parecer de dentro, ser de fora: para uma etnografia ... · parecer de dentro, ser de fora: para uma...

21
Parecer de dentro, ser de fora: para uma etnografia dançada de uma mulher negra em Moçambique Jaqueline de Oliveira e Silva Doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES. Apresentação É evidente que as minhas questões, sendo uma mulher negra, devem diferir das questões das colegas brancas. Os temas, os paradigmas e metodologias usadas para explicar minha realidade podem diferir desde os temas, paradigmas e metodologias do grupo dominante. Por outro lado, isso não significa que eu sou incapaz de produzir conhecimento, mas que o conhecimento que eu produzo transgride o academicismo tradicional. Quando eu escrevo, eu descolonizo a academia, transformo as configurações de conhecimento e poder. Cada sentença e cada palavra abre um novo espaço para discursos alternativos e políticas do conhecimento. Isso é a descolonização do conhecimento. (KILOMBA, Grada. 2016) Para elaboração deste texto parto de um enunciado da autora negra Patrícia Hill Collins (2016) a respeito das possibilidades que podem ser exploradas pelas mulheres negras enquanto outsider-within. Mulheres negras podem fazer uso criativo do espaço marginal que ocupam enquanto sujeitos sociais e políticos para questionar posturas cientificas hegemônicas que apontam para a neutralidade do corpo-pesquisador e, por consequência, do conhecimento construído a partir dali. Durante o tempo vivido em Moçambique, entre novembro de 2017 e março de 2018 1 , vi, conversei e dancei junto às mulheres dançarinas, cantoras, musiqueiras e conselheiras, no bairro da Mafalala, em Maputo e nas cidades de Angoche, Nampula, Nacala-Porto e na 1 Estive em Moçambique com financiamento proporcionado pelo edital Pró Mobilidade Internacional Capes e Associação das Universidades de Língua Portuguesa (CAPES/AUL), através de um acordo firmado entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade do Lúrio (UniLúrio) em Moçambique. Este convênio envolve pesquisadores brasileiros e moçambicanos do Laboratório de Antropologia das Controvérsias Sociotécnicas (Lacs) da UFMG e possui como eixo principal as transformações ocorridas nos últimos anos em virtude da expansão do eixo ferroviário conhecido como Corredor de Nacala. Após quatro anos, o escopo desta pesquisa e do próprio LACS se ampliou, e atualmente abarca pesquisadores de doutorado, mestrado e graduação que se dedicam ao estudo de diversas outras dimensões da dinâmica sócio cultural na província de Nampula, como gênero, corpo, feitiçaria e mercado.

Upload: trinhhanh

Post on 29-May-2019

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Parecer de dentro, ser de fora: para uma etnografia dançada de uma mulher negra

em Moçambique

Jaqueline de Oliveira e Silva

Doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES.

Apresentação

É evidente que as minhas questões, sendo uma mulher negra, devem

diferir das questões das colegas brancas. Os temas, os paradigmas e

metodologias usadas para explicar minha realidade podem diferir desde

os temas, paradigmas e metodologias do grupo dominante. Por outro

lado, isso não significa que eu sou incapaz de produzir conhecimento,

mas que o conhecimento que eu produzo transgride o academicismo

tradicional. Quando eu escrevo, eu descolonizo a academia, transformo

as configurações de conhecimento e poder. Cada sentença e cada

palavra abre um novo espaço para discursos alternativos e políticas do

conhecimento. Isso é a descolonização do conhecimento. (KILOMBA,

Grada. 2016)

Para elaboração deste texto parto de um enunciado da autora negra Patrícia Hill Collins

(2016) a respeito das possibilidades que podem ser exploradas pelas mulheres negras

enquanto outsider-within. Mulheres negras podem fazer uso criativo do espaço marginal

que ocupam enquanto sujeitos sociais e políticos para questionar posturas cientificas

hegemônicas que apontam para a neutralidade do corpo-pesquisador e, por consequência,

do conhecimento construído a partir dali.

Durante o tempo vivido em Moçambique, entre novembro de 2017 e março de 20181, vi,

conversei e dancei junto às mulheres dançarinas, cantoras, musiqueiras e conselheiras, no

bairro da Mafalala, em Maputo e nas cidades de Angoche, Nampula, Nacala-Porto e na

1 Estive em Moçambique com financiamento proporcionado pelo edital Pró Mobilidade

Internacional Capes e Associação das Universidades de Língua Portuguesa (CAPES/AUL),

através de um acordo firmado entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade do

Lúrio (UniLúrio) em Moçambique. Este convênio envolve pesquisadores brasileiros e

moçambicanos do Laboratório de Antropologia das Controvérsias Sociotécnicas (Lacs) da UFMG

e possui como eixo principal as transformações ocorridas nos últimos anos em virtude da

expansão do eixo ferroviário conhecido como Corredor de Nacala. Após quatro anos, o escopo

desta pesquisa e do próprio LACS se ampliou, e atualmente abarca pesquisadores de doutorado,

mestrado e graduação que se dedicam ao estudo de diversas outras dimensões da dinâmica sócio

cultural na província de Nampula, como gênero, corpo, feitiçaria e mercado.

Ilha de Moçambique, na província de Nampula. O objetivo da minha pesquisa de

doutorado é me aproximar dos ikoma (singular, ekoma), termo plurissemântico em

idioma emakhua que se refere aos instrumentos, ao local, ao momento em que se dança,

ou simplesmente ao ato de dançar entre as mulheres macuas durante os ritos de iniciação

femininos e também durante festas e eventos promovidos pelas associações

comunitárias. Se vai ao ekoma, toca-se ekoma, dança-se ekoma; assim como se vai aos

batuques, toca-se batuques, dança-se batuques, termo equivalente em português. “Passar

pelos batuques” é o mesmo que “passar pelos ritos de iniciação” ou “ser dançada”, o que

nos chama atenção para o duplo local ocupado pela iniciada: ela dança e é dançada, nos

batuques e pelos batuques.

A partir destas vivências sou levada a questionar a ideia de mulher como realidade

universalmente aplicável, seguindo a direção amplamente apontada pela literatura

feminista, em especial pelas feministas negras como Ângela Davis, bell hooks e Grada

Kilomba. Pensar a mulher no contexto do continente africano requer uma desvinculação

de ideias pré-concebidas sobre papéis de gênero, divisão sexual do trabalho, família e

também liberdade, emancipação e poder. No intuito de compreender a relação entre os

corpos femininos e os modos de tocar/ dançar vividos pelas minhas interlocutoras, tornou-

se necessário me despir de concepções prontas e me abrir para conhecer e estar junto de

outras formas de ser mulher que até então eram completamente distantes para mim, o que

trouxe à tona uma riqueza de modos de lidar com o corpo, a música, o trabalho, a

ancestralidade, as crianças e as capulanas, pessoas e objetos do universo feminino que

possuem uma vida independente, ou mesmo a despeito, de uma presença masculina.

Por outro lado, estar junto e vivenciar o cotidiano dessas mulheres me fez enxergar

também como o meu próprio corpo tem sido construído, de modo que me revelo durante

esta pesquisa como uma mulher negra em busca de uma concepção decolonial do mundo

e de si mesma, como aponta Lopez (2015). Nos caminhos que percorri por Moçambique,

o fato de ser uma mulher negra e, como tal, trazer no meu corpo, e na minha dança, marcas

especificas de ancestralidade, de luta politica, mas também de dor e de violência, me

levou a ver e ser vista, dançar e ser dançada de formas também especificas. Encaro que

esta foi a causa das principais limitações e potencialidades com as quais tive que lidar

durante a pesquisa de campo e que ressaltam as diferentes possibilidades e limites

vivenciados por homens e mulheres na pesquisa etnográfica.

Neste texto, não tenho como objetivo esgotar uma literatura a respeito dos temas tratados.

Relações raciais e de gênero em Moçambique e no Brasil, assim como limites e

possibilidades das intelectuais negras dentro das ciências sociais são temas que tangencio

a partir das relações que meu corpo produziu, e dos pensamos e reflexões que tais relações

ensejaram. Correndo o risco de parecer produzir generalizações, abrirei varias portas que

não serão fechadas neste momento. O objetivo não é trazer respostas, mas revelar

questionamentos e tensões.

Primeiros movimentos

Este texto versa sobre percepções e relações: o modo como nos vemos em relação a como

somos vistos. É também um texto em primeira pessoa que traz à tona sensações e

sentimentos que não foram escritos noutros textos da minha trajetória acadêmica, mas

que se mostram aqui com intuito de traçar alguns paralelos entre as questões de raça e

gênero entre Brasil e Moçambique - questões que têm como “ponte” meu próprio corpo.

Essa ausência não se faz pela pouca relevância destas questões na construção do texto

etnográfico, mas principalmente por dois motivos. O primeiro se refere a persistência da

sombra da “objetividade cientifica” que ainda paira sobre a formação acadêmica em

ciências sociais. Escondendo-nos atrás de um impessoal “nós”, mostramos os resultados

e uma construção harmônica das nossas conclusões de pesquisa num texto com

introdução, desenvolvimento e conclusão supostamente objetivos e linearmente

desenvolvidos.

A segunda questão diz respeito a um dilema entre autoria e sujeito sobre o qual irei me

debruçar com alguma atenção. Sou uma mulher negra, nascida no interior de Minas

Gerais. Cursei a graduação em Ciências Sociais entre 2005 e 2009 na Universidade

Federal de Minas Gerais com uma turma de trinta alunos ingressantes, sendo três negros.

No prédio da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas que agrega, além das Sociais,

os cursos de História, Filosofia, Comunicação Social, Filosofia e Psicologia, conhecia de

vista todos os negros que ingressaram no mesmo ano que eu, e não passavam de dez. No

mestrado, que cursei em Pernambuco, juntamente com uma aluna caboverdiana, éramos

as únicas negras numa turma de vinte e cinco. Apesar desta parca representatividade,

estudávamos povos negros desde as disciplinas de teoria clássica, em que líamos autores

como E. E. Evans- Pritchard, Marx Gluckman e Victor Turner e outros chamados de

africanistas. Estavam ali também Roger Bastide, Florestan Fernandes, Nina Rodrigues e

seus estudos sobre as populações negras brasileiras. Todos autores brancos. Desta forma

a ausência de sujeitos negros contrastava com a presença já estabelecida da temática negra

como objeto de estudo e pesquisa nas ciências sociais brasileiras.

Esta questão começa a ser denunciada ainda nos anos 1980, mas alcança ressonância

nacional nas discussões que culminam com a Lei Nacional de Cotas (Lei nº 12.711/2012)

e com a Lei de obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Indígena e Africana (Lei

10.639/2003). Assim, fica evidente que numa política de inclusão racial, os sujeitos

negros precisam estar presentes nas ciências sociais assim como a temática das culturas

africanas e afro-brasileiras. Hoje, quatro anos depois da implementação das cotas e outras

medidas de democratização do acesso ao ensino superior, percebemos um sensível

crescimento da presença de negros e negras como sujeitos na construção do conhecimento

acadêmico. No entanto, é possível perceber a existência de uma estratégia racista muito

sutil que busca atrelar o sujeito negro a temática de estudo, como se este só devesse se

interessar por questões negras e que estas, por fim, se reduzem a um interesse militante e

superficial.

Cito uma destas situações: fui aluna do primeiro ano do programa de doutorado do

ISCTE/FSH da Universidade Nova de Lisboa em 2015. No meu projeto propus investigar

uma possível rede de circulação do maracatu de baque virado na Europa, pois me

intrigava muito o interesse de europeus, portugueses, irlandeses, alemães, franceses, que

nunca tinham vindo no Brasil (e por vezes nem pretendiam vir) pelos tambores e sons

dessa manifestação tão peculiar do estado brasileiro de Pernambuco que é o maracatu. No

entanto, os professores com os quais conversei, a exceção do meu orientador na ocasião

que já tinha alguma experiência de trabalho e vivência no Brasil, e meus colegas de turma,

me orientavam a estudar os brasileiros migrantes e a falar sobre minha própria experiência

de circulação, o que teoricamente não me instigava nem um pouco. Para mim era claro

que o fato de afirmar que meus nativos são vocês - o branco europeu - causava algum

desconforto.

Me recordo aqui do trabalho de Janaina Damasceno (2013) a respeito da intelectual

Virginia Bicudo Em sua tese de doutorado, Janaina recorda como que seu interesse por

pesquisa a primeira brasileira que se debruçou sobre o tema das relações raciais no Brasil

foi inicialmente visto como algo que se restringia a sua “semelhança” com o fenótipo da

autora. Virginia Bicudo e Janaina Damasceno são mulheres negras.

Questiono então até que ponto ‘me colocar’ na minha pesquisa não seria ceder a uma

estratégia racista do conhecimento acadêmico branco e elitista que só consegue enxergar

o sujeito negro como objeto e não como autor e produtor de conhecimento - um intelectual

que pode versar sobre os mais diversos temas, inclusive sobre os locais de poder e de

privilégio. Ao mesmo tempo, diversas experiências de campo que vivi em minha

trajetória de formação em Ciências Sociais e Antropologia me mostraram que o fato de

ser uma mulher negra trazia limites e possibilidades muito especificas, e que essas

precisavam ser explicitadas no intuito de questionar a ideia de que o sujeito-pesquisador

possui um corpo neutro. Pelo contrário, sentia que a minha presença em campo era o

oposto daquilo que era esperado do corpo de um cientista- homem, branco, de meia de

idade.

Sabe-se que o Brasil é um país estruturalmente racista, machista e classista e que a

diferença de traços físicos me coloca num lugar especifico que, inspirada em Kimberleè

Crenshaw (2002) chamo de lugar interseccional, composto pelo cruzamento,

principalmente, dos marcadores de raça e de gênero. A partir deste conceito, Crenshaw

(1991) elabora uma proposta para “levar em conta as múltiplas fontes da identidade”,

embora não tenha a pretensão de “propôr uma nova teoria globalizante da identidade”

(Crenshaw 1991 apud Guimarães e Hirata, p.02, 2014). Nas palavras de Crenshaw:

Uma das perguntas que devemos fazer é a seguinte: “O que há de

errado com a prática tradicional dos direitos humanos? O que há

de errado com a visão tradicional das discriminações racial e de

gênero?” Um dos problemas é que as visões de discriminação

racial e de gênero partem do princípio de que estamos falando de

categorias diferentes de pessoas. A visão tradicional afirma: a

discriminação de gênero diz respeito às mulheres e a racial diz

respeito à raça e à etnicidade. Assim como a discriminação de

classe diz respeito apenas a pessoas pobres. Há também outras

categorias de discriminação: em função de uma deficiência, da

idade, etc. A intersecionalidade sugere que, na verdade, nem

sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com

grupos sobrepostos. (CRENSHAW, p.10, 2012).

Diante destas questões, me questiono sobre como abordar no texto etnográfico as

questões que são próprias do fato de ser uma mulher negra sem restringir ou objetificar

meus interesses de pesquisa, minhas interlocutoras ou a mim mesma. O objetivo aqui não

é fazer denúncias muito menos confrontar opiniões, uma vez que as pessoas envolvidas

nos relatos não foram ouvidas e não tiveram a oportunidade de dar a sua versão sobre tais

situações. Buscando mais revelar tensões do que buscar soluções através de situações

vividas tanto no Brasil quanto em Moçambique, trago aqui fragmentos etnográficos que

têm como objetivo evidenciar situações em que fui percebida e afetada a partir do lugar

interseccional que eu ocupo.

Se alguma denúncia poderá ser feita a partir destas reflexões, esta diz respeito à existência

de formas específicas e muito sofisticadas de exclusão do sujeito e do saber científico,

que partem do cruzamento de diversos marcadores de desigualdade que, no caso em

questão, cruza o machismo com o racismo, e como estas se relacionam, primeiro, com a

posição de contestação e enfrentamento que uma mulher negra se coloca simplesmente

ao ocupar o lugar de pesquisadora; segundo, as limitações sofridas e as soluções possíveis

dos dilemas de pesquisa. Na direção apontada por Haraway (1995), acredito que as teorias

do conhecimento devam discutir interseccionalidade na medida em que tais percepções

são uma questão central para a critica feminista a respeito da ideia hegemônica de ciência.

Ainda,

(...) A ideia de um ponto de vista próprio à experiência e ao lugar

que as mulheres ocupam cede lugar à ideia de um ponto de vista

próprio à experiência da conjunção das relações de poder de

sexo, de raça, de classe, o que torna ainda mais complexa a noção

mesma de “conhecimento situado”, pois a posição de poder nas

relações de classe e de sexo, ou nas relações de raça e de sexo,

por exemplo, podem ser dissimétricas. Assim, um primeiro ponto

para aprofundamento é a análise do conceito de “conhecimento

situado” ou de “perspectiva parcial” da epistemologia feminista

a partir dos conceitos de interseccionalidade ou de

consubstancialidade. (GUIMARÃES, HIRATA, p.61, 2014).

Diante do exposto, assumo a importância de me anunciar mulher negra que, além de

marcar um duplo local de exclusão, é colocado aqui no intuito de ressaltar suas

potencialidades no trabalho etnográfico. Parto do enunciado de Patrícia Hill Collins

(2016) a respeito das possibilidades que podem ser exploradas pelas mulheres negras

enquanto outsider-within. Mulheres negras podem fazer uso criativo do espaço marginal

que ocupam enquanto sujeitos sociais e políticos para questionar posturas cientificas

hegemônicas que apontam para a neutralidade do corpo-pesquisador e, por consequência,

do conhecimento construído a partir dali.

Lugar(es) de mulher

Estive em Moçambique pela primeira vez entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018

realizando a pesquisa de campo para o meu trabalho de doutorado em Antropologia. Na

capital, Maputo, vivi as “as dores e as delícias” de estar sozinha num país estranho, pela

primeira vez. Apesar de ter conversado com vários pesquisadores e pesquisadoras e ter

vários contatos por fazer, estava ali de fato sozinha. Maputo, de início, para mim, foi

marcada pelos excessos. Além da imensidão de informações novas, sentia estar entrando

num campo de estudos saturado, não só especificamente o bairro da Mafalala onde

concentrei meus estudos junto às mulheres macuas, mas em toda a cidade repleta de

pesquisadores de diversas nacionalidades, principalmente brasileiros.

Aprender a andar nas ruas, localizar os espaços, entender o sotaque e me fazer ser

entendida, compreender os códigos de vestimenta e como mensurar os valores em

dinheiro foram os principais desafios dos primeiros dias. A mobilidade em Maputo não é

simples: o transporte público feito é em “chapas”, vans ou kombis, ou “mylove”, parentes

distantes do nosso “pau de arara”, que não são nem um pouco convidativos para as

mulheres, e onde os relatos de abuso são frequentes. Quem tem carro anda com ele o

tempo todo, e as pessoas de classe baixa são as que andam a pé. Aprender a lidar, ou

melhor, minimizar o desconforto causado com o assédio nas ruas foi um desafio, assim

como lidar com a ausência feminina nos espaços públicos, desde seminários e palestras e

até (principalmente) em bares e shows. Participei, na primeira semana em que estava em

Moçambique, de um seminário organizado pela Associação IVERCA 2 chamado

2 A Associação IVERCA- Turismo, Cultura e Meio Ambiente tem sua sede no bairro da Mafalala, em

Maputo. Entrei em contato com esta associação ainda no Brasil e tive bastante auxilio de seus

funcionários e diretores no andamento da minha pesquisa. Mais informações em: http://www.iverca.org/.

“Patrimônio Cotidiano”. Durante a abertura, além do extremo formalismo, que passa

distante dos ares despojados (e por vezes desorganizados) das faculdades de ciências

humanas no Brasil, fiquei bastante impressionada com a ausência feminina, mesmo

quando a pauta eram questões que diziam respeito às mulheres, como a dança Tufo da

Associação Tufo da Mafalala. Como anotado em meu diário de campo, no dia da abertura

o público circulava em torno de trinta e cinco homens, e sete mulheres, proporção que se

manteve nos demais dias. Após este evento, retornando para a casa a pé, contei novamente

quando entrei no KFC3: quinze homens e três mulheres estavam no restaurante. Além de

mim que estava sozinha, as outras duas estavam acompanhadas por algum homem.

Se pensava inicialmente que, se as mulheres locais não estão nestes locais é porque deve

haver algo de errado ou de inseguro, depois compreendi que as coisas não eram tão

simples e que possivelmente teriam a ver com os códigos que relacionam gênero a certos

comportamentos públicos vividos em Maputo, que enunciam, por exemplo, que “sexta

feira é dia dos homens” e grupos de mulheres desacompanhadas não são bem vistas em

locais públicos, principalmente bares. A exceção é dada pelas estrangeiras: em espaços

artísticos como a Associação dos Músicos e o Núcleo de Arte é possível ver mesas apenas

ou com a maioria de mulheres. Mas eu ocupava um lugar liminar, sendo negra (aqui no

Brasil) ou mulata (de acordo com os moçambicanos) eu não era imediatamente

identificada como estrangeira e minha presença sozinha ou com uma amiga causava um

visível desconforto público, especialmente nos homens que não se fartavam a oferecer

insistentemente bebidas ou o pagamento de algum outro item no bar.

Uma questão que precisa ser ressaltada é que os índices de criminalidade em Maputo não

são maiores que das grandes cidades do Brasil, fato que não diminuía meu incômodo e

sensação de insegurança em virtude da série de beijinhos, pedidos pelo número de

telefone e “ois” e “olás” que ouvia até quando ia no supermercado. Por vezes comentei

com colegas moçambicanas o quanto me sentia incomodada e invadida com isso e não

raro ouvi casos de quando essas minhas amigas tinham conhecido futuros namorados ou

companheiros dessa forma. Mas se “antropologicamente” entendia aqueles atos como

normas de condutas locais, para mim isso era o bom e velho assédio de rua a qual também

3 Rede de restaurantes KFC (Kentucky Fried Chicken), fundada nos Estados Unidos, que possui diversas

lojas na cidade de Maputo.

estamos sujeitas diariamente e que me remetia a uma memória corporal dolorida, das

violências e riscos que corro e sofro como mulher negra no Brasil.

Ao final dos quarenta dias iniciais e tendo incorporado alguns códigos corporais como o

olhar levemente direcionado ao chão (e não o imperativo olho no olho que me é peculiar),

o cabelo trançado que me deixaram mais próxima das mulheres locais, o conhecimento

dos caminhos que me faziam sentir segura, e o fato de andar acompanhada por mais

amigos homens ou mesmo de abrir mão de frequentar alguns espaços, deixaram Maputo

uma cidade mais tranquila e familiar.

Após essa primeira temporada em Maputo, segui para província de Nampula, passando

por Nacala-Porto, Angoche, llha de Moçambique, Jembesse e na capital da província de

mesmo nome, Nampula. Nestas localidades, a presença expressiva do islamismo,

perceptível nas ruas principalmente pelas roupas das mulheres chamadas de “halifas”, as

muçulmanas que diariamente usam o véu chamado de “hijab” e andam sempre com

braços e pernas cobertos, e os homens vestidos de “jubô” e “kofió”, ressaltava meu lugar

de outsider. Por outro lado, era muito maior a presença de mulheres nas ruas do que na

capital Maputo e o assédio por parte dos homens, menos ostensivo e constrangedor.

Assim, usando lenço no cabelo, blusas que cobriam as tatuagens que tenho nos ombros e

capulana4, circulava por todos os lugares com tranquilidade.

Assim como boa parte das mulheres do Ocidente, compartilhava da opinião de senso

comum de que as muçulmanas são mais oprimidas que as mulheres ocidentais, sofrendo

mais fortemente dos efeitos do machismo. No entanto, fui levada a questionar essa visão

numa conversa com uma jovem “halifa” durante um rito de iniciação em Nacala, primeiro

em que presenciei a parte pública da cerimônia. Sigo para descrição desse evento, sem

desenvolver todos os aspectos do ritual, que necessitam de mais muitas páginas que as

disponíveis neste texto, me concentrando agora apenas nas nuances que interessam a esta

narrativa.

Lugar(es) de mulher

4 Tecido estampado, que pode ser produzido em Moçambique, mas é, em grande parte, importado da Índia.

A capulanas tem diversos fins, mas no dia a dia, as mulheres a utilizam amarrada na cintura, como uma

saia.

Os ritos de iniciação emergem no discurso das mulheres de forma fácil e ao mesmo tempo,

confidenciosa. Algo que só outras mulheres que já passaram pelos batuques podem

presenciar. Homens, se entrarem neste espaço feminino, podem ser suas roupas

arrancadas e serem humilhados. Mulheres não iniciadas podem ser obrigadas a pagar uma

quantia em dinheiro, ou se retirarem do local, sobre grande repreensão das mulheres mais

velhas responsáveis pela orientação durante os ritos, as mama-olaca. Mas se as narrativas

sobre os ritos são recorrentes, elas não são homogêneas. A quem condene, ache perigoso,

desnecessário, antiquado. Outras já acham avançado demais: dizem que, por enfatizar a

aprendizagem sobre a vida sexual, os ritos podem acabar incentivando as meninas a se

tornaram mulheres cedo demais. Outras acham que são a parte mais importante de ser

mulher: é ali que se aprende a se cuidar, se limpar, como respeitar os mais velhos, como

conhecer seu próprio corpo e como entender o corpo masculino do futuro marido.

Nesta cerimônia, presenciada em dezembro de 2017, as meninas que estavam sendo

iniciadas dançavam sob orientação das suas madrinhas e das conselheiras, sendo seguidas

pelas convidadas presentes, que se levantam dos seus lugares e vão em duplas ao centro

da roda dançar enquanto são “tchoveladas”- ato de receber ofertas de dinheiro, balas e

outros objetos como pequenos utensílios plásticos que são entregues pelas mulheres da

audiência na capulanas colocada no chão, a frente do local onde dançam. Assim, o

principal ato do ritual de iniciação é constituído na ação pelas iniciadas de aprender a

dançar e, posteriormente, serem dançadas pela audiência.

Neste ritual, a última dança foi o “mooro”, cuja movimentação principal é feita

chacoalhando os quadris lateralmente, sincronizados com movimento de sobe e desce dos

braços. Os pés, que quase não se deslocam do chão, acompanham a marcação dos

tambores. Na hora de dançar, as mulheres devem tirar suas roupas, dançando apenas com

a capulana amarrada como um cordão sobre os quadris. As mulheres podem permanecer

de roupa íntima, de blusas ou nuas, mesmo que nenhuma delas nesta cerimônia tenha

retirado suas roupas íntimas. Mas é imprescindível que os quadris estejam a mostra,

ressaltando a movimentação da dança. Esse momento é acompanhado com bastante

euforia pelas presentes e, quanto mais empolgante é dança, mais “tchovelada” a dançarina

é. Quando há alguma amiga da dançarina da vez na audiência, esta pode ir até ela e brincar

com seu corpo, dando pequenos tapas, a abraçando ou mesmo entregando moedas e outros

objetos direto na mão, como forma de demonstrar admiração pela sua dança. O ato de

“tchovelar” acontece durante quase todo o ritual e obedece a uma lógica bastante

complexa de circulação de objetos, a qual irei dedicar uma análise detalhada na minha

pesquisa de doutorado.

Fui a este ritual acompanhada por Linda5, moradora de Nacala que me foi indicada por

uma amiga de Maputo, sua prima. Fui orientada por ela a permanecer em silêncio e me

“vestir como uma macua” para que não fosse percebida, pois minha presença poderia ser

alvo de discórdia entre as senhoras orientadoras, que determinam que apenas jovens que

já foram iniciadas participem das cerimônias e insistia que a festa era pública, todas

estavam convidadas e que eu era sua acompanhante. Ela achava que para minha pesquisa

era preciso ver as coisas “como elas realmente aconteciam” e não como um teatro feito

para mim, o que para ela, era alvo dos vários desserviços feitos pelas ONG’s

internacionais que querem acabar com os rituais de iniciação. Ela, com muito orgulho,

queria me ajudar para que contasse no Brasil como é rica da “cultura de uma macua”. Ela

me ensinou alguns códigos e palavras para dizer em emakhua caso fosse interrogada.

Fiquei um pouco tensa mas não contestei e encarei esse pedido como uma motivação para

escrever sobre o tema, por mais diversos que sejam os dilemas éticos que me tomem de

assalto frequentemente.

O ritual durou várias horas, cerca de quatro, em que permanecemos neste barracão feito

de sacos de linhagem e capulanas em frente a uma casa, sentadas em esteiras no chão sob

um telhado de lona. Eu estava um pouco atordoada, pela quantidade de informações novas

e ao mesmo tempo extasiada com a beleza daquela cerimônia. Todas as mulheres, com

exceção das iniciadas, me pareciam muito a vontade entre si, felizes e brincalhonas, como

numa grande festa. As mulheres chegavam bastante arrumadas e bonitas, as vezes

5Nomes fictícios são usados por mim quando: eu não me lembrar ou não souber o nome do interlocutor,

quando a pessoa tiver pedido para ter seu nome suprimido ou quando eu não tiver conseguido localizar o

interlocutor para questionar sobre o uso do seu nome verdadeiro. Nesses caso os nomes foram substituídos

por uma alcunha ou me referi a estes pessoas genericamente como, por exemplo, “uma jovem

moçambicana”, No mais das vezes uso os nomes reais por que as histórias aqui contadas são não “histórias

sobre ninguém”, mas sim sobre mulheres que me revelavam o interesse em saber que seus conhecimentos

e sua “cultura” chegariam ao Brasil, tarefa que espero poder cumprir com o devido respeito. Por mais que

todos os meus interlocutores souberam nitidamente que eu estava realizando uma pesquisa, como a maior

parte das conversas não foi gravada, método que rapidamente se mostrou pouco efetivo, os trechos são

reproduzidos tendo como base minhas anotações em diário de campo. Por isso, a responsabilidade sobre as

falas e opiniões são apenas minhas.

passavam uma em frente as outras se exibindo, arrancando gritos e risadas. O que se diz

recorrentemente em conversas informais é que os rituais de iniciação ensinam as meninas

a “serem mulheres” e se preparem para serem aceitas pelos homens e por suas famílias.

Frequentemente é atribuído aos ritos uma série de consequências negativas, sendo a

principal delas a perpetuação da submissão da mulher e do controle de seu corpo pelos

homens. No entanto, o que eu vi me pareceu um momento extremamente rico de

compartilhamento de saberes dançados e cantados sobre a vida e o corpo, uma ação de

cuidado mútuo, de sociabilidade e, por que não, de empoderamento. Nas festas em que

estive em ruas ou bares na província de Nampula, nunca vi tantas mulheres sorrindo e

brincando como nas cerimônias de iniciação.

Não cabe desenvolver essa questão nesse momento, no entanto ressalto que, se é inegável

que a persistência de situações de submissão feminina são um grande entrave na luta pelos

direitos das mulheres em África, suspeito que o problema seja muito mais complexo do

que algo que possa ser resolvido com simples interdições ou julgamentos pelos olhos,

parâmetros e valores coloniais. Envolveria, sim, a compreensão de que lidamos com

outros corpos e outros mundos, que podem ser compreendidos, por exemplo, a despeito

de uma oposição entre masculino e feminino.

Quando começou a dança “mooro”, minhas companheiras se organizaram para dançar.

Eu fiquei bastante impressionada com o quanto todas elas ficavam muito a vontade ao

tirar o “hijab” e permanecerem de roupas intimas uma na frente das outras, fazendo um

rebolado forte e cadenciado que caracteriza o “morro”. Eu e minha acompanhante já

estávamos mais à vontade e eu já tinha conversado, em português, com outras mulheres

que Linda tinha me apresentado. Foi unânime o comentário de que eu “parecia uma

macua”, que me sentava como elas no chão, que havia aceitado a mesma água que elas

tomavam, que já sabia algumas palavras no seu idioma, e que para me “transformar”

completamente só me faltava ser “iniciada”.

Essa foi uma das cinco vezes em que me foi sugerido que eu fosse iniciada, que passasse

pelos batuques para que eu pudesse entender de fato como funcionava o ritual. Além

disso, ao ser iniciada eu poderia me tornar uma mulher com todos os atributos de uma

“macua”, o que incluía realizar o alongamento dos lábios vaginais através do ato chamado

popularmente de “puxa-puxa”. Este processo de construção do corpo é alvo de uma série

de controvérsias e sua interpretação, repleta de abordagens preconceituosas por parte de

diversos sujeitos, de forma que seus procedimentos, métodos e implicações precisam ser

ressaltadas mais detalhadamente para evitar mal-entendidos. Mas aqui cabe ressaltar que

o ato de alongar os lábios vaginais, transformando-os em “lulas”, é um atributo feminino

que compõe o principal “segredo compartilhado”, do qual as mulheres com as quais

conversei expressam ter bastante orgulho.

A halifa Saquina havia permanecido todo tempo ao meu lado, muito séria, parecendo ser

um tanto tímida, pois não compartilhava dos momentos de gritos e euforia junto com as

demais mulheres. Começamos a conversar quando dividi com ela e sua bebê a garrafa de

água que circulava entre todas as mulheres, com intuito de amenizar o calor escaldante

que fazia aquele dia. Quando disse a ela que era brasileira e ela disse que “já tinha

percebido”, mas que não entendia como eu estava ali e por que parecia tanto com elas,

pois eu era muito diferente das “brasileiras das novelas”. Saquina era muito bonita, estava

bastante maquiada com “hajal” nas sobrancelhas, argolas douradas nas orelhas e no nariz,

e usava uma longa túnica preta e o “hijab” rosa choque, carregando uma bebê amarrada

na capulana, igualmente maquiada e com uma argola em seu minúsculo nariz.

Num dado momento ela me pediu que segurasse sua filha e cuidasse de sua bolsa, pois

ela iria dançar. Com o mesmo rosto sério que havia permanecido durante todo o tempo,

Saquina tirou toda sua roupa, tirou a capulana com que estava carregando a bebe e

amarrou em torno do quadril. Se juntou a outra moça e foi ao centro da roda dançar. Sua

dança foi maravilhosa, hipnotizante, e arrancou vários gritos de “ululu”6 das presentes,

além de moedas, balas, pequenos pacotes de doces que foram colocadas na capulana que

estava na sua frente.

Quando acabou, Saquina, um pouco mais sorridente e bastante suada sentou novamente

a meu lado, e pegou a bebê do meu colo, mesmo antes de acabar de se vestir, e me disse:

“brasileira, por que você não vai dançar?” Eu fiquei extremamente nervosa, pois tinha

6 O som, que de acordo com minhas interlocutoras se chama “ululu” é conhecido também por

“zaghareet”ou “zaghrouta” em países árabes, “kel”, “salguta” ou “sarguta” no Irã, e no Brasil, como

“gritinho árabe”, por praticantes de dança do ventre..

muito medo de ser repreendida pelas madrinhas como Linda havia me dito. Além de ter

ficado com vergonha com a possibilidade de tirar a roupa e dançar uma dança que a meu

ver era tão erótica, no centro de uma roda de quase cem mulheres. Disse a ela que estava

tímida, além de não saber a dança e perguntei: “Você não ficou com vergonha?”. E ela

me surpreendeu com a seguinte resposta, anotada em meu diário de campo e que

reproduzo aqui com minhas palavras em “português brasileiro”, buscando manter o

sentido original:

“Não, por quê ficaria? Aqui só tem mulheres, não há

nenhum homem, não tem problema. Eu tenha pena de vocês

brasileiras! Vocês têm que se mostrar para todo mundo,

precisam ficar bonitas o tempo todo, indo ao ginásio,

comendo pouco para ficarem magras por que todo mundo

olha para vocês! Eu não, quem me vê é apenas meu marido,

não preciso me preocupar com a opinião de ninguém.

Tenho pena das brasileiras, como as da novela. Mas você é

diferente delas, se parece com uma macua. Deveria dançar.

Viemos as cerimonias para dançar”.

Enquanto conversava com ela, percebi vários olhares se direcionando para mim. Parecia-

me que as presentes estavam procurando por pessoas que não tinham dançado para

formarem duplas. Nesse momento, eu fiquei extremamente zonza, não sei se de

nervosismo, pelo calor, pelas horas sem me alimentar ou pelo impacto da fala de Saquina

e acabei me levantando e saindo do barracão onde estava acontecendo o ritual,

permanecendo uns quinze minutos sentada na sombra embaixo de uma árvore que estava

do outro lado da rua, rodeada por crianças que brincavam com uma água que escorria

pelas ruas de terra, tentando olhar dentro do barracão onde ocorria o ritual pelas frestas

das capulanas que protegiam aquele espaço. Do lado de fora, só se ouviam o som dos

batuques, das palmas e as manifestações de alegria da plateia. Quando voltei, o “mooro”

já tinha acabado e as mulheres estavam compartilhando arroz e caril7 oferecido pelas

madrinhas das três meninas iniciadas.

A fala de Saquina ecoou na minha cabeça durante vários dias e ainda não sei bem qual

efeito causou no desenvolvimento posterior do meu trabalho de campo, quando já

7 Um tipo de ensopado de carne, comumente frango ou cabrito que acompanha arroz ou xima (papa

mais consistente, de milho).

chegava nos espaços pensando que eu deveria dançar, independente do que acontecesse

e das orientações contrárias de quem tivesse me levado. Precisaria assumir esse lugar de

outhsider-within (COLLINS, 2016) de parecer, superficialmente, ser de dentro, ser como

elas, mas que num olhar um pouco mais atento me revelava de fora, trazendo no meu

corpo outras histórias e memórias. Sentia que ali, eu e essas mulheres, sentadas nas

mesmas esteiras, bebendo da mesma água, tão próximas e tão distantes, éramos a

expressão da diversidade dos corpos negros, diversidade esta que o olhar racista e

colonialista busca homogeneizar.

Saquina me instigou na busca por entender quem eram essas mulheres, que estavam muito

mais a vontade com seu próprio corpo e diante do corpo das amigas do que eu e amigas

brasileiras. Pensava ainda se a dança “mooro”, pelos seus movimentos de quadris, seria

de fato uma dança sensual e erotizada, ou se era eu e meus olhos ocidentais que

relacionavam necessariamente uma dança que move a região do baixo ventre com

erotismo, ou ainda, que relaciona o erotismo a uma relação heterossexual, que deve ser

privada, escondida e motivo de vergonha especialmente para as “halifas”. Qual era o

impacto dessa presença masculina anunciada, que poderia ao mesmo tempo ser

libertadora e castradora, alvo de admiração e desejo para o qual se deve estar bonita e

preparada, e ao mesmo tempo foco opressor que dita as regras que controlam o corpo

feminino? Seriam, de fato, os homens, donos dos corpos das “halifas” e a motivação para

a realização de um ritual de iniciação? Ainda, o que isto dizia sobre meu corpo, de mulher

negra brasileira, frequentemente alvo de erotização e objetificação e supostamente muito

mais livre que da minha jovem colega muçulmana?

Pensar a mulher no contexto do continente africano requer uma desvinculação de ideias

pré-concebidas sobre papéis de gênero, divisão sexual do trabalho, família e também

liberdade, emancipação e poder. No intuito de compreender a relação entre os corpos

femininos e os modos de cantar e dançar vividos pelas mulheres macuas torna-se

necessário me despir de concepções prontas e me abrir para conhecer e estar junto de

outras formas de ser mulher que até então eram completamente distantes para mim, o que

trouxe à tona uma riqueza de modos de lidar com o corpo, a música, o trabalho, a

ancestralidade, as crianças e as capulanas, pessoas e objetos que compõem um universo

feminino.

O “olhar de brasileira”

Na segunda semana que estava em Maputo, havia combinado com uma amiga da cidade

de sair para passear na praia. Era tarde de sábado e a primeira vez em que ia conhecer o

litoral. No entanto, quando ela chegou e fui ao seu encontro no carro ela me disse que não

íamos mais a praia, pois havia tido um falecimento de uma prima e ela deveria ir ao

velório e que eu iria com ela. Recomendou-me que voltasse em casa e pegasse uma

capulana que eu deveria usar para entrar no local onde estava acontecendo o velório.

Fiquei um pouco chateada pois tinha me preparado para um programa de fato mais leve,

como passar a tarde comendo peixe e tomando cerveja na praia descansando da primeira

e intensa semana de pesquisa na cidade. Quando contestei, ela me disse: “Você é

antropóloga, precisa ver essas coisas. Deveria era me agradecer. A Sandra, quando

esteve aqui queria muito ver um velório, mas não teve nenhum falecimento. Você tem

sorte!”

Não me considerando nem um pouco sortuda, pois odeio ir a funerais, segui a contragosto

dentro do carro para o tal evento. A casa ficava num bairro mais afastado da cidade de

cimento, mas ainda em Maputo. As ruas eram todas de terra, entrecortadas por valetas de

água e circundadas pelo mangal (mangue). Chegamos na casa e antes de entrar colocamos

as capulanas. Assim como no ritual de iniciação em Nacala, ela me disse que o melhor

era que ninguém percebesse que eu era de fora, por que isso faria as pessoas agirem

diferente e eu deveria ver como a coisa realmente era. Então era só eu me comportar como

ela que ninguém ia perceber, já que eu parecia moçambicana.

Entramos, e do lado de fora estavam os homens, sentados em roda. Cumprimentamos

todos um a um com um aperto de mãos e entramos na casa onde estariam as mulheres.

Na sala, estavam cerca de quinze mulheres, sentadas e deitadas no chão, em esteiras. Era

possível ouvir um lamento, bem baixo, e um pequeno choro. Todas estavam com as

cabeças baixas e poucas se levantaram para olhar quando nós entramos. Ia repetindo os

gestos dessa minha amiga e de sua filha, tentando minimizar o meu desconforto. Não

havia nenhum corpo ali. A falecida era uma jovem de dezesseis anos que morreu

subitamente após dois dias em que manifestou sinal de estar com malária e seu corpo

ainda estava no hospital, dependendo do pagamento de um valor para ser liberado. Os

lamentos que ouvi vinham de sua avó e de sua mãe, que estavam deitadas sob um colchão,

rodeadas pelas demais mulheres. Uma delas, tia da falecida, foi uma das poucas que nos

cumprimentou. Essa amiga apresentou sua filha e eu, dizendo que apesar de eu parecer

“de lá”, era brasileira. A tia lhe disse: “eu percebi”. E fazendo um movimento como de

abrir e fechar as mãos diante do rosto, e abrindo bem os olhos disse: “brasileiras são

assim, parece que brilham”.

Diversas outras vezes me foi feita esta referência ao “olhar das brasileiras” em oposição

a “cabeça baixa das moçambicanas”. Essa comparação era feita quase sempre por gestos

e sem palavras. Quando se referiam às moçambicanas, o tom de voz era baixo, o rosto

permanecia levemente inclinado para o lado e o olhar sempre direcionado para o chão. Já

quando faziam menção às brasileiras, a voz era alta e os olhos arregalados, olhando de

um lado ao outro com agilidade. Percebi que esse sinal, tão difícil de controlar, poderia

ou me delatar ou me camuflar, nos contextos em que me parecia mais confortável, ou me

era recomendado, que eu não fosse percebida como estrangeira.

Em diversos contextos em que fui facilmente identificada como brasileira, seja pelas

tatuagens no meu corpo, pelo sotaque, ou pelo fatídico olhar, a relação das pessoas e o

modo de me tratar mudava imediatamente e as vezes o próprio evento mudava de rumo,

quando as atenções da audiência todas se voltavam para mim. Mesmo que as pessoas não

estivessem falando comigo, seja em português ou em emakhua, era evidente que estavam

falando sobre mim. Essa mudança de atitude não era necessariamente para melhor ou pior,

mas sempre diferente.

Em alguns casos a curiosidade despertada fazia com que minha presença notadamente

mudasse o curso da ação e redirecionava toda a atenção para mim, seja durante um

almoço, numa mesa de bar ou numa fila de banco, através da série de perguntas que

respondi um sem número de vezes: “De onde você é; de onde no Brasil, Rio de Janeiro?;

o que está fazendo aqui, está a gostar de Moçambique, é casada; tem filhos?”. E muitas

vezes essa sequência de perguntas era coroada pelo irônico pedido de “me leva para o

Brasil”. Outras vezes, não havia esse súbito e divertido interesse, mas algum

estranhamento, seguido de perguntas sobre como era a vida no Brasil. E quase sempre

decepcionava meus interlocutores quando dizia que a vida real era muito diferente do que

se mostra nas novelas, que chegam em massa nas televisões locais. Quando contava que

a vida não era “um mar de rosas” principalmente para os negros e que o Brasil era um

país extremamente racista, onde homens e mulheres de pele escura têm muita dificuldade

para serem respeitados, conseguirem trabalho e se relacionar afetivamente, o

estranhamento era seguido de decepção. Não raro, em conversas posteriores com

moçambicanos, já mais a vontade comigo, me contaram casos de brasileiros

preconceituosos que tinham conhecido, e que tinham deixado a impressão de que éramos

muito mais racistas que os ex-colonos portugueses, apesar de também sermos uma ex-

colônia. Conversando sobre as novelas foi que percebi como elas fazem parte da

construção do imaginário local sobre o Brasil, e como as mulheres negras, e as discussões

raciais são ausentes nestes veículos.

Algumas conclusões

Ao realizar uma pesquisa em África, enquanto uma pesquisadora negra, sou colocada em

frente a um espelho, torto e gasto pelos anos, mas que não deixa de refletir uma imagem

projetada de mim mesma e da realidade em que vivo.

O continente africano, seja ele mais ou menos real, mais ou menos idealizado, acaba

sendo um território de conciliação para os negros e negras brasileiros que se veem

confrontados ali com uma realidade que nos foi negada. De fato, estar em África, num

país 99% negro, em que todas as mulheres têm meu cabelo, meus lábios e meus quadris

teve um efeito sobre minha autoestima que talvez ainda não tenha conseguido

dimensionar. Tal situação me remete à leitura de Achille Mbembe a respeito do negro e

da ausência de memória e humanidade, e na busca por um entendimento de si mesmo que

acaba se moldando num retorno, mais ou menos real, a África. Como nos diz esse autor:

“África” e “negro”- uma relação de coengedramento liga esses

dois conceitos. Falar de um é, na realidade, evocar o outro. Um

confere ao outro seu valor consagrado. Como já dissemos, nem

todos os africanos são negros. Mas se a Africa tem um corpo e se

é um corpo, um isto, é o negro que o confere a ela. E se o negro

é uma alcunha, se ele é aquilo, é por causa da Africa. Ambos, o

isto e o aquilo, remetem a diferença mais pura e mais radical e a

lei da separação. Um se confunde com o outro e faz pesar no

outro a sua carga untuosa, a um só tempo sombra e matéria.

Ambos são produto de um longo processo histórico de fabricação

de sujeitos raciais. (MBEMBE, 2018. P.7).

Para o filósofo camaronês, negro é uma categoria que materializa uma existência

subalterna e uma humanidade negligenciada, aquilo que não deve ser visto. O termo,

forjado para significar exclusão, uma mercadoria que em momento algum esteve

dissociado da ideia de escravo. Essa invisibilidade está no cerne do racismo que, além de

negar a humanidade do negro, o outro do Ocidente por excelência, se desenvolve como

modelo legitimador da exploração. Como afirma Eugénio, “exercício máximo do

biopoder, o racismo representa a escolha de quem deve ser eliminado, numa morte que

pode ser tanto física quanto política ou simbólica”. (EUGENIO, 2014, P.2).

Estar em África, percorrer no sentido oposto as rotas que trouxeram tantos seres humanos

para serem escravizados, tem o potencial de trazer ao negro da diáspora, memórias

ancestrais, repletas de narrativas que talvez importam menos por serem reais ou

inventadas e mais por cobrirem lacunas do processo de construção da memória daqueles

aos quais, por séculos, o status de pessoa foi tolhido pelo Ocidente. Mas, como conseguir

elaborar um diálogo entre as realidades negras em África e na diáspora sem projetar no

outro nossas frustrações, olhares e categorias, e ainda, sem recorrer no racismo e na

postura colonialista entranhada no conhecimento acadêmico?

Dançar, ser dançada, dançar junto. Dançar diz respeito a conexões com a música, com o

espaço, com o outro e com si mesmo. A ser convidada a dançar junto nos ritos de iniciação

femininos em Moçambique, experimentei outras formas de lidar com o corpo, a

sexualidade, a relação com os mais velhos, com noções de educação e comportamento, e

principalmente, com outras formas de ser mulher, de ser mulher negra. Através do meu

corpo, simultaneamente, me reconheci e me estranhei diante das minhas interlocutoras e

talvez, ao fim, tenha sabido mais sobre mim mesma do que sobre elas.

Bibliografia

COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica

do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127, 2016.

CRENSHAW, Kimberlé. “A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e

Gênero”. Relações raciais, setembro de 2012”. Disponível en:

http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/09/Kimberle-

Crenshaw.pdf.

_______ Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial

relativos ao gênero. Estudos feministas, v. 10, n. 1, p. 171, 2002.

________ Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against

women of color. Stanford Law Review, p. 1241-1299, 1991.

EUGENIO, Rodney William. Achille Mbembe. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Editora

Antígona, 2014. Revista do Núcleo de Estudos de Religião e Sociedade (NURES).

ISSN 1981-156X, n. 31.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, 2008.

GOMES, Janaina Damasceno. Os segredos de Virgínia: estudo de atitudes raciais em

São Paulo (1945-1955). 2013, 180 f. 2013. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado em

Antropologia Social)-Faculdade de Filosofia, Letras e ciências Humanas, Universidade

de São Paulo.

GRADA KILOMBA. Who can peak? Tradução: Anne Caroline Quiangala. 2016.

Disponível em: http://www.pretaenerd.com.br/2016/01/traducao-quem-pode-falar-grada-

kilomba.html .Acesso em 20 agosto 2018.

GUIMARÃES, N. A.; HIRATA, H. Gênero, classe e raça: interseccionalidade

econsubstancialidade das relações sociais. Tempo Social-Revista de Sociologia da USP

. 2014.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o

privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 7-41, 1995.

LÓPEZ, Laura Cecilia. O corpo colonial e as políticas e poéticas da diáspora para

compreender as mobilizações afro-latino-americanas. Horizontes Antropológicos, n. 43,

p. 301-330, 2015.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. N-1 Edições. 2018. 1ª edição

STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac

Naify,2014.