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Parceria estado-sociedade: aspectos jurídicos
ROBERTO A. R. DE AGUIAR
Para sugerirmos direções para a juridicização da parceria estado-sociedade, é
preciso que firmemos alguns entendimentos básicos, a fim de afastarmos
preconceitos e práticas que têm empobrecido as relações entre direito e
sociedade no Brasil.
1. O sentido do público e do privado
Há uma farsa de fundo no entendimento jurídico vigente no Brasil.
Formalmente, a partir de uma concepção oriunda da primeira revolução
industrial, as esferas do público e do privado estão bem separadas, cabendo ao
primeiro a fiscalização e controle das atividades privadas, tendo em vista suas
finalidades de tutela e promoção do bem comum. A segunda esfera é facultada
à liberdade para concretizar suas iniciativas, a fim de potencializar seus
interesses, patrimônio e lucratividade, desde que não haja desvirtuamento dos
interesses e bens sociais.
Concretamente, as relações estado-sociedade se dão de modo diferente e com
a conivência do próprio direito vigente. O estado, para fiscalizar, controlar e
intervir na sociedade, criou um aparato complexíssimo, pesado, caro e
inoperante, que tem por finalidade a criação de um quadro de cargos e funções
que deve ser ocupado por beneficiados pelas costuras políticas. Os cargos de
carreira, constitucionalmente preenchidos por concursados, sintam-se em
patamares inferiores ou intermediários dessa complicada ordem. Ora, a partir
disso, a burocracia, a opacidade, o distanciamento da sociedade e as ações
desvirtuadoras das finalidades sociais do estado passam a constituir seu
cotidiano.
Assim, em termos jurídicos, podemos dizer que a atividade privada se
confunde com o estado, invade todos os seus escaninhos, estabelece regras e
pactos comerciais intra e extra estatais, controla licitações e orienta leis e
práticas eleitorais e políticas. Mas, em contrapartida, não há muito espaço para
a participação da cidadania na ordem jurídica estatal. Ao cidadão é dado o
supremo direito de votar e ser votado. A partir daí, apesar da pretendida
democracia direta acenada pela constituição, a cidadania não tem lugar no
cotidiano do estado. A parcela aqui pretendida não se dá a partir de relações
entre entidades estatais e privadas, mas entre a ordem pública e a cidadania, o
que é bem diferente. Isso leva à necessidade de uma outra visão jurídica.
2. Burocracia, formalidade e informalidade
Quando, em senso comum, se concebe o direito, pensa-se em formalidade e,
até mesmo, em rebuscamento de linguagem e escalonamento de poderes e
competências. O direito, para o povo, ainda é um instrumento burocrático e
formal utilizado para se tentar concretizar prerrogativas. O direito é visto
como sinônimo de leis que foram outorgadas pelo estado e não como de
cristalização de conquistas oriundas de lutas que se travaram e se travam na
história da humanidade. Tiraram do povo aquilo que era seu: o direito. Ora,
com esse tipo de entendimento, as instituições, as práticas e os procedimentos
jurídicos tornaram-se anatematizadores, perversos e incapacitadores da
cidadania.
Contemporaneamente, as práticas sociais tendem para a desformalização. Não
é mais a suntuosidade da forma ou a complexidade do rito que trazem
respeitabilidade para instituições. No mundo da velocidade, do tempo
instantâneo, do choque entre a alta tecnologia e as necessidades primárias não
resolvidas, os critérios de sobrevivência das instituições são o da eficácia e da
legitimidade. Instituições ou práticas que não surjam de processos
participativos tendem a ser rejeitadas. Instituições que operam contra
interesses da sociedade, em favor de pequenos grupos, ou julgam segundo
interesses antidemocráticos têm sua significação social diminuída. O mesmo
pode ser dito das práticas ou instituições lentas, desatualizadas e com pautas
de valores que já não mais pertencem a este mundo contemporâneo.
Ora, para tratarmos a questão da parceria, é preciso admitir a desformalização,
a descentralização, a velocidade e a eficácia, como características centrais
para um direito adequado à atualidade.
3. Estatalismo do direito brasileiro
Tradicionalmente, a doutrina jurídica já admitia a existência de um direito não
estatal. Tal direito era dado como existente, mas considerado subsidiário,
secundário e sem grande valor. Em suma, um parente formal dos costumes de
uma sociedade. Assim, direito só poderia ser aquele emanado do estado e
abençoado por suas instituições. A partir desse entendimento, o direito passou
a se confundir com a lei, os sujeitos de direito passaram a ser destinatários das
normas do estado e a riqueza das relações sociais passou a se reduzir a uma
concepção bicolor, onde, de um lado, havia o estado e suas normas e, de
outro, a cidadania como destinatários que seriam premiados ou punidos em
função de sua obediência ou desobediência.
Dessa forma, o direito que é vivo, que é fruto de lutas, que se constitui a partir
de movimentações coletivas da sociedade, passa a ser uma dádiva do estado,
um instrumento de controle dos cidadãos, uma ferramenta de estabelecimento
e manutenção de determinada ordem.
Só superando esta visão estatalista, rescentrando o direito no interior dos
complexos processos coletivos e sociais de sua constituição, poderemos
aviventar nossa criatividade para enfrentar as demandas atuais, dentre elas a
da parceria.
4. Concretude e relações jurídicas
Outra tendência observável no direito brasileiro é o seu apreço pela abstração.
Os sujeitos com os quais trabalha são abstratos, as normas que interpreta são
abstratas e as instâncias jurídicas se localizam em patamares abstratos. Em
verdade, não há judiciários nos municípios, o único ente concreto da
federação. Os sujeitos da juridicidade são considerados partes, requerentes,
requeridos, recorrentes e recorridos nos processos. Elas não têm história nem
trajetória. Além disso, as normas jurídicas fundantes são destinadas a todo
mundo e ninguém, como diria Kelsen. Assim, a contemporaneidade exige a
concretização do direito, tarefa que não significa diminuí-lo, ou retirar suas
conquistas universais, mas torná-lo válido nesta data, neste momento, nestas
conjunturas, nestes locais presentes, não se perdendo em um passado
mistificado, nem em um futuro remoto que nunca chegará.
5. Parceria: conceituação e possibilidades
5.1. A etimologia da palavra parceria
A palavra parceiro vem do latim partiariu e significa igual, semelhante,
parelho, par, abarcando também a significação de comparte, quinhoeiro, sócio,
cúmplice, companheiro, consorte ou, ainda, pessoa com quem se joga (Novo
dicionário da língua portuguesa).
Parceria tem o sentido de reunião de pessoas para um fim de interesse comum,
sociedade, companhia, podendo ter os sentidos jurídicos de parceria agrícola,
que é um contrato mediante o qual se cede a outrem uma propriedade rústica a
fim de ser cultivada, repartindo-se os frutos na proporção que estipularem; de
parceria marítima, significando empresa em que se associam os condôminos
de um navio para explorá-lo; de parceria pecuária traduzida pelo contrato pelo
qual se entregam animais a outrem para pastorear, tratar e criar a troco de uma
conta nos lucros. As parcerias agrícola e pecuária também podem ser
denominadas de parcerias rurais (Novo dicionário da língua portuguesa).
Vê-se que essas palavras guardam dois sentidos fundamentais: o de
compartilhar e o de igualdade no momento de celebração da parceria.
Percebe-se que a dimensão de igualdade está mais presente nos sentidos de
senso comum, do que nos sentidos jurídicos correntes, pois nestes aparece
uma desigualdade de base que constitui parceiros desiguais. Na parceria
agrícola, entre os proprietários das terras e os trabalhadores parceiros, na
pecuária entre os donos dos animais e os tratadores e na marítima, a partir da
participação financeira desigual dos condôminos. Em um país onde o acesso á
propriedade e a distância social são marcas fundamentais, raramente
poderemos falar de uma parceria entre iguais.
O que se pretende tratar aqui é de uma parceria entre iguais, onde estado e
sociedade participem juridicamente de um empreendimento com finalidades
públicas, sem que haja sobreposição de funções, hierarquia de papéis ou
rendição à burocracia, à lentidão e ao autoritarismo. Na parceria aqui
pretendida, a relação democrática é a base. Também é preciso ratificar que os
partícipes das parcerias não são uma entidade pública e outra privada. Na
parceria constitui-se uma nova unidade onde o público estatal se relaciona
com a publicidade da cidadania, em uma dimensão horizontal.
Logo, a parceria não é um desvirtuamento privativista das funções do estado,
mas a extensão das atividades públicas para uma área cinzenta limítrofe entre
o estado e a sociedade, que tem como características centrais a flexibilidade, a
velocidade e o poder aglutinador.
Para pensá-la, não é possível usarmos tão somente das normas estatais, que
quebrariam a igualdade entre os participantes, já que traduz uma visão
monopolista do estado. Por outro lado, o uso puro e simples da legislação
privada nacional traria o problema da privatização dessa atividade pública, o
que desvirtuaria sua natureza.
Colocados estes entendimentos e demonstrados os cuidados necessários para
manter o equilíbrio desse novo ente, ainda é preciso lembrar que, no caso
presente, juridicizar não quer dizer controlar, tornar mais lento, e sim
viabilizar, agilizar e afastar obstáculos à ação pública das parcerias que irão se
constituindo para atender às necessidades, carências e problemas
fundamentais de nossa sociedade.
5.2. Proposta para nova parceria que procure atender às demandas sociais da
atualidade brasileira
5.2.1. Direito social
Já se usou muito a expressão direito social para designar ramos do direito que
não se enquadram rigidamente, nem no público, nem no privado, como é o
caso do direito do trabalho.
Aqui queremos introduzir uma outra conotação para essa expressão. É direito
social aquele conjunto de diretrizes que emerge da cidadania para responder
às demandas mais urgentes e às necessidades básicas de uma sociedade. Esta
tarefa não é tarefa isolada dos cidadãos, que precisam se unir ao estado para
dinamizar suas ações. Assim, os sujeitos ativos desse direito são os cidadãos,
as organizações não-governamentais da sociedade nacional e internacional e
os estados em seus vários patamares federativos.
O âmbito desse direito não se localiza na abstração. Ele é normatizador da
concretude. Ele é acionado a partir de necessidades básicas não atendidas, mas
não necessidades genéricas, ou em tese. São problemas de comunidades
localizadas, que se organizam para superá-los. Sua ação é rápida, dada a
velocidade que marca a contemporaneidade e a impossibilidade de se adiar a
resolução dos problemas essenciais do ser humano. Seus valores são claros,
porque é um direito que não se esgota nas técnicas, nem se estiola nas
formalidades. Ele é um direito com uma feição ética evidente. Suas normas e
suas ações estão movidas pela fraternidade, pela solidariedade e pela adesão à
humanidade como valor norteador. Seu teor transcende as organizações não-
governamentais e o próprio estado, constituindo um patamar ético-normativo
que, pelos valores que o fundam, religa o estado à cidadania, para além dos
conceitos clássicos de público e privado. Assim, não será uma parceria estatal
ou privada, mas uma parceria social, que traduzirá um dos institutos
emergentes dessa nova faceta do direito.
5.2.2. Informalidade local, comunidades e concretude
O direito, frente aos problemas planetários e urgentes que tem de enfrentar,
não pode mais se prender a certas formalidades, que tem a sua razão de ser em
certos momentos de definição ritual, mas que não podem ser impeditivas da
legitimação das práticas sociais solidárias de uma dada comunidade ou
localidade. Assim, as comunidades, mesmo a revelia do direito oficial, criam
seus direitos, estabelecem seus ritos, resolvem seus problemas, de modo
informal, procurando, quando é possível, fugir de um direito que é
conhecimento de iniciados, sendo traduzido por sacerdotes que detêm os
instrumentos de sua interpretação. A informalidade também cria direitos. É ela
sua fonte primeira. Mas nada existe informalizado. A questão é a de que a
forma do povo se conduzir não é agradável aos rituais hegemônicos.
Formalizar de modo diferente é subverter a ordem. Um direito social tem de
admitir as formas cotidianas de relacionamento e resolução de problemas
como atos plenos de juridicidade.
A concretude é negada pelo direito positivo vigente. Os atos judicantes não se
rebaixam à esfera local. O executivo e o legislativo podem ser municipais. O
judiciário nunca. Há uma tendência para a abstração do sujeito de direitos, e
uma negação do tópico, do local, do concreto e do palpável no campo das
relações jurídicas e judiciárias. Assim, iniciativas de cidadãos, se não tiverem
a bênção, correm o risco de serem consideradas irregulares, sem valor, mesmo
que as intenções e as práticas sejam as melhores. É preciso retomarmos a
concretude da sociedade, a situação concreta das comunidades no tempo e no
espaço, a localização dos cidadãos. Sem essa dimensão estaremos laborando
no vazio. A concretude, assim como a ética, foram duas facetas retiradas do
direito, a partir do século XIX europeu.
5.2.3. Um sistema informal, com as formalidades necessárias à sua
sobrevivência
As parcerias, como aqui entendidas, teriam alguns princípios básicos: o da
organicidade, o da transitoriedade, o da independência e o da flexibilidade.
Para entendermos tais princípios, é preciso destacar que as ações e práticas
sociais locais serão respeitadas não se exigindo qualquer formalização
jurídica, mas também não proibindo.
As parcerias se organizariam de modo sistêmico. Este sistema preservaria a
organicidade do trabalho, um de seus princípios basilares. É também preciso
ressaltar que todos os elementos do sistema são transitórios,
independentemente do grau de juridicização que tenha. Cessada a causa de sua
existência, deverão as atividades cessar, sendo seu eventual capital transferido
para atividade análoga do sistema.
Os trabalhos locais serão independentes, podendo o sistema interferir tão
somente para orientar, estimular ou evitar o desvirtuamento de seus objetivos.
Em cada estado ou região haveria núcleos de orientação e captação, que
poderiam se organizar sob a forma de sociedades civis sem fins lucrativos, ou
fundações, nos termos da legislação civil vigente. Tais núcleos teriam a
finalidade de captar financiamentos, racionalizar distribuição de verbas
necessárias, firmar convênios com os municípios e estados, a fim de
concretizar as parcerias nesses níveis.
Os convênios serão os instrumentos que estabelecerão os liames entre o estado
e essas instituições. Escolheu-se o convênio porque nele não existem partes.
Nos convênios existem partícipes. As primeiras têm interesses diferentes que
se casam quando existe uma situação que pode favorecer a ambas. No caso
dos partícipes, os interesses são semelhantes e convergentes, não sendo de
nenhum deles, mas de um serviço, trabalho ou função que venha beneficiar
terceiros. O convênio é instrumento hábil porque é transitório, pode ter
claramente estabelecidas as condições de sua rescisão e situa os partícipes em
igualdade de condições, não sendo nenhum mais importante que outro. Tais
convênios também poderão ser celebrados com entidades nacionais e
internacionais, o que no jargão das relações econômicas costuma-se
denominar de agências financiadoras.
Haveria também um Conselho Nacional das Parcerias, em relação conveniada
com a União, que teria as mesmas funções das entidades regionais, só que em
âmbito nacional, sempre respeitando a flexibilidade e a independência das
atividades do sistema.
Todas essas sociedades terão isenção tributária, a fim de que possam exercer
suas atividades e não criar uma redundância fiscal, pagando impostos para
quem está servindo e auxiliando.
5.2.4. Uma administração democrática
Os conceitos informais locais, as entidades regionais e a nacional terão sempre
uma administração democrática e co-participada, escolhida pelos participantes
e pelo estado. Todos eles, quando formalizados, terão um órgão fiscalizador
formado por cidadãos escolhidos pelas comunidades.
5.2.5 Conclusões
Propõe-se assim para as parcerias uma estrutura estável, mas não permanente,
relacionada com o estado, mas não subordinada a ele, flexível, mas controlada
pela cidadania, voltada para o bem da sociedade, mas livre das burocracias e
ranços da máquina estatal. Tais soluções apontam para novos caminhos para o
direito, pois estabelecem novas relações entre a cidadania e o estado, entre a
sociedade e o estado, inserindo a dimensão ética e da concretude no universo a
ser normatizado.
Fonte: Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc)
Roberto Armando Ramos de Aguiar é doutor em filosofia do direito, secretário de
Segurança Pública do Distrito Federal, professor da Universidade de Brasília e autor
de Direito do meio ambiente e participação popular. Brasília, Ibama/1994, 2ª ed.,
1996.