um aspecto positivo da distribuição como foi dito. É
impossível haver coisas boas, porque a aplicação não responde, na minha
perspectiva, àquilo que se pretende. Por outro lado, em termos de organização
de processos aquilo é irritante. É lento, lento, lento. Eu tento motivar as
pessoas, tento levá-las a um desenvolvimento de trabalho e a ter outro tipo de
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
252
procedimentos que não têm agora. Há uma série de problemas. A pessoa está
condicionada à aplicação que tem. Há uma semana em que tudo corre bem, há
outra que é um desastre completo. Passamos a vida nisto. Para quem está à
frente do serviço é desmotivador.
OPJ: Numa última volta, eu gostaria que fizessem o balanço do que é que
acham que, de facto, as reformas em curso realmente vêm alterar e o que é
que entendem como bloqueios de gestão processual, além do que já referimos.
F4: Eu dava uma última nota que, no fundo, é a repetição do que aqui foi dito,
sobretudo pelos nossos colegas dos TAFs. A tecnologia é de facto fundamental
naquilo que nós temos que fazer e tudo aquilo que vamos ter de fazer daqui
para a frente vai assentar claramente na tecnologia, e era bom que
estivéssemos todos em posição de igualdade no processo. Parece-me que
esta última portaria não é o fim mas o início de um processo que há de ter
várias fases. Parece-me que era fundamental que as comunicações, pelo
menos para os advogados em processo civil que enviaram as peças
electronicamente, fossem também feitas electronicamente. Ou seja, neste
momento temos um documento electrónico a sair do escritório do advogado, a
chegar à central do tribunal electronicamente, a ir para o juiz electronicamente,
a vir do juiz electronicamente e a seguir vai em papel para o escritório do
advogado.
OPJ: E a comunicação entre tribunais também é em papel?
F4: Já ia falar nisso. No que tem a ver com os advogados, somos todos
utilizadores do mesmo sistema e devíamos todos partilhar a mesma informação
da mesma forma.
OPJ: Porque é que os advogados podem consultar o CITIUS a partir da sua
casa e os magistrados não podem? Há alguma razão para isso?
F5: Porque os magistrados trabalham no tribunal. Mas já está a meio
desenvolvimento um módulo para os Desembargadores e Conselheiros.
F4: Nós, funcionários, perdemos muito tempo com as tarefas administrativas,
que deviam e podiam ser simplificadas. E nesta fase da reforma não
compreendo muito bem porque é que não se completou o ciclo. Depois, nas
comunicações entre tribunais, estamos neste momento numa fase de
Anexo A
253
transição, ou seja, a portaria está aí mas ainda não é obrigatória para todos.
Mas há aqui um grande esforço a fazer por parte de quem tem o
desenvolvimento, porque tudo aquilo que nós fazemos entre tribunais não tem
que ser obrigatoriamente efectuado por meios electrónicos.
F5: Neste momento nós temos comunicações electrónicas e temos
transferências electrónicas. Mesmo as cartas precatórias, estando assinadas
digitalmente pelo juiz, e anexando os documentos, podem ir electronicamente.
F4: O que temos está bem feito e funciona bem, há apenas umas pequenas
alterações a fazer. Um exemplo, alguns automatismos na aplicação da
distribuição das cartas precatórias ou reencaminhamento de correspondência e
de documentos que temos de enviar. Neste momento, pode ser feito de duas
formas, em papel ou electronicamente, porque não tem ainda carácter
obrigatório, mas a partir do dia 30 de Junho todo o fluxo e tudo o que tem a ver
com enviar tem de ser revisto. Isto no sentido da desmaterialização. Por isso
todas as comunicações entre tribunais devem ser efectuadas por meios
electrónicos. Penso que houve aí – na parte relativa à digitalização – algum
recuo no que respeita à desmaterialização daquilo que ainda não temos
desmaterializado. Tenho um serviço externo que por mês para os tribunais faz
600-1000 informações. Não sei quanto custa cada carta, mas parece-me que
comprar um digitalizador para cada secção seria uma enorme poupança de
custos no que tem a ver com as comunicações internas. Poupanças de custos
e tempo, porque a partir do momento que tudo isto for apenas
electronicamente, logo que estou a acabar de fazer um serviço, estou logo a
remetê-lo ao destinatário. Relativamente a isto estou muito optimista,
independentemente das reformas em curso, os instrumentos de trabalho são
fundamentais e penso ser este o caminho.
F5: Eu tenho umas coisas a dizer no que toca à informática. Há aqui uma série
de actos que vão ter de ser corrigidos em função da Portaria 114. Isso já nós
vimos e há uma quantidade de coisas que hão-de chegar ao dia 30 e vão estar
por fazer. É um processo que vai demorar, porque mexer no sistema que
temos leva o seu tempo. Não temos outra solução. Relativamente àquilo que
F4 disse, efectivamente falta-nos completar o resto do circuito. Ou seja, vem o
sistema electrónico dos advogados, dá a volta toda e quando tem de regressar
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
254
ao advogado a notificação vai a papel. Ora, primeiro tem de haver aqui alguma
alteração legislativa, mas para além disso, que creio que seria feito
relativamente rápido e sem problemas, Relativamente às injunções, os
advogados já são notificados electronicamente através do “CITIUS mandatários
judiciais”. Não há qualquer tipo de papel em termos de notificações.
Relativamente aos restantes processos, aos processos comuns, irá ser criado
um sistema idêntico, onde em vez do funcionário imprimir a carta e apesar de
ter o correio facilitado, vai passar a ser tudo automático, ou seja, clicar no botão
e aquilo vai via electrónica e volta na mesma via. Não só traz economias em
custos, como também em tempo, pelo menos a perda de tempo com o correio,
na parte de dobrar, etc. Isso é algo que vai acontecer seguramente. Não é via
electrónica, é através da Web, o mesmo meio com que eles comunicam para
nós, nós comunicamos para eles. É tudo via Web, tudo mais seguro. Isto vai
ser o grande salto. Depois, só para termos uma ideia daquilo que há para fazer
e está previsto ser feito, até meados do ano ou até às férias, é a
desmaterialização completa do registo criminal, integração completa entre o
HABILUS e o SICRIM, que é um sistema novo que está a ser criado e que vai
desmaterializar o registo criminal. Vamos passar finalmente a ter um registo
criminal quase online, portanto já não vamos demorar aqueles três meses
quando pedimos para vir os certificados.
Temos também até ao Verão a questão dos DIAPs. Temos uma empresa a
trabalhar connosco, no sentido de fazer não só a migração das bases de dados
do SGI para o HABILUS, como inclusive desenvolver um conjunto de
funcionalidades, que vai permitir a prática de um conjunto de actos em lote,
para já dedicado ao inquérito nesta primeira fase, mas que vai ser alargado a
todas as áreas processuais. Vai permitir às secretarias, com maior facilidade,
praticar os actos.
Depois temos também a questão das custas judiciais. Portanto, o regulamento
das custas que está a começar a ser desenvolvido por uma equipa da DSI da
DGAJ do Porto, que é um programa autónomo, mas vai estar integrado no
HABILUS, ou seja, vai ser algo melhor que o sistema actual, em que há
importação dos dados do HABILUS para o actual sistema das custas. Vai estar
Anexo A
255
integrado, mesmo a conta, há-de cair nos processos respectivos, evitando a
possibilidade das pessoas andarem a anexar e a digitalizar, etc.
Temos também a questão, mais para breve, para iniciar a partir do dia 7 de
Abril, que é a distribuição automática, vai deixar de ter uma intervenção
humana sempre que os processos estejam prontos para a distribuição.
Vamos ter o acesso à Segurança Social e a todas aquelas entidades que
constam do menu e que estão previstas serem integradas no HABILUS. Vamos
passar a ter acesso a informações que, hoje em dia, demoram meses.
Portanto, tudo isto está previsto ser desenvolvido até às férias. O que não
acredito, porque há sempre muita coisa que se mete pelo meio.
Esta semana vai ser colocado nos tribunais um módulo de estatística, que vai
substituir o actual, para além de conter tudo o que a análise de pendências tem
melhorado, pode inclusive cruzar alguns dados, por unidade orgânica, por
magistrado, por tipo de crime.
F8: Neste momento nós retiramos o mapa estatístico do HABILUS e nunca
aparece a soma. Temos de estar todos ali com a máquina de calcular, quando
é uma coisa extremamente simples que os informáticos podiam resolver.
F5: Não sei o que este novo módulo vai conter. Dentro em breve vão acabar os
mapas mensais. Quero acrescentar que, para além de todos os mapas que já
existia e que foram melhorados com outro tipo de critérios, adicionámos mais
alguns, nomeadamente ao nível da distribuição, onde é possível ver-se aquilo
que até agora não era possível. Podemos conhecer acções por complexidade,
nas distribuições penais, porque no crime não há papéis de distribuição, nós
criamos a complexidade para se dividir os presos, os soltos, os complexos.
Inclusive na parte dos processos de crimes prioritários, é necessário saber que
tipo de decisões foram tomadas. Está previsto inclusive cálculo do tempo
médio da duração do inquérito. Dentro de um determinado tempo findaram um
determinado número de inquéritos, sabemos como findaram, inclusive
sabemos aqueles que findaram e o tempo médio daqueles que findaram para
dar uma noção se estão a demorar mais ou se estamos a obter ganhos
relativamente a isto.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
256
F4: Há dias foi publicado um diploma que tem a ver com as penhoras
electrónicas de veículos e essa portaria esqueceu-se que os oficiais também
trabalham como agentes de execução.
F5: Mais uma coisa que penso ser importante. Nós fizemos um modo que está
em fase experimental de gravação digital para as audiências, completamente
integrado no sistema, com todas as virtualidades que possam advir daí. Não
têm de fazer rigorosamente nada. Numa primeira fase, a gravação vai ser
enviada para CD ou DVD. Futuramente, aquilo que se pensa fazer, penso que
num espaço relativamente curto, são gravações que passam a ficar
centralizadas no serviço central e que por sua vez possam ser disponibilizados
através do CITIUS para advogados e para magistrados. Isto é algo que não
existe em lado nenhum. Estive no Brasil e a tecnologia que nós vimos lá é
realmente boa, mas não têm nada como nós. Nós estamos muito mais
avançados em termos de iniciativa que qualquer um dos países que lá estava –
Espanha, Brasil, por exemplo. Têm melhor tecnologia que a nossa, nalgumas
coisas, mas não têm o sistema que nós temos. Nós temos toda a 1.ª Instância
desmaterializada como plataforma. Nem os Estados Unidos, nem o Canadá.
Não há ninguém, então na Europa muito menos. Nesta área estamos a
conseguir ter avanços significativos e ultimamente quase que nos atropelamos
com os avanços que damos. E esta questão das gravações tem esta novidade:
o advogado através do HABILUS, através do “CITIUS mandatários judiciais”
entra no processo e há-de lá ter um menu em que clica e através das funções
que já existem, como o Windows e Media Player, tem a audiência disponível.
Isto é algo que é inovador, que dentro em breve irá surgir e é mais um ganho
que nós temos na informatização.
F1: Eu fiquei arrasada. Qualquer dia não precisam das pessoas para trabalhar.
Isto assusta-me um bocadinho. Espero que ainda se mantenha alguma
intervenção.
F5: Acho que sim. Com o HABILUS há aqui um grande senão. Nos tribunais a
tendência do pessoal é “eu tenho lá no HABILUS”. Cumpra-se o artigo tal, “Não
sei, está no HABILUS”. Clica-se aqui e está cumprido. Este é o lado negativo
da informatização, que terá de ser combatido de outra forma.
Anexo A
257
F3: É a formação que aqui está em causa. É aquilo que nos aflige, que nos
preocupa e de que toda a gente fala e com razão, mas com o que os
responsáveis pouco se preocupam. Os responsáveis a todos os níveis porque
o centro de formação está criado há mais de 15 anos e todos os oficiais de
justiça andam a clamar nos últimos anos por uma plataforma de formação à
distância. É uma questão de organização e de definir tempo, como se pode
fazer e quem pode fazer. O centro de formação não tem capacidade para o
fazer porque não tem autonomia administrativa nem financeira. Entretanto
iniciou-se 11 meses de formação contínua para um concurso de 2600
candidatos para acesso a técnicos de justiça principal. São 19 salas. Estamos
a trabalhar no limite. Com uma plataforma de formação à distância, a OPJD,
que tem cerca de 10 mil funcionários (aproximadamente tantos quantos os
oficiais de justiça), consegue dar formação a todos num só ano, incluindo aos
que estão no estrangeiro.
Já houve experiências muito interessantes, em 2003, com a plataforma da PT,
com custos elevadíssimos, é certo, mas foi uma boa experiência, só que,
depois, não se lhe deu continuidade. Porque não havia capacidade para
suportar os custos.
Há muitas aplicações standard, como por exemplo, a plataforma Moodle
utilizada em muitas escolas a nível mundial. Era só pegar naquilo e adaptar às
nossas necessidades. Não quero entrar em mais considerandos. Toda a gente
bate e com razão. Queremos melhores profissionais, existe um centro de
formação, com certeza. Mas, ou se leva a formação a sério, ou fecha-se a
porta e entrega-se esta actividade a privados, como acontece no Brasil, por
exemplo. Mas, na verdade, com menores custos e com a plataforma de
formação à distância seríamos capazes de corresponder e satisfazer grande
parte das necessidades de formação.
F2: Só queria salientar o facto de ao escrivão de direito bem como ao
secretário pudessem ser dadas e ao secretário deverem ser dadas as mais
variadas competências ao nível da gestão processual. Porquê, se continuam a
ocupar os Srs. Juízes com determinados trabalhos de expediente que não são
de facto relevantes… Isso podia libertá-los para as tarefas mais nobres, que é
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
258
de facto decidir. A questão também do secretário é que devia ter mais algumas
responsabilidades.
F6: Ia falar exactamente isso. Acho que há muitos processos que levamos para
o gabinete do juiz, que até sabemos o que vai ser o despacho. Aqueles actos
de mero expediente poderiam ficar a cargo da secretaria ou dos escrivães. Isto
é, o processo seria preparado na secretaria, naturalmente com fiscalização do
juiz. Se, por exemplo, um processo cível, preparado e apresentado ao juiz para
marcar audiência preliminar ou proferir despacho saneador, entender que o
processo não estava bem preparado, devolveria à secretaria. Acho que assim
aligeirava um pouco mais a tramitação do processo. Naturalmente tudo isso só
seria possível com formação adequada.
F8: Concordo com o que os meus colegas disseram e saio daqui muito
satisfeita porque tive conhecimento daquilo que F5 nos disse em relação a
estes avanços informáticos e anotando que a preocupação de F3 é a formação.
Com certeza que concentrados nestes dois níveis vamos ter resultados
óptimos. Estou optimista. Estou convencida que vamos mesmo para a frente e
que muitos dos problemas irão ser resolvidos.
F7: Continuo a dizer que o grande problema está nas pessoas com pouca
capacidade para exercerem o cargo que exercem neste momento. Estou a falar
dos escrivães, mas também se aplica aos secretários. Concordo em passar o
trabalho de expediente, mas deve-se dar mais condições. Muitas vezes, no
tribunal, há coisas que eu vejo que não tenho hipótese de agir.
F1: Por isso é que ficou aqui uma questão concreta, que nenhum de nós
conseguiu dizer claramente o que pensava, que era a figura do Juiz Presidente.
Até que ponto é que pode ser benéfico ou não.
F7: A minha opinião é esta: tudo depende da pessoa, porque um determinado
poder pode ser bom ou mau, por isso é que é melhor deixar estar assim e era
bom que prevalecesse tudo assim.
F2: As funções podiam ficar bem estabelecidas e definidas e hoje não estão.
F4: Para acabar eu deixava só uma nota crítica. Quando se fala das funções
do Juiz Presidente, nós pensamos numa coisa e o Juiz provavelmente pensa
noutra. Ou seja, para nós, os problemas dos tribunais não têm a ver com quem
Anexo A
259
compra o papel, a esferográfica, o problema é o processo, é esse que se
reflecte na sociedade. Para nós é importante criar ali mecanismos para que o
Juiz Presidente tivesse, ele próprio, competências para definir métodos de
trabalho. Querer dizer que os tribunais só funcionam melhor ou pior se o Juiz
tiver mais ou menos poderes sobre o funcionário é querer enganar todos. Uma
coisa não tem nada a ver com a outra. Primeiro, se o Juiz entender que o
funcionário tem que fazer isto ou aquilo, ele pode articular com o secretário.
Aconteceu já algumas vezes. Muitas vezes o problema que ele (secretário) tem
para resolver é a janela, é o telhado que mete água e isso nada tem a ver com
o bom ou mau funcionamento do Tribunal, embora, possa ter influência. A
direcção da secretaria sempre coube e cabe ao juiz, mesmo em matéria
disciplinar. Sobre isto já ouvi tantas enormidades. É verdade que, no caso dos
TAFs, o Juiz Presidente tem mais poderes que o Juiz Presidente na jurisdição
comum, mas um Juiz Presidente sempre teve as mesmas competências que
tem hoje, com uma diferença: antigamente, acima da pena de repreensão era o
Conselho Superior de Magistratura que decidia, agora é o COJ que decide.
Portanto, os juízes mantiveram sempre as mesmas competências. Isso não vai
resolver coisa nenhuma. Se quiserem a competência toda sobre a gestão dos
funcionários, sobre a gestão da parte material, é um problema que têm que
resolver com a Direcção Geral. Nenhum tribunal tem autonomia administrativa
e tem um orçamento para gerir. Essa é a nossa dificuldade enquanto
secretários. Às vezes somos incompreendidos, porque nós actuamos em
função da disponibilidade financeira que temos. Se é necessário comprar papel
amarelo, mas se eu só tenho dinheiro para comprar papel branco, só compro
papel branco. O secretário está condicionado ao dinheiro que tem disponível. O
juiz gosta de uma caneta de tinta permanente, mas eu só tenho canetas Bic.
Não tem nada a ver com bom ou mau secretário. Portanto, se a figura do Juiz
Presidente for entendida pelo Juiz como sendo alguém com responsabilidade
ao nível da gestão processual, aí sim, penso que isto poderá mudar alguma
coisa. Dou um exemplo concreto: cheguei a uma dada comarca e tinha o
Tribunal de Família e Menores com muitos atrasos. Os funcionários que lá
estavam eram manifestamente incapazes de se movimentarem naquela casa
por causa do número de processos. Havia duas alternativas: tirar as pessoas
do cível e pôr na Família, ou deslocar os processos da Família para o cível.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
260
Depois de falar com as pessoas, tive a sensibilidade para perceber que a
primeira solução não iria funcionar. Mas como verifiquei que os funcionários
que estavam no cível tinham disponibilidade para ajudar e, depois de falar com
todos os juízes e com os afectados, considerei que retirando os processos da
Família para o cível poderia resultar. E toda a gente achou que aquilo era uma
coisa maluca, mas o que é certo é que os funcionários do cível cumpriram os
processos que estavam atrasados na Família.
OPJ: Não levou os funcionários, levou os processos?
F4: Levei os processos. Se eles tinham mais possibilidade de trabalhar, se se
disponibilizaram para fazer, o que é que faltava ali? Era falar com as pessoas,
incluindo o juiz. Se tiver um Juiz Presidente que tenha competências para
decidir, as coisas podem ir-se resolvendo com mais eficiência. Porque, de
facto, quando as pessoas estão na sua unidade orgânica, ninguém as pode
obrigar a fazer o serviço de outras unidades.
OPJ: O que está em causa é a gestão dos recursos humanos?
F4: Se me perguntar até que ponto um Juiz Presidente tem competência para
decidir estas coisas, em vez de perder um dia a falar com dez juízes, facilita
muito a vida ao secretário ou ao administrador, seja lá quem for que lá esteja.
De certeza que sim. Acha que o Juiz Presidente futuro vai se preocupar com
este tipo de coisas? Olhar para os seus pares e dizer este tem mais por isto ou
por aquilo, fazer uma avaliação e depois ter competência para fazer a gestão
dos processos?
OPJ: A gestão precisa de instrumentos que também nos permitam fazer essa
avaliação?
F4: Se faz falta? Claro que faz falta. E se o Juiz deve ter esse poder? Com
certeza que sim. Mas, se isto não for feito, não adianta ter a figura do Juiz
Presidente. Se o Juiz Presidente estiver lá para dizer “quem estaciona ali é o
José e quem põe a lâmpada ali é o Manuel”, isso para mim como secretário
causa-me algum receio, porque ao olhar para as competências do Juiz
Presidente… vai ao mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 343/99, que é o nosso
Estatuto, e vê-se que são as competências do actual secretário, mais alguma
Anexo A
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coisa. Eu até me sentiria muito mal como Juiz Presidente tê-las, na medida em
que actualmente são as de um seu subordinado.
F2: O que F4 está a dizer é que as questões da lâmpada eléctrica e do
estacionamento devem ser competência do secretário, e as atribuições e
distribuições dos processos, do Juiz Presidente. O problema é que às vezes o
sistema distorce. Só posso dizer bem das responsabilidades atribuídas ao
secretário.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
262
263
ANEXO BANEXO BANEXO BANEXO B
Painel com Magistrados Judiciais
Para um Novo Judiciário:
qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
14 de Março de 2008
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Anexo B
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Intervenientes
Alfredo Madureira, Azevedo Mendes, Helena Ribeiro, José Eusébio Almeida,
Mouraz Lopes e Nuno Coelho1
P1: Estamos a falar sobre gestão processual. A distribuição dos processos
pelos juízes é uma questão específica da gestão processual, sobre o como
fazer para depois da distribuição por unidades orgânicas afectar processos a
juízes. Existe uma dificuldade balizadora. Não pode ferir o princípio da
predeterminação legal do juiz, o princípio do juiz natural. Temos limites
funcionais e legais. O juiz não pode ir de encontro ao processo concreto, o
processo tem de ir de encontro ao juiz legal, o processo deve continuar na
mesma unidade orgânica.
OPJ: São duas questões que estão aqui presentes: uma de distribuição e outra
de natureza/complexidade da litigação. Por exemplo, um magistrado que não
domine particularmente questões de direito de consumo, mais facilmente pode
deixar instrumentalizar o processo por expedientes dilatórios; mais dificuldade
tem de exercer o poder de direcção efectivo sobre todo o processo, o que pode
levar a uma maior morosidade do processo. Mesmo num tribunal que não
tenha grande volume de processos pode haver tipos de litigação que tendem a
elevada morosidade.
P1: Na questão da distribuição dos processos, podem vir a existir critérios em
função da tipologia dos processos, comarca a comarca, sobre como serão
afectos os processos. Podem variar no valor, na matéria, neste ponto de vista
não há problema nenhum no plano do princípio do juiz natural. É possível e
conseguir-se-ia uma maior eficácia. De acordo com a reforma anunciada pelo
1 A identificação dos magistrados judiciais faz-se pela letra P, seguida de um número atribuído a cada um dos intervenientes, em função da ordem da sua primeira intervenção no respectivo painel. Esta ordem é completamente diferente da que consta da lista de intervenientes, em que os participantes foram identificados por ordem alfabética. O painel, com autorização de todos os participantes, foi integralmente gravado e posteriormente transcrito. As transcrições, depois de ligeiramente revistas, foram enviadas para eventuais correcções a cada um dos intervenientes. A sua publicação inclui todas as correcções que os próprios entenderam fazer.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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Governo, os tribunais vão ser especializados e dentro de cada juízo
especializado poderiam especializar-se ainda mais. Teremos certamente com
isso outro tipo de problemas. Por exemplo, menos juízes a tratar de processos
especializados empobrece a discussão jurisprudencial. Como a situação que
tem sido colocada ao TCIC e aos TICs quando neles existe apenas um juiz que
determina um critério, sem confronto crítico, para as respostas ao que as
polícias solicitam: buscas, prisões, intercepções de comunicações. Mas se
viesse a haver uma especificação predeterminada, comarca a comarca, que
permitisse atribuir processos especializados a juízes especializados, haveria
ganhos do ponto de vista da eficácia… Penso que é adequado introduzir
alterações no sentido de dar resposta às questões que nos colocou.
OPJ: Mas essas alterações, em que sentido devem ser feitas?
P1: Temos e vamos continuar a ter unidades orgânicas com secções de
processos que respondem directamente a um juiz. A distribuição de processos
não é feita pela secção de processos, é feita pelo juízo. E se dentro do juízo
houver mais que um juiz pode haver critérios próprios de distribuição a cada
um dos juízes.
OPJ: Exactamente. A distribuição é feita por juízo, como disse, que pode ter
mais do que um juiz. Como conseguir mais eficiência?
P1: Eu acho que o que pode vir a responder a isso é a capacidade do
Conselho Superior da Magistratura desenvolver tecnologia de gestão
processual adequada. Podendo apoiar-se no Juiz Presidente, para identificar,
comarca a comarca, as situações que mereçam uma alteração à distribuição
processual, em função da categoria de acções, da sua complexidade. Acho
que o caminho pode ser esse.
OPJ: Mas como é que isso se materializa? A lei permite que se alterem as
regras de distribuição, mas ela continua a ser aleatória para os juízes?!
P1: Estamos a falar de recursos humanos e não é possível falar de gestão
processual sem falar das outras questões. Estamos a falar da necessidade de
reformar todo um tratamento processual. E existe outro problema complicado
que é o da mudança de percepção por parte das pessoas que estão mais
directamente relacionadas com o trabalho do processo. Como é que vamos
Anexo B
267
responder a esta pergunta sem levarmos em conta toda uma estrutura que
assenta num princípio organizacional cego? O que se passa é que vamos
reinventar uma maneira de pegar no princípio do juiz natural e adequá-lo à
necessidade de tratar aquilo que é diferente de uma forma diferente e resolver
com eficácia uma determinada questão.
P2: É necessário repensar o papel do juiz natural, que é um princípio
claramente respeitável, com uma dimensão constitucional, mas andando
sempre à volta de uma reforma.
É necessário deixar de entender a distribuição de processos como uma
espécie de debate consagrado que vai por em causa a independência aquele
princípio. Ora bem, há várias formas concretas do juiz fazer a distribuição dos
processos de acordo com vários critérios qualitativos, até de acordo com a
própria especialização do processo, sem por em causa o principio do juiz
natural de uma forma ampla. É preciso entender de uma vez por todas que
este princípio vai dar às pessoas a informação e a garantia que a distribuição
não é feita de acordo com as conveniências de alguém. É uma garantia do
cidadão. Agora, isto pode ser feito de uma forma microscópica, sem por em
causa o princípio do juiz natural. Se tivermos 4 juízes num tribunal podemos
arranjar critérios em concreto para naquele tribunal fazer a distribuição. O
tribunal pode arranjar mecanismos que não violem o princípio do juiz natural e
que permitam que aqueles 4 juízes trabalhem de forma mais eficiente nos
processos a resolver. Isto pode ser feito na situação A e já não na B,
aceitando-se regras de distribuição diferentes. Tem de haver a possibilidade de
dar poder ao Juiz Presidente através de garantias de que não há manipulação
na forma de distribuição. É preciso dar esse salto.
Esta questão não tem a ver, directa e imediatamente, com a independência do
juiz. O princípio do juiz natural é uma garantia da concretização de uma justiça
imparcial e independente para as partes. A existência de um juiz independente,
sem a consagração do princípio do juiz natural não garante totalmente o direito
a uma justiça verdadeiramente independente. A questão do juiz natural tem a
ver, numa primeira linha com a imparcialidade, com a imparcialidade objectiva
que deve estar assegurada no exercício da jurisdição. A questão essencial está
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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em o cidadão saber que há um juiz preconstituído por lei que garante que uma
decisão a proferir é tomada de uma forma imparcial.
P1: Esta questão do princípio do juiz natural não tem tanto a ver com a
independência do juiz, é uma garantia para as partes. O juiz será
independente, as partes é que não ficam garantidas se a sua designação não
for predeterminada. A questão tem a ver com a imparcialidade, com a
imparcialidade objectiva de todo o tribunal, de eu saber que o juiz vai actuar de
uma forma imparcial não pondo em causa, por causa disso, a decisão. Penso
que poderia ser o Juiz Presidente a propor ao Conselho os critérios
predeterminados de distribuição. Tenho ideia que em Itália funciona um pouco
assim. A ideia com que eu fiquei é que o juiz da circunscrição reúne-se ano a
ano com os juízes, ou de 2 em 2 anos, fixa os critérios da distribuição, os
processos são afectados consoante a sua categoria, propõem ao Conselho
esse acordo de distribuição e o Conselho homologa. Com excepção, talvez,
para as matérias penais, já que a nossa Constituição proíbe a existência de
tribunais para julgar apenas certas categorias de infracções.
OPJ: Está em causa a qualidade, o direito do cidadão à justiça de qualidade, à
eficiência, à eficácia do processo. Que regras e mecanismos de distribuição
nos podem dar resposta a essas necessidades e, em simultâneo, assegurar a
independência e a imparcialidade?
P3: No fundo, estou de acordo com o que disseram os meus colegas,
chamando a atenção para o facto de que estamos a partir da ideia de estarmos
muito longe duma equiparação de qualidade e de que a alcançaremos com
essas alterações que propõem. Eu acho que hoje há já alguma qualidade e não
tenho muita esperança de que a alcançaremos, a aumentaremos, desse modo.
Mas há melhorias que podem ser feitas. Hoje em dia, a questão da qualidade é
conseguida através da especialização dos tribunais. É porque os tribunais são
especializados que se acede àquele onde a formação dos juízes que os
compõem pode responder com uma qualidade superior à dos tribunais de
competência genérica.
OPJ: Mas nas grandes áreas, e dentro da justiça cível.
Anexo B
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P3: No fundo, o que eu digo é que a divisão, a especialização, é ainda
escassa, mas não creio que possamos evoluir no sentido de colocar um juiz a
despachar só determinados processos. Não creio que se possa chegar à
especialização da entrega subjectiva das matérias a cada juiz – mesmo com a
transparência prévia de se conhecer que neste ano vai ser assim, no próximo
vai ser doutra maneira, mas sabendo-se antecipadamente como vai ser – não
se conseguirá, até pela dimensão do país e de determinadas regiões, fazer
uma especialização tão grande.
Ainda assim é positivo, e creio que apontam nesse sentido os projectos que
agora se estão a transformar em lei, a de alteração da organização judiciária e
também da Lei Orgânica de Funcionamento dos Tribunais. Nesta última parte e
com especial relevância, os poderes que vão ser dados ao Juiz Presidente,
ligado embora ao Conselho e, através do Conselho, faz com que o efeito de
gestão do Juiz Presidente possa ser como que objectivado para mais tribunais.
Mas é importante que, através da gestão individualizada, não se crie um
desequilíbrio geográfico.
OPJ: Como assim?
P3: Não devem ter poderes autónomos que possam prescindir da acção de
controlo do CSM. Deve evitar-se criar hábitos e mecanismos de gestão muito
díspares entre divisões geográficas próximas.
OPJ: Se eu percebi, pensa que a especialização da organização judiciária já
resolve muitas questões.
P3: É uma maneira de qualificar o acesso, embora fiquem muitas outras
questões por resolver. As questões de formação inicial e permanente são muito
importantes e quando estamos a falar da qualificação do acesso (…)
Resumindo o que agora há é uma forma de equilibrar a qualidade de acesso,
mas talvez seja insuficiente e tenha esbarrado em demasia com a ideia que
temos do juiz natural.
OPJ: Mas, como poderemos ir mais além?
P3: Em cada circunscrição o Juiz Presidente deverá poder aproveitar a
qualidade, aproveitar a especialidade, desde que pela existência prévia de
alguns parâmetros que se possa controlar. Os parâmetros de especialização
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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devem ser predefinidos e a distribuição não pode ser totalmente subjectiva,
mas ser, ainda assim, uma distribuição de especialidade. Digamos, alarga-se a
especialidade dos tribunais à especialização dos juízes, segundo regras de
uniformidade e transparência. Garante-se que o acesso possa ser de maior
qualidade, mas um acesso equilibrado, igual para todos. Todos têm acesso a
essa qualidade. É de admitir essa possibilidade e creio que o que agora se
apresenta no que respeita às competências do Juiz Presidente vai nesse
caminho. Mas não podemos esquecer que tal princípio, aquilo a que se chama
o princípio do juiz natural tem uma importância fundamental, como garantia de
imparcialidade aos utentes. Isto é importante também para a eficácia.
P1: O Conselho pode e deve actuar em termos objectivos. Não pode nunca é
fixar critérios subjectivos para a distribuição dos processos. Se um juiz é mais
apto em termos de competências treinadas para certo tipo de processos, é a
ele que devem ser atribuídas essas categorias de processos. Tão só isso. O
critério não pode ser o da maior ou menor qualidade efectiva do juiz. Isto é uma
questão de recursos humanos. Um juiz ou serve ou não serve para juiz.
P3: Tem que haver qualificação, mas não subjectividade.
OPJ: O que é que quer dizer?
P1: Quero dizer que os critérios de atribuição dos processos não devem ser
fixados em função da melhor ou pior qualidade do juiz.
P3: Têm de ser previamente definidos. O processo “x” vai para a
especialização A e não para o juiz A. Podem-se definir critérios prévios para
que cada juiz tenha o seu lugar. Não é depois…
OPJ: Mas parece haver aqui uma diferença. Para P1 a especialização é
apenas na unidade orgânica, para si a especialização pode ser do Sr. Juiz A.
P3: Tem de ser. Ou então é dos 2, mas isso não altera o resto. O que interessa
é que seja previamente definido.
OPJ: Estamos a falar de casos complexos dentro de organizações que já têm
especialização, tribunais cíveis. Estamos a falar de tribunais de família.
P3: Trabalho, tribunais de comércio, já há muitas especializações.
OPJ: Estamos no fundo na questão da litigação complexa.
Anexo B
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P4: Para a maior parte dos juízes seria muito bom que na distribuição se
pudessem distinguir quais os processos complexos, porque a distribuição não o
faz.
P1: Num tribunal especializado pode haver ainda uma segmentação de
especialização. Creio que sim! Mas, uma segmentação objectiva e não em
função da maior ou menor qualidade do juiz.
OPJ: A sua ideia é a especialização por secções? Ou admite que num
determinado tribunal em que se defina que o Juiz A é uma pessoa com
especialidade, por exemplo, no direito de consumo, então todos os processos
de direito de consumo vão para ele?
P5: Temos de ser rigorosos quanto aos conceitos que estamos a utilizar
quando falamos de especialização ou de distribuição de processos. As regras
de especialização dos tribunais podem ser mais ou menos ricas, podem
obedecer a critérios de competência, de matéria ou direito substantivo e pode
ter a ver com espécies de processo, valor, tudo isso. Obviamente que a criação
de tribunais com determinada competência leva a determinadas regras de
distribuição, isto é, os processos em vez de serem distribuídos no tribunal de
competência genérica, são distribuídos de acordo com a matéria, valor ou com
a espécie processual. A partir do momento em que o processo entra no
tribunal, que é distribuído de acordo com as tais regras de equilíbrio absoluto, é
distribuído ao juiz A ou B, colocado em determinadas secções,
independentemente das características do processo. Depois, dentro do
tribunal, pode haver uma gestão do tribunal que atribua determinadas espécies
de processo ao juiz A e ao C. O que podemos questionar é se esta segunda
situação é possível ou não. Por razões de gestão, é possível ou não, dentro do
mesmo tribunal, que o processo – estando já atribuído por competência
especializada e já depois de distribuído – seja atribuído ao juiz A, B ou C por
via das regras de gestão do tribunal e processual?
Eu penso que relativamente às regras da competência especializada não existe
qualquer travão legal. Quanto mais especialização houver e adequada com o
tipo de litigância, melhores respostas relativamente à procura teremos. Temos
uma oferta mais qualificada. Quanto às regras da distribuição, eu penso que,
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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pode existir alguma flexibilidade mas sempre com critérios predeterminados;
mas aí as coisas já podem ser mais sensíveis...
Há áreas em que podemos entrar sem problema nenhum e há outras áreas
que são mais sensíveis. Aqui o grande obstáculo a ultrapassar é saber se há
regras predeterminadas objectivas, e essas têm que ser instituídas. A partir do
momento em que passamos o obstáculo das regras predeterminadas, estamos
num terreno muito perigoso, que é fazer gestão processual caso a caso, o que
é sempre de evitar. Podemos contender com os princípios do sistema que
imperam neste domínio, do juiz natural, da clareza, da transparência, da
imparcialidade, levando a que determinado processo seja adjudicado a um
tribunal, secção ou juiz em concreto, por via de critérios que não são
predeterminados e conformes com essa clareza, transparência, imparcialidade.
Quanto mais cedo estiverem definidos os critérios relativos à gestão processual
dentro de cada caso, melhor, e essa gestão já se faz actualmente, como é o
caso da distribuição de megaprocessos que não têm ver com as regras
instituídas na codificação processual civil. Já se faz uma distribuição à parte
destes processos. Já estamos a avançar em termos de gestão processual. Já
se faz a atribuição de colectivos ao julgamento de determinados casos quando
certo processo pode vir a ter impacto no serviço de determinado tribunal ou
secção. Isso já se faz! Faz-se actualmente, tentando responder racionalmente
a determinados problemas do sistema, a determinados bloqueios, mas a
verdade é que mereceria uma atenção especial esse tipo de situações,
predeterminando-se as regras..
OPJ: Quais seriam essas regras?
P5: Há outra distinção que aqui se terá de fazer: por um lado, relativamente a
processos a entrar no sistema, isto é, processos antes da distribuição; por
outro, processos pendentes. A questão levantada no início levanta questões
quanto a processos pendentes, designadamente quando há bloqueios perante
uma secção que está completamente paralisada.
OPJ: Mas que regras da distribuição, até onde se pode ir nos processos novos,
que entrem num tribunal?
Anexo B
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P5: Eu penso que se pode ir até ao ponto em que seja previsível determinada
situação e esteja já prevista uma regra predeterminada legalmente.
OPJ: Por exemplo?
P5: Quanto mais rica for a regulamentação, melhor.
OPJ: Mas rica em que sentido?
P5: A partir do momento em que se pode dizer que determinado processo é
entregue a determinado juiz segundo regras predeterminadas e que as
situações estão já previstas segundo uma regulamentação geral e abstracta,
que apela a critérios objectivos… A verdade é que saber que determinado caso
vai ser solucionado por determinado especialista tem efeitos perversos. Tem a
ver com o aspecto de todos os litigantes quererem ver o seu litígio tratado por
aquele juiz. Não é como no sistema britânico, em que os juízes mais
qualificados têm uma longa lista de espera.
OPJ: Eu não estou a ver que, estando as regras predefinidas, se fosse colocar
em causa o princípio do juiz natural
P5: Eu penso que não. O que se pode dizer é que em determinado tribunal, por
razões de gestão processual, os processos que entrarem a partir de agora com
determinada característica de litígio, objectiva, predeterminada, passa a ser
julgado, apreciado por uma secção onde serão colocados juízes com a
competência A, X, Y, Z, para conhecer determinado litígio. Por isso é que digo
que é muito importante distinguirmos aqui as tais dificuldades acrescidas no
que respeita ao solucionamento dos bloqueios ou disfunções nos processos
pendentes…
OPJ: Então entenderia que seria assim: a partir do dia 1 de Janeiro na
circunscrição “x”, os processos, por exemplo, de conflito de consumo são
distribuídos à 1ª secção, porque lá foi colocado o Sr. Dr. “y”?
P3: É importante na garantia das partes que numa escolha especializada não
corresponda a um “juiz unipessoal”.
P5: Não pode é ter só um.
OPJ: Há comarcas que só têm um juiz.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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P5: Posso pegar no exemplo das varas cíveis de Lisboa? Eu estive lá alguns
anos e havia lá determinado tipo de litígios de certas empresas que levantavam
todas as mesmas questões processuais. E o que é que aconteceu? Vários
juízes decidiram de forma diferente, mesmo do ponto de vista processual.
Quanto a mim, se houvesse uma adequada gestão processual poder-se-ia
dizer e, antevendo o futuro, que determinado tipo de litigância começa a
aparecer em tribunal e havendo juízes especializados para o tratamento
daquela matéria, obviamente que se teria uma gestão processual com ganhos
de eficácia maiores, e para combater determinada afluência de litigância seria
necessário criar duas ou três secções especializadas naquela matéria ou uma
secção especializada naquela matéria. Pode funcionar quanto aos processos
pendentes? Acho que muito dificilmente. Quanto à acção que vai entrar no
tribunal, acho que sim. Se as regras estivessem predeterminadas e com a
colocação dos juízes lá, 1, 2, 3, 10, 15, 20, tanto faz. Tem é que haver uma
predeterminação. Tem de haver garantias. Eu penso que podemos ir com
mecanismos de gestão até ao ponto de não se retirar determinado processo
que está atribuído a certa secção e juiz, por razões de gestão e eficiência. A
grande questão, quanto a mim, é relativa aos processos pendentes.
P1: Eu acho que a prática e a experiência nos vai levar a muito longe e vai
resolver um conjunto de problemas, que hoje já se fazem sentir e são
resolvidos de uma forma muito pouco ortodoxa. A questão da atribuição de um
colectivo a um mega processo evidentemente é um exemplo disso.
OPJ: Como resolver rapidamente questões como se um juiz está doente ou
não tem capacidade para gerir o processo, porque temos de sempre ver a
questão do cidadão.
P3: É uma questão de eficácia.
OPJ: De eficácia e de qualidade.
P3: Eu queria voltar um bocadinho atrás. Penso que só é possível fazer como
escolha a secção, não podemos chegar à subjectivação total de escolher em
razão da qualificação de um juiz e não pode ficar a ideia de que se pode
escolher o juiz. Não se pode escolher o juiz. É quase igual se criarmos prévios
mecanismos e escolher uma secção. Os juízes é que têm o direito, e podem
Anexo B
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achar estranho, de concorrerem a essa secção. Começa a entrar-se nos
problemas da definição objectiva da situação subjectiva.
P4: A nova LOFTJ aponta no sentido do juiz com determinada especialização
poder concorrer a certa secção.
P3: Quando digo secção é para distinguir da escolha pessoal.
P4: Imaginemos um colega que tem uma especialização que lhe é reconhecida
pelo Conselho para tratar de propriedade industrial; seria muito proveitoso que
em termos de distribuição aqueles processos fossem parar a esse juiz
especialista. Também concordo que quaisquer regras, a existirem neste
sentido, têm de ser prévias à distribuição e predeterminadas.
P1: Com estas novas regras é possível que o Conselho diga que para esta
secção vão estas, estas e estas categorias de processos e depois o juiz há de
resolvê-los.
P4: Eu ouço muitas vezes os juízes queixarem-se, na área do crime, que lhes
calham processos com problemas conexos com fraudes fiscais, que se vêem
aflitos, porque não percebem da matéria.
P5: Precisam de ganhar experiência, e a seguir já a terão para gerir e
solucionar tais casos. Aqui há uma nuance, mesmo com regras
predeterminadas, pode existir uma regra que diga, não obstante a estrutura de
um determinado tribunal estar assente em regras de colocação e distribuição
de processos, o Juiz Presidente de acordo com o CSM pode criar uma secção
para além, no sentido de acorrer a uma situação temporal, isto é, para dar
resposta a mudanças de litigâncias conjunturais. O que leva a que não seja
necessário criar um diploma nesse sentido.
OPJ: Mas, a criação de uma secção pressupõe sempre um volume de litigação
que signifique a afectação de meios.
P5: Eu aqui não dizia que era criada, não com uma estrutura. “Criar uma
secção” era aqui entendido no sentido de criar uma secção de modo a afectar
temporalmente juízes e funcionários a um determinado trabalho.
P1: Naqueles milhares de processos da Sonae como é que se respondeu a
isso?
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
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P4: Penso que a DGAJ está disponível para reuniões com o mandatário do
caso porque o Juiz Presidente não quer reunir com eles, mas o problema já
está ultrapassado em parte. As injunções já caíram no Porto, já não caem na
Maia. Quanto às acções declarativas, não podemos fazer nada.
P2: Julgo que a lei deveria possibilitar ao Juiz Presidente uma total liberdade
de gestão do processo, mesmo quanto à personalização do juiz para resolver
determinado processo, evitando no entanto sempre violações do princípio do
juiz natural. Ou seja, não vejo qualquer problema que permita dizer: a partir de
agora todos processos de injunção (e não aquele, em concreto) vão ser
julgados pelo juiz A que está disponível para isso, tem capacidade para o fazer,
tem conhecimentos técnicos diferenciados face aos restantes. Julgo que aqui
não há problema nenhum de violação do princípio do juiz natural, desde que se
garantam regras gerais, mesmo que estabelecidas pelo juiz presidente, não
assentes em princípios arbitrários.
OPJ: Estivemos a falar do que entra e agora gostaria de saber a opinião sobre
o que está pendente. Como podemos gerir situações como, por exemplo,
quando o juiz está doente, ou quando não é capaz de responder a determinado
volume processual.
P6: Entendo que o grande problema é filosófico, de saber onde acaba o juiz
natural, e onde começa ou onde termina a especialização. Parece-me filosófica
esta questão e tem que ser resolvida em sede legislativa, porventura
constitucional. Ao contrário do que corre nos tribunais comuns, nos TAF a
distribuição não é feita por secção ou juízo, mas é feita por juiz. Num tribunal
onde haja 10 juízes, a distribuição de harmonia com a lei em vigor e regras do
Conselho é feita a um juiz. Determinado o juiz, determina-se depois
acessoriamente a unidade orgânica. Há aí um grande desafio, com uma
limitação. De harmonia com a lei que temos, o Presidente dos TAF pode propor
ao Conselho os critérios que irão presidir à distribuição, no respeito pelo
princípio do juiz natural. Este limite obriga-nos a pensar como é que, se só há
um juiz para aquela matéria, eu estou já a definir o juiz para o processo. Aqui é
a questão que eu deixava para os outros. Mas se porventura naquele tribunal
puder ou chamar à distribuição 2 juízes, eu pergunto se já está respeitado o
princípio do juiz natural. Não estou a dizer que é o Dr. A ou o Dr. B.
Anexo B
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Nos TAFs funciona já desde 2004 um sistema informático que tem sido muito
difícil de gerir e entender, mas que vai distribuindo os processos pelos juízes
aleatoriamente, respeitando o princípio do juiz natural, com algumas distorções,
ora sobrecarrega mais um juiz ou outro, obrigando o presidente do tribunal,
com o apoio remoto dos técnicos da justiça, a fazer alguma alteração,
corrigindo em termos numéricos a distribuição. Para que o juiz A não esteja a
receber só processos urgentes e o juiz B outros.
OPJ: E o Juiz Presidente pode mandar parar a distribuição para um
determinado juiz?
P6: Já estamos a entrar na segunda fase da pergunta. Em termos de
distribuição inicial nos TAFs, tudo se faz respeitando o princípio do juiz natural.
Nos TAFs temos uma maior capacidade. A reforma de 2004, proporcionou
trabalhar com o novo modelo. Neste novo modelo a redistribuição dos
processos está expressamente prevista na lei. No fundo são os poderes do
presidente que pode e deve, no respeito dos interesses dos administrados,
redistribuir o processo, ao abrigo do princípio do juiz natural, respeitando todos
esses princípios. E nos tribunais em que haja só um juiz, deve propor ao
Conselho que designe outro juiz para trabalhar naqueles processos. Aqui é que
o contencioso administrativo tem também uma particular novidade, ter um juiz
no Tribunal Fiscal de Sintra que está simultaneamente afecto ao TAF de Beja.
Não podendo estar nos dois locais ao mesmo tempo, não tem de se deslocar
obrigatoriamente todas as semanas ao Tribunal de Beja, podendo trabalhar nos
processos a partir do Tribunal de Sintra, e só tendo que ir a Beja, se for
necessário, para inquirir uma testemunha, para presidir a uma audiência de
interessados, a um julgamento ou a um colectivo com os juízes. Mas mesmo
quanto a um colectivo, sem necessidade de produção de prova, o sistema
permite que esse colectivo seja feito com o juiz em Sintra.
Isto dá ao Juiz Presidente e ao Conselho a possibilidade de gerir estas
situações. Não têm sido tão céleres e eficazes estas medidas, porque o
Conselho tem dificuldade em gerir esta possibilidade. Optou no início por uma
situação diferente – ocupado com os processos tributários, que eram aos
milhares – e nunca deu ao Conselho o passo que desde Janeiro de 2004
alguns reclamavam, que era o de, respeitando o princípio da especialização, os
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
278
processos nos TAFs serem para despachar equitativamente, fossem
administrativos ou tributários.
Manteve-se sempre ancorado no pressuposto de que o juiz administrativo é
para as questões administrativas e o tributário para as fiscais. O juiz
administrativo tramita mensalmente 100 processos, em Sintra, e o tributário mil
e tal processos, com a mesma formação, ganhando o mesmo, trabalhando as
mesmas horas.
OPJ: Mas, na jurisdição comum, o legislador não terá ido tão longe no sentido
de permitir ao Juiz Presidente alguma competência na gestão dos processos,
dando-lhe por exemplo a possibilidade de mandar parar a distribuição para
determinados juízes. Como é que vêem essa questão?
P1: Isto tem a ver com a gestão de recursos humanos. Os tribunais precisam
de compreender que quando se pára a distribuição e se remetem mais
processos a um juiz, tem que haver aceitação deste.
OPJ: Eu encontrei no terreno um receio muito grande nos juízes quanto às
novas competências do Juiz Presidente.
P2: É o receio da mudança. Um receio quanto ao Juiz Presidente, sobre o seu
poder. O que nos vai acontecer?
P1: A questão é a seguinte: estamos em 2008. Em 2001, quando começámos
estas reformas todas, se falássemos aos juízes sobre questões de gestão a
reacção epidérmica era violenta. Em poucos anos demos um salto, mas antes
era um pouco como transportar a lógica de uma empresa para uma igreja. Há
problemas culturais a vencer, talvez por pequenos passos. É preciso conhecer
o terreno.
P4: Também acho que as coisas devem ser absorvidas.
P5: Mas demos nos últimos oito anos um salto em termos culturais.
P4: Mas a formação que ministravam no CEJ, há uns anos atrás, inculcava nos
auditores a ideia de que eram especiais, intocáveis e até hoje há colegas que
têm uma postura muito distante e arrogante. É por isso que, por vezes, as
magistraturas também são atacadas e, nesses casos, com razão.
Anexo B
279
P5: Quanto a mim, isto não é só um problema do juiz português. Podem haver
concepções diferentes de Juiz Presidente e de funcionamento dos tribunais. O
que as pessoas têm receio, e isso pode acontecer, é dum modelo de Juiz
Presidente, tal como existe em França – na sequência de uma perspectiva
administrativista da organização judiciária – onde essa figura é vista como um
superior hierárquico com poderes de estabelecer determinados tipos de
factores rígidos de gestão e de, eventualmente, criar um padrão de
funcionamento seja ao nível das respostas processuais, a nível de incidentes,
ou, ainda, estabelecer uma redistribuição um pouco autocrática dos processos.
É desse tipo de modelo do Juiz Presidente que as pessoas têm medo.
P1: É um perigo real.
P5: E assistia-se nos TA, pelo menos que eu conheça de alguns colegas que
reflectem esse relacionamento, algumas experiências desse género. É preciso
compatibilizar também em termos culturais um estilo de funcionamento de Juiz
Presidente, em que o nível de competências a atribuir seja correspondente com
um determinado paradigma cultural. Isto é, actualmente o juiz português é
reconhecido pela sua independência, pela sua autonomia nas decisões, um
pouco também pelo sistema que temos, que permite um espaço de liberdade
dentro do tribunal, que não é compatível muitas vezes com o funcionamento
dos sistemas judiciais que nós conhecemos. É que, por via da gestão
processual e da organização dos serviços, podemos implicar nas decisões que
vão ser tomadas. Uma pessoa com uma determinada pressão de trabalho
responde com determinada qualidade de produto do seu trabalho e isso pode
ter implicações ao nível do fundo da questão e no sentido das decisões. São
modelos que estão em jogo. De um lado, um modelo de Juiz Presidente mais
hierárquico, mais burocrático; do outro, temos o modelo do juiz anglo-saxónico,
escolhido como se fosse um entre iguais, com regras mais consensualizadas,
com uma gestão mais compatível, com um diálogo diferenciado. Os receios
dos nossos colegas, que também são nossos, tem a ver com o tipo de
respostas vamos ter. É preciso definir se teremos Juízes Presidentes
escolhidos entre os desembargadores ou tribunais superiores, ou não. Vindo
um juiz de um tribunal superior, pode-se correr o risco de vir a ser incorporada
à sua gestão toda aquela dimensão processual que ele tem como paradigma
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
280
jurisdicional, vendo os outros como seus subordinados. Também é importante
perceber se ele tem mais competências ou se deve articular isso com o
Conselho Superior de Magistratura. Eu, por exemplo, daria muito mais poderes
ao Juiz Presidente, em termos de gestão do tribunal, a nível de gestão de
agendas e de disponibilidade de salas de audiência, do que relativamente à
gestão processual. Eu acho que a gestão processual tem de ser
compatibilizada muito com o CSM.
P4: Se fosse só para isso não era preciso o Juiz Presidente.
P5: Eu penso que não. A nível da gestão do tribunal é muito importante
assumir estas responsabilidades.
P4: Aqui é importante que o juiz vá além das competências administrativas.
P5: Isso das competências administrativas não sei o que é. Temos de as definir
previamente.
P4: É isso que disse das agendas.
P5: Não são meramente administrativas. Nada disso! A gestão dos tempos de
audiência é muito importante.
P4: Mas não está a exercer aí uma competência jurisdicional, se o juiz tem
uma sala ou não tem. O Conselho tem um grupo de inspectores que vai de 4
em 4 anos ao tribunal e é preciso que vá mais vezes, de forma periódica. Ainda
recentemente iniciamos uma recuperação num determinado tribunal. Sabe que
a maior parte dos processos dum determinado juízo desse tribunal estão há 6
anos sem serem movimentados? Alguém fez alguma coisa? Isto foi
denunciado?
P1: O que falta é uma avaliação horizontal do sistema.
P5: Acha que era ao Juiz Presidente que caberia solucionar esses assuntos? A
nível de gestão de processos qualquer competência do Juiz Presidente deve
ser articulada com o consenso do CSM. O que eu disse é que a nível da gestão
processual tem que haver uma articulação muito directa com o CSM.
OPJ: Mas admite que o Juiz Presidente, em termos de qualidade (…)
Anexo B
281
P5: Parece que há aqui a ideia de que o CSM é uma entidade colocada na Lua
e nós na Terra, sendo difícil aceder a ela. Essa visão é completamente errada.
A nova lei vai criar articulações, espero que isso seja conseguido, entre o Juiz
Presidente e o tribunal, através de um núcleo local, uma delegação do
Conselho junto dos tribunais.
P5: Eu penso que esses problemas do funcionamento do CSM são os mesmos
problemas que vai ter o Juiz Presidente. O Juiz Presidente está ali, mas tem os
meios que o Conselho lhe der para resolver os problemas.
OPJ: A que meios se está a referir?
P5: Todos os meios e mais alguns. Em tribunais com 6 anos de atraso, será o
Juiz Presidente a exigir um esforço suplementar dos outros juízes? Há uma
baixa de um juiz, é ele que vai solicitar aos outros que fiquem com mais
processos, passando a ter uma agenda de 7 anos?
P4: Provavelmente, se esse Tribunal tivesse um Juiz Presidente nos moldes
que se perspectivam, não havia processos parados há 6 anos. Dou o exemplo
das varas cíveis de Lisboa. Sabe o que se lá passava em termos de
elaboração da conta? Havia varas com contas por elaborar há 4/5 anos. E
havia varas com as contas em dia, mas todas essas varas tinham os seus
escrivães contadores. A DGAJ reuniu com os senhores secretários e com os
senhores escrivães contadores, organizou com os mesmos um grupo de
trabalho e os mesmos efectuaram todas as contas das varas cíveis de Lisboa.
Esta situação poderia ter sido resolvida há muito tempo caso existisse alguém
no Tribunal com responsabilidades de gestão ou, provavelmente, nem sequer
se teria chegado a tal situação em termos de pendências. Bastava que
existisse alguém amigo do Tribunal.
P5: Todas as pessoas que estão nos tribunais são por norma amigas dos
tribunais.
P4: Mas cada um preocupa-se apenas com os seus próprios processos.
Acresce que se existir um responsável próximo do Tribunal, o mesmo tem
muitas mais possibilidades, porque lá está, de resolver o problema.
P1: Tem razão. O presidente não vai ser só uma extensão do CSM, mas muito
mais do que isso.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
282
P5: O que eu defendo é que a nível da gestão processual tem de haver uma
articulação muito próxima. Seria bom que, relativamente a outras dimensões, o
Juiz Presidente tenha mais autonomia, relativamente à gestão e de distribuição
de processos tem que haver articulação com o Conselho Superior da
Magistratura. Estamos muito próximos do núcleo da função jurisdicional.
Estamos a entrar no gabinete do juiz e a dizer que tudo vai se desenvolver
desta forma quanto a este processo e o sentido da decisão talvez fique
condicionado. Relativamente a outras matérias pode-se dar mais competência
ao Juiz Presidente, em relação à gestão processual, sobretudo a nível de
distribuição de processos, deve haver uma articulação maior com o CSM.
P5: Não posso admitir que Juiz Presidente, sozinho, crie mecanismos de
distribuição do processo. Até por razões que têm a ver com a legitimação
interna.
P1: A distribuição dos processos é diferente, consoante seja nos tribunais
comuns de 1ª instância ou nos TAFs, porque de facto nos TAFs as coisas
funcionam um pouco como nos tribunais superiores, a distribuição é feita aos
juízes pelo Juiz Presidente. Nos tribunais judiciais é um pouco diferente. Nos
tribunais superiores, a redistribuição de processos é impensável, a não ser que
um juiz mude efectivamente de tribunal. Há mesmo uma norma na Lei
Orgânica que prevê que se um juiz, no mesmo tribunal, mudar de secção, os
processos que antes lhe tenham sido distribuídos continuam consigo. Nos
tribunais de 1ª Instância, em termos práticos, a situação dos processos serem
distribuídos por unidades orgânicas facilita mais a afectação dos juízes, num
quadro de auxílio, a soluções de emergência de serviço, como as de quebra de
produtividade de um juiz, por doença ou outros motivos, e permite a
possibilidade da redistribuição na prática, que não é então vista como
incompatível com o sistema.
P5: Também é preciso que se diga que o CSM actualmente tem tido alguma
dificuldade em trazer mecanismos de redistribuição de processos. Não tem
utilizado esse mecanismo. Tem sobretudo usado para compatibilizar estas
situações, pois se calhar não tem recursos humanos para tudo, através da
colocação de juízes auxiliares ou juízes da bolsa de juízes…
Anexo B
283
OPJ: Mas, a lei dá resposta a todas as situações?
P1: O que eu acho é que existem situações para as quais a lei já prevê
remédio. Se existe hoje uma determinação do Conselho para que um juiz, em
acumulação de serviço, passe a despachar processos antes atribuídos a outro
juiz, o Conselho já está, com isso, a fazer distribuição de processos. Porque é
que não existe aí violação do princípio do juiz natural? Porque tem sido
entendido que a intervenção é feita com o consentimento do juiz do processo e
do outro juiz auxiliador. O processo não é retirado àquele juiz sem que ele
concorde e numa situação justificada.
OPJ: Desde que ele concorde, tudo bem? Já pode ser retirado?
P1: A Lei Orgânica fala no consentimento…
OPJ: Mas isso é outra coisa.
P5: Isso não é mudar.
P1: Por exemplo num caso recente e conhecido, os juízes que intervinham no
tribunal colectivo pediram escusa e o pedido foi-lhes deferido. Verifico que para
os substituir se procuraram juízes disponíveis para formar aquele colectivo em
outros tribunais, alguns bem longe do tribunal em causa e sem integrarem a
cadeia legal de substituição. Não deveria ser assim. A afectação de juízes sem
seguir os mecanismos de substituição legal previstos na lei não respeita o
princípio do juiz natural. Se há uma redistribuição ad hoc podemos estar na
mesma situação. A lei prevê mecanismos de substituição legal para situações
de impedimento.
OPJ: São tantos os casos na prática, então porque há tanta reacção quando
queremos consagrar regras mais flexíveis? Se for informalmente, tudo bem.
P1: É que estamos também perante questões de política de gestão de recursos
humanos. Um juiz que esteja a trabalhar muito bem e que, por causa disso,
fique com menos processos pendentes é confrontado, em tensão permanente,
com outro juiz do mesmo tribunal que trabalhe menos e que deixe acumular
processos por resolver. Se ele for convocado para prestar auxílio ao colega
que trabalhe menos bem, sem que tenha de dar o seu consentimento, ele pode
tender, no futuro, a não actuar tão rapidamente face à ameaça latente que
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
284
impende sobre ele de ter de trabalhar muito mais apenas porque trabalhou
muito.
OPJ: Não podemos confundir avaliações de desempenho e direitos do
cidadão. Não vamos prejudicar o cidadão por uma avaliação interna.
Obviamente, esse juiz tem de ser avaliado em função do seu desempenho.
P1: Isso é a politica de recursos humanos.
P3: Nós estávamos a falar de problemas de redistribuição sem analisar, pelo
menos numa primeira fase da nossa análise, as propostas de alterações que
trazem um papel completamente diferente no sentido de maior preponderância
do Presidente. Mas as questões de paragem de redistribuição existem e são
acompanhadas pelo CSM há muitos anos. Todos os dias, há juízes auxiliares,
há juízes em acumulação a substituir os juízes em dificuldades. Há colectivos
ad hoc e tudo isso é legal e actual.
A primeira pergunta é objectiva, a segunda é subjectiva. É melhor que seja
resolvida pelo presidente? A minha resposta é que seja resolvida por quem
puder resolver melhor.
P6: Deixe-me só frisar 2 aspectos no que tem a ver com a gestão e com o
melindre da pessoa do Juiz Presidente, porventura a reclamar que a escolha
seja bem criteriosa e não seja do mesmo nível do juiz desembargador. Dou o
exemplo do que acontece no contencioso administrativo. A lei do processo
administrativo tem um preceito legal que permite o julgamento por formação
alargada, e em alternativa, o reenvio prejudicial. Dito de outro modo: no tribunal
de Sintra, para uma questão difícil nova, que suscita problemas e que à partida
indicia que vai repetir-se naquele tribunal várias vezes, o Juiz Presidente tem
em alternativa 2 poderes: um, de convocar os juízes todos daquele tribunal
para julgarem aquela questão em 1ª instância, ou, em alternativa, o Juiz
Presidente apresentar um pedido de decisão ao tribunal superior, STA, em
reenvio prejudicial. Os Srs. Juízes e as Sras. já perceberam claramente a
diferença entre estas 2 opções. Direi que no contencioso administrativo
ninguém ainda até hoje fez o julgamento de formação alargada, para que todos
os juízes reflectissem e decidissem aquela questão. Mas já em alguns tribunais
foi requerido o reenvio prejudicial em questões reputadas importantes.
Anexo B
285
Também de referir a possibilidade que temos no contencioso administrativo,
pouco usada também, do julgamento dos processos em massa, que permite de
grosso modo, dito a correr, que entrando 40, 50, 100 processos, o Juiz
Presidente, distribuídos que sejam todos, anda um só processo que depois
será julgado pelos juízes todos do tribunal.
OPJ: Que papel pode ter o Juiz Presidente nesta questão de uniformização de
certos procedimentos ou decisões para determinadas questões?
P5: A uniformidade do sentido da decisão tem a ver com o funcionamento do
próprio sistema, com a função judicial. Pode ter-se ganhos de uniformidade a
nível de procedimentos, tarefas, rotina, de tudo isso. A nível do sentido das
decisões não é possível, a não ser nos casos do contencioso administrativo,
que eu acho muito criticáveis.
P5: Podem existir são as coligações.
P3: Há mecanismos de apensação. O direito do trabalho resolve isso há 50
anos.
P5: Mas, o Juiz Presidente pode, por ele próprio, tendo conhecimento das
situações, impulsionar a apensação?
P2: A questão suscitada é um problema jurisdicional que as normas de
processo resolvem. Pode entender-se que isso pode ser atenuado através da
atribuição de alguns poderes jurisdicionais ao Juiz Presidente podendo suscitar
através do processo a resolução desse tipo de problemas. É uma hipótese.
Levará a que se atribua ao Juiz Presidente alguns poderes jurisdicionais. Eu
dou um exemplo: no Tribunal Constitucional já existem mecanismos que
permitem aos juízes, em determinadas circunstâncias, quando se verifica que
há várias decisões iguais, julgar sumariamente as questões e permite nem
sequer conhecer delas.
P5: O nosso sistema não é compatível com retirar ao juiz do processo
determinadas competências jurisdicionais e atribuí-las a outro, nomeadamente
ao Juiz Presidente. Não está na nossa tradição. A função jurisdicional tem sido
entendida no nosso sistema como abrangendo não só as questões relativas à
prova dos factos e à apreciação do direito, mas também tem a ver com o
andamento dos processos.
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
286
OPJ: Na vossa perspectiva, isto tem de ser resolvido por normas processuais.
P5: Mas pode-se a atribuir ao Juiz Presidente a faculdade de reunir os juízes
que são titulares daqueles processos em causa e combinar entre eles no
sentido de resolver por via processual essa questão.
Mas a lei pode prever que o Juiz Presidente, em determinados casos,
convoque os juízes no sentido de alcançar resolução…
P4: O poder político não entende que sobre a mesma questão de facto sejam
proferidas decisões que em matéria de direito julgam em termos opostos. Se o
poder político não entende isto, o cidadão também não entende. Veja-se a
questão das decisões que têm sido proferidas pelos TAF a propósito do
pagamento das aulas de substituição aos professores. Houve 5 decisões a
condenar o Estado e houve para aí 20/ 30 no sentido contrário. Eu pude ouvir
pessoalmente o Primeiro–Ministro e ele não entendia isto. Devia haver um
mecanismo qualquer para evitar que estas situações fossem tão frequentes.
OPJ: Num mesmo tribunal, exactamente a mesma situação de facto e de
direito, uns cidadãos ficaram sem a casa e outros não. As pessoas têm em
mente a dificuldade em entender essas situações. Todos eram condóminos no
mesmo prédio.
P3: Não se deve corrigir na 2ª instância. Deve ser corrigido mesmo “cá em
baixo”, logo na 1.ª instância.
P5: No caso concreto as questões não são só de um juiz. Se o advogado fosse
o mesmo interporia uma acção sobre todas as questões assim lançadas.
OPJ: Não se pode é dizer que é estratégia das partes. Vamos olhar para as
coisas do ponto de vista do cidadão. O facto de dizermos que sempre assim foi
não quer dizer que sempre assim continuará a ser.
P5: A uniformização do direito não é só resultado do trabalho dos juízes. Não é
só resultado de termos determinadas regras e os juízes não complementarem
bem as regras. Tem a ver também com a estratégia das próprias partes.
P5: O advogado não fez isso porque não quis correr o risco de ter uma decisão
uniforme, porque a questão era controversa e tentou espalhar as acções por
diversos juízes, a fim de obter uma solução.
Anexo B
287
OPJ: A estratégia do advogado de uma parte, que é comum a todos, foi essa.
Os outros, os réus são várias partes.
P5: Os réus podiam ter pedido a apensação dos processos. Não pediram. O
funcionamento do próprio sistema não é assim tão mau porque efectivamente
dá solução a esses casos. A intervenção do Juiz Presidente pode
complementar esse sistema. Era bom é que ele não tivesse competências
jurisdicionais ao nível da administração e gestão de um concreto processo.
OPJ: Mas, o papel do Juiz Presidente nessa matéria pode passar apenas por
promotor da discussão?
P2: Não vejo problema nenhum nesse papel mobilizador, mas esse papel tem
um problema no actual sistema jurídico. Não sei até que ponto isso poderá criar
problemas.
OPJ: Que problemas?
P2: Não há uma contraposição poder do juiz presidente a um dever das partes.
P6: Não há uma cultura entre os magistrados portugueses de reunião, a não
ser a reunião obrigatória do colectivo, reuniões a 2 ou 3. Mas uma reunião de
tribunal, não há essa cultura. Os juízes com quem trabalho agora têm todos
uma formação específica e tive também contacto com outros juízes da
jurisdição comum que passaram pela jurisdição administrativa. É claro e
manifesto que qualquer ideia de uma reunião, sentar 3 juízes numa mesa, a
reacção é claramente negativa. E isso é cultura.
OPJ: A formação é importante para ganharmos essa cultura, para
ultrapassarmos isso. O que devemos fazer?
P1: A questão da apensação das acções não tem nem nunca teve por
objectivo uniformizar jurisprudência. É uma questão de economia processual
para resolver mais rápido um conjunto de processos iguais. Na uniformização
de jurisprudência, há um trabalho pedagógico, que de facto os presidentes dos
tribunais podem fazer, como fazem os presidentes das secções dos tribunais
superiores, sobretudo nas criminais, que nem sequer têm distribuição de
processos. A sua função é praticamente ver projectos de acórdãos e diferenças
nas decisões e convencer os colegas através de uma discussão para
eventualmente as eliminar. Quem trabalha em colectivo sabe das dificuldades e
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
288
das discussões prolongadíssimas sobre certas interpretações jurisprudenciais
em concreto, que podem ser uma vezes uniformizadas por essas discussões
para obtenção de consenso, mas outras vezes não é possível. Temos uma
sociedade democrática que funciona assim. Há também as questões da prova
que é feita ou não num determinado caso. Já tive casos em que julguei o caso
penal e o cível, tratando-se dos mesmos factos, e condenei no caso cível e
absolvi no penal e as pessoas não compreendem as questões de prova, que
falharam numa situação e não na outra. E no fundo quem faz evoluir a
jurisprudência são muitas vezes os advogados. Os advogados colocam as
questões e os juízes decidem de uma ou outra maneira. Muitas vezes um
determinado advogado coloca uma questão que é exactamente igual a outra,
mas apresenta-a de um determinado ângulo de ponto de vista, quer jurídico,
quer factual, que conduz a certa decisão. Outro não apresenta desta maneira e
leva a uma solução completamente diferente. Acho que não há outra maneira
de resolver esta questão. Mas acho que o presidente pode reunir os colegas e
procurar, pela discussão, uniformizar uma determinada solução.
P4: Acho que seria muito útil que o Juiz Presidente tivesse essa missão.
P1: Na verdade, hoje em dia, os juízes já se contactam muito para indagar
como cada um está a resolver uma determinada questão interpretativa. A
discussão, que já se faz de uma forma informal, poderia ser feita de uma forma
organizada por um Juiz Presidente.
P4: Eu já tive essa experiência nos TAs. Tínhamos quinzenalmente reuniões
no TA do Porto, agendadas pelo Juiz Presidente com o colectivo de 17 juízes
na quais estava presente também um professor, cuja presença se revelou de
grande utilidade para os juízes e para aquele professor, onde eram colocadas
várias questões práticas. A preparação destes magistrados para lidar com
estas matérias não era ainda muito sólida, tínhamos sido recentemente
formados e o direito administrativo acabara de passar por alterações muito
profundas, daí que sentíssemos como muito úteis as reuniões onde as várias
questões eram discutidas. Por vezes surgiam questões com que um colega já
se tinha deparado e que ainda não se nos tinham colocado, como por exemplo,
problemas sobre quem eram os juízes competentes para certos processos,
designadamente, para os processos executivos das decisões proferidas pelos
Anexo B
289
tribunais administrativos liquidatários, se eram os novos ou os juízes antigos.
Essas questões e outras eram debatidas. Sobre a questão referida havia
diferentes entendimentos, uns sustentavam que as mesmas eram da
competência do juiz liquidatário; outros diziam que aceitavam que as
execuções fossem tramitadas pelo juiz novo. Gerou-se uma discussão útil e no
Porto passou a haver uma concordância num determinado sentido.
P5: Se relativamente a outros pontos eu costumo concordar com o P1, eu não
estou de acordo com um ponto. A questão tem a ver com o facto da agregação
do processo não ter a ver com alguns critérios de uniformidade de
jurisprudência. Eu acredito que não tenha directamente, mas se formos ver os
processualistas eles dizem-nos que os mecanismos de apensação de acções
tem a ver também com procurar o sentido uniforme para certas situações de
vida. Se relativamente aos mecanismos de apensação e agregação de acções
é um princípio de economia que impera, tem outra finalidades substantivas
desse género. Em relação ao Juiz Presidente, eu penso que podemos ir um
bocadinho mais longe. Determinar ao juiz uma certa competência no sentido de
observar determinadas questões processuais que se levantam, que podem não
estar uniformizadas. Apontámos o caso da apensação das acções. No Palácio
da Justiça em Lisboa tivemos a necessidade de juntar os juízes para saber se
concordávamos sobre determinado provimento ou deliberação. Essa decisão é
tomada, os advogados podem consultar o livro de provimentos e saber que a
entrada de processos se faz segundo uma certa regulamentação.
Relativamente à acção executiva, quando ela entrou, e não era só da
competência dos juízes de execução, eu tive múltiplos problemas quanto aos
requerimentos que entravam dos solicitadores de execução. Pode-se criar
tramitações coincidentes e procedimentos uniformes. O Juiz Presidente tendo,
nas suas competências de representação do CSM, competência para o
andamento dos processos, deve-se prever também nesse âmbito a
competência de promover a reunião entre todos os juízes no sentido de criar
procedimentos uniformes ou coincidentes relativamente a determinadas
questões de índole processual.
P1: Na questão da agregação, é verdade que esse resultado consegue-se por
via indirecta e não é tão indirecta assim. Mas quanto à questão de
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
290
uniformização dos procedimentos, o juiz presidente poderia determiná-la por
ordens de serviço?
P5: Não, não. Uma coisa é dizer: era bom neste caso, vou ajudar a
comunidade dos litigantes e os meus colegas e vou promover uma reunião
nesse sentido. Outra coisa é dizer que a competência está definida e que ele
tem o dever de promover a reunião.
OPJ: Ele tem o dever de promover. Já estamos a ir um bocadinho mais além.
P1: Faremos uma revisão daqui a anos, depois das experiências anunciadas.
P5: Não estamos aqui a discutir o texto da lei, pois não?
P1: Para determinados tipos de procedimentos, na prática, vemos que quem
influencia mais é o Director Geral da Administração da Justiça, através dos
funcionários e de todos os meios tecnológicos introduzidos, desde os sistemas
e conteúdos informáticos até aos processos aparecerem cozidos à linha ou
não. Quem faz mais gestão processual neste domínio é o Director Geral.
OPJ: Uma outra questão que gostaria de discutir prende-se com as alterações
que devemos introduzir no âmbito do case management e a questão da relação
entre o juiz e a secção de processos, como podemos optimizar a interacção
entre estas duas partes?
P2: Gostaria de começar por dizer que há cerca de 5 anos essa era uma
questão de que ninguém falava. Ninguém falava de case management, de
gestão processual. Nunca se olhava de uma forma global para a gestão do
processo. A gestão processual é muito mais do que está nas normas
processuais estabelecidas no processo penal e no processo civil.
Concretamente, tem a ver com a gestão de interesses envolvidos no
procedimento, com a resposta à questão para que serve o tribunal. Deve partir-
se da ideia de que há um interlocutor privilegiado ou um agente no tribunal que
é sustentado na figura do juiz, quer se queira, quer não. Todo o processo
funciona em função da decisão judicial. Ora bem, tendo por base este princípio,
tudo o que está no processo deve ser orientado em função da decisão judicial.
Esta será a linha de orientação a seguir quando se fala em gestão de processo.
Como se trabalha nisto para além do processo? Eu diria que há vários
caminhos. Há uma questão que gostava de referir que tem a ver com o
Anexo B
291
processo civil experimental, que tem 2 anos, salvo erro, onde pela 1ª vez foi
criada na lei o dever de gestão processual e que ainda está a ser discutido.
Ainda é cedo para se saber concretamente o que é esse dever de gestão. Mas
é importante que este conceito já exista, porque se não há nada que não está
na lei, não existe. Agora já está na lei, já pode ser densificado. Em concreto
salientava 2 tipos de questões que me parecem fundamentais. Primeiro,
potenciar a discussão oral para que haja conciliação. Eu acho que a
conciliação existe como solucionador dos problemas, mas acho que isso deve
ser antes da intervenção do tribunal. Isto é, quando o juiz vai decidir essa
possibilidade da conciliação, esta deve já ter sido resolvida por advogados e
pelo MP. O juiz está lá para, numa fase posterior, decidir. A segunda questão
prende-se com o facto de todo o processado que leva à decisão deve ser
trabalhado pelo juiz, para rapidamente chegar à decisão. Porque não há uma
decisão justa que não seja rápida. Se os dois objectivos fundamentais são
obter uma decisão justa e rápida então todo o processamento deve ter em
consideração esse objectivo. Nesse sentido, o juiz deve ter poderes em
qualquer área que lhe permitam chegar a essa decisão rapidamente. As
diligências processuais e todas as diligências de prova devem ser feitas nesse
sentido.
É também dever do tribunal fundamentar as decisões. Mas o que é certo é que
essa fundamentação tem de ser cada vez mais uma fundamentação que
concretize a função extra judicial da decisão e conhecer os motivos daquela
decisão, porque ela foi tomada. Não é tanto a possibilidade de recurso, mas a
possibilidade de se entender porque o juiz decidiu daquela e não de outra
maneira. Neste contexto, uma questão muito concreta tem a ver com o
problema da linguagem utilizada. As decisões não podem deixar de ser
perceptíveis por todos os cidadãos que estão atentos à justiça, porque isso vai
legitimar a própria justiça. Dou um exemplo do que se passou recentemente
com um acórdão do STJ que foi divulgado pela internet e pelos jornais relativa
a uma questão de regulação do poder paternal. O facto de ter sido proferida
uma decisão numa linguagem relativamente «arcaica» levou a que não fosse
compreendida. A partir daí, as pessoas começaram a pensar que os tribunais
julgavam fora da realidade. Disse-se «o STJ profere decisões
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
292
incompreensíveis». Tudo isto são questões novas que têm a ver com uma
maneira de encarar a gestão do processo, como uma gestão para a decisão do
processo.
OPJ: A grande questão é a de saber, que alterações podemos incorporar no
nosso sistema para uma melhor gestão do processo? Do trabalho de campo,
parece resultar que o processo experimental não terá trazido muitas mudanças.
P2: Nalgumas coisas é necessário mudar a cultura de quem trabalha com esse
modelo. Mudar-se a formação. Quando não damos formação às pessoas com
base no modelo que está a ser implementado, não pode ser exigível aos juízes
que na prática venham a utilizar esse modelo. O processo é um processo que
nasceu e que está ainda agarrado ao «Alberto dos Reis» e é no «Alberto dos
Reis» que nós continuamos a assentar e desenvolver o paradigma. O que não
pode continuar.
P1: O CPC, ao contrário do CP Trabalho, não aponta logo o fim do processo. O
CPP e o CPT já o fazem. O processo entra e logo é marcado o julgamento com
vista à finalização do processo. A audiência inicial de partes no processo do
trabalho, após a entrada da petição inicial, marca logo de início a disciplina dos
actos até ao termo do processo e isso faz toda a diferença em relação ao
processo civil.
P2: Há um exemplo histórico que permite verificar que por vezes há regras
importantes que devem ser quebradas. Trata-se da vigência e modificação do
Código de Processo Penal de 1929. Durante 50 anos o CPP de 29 foi o
diploma vigente no nosso ordenamento. Com a sua revogação e a introdução
do CPP de 87 mudou-se o paradigma processual penal completamente.
Mesmo assim durante mais de 10 anos continuou-se a aplicar o CPP de 1987 à
luz de muitos princípios estabelecidos no CPP de 1929. Só quando a geração
de juízes formados já no âmbito da vigência do Código de 1987, da qual fiz
parte, começou a aplicar esse código é que, de uma vez por todas, se mudou
«na realidade» a matriz processual. As consequências disso são conhecidas.
OPJ: Olhando para o processo comum, temos uma audiência preliminar para
fazer o saneamento do processo. Decorre do nosso trabalho de campo que,
enquanto grande parte dos juízes diz não marcar audiências preliminares,
Anexo B
293
outros consideram-na um momento importante de gestão do processo para
discutir os meios de prova, marcar a audiência e fazer tentativa de conciliação.
A minha questão é: olhando para a prática, como dinamizar a utilização de
audiências preliminares, também como meio de gestão processual, e como
evitar o arrastamento de processos através da utilização de expedientes
dilatórios?
P4: Quando o julgamento é marcado por acordo entre o juiz e o advogado, o
advogado não devia poder faltar, a não ser por um motivo de acidente ou de
caso de força maior. Acordada uma data o senhor advogado deveria, em caso
de impossibilidade de comparecer, fazer-se substituir. A cultura da
responsabilidade tem de imperar. Faltar aos julgamentos nas primeiras
marcações é algo que se faz com todo o à vontade sendo, por vezes, uma
manobra dilatória que convém a todos.
P3: Há normalmente 2 cidadãos, cada qual num dos lados do processo.
Estamos sempre a defender o cidadão, mas o cidadão que é autor. O tribunal
quer que o processo ande. É vontade dele, ainda que por vezes a lei não o
permita. Acho que tem de se ir por vários caminhos para se chegar a um
resultado melhor e são úteis todas as alterações nesse sentido. O processo
civil é de facto uma realidade estranhamente antiquada e que, acho eu, com
exemplos de outros processos, como o laboral e penal, podia já se ter
modificado com alguma relevância.
P2: O processo penal é hoje rápido. O problema está, neste caso, muitas
vezes na fase de investigação.
P3: Só para terminar, acho que no fundo esses caminhos são necessários
porque a reforma do processo civil por comparação às outras leis, é útil,
continua a ser útil e necessária, mas obviamente não se pode despir o
processo civil das garantias, por completo. Há coisas que vão pela cultura e
pelo tempo de adaptação das novas gerações. Creio que alguma coisa já se
mudou e continuará a mudar – e é relevante o que disse P2 – que sempre que
se mude por completo de paradigma (comparação do CP de 87 e de 89), a
adaptação tem um efeito de arrastamento que demora muito mais tempo.
Quando as mudanças são ligeiras pode ser suficiente uma formação contínua
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
294
para essa adaptação. No fundo, todos os caminhos parecem necessários para
se conseguir maior aproveitamento do processo no seu sentido final. O
processo é o que o próprio termo diz, um caminho.
OPJ: Nós hoje temos tribunais que, em regra, tramitam rapidamente a maioria
dos processos, mas há um conjunto de processos e acções que se arrastam
muito para além da duração média, por vezes, vários anos.
P3: A lei já permite, e a pergunta, nalguns casos, é se ela deve obrigar. Ela
tomou opções de obrigar relativamente ao saneador e à eliminação de
despacho inicial. O legislador, não dizendo directamente, quis dizer que era ali
que os juízes emperravam o processo. A lei como que disse: eles param no
despacho liminar e param no saneador; um, desaparece, e outro pode-se
torná-lo facultativo, ou então criar mecanismos através de audiência preliminar,
para que num curto espaço de tempo se resolva nessa audiência tudo o que se
arrasta até aqui: os meios de prova, a audiência final, etc. A lei atacou os
pontos críticos do processo. Nalguns casos, a responsabilidade do legislador
não pode ser só de abrir caminho, mas de obrigar a determinadas posições.
P4: Os advogados têm de entrar no tribunal com o processo já nessa fase.
P1: O Código de Processo de Trabalho é muito mais adiantado que o Código
de Processo Civil, e já é muito antiquado em relação àquilo que devia ser, já
devia ser mais simplificado. Mas, de facto, a possibilidade de o processo
laboral entrar e já se ver o fim ajuda a gerir, e estamos a falar disso mesmo, da
parte de cada interveniente, desde o juiz até aos advogados, todo o desenrolar
do processo. E se no processo civil, apesar da audiência preliminar, se
introduzisse também a questão da audiência de partes, provavelmente aquilo
que existe hoje no regime processual civil experimental – que é a possibilidade
de contactar logo de início, através de uma notificação judicial própria, que o
autor pode fazer no sentido de decidir se quer optar por aquele processo ou
não – em vez de avançarmos por esta via, chamar a outra parte no sentido de
se determinar a matéria controvertida, beneficiando-se de uma redução de
custas. Neste momento, poderia marcar-se a audiência, o que permitiria estar
ali a ver o fim do processo. Não vejo como é que uma acção cível complexa
Anexo B
295
pode ser mais complexa do que a mais complexa do processo laboral, e as
coisas funcionam igualmente.
OPJ: Deixem-me dizer que do nosso trabalho de terreno, uma das questões
que os juízes referem muitas vezes como um problema de gestão de processo,
não só daquele processo, mas de todos os processos, é o problema que está a
ocorrer da suspensão das instâncias, em que os advogados na véspera de
julgamentos, com toda a máquina accionado num determinado sentido,
suspendem a instância e, portanto, com consequências naquela agenda e na
agenda de outros processos.
P4: E com gastos para o sistema.
P5: Penso que a questão da gestão processual é uma questão que deve ser
enquadrada, como todas as outras; e o problema é que os enquadramentos
que temos feito a nível de gestão processual são sobretudo ao nível das velhas
questões do processo, de rever ou não a lei processual. Portanto, quando
falamos de gestão processual, existem aqui duas grandes dimensões, a
dimensão do processo e a dimensão de organização e de gestão dos tribunais.
Nos sistemas anglo-saxónicos existe, desde os finais dos anos 90, nos Estados
Unidos, a percepção de que o processo enquanto tal foi completamente
digerido pela organização e gestão dos tribunais e, portanto, a questão
processual é uma questão relativamente manipulável e flexível. Naturalmente
que os procedimentos são adaptáveis a objectivos de gestão e de organização,
sejam eles para obter a decisão final, sejam para obter outras finalidades
quaisquer. Tem a ver com política judiciária, tem a ver com a política de gestão
dos tribunais, tem a ver com o sentido que se quer atribuir à função dos
próprios tribunais, à função social dos tribunais. Nos sistemas continentais
como o nosso, a questão prevalecente é a questão da codificação da lei e,
portanto, temos que actuar ao mesmo tempo em duas dimensões, que são: a
dimensão de organização e gestão dos tribunais, que envolve também a
gestão dos processos, e ao mesmo tempo temos que adequar isso a uma
determinada tramitação legal. E aqui é que está o problema, é perceber até
que ponto a nossa cultura, que é uma cultura jurídica e de compreensão dos
Códigos e disciplinas processuais, está ou não adequada à perspectiva mais
ampla de organização e gestão dos tribunais. É aqui que se joga tudo. Penso
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
296
que é possível, não extrapolando sistemas diferentes, e, portanto, utilizando as
ferramentas que são próprias da organização e de gestão dos tribunais
relativamente ao sistema anglo-saxónico e aos sistemas de Common Law, é
possível adaptá-los ao nosso sistema, mas com algumas nuances e com
algumas limitações, nomeadamente limitações que têm a ver com cultura
jurídica, codificação da lei, formação jurídica, etc. Obviamente que ao nível do
nosso sistema é possível, desde já, adequar soluções legais como aquela que
foi para o processo experimental, eventualmente com algumas modificações ao
nível da sistemática de processo civil, sabendo de antemão que elas são
sempre limitadas nas suas consequências. Podemos ter um sistema muito bem
pensado a nível processual, mas se as questões de organização e gestão dos
tribunais não forem compatíveis, obviamente que mesmo se tivermos uma
solução legal ela não veio ter eficácia porque há mecanismos de organização e
de gestão que não estão apropriados e não estão pensados para aquela
dimensão processual. Isso aconteceu com a implementação do Código de
Processo Penal novo, aconteceu com a questão das audiências preliminares,
aconteceu com o processo experimental, com o processo de execução também
já aconteceu e vai acontecer com qualquer reforma do processo que se faça
que não se atenda de antemão às questões de organização e gestão dos
tribunais.
OPJ: Mas não aconteceu com o de trabalho.
P5: Porventura terá acontecido de início, mas o processo de trabalho sempre
teve uma dimensão muito mais aligeirada do que o processo civil. A estrutura
dos tribunais do trabalho nunca teve problemas de litigação de massa, nunca
teve problemas de excesso de pendência e, portanto, se formos ver, quando
não há problemas ninguém fala sobre os bloqueios e os disfuncionamentos.
Por outro lado, há a dimensão dos ambientes processuais com que estamos a
lidar e, portanto, essa pergunta foi boa para tentar elucidar que é diferente
estarmos a trabalhar com litigância tradicional e estarmos a trabalhar com
litigância massificada ou com litigância complexa. É aí que os problemas se
levantam. Quanto à litigância massificada, obviamente a proposta dos
mecanismos de gestão processual do processo experimental, acho que são
Anexo B
297
adequados, não estão é adequados a uma cultura organizativa e de gestão dos
tribunais aos meios envolvidos, à formação dos actores judiciários.
Relativamente a técnicas de gestão processual, quanto a mim é possível
mesmo com o sistema actual melhorar muito. Para além da utilização de
mecanismos de agregação formal ou informal de processos, eles estão
estabelecidos já para o processo experimental, é possível já com as
ferramentas processuais do Código de Processo Civil ou outras, proceder à
apensação de processos em determinadas situações. Elas não são utilizadas,
mas se houvesse uma pedagogia no sentido da utilização daqueles
mecanismos, talvez o fossem numa perspectiva global de uma gestão do
tribunal no seu todo, o que vai permitir que as o volume de processos seja
também visto globalmente e os mecanismos, falando aqui a propósito da rede
de distribuição dos processos, vão passar a ser mais utilizados. Há ferramentas
como o agendamento comum para despacho de decisões uniformes ou
temporalmente coincidentes, isto é, a possibilidade de o próprio juiz fazer, por
exemplo, um agendamento para o mesmo dia do mesmo tipo de acções. Às
vezes isso acontece.
P6: No contencioso administrativo a lei do processo é, desde logo, um
problema e é um problema que incomoda todos os juízes e que vai passar
muito tempo para que a lei do processo possa vir a ser simplificada, daí que
alguns tribunais tivessem optado por levar às reuniões dos seus juízes, para
desbravar aquele processo, os professores que tinham elaborado o Projecto.
Outros tribunais seguiram com esses professores ou outros no sentido de
procurar clarificar o alcance das soluções que a lei do processo consagra.
Estou a lembrar-me agora de uma situação que complicava que é a
necessidade de intervenção do colectivo dos juízes com muita frequência. No
início revelou-se de particular utilidade, porque, de alguma forma, permitiu que
os juízes aprendessem uns com os outros. Julgavam em colectivo e assim
aprendiam uns com os outros, mas uma vez adquirido o conhecido, ou a breve
trecho, interpretaram a lei de forma a poder abandonar esse empecilho
processual que de alguma forma protelava, atrasava as decisões. Quanto ao
resto, tem as mesmas dificuldades que os tribunais comuns, a dificuldade da
marcação dos julgamentos com o acordo dos advogados, a regra do artigo
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
298
155.º do Código de Processo Civil, que naturalmente complica as coisas.
Depois o contencioso administrativo é por definição e por si mais especulativo
e proporciona, porventura, maiores delongas, embora seja também certo e,
importa referi-lo, que no que diz respeito à prova, é fundamentalmente
documental e que, muitas vezes, nem sequer justifica ou impõe a realização de
audiência de discussão e julgamento, entendida como fase de produção de
prova.
OPJ: Sobre a questão da suspensão do processo, o artigo 279.º, n.º 4 deixa
um pouco à disponibilidade dos advogados e das partes. Como sabem, foi uma
norma introduzida recentemente. Pensam que deve a lei fazer alguma restrição
sobre esta matéria?
P5: Eu penso que se deve dar uma especial atenção relativamente a esse
matéria. Isto é um problema sistémico e, portanto, isso insere-se, por um lado,
num problema de estratégia das partes perante o processo e, por outro, na
permeabilização da organização e gestão dos tribunais à estratégia das partes.
Mas esse é um problema que tem que ser envolvido no seu todo, pode haver
uma solução legal para tratar desse problema específico sem cuidar do resto
dos problemas do sistema.
P1: Acho que temos que olhar para os atrasos que sejam da efectiva
responsabilidade do tribunal, esses é que são os importantes. (…).
P4: O problema é que em determinados Tribunais, aqueles em que o
movimento processual é elevado, os senhores juízes têm a sua agenda
completamente preenchida e o pedido de suspensão do julgamento, nesses
casos, compromete de forma grave a respectiva agenda. Se o tribunal funciona
normalmente, como é regra em Lisboa, eventuais pedidos de suspensão,
apresentados no próprio dia, poderão não ter consequências de maior na
organização do trabalho dos senhores juízes. Situação diferente se passará
naqueles tribunais em que os juízes se encontram assoberbados de trabalho,
com uma agenda completamente comprometida com julgamentos marcados de
manhã e de tarde, dois em simultâneo, que têm de se deslocar de comarca em
comarca para realizarem os julgamentos e que, entretanto, são surpreendidos
com uma suspensão, já depois de se terem deslocado para o julgamento, que
Anexo B
299
não têm agenda e que, caso tivesse havido uma comunicação atempada,
poderiam ter evitado a deslocação e ter usado esse furo na agenda para
marcação duma continuação de julgamento ou para outra diligência.
P2: Os juízes perante uma situação dessas continuam a ter que fazer.
P4: Como?
P2: Obviamente com atrasos.
P4: Não.
P2: Isso é a vossa maneira de ver as coisas. Se tenho um julgamento marcado
para o dia X esse julgamento é para fazer naquele dia.
P4: Não, previamente comunica que não vai fazer, atempadamente.
P1: Tenho muita dificuldade em ver como é que se torneiam os problemas
concretos dos advogados, na gestão do seu tempo profissional. Acho que
devemos preocupar-nos mais com os atrasos que sejam da responsabilidade
efectiva da máquina dos tribunais do que com problemas profissionais dos
advogados que já antes sabíamos existirem. Antes não havia a suspensão da
instância por acordo com esta latitude, mas provocavam-se atrasos por causa
desses problemas, que podem ser até os da doença súbita de um advogado.
P3: Parece que estamos de acordo que o problema não é tanto os seis meses
que se permite dar às partes para suspenderem o processo, mas mais a
maneira como usam no sentido em que sistematicamente o usam em cima do
julgamento e quando já todo o mecanismo do tribunal funcionou, e,
nomeadamente, as pessoas estão presentes. Nessa parte talvez a lei possa
ser alterada: é permitida a suspensão, desde que avisados quinze dias antes
da audiência, por exemplo.
P5: Relativamente ainda à questão do case management visto no seu todo,
penso que para além da dimensão dos objectivos do processo, é necessário ter
em conta a cultura dos tribunais. Nos tribunais por onde passei como juiz,
sempre enfatizei perante os funcionários que estávamos ali todos a trabalhar
para o juiz produzir uma decisão final e não para marcar diligências ou para
despachar processos ou para dar decisões formais de rotatividade do
processo. Sempre tive a necessidade de realçar este aspecto. Nos nossos
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
300
tribunais ainda impera muito a rotina, o funcionamento burocrático, o trabalhar,
sobretudo, para aquele dia e não para a finalidade do processo. Eu não tinha
tido essa percepção, mas, de facto, essa visão é correcta. As próprias regras
do processo devem conter a ideia de que o objectivo final é o da decisão final
(da sentença). Toda a preparação do processo tem o objectivo claro de marcar
uma audiência de julgamento e de proferir a decisão final. Tudo passa por
tramitar tudo para a etapa seguinte e se a etapa seguinte é o saneamento do
processo e não a decisão final, obviamente cria-se ali o sentimento de se estar
a trabalhar para outras etapas seguintes que nunca são a etapa final da
decisão final.
Há, ainda, outra dimensão que é preciso articular, é que a diferenciação entre
processos não é uma diferenciação que está clara nas normas processuais
legais, isto é, actualmente o nosso tipo de litigância não se compadece com a
distribuição de espécies processuais consagradas que nada têm a ver com o
peso, por vezes, que os processos têm, nem, porventura, era possível articular
na lei tudo aquilo que é necessário fazer para a gestão processual para
distinguir espécies processuais e para distinguir tipos de casos. Isto é, um tipo
de caso pode ter um impacto grande no funcionamento do tribunal sendo uma
espécie processual com pouco peso, sendo que, às vezes, as espécies
processuais também não fazem distinguir o peso que o processo deve ter e
qual é o tempo disponível ou o esforço que o sistema deve implementar para a
resolução daquele caso. Temos que ir mais além e permitir que, relativamente
aos casos em presença, eles possam ser diferentes consoante os graus e
formas de intervenção gestionária atendendo, por exemplo, à complexidade, à
novidade dos casos, à capacidade, e estratégia ou atitude dos advogados, às
rotinas, às ordens práticas, às informações, às inspecções judiciais, às
circulares dos Conselhos, à importância económica, social ou mediática dos
próprios casos. Há casos em que o juiz, pelo impacto mediático que tem o
processo, deve ter uma gestão diferenciada. O caso Casa Pia podia ser um
processo tratado numa audiência de julgamento que não demorava mais do
que algumas horas, o que não ocorreu, pelo impacto político que teve, pela
dimensão mediática, pela estratégia das partes envolvidas.
Anexo B
301
P4: Mas justamente o juiz tem que ter essa perspectiva do caso, isto é, tem
que ter uma gestão do caso concreto. Tem que olhar para aquele caso e não
para o caso como uma sucessão de actos que se vão acumulando.
P5: Tem que perceber que os casos funcionam, não só com as espécies
processuais que estão em causa, com as regras processuais, mas também
com a dimensão e o peso processual que concretamente está ali em causa.
Tem que se olhar para a identidade social das partes, eventualmente, para a
estratégia dos advogados e tem que criar, ao mesmo tempo, graus de
procedimento “tarifado” para algum tipo de litigância; e para outros, tem que se
criar obviamente uma disposição de agenda e tramitações que sejam
adequados a cada caso sem prejudicar o tratamento equitativo das partes e
sem entrar em dessintonias ou violando até o princípio da igualdade das outras
partes. Isto é, tem que haver limites não se podendo ter um sistema e um juiz
completamente permeável às dimensões específicas do caso que por ter um
peso muito mediático começa a ter um agendamento completamente
diferenciado dos outros casos que também mereciam a mesma atenção e aos
quais disponibiliza um agendamento completamente contrário ao que tinha
feito.
Depois, penso que podemos já avançar para determinadas ferramentas de
gestão processual e que obviamente não estão previstas na lei, que são o
agendamento comum, por exemplo, do mesmo caso. Às vezes acontece virem
os mesmos tipos de processos com as mesmas partes processuais e, portanto,
o juiz se tiver razoabilidade em agendar as diligências permite que as mesmas
partes venham no mesmo dia ao tribunal para tratar de incidentes processuais
diferentes. Estou-me a lembrar de outro tipo de ferramentas que tem a ver
também com a criação de guidelines relativamente à litigância de massa. Não
se compreende, por exemplo, que órgãos de gestão e de organização do
sistema judicial como são os Conselhos Superiores de Magistratura não
promovam e não estabeleçam um catálogo, no fundo um código de boas
práticas, no sentido de permitir relativamente à litigância de massa decisões
com determinado número de páginas, não fugindo a determinados trâmites,
mas com determinadas regras que não são obviamente cerceadoras dos
limites da função judicial, mas vão ajudar ao tratamento quantitativo de
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
302
determinados casos através de determinadas tabelas e de determinadas
guidelines. Estas guidelines orientavam a decisão no sentido de dizer qual a
forma do relatório, a fundamentação – não mais que tantas páginas segundo
determinado formulário – e, depois, a decisão não deve fugir muito a isso. O
objectivo é de criar rotinas e peças processuais, mesmo ao nível das decisões
jurisdicionais, que sejam compatíveis com a importância dos casos e também
com a quantidade dos casos, permitindo assim um funcionamento eficaz do
sistema. Agora, volto a reforçar, se não criarmos uma cultura de organização e
de gestão e se não criarmos os meios necessários ao funcionamento do
sistema noutras dimensões, a questão processual não se resolve por ela
própria, isto é, não é mudando as leis de processo que conseguimos resolver
os problemas de falta de eficácia do sistema e da qualidade do sistema.
P2: Há algo muito importante, que nada a ver com a lei, quer do processo civil,
quer do processo penal, mas tem a ver com a diferenciação processual. É
preciso de uma vez por todas encarar o facto de termos que tratar de forma
diferenciada o que é diferente. Já hoje há processos especiais que são
diferentes em função do tipo de interesses, do valor, da natureza do processo,
etc., mas não temos, por exemplo, em nenhuma lei - nem talvez teremos que
ter alguma lei mas apenas em termos de gestão – assegurado o princípio da
diferenciação do tempo previsível da resolução. Se eu sei que para fazer uma
sentença de divórcio litigioso ou uma acção de despejo por falta de pagamento
de rendas demoro cerca de “cinco minutos”, sei que aquela acção vai demorar
menos do que dez minutos e posso gerir o meu tempo em função dessa
previsão. Agora, se tiver uma acção de empreitada que tem problemas
jurídicos complicadíssimos, tenho que ter à partida a possibilidade de prever
que aquela acção, nomeadamente a decisão, me vai levar uma semana a fazer
e tenho que ter a minha agenda programada para efectuar numa semana uma
decisão complicada que tem o mesmo peso numérico que a decisão do
arrendamento que demorou só cinco minutos. A previsibilidade da resolução do
caso é um dos itens fundamentais em termos de gestão que temos que levar
em consideração.
P4: Concordo inteiramente, só que isso é muito difícil.
Anexo B
303
P1: A questão fundamental é esta: quando se começa o processo é preciso ter
em atenção, logo, o tempo da decisão final, marcar e controlar esse tempo e,
depois, gerir em função dele. Evidentemente que isso tem a ver, também, com
os aspectos da organização do tribunal, já que, por exemplo, não é possível
marcar julgamento a quatro meses do início do processo se não houver salas
de audiência disponíveis para alcançar esse objectivo.
OPJ: Mas como é que se faz uma programação da agenda do Sr. Juiz? Como
é que o Sr. juiz faz essa programação da agenda se ele não sabe o trabalho
que tem na próxima semana? O Sr. juiz que hoje saiu de uma dado tribunal
não sabe, na segunda-feira, o que vai ter na sua secretária, não sabe se vai lá
ter vinte processos para dar saneador ou três processos com actos de mero
expediente ou se não tem lá nada. Como é que tudo isto se faz? Agora
voltamos à outra questão da relação entre o juiz e a secretaria. Quando se fala
da gestão das agendas dos senhores magistrados, a prática é a gestão da
marcação das diligências. O trabalho de um magistrado é muito mais do que
isso, fazer sentenças, dar o despacho saneador, obviamente muito mais do
que fazer as diligências, portanto, a gestão do processo para a decisão. Como
é que isto se faz na prática?
P1: É óbvio que ele não pode saber, na totalidade, que processos lhe vão
surgir para despachar, nem mesmo determinar que venham mais ou menos
processos. Penso que ir por aqui é ir um bocadinho longe demais. Mas pode
dar instruções concretas à secção e pode instruí-la para, nomeadamente, fazer
uma coisa muito simples que é apresentar-lhe já separados, com triagem, os
processos em função do tipo de despacho que solicitam.
OPJ: Pode fazer isso no actual enquadramento normativo. Mas, devemos
propor alterações no sentido de irmos mais além? Pode um juiz dar instruções
concretas à secção tendo, no fundo, a possibilidade de programar o seu
trabalho, isto é, saber o que é que nesse mês ou na próxima semana vai fazer?
Como é que vêm essa questão?
P1: O problema é esse, uma coisa é poder outra coisa é conseguir. A cultura
de separação funcional que existe dentro dos tribunais é de tal maneira
enraizada que os funcionários acham-se donos de uma determinada área de
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
304
terreno em que o juiz tem dificuldades em entrar. E esse tipo de resistência,
para quem não está preparado para gerir e tem mais que fazer, conduz
evidentemente a inibições de actuação por parte do juiz.
OPJ: A minha questão é saber se os senhores magistrados que estão aqui se
entendem esta como uma questão fundamental e concreta a ultrapassar.
P1: É exactamente uma questão fundamental a ultrapassar. Do meu ponto de
vista, já existe a possibilidade de dar esse tipo de ordens de serviço. Mas, com
o Juiz Presidente, com os novos poderes previstos na proposta de lei em
discussão, deixam de haver essas dúvidas e penso que deveria existir um
maior reforço de clarificação legal. A ideia do gabinete do juiz aparece por
causa dessa fricção entre os funcionários e o juiz. Os juízes sentem que os
funcionários são uma outra coisa, que a secção é outra coisa, que não podem
dar instruções concretas. Os juízes consideram que precisam de um apoio de
proximidade que responda de uma forma mais rápida e, portanto, cria-se a
ideia do gabinete do juiz. Um juiz já poderia socorrer-se desses funcionários e
organizá-los doutra maneira, se as coisas no relacionamento funcional com o
escrivão e na relação de dependência funcional do escrivão não estivessem
como estão. Vamos avançar para uma coisa, que a proposta de Lei Orgânica
prevê, que são os núcleos de assessoria técnica, não se sabendo muito bem
ainda o que é que será, mas será qualquer coisa entre o gabinete do juiz que
vem previsto no pacto para a justiça e outra dimensão de assessoria.
OPJ: Estamos aqui a falar no âmbito da tramitação de processos, porque o
gabinete de assessoria técnica, tanto quanto percebo, é realmente o apoio do
juiz para decisões.
P5: Espero que não seja só isso.
P1: E estamos a falar de tramitação de processos.
P5: Não se está com certeza a pensar, espero eu, num corpo especial de
peritos.
P1: É que a coisa não está explicada.
OPJ: Estou a falar da tramitação de processos, estou a falar da possibilidade
do juiz, digamos assim, no fundo programar a sua agenda.
Anexo B
305
P5: Mais uma vez reafirmo que as questões são de articulação, com alguma
complexidade, porque tem que se ver numa perspectiva de sistema e de
organização. Se for clarificado que o objectivo dos tribunais é proferir decisões,
compor litígios, fazer pacificação social, deve entender-se que os objectivos da
função jurisdicional e os objectivos dos senhores escrivães e dos outros
funcionários têm que ser comuns e têm que se articular numa organização com
alguma uniformidade de critérios e de finalidades e de objectivos. Portanto, a
estratégia das secções tem que ser articulada com a estratégia da função
jurisdicional. Mais, não entendo que a função jurisdicional seja prosseguida
sem se perceber muito bem que o corpo de funcionários judiciais que estão nos
tribunais fazem parte dos tribunais e não da administração executiva do
Estado, mas isso levar-nos-ia um bocadinho mais longe. Não faço parte
daquela corrente de juízes que pensa que o gabinete do juiz é, no fundo, para
criar um território de função jurisdicional dentro daquilo que é a área e do
território dominado pelos senhores escrivães e pelos senhores secretários
judiciais. Nada disso. O gabinete do juiz era, no fundo, para aqueles casos em
que o juiz é confrontado com muitas tarefas materiais, com litigação com
alguma complexidade ou muita litigação massificada, permitir que
determinados actos materiais, que estão muito ligados à função jurisdicional,
fossem produzidos por algum secretariado ou por algum corpo de pesquisa de
jurisprudência ou de investigação que, obviamente, os senhores funcionários,
nem os escrivães, nem os escrivães auxiliares estão preparados para fazer.
Portanto, tinha a ver com isto e não tanto com dizer que os escrivães ou os
secretários ou as secções judiciais não fazem parte também dos tribunais,
assim como o juiz o faz, e que as funções não sejam coordenadas, as funções
de uns e de outros.
Outro problema importante tem a ver com a falta de meios e de instrumentos
até empíricos, estatísticas, de contingentação, que devem permitir ao juiz fazer
ele próprio a organização e gestão do seu trabalho e também do trabalho da
secção. Sem a existência desses meios empíricos, nada é possível fazer. O
juiz não está informado, não só porque, por vezes, se contém um pouco no
núcleo da sua função jurisdicional, porque não tem mais tempo disponível para
fazer outro tipo de tarefas, mas também porque não lhe é disponibilizada
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
306
informação para tanto. Não é possível um eficaz funcionamento do sistema
judicial onde não existem estatísticas tratadas ao nível de cada secção, que
permitam perceber que tipo de processos estão ali em causa, onde vai existir
contingentação, quais são os objectivos para o juiz no sentido de dizer quantas
decisões ele deveria dar, que tipo de processos é que deve tramitar ou mesmo
qual é o tempo em que devia prosseguir determinadas tramitações
processuais. O problema não tem a ver só com os actores em si, mas sim com
a falta de meios e de instrumentos e a questão estatística, a informação
empírica é uma questão fundamental. Daí eu ver como fundamental aquela
previsão na Lei Orgânica de que se deve disponibilizar aos Juízes Presidente a
informação estatística, mas, compreenda-se, informação estatística que seja
adaptável às funções de cada tribunal em concreto, e não informação
estatística genericamente sobre o sistema, que depois tem de ser tratada para
chegar a determinados resultados. Portanto, não se atribua a cada juiz em
concreto a obrigação de estar a tratar informação estatística para poder avaliar
o que deve trabalhar num sentido, ou que deve atingir determinados objectivos
perante uma estatística que não está tratada.
P2: Dentro ainda da gestão do processo, sobre a previsibilidade, acho que de
uma vez por todas temos que perceber que, tendo a informação toda dentro
dos processos – e não é difícil no processo civil saber o que é que tem que se
trabalhar num determinado gabinete do juiz, não é difícil, não há surpresas...
P5: Desculpa, mas quando há realidades como a pequena instância cível em
Lisboa, em que ouvi um colega a falar sobre uma situação em que, de um
momento para o outro, teve que fazer assinaturas de visto em correição em
milhares e milhares de processos…
P2: Isso já lá estava, os processos já lá estavam, os processos não aparecem
de um dia para o outro.
P5: Estou a falar da realidade dos tribunais, não estou a falar de um País
diferente. Tive colegas colocados nos tribunais de execução que tinham
processos para autuar ainda de 2005, 2006, tinham milhares e milhares de
processos. Como é que é possível dizer, relativamente àquele juiz, que ele tem
Anexo B
307
a responsabilidade perante a organização dos seus tempos de trabalho e da
sua disponibilização relativamente àqueles processos?
P2: Estamos a falar de um caso patológico…
P5: É a patologia da justiça cível em Portugal.
OPJ: A patologia da justiça cível não é igual em todo o lado, o País é muito
diferenciado.
P5: Onde é que se concentra a litigância cível no País? É no Porto e em
Lisboa.
OPJ: Hoje já não é assim, porque as regras competência territorial vieram
alterar essa situação.
P5: O que eu quero é reforçar a ideia de que a informação empírica, para
determinadas situações, é imprescindível. Ainda não tinha sido salientado aqui
que enquanto não houver essas ferramentas não é possível gerir, fazer gestão
processual. É muito simples.
OPJ: Tem toda a razão, mas estávamos agora numa outra questão que não foi
explorada. Não é possível haver gestão processual sem haver instrumentos
que nos permitam essa gestão. A informação estatística, a transparência, são
fundamentais. Hoje, o sistema, o CITIUS, o Habilus, permite conhecer a
realidade dos tribunais em termos de litigância. Os juízes podem, no seu
gabinete, saber mais, podem saber quantos processos com conclusão aberta
têm há vinte dias, há trinta dias, está lá isso tudo. Esses indicadores estarão à
disposição do Juiz Presidente. O tribunal pode ter um sistema intranet onde
são publicados determinados indicadores.
P5: Nos sistemas em que a gestão processual já foi implementada é conhecido
que trabalham com informação estatística, até em países da América do Sul.
Portanto, estamos muito atrasados, muitos e muitos anos, a esse nível.
OPJ: Tem toda a razão, sem essas ferramentas, sem esses indicadores não é
possível uma eficaz gestão processual. Mas, o juiz do processo ou o juiz que
tem a direcção de quinhentos ou seiscentos ou setecentos processos, como é
que ele se programa? Como é que ele se programa ou como é que podemos
fazer para evitar que realmente ele numa semana tenha vinte saneadores e
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
308
nas três semanas seguintes não tenha nada. Que mecanismos devem ser
alterados para que esta interacção funcione de outra maneira?
P4: Porque, actualmente, o juiz é uma entidade na maior parte dos casos
passiva, agora falta é ter um poder de orientação maior.
P1: A lei contém a descrição funcional das tarefas do escrivão e do secretário
de justiça. Mas também diz que as actua mediante orientação superior. Depois,
a Lei Orgânica dos Tribunais diz que é ao Presidente do tribunal que compete
orientar superiormente as secretarias. Logo, se o Presidente do tribunal der
orientações no sentido da secretaria agir de determinada forma, penso que o
assunto da articulação juiz/secretaria pode ser resolvido e não vejo como é que
nos tribunais pode existir outro entendimento.
OPJ: No trabalho de campo que fizemos é salientado pelos juízes a
impossibilidade de gestão das suas agendas e dos processos. O que vos
pergunto é: o que vêem que deve ser alterado?
P4: Há uma cultura nos funcionários judiciais no sentido de darem prevalência
ao cumprimento dos despachos. O que o juiz despacha transforma-se no
primeiro objectivo de serviço para o funcionário, ele quer cumprir logo,
deixando parados os outros processos até que, um certo dia, se lembra de
“tirar prazos”. As inspecções do COJ também fomentam esta actuação. As
inspecções, na avaliação que efectuam ao desempenho dos funcionários, dão
prevalência ao cumprimento atempado dos despachos e decisões proferidas e
não ligam tanto ao que está lá parado há anos. Devia haver aqui um equilíbrio
e neste domínio o juiz devia também dar orientações à secção.
P1: Conheço talvez cerca de meia dúzia de casos, mas certamente haverá
mais, de juízes que dão ordens, provimentos, em concreto à sua secção de
processos no sentido de limitar o número de processos diários submetidos a
despacho. Talvez seja até um bocadinho de exagero, mas nalguns casos até
se identifica o número de processos que devem ser colocados em
determinadas datas.
P3: Na minha perspectiva, tenho sérias duvidas que esses provimentos sejam
legais. Se o provimento significa que se bloqueia o acesso dos processos,
tenho dúvidas que seja legal, isto é, um processo já está em fase de conclusão
Anexo B
309
e não cabe nos números que o juiz fixou, tenho dúvidas da legalidade desses
provimentos. O Código diz quais são os prazos, não há mais nenhuma regra,
que eu saiba.
P2: Esse é que é o problema, não há mais nenhuma regra.
P3: Não há mais nenhuma regra, mas terá de haver, isso já é diferente. Acho
que é o problema mais grave dos tribunais actualmente e acho que é o
problema mais grave dos pequenos tribunais actualmente.
P5: Aí acredito que a reforma da lei ajude alguma coisa.
P3: Tem que ajudar, porque isto não funciona assim. Ou há previsão legal ou
não há.
P1: Estes despachos são dados desta maneira e, do meu ponto de vista, acho
um exagero, mas do ponto de vista orgânico-funcional são legais.
P3: São legais se não impedirem o tramitar normal do processo. Se disserem
só me abrem cinco conclusões e se daí resultar que os processos estão
parados excedendo os prazos para abertura da conclusão não me parece que
seja legal. Deve, no entanto, vir a corrigir-se legalmente.
OPJ: Vamos lá ver. A lei não pode resolver todos os problemas. Estamos a
falar de gestão de processos, e esta dimensão de articulação com a secretaria
é importante.
P1: Se o despacho do juiz for justificado, por exemplo se ele tiver milhares de
processos e se for confrontado com centenas de processos a entrar no mesmo
dia no gabinete, é perfeitamente legítimo que ele diga: os processos entram-me
da forma organizada que indico.
P3: Mas queria pôr outra dúvida. Porque é que isso sistematicamente acontece
no processo civil, se são os mesmos juízes?
P1: Mas também no processo penal.
P3: Não tem comparação nenhuma os atrasos que há no processo civil com os
atrasos que há no processo penal. Vai-se a uma comarca, estou a falar das
comarcas novas, uma comarca de primeiro acesso, todo o crime está em
ordem ou quase todo e o cível está todo parado. Há uma diferença nítida, são
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
310
as mesmas pessoas, são os mesmos funcionários, e nunca nos perguntamos
porque é que acontece num caso e não noutro.
OPJ: Porque há regras que no penal funcionam e no cível não funcionam.
P3: Porquê? Porque têm que ler a sentença numa data certa?
OPJ: Exactamente, funciona como uma regra de gestão.
OPJ: Não é possível fazer-se gestão de processo quando os processos
chegaram ao fim da fase dos articulados e ficam na prateleira. Ou ficam na
prateleira da secção ou ficam na prateleira do computador, é igual.
P3: Isso é importante, não serve de nada se não tivermos uma visão de
conjunto do tribunal. Dizer que não pode vir para o juiz, senão o atraso fica no
juiz, mas ficar na secção. A visão deve ser de conjunto.
P1: Vou dar um exemplo ilustrativo: houve um inspector que, no mesmo
tribunal, propôs uma má classificação a um juiz que tinha processos conclusos
no gabinete com imensos atrasos e a outro juiz propôs-lhe a mesma
classificação quando esse juiz não tinha nenhum processo em atraso no seu
gabinete, mas os processos estavam quase todos parados na secção de
processos que não lhos apresentava para despacho. Este segundo juiz reagiu
e disse que não tinha processos nenhuns na sua secretária, em atraso, pelo
que a classificação proposta não se compreendia. O inspector respondeu-lhe
que os tinha na sua secção de processos e imputou-lhe a falta de não se ter
preocupado em saber sequer o que é que estava lá em atraso. Compreendo
bem este inspector. A lógica de responsabilidade de um juiz limitada ao
processo com conclusão aberta para despacho é uma lógica errada.
OPJ: Sabemos que há tribunais onde se tiram prazos duas vezes no ano, ou
três vezes no ano, ou de três em três meses. Não pode haver gestão eficaz de
processos com este sistema de tirar prazos. Que medidas para alterarmos esta
prática?
P5: Se compreendermos a gestão do trabalho da secção como inserida na
gestão de todo o trabalho do tribunal, obviamente que a gestão deve obedecer
a orientações do Juiz Presidente válidas para o tribunal. O tipo de gestão que o
juiz deve fazer é a mesma a que a secção se deve submeter. Acredito que
Anexo B
311
exista alguma dessintonia entre regras de organização e gestão dos tribunais e
de gestão processual com as regras legais. Os senhores escrivães podem
responder que também têm prazos para cumprir os despachos e prazos para
abrir conclusões. E aí acredito que a solução legal para clarificação das coisas
vai no sentido de submeter esse trabalho de secretaria, e até os prazos de
cumprimento dos despachos judiciais e das decisões, a objectivos de gestão
processual e de organização do sistema, que não estão compatíveis.
Actualmente são os advogados a dizer que nós temos prazos para tudo
preclusivos e os juízes não têm prazos preclusivos. E levanto então a questão,
a existência de prazos preclusivos para o juiz, como é que é isto, é compatível
com a gestão dos tribunais e dos processos? Não é. Acredito que não é a
mesma questão para os escrivães e para os funcionários.
P2: Não há prazos para o juiz e para os funcionários, há prazos do processo.
P1: Esta questão não está a ser bem vista, porque os prazos são para todos.
Se os escrivães e os funcionários são o elo da cadeia mais baixo e se o juiz
responsavelmente der uma determinada ordem de serviço eles têm que
cumprir. A lei que têm que respeitar é que permite essa ordem.
P5: Acredito que na razoabilidade dos princípios isso seja assim, mas a lei não
devia permitir interpretações deste género e a verdade é que lei permite.
P1: Tive uma vez um escrivão que levava a sua autonomia no cumprimento da
lei a tal ponto que sucedeu o seguinte, que conto como ilustração: verifiquei
que as partes requeriam exames periciais, apresentavam quesitos e ele não os
juntava no processo, colocava-os apensos por linha; os quesitos perdiam-se,
até porque depois eram entregues aos peritos e não ficava cópia no processo;
eu disse-lhe verbalmente: “passa juntar os quesitos no processo e depois tira
cópias para os peritos”; e ele respondeu “a minha interpretação da lei não é
essa, não faço”; disse-lhe “então vou ter que dar um despacho no processo
para o senhor fazer como digo”; ao que ele me respondeu com um “…e eu
recorro desse despacho”. A breve discussão acabou assim e, no dia seguinte,
ele reconheceu o absurdo do episódio. Mas o grau de autonomia ao nível de
interpretação da lei era tanto, que em vez de acatar as orientações funcionais
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
312
que lhe devem ser dadas, ele achava que podia discutir uma decisão do juiz no
mesmo plano que as partes do processo.
P3: A última coisa que devemos desprezar é os prazos quando falamos de
eficácia.
P5: Os prazos não podem ser entendidos individualmente para cada tipo de
processo, mas é isso que vai acontecer, porque os processos não entram
todos no mesmo dia no tribunal, por isso é que os prazos não vão correr ao
mesmo tempo e a lei não dá um dia para despachar.
P3: Tenho vinte dias para dar o despacho. O que é que acontece? Não dou em
vinte dias, já não o dou. Isso não pode ser assim. Podem ser é “cominatórios”
para a minha posição e, por isso, é que há as inspecções. Mas para o processo
não pode ser assim. O juiz não pode criar mecanismos através de provimentos
do qual resulte essa visão de que os prazos justamente não são horizontais,
porque se o juiz diz assim, “só me conclui cinco saneadores por semana”, e
isso impede que sejam cumpridos os prazos na secção, não vejo como é que
isso tenha fundamento legal.
P1: E porque é que há-de ser o escrivão a dizer “eu só tiro prazos de três em
três meses”?
P3: Não tem que se tirar prazos, é o contrário, estou justamente a dizer que
não tem que se tirar prazos. Isso então ainda era pior, porque as coisas correm
segundo os prazos da lei. Tirar prazos ainda é pior.
P1: Mas essa é uma conversa para capacidades ideais, nós estamos a falar de
capacidades adulteradas…
P3: Porque o tirar prazos não é nada, quer dizer, tirar prazos significa vamos
ultrapassar o prazo para tirar tudo ao mesmo tempo.
P4: Acho que aqui devia haver uma co-responsabilização do juiz pelo
funcionamento da secção, porque o juiz apercebe-se quando tem uma secção
que trabalha ou que não trabalha.
P5: Há aqui dois tipos de pensamento nesta discussão. O pensamento de cariz
individualista e aquele outro que passa por uma concepção colectiva de
organização. Nesta concepção, o juiz não pode, sem qualquer critério de
Anexo B
313
racionalidade e de integração de critérios de gestão dos processos do seu
próprio tribunal, tomar decisões que não fossem as mais adequadas ao seu
trabalho e ao do escrivão, numa perspectiva de gestão processual. O que não
é compatível com o funcionamento do sistema é existirem colegas nossos que
têm muita atenção pelo trabalho da secção e, às vezes, dão provimentos
completamente irrazoáveis, porque não se inserem em qualquer estratégia
racional de gestão processual, havendo outros ainda que descuram
completamente essa atenção. O case management aqui insere-se na gestão
do tribunal e o tribunal numa organização, portanto, nunca pode haver uma
decisão do juiz que a seu belo prazer venha criar critérios de ordem particular.
A informação empírica é indispensável para criar esses objectivos e critérios
objectivos e coordenados.
P3: A lei pode dar uma ajuda. Por exemplo, a marcação de julgamentos. O juiz
deve ver se pode marcar para todos os dias ou para todas as manhãs de todos
os dias. Alguns, por exemplo, estão a marcar a dois meses e meio e estão a
marcar de segunda a sexta. Mas depois não sobra tempo para mais. Há muitas
coisas a gerir.
P4: (…) o juiz deve exercer o poder relativamente ao conjunto de funcionários
que trabalham com os seus processos e ele não pode ignorar se os processos
estão ou não parados há muito tempo. Claro que ele sabe, se não sabe é muito
incompetente. (…)
O que eu verifico é que às vezes há pessoas que se acomodam e que até
gostam dessas situações em que a secção não produz e até a fomentam. Isso
não pode ser. As coisas não podem ser vistas separadamente. Estamos num
processo de transformação e, no futuro, talvez o magistrado é que tenha que
ter mesmo toda a competência disciplinar sobre o funcionário, porque está a
trabalhar com ele, o trabalho do juiz depende do trabalho da secção e o ritmo
da secção também depende muito do nível de desempenho do magistrado. Os
objectivos a definir para os funcionários dependem muito do que são também
os objectivos daquele magistrado para a sua secção. Está tudo interligado. O
que não pode haver é o juiz de costas voltadas para a secção e a secção de
costas voltadas para o juiz. E o juiz é que tem, de facto, o poder de direcção
dos seus processos, mas também tem que ter algum poder para interferir no
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
314
funcionamento da secção e não se pode alhear e dizer tenho o serviço em dia
quando a secção não lhe faz conclusos os processos.
P5: Há que ver que há aqui um campo de liberdade em que estávamos
habituados a trabalhar que vai ter que ser cerceado a troco de objectivos
comuns. Há uma gestão, até agora, relativamente discricionária, de liberdade
quase total (quase caos), sem critérios e que tem que mudar. Na litigância
tradicional as regras de processo eram suficientes para originar um bom fluxo
dos processos. Há muitos anos que não o são e, obviamente, a máquina dos
tribunais tem que funcionar de acordo com os objectivos e com as exigências
de funcionamento do sistema, e a organização tem que estar preparada para,
em articulação complexa, saber compatibilizar a função jurisdicional com
independência e autonomia e, ao mesmo tempo, com critérios de organização
e gestão. O juiz, a partir de agora, não vai dominar como dominava o
agendamento das audiências de julgamento, vai ter que compatibilizar a sua
função jurisdicional com determinados objectivos quantitativos, vai ter que
trabalhar um pouco em função da eficácia do sistema e, portanto, vai ter que
produzir decisões de acordo com critérios quantitativos e de qualidade. Esses
objectivos não podem é, obviamente, contender com aquele núcleo
fundamental da função jurisdicional, isto é com a independência que tem que
ser suficiente para que no final se possa dizer que aquela decisão foi tomada
num sistema que respeita a autonomia e independência dos tribunais e a
imparcialidade de decisão. Agora, tudo isto é de articulação muito complexa,
porque há aqui uma dimensão profissional que é intocável e depois há uma
dimensão burocrática, de organização que também tem que funcionar bem. E
nunca em nenhum sistema houve a compatibilização óptima. Há sempre
conflitos entre uma dimensão e outra.
P3: Temos que ter em atenção que estamos a mudar de modelo e podemos
rapidamente ir para uma ideia de produtividade. Penso que estão aqui em
causa algumas coisas que se podem mudar, nomeadamente a marcação das
audiências. Temos uma lei que esclarece como devem ser marcadas as
audiências e que não tem qualquer utilidade, quer dizer, não tem qualquer
utilidade para estes problemas. A lei diz que tem que ser marcado a três meses
– se uma pessoa fosse a cumprir o que ela diz… às vezes três meses e meio já
Anexo B
315
lá fica tão bem marcadinha e não poderia ser! – e que se devem colocar em
cada dia o número de testemunhas que em cada dia se podem ouvir. Não há
mecanismos legais também que ajudem. Claro que se corrigíssemos a
suspensão da instância, se as pessoas não pudessem suspender logo no dia,
isso ajudava alguns dos juízes que marcam bem e que todos os dias são
confrontados com isso. Talvez aqui, como noutros casos, tenha que se ir por
vários caminhos. A estatística também está a mudar, se não for usada
perniciosamente, ajuda, claro, ao agendamento. Acho que este é um problema
muito grave, especialmente dos juízes novos, o que é mais grave porque se
habituam e têm dificuldades. Então nas comarcas de primeiro acesso, só lá
estão um ano, num ano como é que se pode ter autoridade para uma secção
que lá está há vinte?
P5: Por isso é que eu disse que é bom fazer a apologia desse espaço
independência nas funções jurisdicionais, porque, obviamente, podemos ter
distorções. Juízes a trabalhar para a estatística leva à diminuição da qualidade
das decisões, à falta de equidade e de justiça das decisões.
P3: A estatística tem que ser um instrumento, mas de utilidade à gestão, mas é
muito difícil quando se está um ano numa comarca, onze meses.
P5: Por isso é que eu digo que não há outra fórmula de adequar o
funcionamento eficaz do sistema e a organização do sistema com a dimensão
profissional, que tem que ser aqui garantida, senão através da figura do Juiz
Presidente. Ele é a pedra de toque da gestão do sistema. Ele faz a intercepção
entre a dimensão profissional e a burocrática. Não podia ser senão um juiz a
presidir a um tribunal, porque parte dele a garantia de que os mecanismos de
organização e gestão do sistema não vão contender com a função jurisdicional.
OPJ: Esta é uma discussão que se tem que continuar fazendo. Talvez a
mudança possível seja de pequenos passos.
E devo dizer-vos também que, ao contrário da ideia veiculada por alguns
juízes, de que os funcionários têm uma grande resistência às orientações dos
senhores juízes, não temos essa impressão do trabalho de campo. Há o
entendimento de que a organização deve funcionar como um todo e que tem
que haver, de facto, mais interacção. Assumem que há pontos de tensão que
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
316
tem que ser ultrapassados e deram ideias concretas, nomeadamente para os
ultrapassar. Por exemplo, entendem que é fundamental que seja sempre o
mesmo funcionário a trabalhar com o juiz nas diligências, na sala de
audiências.
P3: O papel dos secretários é fundamental. A capacidade dos secretários para
efectuar pequenas mudanças, para readaptar os meios humanos em
conjugação com o juiz, distingue a produtividade e a eficácia de um tribunal de
uma maneira claríssima relativamente a outro.
OPJ: Mas há coisas que talvez a lei tenha que ser um bocadinho mais
indicativa, porque não pode ser deixado isso só a orientações, a directivas, à
disponibilidade, digamos assim, da pessoa. Há aqui um conjunto de pequenas
coisas que foram avançadas que se podem ir fazendo no sentido da mudança
das rotinas e da cultura judiciária.
P4: Claro que a capacidade de liderança de um secretário faz toda a diferença,
desde logo até na própria relação com os magistrados, tudo está ligado.
OPJ: Mas deixe-me dizer, apesar do secretário e apesar dessa proactividade
fazer a diferença, no mesmo tribunal e, com o mesmo secretário, tem, de facto,
situações e desempenhos altamente diferenciados. É preciso encontrarmos
aqui alguns mecanismos que ajudem a ultrapassar estas situações.
P4: Vamos falar aqui num caso concreto. Num tribunal prescrevem processos
diariamente. É um tribunal com muito trabalho, há lá muitos magistrados, o
senhor secretário-geral é alcoólico, mas os senhores juízes não se queixam
dele. O que eu quero dizer é que há situações em que o próprio tribunal é
conivente, porque há aquela ideia, “eu não tenho nada a ver com isto”. Há
inspectores, mas os inspectores também não dizem tudo, porque esse
funcionário continua a ter muito bom e é alcoólico há vários anos. (…)
P5: No quadro da reforma, penso que seria possível que determinados
aspectos legais pudessem ser aplicados aos novos tribunais, nomeadamente a
questão da presidência e da administração dos tribunais, criando-se alguns
círculos e definindo-se que a presidência dos tribunais, relativamente àquelas
em que não fossem criadas as circunscrições, seria presidida em conjunto com
os tribunais.
Anexo B
317
A administração e gestão dos tribunais, segundo o novo modelo, vai estar
dependente de muita coisa e de algumas coisas pesadas como são a definição
territorial, especialização dos tribunais e os equipamentos judiciários. Acho que
era possível ter ganhos de administração e gestão no funcionamento do
sistema judicial enquanto tal, mudando as regras de gestão dos tribunais. Isso
era possível fazer-se, mas foi-se para uma solução que, se calhar, não é a
mais benéfica.
OPJ: Só a figura do Juiz Presidente, sem introduzirmos outras mudanças
nestes mecanismos, não resolve todos os problemas.
P4: A figura do Juiz Presidente é tão contestada, mesmo aqui entre nós. Está a
ver os medos que há da figura do Juiz Presidente?… e há aí juízes que nem
querem ouvir falar disso. Agora imagine, de repente, estender esta situação a
todo o País. Não acho muito avisado.
P5: Esse conflito relativamente ao Juiz Presidente, tem muito a ver com o
reflexo do debate interno entre os juízes, com a ideia de que há juízes que são
contrários à ideia do Juiz Presidente e isso não é verdade. A controvérsia é
relativamente às competências. É que todos os juízes confrontados com a ideia
de quem é que deve fazer administração e gestão dos tribunais, eles dizem
que é um juiz. E, portanto, chamem-lhe outra coisa qualquer, mas é a figura do
Juiz Presidente enquanto tal. Os juízes são contrários à ideia do Juiz
Presidente quando lhes dão a ideia do paradigma francês.
OPJ: De facto, da nossa experiência, há uma reacção negativa quando se fala
no Juiz Presidente, com competências mais do que aquelas que dizem respeito
à gestão das infra-estruturas e dos funcionários.
P5: Então é admissível que seja o administrador a fazer esse tipo de tarefas?
P3: Não, estás a por a questão como uma inevitabilidade.
P5: Mas é inevitável.
P3: Mas, para eles não.
P5: Mas não é o quê?
Para um Novo Judiciário: qualidade e eficiência na gestão dos processos cíveis
318
P3: Estás a dizer assim, então em vez de um Juiz Presidente ponham um que
não é juiz. Não, eles não querem essa pergunta. Actualmente é preciso
alguém?
P5: Claro que é preciso.
P3: Não é isso que estou a dizer. Existe Juiz Presidente com os poderes que
tem actualmente e que, para qualquer mudança, podia ser juiz ou não juiz.
Claro que se perguntarmos se querem que seja um não juiz, eles vão dizer: “
que disparate”.
P4: Mas dizem que como está, está bem.
P3: Isso era uma segunda pergunta.
P4: Defendem que a figura do Juiz Presidente como está, está bem. Há de
tudo.
P3: E se alargasse os poderes do Conselho directamente, era viável.
P5: Era isso que estava a dizer. O Juiz Presidente já existe e, portanto, isso
não é discutível, a questão tem a ver com as competências. Depois, seria
razoável, se subirmos o patamar de qualidade da discussão pública, que não
existe entre os juízes; porque cada um fala de outras coisas que não das
questões fundamentais e depois existem factores que entram dentro da
discussão que não são os mais apreciáveis. Se há um grupo de juízes que
apoiam uma determinada ideia, os outros que são daquele grupo ideológico, de
afinidade, apoiam uma solução diversa. Se formos ver, todos estamos de
acordo com as soluções, mas só para termos uma opinião diferente e
marcarmos o nosso espaço dentro do corpo judiciário, até por razões eleitorais,
para perceber quem domina dentro do corpo judiciário, assumem-se estas
posições. Há muito de artificial na discussão dos juízes sobre a função do Juiz
Presidente, porque confrontados com a realidade e com os outros modelos
alternativos, obviamente que dizem que este é o único possível.
P3: Sim, mas podia ter poderes muito diferentes. O Conselho podia ter mais
poderes e o Juiz Presidente menos, o administrador podia ter outros poderes.
P5: Mas não podemos dizer que eles estão em desacordo com a figura do Juiz
Presidente.
Anexo B
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P5: Há um espaço de liberdade, que acho que deve existir, não pode é existir
com atitudes defensivas e como estratégia…
P1: Penso que, conversando, não há resistências nenhumas, há uma
compreensão boa.
P3: Mas, as pessoas têm opiniões sobre, por exemplo, quem deve ser o Juiz
Presidente, como é que devem ser ou não eleitos os Juízes Presidentes,
critérios que devem presidir à sua escolha. Tudo isso é muito relevante. Mesmo
que o aceitem, é legítimo que haja muitas reticências consoante depois a
concretização dos diversos pontos que levaram à sua escolha…
OPJ: Resulta, de facto, do trabalho de campo, que há uma grande
preocupação, interrogação sobre quais são os critérios que devem prevalecer à
designação, à escolha de determinado magistrado para Juiz Presidente. Muitos
magistrados enfatizam o conhecimento das características de determinada
circunscrição. A questão da legitimidade, quer dizer, de se encontrar aqui
critérios que façam que essa pessoa seja legitimada, é uma questão
transversal, embora depois os critérios que conferem essa legitimidade possam
ser um bocadinho diferentes.
P4: E defendem um par deles ou alguém acima?
OPJ: Encontrámos posições diferentes e há pessoas que defendem acima e
há outros que defendem um par. A ideia é de alguém a quem deve ser
reconhecida legitimidade.